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Angola (ANG).
É preciso enamorar-se pela Capoeira Angola. É preciso sentir. É preciso
aprender a lidar com o mundo de uma outra maneira que não aquela que
nos circunda habitualmente. É preciso re-ver o mundo de ponta cabeça.
Precisa-se desconstruir o corpo que se tem e o corpo das representações
que carregamos. É preciso re-ver a cultura que lhe tece a pele; necessário
mergulhar naquilo que lhe é mais seu e despojar-se disso como uma
serpente que troca de pele ou como a ave que troca de penas. Doravante
viver sem pele ou plumas. Ou melhor, viver com muitas.
(OLIVEIRA, 2007, p. 178).
RESUMO
Keywords: Visual arts. Capoeira Angola. Mandinga. Circular Thinking. Mythical Images.
LISTA DE FIGURAS
abr. – Abril
ACBEU – Associação Cultural Brasil – Estados Unidos
ago. – Agosto
ANG – Angola
ANPAP – Associação Nacional de Pesquisadores em Artes plásticas
BA – Bahia
BRA – Brasil
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CECA – Centro Esportivo de Capoeira Angola
CHN - China
CLA – Centro de Letras e Artes
cm – centímetros
CU - Cuba
dec. – December
DEFER – Departamento de Educação Física, Esportes e Recreação
dez. – Dezembro
DF – Distrito Federal
Dr. – Doutor
Drª – Doutora
ed. – Edição
EdUERJ – Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
EDUSP – Editora da Universidade de São Paulo
ESP – Espanha
EUA – Estados Unidos da América
fev. - Fevereiro
FR – França
GCAP – Grupo de Capoeira Angola Pelourinho
ISPH – Instituto Superior Politécnico da Huíla
jan. – Janeiro
jul. – Julho
jun. – Junho
Kg – Quilogramas
MA – Maranhão
mar. – Março
MG – Minas Gerais
n. – Número
NANO – Núcleo de Arte e Novos Organismos
nov. – Novembro
out. – Outubro
p. – Página
PDSE – Programa de Doutorado – Sanduíche no Exterior
PE – Pernambuco
POR – Portugal
PPGAV – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
PR – Paraná
Prof. – Professor
Profª. – Professora
RJ – Rio de Janeiro
RS – Rio Grande do Sul
SC – Santa Catarina
SE – Sergipe
SEPROMI – Secretaria de Promoção de Igualdade Racial
set. – Setembro
SP – São Paulo
Sr. – Senhor
Sra. – Senhora
UCLA – University of Califórnia, Los Angeles
UFF – Universidade Federal Fluminense
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UK – United Kingdom
UMN – Universidade Mandume ya Ndemufayo
UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
USA – United States of America
v. – volume
SUMÁRIO
2
Gunga: berimbau de som grave, na roda de Capoeira Angola que dá início e fim aoss jogos; ele é o principal
regente do ritmo; o berimbau mestre que, na tradição da roda, é tocado pelo Mestre de Capoeira.
3
Jogue seu jogo: expressão utilizada na Capoeira Angola para dizer ao angoleiro que use suas habilidades no
jogo, desenvolva um bom jogo para sentir a Capoeira Angola.
4
Em Aracajú / Sergipe (SE), a Capoeira já era uma adaptação da capoeira-de-rua derivada da Capoeira Angola.
5
Mestre Queixada: grande capoeirista que não participou de nenhum grupo fixo, mas foi contemporâneo do
Mestre Boca Rica, Mestre Bola Sete e outros Mestres da Bahia (BA). Ele aprendeu Capoeira nos modos mais
antigos, nas ruas e no seu dia-a-dia com os mestres angoleiros da década de 70.
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Batismo: ritual que contempla as práticas de Capoeira, nos modos mais tradicionais, no qual o capoeirista
iniciado, após uma rasteira, recebe um codinome que passa a representá-lo na comunidade e perante os outros
praticantes de Capoeira.
7
Apesar deste batismo, mesmo sem saber o porquê, o autor desta Pesquisa nunca utilizou este codinome apesar
de que crucifixo é também um símbolo que representa uma encruzilhada.
19
8
“Vicente Ferreira Pastinha vivenciou uma filosofia desde a Capoeira Angola, foi criativo e inventivo desde a
dança da ginga, criou um estilo de jogo informado pela tradição africana, experimentou um ritmo de vida ditado
pelo Gunga. Assim, a Angola fez dele um ‘instrumento’ da tradição e ele fez da Capoeira Angola uma
atualização da cosmovisão africana em território brasileiro” (OLIVEIRA, 2007, p. 192).
9
“Mestre Moraes é tido como a grande referência de Capoeira Angola na atualidade. Ele é o presidente-fundador
do GCAP, que hoje tem quatro núcleos: Bahia (sede), Ceará, São Paulo e Japão. Ele descende da linhagem
tradicional da Capoeira Angola no Brasil, que tem em Mestre Pastinha e seus contramestres João Grande e João
Pequeno os principais ícones” (OLIVEIRA, 2007, p. 178).
20
10
Estados Unidos da América (EUA).
21
Capoeira Angola. A mandinga, além de tratar-se do elemento que define a forma e a função
dessa prática, ela, também, gera a percepção e a sensação na produção e transmissão das
imagens míticas, que a consolidam como uma expressão de origem das culturas de matrizes
africanas no BRA. Com essa abordagem, se busca também realizar um exercício de
desconstrução do modo pejorativo, preconceituoso e excludente, que foi tomado o uso do
termo mandinga como sinônimo de feitiçaria. Para assim, re-contextualizá-lo em sua
significação de “Magia: existência no espaço-tempo do eterno retorno” (FLUSSER, 2011c,
p.11 18, grifo do autor). A mandinga como objeto de estudo, nesta investigação, nasceu a
partir do embate do sujeito (artista-capoeirista) com o objeto (Capoeira Angola). A partir
deste esbarrar, ele foi gerado passando a ser o terceiro elemento dinamizador de todo o
processo de produção e significação desta Pesquisa.
O construto desta Pesquisa foi orientado pelo tema: Capoeira Angola no locus da
Arte. Um assunto de discussão e reflexão, o qual se apresentou como uma proposição de
investigação em processos criativos nas Artes Visuais. A partir da configuração desse tema, se
constituiu a sua problematização, que está relacionada à origem das imagens míticas da
Capoeira Angola e a relação entre o seu sistema de pensamento e o sistema de pensamento
exercido no processo criativo de produção e apresentação de trabalhos artísticos em Poéticas
Visuais. Ao aproximar-se, em um embate com tais relações, elas se transformaram em
questões que se tornaram fundamentais e nortearam todo o processo de desenvolvimento da
reflexão teórica e da construção das experimentações práticas. As mesmas foram formuladas
com 3 perguntas, 3 proposições que se pronunciaram assim: A Capoeira Angola pode ser
contextualizada como objeto-artístico nas Artes Visuais? A sua estética é a mandinga? O
pensamento circular que rege sua mandinga também se faz presente no processo de criação e
produção do artista? Tais questões se pautaram no contexto de interação e pertencimento entre
as culturas de matrizes Africanas-Bantu-Kongo no BRA e em Angola (ANG) e sobre a
interação entre a dinâmica da Capoeira Angola e a dinâmica do processo criativo na Arte
Contemporânea. Para tanto, se fez necessário um percurso sobre a origem e produção das
imagens míticas da Capoeira Angola, lançando-se em investigação poética-visual na busca do
entendimento sobre o que é o pensamento circular expresso pelas culturas de tradição oral-
corporal de matrizes africanas no BRA.
Assentando-se sobre uma perspectiva fenomenológica de interpretação, cuja
compreensão vem sendo constituída no desenvolvimento da própria Pesquisa teórica e prática,
11
Página (p.).
23
busca-se problematizar tanto a sua construção estética quanto a sua dimensão de arte, na forma
plástica-visual e enquanto conteúdo mítico e poético na sua função transformadora da
percepção do sujeito, inserindo-a como movimento de arte pronunciada através da cultura de
cosmovisão africana no BRA. Esta investigação desponta, aqui, como reflexão do processo
criativo que se possui como elemento significativo para a discussão da potência inversora da
Capoeira Angola. Sendo assim, se propôs trazer para a dimensão das Artes Visuais e dos
estudos culturais as seguintes reflexões:
• existem elementos artísticos na prática da Capoeira Angola que produzem a
percepção totalizante (aisthésis) da estética nos sujeitos envolvidos?
• estes elementos constituem-se como um conjunto que transmitem a Arte e o
conhecimento através do corpo e da oralidade?
• a Capoeira Angola pode ser ressignificada como uma performance do corpo, em
seus desdobramentos estéticos, e ser inserida na Arte contemporânea como produtora de
conhecimento e de saberes no contexto social e cultural?
• ela produz nos sujeitos envolvidos uma mudança do paradigma da lógica cartesiana
objetiva e contribui para transformar o pensar e o agir linear em um pensar e um agir da ordem,
circular reversa do pensamento mítico? e
• a Capoeira Angola no locus de Arte pode ser um agente transformador do processo
excludente e hegemônico das culturas de matriz africana no BRA?
Descreve-se, nos capítulos que seguirão, com palavras ordenadas linearmente através
de uma ordem de pensamento lógico, os resultados dos processos de investigação em poéticas
visuais. Os mesmos se constituíram em contextos de concepção e construção, geridos por uma
ordem de lógica reversa de pensamento circular. Tais resultados processuais contemplam a
vivência na prática da Capoeira Angola em sua unidade/complexidade de jogo-de-corpo
mandinga em metáforas de desconstrução e reconstrução do pensar e agir. A metodologia
utilizada para atingir esses resultados foi procedida com ações práticas de embate com materiais
(objetos do cotidiano da cidade) e imagens realizadas com o jogo de Capoeira Angola, que
consistiram em: impressões, fazer esculturas, capturas de imagens, performances e edição de
imagens, produzindo-as em um contexto relacional de cruzamentos, relacionando-as com
ideias, conceitos e teorias com procedimentos metódicos, complementares, entre teoria e
prática em refluxos constantes. Nesse intento, fez-se necessário percorrer um caminho de
encruzilhadas, conflitos de encontros-desencontros, erros-acertos orientados pela ambiência
interdisciplinar da Arte, Filosofia e outros campos do conhecimento. Estas conexões são fruto
24
2010, 2011a, 2011b, 2011c), coincidiu com o exercício da dúvida exercitado na filosofia do
corpo-ancestralidade-oralidade da dinâmica da Capoeira Angola – tal conceito tornou-se
fundamental. Além da contribuição das ideias desses filósofos e teóricos citados aqui, outros
contribuíram e se apresentaram no decorrer destes textos. Pois todos foram importantes nas
discussões que se encerram nessa roda de palavras e trocas de ideias na construção da Tese
que se apresentou como: A mandinga é a estética da Arte da Capoeira Angola que se expressa
através do pensamento circular de lógica reversa.
O capítulo 1 desenrola uma reflexão sobre a encruzilhada, como o lugar de encontros
e conflitos que constitui o corpo da Capoeira Angola e como o lugar de assimilações e
adaptações entre as culturas afro-ameríndias no BRA. A encruzilhada é enfocada também
como passagem entre essas culturas e a sua representação simbólica como lugar de passagem
entre 2 mundos (visível e invisível). Através de vídeo-performances e impressões de
monotipias, utiliza-se uma tampa de esgoto na encruzilhada como metáfora de passagem entre
2 mundos. A partir de um desenho do Cosmograma Bakongo na tampa ocorre um jogo de
Capoeira Angola em que o segundo sujeito é invisível. Esse jogo é simbólico, um recorte
artístico que representa o corpo da Capoeira Angola, com sua asthesis, como conexão e
passagem entre o céu e a terra (2 mundos). Os elementos simbólicos que constituem este
Trabalho se inserem em uma discussão sobre à Arte da Capoeira Angola ser um fenômeno
que se constitui e já nasce na encruzilhada e que também suas estratégias dinâmicas
funcionam em um modo de lógica reversa. Nesse sentido, denota-se à encruzilhada como
símbolo do Cosmograma Bakongo (Bakongo), presente no corpo da Capoeira Angola.
Discorre-se também sobre as conexões entre os mitos da luta da Capoeira Angola e os mitos
das lutas e danças angolanas na região do Mucope – Província do Cunene (pesquisa de campo
em ANG, África). Surge a hipótese da quebra de um dos paradigmas entre os mitos da origem
da luta da Capoeira Angola e as lutas e danças angolanas.
O capítulo 2 desenvolve uma reflexão sobre os elementos plásticos, visuais e sonoros
da estética da Capoeira Angola e suas relações com os elementos simbólicos do Cosmograma
Bakongo. Neste momento, se discute à integração entre ambos a partir de 2 princípios
filosóficos pertencentes às culturas de matriz africana no BRA: princípio da ancestralidade e
princípio de tempo espiralar. Neste sentido, se reflete sobre a construção e apresentação dos
trabalhos artísticos realizados através das linguagens de vídeos, performances, escultura e
instalação, que são: Jogo para Kalûnga e Mono-lixo: entre o Céu e a Terra (escultura e
instalação). A constituição destes trabalhos discute as relações de proximidade no exercício
do pensamento circular no processo criativo de esculturas e na Arte da Capoeira Angola.
26
12
Refere-se aos trabalhos de vídeo-instalação produzidos no processo desta Pesquisa.
13
centímetros (cm).
27
(aisthesis) na Capoeira Angola movida pelas afecções e percepções dos sentidos, para só
assim chegar a conclusão destes estudos.
1.1 Encruzilhada
14
“A humanidade começou há mais ou menos três milhões de anos com a conservação – geração após
geração – de um modo de viver em conversações que envolviam a colaboração dos sexos na vida
cotidiana, por meio do compartilhamento de alimentos, da ternura e da sensualidade. Tudo isso ocorreu
sem reflexões, como aspectos naturais desse modo de vida. Nossa biologia atual é o presente dessa
história” (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2011, p. 18).
15
Ubuntu: é uma filosofia africana, presente na cultura de alguns grupos que habitam a África Subssariana,
cujo significado se refere a humanidade com os outros. Trata-se de um conceito amplo sobre a essência do
ser humano e a forma como se inclui em sociedade. É uma expressão que significa eu só existo porque
você, o outro, existe.
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16
Mandinga: “Feitiço, despacho, mau-olhado, ebó. Os negros mandingas eram tidos como feiticeiros
incorrigíveis. Os mandingas ou malinkes, dos vales do Senegal e do Níger, foram guerreiros
conquistadores tornados mulçumanos” (CASCUDO, 1969b, 544, grifo nosso).
“Este povo, a que os negros chamavam mandinga, os espanhóis mandimença e amsmol, maniinga (do
radical mani ou mali, o hipopótamo, visto que eram povos totêmicos, e a terminação nke, povo), tinha
uma índole guerreira e cruel. Não obstante à influência maometana, eram considerados grandes mágicos e
feiticeiros, e daí o termo mandinga no sentido de mágica, coisa-feita, despacho, que os negros divulgaram
no Brasil” (RAMOS, 1946 apud CASCUDO, 1969b, p. 544, grifos do autor).
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Estética: “Falar de estética no jogo de Capoeira Angola é trazer à baila uma discusso sobre o que é belo e
o que é feio. Etimologicamente, a palavra estética vem do grego aesthesis que, dentre outros significados,
quer dizer também ‘percepção totalizante’, daí o erro daqueles que querem ver a beleza analisando só o
exterior do objeto sabendo-se que a beleza é subjetiva” (MORAES, 2009, grifo nosso).
