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“A Falsa Crise do Sistema de Seguridade Social no Brasil”

Denise Lobato Gentil


Instituto de Economia/UFRJ

I. INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva realizar um estudo sobre o sistema de seguridade social
brasileiro no período histórico recente, que vai desde 1990 a 2004. Embora o sistema de
seguridade social abranja as áreas de saúde, assistência social e previdência social, a
ênfase recairá sobre o sistema previdenciário, mais especificamente, sobre o Regime
Geral de Previdência Social – RGPS. O Regime Próprio dos Servidores Públicos – RPPS
será avaliado apenas de forma secundária.
A investigação aqui realizada limita-se a avaliar a capacidade de sustentação
financeira do sistema de seguridade social, com base no levantamento de suas fontes de
financiamento e de gastos. Uma questão central em torno deste tema é o estabelecimento
de uma conexão importante entre a estratégia política do governo, a política econômica
implementada e seus reflexos sobre a seguridade social. A proposta desta pesquisa é
analisar a suposta crise do sistema previdenciário de forma associada às lutas políticas
que se travam pelos recursos sob gestão do Estado brasileiro nos anos 90 e neste início
de século.
A análise da crise do sistema previdenciário está incorporada ao pensamento
neoliberal, hegemônico no mundo a partir da década de 1980, e difundido pelo Banco
Mundial e pelo FMI para os países da periferia. O discurso de falência e de incapacidade
futura da previdência pública tem sido relacionado ao envelhecimento da população em
função do aumento da expectativa de vida, baixa taxa de natalidade, elevação do salário
mínimo, aumento do valor médio dos benefícios previdenciários, aposentadoria precoce,
renúncia de receita, sonegação e evasão fiscal e custos administrativos altos.
Os dados estatísticos do Brasil, entretanto, revelam que não há crise financeira
da previdência ou do sistema de seguridade social. No caso, especificamente, do sistema
previdenciário, conforme será demonstrado a seguir, há uma situação muito mais tranqüila
do que se pode supor, durante os anos de 1990-2004, com alguns escassos momentos de
déficit, apesar da política econômica recessiva adotada nesse período, que conduziu a
resultados perversos no nível de produção e no mercado de trabalho. À revelia do quadro

1
econômico desfavorável desse período, o desempenho do sistema previdenciário foi
apenas parcialmente prejudicado. Quanto ao conjunto de ações associadas à seguridade
social verifica-se que o sistema como um todo é superavitário, o que indica que o governo,
na verdade, dispôs de recursos excedentes, mas deixou de gastá-lo com serviços de
saúde, previdência e assistência social, para aplicá-los no orçamento fiscal, resultando nos
superávits primário elevados dos últimos tempos.
Ao contrário do que normalmente se divulga através das fontes oficiais e que se
propaga pela imprensa sem nenhum exame crítico, a previdência social e o sistema de
seguridade social são financeiramente sustentáveis. A maior eficiência – que é sempre
desejável – não depende de corte de benefícios, restrições de direitos ou de maior
tributação, mas da incorporação ao sistema de uma parte da classe trabalhadora que vive
de empregos informais, sem cobertura previdenciária.
Se for verdade que muito ainda precisa ser feito para tornar mais adequadas as
fontes de financiamento do sistema e para melhorar o grau de cobertura por ele
proporcionado, então cabe agregar ao debate o significativo papel da política econômica
altamente restritiva adotada no início da década de 90, que conduziu à deterioração do
trabalho formal e, portanto, a que uma grande parcela da população ocupada no setor
privado não estivesse protegida pela Previdência Social. Esta população só contribui de
forma indireta para o sistema de Seguridade Social, através do pagamento de
contribuições embutidas nos preços dos produtos, e seu empobrecimento aumenta a
demanda por gastos assistenciais e de saúde. A saída para uma situação como essa é,
conseqüentemente, gerar mais empregos formais, que elevam as contribuições ao sistema
(receita), ao mesmo tempo em que deixa a população menos exposta à penúria. Porém,
empregos formais adicionais só são gerados na fase ascendente do ciclo econômico,
quando cada vez mais trabalhadores são incorporados ao mercado de trabalho. A política
econômica atual, supostamente voltada para o controle da inflação e realmente
interessada em praticar taxas de juros elevadas, não apenas não conduzirá a esse
caminho, como também soterrará qualquer projeto de desenvolvimento alternativo para o
país.
A permanência dessa política por muitos anos consecutivos faz com que se
vislumbre, para o futuro, um grande contingente de “sem-previdência” – a pessoas de mais

2
de 60 anos que necessitarão de gastos assistenciais para seu sustento. A incorporação,
hoje, dessa população, no mundo dos direitos da cidadania, depende da mudança na atual
política econômica e sua permanência no sistema previdenciário está mais diretamente
associada ao padrão de desenvolvimento econômico do futuro, muito mais do que de
reformas tópicas na área tributária, no código penal ou na legislação previdenciária e
trabalhista.

II. DESMISTIFICANDO O “DÉFICIT” DA PREVIDÊNCIA SOCIAL


A opinião pública tem sido influenciada por uma noção negativa da previdência
pública que não corresponde à realidade. Desmistificar esse panorama sombrio que se
construiu em torno da previdência social não é uma tarefa fácil, em função do
“bombardeio” de informações e opiniões distorcidas que são cotidianamente veiculadas.
Inicialmente é necessário considerar que os números utilizados para avaliar a
situação financeira da Previdência são normalmente enganosos e alarmistas. Divulga-se,
por exemplo, com base em fontes oficiais, que o déficit previdenciário, em 2004, foi de R$
32 bilhões.1 Entretanto, o que vem sendo chamado de déficit da Previdência é, na
verdade, o saldo previdenciário, ou seja, a soma (parcial) de algumas das receitas, como
as contribuições ao INSS e outras receitas próprias menos expressivas, deduzidas dos
benefícios previdenciários e das transferências a terceiros.2 Este cálculo não leva em
consideração todas as receitas que devem ser alocadas para a Previdência, conforme
autoriza a Constituição, deixando de computar recursos significativos, provenientes da
COFINS, CPMF e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. O resultado disso é um
déficit que não é real. Se for computada, a totalidade das fontes de recursos da
Previdência e deduzida a despesa total, inclusive os gastos administrativos com pessoal e
custeio, bem como outros gastos não-previdenciários3, o resultado apurado será um
superávit de R$ 8,26 bilhões em 2004. Esse superávit, denominado superávit
operacional, que é uma informação favorável e distinta daquelas divulgadas para a

1
Ministério da Previdência e Assistência Social, Fluxo de Caixa. Disponível também nos indicadores econômicos
do Banco Central, mas neste caso, o déficit é ainda maior, de R$ 34 bilhões.
2
Transferências a Terceiros são aquelas que se destinam ao SESI, SENAC, SENAI, SENAR, SEBRAE, SESC
etc.
3
Gastos não-previdenciários são os benefícios assistenciais ao portador de deficiência, ao idoso, aos dependentes
de vítimas fatais de certas doenças graves, ao inválido.