“Estética (do grego αισθητική ou: percepção, sensação, sensibilidade) é um ramo da filosofia que tem por
objetivo o estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. Ela estuda o julgamento e a percepção do
que é considerado belo, a produção das emoções pelos fenômenos estéticos, bem como: as diferentes
formas de arte e da técnica artística; a ideia de obra de arte e de criação; a relação entre matérias e formas
nas artes. Por outro lado, a estética também pode ocupar-se do sublime, ou da privação da beleza, ou seja,
o que pode ser considerado feio, ou até mesmo ridículo” (ABBAGNANO, 1966 apud ESTÉTICA, [20--
?], grifos do autor).
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18
Também dita ritmo, é a ordem ou organização dos instrumentos na roda de Capoeira Angola, cuja música
dá início aos jogos.
30
Propõe-se uma reflexão a partir do ponto de vista de quem escreve. Está-se a escrever e,
durante essa escrita, em dado momento, pára-se e reflete-se: é nesse momento que questiona-se
se o que se escreve está coerente com seus objetivos e se fazem sentido lógico, de acordo com
os pensamentos que se quer transmitir ao outro. Nesse movimento de reflexão, observa-se a
ordem das palavras, os acentos, a pontuação e o sentido das frases. O gesto de escrever orienta
e alinha os pensamentos nos trilhos corretos, e, assim, pode-se dizer, de acordo com Flusser
(2010), que a escrita ensinou a pensar corretamente, porque com seus sinais gráficos
(alfabeto), alinhados em sequência de linhas, ela produz a ordem dos pensamentos sobre os
quais se reflete. E, Flusser (2010), então, elucida: a partir da escrita, o pensamento do homem
ocidental passou por uma transição: de pensamento circular (mítico) transformou-se em
pensamento alinhado linearmente (linear).
Diante desse movimento do pensar, pode-se aproximar das questões que, para Flusser
(2010) indicam uma gênese do pensamento circular. Os pensamentos se movimentavam de
forma circular, solta e desordenada, à qual se refere como o pensamento mítico. E acrescenta:
os sinais gráficos foram originados do pensamento mítico. Deduz-se, assim, que em nossos
antepassados e em outras culturas (não ocidentais) os pensamentos se movimentavam de
forma circular e eram transmitidos através de sinais (provavelmente, por meio de desenhos e
sons). E com a escrita, os sinais usados, anteriormente, na forma de pensar circular foram
transformados e assimilados pelo pensamento linear. De acordo com Flusser (2010, p. 46), “O
alfabeto foi inventado para substituir o falar mítico pelo falar lógico e, com isso, substituir o
pensar mítico pelo lógico”. Cabe, portanto, entender que o falar ocidental transformou-se em
falar lógico devido ao fato de os pensamentos terem sido organizados em ordem linear através
da escrita. Entende-se também que, com essa transformação, o pensamento lógico substituiu
o pensamento mítico. Neste sentido, Flusser (2010, p. 22) direciona o movimento do seu
pensamento quando afirma: “Somente quando se escrevem linhas é que se pode pensar
logicamente, calcular, criticar, produzir conhecimento científico, filosofar – e, de maneira
análoga, agir.”
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Segundo Flusser (2010), foi a partir da escrita que o homem ocidental passou a pensar,
falar e também a produzir conhecimento. Ou seja, a cosmovisão ocidental é movida pelo
pensamento lógico. Mas, como se desenvolveu o movimento do pensamento, para a produção
do conhecimento que constitui a cosmovisão africana? Como ocorreu o movimento dessa
filosofia nas culturas de cosmovisão africana no BRA? É sobre essa forma de pensamento que
esta Pequisa se deterá nas linhas que seguem sendo guiada como música, na direção de
respostas a essas perguntas.
O jogo dos movimentos do pensar, nessa roda de trocas de ideias com Flusser (2010),
ainda não acabou. E, na sequência, vai acontecer em forma de compra20, na qual cada
participante contribui, com seus pensamentos, de forma alternada. De acordo com a roda da
vida e a roda da Capoeira Angola, o jogo nunca acaba: ele é um fluxo de movimentos
contínuos, em que cada pensamento conduz a outro pensamento. E, envolvidos nesse fluxo,
dá-se a continuidade da roda de pensamentos em movimento.
Por propor essa roda de trocas de ideias e devido ao autor deste Pesquisa se situar no lugar
de iniciado na cultura de cosmovisão africana no BRA, como participante da manutenção
dessa tradição, assume-se o pertencimento dessa cultura. Sendo assim, assevera-se que a
produção do conhecimento na cosmovisão africana constituiu-se através da oralidade. Foi por
este meio, contrário ao da escrita, que se moveu o pensar na cosmovisão africana. De acordo
com Beniste (1997), esse movimento se deu através da religiosidade formada por um corpo de
elementos das tradições orais: a mitologia de seus deuses, a liturgia, os cânticos, a linguagem e
os provérbios. Beniste (1997, p. 19) evidencia essa asserção, orientando o movimento de seu
pensamento nessa direção, quando diz:
19
É o berimbau que, com seu som grave, rege a orquestra na roda de Capoeira Angola; normalmente, é
tocado pelos Mestres e tem também a função de chamar os capoeiristas para o início de um jogo.
20
Jogo que se processa na roda de Capoeira alternando parceiros.
32
“No caso dos elementos performativos destacamos o conjunto de técnicas aplicadas, simultaneamente,
21
com o cantar-dançar-batucar – expressão usada por Fu-Kiau para indicar o denominador comum das
performances africanas negras. Bunseki K. Kia Fu-Kiau filósofo do Congo, seus estudos têm sido de
fundamental importância no tocante ao conhecimento dos simbolismos das culturas bantos” (FU-KIAU,
([20--?] apud LIGIÉRO, 2011a, p. 130).
“Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e, sobretudo, acrescido do uso do canto como algo
simultâneo e, percebido como uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau ([20--?] apud
LIGIÉRO, 2011a, p. 131, grifo do autor) destaca um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo
característico das performances da diáspora Africana nas Américas – ‘não é possível existir performance
negra na África sem este poderoso trio’, e o mesmo é aplicável em relação às performances afro-
brasileiras” (FU-KIAU, [20--?] apud LIGIÉRO, 2011a, p. 131, grifo do autor.)
33
de motrizes culturais para refletir juntos sobre o pensamento circular em movimento no corpo
da Capoeira Angola. Logo, apresenta-se a descrição do trabalho artístico produzido a partir
das experimentações e inquietações artísticas, que se realizaram até o momento dessa
investigação dos processos criativos nas Artes visuais. Vale ressaltar que, os escritos que até
agora se alinharam para orientar os movimentos dos pensamentos partiram da produção deste
Trabalho e, agora, a ele se direcionam. É sobre ele, que orienta-se e discorre-se os pensamentos
do autor desta Pesquisa, ao longo destas breves linhas, na direção de atingir os objetivos que
foram propostos neste texto. Portanto, o autor desta Pesquisa vai ao pé do berimbau22, pedir
licença aos mestres23 e orixás, para entrar na roda de troca de ideias para desenvolver o jogo
dos movimentos dos seus pensamentos para transparecer o construto deste Trabalho.
22
Pé do Berimbau: Gesto pelo qual o capoeirista pede licença aos responsáveis pela roda para realizar um
novo jogo.
23
Responsáveis pela transmissão de conhecimento e orientação dos iniciados nesse processo de
aprendizagem.
24
Os trabalhos de vídeos aqui apresentados e, no decorrer destes escritos, estão disponíveis em
CAPOEIRA…, ([20--?]a).
25
Cosmograma Bakongo: sistema simbólico, que representa a cosmovisão Bantu-Kongo disposto de
elementos simbólicos de um todo coordenados entre si, e que funcionam como estruturas organizadas
para transmitir uma filosofia e visão de mundo.
26
Sistema dinâmico da Capoeira Angola: sistema simbólico que representa o pensamento-filosófico e visâo
de mundo da dinâmica da Capoeira Angola composto de elementos míticos-ancestrais coordenados entre
si, e que funcionam como estruturas organizadas para transmitir informações e produzir conhecimento
através de sua prática.
34
27
Todas as fotos que constam nesta performance são frames do vídeo, preparados pelo autor deste Trabalho, a
partir de uma programação automática da câmera (com um tripé) que enquadrava a performance (realização da
ação).
35
significativo, uma passagem que fundamenta o desenvolvimento desta investigação que trata
do processo de produção das imagens míticas e poéticas da arte da Capoeira Angola.
Andar, observar os lugares por onde se passa, e as formas dos objetos, coletar
determinados objetos e materiais nas ruas, espiando também, a interação das pessoas com
esses objetos e materiais, este exercício no ambiente (espaço e tempo) da cidade faz parte dos
procedimentos e operações que o autor desta Pesquisa pratica no processo de construção do
trabalho artístico; este exercício também faz parte de sua vivência como angoleiro28. Nas obras
a serem construídas, as ações de observar, andar e coletar nasceram de suas inquietações,
atentas ao ambiente em que transita e vive. Sendo assim, o autor desta Pesquisa segue os
ensinamentos da Capoeira Angola de acordo com as sábias palavras de Pastinha (1964, p.
27)29: “O capoeirista sabe se aproveitar de tudo que o ambiente lhe pode proporcionar.” O
Mestre Pastinha vivenciou o seu ambiente cotidiano manifestando-se como angoleiro nos seus
ensinamentos, na prática da Capoeira Angola, tendo-a como sua filosofia e forma de se mover
e existir no mundo, ou seja, o seu viver e fazer eram indissociáveis do ser capoeirista. “Atuou
como marinheiro, alfaiate, estudou música e esgrima” (PASTINHA…, 1998)30. Além dessas
atuações, foi “[…] pintor (de quadros e de paredes) e também escreveu sobre a Capoeira Angola
que tanto amava” (ARAÚJO, 2015, p. 267). É importante ressaltar que a roda de Capoeira
reproduz, metaforicamente, a roda da vida, ou seja, um micro no macro. A vivência do ser
capoeirista na roda de Capoeira reflete sua vivência na roda da vida. Ou seja, “[...] o
capoeirista deve ter a condição de fazer uma correlação entre o que ele viveu dentro do círculo
menor, a roda de Capoeira, e o que vai acontecer fora” (MORAES, 2009, p. 41). Entende-se,
aqui, que a roda de Capoeira é reverenciada como metáfora da vida real. De acordo com
Moraes (2009, p. 41), a roda de Capoeira representa, simbolicamente, através de sua forma
circular, “[...] o fato de você estar dentro de um círculo menor se preparando, aprendendo a
viver num círculo maior [...].”
28
Nominação que se dá, usualmente, no universo dos praticantes da Capoeira Angola.
29
“Vicente Ferreira Pastinha vivenciou uma filosofia desde a Capoeira Angola, foi criativo e inventivo desde
a dança da ginga, criou um estilo de jogo informado pela tradição africana, experimentou um ritmo de
vida ditado pelo Gunga. Assim, a Angola fez dele um ‘instrumento’ da tradição e ele fez da Capoeira
Angola uma atualização da cosmovisão africana em território brasileiro” (OLIVEIRA, 2007, p. 192).
30
Documento online não paginado.
36
31
Documento online não paginado.
37
Estas impressões foram realizadas como parte de um processo de criação artística, para
capturar as imagens das tampas. Os procedimentos operativos usados para gerar essas
imagens revelam uma dinâmica de pensamento circular. Este modelo de pensamento é
importante para esta Tese por expressar a relação da prática artística visual e a Capoeira
Angola, usando, para isso, ações criativas, pois, elas se pronunciaram, a partir de uma inversão
de lugares, na qual o suporte (sujeito) móvel, de forma reversa, lança-se na direção da matriz
(objeto) fixa. Neste momento, assinala-se, entre suporte e matriz, uma imagem da tampa em
negativo, um carimbo sobre o tecido. Esse encontro, entre ambos, ocasiona um movimento
em que o sujeito-suporte (o tecido) se volta para o objeto-matriz (a tampa). Nesse sentido, o
objeto-matriz, ao carimbar o sujeito-suporte, torna-se objeto-sujeito (uma imagem da tampa)
impresso no sujeito-suporte. Por sua vez, o sujeito-suporte (o tecido) se torna sujeito-objeto
por conter em si, através do carimbo, a imagem inversa da tampa. Diante disso, esta operação
caracteriza-se como uma indicação da presença, do exercício do pensamento circular no
38
1.5.1 Objeto32
32
“Objeto: algo contra o qual esbarramos” (FLUSSER, 2011c, p. 18, grifo do autor).
33
“Objeto cultural: objeto portador de informação impressa pelo homem” (FLUSSER, 2011c, p. 18, grifo
do autor).
34
“Realidade: tudo contra o que esbarramos no caminho à morte, portanto, aquilo que nos interessa”
(FLUSSER, 2011c, p. 19, grifo do autor).
35
“Mandala, no tantrismo, é um diagrama composto de círculos ou quadrados concêntricos, que representa a
imagem do mundo e serve de instrumento de meditação” (D’ASSUMPÇÃO, [20--?]).
39
36
“A história do simbolismo mostra que tudo pode assumir uma significação simbólica: objetos naturais
(pedras, plantas, animais, homens, vales e montanhas, lua e sol, vento, água e fogo) ou fabricados pelo
homem (casas, barcos ou carros) ou mesmo formas abstratas (os números, o triângulo, o quadrado, o
círculo). De fato, o cosmos é um símbolo em potencial” (JAFFÉ, c1964, p. 232).
40
O povo Bakongo da civilização Kongo38 assenta como base do seu sistema cultural e
religioso a concepção de um universo dual no qual coexistem 2 mundos, o mundo dos vivos e
o mundo dos mortos: um mundo visível e um mundo invisível. Esta ideia de 2 mundos que
coexistem está referenciada, também, com a relação de tempo e dualidade de oposição entre a
noite e o dia, meio dia e meia noite, nascente e poente do sol, pois na cosmovisão Bantu
compreende-se o mundo dividido em duas partes concebido em uma relação simétrica na qual
os mortos vivem em um mundo oposto ao dos vivos. “Os Bakongos acreditam e sustentam
como verdade que a vida do homem não tem fim, que ela se constitui num círculo. O sol, ao
37
Documento online não paginado.
38
“Pronunciar Kongo com um K ao invés de um C, africanistas distinguem a civilização Kongo e o povo de
Bakongo da entidade colonial chamada de Kongo Belga (hoje Zaire) e da atual República Popular do
Kongo - Brazzaville, ambos incluindo numerosos povos não-Kongo. A tradicional civilização Kongo
encerra hoje o Baixo - Zaire e territórios vizinhos da atual Cabinda, Kongo-Brazzaville, Gabão e do norte
de Angola. O povo Punu do Gabão, os Teke de Kongo-Brazzaville, os Suku e os Yaka do rio Kwango, na
área leste do Kongo no Zaire, e alguns dos grupos étnicos do norte de Angola, dividem conceitos culturais
e religiosos com os Bakongos e também sofreram, com eles, as penosas provações do tráfico de escravos
pelo Atlântico” (THOMPSON, 1984, p. 103, tradução nossa).
41
39
“Bakongo believe and hold it true that man’s life has no end, that it constitutes a cycle. The sun, in ets rising
and setting, is a sign of this cycle, and death is merely a transition in the process of change” (THOMPSON,
1984, p. 108).
40
“[...] signifies the equally compelling vision of the circular motion of human souls about the circumference of
its intersecting lines. The Kongo cross refers therefore to the everlasting continuity of all righteous men and
women” (THOMPSON, 1984, p. 108).
41
“A forkin the road (or even a forked branch) can alude to this crucially importante symbol of passage and
communication between worlds” (THOMPSON, 1984, p. 109).
42
“The “turn in the path,” i.e., the crossroads, remains na indelible concept in the Kongo-Atlantic world, as the
point of intersection between the ancestors and the living” (THOMPSON, 1984, p. 109).
42
elementos poéticos, para assim empreender tal ação performática. A mesma configurou-se
na realização do desenho do Cosmograma Bakongo na tampa de escoamento localizada na
encruzilhada, entre à Avenida Mem de Sá com a rua do Rezende. Sobre esta tampa, foi
realizado um jogo de Capoeira Angola. Com essa ação, o autor desta Pesquisa propôs trazer
para o espaço e tempo do cotidiano, na contemporaneidade, a reflexão e discussão sobre o
corpo da Capoeira Angola como um sujeito e objeto de conexão entre o ritual e a
performance, e também a sua re-significação como Arte Contemporânea. Nesse contexto, a
Capoeira Angola “[...] é assumida como um território produtor de conhecimento que
congrega os sentidos explorados na contemporaneidade. É um antigo jogo de corpo que já
adianta os desdobramentos do pensamento contemporâneo” (ARAÚJO, 2015, p. 254).
Além da circularidade ser um dos significados simbólicos mais importantes entre a
imagem do Cosmograma Bakongo e a imagem da tampa impressa, existe outro elemento
que é essencial nessa relação de conexão. Nesse sentido, refere-se à água como símbolo
de conexão entre 2 mundos: no caso da tampa de escoamento, a água faz a passagem por
ela, fluindo da superfície e escorrendo para o subsolo; no caso do Cosmograma Bakongo, a
água é o elemento simbólico que está entre os 2 mundos (Kalûnga): o mundo visível dos
vivos e o mundo invisível dos mortos. Portanto, as duas imagens, também, são símbolos
que conjugam o significado comum, de ser passagem entre 2 mundos, como diz
Bachelard (1988, p. 178): “[...] a água oferece mil testemunhos”. Neste sentido, através de
uma certa fenomenologia da oralidade, a água tornou-se testemunha e conexão entre 2
mundos. Sendo assim, aproximou-se esses 2 símbolos circulares através de suas relações
intrínsecas com o elemento água. A partir desta aproximação simbólica, integrous-se o
jogo da Capoeira Angola, no contexto de um ritual-performance, como o corpo em
movimento no espaço circular da tampa-cosmograma (desenho do cosmograma sobre a
tampa). Esse jogo teve como objetivo apresentar a dinâmica da mandinga, com o
significado de magia, do corpo da Capoeira Angola na encruzilhada de conexão entre os
2 mundos: entre o céu e a terra; entre o mundo visível e o mundo invisível.
Com o objetivo de constituir a integração simbólica entre estes movimentos,
realizou-se, em forma de ritual, a ação-performance Encruzilhada: A passagem. Devido o
autor desta Pesquisa situar-se nesse lugar de fala, artista-capoeirista, imerso neste contexto,
o mesmo aproximou os significados simbólicos e poéticos dessas imagens integrando-as ao
sistema simbólico da Capoeira Angola. Neste caso, a integração entre ambos se realizou,
pelo fato de a Capoeira Angola se constituir como uma expressão cultural de matriz
44
43
Ritmo: “Todo o trabalho, tudo é som, são ritmos. Cada passo que damos é ritmo. Todas as palavras que
dizemos são ritmos. Todos estamos neste ritmo neste momento tudo é ritmo. Nós não vamos calar a voz
de nossa cultura. Vamos mantê-la viva. Estou seguro que vai continuar viva. Não há movimento sem
vida: Depoimento de um membro da cultura Malinké na região do Mali próxima da Niger”
(RHYTHM…, 2012, tradução nossa).
44
Cosmograma Bakongo: “O espaço ritual mais simples é uma cruz grega [+] marcada no chão, como se
para um juramento. Uma linha representa a fronteira; a outra vale tanto para a trilha central que cruza a
fronteira quanto para o cemitério; e a linha vertical do poder da união ligando ‘o acima’ com ‘o abaixo’.
Esta relação, por sua vez, é polivalente, visto que se refere a Deus e o homem, a Deus e a morte, e à vida
e a morte. A pessoa faz o juramento de pé em cima da cruz, o que a situa entre a vida e a morte, e invoca
o julgamento de Deus e da morte a si mesmo” (THOMPSON, 1984, p. 108, tradução nossa).
45
de Capoeira Angola. Ou melhor, imagens que podem tornar evidente para o leitor a
ordenação ritualística dessa arte, luta e dança.
Do corpo como sua extensão, emerge um arco musical que, em sintonia singular,
reverbera um som gentil. Som que se expande e se assimila, sequencialmente, em trilogia, na
seguinte ordem: primeiro, o berimbau Gunga; logo após, entra o berimbau Médio; e, em
seguida, o berimbau Viola45. A partir desse momento, atabaque, pandeiros, agogô e reco-reco
vão se integrando no ritmo46, que culmina com a composição de uma orquestra47 regida pelos
3 berimbaus. Com todos os instrumentos embalados ao ritmo do toque de Angola, o berimbau
Gunga chama48 2 capoeiristas para dar início à roda, eles se postam em frente aos 3 berimbaus
(nos pés dos berimbaus). Nesse momento, ecoa um som visceral, um iêêêêê!!! que se
assemelha a um mantra, a um uivo animal, emitido pelo mestre no Gunga. Quando finda o iê,
começa o canto da ladainha, o qual é reverenciado com respeito e muita atenção, pois este
canto é também uma louvação da relação do homem com a natureza, em que se relatam histórias
sobre a vida e a morte dos mestres de Capoeira, seu cotidiano, seus antepassados e ancestrais.
Após o canto da ladainha, de forma sequencial, tem início a chula, como canto subsequente, em
que o mestre canta uma frase e esta é repetida em coro, como no exemplo:
45
“Gunga, Médio e Viola são os nomes dos três berimbaus que compõem a orquestra da Capoeira Angola. O
Gunga tem o som mais grave e comanda a roda. O Médio inverte o toque de Angola e marca o ritmo. O Viola,
por sua vez, faz as dobras e dá vitalidade e colorido ao toque” (OLIVEIRA, 2007, p. 182).
46
Ritmo: nas culturas de matrizes africanas, o ritmo é movimento e o movimento é vida.
47
Orquestra, ou ritmo: expressão usada na Capoeira Angola, como forma de referir-se à arrumação dos
instrumentos na composição da roda.
48
O Gunga chama: toque do berimbau mestre, que avisa aos capoeiristas o término do jogo, ou para se
referir à alguma situação do jogo, chamando-os aos pés dos berimbaus.
49
Canto corrido de Capoeira Angola de domínio público.
46
Os 2 protagonistas, neste momento, erguem suas mãos e fazem gestos; com os braços
abertos, eles louvam a roda (como o mundo, espelho do universo onde tudo acontece), a Terra,
os orixás e ao jogo. Encerra-se o canto da chula e entra o corrido, o terceiro canto, anunciando
para os jogadores o início do jogo dentro da roda. Antes deles se saudarem com apertos de mãos
fazem desenhos de símbolos (normalmente, fazem o símbolo da cruz), para invocar a proteção
dos ancestrais. Os 2 jogadores apertam as mãos, cordialmente, e, com o consentimento do
Mestre, dão início ao jogo de Capoeira Angola. Durante o jogo que se iniciou e todos os outros
que ocorrem no desenvolvimento da roda, os movimentos serão acompanhados pelo canto
corrido.
O canto corrido difere do canto da chula, na construção da primeira frase cantada pelo
mestre e depois repetida pelo coro na seguinte estrutura:
MESTRE – Ou por cima do mar, eu vim / Ou por cima do mar, eu vou voltar!
Ou por cima do mar, eu vim / Ou por cima do mar, eu chego láá!
CORO - Ou por cima do mar, eu vim / Ou por cima do mar, eu vou voltar!
MESTRE – Ou por cima do mar, eu vim / Ou por cima do mar, eu vou voltar!
Ou por cima do mar, vou pra Angoláá!
CORO - Ou por cima do mar, eu vim / Ou por cima do mar, eu vou voltar!
MESTRE – Ou por cima do mar, eu vim / Ou por cima do mar, eu chego láá!
Cada jogo tem seu tempo, que é definido pelo berimbau Gunga, é ele que dá o sinal
para o término de um jogo e início de outro. Nesse momento, também pode ocorrer a troca de
instrumentos, em que uma pessoa da roda reveza com quem está tocando.
O canto de um corrido pode durar o tempo de um jogo; neste caso, o jogo acaba
quando o berimbau chama, e aí se dá início a outro jogo e a outro corrido.
Com ginga, mandinga, meia-lua, aú, negativa, tesoura, cabeçada, corta-capim, rabo-
de-arraia, bananeira, rolê, chamada, desenvolve-se o corpo, nos movimentos do jogo de luta
da Capoeira Angola. É nesse jogo dos movimentos na roda que o corpo faz que vai e não vai,
entra miudinho e sai grande, desloca-se por vários pontos com movimentos de equilíbrio e
desequilíbrio, com elegância e malemolência, simulações e dissimulações; nesse jogo de luta,
50
Documento online não paginado. Canto corrido de Capoeira Angola de domínio público.
47
a dúvida se faz presente, a calma é conselheira e a atenção se faz guia. O berimbau chama
mais uma vez, acaba o jogo, os capoeiristas se cumprimentam e saem pelos lados direito e
esquerdo da roda, nas laterais do banco, onde estão posicionados os 8 tocadores da orquestra.
Entram mais 2 capoeiristas e dá-se início a outro jogo. Na roda, todos os participantes
realizam seus jogos, sucessivamente, até o momento que o Mestre encerra a roda com um grito
de ié.
Assim, ocorrem os ritos que constituem a roda de Capoeira Angola. O jogo de luta,
desenvolvido nessa roda, se instaura através de uma permuta contínua entre, tocar, cantar e
dançar. Essas 3 ações, em suas interações simultâneas, configuram a totalidade do ritual da
roda de Capoeira Angola, neste, pode-se apreciar como público e participar como iniciado, de
um momento de inscrição do corpo em movimento no tempo e no espaço.
O corpo embalado pelos toques e cantos constrói frases na encruzilhada da ginga, entre
o EU e o OUTRO, em um diálogo de pergunta e resposta em contínuos movimentos de
corpus. Onda vai, onda vem...
51
“No entanto, a colonizaçãqo da África, a transmigração de escravos para as Américas, o sitema escravocrata e a
divisão do continente africano em guetos europeus não conseguiram apagar no corpo / corpus africano e de
origem Africana os signos culturais, textuais e toda a complexa constituição simbólica, fundadores de sua
alteridade, de suas culturas, de sua diversidade étnica, linguística, de suas civilizações e história” (MARTINS,
1997, p. 25).
48
52
Documento online não paginado. Canto corrido de domínio público; cantado, frequentemente, nas rodas de
Capoeira Angola.
53
Nguzo significa força na língua Bantu.
49
Como já foi visto, em uma breve descrição deste símbolo, anteriormente, nesta
cosmovisão, o sistema dinâmico filosófico se apresenta como o símbolo do Cosmograma
Bakongo.
Neste sistema simbólico, o mundo é um círculo que gira sobre o eixo fixo de uma
cruz, de lados iguais, que é dividido em 4 partes por duas linhas: uma horizontal; e uma
vertical.
A linha horizontal simboliza a Kalûnga54, que significa Deus, o grande mar cósmico,
que sustenta o mundo separando-o e unindo-o em duas partes opostas que se completam: o
mundo visível e o mundo invisível (mundo físico e mundo espiritual; mundo dos vivos e
mundo dos mortos e ancestrais).
A linha vertical simboliza o corpo humano (homem e mulher) que, ao cruzar a fronteira
da Kalûnga, adquire conhecimento em suas passagens entre os 2 mundos e torna-se consciente
da unidade entre os mundos físico e espiritual.
Nas extremidades da cruz estão posicionados 4 círculos menores que simbolizam o sol
em seus movimentos cíclicos entre o dia e a noite (2 mundos).
Esta representação do sistema simbólico da cultura Bantu no Cosmograma Bakongo
reproduz, de forma mágica e simbólica, o movimento de rotação da terra, que gira sobre o seu
eixo em sentido anti-horário. Só se observa este movimento se posicionando fora do globo
terrestre. Neste lugar, pode-se ver o movimento do sol em sentido oposto ao dos ponteiros do
relógio. Esta informação indica que a terra gira em sentido anti-horário do Oeste em direção
para o Leste ocidental.
Diante disso, apresenta-se a imagem deste símbolo através de uma reprodução gráfica
mais atual.
Desse modo, se pode entender e perceber com mais apuração de detalhes, a filosofia
ancestral que se assenta na imagem desse sistema simbólico, através da cosmo-percepção que
rege a cultura Bantu (FIGURA 3):
54
“A KALÛNGA pode significar o mar, o deus, a perfeição, energia viva mais elevada. Significa estar
inteiro, por complete” (REDE…, 2016).
50
55
Documento online não paginado.
56
Documento online não paginado.
51
57
Os 4 movimentos do Sol significam a passagem do processo vital do ser humano por 4 estágios subsequentes e
circulares: no primeiro estágio, MUSSONI - o ser humano toma forma, é gerado, formado como uma semente,
estágio simbolizado pela noite quando o sol está posicionado do outro lado da terra; no segundo estágio,
KALA - o ser humano nasce, estágio simbolizado pelo sol posicionado no nascente; no terceiro estágio,
TUKULA - o ser humano está na fase adulta, estágio simbolizado pelo sol posicionado no meio-dia; no quarto
estágio, LUVEMBA - o ser humano situa-se na fase madura e representa a passagem para a morte e
transformação, estágio simbolizado pelo sol no poente.
52
carregada deste mundo, a alma passa para uma outra existência” (REDE…, 2016)58. Na
cosmo-percepção, Bantu-Bakongo, o ser humano é matéria e energia em transformações
contínuas nas voltas que o mundo dá59, e ele existe pelo movimento, um movimento que
possibilita as trocas de saberes e mudanças das coisas (ideias) de lugar. Nesta cultura, como
em outras culturas de matrizes africanas, o ritmo é movimento e o movimento é vida. Na
dinâmica da Capoeira Angola, os movimentos são regidos pelo ritmo. Esta conjunção, entre
movimento e ritmo, constitui o seu corpo poético-visual- sonoro. Um corpo de luta que se
desdobra em um jogo de movimentos e expressão artística, através do dançar, cantar e
batucar (tocar). No jogo desse corpo, o ritmo é a pulsação da vida, e o movimento é ritmo.