3
sociedade – e que pode ser apurada pelas mesmas estatísticas oficiais –, não é
propagada para a população como sendo o verdadeiro resultado da Previdência Social.
Surpreendente qualquer cidadão comum a constatação de que sobram recursos
financeiros do Regime Geral de Previdência Social e que tais recursos poderiam ser
utilizados para melhorar esse sistema, em benefício de uma parcela considerável da
população de baixa renda.
A uso inadequado e, de certa forma, perversamente manipulado, dos dados
estatísticos da Previdência baseia-se em argumentos que dissociam da análise um fator
importante que foi introduzido a partir da promulgação da Constituição de 1988. Um dos
maiores avanços inscritos na atual Constituição, em termos de direitos sociais, foi a
criação um sistema integrado de Seguridade Social abrangendo a saúde pública, a
assistência social e a Previdência (Art. 194, CF/88) . Este sistema deve ser financiado com
receitas próprias, previstas na Constituição e a ele especificamente vinculadas.
Por ser um dos componentes do sistema de seguridade social, o sistema
previdenciário, tem por fonte de financiamento outras receitas além das contribuições ao
INSS sobre a folha de salários, conforme ficou estabelecido na Constituição de 1988, que
exige a diversidade da base de financiamento.4 Isto foi da máxima importância, porque a
Previdência financiada pela folha de salário entrou em crise nos anos 80, uma vez que o
mundo do trabalho entrou em crise. Em 1988, já estava claro que apenas esta fonte
(contribuição ao INSS, paga por assalariados, empregadores e autônomos) não seria
suficiente para cobrir os gastos com os benefícios previdenciários, que envolvem, ressalte-
se, não apenas as aposentadorias (por invalidez, idade e tempo de serviço), mas também
pensões por morte do segurado, auxílio-doença, auxílio-acidente, salário-família, salário-
maternidade, auxílio-reclusão, abono de permanência em serviço e outros. Ampliou-se,

4
As contribuições que financiam a seguridade social e que estão previstas no art. 195 inciso I da Constituição Federal
são a já citada Contribuição dos Empregadores e Trabalhadores à Seguridade Social (Contribuição ao INSS), a
Contribuição Social sobre o Lucro das Pessoas Jurídicas (CSLL), a Contribuição Social para o Financiamento da
Seguridade Social (COFINS) e a receita de concursos de prognósticos. Além destas, foi criada a CPMF, após a
Constituição de 1988, na época do Plano Real e seus recursos são assim distribuídos: destinam-se 21% de sua
arrecadação à Previdência Social; 42,1% à saúde; 21,1% ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; e, 15,8% são
apropriados (desviados) pelo Orçamento Fiscal, para aplicação livre de vinculações (conhecido como Desvinculação de
Receitas da União - DRU) (Secretaria de Orçamento Federal, Assessoria Técnica, “Principais Vinculações das Receitas
Federais”). É importante ressaltar que a CF/88, no mesmo art. 195, também diz que a seguridade social será financiada
mediante recursos provenientes do orçamento da União, além das contribuições sociais mencionadas. Portanto, a
Constituição autoriza o governo a usar os recursos do orçamento fiscal para cobrir as necessidades da seguridade social.
O inverso, porém, não é verdadeiro.

4
então, a captação de receitas, com a inclusão de contribuições sociais que incidem sobre
o faturamento, o lucro, a apuração das loterias e a movimentação financeira, fazendo com
que toda a sociedade contribua para a manutenção dessas áreas, consideradas direitos da
cidadania. Portanto, não faz sentido excluir essas fontes de recursos do cálculo do
resultado financeiro da Previdência. No próximo item deste artigo serão levantadas
algumas hipóteses que justificariam a adoção de uma metodologia imprópria e enviesada
para avaliar o resultado da Previdência.
O propalado falso-déficit da Previdência é deduzido de um artifício contábil que
distorce a verdadeira natureza da questão. O próprio governo, em alguns documentos,
chega perto da verdade. Na “Carta de Brasília” – elaborada em 2003 por ministros de
Estado do governo atual e por governadores dos 27 Estados da Federação e que trata dos
pontos que foram objeto de acordo sobre a reforma tributária e da previdência –, fez-se um
diagnóstico da situação previdenciária do País, considerada, como de praxe, “grave em
seus sistemas diferenciados”. Esse documento, no entanto, admite que “... o regime Geral
da Previdência Social administrado pelo INSS é auto-sustentável em mais de 80%, pelo
fluxo contributivo [ou seja, pelas contribuições que incidem sobre a folha de pagamentos],
e que a parte urbana do sistema chega a 97% de auto-sustentação”. Para ser uma
verdade completa seria necessário que os governantes admitissem haver outras fontes de
recursos próprios da Previdência e, a partir daí, concluíssem pela existência de um
sistema 100% auto-sustentável e, mais do que isso, superavitário.
O Tabela I abaixo mostra o resultado financeiro do Regime Geral da Previdência
Social, extraído do fluxo de Caixa do INSS para um período de doze anos. Na primeira
parte da tabela, que vai de 1992 – 1998, os dados aparecem consolidados. Mas na
segunda parte, que cobre o período 1999 – 2004, receitas e despesas estão desdobradas
para melhor visualização empírica dos argumentos que serão aqui levantados. Durante os
últimos doze anos, apenas em quatro exercícios financeiro o Regime Geral de Seguridade
Social teve saldo operacional negativo. Nos demais exercícios, houve superávit,
particularmente no período mais recente, pós-1999. É importante chamar atenção para o
excedente de recursos no caixa do INSS no ano de 2004, que alcançou a cifra de R$ 8,2
bilhões. Dificilmente pode-se falar em falência diante de uma situação financeira tão
confortável.

5
Como se pode depreender do Fluxo de Caixa do INSS (Tabela I – continuação
na p.8), receitas próprias da seguridade social, como a COFINS, Contribuição Social sobre
o Lucro Líquido, receitas de concursos de prognósticos e a CPMF, são tratadas como
“Transferências da União”, embora estejam financiando o Regime Geral de Previdência
Social, que é parte integrante da seguridade social. No fluxo de caixa, a única receita
prevista na Constituição Federal, tratada como “Recebimentos Próprios”, arrecadada e
gerida pelo INSS, são a contribuição social dos empregadores incidente sobre a folha de
salários e a contribuição social dos trabalhadores. As receitas consideradas
“transferências da União” – CPMF, CSLL, COFINS e concursos de prognósticos,
principalmente –, são arrecadadas e administradas pelo Ministério da Fazenda, com
recursos depositados no Banco Central. Como os “recebimentos próprios” são
insuficientes para pagar todas as despesas previdenciárias e não-previdenciárias, o INSS
passa então a usar as fontes de recursos inclusas nas “transferências da União”,
disponibilizadas pelo Tesouro Nacional através de conta no Banco Central. É como se a
Previdência não devesse contar com recursos que não lhe pertencem, mas sim à União –
ao Tesouro Nacional –, que lhe transfere apenas na medida em que deva cobrir uma
necessidade de caixa. Provavelmente se não houvesse um saldo previdenciário negativo
no fluxo de caixa, não haveria a transferência desses recursos arrecadados pela Fazenda.
Isso caracteriza um esvaziamento político, construído através da falta de independência
financeira, dos órgãos da seguridade social que, no entanto, têm assegurada a gestão de
seus recursos pela Constituição Federal (inciso I e §2º do art. 195).5 Há, como se deduz,
um ataque aos preceitos constitucionais orquestrado por interesses particulares.6