No ritmo do jogo Arte-luta da Capoeira Angola é imprescindível para o angoleiro
saber gingar, pois, a ginga é sua alma e corpo. A ginga60 nasce pela necessidade do ser
capoeirista produzir movimentos em situações entre o equilíbrio e o desequilíbrio, sem
perder o ritmo dos seus passos. O autor desta Pesquisa situa-se, nesse momento, como o
sujeito capoeirista que desenvolve seu jogo no ritmo da ginga. Apoiado com os 2 pés
paralelos e distantes um do outro. Envolvido pelo som da musicalidade da Capoeira
Angola, começa a balançar o corpo, com as pernas arqueadas dando o primeiro passo para
trás lançando um dos seus pés (esquerdo ou direito) na direção das costas, o seu pé apoia o
corpo em posição de equilíbrio, logo após, retorna com um passo à frente (neste
movimento, o corpo do autor deste Trabalho encontra-se em desequilíbrio e busca
equilíbrio) pondo o pé no ponto de deslocamento paralelo ao outro pé. Em seguida, dá
outro passo atrás que repete os mesmos movimentos realizados pelo seu lado oposto.
Sobre a repetição constante desses passos apoiando-se em um terceiro ponto em que
se revezam, mutuamente, em movimentos de convergências e divergências. O corpo da
ginga, em movimentos, produz desenhos simbólicos no espaço plano do solo. Os pés
interagem como dois pontos que se integram e geram um terceiro ponto na ginga – a partir
desse momento, tudo se transforma em dinâmica na Capoeira Angola. Com o objetivo de
identificar as imagens produzidas pelo corpo em seus movimentos realizou-se alguns
58
Documento online não paginado.
59
Termo usado na prática da Capoeira Angola: este termo refere-se ao vai-e-vem circular da roda e do jogo
de Capoeira Angola.
60
“A palavra Ginga, em Capoeira, significa uma perfeita coordenação de movimentos do corpo que o capoeirista
executa com o objetivo de distrair à atenção do adversário para torná-lo vulnerável à aplicação de seus golpes.
Os movimentos da ginga são suaves e de grande flexibilidade – confundem, facilmente a quem não esteja
familiarizado com a Capoeira, tornando-se presa fácil de um agressor que conheça esta modalidade de luta. Na
ginga se encontra à extraordinária malícia, além de ser sua característica fundamental. A ginga da Capoeira
tem, ainda, o grande mérito de desenvolver o equilíbrio do corpo, emprestando-lhe suavidade e graça próprias
de um bailarino” (PASTINHA, 1988, p. 40).
53
61
Mandinga: é enfocada, aqui, como a estética (aisthésis) no seu sentido de percepção totalizante, como a
dinâmica do corpo-Capoeira Angola em movimento, no qual, função e forma agem como um todo.
54
62
Movimentos: ao contrário das lutas ocidentais, no jogo de luta da Capoeira Angola, não se utiliza a palavra
golpe(s), usa-se em seu lugar a palavra movimento(s).
55
Para os Bakongos a vida dos seres humanos seguem como os ciclos do sol entre o
nascer, viver, morrer e renascer. Segundo REDE…, (2016)63, “Na RODA Bakongo estão os
quatro pontos cardinais, ligados pelas linhas de Kalûnga, que separam o mundo dos vivos do
mundo dos ancestrais. Dos cruzamentos das linhas, surgem as ‘esquinas de poder’ [...]”. É
neste cruzamento das linhas que o ser humano faz a conexão entre os 2 mundos, sobre esse
significado, conclui REDE…, (2016)64: “Dançar entre dois mundos é uma opinião do
Bakongo.” Dançar, cantar e batucar nessa cultura são ações do corpo na transmissão de sua
filosofia ancestral, são os movimentos de interação entre os 2 mundos.
Com relação a este conjunto de performances artísticas, diz REDE… (2016)65: “Dançar,
batucar e cantar é medicina espiritual, NKISI66, que fornecem o equilíbrio interno, que
permitem que os participantes e a comunidade possam aprender valores e padrões sociais. É o
músico que recebe e transmite a energia do mundo espiritual”. Vale ressaltar que na
constituição da cosmovisão Africana, o pensar e o agir moveram-se não só a partir da
oralidade, mas também destes 3 elementos artísticos indissociáveis: cantar-tocar-batucar.
63
Documento online não paginado.
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Documento online não paginado.
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Documento online não paginado.
66
“OS NKISI SÃO AS DIVINDADES cultuadas pela nação Angolão Paquetan. Eles receberam de Zambi, o
deus supremo, a missão de criar o mundo e tudo o que nele está presente. Eles dão energia a elementos
como o fogo e a água, protegem as matas e outras riquezas que sustentam o universo” (ALVES, 2010, p.
131).
57
1.10 Cosmograma Bakongo e Capoeira Angola: encruzilhada dos pés para a cabeça e da
cabeça para os pés
67
“Here is what the kongolese-cosmology taught me: I am a going-and-coming-back-being around the center of
vital forces. I am because I was and re-was before, and that I will be and re-be again (FU-KIAU, 1980, p.2).
68
Filósofo do Kongo que estuda os simbolismos da cultura Bantu-Kongo.
69
Propriedades derivadas: são elementos plásticos, visuais e sonoros de lutas e danças tradicionais da
cultura Bantu-Angolana que, possivelmente, derivaram destas e se fazem presentes nas culturas de
matrizes africanas no BRA.
58
70
Conceito de Motriz: “O adjetivo motriz do latim motrice de motore, que faz mover; também substantivo,
classificado como força ou coisa que produz movimento. Portanto, quando procura-se definir motrizes
africanas, refere-se não somente a uma força que provoca ação como também a uma qualidade implícita
do que se move e de quem se move, neste caso, o autor desta Pesquisa está adjetivando-a. Portanto, em
alguns casos, ela é o próprio substantivo e, em outros, aquilo que caracteriza uma ação individual ou
coletiva e que a distingue das demais” (LIGIÉRO, 2011a, p. 5).
59
cruz pelo Cristianismo é posterior à pré-história humana. Ou seja, este símbolo é uma
imagem-informação ancestral que vem sendo transmitida por culturas ágrafas, neste caso, na
diáspora africana e Ameríndios no BRA. Não resta dúvida deste fato, pois, a representação
das culturas bantas no BRA, que descendem do antigo reino do Kongo (nos países do Kongo,
Zaire e Angola), “[...] tem demonstrado, historicamente, no Novo Mundo, uma enorme
capacidade de assimilar novos valores oriundos de tradições europeias, asiáticas ou ameríndias
sem, contudo, perder a essência de sua cultura” (LIGIÉRO; LIGIÉRO, 2000, p. 148). Em seus
escritos, Ligiéro; Ligiéro (2000) esclarece as relações de adaptações e assimilações do
símbolo do dikenga71 (Cosmograma Kongo; cruz de 4 lados iguais e círculos nas suas pontas),
através da interação entre os Bantu e Ameríndios, sobre as representações dessa cruz no
símbolo do ponto riscado na Umbanda72 e sua origem ancestral da cultura Bantu-Kongo.
Segundo Ligiéro; Ligiéro (2000, p. 160): “Na Umbanda, os pontos riscados dos pretos e
pretas-velhas são os que mais retiveram os elementos tradicionais da iconografia do dikenga.”
Como demonstração da assimilação dos elementos simbólicos da cruz e da encruzilhada entre
o dikenga e os pontos riscados apresenta-se 3 imagens (FIGURA 6) que Ligiéro (2000),
brilhantemente, torna evidente, através das relações de propriedades derivadas do dikenga
para os pontos riscados de Vovó Mombaça (preta-velha) e Benedito da Calunga (duas
entidades ancestrais que se manifestam no ritual da Umbanda):
71
Dikenga: forma mais simples de representar o Cosmograma Bakongo.
72
Umbanda: o significado desta palavra foi encontrado através da palavra Ohmbanda que quer dizer Medicina
das folhas para o grupo étno-linguístico Nhaneca-humbi. (Dados coletados durante a Pesquisa de campo do
autor deste Trabalho, em ANG).
60
A partir da busca dessa conjugação entre ambos, pensa-se a Capoeira Angola como a
mandinga de um corpo em movimento munido pelas suas afecções e percepções74 (sensação e
percepção dos sentidos). O uso da palavra mandinga pronuncia-se, aqui, em seu étimo como
percepção totalizante. Os movimentos desse corpo-mandinga são resultantes da assimilação
de informações (imagens). Suponhe-se que são imagens geradas a partir da relação e
73
Fowler Museum at UCLA: exposição coletiva: Axé Bahia The Power of Art, em uma metrópole afro-
brasileira. Museu localizado no campus da Universidade da Califórnia, em Los Angeles (USA).
74
“Mas é preciso levar em conta que nosso corpo não é um ponto matemático no espaço, que suas ações
virtuais se complicam e se impregnam de ações reais, ou, em outras palavras, que não há percepção sem
afecção. A afecção é portanto o que misturamos, do interior de nosso corpo, à imagem dos corpos
exteriores; é aquilo que devemos extrair inicialmente da percepção para reencontrar a pureza da imagem”
(BERGSON, 1999, p. 60).
62
observação dos seres humanos (nossos antepassados de uma pré-história) com e sobre a
natureza (o mundo). Estas informações (imagens) são referentes aos movimentos dos
elementos e seres vivos que constituem os mundos extra-terra e intra. Estas imagens foram (e
são) produzidas pelos movimentos do corpo-mandinga envolvido, em suas ações de conhecer
e reconhecer o mundo em que vive e habita. Estas imagens fazem parte do processo de
produção de conhecimento e reconhecimento humano sobre a terra e o espaço cósmico. São
imagens geradas, entre a lógica e a magia75, imagens que foram vivenciadas e ritualizadas
pelos nossos ancestrais como estratégias dinâmicas de manutenção das culturas, de uma
comunidade ou grupo social. Imagens sobreviventes.
Nas culturas de matriz Africana-Bantu, tais imagens são regidas (orientadas) por 2
princípios filosóficos que constituem a visão de mundo dos Bantu: o princípio de tempo
circular (espiralar) e o princípio de ancestralidade. Estes princípios foram transmitidos de
geração após geração, ordenados pelos movimentos do ritmo do corpo (cantar-tocar-dançar) e
da oralidade. A transmissão destes princípios é realizada através de narrativas míticas. A este
fenômeno gerador das narrativas míticas, Flusser (2011c) caracterizou como o pensamento
circular (pensamento mítico) e as imagens geradas por este tipo de pensamento, denominou
como imagens tradicionais76 (imagens miticas). Suponhe-se, a partir dessa ideia, que nas
culturas de oralidade, a comunicação se dá envolvida por um conjunto de ações, preceitos ou
ritos, que tornam presentes as imagens míticas. A transmissão do conhecimento sobre as
imagens míticas através de um conjunto de ações que se repetem, consiste em um ritual.
No lugar de capoeirista envolvido nos movimentos do corpo da Capoeira Angola, o
autor desta Pesquisa identificou, mediante sua vivência, que esse conjunto de ações, preceitos
ou ritos se fazem presentes no ritual dessa luta-dança. Haja vista que a Capoeira Angola “[...]
lida com o jogo da vida através da ancestralidade – é isso que confere à capoeira seu caráter
ritualístico, mitológico, ético, estético, pragmático, político e ideológico” (OLIVEIRA, 2007,
p. 183). Diante disto, atenta-se, especificamente, sobre a ancestralidade do corpo da Capoeira
Angola imerso em sua filosofia de corpo-mandinga. Corpo que se movimenta como ritual e
75
Sobre a lógica e a magia nas culturas dos indios Hopi: “Essa convivência da civilização com causalidade
mágico-fantástica revela o estado único de hibridização e transgressão em que as pessoas se encontram. Não
são homens primitivos, que dependem apenas de seus sentidos, e para quem não há atividade relacionada com
o futuro; mas tampouco são como os europeus, que confiam seu futuro à tecnologia e às leis mecânicas ou
orgânicas. As pessoas vivem entre o mundo da lógica e o da magia, e seu instrumento de orientação é o
símbolo. Entre o homem selvagem e o homem racional, está situado o homem das interconexões simbólicas.
Para entender esse nível de raciocínio simbólico, as danças das pessoas podem nos oferecer alguns exemplos”
(WARBURG, 2008, p. 27, tradução nossa).
76
Imagens tradicionais: “Historicamente, as imagens tradicionais precedem os textos, por milhares de anos
[…]” (FLUSSER, 2011c, p. 29).
63
As palavras imagem e informação são usadas em sentido conjugado, por tratarem dos
significados e significantes, formados e informados, nas ações do corpo em movimento na
Capoeira Angola. Com este objetivo, enfoca-se, aqui, este corpo como uma forma que se
informa, uma imagem que produz imagens. Um corpo que é matéria e memória, um corpo
que transforma as informações sobre a forma e objetos do mundo em imagens (BERGSON,
64
1999)77. Sobre este sentido da imagem, constituir-se como informação. Aumont (2012, p. 16)
o torna evidente, quando conclui que: “[...] a percepção visual é o processamento, em etapas
sucessivas, de uma informação que nos chega por intermédio da luz que entra em nossos
olhos.” Vale ressaltar que, no processo desta Pesquisa, não se trata só do processamento das
imagens em informações, através da percepção visual. Trata-se também do processamento de
informações em imagens, através da sensação e percepção dos sentidos regidos pelos
movimentos do corpo em movimento na dinâmica da Capoeira Angola.
Bergson (1999) identificou, através da fenomenologia, que o corpo humano é matéria
e memória: um corpo, uma imagem entre as imagens, que se posiciona no centro dessas
imagens. Um corpo matéria que se constitui no mundo, absorvendo suas imagens. Mas, ao
mesmo tempo, é memória, produzindo e representando essas imagens, entre suas presenças e
ausências no espaço e no tempo. Bergson (1999) torna evidente, com suas teorias, que o corpo
humano sente e percebe o mundo através de sua sensação e percepção dos sentidos (sua
aisthésis). Ou seja: o corpo a partir dos seus aceptos e perceptos, em movimento, produz,
reproduz imagens e também é produzido por elas. Neste sentido, enfoco o corpo-mandinga
como corpo-estético que, a partir dos seus movimentos de conhecimento e reconhecimento,
absorve informações sobre o mundo, se formando e informando em fluxos recorrentes.
Em tal contexto, o corpo-mandinga move-se através de sua imaginação que, de acordo
com Flusser (2011c, p. 18) é a “[...] capacidade para compor e decifrar imagens.” Aqui, a
imaginação toma o significado de informação, no sentido da capacidade inata do corpo
humano absorver imagens (informações) do mundo – em processos contínuos de se formar
através delas e informá-las decodificando-as em outras informações (imagens). Sobre esta
dinâmica do mundo das imagens-informações que são regidas pelo corpo em movimento,
Flusser (2011c) identificou a produção de 2 tipos de imagens nos processos formativos das
culturas humanas, que são: as imagens tradicionais e as imagens técnicas as quais distinguiu
em um movimento dinâmico de informações (imagens) que funcionam assim: “[...] as
imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam textos que concebem
imagens que imaginam o mundo” (FLUSSER, 2011c, p. 30). Neste caso, as imagens se
constituem em informações que formam e informam o ser humano em seus movimentos sobre
o mundo. Sobre as imagens míticas, Flusser (2010) se refere a imagens produzidas por um
tipo de pensamento, pertencente às culturas ágrafas: o pensamento mítico ou pensamento
77
Há portanto, no conjunto das imagens, uma imagem favorecida, percebida em sua profundidade e não
apenas em sua superfície, sede de afecção ao mesmo tempo que fonte de ação: é essa imagem particular
que adoto por centro de meu universo e por base física de minha personalidade (BERGSON, 1999).
65
circular. As imagens tradicionais são imagens míticas produzidas pelos nossos antepassados
há milhares de anos. As imagens técnicas são as imagens produzidas por aparelhos.
A produção das imagens citadas são informações que interessam, aqui, em 2 contextos
que se integram e se pronunciam: produzir imagens técnicas a partir de um conjunto de ações
(ritual-performance) com a Capoeira Angola e identificar (decodificar) as imagens míticas e
ancestrais (imagens tradicionais) da Capoeira Angola, através da produção e reflexão sobre as
imagens técnicas. Estes contextos integrados, de forma circular, tornaram presentes os
trabalhos artísticos sobre a mandinga do corpo da Capoeira Angola. Sendo assim, a partir das
conotações apresentadas, refletiu-se e constatou-se que as imagens são informações e as
informações são imagens, o corpo absorve e transforma em seus movimentos no mundo (na
natureza). Portanto, parte dos procedimentos metodológicos e fenomenológicos são
imprescindíveis nesta investigação em Artes Visuais. Toma-se o significado da palavra
imagem, empregando a ela, o seu significado tácito de informação.
O autor desta Pesquisa chegou em Luanda, capital de ANG, no dia 3 de abril de 2017.
No aeroporto, após 7 horas de espera, embarcou no voo para Lubango - ANG. Chegando na
cidade, pegou o tradicional táxi do local e se dirigiu ao hotel mais próximo para descansar. No
dia 4 de abril, pela manhã, encontrou-se com o professor decano Alberto Raimundo
Watchilambi Wapota (Coorientador do autor desta investigação), que o conduziu ao lugar de
hospedagem, a Vanjul Lodge, um pequeno sítio com cabanas de estilo tradicional da cultura
angolana. Ambos almoçaram e trocaram várias ideias sobre a proposta da investigação de
campo. Assim, situaram-se sobre os objetivos da Pesquisa e, por volta das 17 horas, se
despediram. A partir daquele momento, esse foi o lugar que o autor desta Pesquisa ficou
hospedado pelos próximos 3 meses. Na manhã do dia seguinte, reuniu-se com o professor
Alberto Wapota e, logo, o corpo docente apresentou as instalações físicas do Instituto
Superior Politécnico da Huíla (ISPH) e o espaço onde seriam ministradas as aulas de Capoeira
Angola. As mesmas se tornaram parte da metodologia da Pesquisa, sendo realizadas, a partir
dali, no âmbito da pesquisa de campo sobre as imagens míticas da Capoeira Angola. Essas
imagens surgiram relacionadas aos mitos das lutas do Engolo e Okhadenka e da dança
Ocancula, referenciando as performances culturais Bantu-Kongo praticadas na região sul de
Angola na Província do Mucope na região do Cunene, pelo grupo étno-linguístico Nyanheca-
humbi (nkumbi). A experiência de campo foi fundamental, pois marcou a ponte de conexão
por constituir os elementos essenciais que indicariam as origens das imagens míticas da
Capoeira Angola. Ressalta-se, aqui, que esse envolvimento emocional com o lugar foi muito
intenso desde a sua chegada em Lubango - ANG. No primeiro dia de atividades, autor desta
investigação foi convidado por Alberto Wapota para participar de um ritual em torno de uma
fogueira para comemorar, juntamente, com os alunos do ISPH, o fim da guerra em ANG,
confraternizando, coletivamente, os 17 anos de paz. Em um dado momento, o professor
passou o microfone e pediu ao autor deste Trabalho para falar. Balbuciando de emoção diante
dos irmãos angolanos, as únicas palavras que conseguiu expressar foi um trecho de uma
música interpretada por Gilberto Gil, que diz: “A paz invadiu o meu coração […] eu pensei
em mim, eu pensei em ti, […] [eu chorei por] nós que contradição só a guerra faz nosso amor
em paz” (GIL, 1994 apud OLIVEIRA; WILIBALDO NETO, 1994)78.
78
Documento online não paginado
67
“[…] Distância intinerária de um ponto a outro nas viagens fluviais em que se faz
sentir a ação do fluxo e refluxo do mar” (MARÉ, [20--?])79. Neste caso, o conceito de maré
indicado infere-se também aos fluxos e refluxos dos acontecimentos humanos,
especificamente, vinculados aos conflitos entre o pensamento mítico e o pensamento linear nas
culturas de matrizes africanas no BRA. É uma Maré direta que se define como uma unidade
dinâmica, literalmente formada do encontro simultâneo do Sol e da Lua no lado da Terra. Maré
de movimentos lá e cá, de um lado a outro do Atlântico, levando e trazendo imagens-
informações nas ondas do mar de Kalûnga.
Os fluxos e refluxos gerados na maré referem-se, aqui, no contexto de origem e
produção das imagens míticas da cultura Bantu-Kongo-Angola e às imagens míticas da
Capoeira Angola em suas possíveis traduções no âmbito do sistema de pensamento do processo
de criação artística. Não se sabe, por qual carga d’água, mas o construto desta Tese segue à
revelia uma ordem reversa na qual um trabalho (reflexão teórica e prática) incide sobre o outro
e ambos se significam, mutualmente, para gerar um terceiro trabalho que dinamiza todo o
processo de criação e construção nesta investigação.
Neste contexto, apresenta-se uma breve reflexão sobre a origem mítica da cultura
Bantu-Kongo-Angola, seguida da reflexão poética-visual sobre a relação de tais imagens da
cosmologia Bantu e suas articulações e configurações como imagens míticas presentes no
corpo-mandinga da Capoeira Angola. Portanto, a titulação Maré de Kalûnga: dinâmica
entre dois mundos refere-se à constituição dessas reflexões a partir da construção em
experiência-em-ação de 2 trabalhos artísticos que se encontram (se cruzam) e geram a
aparição do terceiro trabalho – o qual se constitui matéria-poética e dinamiza esta Pesquisa
gerando e assumindo-se no capítulo 3. Mas, vale ressaltar que, estes trabalhos se constituem
como 3 partes interligadas, uma trilogia: Jogo pra Kalûnga, Mono-lixo entre o Céu e a Terra e
Jogo-de-Corpo assim como os 3 capítulos que integram e dinamizam esta escrita.
79
Documento online não paginado.
68
Especificamente, tratar-se-á de refletir neste capítulo sobre Jogo pra Kalûnga e Mono-
lixo entre o Céu e a Terra, pois foi do encontro entre estes, que nasceu o Jogo-de-Corpo. A
produção, execução e apresentação destes trabalhos foram norteadas pelas seguintes questões:
• quais são as origens das imagens míticas da Capoeira Angola?
• como se configuram as imagens míticas e suas simbologias nos desdobramentos
estéticos entre o corpo-Arte e o corpo-mandinga da Capoeira Angola? e
• quais são as imagens míticas da cultura Bantu-Kongo que se constituem no sistema
dinâmico da performance artística da Capoeira Angola?
Para se obter possíveis respostas a estas questões, se tornou imprescindível a
realização de cruzamentos teóricos e práticos, oriundos de reflexões sobre a cosmologia
Bantu-Kongo, a performance cultural da Capoeira Angola e os trabalhos artísticos citados.
Essas questões se sedimentam como base nas dinâmicas culturais que ocorreram nas
diásporas africanas, do sequestro80 transatlântico entre ANG e BRA.
Tratando-se da continuidade do processo de criação-investigação sobre as imagens
míticas produzidas na dinâmica do corpo na Arte da Capoeira Angola, os procedimentos, aqui,
utilizados se apresentam como meio e fim, que podem tornar visíveis às imagens míticas
presentes nos desdobramentos estéticos das obras desenvolvidas. Com este objetivo, foram
produzidas as experimentações artísticas que trouxeram à tona as reflexões as quais foram
referidas até o momento.
Tais procedimentos se integram como uma metodologia teórica e prática na qual os
resultados se instauram em fluxos contínuos. Neste caminho, os elementos plásticos, visuais e
ritualísticos empregados nas performances com o jogo de Capoeira Angola e o desenho do
Cosmograma Bakongo assumiram o lugar de ações artísticas, que foram realizadas como
estratégias de denotar o corpo-poético-filosófico-ancestral da dinâmica cultural em seu sistema
simbólico de imagens míticas.
Através das dinâmicas culturais, diversos elementos do pensamento mítico da cultura
Bantu-Kongo foram re-assimilados pelos seus descendentes em processo de adaptação no solo
brasileiro, especificamente, no encontro fatídico com os Ameríndios, pois, ambos, fugiam da
escravidão implacável dos portugueses. Neste sentido, não se pode negar que a manutenção
de tais elementos se constituiu em um processo de resiliência que gerou diversas expressões e
80
“Os africanos transplantados à força para as Américas, através da Diáspora negra, tiveram seu corpo e seu
corpus desterritorializados. Arrancados do seu domus familiar, esse corpo, individual e coletivo, viu-se
ocupado pelos emblemas e códigos do europeu, que dele se apossou como senhor, nele grafando seus códigos
linguísticos, filosóficos, religiosos, culturais, sua visao de mundo” (MARTINS, 1997, p, 24).
69
performances culturais afro-ameríndias. Não se pode negar também, infelizmente, que alguns
pesquisadores brasileiros envolvidos por modelos ideológicos, racistas e excludentes fizeram
questão de construir ideias negativas sobre a cultura Bantu-Kongo e Ameríndia, denotando-as
como culturas de símbolos e míticas pobres.
Mas, como eles puderam afirmar tais ideias sobre essas culturas, se são justamente
essas culturas, em suas assimilações dinâmicas, que constituíram a fenomenologia da nossa
identidade brasileira?
Antes de adentrar, especificamente, nas simbologias das formas do círculo, do
triângulo e da cruz, e sobre a presença destas nas culturas Bantu-Ameríndia no BRA, como
imagens míticas integradas pela mandinga na Capoeira Angola, vale uma breve reflexão sobre
a origem das imagens míticas na cultura Bantu-Kongo e as semelhanças entre o seu sistema
cosmológico de pensamento circular e o dos nossos ancestrais Ameríndios. Para tanto, cabe a
tentativa de evidenciar a assimilação entre os sistemas simbólicos de pensamento circular
dessas culturas, através de suas imagens míticas, que são presentes na performance cultural da
Umbanda81 e podem estar corporificados na performance artística da Capoeira Angola.
Para um melhor entendimento da expansão da cultura Bantu e sobre a derivação dos
seus princípios filosóficos de ancestralidade em processo de dinâmicas culturais, é necessário
refletir sobre o mito de origem dos Bantus (Bantos)82, através de uma imagem que reflete o
seu processo dinâmico, como raízes de uma grande árvore. Esta imagem de uma árvore, como
metáfora, que pode denotar a dinâmica da cultura Bantu, se originou a partir de uma informação
transmitida pelo professor Alberto Raimundo Watchilambi Wapota (ISPH). O autor desta
Pesquisa perguntou ao professor o que significava a palavra Bantu. De forma simples, ele
respondeu que a palavra Bantu significava ser humano (pessoas), Bantu é como o tronco de
uma árvore. Naquele momento, ambos refletiram sobre a imagem da árvore (FIGURA 7)
como representação simbólica de uma cultura. Foi dessa troca de ideias que se constituiu a
metáfora seguinte.
81
Umbanda: seus elementos míticos e simbólicos que foram apresentados nos pontos riscados por Ligiéro;
Ligiéro (2000) nos quais identifica o Dikenga e Kalûnga.
82
OS BANTOS: “A partir do século XV inicia-se uma das maiores migrações forçadas da história da
humanidade, na qual milhões de africanos que haviam sido capturados em seus territórios ancestrais, na
maioria das vezes, por outros africanos de tribos rivais, foram levados para o litoral e vendidos como escravos
para os europeus e brasileiros em portos específicos na África e trazidos nessas condições para o Brasil”
(DIAS, 2009, p. 22).
“Durante o final do século XVI e final do século XVIII, a principal etnia trazida para o Brasil foi a dos
Bantu, povo que, durante o período colonial brasileiro, ocupava a maior parte do continente africano
situado ao sul do Equador, na região onde hoje estão localizados o Kongo, a República Democrática do
Kongo, Angola e Moçambique, entre outros” (DIAS, 2009, p. 22).
70
Existe na África uma árvore que se expandiu por todo o reino do antigo Kongo, ela se
compõe de três partes interligadas e inseparáveis entre si; o seu tronco (caule) denomina-se
Bantu; as suas ramificações bifurcadas de galhos e folhas são os grupos etnolinguísticos
formados a partir do seu tronco; as suas raízes, que subterraneamente se bifurcam, são os
ancestrais dos grupos etnolinguísticos, a água absorvida com os nutrientes da terra são os mitos,
ritos e símbolos do povo Bantu. No processo de tal árvore manter-se viva, os nutrientes são
enviados através do tronco (Bantu), passa pelos galhos (grupos etnolinguísticos) e chegam às
folhas, que os elaboram, e os enviam, internamente, através dos galhos, transportando-os pelo
71
tronco até retornarem para as raízes (ancestrais) que dão continuidade a este ciclo vital, mais
uma vez, alimentando-se da água (mitos, ritos e símbolos).
O movimento circular, da raiz às folhas, através do caule e ramificações, simboliza a
dinâmica da cultura Bantu. As raízes alimentam os galhos, por sua vez, os galhos, através das
folhas que se bifurcam em suas extremidades, realizam a fotossíntese que mantém a árvore
viva, no processo contínuo entre a terra, a água e a luz.
Pode-se fazer, aqui, uma equação simples: as raízes (ancestrais) transportam a água
(ritos, mitos e símbolos), seiva-bruta através do tronco (Bantu = seres humanos), que chega aos
galhos (grupos etnolinguísticos) e é elaborada pelas folhas (elaboração de costumes e hábitos
mantidos pela ancestralidade) no processo de fotossíntese e enviada de volta para as raízes.
Tal metáfora sobre esta cultura é uma imagem simbólica que apresenta o seu
movimento de existir e se manter, a partir dos princípios filosóficos de tempo circular e
ancestralidade. Ela reflete sobre a função da árvore em analogia à dinâmica da cultura Bantu.
Encontrando também, uma particular representação observada a partir do funcionamento do
sistema fisiológico vegetal de uma árvore, no seu processo de transformação dos nutrientes
para autossustentação que se realiza através de uma dinâmica circular, entre a água, a terra e o
sol (fonte de luz).
Com a ideia de evidenciar o movimento circular da ancestralidade, como princípio
filosófico de origem e manutenção da cultura Bantu, apresenta-se, aqui, uma relação entre sua
dinâmica de existência, em analogia à dinâmica da fisiologia vegetal, sob o contexto biológico.
As raízes (os ancestrais) intraterrenas absorvem a água com os nutrientes (seus mitos,
ritos e símbolos) dissolvidos: a seiva bruta. Elas enviam a seiva bruta via xilema83 em
movimento de capilaridade (de baixo para cima), através do tronco (Bantu), passa pelos galhos
e ramificações (grupos etnolinguísticos) e chega às folhas. Nas folhas, a seiva bruta é elaborada
no processo de fotossíntese e é reenviada via floema84 em movimento gravitacional, através do
tronco, até chegar às raízes que, em movimento de geocentrismo, absorvem a água e nutrientes,
83
“O xilema, ou lenho, é responsável pela condução de água e sais minerais - seiva bruta - das raízes até o
ápice da planta. É constituído por células mortas impregnadas por lignina e reforçadas com cellulose”
(LIMA, [20--?]).
84
“O floema, ou líber, é responsável pela condução da seiva elaborada das folhas às outras regiões da
planta. Esta é produzida graças à água e sais minerais que o xilema transportou até as folhas, que são
usados na fotossíntese, produzindo os compostos orgânicos que a constituem” (LIMA, [20--?]).