5
Segundo o §2º art. 195 Constituição Federal de 1988, “a proposta de orçamento da seguridade social será
elaborada de forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência e assistência social ... assegurada
a cada área a gestão de seus recursos”.
6
O Ministério da Previdência sofreu mais um esvaziamento recentemente, quando perdeu seu corpo de fiscais e
procuradores, os quais foram compor a Super Receita, gerida pelo Ministério da Fazenda. Só restou a gerência dos
benefícios previdenciários.

6
TABELA I

A sustentabilidade financeira é ainda mais evidente quando se analisam os


dados estatísticos do sistema de Seguridade Social como um todo, integrado não apenas
pela Previdência, mas também pela saúde pública e pela assistência social. A série
histórica do resultado orçamentário da Seguridade Social apresentada na Tabela II, a
seguir, revela que, num período de doze anos, entre 1993 e 2004, apenas no ano de 1998
houve déficit, mesmo incluindo as despesas do Regime Próprio de Previdência Social dos
servidores públicos federais. O sistema tem se mostrado superavitário, tendo o superávit
do ano de 2004 alcançado 2% do PIB, ou mais de R$ 35 bilhões. A partir desses dados, a
questão central deixa de ser sobre a auto-suficiência do sistema de seguridade social, que
tem se mostrado óbvia, e passa a ser sobre o destino que foi reservado a esses recursos
excedentes pelo governo federal. O superávit da seguridade social é, a título de exemplo,
superior ao gasto anual com saúde pública, que equivale a 1,9% do PIB, conforme pode
seu visto na coluna da tabela relativa ao ano de 2004. Se esse montante de 2% do PIB do
superávit da seguridade social fosse investido no setor de saúde, seus recursos seriam
ampliados em mais de 100%, o que implicaria numa transformação radical na oferta dos
serviços de saúde.

7
TABELA I (continuação)

8
Se o governo federal cumprisse o dispositivo constitucional, presente no art. 165
§ 5º, que estabelece que Poder Executivo deve elaborar e executar três orçamentos – o
orçamento fiscal, o orçamento de investimento das empresas da União e o orçamento da
seguridade social – o resultado da Previdência e da seguridade social seriam mais
transparentes.
Entretanto, o governo, desafiando a Constituição, elabora apenas dois
orçamentos: o orçamento de investimento das empresas estatais e consolida, num único
orçamento, as receitas e os gastos do orçamento fiscal e da seguridade, denominado-o de
“Orçamento Fiscal e da Seguridade Social”, no qual as receitas próprias da seguridade
social (as contribuições sociais) aparecem unificadas às outras receitas de impostos do
orçamento fiscal, assim como as despesas unem-se nos mesmos demonstrativos para daí
sair um resultado consolidado de dois orçamentos.7 O resultado é um amontoado de
dados propositalmente confusos.
Como conseqüência de mais este artifício metodológico, o superávit do
orçamento da seguridade social é automaticamente incorporado ao orçamento geral da

7
É um desafio, para qualquer pesquisador do ramo, identificar o orçamento da seguridade social na base de dados do
governo federal seja no Ministério do Planejamento, Ministério da Fazenda, Ministério da Previdência ou Banco Central.
Se quiser obter o resultado da seguridade social terá que elaborar, por si mesmo, os demonstrativos. Os anexos da Lei
Orçamentária Anual ou os relatórios da execução orçamentária elaborados com base em balanços, disponível para
consulta nos sites do governo, mostram dados consolidados do orçamento fiscal e do orçamento da seguridade social.

9
União, resultando na geração dos elevados superávits primários ao longo dos últimos oito
anos. Assim, parte do excedente, retirado de toda a sociedade, mas principalmente dos
consumidores de baixa renda (fundamentalmente a classe trabalhadora), que são os que
efetivamente pagam impostos indiretos e as contribuições incorporados aos preços, é
desviado das aplicações nas ações de saúde, previdência e assistência social, para se
destinar ao pagamento de outras despesas, sendo o serviço da dívida pública, que onera o
orçamento fiscal, o seu destino mais lógico, à revelia dos dispositivos constitucionais que
vinculam esses recursos às despesas do orçamento da seguridade social. É assim que a
Constituição Federal tem sido violada em pelo menos dois artigos, art. 165 e 195, há
muitos anos.8
Se houvesse a elaboração, de forma isolada, do orçamento da seguridade social
ficaria revelado, com toda clareza, aquilo que o governo se empenha em ocultar: 1) que o
desequilíbrio orçamentário está no orçamento fiscal e não no orçamento da seguridade
social; 2) que a seguridade social não recebe recursos do orçamento fiscal, ao contrário,
parte de seus recursos financiam o orçamento fiscal; e, 3) que não é a previdência que
causa problemas de estabilidade econômica e crise de confiança nos investidores, mas é
a política econômica que atinge a previdência.
Foi também com a intenção de produzir superávit primário que a política
tributária dos anos 90 buscou a ampliação da receita pública através, principalmente, do
aumento de contribuições que são destinadas ao orçamento da seguridade social, por
terem a peculiaridade de não serem partilhadas com Estados e Municípios. Mas, para que
o aumento da carga tributária se tornasse conveniente aos propósitos do governo, o
Executivo propôs a desvinculação das receitas da União (DRU), que foi estabelecida
através de emenda ao texto constitucional, autorizando o governo a utilizar parcela
significativa dos recursos arrecadados – 20% das receitas de contribuições – de forma
livre de qualquer vinculação a despesas específicas. Com este mecanismo, receitas da
seguridade social são legalmente deslocadas do seu orçamento próprio para o orçamento

8
Aparentemente, não se controlam se os recursos arrecadados de COFINS, CSLL e CPMF estão sendo gastos com a
Seguridade Social de acordo com a lei. Não foram encontrados registros de oficiais que tratem do assunto, mesmo no
Tribunal de Contas da União. Fica claro que, uma vez centralizada a arrecadação e gestão das contribuições na Fazenda,
com os recursos próprios destinados à Seguridade sendo denominados de “Transferências da União”, perdeu-se o
controle da aplicação dos recursos. Foi um grande “golpe” na seguridade, porque passou a ser a forma de tirar sua
autonomia orçamentária e desviar recursos para o orçamento fiscal.