72
85
“O geotropismo é uma das formas de tropismo. Damos o nome de tropismo aos movimentos de
crescimento das plantas em resposta a um estímulo externo. As partes da planta respondem de modo
diferenciado ao estímulo da gravidade. As raízes apresentam geotropismo positivo, crescem em direção
ao solo, no sentido orientado pela gravidade. Os caules apresentam geotropismo negativo, crescem no
sentido contrário ao da gravidade” (MAGALHÃES, [20--?], grifos do autor).
86
“O fototropismo é a resposta do vegetal quando o estímulo é a luz. Os caules tendem a crescer em
direção à luz, assim apresentando fototropismo positivo. Esse movimento se dá pela ação do hormônio
auxina no alongamento celular. Quando a planta é iluminada apenas de um lado, a auxina vai para o lado
menos iluminado. Dessa forma, as células desse lado ficam mais alongadas do que as células do lado que
tem maior incidência de luz. É por isso que a planta se curva em direção à fonte de luz” (MORAES, [20 --
?], grifos do autor).
87
Patrício Batsîkama Mampuya Cipriano nasceu a 10 de agosto de 1974 em Maque do Zombo. É
Licenciado em História e Ciências Sociais, e especializado em Filosofia da Arte. Fala cinco idiomas:
Português, Inglês, Francês, Lingala e Kikongo” (PEDRO, [201-]). Autor de diversos livros publicados.
88
Adágio popular africano mencionado por Batsîkama (2010, p. 20).
73
89
Documento online não paginado.
74
marcada pela falta de chuva, tempo seco e de grande calor [...]” (BATSÎKAMA, 2010, p. 9,
grifo do autor). Além desta designação etimológica, acrescenta que “[...] em Kikôngo a
expressão kuna mbângala traduz-se por há muito tempo” (BATSÎKAMA, 2010, p. 9, grifo do
autor). Em sua análise, descreve que, nessa região, segundo o calendário Kimbûndu, durante o
período de grandes chuvas (fevereiro e abril), o volume das águas do rio Kwânza
aumentavam, transbordavam e todas as aldeias ficavam imersas, obrigando as populações a se
instalarem nas terras altas (com habitações provisórias).
As populações estabeleciam-se lá, durante as cheias, e só podiam retornar ao seu habitat
primitivo (parte baixa) após a baixa das águas (em fim de maio, início de junho ou julho).
Segundo Batsîkama (2010), este fenômeno repetido, anualmente, marcou a vida dessas
populações e constituiu-se como um signo, uma forma necessária de adaptação ao meio.
“[...] Aliás, durante as inundações as populações refugiam nas montanhas. Tipificação
de ‘Baixo da montanha’ como origem e ‘Cima da montanha’ como refúgio” (BATSÎKAMA,
2010, p. 26). Supõe-se, então, que a cultura Bantu se fundamentou na dinâmica dos seus
antepassados em movimentos, entre o mundo de baixo (origem) e o mundo de cima (refúgio).
Geograficamente, esses movimentos de ascendência e descendência, entre ambientes de
topografias diferentes, caracterizaram a habitação das populações Bantu. A relação de
deslocamento das populações, de baixo das montanhas (lugar de origem) para cima das
montanhas (lugar de refúgio), durante as cheias (altas chuvas) e a estação da seca,
possivelmente, reflete o processo de adaptação e sobrevivência dos antepassados do povo
Bantu.
Segundo Batsîkama (2010), os mitos de origem do povo Bantu estão ligados ao Sol
(calor e fogo), às águas e à terra (plantar, pescar e caçar). As suas pesquisas identificam, através
da etimologia das palavras, um mito comum aos grupos Bantus, que reconhecem KALÛNGA
como lugar de origem (região geografica).
Neste sentido, diz Batsîkama (2010, p. 22, grifos do autor): “A reinstalação ao habitat
‘primitivo’ é o verdadeiro recomeço da vida normal.” O tempo da baixa das chuvas ou
estações de seca em Kimbûndu é KIXIBU. Na verdade, diz Batsîkama (2010, p. 22, grifos do
autor), “[…] esse tempo é chamado MBÂNGALA nos Kongo, que, como vimos
anteriormente, lembra as origens (kuna mbângala: há muito tempo).” A estação seca (kixibu)
é o período de cultivar que significa PERÍODO DE SEMENTE, nos meses de agosto e
setembro, ou seja, em MBÂNGALA na linguagem dos Kongo. Explica Batsîkama (2010, p.
3): “Introduzir a semente debaixo da terra tem um termo em Kimbùndu (até Còkwe, e
75
Umbùndu). Este termo é SUMIKA: semear, plantar, tirar daqui para pôr acolá”90. Diz
Batsîkama (2010, p. 23, grifo do autor) que: “Temos tendência a voltar a Mbângala que é a
estação seca (kixibu).” Kixibu ou Mbângala refere-se ao período de semear e plantar. “Ora,
semear e plantar relacionam-se com começar” (BATSÎKAMA, 2010, p. 24). A origem dos
grupos Bantu-Kongo “[…] está ligada às palavras Sul-Calor (estação seca), semear (final da
estação seca)” (BATSÎKAMA, 2010, p. 24).
Conclui-se que, através de estudos semânticos e etimológicos, o lugar de origem dos
antepassados destes grupos foi Mbângala como o primeiro país do Kôngo, fundado nessa
região, que foi o ponto de partida do povo Bantu, que, em migrações do Sul para o Norte, se
expandiram até constituírem o Reino do Kôngo. Batsîkama (2010) identifica que as raízes
etimológicas destas palavras fazem parte da mesma raiz da palavra Kalûnga, que significa na
cosmogonia do povo Bantu: Deus das profundezas do mar e da terra; origem do mundo dos
ancestrais (mundo de baixo). Segundo Batsîkama (2010, p. 27, grifos do autor):
Mas, eis uma questão essencial no contexto desta investigação sobre as imagens
míticas. Se Kalûnga refere-se ao lugar de origem dos ancestrais Bantu-Kongo, qual a origem
do mito de Kalûnga?
Sobre a origem do mito de Kalûnga com relação ao começo do mundo dos ancestrais
Bantu-Kongo, Batisîkama (2010, p. 25) diz: “Os mitos apresentam o mundo dos mortos não
como uma ‘chegada’, mas passou a ser ‘ponto de chegada’ na compreensão física.” A partir
desta definição de chegada e ponto de chegada, entre os 2 mundos, conclui Batisîkama
(2010, p. 25) que: “Na compreensão metafísica, o ‘Mundo dos Mortos’ precede o Mundo dos
Vivos, eis porque aquele mundo (dos mortos) é lembrado nos ritos como ‘começo’ da
sociedade.” Segundo Batsîkama (2010, p. 26): “Nos ritos de nascimento e, especialmente, dos
gêmeos, os kimbûndu cantam que os recém-nascidos provêm dos Antepassados ou de Deus
90
Tirar daqui para pôr acolá (tira daqui e bota lá): expressão usada na dinâmica da Capoeira Angola .
76
(Kalûnga) do mar.” Neste sentido, nota-se que, na visão de mundo Bantu-Kongo o ser
humano é gerado no passado (mundo dos antepassados) e nasce no mundo dos vivos no
presente: “[...] os Bantus pensam [...] que os recém-nascidos vêm dos antepassados, do
princípio ou ainda da semente da vida” (BATISÎKAMA, 2010, p. 26), ou seja, morrer e
nascer para os Bantus fazem parte de um ciclo contínuo, que tem início no mundo mítico de
Kalûnga.
O mito de Kalûnga refere-se a um deus único91 (um ancestral comum aos grupos
etnolinguísticos), que está contextualizado em duas forças: um Deus celeste e um Deus
Terrestre. Um Deus da Terra e do céu, um Deus criador da semente da vida,
Kalungangombe92, cujo seu reino é o Mundo-dos-Mortos (Kalûnga). Assim, ele é o mito de
um Deus que está entre 2 mundos, separando-os e unindo-os ao mesmo tempo. Um Deus
onipresente regido pelos ciclos das estações do Sol, entre o céu e a terra. Um Deus que planta93
a semente da vida no mundo dos mortos (mundo de baixo / invisível) para fazê-la germinar no
mundo dos vivos (mundo de cima / visível).
No lugar de Deus do seu reino, Kalungangombe personifica-se como a dinâmica entre
os 2 mundos, regido pelos movimentos cíclicos do sol nos períodos de seca e chuvas. Em seu
reino, ele gera a semente da vida no fundo da terra (mundo dos mortos) para fazê-la germinar
sobre o mundo dos vivos, ou seja, é um mito que rege a vida e a morte, se situando em
movimento cíclico, entre o mundo de baixo e o mundo de cima (em sentido anti-horário).
Batsîkama (2010) faz uma análise da origem dos grupos Bantu-Kongo, sob um olhar histórico
que identifica, através da etimologia e da cosmogonia destes grupos etnolinguísticos, as raízes
das palavras Kixibu, Mbângala, Tûmba e Kakulu94(entre outras) como etmos da tradição oral
91
“Pode-se ler os autores que têm falado sobre as religiões de África Negra, tais como Baumann, Estermann,
Hubert Deschamps, Denise Paulme (se bem que de maneira superficial), Werlesse, E. Dammann, etc.
Existe um Deus único mas conceptualizado em duas potências: Deus celeste e Deus terrestre, tal como
pensam os Zûlu, Swâna e Xhosa, etc” (BATSÎKAMA, 2010, p. 25).
92
Kalûnga ngombe: “Nesta palavra, encontramos Kalûnga, um dos nomes-títulos de Deus. Está presente,
também, Ngômbe um outro nome / título do mesmo Deus. Ambos têm o sentido de Mundo-dos-Mortos, o
mar (domínio de Deus, na concepção Kimbùndu ou em geral nas populações zimbabweyanas que ocupam
todas regiões debaixo da linha equador). Ngômbe encontra-se em Umbûndu e outros falares do Sul, como
nome de Deus criador” (BATSÎKAMA, 2010, p. 25, grifo do autor).
93
Tûmba: “[…] é o nome do ancestral principal, que está ligado com o calor ou fogo. Mas não só. Além dos
sentidos fornecidos por [COELHO, 1996 apud BATSÎKAMA, 2010, p. 23], […] túmba deriva de 1)
túmba: semear, plantar, meter ou introduzir na terra (planta ou semente); 2) tûmba: nascer, formar-se,
desenvolver e 3) tumba: assentar, pôr apoiando-se sobre a BASE (mbetekete)” (COELHO, 1996 apud
BATSÎKAMA, 2010, p. 23, grifos do autor).
94
Kakulu: “Todavia, entre Kabàsà=Sàmbà (o mundo dos Vivos) e Kakùlù=Sàmbà (o mundo dos Mortos),
nessa ordem de ideias, KAKULU não significa somente em BAIXO, mas também traduz-se por começo
ou lugar de partida” (BATSÎKAMA, 2010, p. 25-26).
77
que remetem a uma palavra que possui o significado comum de KALÛNGA, como o mundo
de baixo e lugar de origem.
95
“The world, nza, became a physical reality floating in Kalûnga (in the endless waterwithin the cosmic space):
half emerging for terrestrial life, and half submerging for submarin and spiritual world” (FU-KIAU, 1980, p.
3).
96
“The heated dorce of Kalûnga blew up and down as a huge storm of projectiles, kimbwandènde, producing a
huge mass in fusion: The luku lwalâmba nzâmbi. Kalûnga then became symbol of force, vitality, and more, a
process and a principle of change, all changesonthe Earth: “Kalûnga walunga mbûngiye lungila yo Wayika se
n’îngu wa nsobolo”. And, by cooling the mass in fusion, zenge – zenge / ladi diambangazi, solidified itself
(kînda) and gave birth to the Earth. In the processo of cooling (mvodolo / nhodolo) the “luku lwalâmba
Nzâmbi” (matter in fusion) produced water (luku lwalâmba) whose rivers montains, etc. are the results” (FU-
KIAU, 1969 apud FU-KIAU, 1980, p. 2).
78
Bantu-Kongo. Tendo tal premissa como objetivo, Fu-Kiau (1980, p. 3-4, tradução nossa)
ressalta: “Kalûnga, o princípio-deus-de-mudança, é uma força em movimento, e por isso,
nossa Terra e tudo nele estão em movimento perpétuo [...]”97. Nota-se, segundo as imagens
míticas descritas por Fu-Kiau (1980, tradução nossa), sobre a dinâmica de Kalûnga, que se
trata do mito de origem do mundo na cosmologia Bantu-Kongo.
Na cosmologia do povo Bantu-Kongo, de acordo com Fu-Kiau (1980, tradução nossa),
essa dinâmica é gerada por Kalûnga. No Cosmograma Bakongo, ela é representada por um
círculo que é dividido ao meio por uma cruz de lados iguais: a linha horizontal representa
Kalûnga, um Deus, que está entre 2 mundos; abaixo desta linha está seu reino (o mundo dos
mortos, dos ancestrais, o mundo invisível). A linha vertical pode representar, nesse sentido, o
movimento de ascendência e descendência dos ancestrais (personificação de um Deus), que
transita entre os 2 mundos para gerar a semente da vida.
Neste sistema simbólico, o ser humano (Bantu) é o centro da encruzilhada que existe
entre o céu e a terra (entre os 2 mundos). Nesta cosmologia, tudo está em movimento entre os
2 mundos. “O próprio homem é um ‘objeto’ (ma) em movimento porque ele é N'zûngi a nzila
[um tipo de Exu] em seu mundo superior e inferior”98 (FU-KIAU, 1980, p. 4, tradução nossa).
Kalûnga, sendo a origem mítica da cultura Bantu-Kongo, no sistema cosmológico, é
regido por duas concepções: na primeira, Kalûnga é o lugar, o espaço mítico, o mundo dos
mortos, o mundo de baixo onde vivem os ancestrais (o reino misterioso das profundezas da
terra ou do mar); na segunda função, ele é o mito, o Deus deste reino, um demiurgo, que
constitui e está entre os 2 mundos. Para o povo Bantu seus antepassados vivem no mundo dos
mortos, e eles são sua origem. Nessa cultura, o mundo dos mortos antecede o mundo dos
vivos; ele é o ponto de partida, ele é KALÛNGA.
Suponhe-se que foi a partir da geografia do lugar que a cultura Bantu-Kongo
estruturou sua cosmogonia mítica em uma dinâmica circular, e este fato se evidencia a partir
dos deslocamentos (de baixo para cima e de cima para baixo) entre as topografias, baixa e alta
das montanhas, uma adaptação estratégica de suas primeiras populações, durante as mudanças
de estações de chuvas e sol (plantar e colher). A partir dessa região, de origem de seus
antepassados, estas populações se desenvolveram e constituíram o Reino do Kongo,
estruturando-se assim, em movimentos circulares (de baixo para cima e de cima para baixo).
97
“Kalûnga, the principle-god of-change, is a force in motion, and because of that, our earth and everything in it
is inperpetual notice” (FU-KIAU, 1980, p. 3-4).
98
“Man himself is na “object” (me) in motion for he is “N’zûngi a nzila” in his upper and lower world” (FU-
KIAU, 1980, p. 4).
79
Risério (2004), historiador baiano, no seu livro Uma história da cidade da Bahia faz
uma descrição breve, sucinta e bastante consistente sobre a importância e riqueza da cultura
Tupinambá a respeito da cosmovisão de mundo, dos nossos ancestrais brasileiros e seus
mitos. Risério (2004, p. 34) afirma que “Os tupinambás possuíam um conhecimento refinado
99
Escrita linear: “O método do rasgamento consistia em desfiar as superfícies das imagens em linhas e
alinhar os elementos imaginísticos. Eis como foi inventada a escrita linear, traduzir cenas em processos.
Surgia assim a consciência histórica, consciência dirigida contra as imagens. Fato nitidamente observável
entre os filósofos pré-socráticos entre os profetas judeus” (FLUSSER, 2011c, p. 24, grifos do autor).
81
de estrelas e constelações – e cultivavam crenças astrais.” Este fato pode tornar evidente a
existência de um sistema cosmológico100 (simbólico) na cultura ameríndia relacionada com os
ciclos do sol e as plantações, relações essenciais para a manutenção da vida da aldeia. Neste
sentido, Risério (2004, p. 35) diz: “Entre outras coisas, emanações celestes podiam favorecer a
vida, como no caso das plêiades, que faziam crescer no campo a mandioca.” Percebe- se, aqui,
como na tradição oral Bantu-Kongo, os tupinambás também tinham um modelo referencial
em sua cultura, a dinâmica da natureza em seus ciclos. Sobre tal relação, Risério (2004, p. 35)
denota: “Em resumo, aqueles brasis teciam e curtiam mitos e ritos, sentiam-se cercados de
‘encantados’, liam signos no firmamento, acreditavam na imortalidade da ‘alma’ [...]”.
Segundo Risério (2004, p. 34), eles acreditavam na “[...] existência de uma espécie de
paraíso, o Guajupiá, reservado aos guerreiros intrépidos, ao qual mulheres e homens covardes
jamais teriam acesso.” Indicando também que: “[...] A comunicação entre o mundo humano e
esse mundo extranatural era feita por intermédio dos xamãs, cuja função residia, basicamente,
na profecia e na cura” (RISÉRIO, 2004, p. 35). Ora, se torna evidente que nesta cultura já havia
um sistema cosmológico de pensamento e visão de mundo circular.
É delineada aqui uma provável resposta à pergunta anunciada no início desta escrita
que reflete sobre a riqueza da mítica das culturas Bantu e Ameríndia no BRA. Vale ressaltar
que sistemas simbólicos que têm como estrutura uma ordem de pensamento e tempo circular se
apresentam em diversas culturas de tradição oral, como é o caso dos nossos ancestrais
Ameríndios. Eles constituíram uma cosmogonia mítica, que enfoca a relação entre 2 mundos (o
mundo dos deuses e o mundo dos homens), entre o céu e a terra. E também têm como modelo de
funcionamento a Natureza. Como exemplo ilustrativo da existência de um sistema simbólico
que representa o pensamento mítico dos Ameríndios brasileiros, apresentar-se-ão duas
imagens que informam a simbologia da cruz como signo de um sistema cosmológico de
pensamento mítico estruturado.
100
“Considerando os povos indígenas, em sua maioria, excluídos e com pouca representatividade no mundo
acadêmico e em grande parte dos documentos oficiais, como jornais e livros didáticos, é que se faz
necessária a busca por suas tradições e por vezes de sua história em âmbito artístico e registrar em fatos
acadêmicos os mesmos” (NHAMBIQUARA; BENUTTI; DALGLISH, 2014, p. 2460-2461).
82
101
Nkisi: “O n’kisi para nós de Angola (Candomblé da nação, a Angola é entidade), a energia / força, a essência
existente em toda a natureza, contida nos elementos da natureza, mas que também se mostra para nós através
da incorporação nos seres humanos por ele escolhidos. Por isso, é que ninguém escolhe receber, incorporar
n’kisi, mas é escolhido para isso. Nenhum líder espiritual do Candomblé põe n’kisi em ninguém; cada um ao
nascer já traz o seu n’kisi. Os elementos naturais (em geral) utilizados por nós, são representações simbólicas
da essência invisível que nós acreditamos ser o n’kisi” (PINTO, 2015, p. 156).
83
102
“The cosmogram of Kongo emerged in the Americas precisely as ainging and drawing points of contact
between worlds” (THOMPSON, 1984, P. 110, grifos do autor).
103
“[...] na ilha de Cuba, quando os líderes do ritual do kongo desejavam fazer o importante charme de Zarabanda
(ki-kongo: nsala-banda, um tipo de tecido de fazer charme), começaram por traçar, em giz branco, um padrão
cruciforme na parte inferior, de uma chaleira de ferro. Esta foi a ‘assinatura’ (firma) do espírito invocado pelo
encanto. É claramente derivado do signo Kongo que os discos solares foram substituídos por setas,
representando os quatro ventos do universo” (THOMPSON, 1984, p. 110, tradução nossa).
84
104
“A tolerância indígena e a comunhão africana são sinais de cosmovisões que dançam um com o outro; que
reconhece a alteridade. Apesar das diferenças, ameríndios e africanos puderam estabelecer relações de
reciprocidade porque pertencentes a uma cultura da ginga […]” (OLIVEIRA, 2007, p. 186, grifo do autor).
105
A música aqui também é referente ao batucar, pois os instrumentos eram sagrados e sempre estavam
presentes nas festividades dos Ameríndios brasileiros.
85
integrada, ou melhor, faz parte das dinâmicas culturais (forças motrizes) que movimentam
filosofias ancestrais, através de performances artísticas – nesta dinâmica de vai-e-vem, tira-
de-lá-e-bota-cá, entre culturas.
Sendo assim, tanto a cultura como a língua106 são estruturas dinâmicas de adaptação,
transformação e existência da tradição oral, neste caso, afro-ameríndia no BRA. Até o
momento, pode-se concluir que, nas tradições orais dos Ameríndios e dos Bantu-Kongo,
existem elementos simbólicos (propriedades derivadas) entre os seus sistemas de pensamentos
míticos (cosmovisão de mundo / filosofia ancestral) que se assemelham pelos seus
significados e formas. Sendo esses elementos assimilados pelas performances artísticas
(motrizes culturais), como no caso do uso dos símbolos do círculo, da cruz e de Kalûnga
(Cosmograma Bakongo), tem-se um sistema simbólico da performance cultural da Umbanda
(sobre os pontos riscados visto no capítulo 1).
No caso da performance artística da Capoeira Angola:
• como foram assimilados os elementos simbólicos do Cosmograma Bakongo?
• a cosmogonia do mito de Kalûnga se apresenta no sistema simbólico da performance
da Capoeira Angola? e
• qual a relação das imagens míticas de Kalûnga com as imagens míticas da
performance da Capoeira Angola?
No lugar de angoleiro, não se tem dúvida de que essa performance artística se
fundamenta em princípios filosóficos da ancestralidade e pensamento circular. Entretanto, se
fez necessário para entender ou tentar responder tais questões, realizar os trabalhos de
experimentações artísticas com performances sobre e com o jogo de Capoeira Angola.
São enfocadas: as ações de cantar, dançar e batucar, integradas aos dispositivos de
inversão do corpo na Capoeira Angola (cabeça, pés e mãos).
Os trabalhos abordados, aqui, propõem, de forma poética, através das Artes Visuais,
identificar as imagens míticas da Capoeira Angola, na cosmogonia do mito de Kalûnga, no
Cosmograma Bakongo. Com este objetivo, dá-se continuidade a essa reflexão através da
trilogia Maré de Kalûnga (performance, escultura e vídeo instalação).
106
Língua: […] “A estrutura da língua corresponde à estrutura do mundo vital de tal maneira que é possível
dizer-se que a língua lança sua estrutura sobre o ambiente e o transforma assim em um mundo da vida.
Isto explica porque quem fala várias línguas vive em vários mundos, porque o mundo se modifica quando
se modifica a língua (acontecimento raro, observavél não apenas no Brasil, mas no Japão de hoje). Se for
assim, então a modificação da língua NO BRASIL implica a modificação do pensamento brasileiro, e a
modificação do estar no mundo brasileiro […]” (FLUSSER, 1998a, p. 158).
86
Os trabalhos Jogo pra Kalûnga e Mono-lixo entre o céu e a terra constituem uma
produção de multimeios (vídeo, escultura, performance e instalação) que se articulam,
sequencialmente, na relação entre a performance artística da Capoeira Angola e da Escultura
em um campo ampliado de imagens-informações.
Os trabalhos relacionados se desenvolveram e foram constituídos a partir dos
desdobramentos entre preamar e baixa-maré de fluxos e refluxos das marés, do processo de
criação que se intenta apresentar, aqui, nos quais um processo gerou o outro.
Os mesmos se fundamentaram em torno das inquietações a respeito das origens das
imagens míticas Bantu-Kongo e suas relações com as imagens míticas produzidas na
performance artística da Capoeira Angola.
As reflexões realizadas até o momento foram impulsionadas e constituídas pelos
trabalhos citados que resultam um corpo teórico-prático, apresentando-se como Maré de
Kalûnga: conexão entre dois mundos.
87
2.8 Breve apêndice: o triângulo, o círculo e a encruzilhada na Maré do Jogo pra Kalûnga
107
Documento online não paginado. Canto corrido de domínio público; cantado, frequentemente, nas rodas de
Capoeira Angola.
108
Propriedades derivadas: o termo propriedades é usado com referência as qualidades que são inerentes as
performances culturais de matrizes africanas; já o termo derivadas refere-se a ter origem, ser proveniente.
No caso das culturas de matrizes africanas Bantu-Kongo-Angola para as culturas de matrizes africanas no
BRA.
88
personificado como o mito de integração entre os mundos, um deus que gera a vida, que se faz
presente na cultura de matriz Africana-Bantu-Kongo no BRA.
de construção e produção imagética podem ganhar forma e corpo, de acordo com a linha de
pensamento, a vivência e a reflexão do proponente, ou seja, do artista na sua investigação
criativa.
Aborda-se, aqui, o termo investigação, entendendo que, na busca de uma construção
poética no fazer da arte, a Pesquisa torna-se um fator inerente para configurar, materializar e
fazer existir o objeto de arte109. O mesmo só passa a existir a partir do olhar atento, da
observação do artista sobre o mundo que o rodeia, ou melhor, da sua vivência e experiência.
Sobre a natureza das coisas em que se encontram envolvidas, se desenvolveu a ação-
performance Jogo pra Kalûnga110.
Quadro 5 – Maré
109
O conceito de objeto de arte utilizado, aqui, corrobora com o conceito de Flusser (2011c, p. 19) sobre
objeto cultural no qual define, acentuando, que é o “[…] objeto portador de informação impressa pelo
homem”. Neste contexto, o resultado da produção dos trabalhos artísticos, aqui, são objetos culturais.
110
Kalûnga: “Entre os vários significados da palavra Kalûnga destaca-se a interpretação religiosa da
palavra, que representa a divindade dos mares (enquanto Kalûnga grande representa o mar)”
(WIKINATIVA…, [20--?]).
111
Documento online não paginado. Canto de domínio público cantado corriqueiramente nas rodas de Capoeira
Angola.
90
(DELEUZE, 2006, p. 18). Um mundo de terra e água, que constitui a sua origem e de todos os
seres vivos. O mundo que, pela insensibilidade, arrogância e vaidade humana, vai sendo
recriado. “Já não é a ilha que se cria do fundo da terra através das águas, é o homem que
recria o mundo a partir da ilha e sobre as águas” (DELEUZE, 2006, p. 18).
Continuando a deriva, chega-se na Vila Universitária, onde o grupo andou em direção
ao píer da vila onde ficam 2 barcos. Neste local, sobre as águas que fluem e refluem nas
marés da ilha, torna-se visível o acúmulo de lixo, resíduos sólidos de todos os tipos em que
escoam nas margens da maré, por ser um lugar situado à beira-mar. Gaivotas, garças e outros
pássaros alimentam-se de peixes mortos devido ao alto índice de poluição das águas.
O lixo compõe uma cena degradante e comum aos moradores e animais que ali
convivem. Ao deparar-se com essa imagem ressalta-se o descaso e a falta de cuidado com a
destinação e o uso do lixo gerado pelas sociedades humanas, que causa impactos ambientais
e, consequentemente, o desequilíbrio na natureza. Esta cena marcou, profundamente, por
refletir o distanciamento gradual na relação do ser humano com a natureza. Não se trata, aqui,
de promover uma discussão sobre o lixo e seus impactos ambientais, pois essa questão é
apenas a ponta de um iceberg que denota uma reflexão sobre o distanciamento do homem
com a natureza. Trata-se, sim, de trazer à tona uma discussão sobre o que aflora a partir do
descaso relacional do ser humano com o ambiente, qual o mundo que o envolve e o nutre?
Desse modo, o que se propôs foi uma discussão sobre o corpo como organismo
detentor de um sistema sensorial perceptivo que, devido às transformações sociais, industriais
e culturais, vai adotando hábitos mecânicos e repetitivos, tornando-se, cada vez mais,
condicionado a tais hábitos. É notado que esse condicionamento embota a sensibilidade do
sistema perceptive e sensorial do corpo, distanciando-o da sua conexão com a natureza.
Potanto, interessa repensar e refletir sobre o ser humano como um corpo em movimento, que
se configura entre tradição e contemporaneidade. Um corpo que busca reconstituir a
sensibilidade do seu sistema perceptive através da unidade entre o mundo natural (mundo
visível) e o mundo sobrenatural (mundo invisível).
Ao munir-se dessas reflexões e inquietações, cresce a importância da prática da
Capoeira Angola, por sua capacidade de ativar o sistema perceptivo em uma relação com a
natureza e a ancestralidade, ambos elementos pertinentes e indissociáveis, no que se refere às
culturas de matriz africana no BRA. No lugar de artista-pesquisador-angoleiro, o autor desta
Pesquisa investiu em procedimentos operativos para a criação artística, lançando mão dessa
experiência. O envolvimento na performance Encruzilhada: a passagem foi imprescindível
91
112
“Tendwa Nzá Kongo: O Cosmograma Kongo o símbolo Kongo do cosmos e da continuidade da vida
humana” (THOMPSON, 1984, p. 108, tradução nossa).
113
“Os iniciados lêem o cosmograma corretamente, respeitando sua alusividade. Deus é imaginado no topo, os
mortos no fundo e a água no meio. Os 4 discos nos pontos da cruz representam os 4 momentos do Sol, e a
circunferência da cruz, a certeza da reencarnação: a pessoa Kongo, especialmente, rígida nunca será destruída,
mas voltará em nome ou corpo da progênie, ou na forma de uma piscina eterna, cachoeira, pedra ou
montanha” (THOMPSON, 1984, p. 109, tradução nossa).
92
Thompson (1984), nos seus estudos, descreve 4 grandes formas de expressão que são
influências e improvisações da arte e religião Kôngo, dentre estas, evidencia que os
cosmogramas são “[...] marcados na terra para fins de iniciação e mediação de poder espiritual
entre os mundos [...]”114 (THOMPSON, 1984, p. 108, tradução nossa)115 . Esta ação significa e
remete a uma performance ritualística de caráter religioso que, como já foi visto (CAPÍTULO
1), também se faz presente nos desenhos rituais de cosmogramas na performance cultural
(afro-ameríndia) da Umbanda (pontos riscados). Se detém um olhar, aqui, sobre o caráter
religioso e ambivalente entre ritual e performance, neste caso, especificamente, relacionado
aos desdobramentos estéticos do corpo da Capoeira Angola na relação circular com o
Cosmograma Bakongo.