10
fiscal, mas apenas 20% delas não eram suficientes. Os indícios de que o governo tem
desviado mais são fortes. Segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Previdência Social (ANFIP), há pelo menos cinco anos, recursos são subtraídos da
seguridade social para além dos 20% permitido legalmente através da DRU.9
Diante de tais constatações, como é que um sentido de crise e de urgência foi
criado em torno de um problema que parece não ser nem crítico nem urgente? O objetivo
do próximo item é responder a essa questão.

III. OS INTERESSES POR TRÁS DO DISCURSO DE FALÊNCIA DA PREVIDÊNCIA


PÚBLICA.
Múltiplas causas conduziram a esse resultado. Há os interesses dos fundos de
pensão, dos proprietários de títulos públicos, as novas tendências políticas hegemônicas
no mundo e mudanças na teoria econômica.
Há muitos interesses no sistema bancário pela privatização da Previdência e,
portanto, é normal que seus prepostos assumam o discurso de falência da previdência
pública. Os bancos poderiam se apropriar de muitas contas novas. Mas, não apenas isso
está em questão. Os grandes proprietários de títulos públicos (empresas, bancos e
especuladores) também têm interesse em qualquer política que reduza as despesas do
governo federal ou que interfira no crescimento e no emprego que tenha ligação com
gastos do governo. Para esses proprietários rentistas, o principal inimigo a vencer são
aqueles que disputam as verbas do orçamento público – e não a inflação, embora a
inflação também seja uma ameaça. E a perspectiva dos proprietários de títulos tem sido
tão veementemente propagada pelos meios de comunicação e tão bem assimilada pela
maioria das pessoas, que ficou fácil para os dirigentes políticos convencer a sociedade de
que o que é bom para o mercado de títulos é bom para a economia, ainda que isso
signifique maior desemprego e menor crescimento.
9
Em informação divulgada pela ANFIP, os auditores afirmam que, no ano de 2004, o governo ultrapassou o limite legal
de 20%, aplicados sobre receitas de contribuições (DRU), que são livres para utilização em qualquer despesa. “A ANFIP
afirma que R$ 17,63 bilhões de recursos desvinculados da seguridade social estão acima dos 20% permitidos pela DRU,
ou seja, além de desviar o que a lei permite, o governo Lula foi além. Com base em informações extraídas do Siafi
(Sistema Integrado de Administração Financeira), do fluxo de caixa do INSS e do Tesouro Nacional, os fiscais da
Previdência concluíram que o governo federal ultrapassou o limite legal da DRU... Os auditores da Previdência destacam
que essa não foi uma peculiaridade de 2004. Entre 2000 e 2004, foram utilizados R$ 165 bilhões da seguridade social
para contribuir com o superávit primário. Desse montante, R$ 76,84 bilhões teriam excedido o limite permitido para
desvinculação das contribuições” (Folha de S. Paulo, 11/4/05).

11
O discurso de falência da previdência pública e da necessidade de privatizá-la
e/ou de tornar os seus custos menores para o orçamento público visa garantir a
continuidade da destinação de parte significativa dos recursos orçamentários para
pagamento de juros ao sistema financeiro (algo em torno de 7% do PIB, atualmente). Essa
garantia precisa ser dada através de políticas governamentais efetivas que assegurem um
superávit primário elevado. A execração da previdência pública tem sido útil aos interesses
rentistas de desmonte do Estado, e que são os mesmos que defendem a política de juros
altos. Cortes de programas do governo, o quase congelamento de gastos de custeio e a
desvinculação de receitas orçamentárias (DRU) são variantes dos instrumentos através
dos quais o governo tem atendido aos interesses que exigem menos verbas para gastos
sociais com saúde, assistência social, previdência, educação e mais verbas para o
superávit primário.
Segundo Melin e Serrano, um objetivo menos óbvio, mas igualmente deletério,
consiste em promover uma concentração ainda maior de poder político na Fazenda
(especificamente na Secretaria do Tesouro) que, diante do aumento das restrições fiscais,
ganha cada vez mais discricionariedade para decidir quais gastos públicos de fato são
importantes e como devem ocorrer. Essa ação discricionária do Ministério da Fazenda
sobre os recursos orçamentários se estabelece também e principalmente através do
caráter autorizativo do orçamento público, que faculta o contingenciamento e/ou a não
execução do gasto planejado, permitindo que o Executivo “passe por cima” do Congresso,
dos governadores, dos prefeitos (MELIN e SERRANO, 2005).
Toda espécie de segurança possível deve ser dada para garantir que o sistema
financeiro continuará sempre a receber a maior parte do orçamento público e que seus
créditos no Estado estarão resguardados. A política econômica deve ser dura o suficiente
para funcionar como um seguro contra as imprevisibilidades da democracia, que podem
exigir mudanças indesejáveis de curso. Todas as práticas, legais e não legais, estão sendo
utilizadas com o fim de cumprir com as metas anuais de superávit primário e desta forma
patrocinar a expansão da riqueza financeira.
Os defensores da preponderância dada ao capital financeiro no Brasil sentem-se
confortáveis para propor políticas de desmonte dos gastos sociais, adornadas com os
nomes de “choque de gestão”, “reformas estruturais”, “blindagens da política econômica”.

12
Ficou cada vez mais evidente ao longo dos anos 1990 e neste início de século, que o
Estado posicionou-se pela defesa da dívida financeira, em detrimento da dívida social, que
efetivamente não pretende resgatar, ao adotar os receituários de recessão permanente
construído pelos mercados financeiros para regular o Estado de acordo com sua lógica
especulativa.

IV. OS AVANÇOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL


O objetivo da previdência social é garantir a reposição de renda dos seus
segurados contribuintes quando não puderem trabalhar por motivos de instabilidade
econômica que gera desemprego, por contingências biológicas, por acidente ou por outros
motivos que empeçam o trabalhador de participar, por meio do mercado de trabalho, do
processo de produção, evitando a penúria e a pobreza involuntária da classe trabalhadora.
Como menciona Teixeira, “o mundo da previdência social brasileira é, portanto, um mundo
de atraso e miséria: por sua clientela, os despossuídos, os doentes, as viúvas, a infância
carente, os idosos, todos em geral sem outro apoio que não aquele que o sistema pode
oferecer...” (TEIXEIRA, 1999).
Dentro desse “mundo de atraso e miséria”, a Previdência pública no Brasil, em
que pese suas limitações, não é apenas financeiramente sustentável, mas tem mostrado
avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínima para a população.
Conforme se pode observar do Gráfico 1, abaixo, entre 1996 e 2004 (mês de
dezembro tomado como referência), a quantidade de benefícios pagos pela previdência
social e pela assistência social aumentou significativamente, em 40%, tendo passado de
16,5 milhões para 23,1 milhões de benefícios concedidos.

13
Gráfico 1: Evolução da Quantidade de Benefícios Emitidos pela Previdência Social
RGPS - (1996 a 2004) – Em Milhões de Benefícios – em Dezembro

25,0 23,1
21,1 21,9
19,6 20,0 2,6
18,2 18,8 2,3
20,0 2,3
17,5 2,0 2,1
16,5 1,9
1,7 1,8 6,9
1,5 6,6 6,8
15,0 6,1 6,3
5,9
Milhões

5,4 5,7
5,3

10,0

12,8 13,6
11,0 11,4 11,6 12,3
9,7 10,3 10,7
5,0

0,0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Urbano Rural Assistencial

Fontes: Anuário Estatístico da Previdência Social - AEPS; Boletim Estatístico da Previdência Social – BEPS
Elaboração: SPS/MPS

Segundo estudo apresentado pelo Ministério da Previdência, o IBGE estima


que, para cada beneficiário da previdência social há, em média, 2,5 pessoas beneficiadas
indiretamente. Assim, em 2004, os gastos com Previdência e Assistência Social
beneficiaram cerca de 81 milhões de pessoas (Ministério da Previdência Social, 2003).
Observa-se que, o salário mínimo, cujo valor é a referência básica para a
concessão de benefícios previdenciários e assistenciais (explicitamente mencionado na
Constituição Federal), tem assegurado um piso de renda aos trabalhadores e às suas
famílias em momentos de fragilidade – doença, acidente, invalidez, velhice, desemprego,
maternidade, reclusão e morte do segurado. Do total de benefícios pagos em 2004, 63%
deles possuíam o valor de até um salário mínimo, conforme pode ser visto pelo Gráfico 2 a
seguir. Em conseqüência, o valor real do salário mínimo tem importante significado no
estabelecimento de um padrão de vida mínimo para ampla parcela da população, mais
particularmente, da população rural, principal receptora de benefícios previdenciários com
essa magnitude. A aposentadoria rural tem trazido melhorias para as famílias, já
apontadas em estudos do Ministério da Previdência, em muitas das quais o idoso passa a
ser o principal provedor. Os benefícios da previdência asseguram dinamismo à economia

14
local, funcionam como uma espécie de “seguro agrícola” na entressafra e ajudam na
fixação do homem no campo (Ministério da Previdência Social, 2003).

Gráfico 2: Distribuição de Benefícios Emitidos, segundo Faixas de Valores- Em Pisos


Previdenciários (Posição Dez/2004)

0,2%

7 -| 8 0,7%

6 -| 7 2,2%
Valores, em Salários Mínimos

5 -| 6 2,9%

4 -| 5 4,4%

3 -| 4 4,9%

2 -| 3 7,3%

1 -| 2 12,7%

=1 34,9% 47,1% 18,0% 62,6%

<1 2,1%

0 2.000 4.000 6.000 8.000 10.000 12.000 14.000 16.000

Milhares de benefícios
<1 =1 1 -| 2 2 -| 3 3 -| 4 4 -| 5 5 -| 6 6 -| 7 7 -| 8
Assistenciais 2,2 2.610,0 17,0 - - - - - - -
Rurais 29,2 6.824,4 67,4 16,6 5,8 2,4 1,2 0,7 0,1 0,0
Urbanos 459,8 5.052,9 2.847,6 1.675,9 1.136,4 1.019,7 671,3 516,2 153,0 37,1

Total 491,3 14.487,3 2.931,9 1.692,4 1.142,2 1.022,1 672,5 517,0 153,1 37,1

Fontes: DATAPREV, SUB, SINTESE.


Elaboração: SPS/MPS
Obs.: A existência de benefícios com valores inferiores ao salário mínimo deve-se ao desmembramento de pensões e ao pagamento de
benefícios como o salário-família, o auxílio suplementar, o auxílio acidente e o abono de permanência.

Os gastos com benefícios têm se expandido não só pelo aumento da


quantidade, como também do valor. Isso, entretanto, tem se mostrado viável porque a
magnitude das receitas foi também crescente, conforme pode deduzido da Tabela II. Ao
longo dos últimos nove anos, a relação entre a despesa com benefícios previdenciários e
assistenciais e o Produto Interno Bruto – PIB, tendeu a assumir valores crescentes. Em
1996, a soma dos gastos previdenciários e assistenciais representaram 6,1% do PIB,
enquanto em 2005 este percentual deverá atingir, cerda de 8,5% do PIB (Gráfico 3).

15
Gráfico 3: Evolução da Despesa com Benefícios Previdenciários e Assistenciais em relação ao
PIB (1996 a 2005) (1)

9,0
8,5
8,5
8,1
8,0 7,7
7,5 7,3
7,0
7,0
6,7
6,5 6,5
6,5
6,1 6,2
6,0

5,5

5,0

4,5

4,0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Fonte: SPE/MF
(1) Dados de 2005 estimados com base no terceiro Relatório de Programação Financeira

Esse crescimento na relação benefícios/PIB deve-se: 1) ao baixo crescimento


do PIB no período 1996-2004, que foi, em média, de 2,1%; 2) ao crescimento vegetativo
10
da população, em especial da população idosa , que, estima-se, cresceu em média 3,7%
ao ano no mesmo período (IBGE), portanto, acima do crescimento do PIB; 3) à
regulamentação e expansão da previdência rural e da Lei Orgânica da Assistência Social
(LOAS); 4) mais recentemente, às novas regras do Estatuto do Idoso; 5) aos aumentos
reais concedidos ao Salário Mínimo, conforme pode ser visto no Gráfico 4 (Governo
Federal, 2005).

10
Homens de 65 anos ou mais e mulheres de 60 anos ou mais.

16
Gráfico 4: Evolução do Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC e os reajustes
nominais do salário mínimo (1998-2005) - %

20,00
20,0
19,21
18,54

15,38

15,0

11,03 11,11
9,72
10,0 8,33 8,33
7,06
6,61
6,27
5,35
4,62
5,0 4,12 3,88

0,0
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

INPC Reajuste Nominal do Salário Mínimo


Fonte e Elaboração: SPS/MPS
Obs.: Os índices acumulados do INPC correspondem aos períodos entre: 1998 - mai/97 a abr/98; 1999 - mai/98 a abr/99; 2000 -
mai/99 a mar/00; 2001 - abr/00 a mar/01; 2002 - abr/01 a mar/02; 2003 - abr/02 a mar/03; 2004 - abr/03 a abr/04; 2005 - mai/04 a
abr/05

Com os reajustes reais no valor do salário mínimo, milhões de beneficiários têm


o seu poder aquisitivo elevado, o que impacta significativamente na atenuação da pobreza.
Um dos principais efeitos de modificações do valor do salário mínimo nas
despesas com benefícios assistências ocorre por meio da elevação automática dos
benefícios destinados às pessoas idosas ou deficientes físicos, que não possuam
rendimento próprio ou cujas famílias tenham renda de até ¼ do salário mínimo per capita.
Essas pessoas têm direito ao recebimento de um salário mínimo por mês de forma
permanente, direito não transferível aos seus dependentes. Atualmente são pagos cerca
de 2,16 milhões de benefícios/mês a idosos e deficientes. Além disso, existe cerca de
524,89 mil beneficiários do programa renda mensal vitalícia (Idem, 2005).
A população que recebe benefícios previdenciários rurais e benefícios não-
previdenciários da LOAS (assistenciais) é parte dos grupos mais carentes da sociedade e

17
é nessa parcela da população que se concentram os benefícios cujo valor é equivalente a
um salário mínimo. O acesso a esses benefícios não exige contribuições. Os benefícios
não contributivos (ou seja, assistenciais, aposentadorias rurais ou aposentadorias por
idade com menor tempo de contribuição) estão assumindo uma participação
potencialmente maior com o passar do tempo, conforme apontam os dados sobre
concessão de benefícios (Boletins Estatísticos do MPS). A queda na razão entre
contribuintes e não contribuintes acaba por se traduzir na redução do volume de
contribuição. É um resultado financeiramente perverso, mas socialmente necessário e
desejável. Sem dúvida o papel da seguridade social na estrutura econômica do capitalismo
é orgânico e relevante. Mostra-se não apenas indispensável à reprodução da força de
trabalho, conforme se procurou mostrar acima, e, portanto, à reprodução do próprio
capital, mas ao assegurar esses propósitos permite atenuar os conflitos sociais
(TEIXEIRA, 1990).
Cresce a importância do sistema de seguridade social quando um outro fator é
levado em consideração: o baixo nível dos salários, agravado pela mudança regressiva na
distribuição da renda nas últimas décadas. Com a queda dos salários reduz-se a
possibilidade dos trabalhadores pouparem para sua aposentadoria ou participarem de
planos de pensão privados. Isto faz com que o sistema de seguridade social seja a única
fonte de serviços essenciais e de renda de aposentadoria que a maioria da população do
país pode realmente contar. Isso reforça o sistema público de aposentadorias e pensões,
ao invés de fragilizá-lo, como um instrumento de enfrentamento das desigualdades e da
precariedade de vida da classe trabalhadora.

V. A INFLUÊNCIA DA POLÍTICA ECONÔMICA NO SISTEMA DE SEGURIDADE


SOCIAL.
Um dos problemas apontados pelo governo como cruciais para a estabilização
econômica é o equilíbrio da situação fiscal do Estado. O déficit público é tomado como um
dos elementos responsáveis pelo índice de inflação e um fator desestabilizador das
expectativas dos agentes que, no entendimento do governo, consideram a
sustentabilidade da dívida pública um aspecto relevante para a construção de cenários de

18
avaliação do comportamento do mercado. O suposto déficit da Previdência sempre surge
como um elemento importante a ser neutralizado pela política fiscal.11
Há os que apontam a existência de uma crise no sistema previdenciário em
função de fatores demográficos como o aumento da população idosa, o menor número de
jovens e a diminuição da taxa de natalidade. Esses fatores reduzem o volume das
contribuições previdenciárias e elevam os gastos com benefícios e, assim, os analistas
projetam estatísticas sombrias sobre o déficit previdenciário. Há aqueles que elegem o
crescimento dos benefícios, alguns sem contrapartida em contribuições, como fatores que
desequilibram o sistema previdenciário e propõem redução de direitos, considerados
desproporcionais diante da capacidade de captação de receita do sistema. Porém, mesmo
supondo que esses fatores sejam tomados como agravantes reais da queda da relação
contribuição/benefícios, diversas medidas poderiam ser implementadas para neutralizar
esse efeito, se houvesse uma política econômica voltada para o crescimento. Antes de se
pensar em cortar o valor de aposentadorias, reduzir direitos e elevar indiscriminadamente
as contribuições previdenciárias, outros mecanismos e variáveis econômicas que têm forte
efeito positivo sobre o resultado financeiro da Previdência poderiam ser acionadas: 1) em
primeiro lugar, promover um maior crescimento do nível de produção e do emprego formal,
pois na fase ascendente do ciclo crescem as receitas tributárias e de contribuição, além de
se reduzirem os gastos sociais; 2) maior crescimento da produtividade, derivado de
incrementos na taxa de investimento e de melhoramentos da qualidade da força de
trabalho, através da promoção da educação e do treinamento, pois assim poderia ser
atendida a demanda crescente por bens de consumo vinda dos aposentados; 3) maior
progressividade no sistema de contribuições previdenciárias, para que os salários mais
altos possam pagar mais; 4) tributação seletiva que alcance o excedente gerado pela
introdução de inovações tecnológicas poupadoras de trabalho e aquele apropriado na
circulação financeira especulativa.
Outros fatores como a política de elevação do salário mínimo e sua vinculação
ao piso básico de benefícios, a renúncia de receitas feita a certas entidades, as fraudes, os

11
Ressalte-se, desde já, que a crise fiscal que está ocorrendo é um fenômeno derivado da política monetária, que com a
prática de juros elevados, tem produzido a um pesado ônus sobre o orçamento público, na forma de gastos financeiros
elevados com o serviço da dívida pública, conforme procurar-se-á demonstrar a seguir. Entretanto, a crise fiscal tem sido
usualmente relacionada com a crise do sistema público de pensões e aposentadorias.

19
elevados custos administrativos do sistema e o desequilíbrio da previdência dos militares
também são utilizados para justificar o discurso de falência do sistema público de
previdência e a necessidade de sua revisão, para que não prejudique o equilíbrio das
contas públicas. Tudo deve ser feito em nome da prudência fiscal, até a desvinculação dos
benefícios do salário mínimo deve ser encarada como uma proposta viável, como são ao
outras propostas de cortes nos gastos que implicam no cerceamento de direitos.
Muito pouco se atribui à influência da política econômica sobre a situação
enfrentada pelo sistema de seguridade social. A análise dos números deste sistema,
entretanto, não pode ser feita de forma dissociada do conjunto das estratégias políticas do
governo.
No final do século passado e nos primeiros anos deste século XXI, a política
econômica no Brasil definiu a situação das contas públicas como um de seus pilares
fundamentais. A política fiscal tornou-se um campo de ajuste importante para a
estabilidade econômica do país porque, para os policy-makers, uma situação de solvência
fiscal baliza as expectativas dos agentes, influenciando positivamente suas decisões.
Por esse motivo, a situação fiscal intertemporal do setor público ganhou
destaque especial e a noção de sustentabilidade a médio e longo prazo da dívida assumiu
o papel de elemento central para definir o comportamento esperado da situação fiscal. A
relação dívida/PIB tornou-se o indicador tomado como referência para fornecer uma visão
do comportamento futuro da situação fiscal. Para os adeptos dessa visão, não é suficiente
para o mercado reconhecer a dívida pública como solvente hoje. Os investidores
precisariam ter confiança de que, dado o comportamento futuro esperado das variáveis
influentes na relação dívida/PIB, ela é sustentável intertemporalmente. E a posição da
dívida é considerada sustentável caso o governo cumpra, no presente, a restrição
orçamentária necessária para evitar sua explosão (LOPREATO, 2004).
A geração de superávit primário tornou-se, assim, a estratégia decisiva que
influenciará o comportamento da relação dívida/PIB.12 Para levar a economia a produzir tal
resultado há que se ter, de um lado, uma forte ampliação da carga tributária; de outro, o
contingenciamento das despesas, especialmente dos investimentos e dos gastos sociais.

12
A magnitude projetada da relação superávit primário/PIB deverá ser equivalente (ou superior) à diferença entre a taxa
média de juros esperada incidente sobre a dívida pública e a taxa de crescimento real esperada do PIB, para que a dívida
não cresça (ou se reduza).

20
A Tabela III permite visualizar o forte ajuste fiscal a que foi submetido o orçamento público
no Brasil, com a geração de superávits primários crescentes até se chegar ao patamar de
4,6% do PIB em 2004.

TABELA III
SUPERÁVIT PRIMÁRIO
1998 - 2004
ANO %PIB
1998 0,0
1999 3,2
2000 3,5
2001 3,6
2002 3,9
2003 4,3
2004 4,6
Fonte: Ministério do Planejamento/Assessoria
Econômica/Área Fiscal

Construída desta forma, a política fiscal do governo não tem nenhuma


autonomia para se voltar para estratégias de desenvolvimento, geração de emprego e
redução da concentração da renda. Os gestores da política econômica têm que estar
permanentemente atentos às expectativas de risco dos agentes do mercado financeiro e à
realização do esforço fiscal que se fizer necessário para conquistar, permanentemente, a
confiança dos investidores (Carvalho, 2000).
As metas dos gestores da política econômica nacional nos anos 90 passaram a
ser a abertura comercial, liberalização financeira, realização de um amplo programa de
privatizações e, após 1999, a adoção de câmbio flutuante e de metas de inflação.
Pelo lado da política fiscal, foram feitas alterações na dimensão estrutural do
orçamento público. Pelo lado da receita pública, fez-se mudanças nas alíquotas de
impostos, no código tributário e na administração tributária. Pelo lado dos gastos,
modificações no sistema de proteção social foram feitas por razões fiscais, sob a
justificativa de assegurar sua viabilidade de longo prazo; também houve reforma no
sistema público de saúde, racionalização dos programas de bem estar social e outras
medidas que afetavam diretamente o ajuste fiscal e a tão desejada recuperação da
confiança do mercado. Reforma da Previdência Social, Reforma Tributária, Lei de
Responsabilidade Fiscal e definição de regras fixas e padronizadas de gestão fiscal, bem

21
como o estabelecimento de limites ao endividamento público através de resoluções do
Senado Federal foram tidos como elementos que produziam estabilidade no quadro fiscal.
Ressalte-se, portanto, que para se conquistar a credibilidade do mercado
financeiro é preciso tomar medidas que se tornam irreversíveis no futuro, através de leis e
emendas à Constituição. Como argumentou Carvalho, “a credibilidade se ganha quando
‘as mãos são atadas’ e o governo perde a capacidade de promover no futuro mudanças de
rotas. Não basta ser market-friendly: é preciso que isso se cristalize em regras que
garantam que este comportamento não possa ser revertido” (CARVALHO, 2000). Logo, a
ortodoxia da política econômica não foi um “remédio” amargo e transitório, para acalmar a
situação de instabilidade, ganhar a confiança dos mercados e depois ser amenizada. É um
sacrifício para ser definitivo, eterno. E, assim, a seguridade social também foi atingida por
esse senso de “responsabilidade fiscal” que exige mudanças estruturais e definitivas.
O efeito da política econômica foi de desmantelamento sobre o sistema público,
causando grande precariedade no atendimento das demandas sociais. O sistema de
seguridade social foi requisitado a contribuir para pagar a conta financeira (de juros e
amortização da dívida pública) que provocou desequilíbrio no orçamento fiscal, conforme
descrito nos itens anteriores. A receita da seguridade social mostrou um comportamento
favorável apesar de sua vulnerabilidade aos ciclos econômicos e se sustentou (e até
cresceu), em função de ter a sua base de incidência apoiada não apenas na folha de
pagamento dos empregados, mas também no lucro, no faturamento e na movimentação
financeira. Embora a despesa do sistema de seguridade social tenha se elevado, em
função do aumento dos gastos com benefícios, da piora das condições de saúde da
população atingida pelo empobrecimento em conseqüência agravamento do desemprego,
do achatamento dos salários e do aumento da informalidade do trabalho, os gestores da
política econômica encontraram meios de deslocar recursos vinculados à seguridade
social, para assegurar o falso (e inatingível) equilíbrio do orçamento público geral.
A Tabela IV a seguir mostra o crescimento dos gastos com juros e encargos da
dívida que, adicionados aos de amortização da dívida, chegam a aproximadamente 10%
do PIB ao longo do período 1995 – 2003. Também é possível perceber que o governo
passou a gerir um passivo cada vez mais alto com o refinanciamento da dívida mobiliária,
que em 2004 alcançou 20,2% do PIB. A gestão da dívida pública tem se voltado para a

22
valorização do capital privado a taxas de remuneração excepcionalmente altas. Os gastos
com benefícios previdenciários também cresceram acentuadamente no mesmo período.
Em 1994 gastava-se 4,9% do PIB com benefícios previdenciários, contra 7% do PIB em
2004. O gasto público esteve, portanto, polarizado entre essas duas áreas, o que revela a
disputa de classe pelos recursos públicos com clara desvantagem para os que vivem de
benefícios previdenciários.

A tabela V a seguir mostra a evolução da taxa de juros real selic que é utilizada
como remuneração básica para os títulos públicos. Entre os anos de 1998 e 2003, os juros
sofrem flutuações, mas mantêm-se num patamar bastante elevado, de 13,4% em média,
no período, um nível muito mais alto que as taxas de juros praticadas no resto do mundo.

23
TABELA V
TAXA DE JUROS REAL (SELIC)*
EX-POST
% acumulado 12 meses
ANO %
1998 26,7
1999 15,3
2000 10,8
2001 8,9
2002 5,9
2003 12,8

Fonte:Bacen
(*) Deflator: IPCA

Os dados das Contas Nacionais do período 1993 - 2003 demonstram que há


uma disputa de classes desigual pela apropriação da renda gerada na economia em
função da política econômica de juros estratosféricos. A participação do salário nominal no
PIB decresce a cada ano do período, caindo 31%, enquanto cresce a participação do
excedente operacional bruto, que pode ser tomado como uma variável proxy do lucro (ver
Tabela VI, a seguir).13 O crescimento do excedente operacional bruto, entre 1993 e 2003,
foi de 21%. A proporção dos impostos sobre a produção e importação no PIB também
aumenta a cada ano14, o que demonstra que a queda do salário é reflexo da transferência
de parcela da remuneração dos assalariados via impostos, para os proprietários de títulos
da dívida pública – que, na sua grande maioria, também são proprietários de ativos de
capital –, através das operações financeiras realizadas pelo governo.

13
Conforme o Sistema de Contas Nacionais do Brasil, o Excedente Operacional Bruto dá conta do montante total de
lucros, aluguéis (inclusive renda da terra) e juros pagos na economia nacional. Ou ainda, é o valor adicionado deduzido
dos salários, das contribuições sociais efetivas e dos impostos, líquidos de subsídios, sobre a produção.
14
O agrupamento dos impostos incidentes sobre a produção e importação levantados pelo IBGE através do Sistema de
Contas Nacionais são aqueles que incidem diretamente sobre os produtos alterando seus preços, ou seja, são os impostos
indiretos, tais como IPI, ICMS, Imp. Sobre Importações, IOF, ISS e outros impostos ligados a produção, como os que
incidem sobre a folha de pagamentos (Contribuição ao Salário Educação, Contribuição para o SESI, SESC, SENAI,
SENAC) e outros como a COFINS, PIS/PASEP, taxa de poder de polícia, taxa de prestação de serviços. Não estão
incluídos nesse rol de tributos a CPMF, CSLL, a Contribuição ao INSS que poderiam perfeitamente ser computados
como impostos indiretos, porque são repassados aos preços como se fossem custos de produção. Assim, o percentual de
participação no PIB dos impostos indiretos mostra um valor subestimado em relação à realidade do sistema tributário
nacional, em que parte dos impostos que recaem sobre a renda não funcionam como se fossem impostos diretos no
sentido comum que se dá ao termo.

24
TABELA VI
PARTICIPAÇÃO DO SALÁRIO, DO EXCEDENTE OPERACIONAL BRUTO E DOS IMPOSTOS INDIRETOS
NO VALOR ADICIONADO
(R$1.000.000)
EXCEDENTE
IMPOSTOS S/
SALÁRIO OPERACIONAL PIB
ANO %PIB %PIB PRODUÇÃO E %PIB
NOMINAL* BRUTO NOMINAL
IMPORTAÇÃO
NOMINAL
1993 5.061.778 35,91 4.987.209 35,38 1.858.041 13,18 14.097.114
1994 111.680.765 31,98 134.078.983 38,40 55.108.652 15,78 349.204.679
1995 191.410 29,62 260.245 40,27 100.540 15,56 646.192
1996 224.239 28,79 319.137 40,97 115.236 14,79 778.887
1997 241.949 27,79 372.396 42,77 123.572 14,19 870.743
1998 257.225 28,14 380.016 41,57 127.800 13,98 914.188
1999 267.065 27,42 394.598 40,52 152.388 15,65 973.846
2000 295.229 26,81 447.492 40,63 178.075 16,17 1.101.255
2001 316.580 26,41 490.327 40,90 203.873 17,01 1.198.736
2002 351.676 26,13 564.323 41,93 233.630 17,36 1.346.028
2003 399.882 25,70 668.926 42,99 263.350 16,92 1.556.182
Fonte: IBGE, Contas Nacionais, Diretoria de Pesquisa
(*) Sem Contribuições Sociais Efetivas e Imputadas

A tabela VII, abaixo, mostra a relação entre o baixo crescimento do PIB


provocado pela política econômica restritiva, o crescimento da taxa média de desemprego
aberto e o rendimento médio real dos assalariados. Em 1998, o crescimento do PIB foi
muito baixo (0,1%), a taxa media de desemprego foi de 7,3 e o rendimento médio real dos
assalariados era de R$1.145,00. Em 2004, a taxa de desemprego sobe para 11,7 e o
rendimento médio real dos assalariados cai para R$ 936. O emprego formal diminui. Em
1998, 45,9% das pessoas empregadas tinham carteira assinada. Em 2004, esse
percentual cai para 43,8%.

25
TABELA VII
PIB, Desemprego e Rendimento Médio Real
1998 - 2004
PIB - Variação Taxa Média de Rendimento Médio Real % pessoas, de 10 anos ou mais,
ANOS Percentual Desemprego Aberto - dos Assalariados (R$ de empregadas c/ carteira assinada/total de
(2) (4) (5)
Real Anual Janeiro - Sazonalmente janeiro de 2005) pessoas ocupadas (média do ano)
1998 0,1 7,3 1.145 45,9
1999 0,8 7,7 1.115 44,6
2000 4,4 7,6 1.066 44,4
2001 1,3 5,7 1.050 45,1
2002 1,9 6,8 1.024 45,5
2003 0,5 11,2 926 44,3
2004 4,9 11,7 936 43,8
Fontes:IBGE - Contas Nacionais; IBGE - Pesquisa Mensal de Emprego - Regiões Metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto
Alegre; DIEESE - Inflator: IPCA/BH/IPEAD; INPC-DF/IBGE; IPC-IEPE/RS; INPC-RMR/IBGE/PE; IPC-SEI/BA; ECV_DIEESE/SP; IBGE - Pesquisa Mensal de
Emprego.

Assim, a política econômica, de um lado, sobrecarregou o sistema de


seguridade social com a precarização das condições de vida da classe trabalhadora e, de
outro lado, usou o sistema como fonte geradora de receita para produzir o ajuste fiscal e a
transferência de renda em favor de proprietários de títulos públicos.

26
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Banco Central. Boletim do Banco Central do Brasil, Relatório Anual, 2004.

CARVALHO, Fernando J. Cardim (2000). The Changing Role and Strategies of the
IMF and the Perspectives for the Emerging Countries. Brazilian Journal of Political
Economy, vol. 20, nº 1 (77), January-March.

Constituição Federal de 1988.

Governo Federal (2003). “Carta de Brasília” .

Governo Federal (2005). Nota Técnica: “Impactos Fiscais do Salário Mínimo”, setembro.

LOPREATO, Francisco Luiz C. (2004) Novos Tempos – Política Fiscal e


Condicionalidades pós-80. Rio de Janeiro, Revista de Economia Contemporânea,
8(1): 125-154, jan./jun, p. 125 - 154.

MELIN e SERRANO (2005). Mitos e Vodu da Política Fiscal. www.dezempregozero.org.br


Ministério da Previdência Social (2003). “Diagnóstico da Previdência Social”, 2003.
_________________________. Boletim Estatístico (vários anos).

TEIXEIRA, Aloísio (1990). “Do Seguro à Seguridade: a metamorfose inconclusa do


sistema previdenciário brasileiro”. Rio de Janeiro, IE/UFRJ, Texto para Discussão nº
249, dezembro.

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