Afora a circularidade ser um elemento de conexão entre a Capoeira Angola e o
Cosmograma Bakongo, a informação de Thompson (1984) sobre arte e religião conjugadas no
desenho ritual do cosmograma no chão, foi mais um dado que, dentre outros, fundamentou o
uso do Cosmograma Bakongo nas performances como uma representação ritualística. A partir
da articulação entre essas informações, pôde-se chegar a um processo de ressignificação do uso
deste símbolo Kongo, como uma inscrição, em uma conjunção relacional entre ele e a
Capoeira Angola, que se move em seu ritual de forma circular. Dentre os elementos
simbólicos contidos na forma circular do Cosmograma Bakongo, observou-se o seu principal
mito de cosmogonia, Kalûnga, como o Deus que rege e é regido por uma dinâmica circular
entre mundos, representado através do desenho rabiscado no chão. Neste sentido, o mito de
Kalûnga passou a ser, no âmbito da proposição da performance, o elemento simbólico de
conexão entre 2 mundos (entre o mar e o céu; entre o céu e a terra).
Por já ter assimilado alguns significados sobre o Cosmograma Bakongo, utilizando-os
na primeira performance (CAPÍTULO 1), buscou-se reproduzir uma ação de cunho
ritualístico. Desenhando o cosmograma no chão, subvertendo-o em ação de arte, integrado ao
Jogo de Capoeira Angola na forma de uma experimentação artística. O ato de desenhar o
cosmograma no chão e jogar Capoeira Angola sobre ele caracterizou-se como um ritual
simbólico, uma ação-performance que estabeleceu uma conexão entre Arte e ritual, a partir da
performance artística realizada anteriormente (Encruzilhada: A Passagem). O desenho do
114
“[...] marked on the ground for purposes of initiation and mediation of spiritual power worlds [...]”
(THOMPSON, 1984, p. 108).
115
“As influências e improvisações da arte e religião do Kongo no hemisfério oeste estão melhor discernidas
em 4 grandes formas de expressão: marcados na terra para fins de iniciação e mediação de poder
espiritual entre os mundos, os remédios Kongo sagrados, ou minkisi; o uso de sepulturas de mortos
recentes como atrativos da vigilância ancestral e retorno espiritual; e as utilizações supernaturais de
árvores, ramos, galhos e raízes” (THOMPSON, 1984, p. 108, grifo do autor, tradução nossa).
93
116
“Segundo Eduardo dos Santos, o termo Kalûnga vem do radical lûnga do verbo okulungai seja construir.
De acordo com Estermann, este termo que, no entender de Alves, se encontra em 66 línguas africanas,
vem do verbo okulunguka e significa «ser astucioso» ou «ser esperto». Ainda na opinião de Estermann,
em outros idiomas, este termo poderia originar da palavra ndûngi que significa «inteligente» ou do verbo
okulunga que significa «ser atento» ou «vigilante». Nestas diferentes observações, Estermann conclui
que Kalûnga deveria ser traduzido por «o ser pessoal inteligente»” (HAUENSTEIN, 1971-1972 apud
BATSÎKAMA, 2010, p. 38, grifos do autor).
117
Kalûnga: “Como diz Fu-Kiau [1969, 1970, 1986 apud PINTO, 2015) […], o termo Kalûnga, literalmente, é o
alguém-que-é-completo-por-si-mesmo, o todo-em-tudo. É também usado como um sinônimo e epiteto de
Nzâmbi, (Deus), entre os grupos Bantus, especificamente os Bakongo. Antes da introdução da religião
Judaico-Cristã na área do Congo, esse termo era usado para significar a presença do completo poder/energia
que deu nascimento a môyo (vida), e ao ‘luyalungunu’ (universo)” (FU-KIAU, 1969, 1970, 1986 apud
PINTO, 2015, p. 155, grifo do autor).
94
movimento de Kalûnga entre os 2 mundos (mundo dos ancestrais e mundo dos vivos),
personificado, como Nzila, cruzando sua linha fronteiriça entre-mundos em movimentos
dinâmicos, emergindo e submergindo entre eles para gerar a semente da vida (o ser humano)
no centro da encruzilhada.
Nas extremidades do desenho da cruz, formada pelas linhas horizontal e vertical, o
performer desenha 4 círculos menores. Eles representam a fonte de luz primordial que rege a
dinâmica de Kalûnga, o Sol.
Em continuidade ao rito que exerce, o performer, em gesto loquaz, traça 4 setas
circulares em sentido anti-horário, que indicam os ciclos do sol em torno da terra. Essas setas
significam os movimentos do Sol regendo a dinâmica de Kalûnga entre os 2 mundos, mundo
visível (mundo dos vivos) e mundo invisível (mundo dos mortos).
Neste momento, conclui o desenho e sai (FOTO 6)118.
118
Todas as fotos que constam nesta performance são frames do vídeo, preparados pelo autor deste Trabalho, a
partir de uma programação automática da câmera (com um tripé) que enquadrava a performance (realização
da ação).
119
Beatt: termo que designa uma batida, uma pulsação, um ritmo.
95
Neste jogo de corpo, sensação e percepção são inseparáveis do performer, pois sua
mandinga, reflete e absorve imagens assimiladas dos 2 mundos. Imagens míticas, que se
assemelham aos movimentos dos elementos naturais (terrestres e celestes): as águas dos rios,
as ondas do mar, o vento sobre as árvores, a lua crescente, os ciclos do sol e a terra. E, também,
imagens que remetem à estética121 dos movimentos de animais como: sapo, zebra, boi, raia e
120
Todas as fotos que constam nesta performance são frames do vídeo, preparados pelo autor deste Trabalho, a
partir de uma programação automática da câmera (com um tripé) que enquadrava a performance (realização
da ação).
121
Estética: a palavra estética é utiilizada no contexto desta investigação regida pelo seu étmo de origem,
aisthésis, no sentido de percepção totalizante (percepção e sensação) que se apresenta no corpo da
Capoeira Angola como a mandinga.
96
Jogo pra Kalûnga nasceu como proposição artística de integração, que apresenta e
representa, as imagens míticas do sistema simbólico-filosófico do Cosmograma Bakongo
como imagens presentes na constituição do sistema dinâmico da Capoeira Angola.
Trata-se de uma estratégia de reversão poética-visual que busca visibilizar imagens
míticas que se tornaram invisíveis no processo de exclusão e aculturação social, da diáspora
do povo Bantu-Kongo-Angola no BRA. Essa restituição mítica-simbólica, representou,
naquele momento, ou melhor, ocupou o lugar de um rito mágico de assimilações simultâneas
122
Todas as fotos que constam nesta performance são frames do vídeo, preparados pelo autor deste Trabalho, a
partir de uma programação automática da câmera (com um tripé) que enquadrava a performance (realização
da ação).
97
123
“Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias.
Performances artísticas, rituais ou cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente
exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar,
que têm que repetir e ensaiar. Está claro que fazer arte exige treino e esforço consciente. Mas a vida
cotidiana também envolve anos de treinamento e aprendizado de parcelas específicas de comportamento
e requer a descoberta de como ajustar e exercer as ações de uma vida em relação as circunstâncias
pessoais e comunitárias” (SCHECHNER, 2003, p. 27).
98
[…].” Foi neste contexto, de performar uma ação-jogo de Capoeira Angola sobre a inscrição
do Cosmograma Bakongo, situada em e entre 2 mundos, que se realizou a reintegração e a
hibridização entre tais sistemas simbólicos.
A relação entre o desenho riscado no tablado de madeira e o jogo realizado sobre o
mesmo, na forma de performance-ritual, sacralizou simbolicamente, e conjugou a relação de
pertencimento entre ambos. Ao mesmo tempo, constituiu o Corpo-Capoeira-Angola como
sujeito-objeto de conexão entre 2 mundos (o Céu e a Terra). Tradicionalmente, o jogo, no
ritual da roda de Capoeira Angola, ocorre em parceria com outra pessoa, em um diálogo de
corpos de pergunta e resposta.
Na performance apresentada, o deslocamento de lugar, que tira-de-lá e bota cá,
descontextualiza a prática da Capoeira Angola do seu ambiente de culto, porém,
contextualiza-se no campo da Arte, como performance-ritual, na qual o performer realiza
movimentos de Capoeira Angola em um jogo com o invisível, imerso em uma cosmologia de
tempo e pensamento circular, representada pelo círculo inscrito no chão. O jogo de pergunta e
resposta ocorre em diálogos entre o corpo do capoeirista (visível), o espaço vazio (invisível) e
o Cosmograma Bakongo, e ultrapassa, simbolicamente, os limites da realidade física,
configurando o sentido de um ritual realizado com música, ginga, chamada e movimentos.
A ludicidade e a liberdade do jogo são elementos intrínsecos à Arte e à Capoeira
Angola. Ambas as utilizam como estratégias no jogo de tira de onde não tem e coloca onde
não cabe.
Huizinga (2008) identifica esses elementos como a principal característica do jogo, a
Mandinga pelo “[...] fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade, uma segunda característica,
intimamente ligada à primeira, anuncia que o jogo não é vida ‘corrente’ nem vida ‘real’”
(HUIZINGA, 2008, p. 11). Assim, define o jogo como “[...] uma evasão da vida ‘real’ para
uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (HUIZINGA, 2008, p. 11). O
jogo, nesse sentido, é uma estratégia criativa de subterfúgio da ordem linear de pensamento
do real para uma direção própria de outra ordem (pensamento circular) do real, que aqui se
configura através da performance.
Nesta investigação, a performance é a expressão artística-visual que, por meio da
memória corporal, reelabora os movimentos dinâmicos da Arte da Capoeira Angola para torná-
los visíveis como imagens míticas. Ela é o meio que deu inicio à construção poética-visual das
vídeo-instalações aqui apresentadas e de outras. Neste sentido, também, ela fornece
informações e restaura comportamentos, de acordo com as ideias de Schechner (2003) sobre o
conceito de performance triplamente orientada.
99
Como exemplo, sobre a leitura visual do mito de Nzila, e, para auxiliar o leitor a uma
compreensão acerca da força deste mito. Apresenta-se aqui, a seguir, a imagem de uma
escultura que foi construída como interpretação das narrativas sobre este mito (FOTO 9)125.
124
Exu: representa, aqui, um elemento mítico, das culturas de matrizes africanas, que está imbricado na cultura
brasileira e que independente do termo que for usado: Exu, Legba, Nzila ou Zé Pilintra (na Umbanda), refere-
se, especificamente, a autenticidade deste mito presente no pensar e agir, que se expressa no corpo do
angoleiro através da mandinga em um jogo-de-corpo em vai-e-vêm entre 2 mundos (subjetivo e objetivo;
razão e emoção). Neste contexto Exu representa, também, a qualidade do pensar e agir do ser angoleiro.
125
Bombonjira: escultura de Exú realizada na década de 1990, apresentada no Goeth Institut em Salvador -
BA.
100
Foto 9 – Bombonjira126
126
Bombonjira: “Ao longo da prática religiosa do povo do candomblé, muita deformação e distorção têm sido
geradas por instrumentos racistas e preconceituosos, e infelizmente muitos de nós temos alimentado essas
deformações, principalmente no que se refere a Bombonjira (Mbombo nzila) ou simplesmente Unjira (Nzila),
nkisi equivalente ao orixá Exu que vem sendo cada vez mais satanizado e diabolizado” (PINTO, 2015, p. 164,
grifo do autor).
127
Informação verbal proferida pelo Pai Marcelo, durante entrevista realizada pelo autor deste trabalho, em sua
residencia, em João Pessoa / PB, em fev. 2018. Vale ressaltar que o Pai Marcelo, em 1996, foi consagrado
Doté, sua digina (nome) é Odê Ofá Dana-Dana Farôkê da nação de Jêge Savalu.
101
(Unjira)128, Orixás ou Voduns, se dá comida primeiro a Exu. Ele é o dono dos 3 caminhos e
move a vida e o corpo no espaço-tempo, entre o Céu e a Terra. Seu símbolo é o triângulo,
uma unidade dinâmica, que dá sentido e significado aos sistemas de pensamento destas
culturas.
Se constata assim, que o mito de Exu representa o terceiro ponto que nasceu no
cruzamento entre as linhas horizontal e vertical. Ele constitui-se como a unidade dinâmica
desse triângulo, gerado, entre o céu e a terra. Ele é a potência geradora do movimento, a partir
de sua unidade triangular, ele se move em círculos em um vai-e-vem de tira-de-lá e bota cá na
encruzilhada.
No lugar mítico de regente dos 3 caminhos, ele é representado, escultoricamente, pelo
imaginário artístico das culturas de matrizes africanas no BRA, na figura de um ser híbrido
entre homem e animal (boi) que carrega um tridente, o símbolo da sua regência, sob os 3
caminhos (FOTO 9).
128
“O n’kisi Unjira, como a própria palavra já diz, é o caminho, nkisi do caminho, o remédio do caminho. Depois
da reverência aos bakulu, os ancetrais, Unjira é o primeiro n’kisi a ser reverenciado, não para afastá-lo dos
demais, nem para mandá-lo embora para não fazer confusão, mas para levar a mensagem e conduzir com
equilíbrio os caminhos dos nossos rituais. O poder de selar, codificar, enlaçar (kanga), empoderar cada um no
seu caminho é de Bombonjira, Unjira. É sua atribuição ser o guardião do caminho, e quem não tem caminho
não pode andar ou, quem escolhe andar por uma caminho que não é seu, não pode avançar. É o n’kisi que
sinaliza o equlíbrio ou o desequilíbrio do caminho de cada um, mas a escolha de buscar a manutenção do
equilíbrio ou a cura para o desequlíbrio depende de cada um, é de cada um” (PINTO, 2015, p. 164).
103
dinâmica do mito de Exu. A ginga é o primeiro movimento do capoeirista que gera o triângulo
dinâmico, mas, após a aparição do terceiro ponto, o corpo é só mandinga129. Na Capoeira
Angola a ginga é a base, o triângulo que dinamiza o corpo, mas, a mandinga é sua alma. Sem
a mandinga não existiria o sistema dinâmico da Capoeira Angola. Da mesma forma, ocorre
nos sistemas dinâmicos das culturas de matrizes africanas no BRA. Sem Exu não existiria
Candomblé, pois, sem ele tais sistemas não se moveriam.
Verificou-se com essas reflexões, que o mito de Exu é o princípio dinamizador dos
sistemas de pensamento das culturas de matriz africana no BRA. Aqui, se identifica esse mito,
como elemento presente e estruturante, também, do sistema dinâmico da Capoeira Angola.
Como já foi descrito, através da narrativa mítica-poética da performance artística apresentada,
o performer (capoeirista) ocupou o lugar simbólico de Exu, um corpo de mandinga que
informou e gerou formas.
Através dos desdobramentos dos seus movimentos no espaço-tempo, entre a Terra e o
Céu (entre o mundo visível e o mundo invisível), o corpo se assemelhou a Exu, em sua
dinâmica de mensageiro, em uma encruzilhada.
Vale ressaltar que, não se propõe, aqui, apresentar esse mito como o corpo da Capoeira
Angola, mas sim realizar uma leitura sobre ele como o elemento simbólico, constitutivo e
estruturante, presente no sistema dinâmico desta performance artística. Pois, assim, como Exu
dinamiza-se em movimentos lá e cá, conduzindo informações, entre-mundos (na
encruzilhada), o corpo-mandinga também realiza movimentos de tira-de-lá e bota-cá, ele
ginga na encruzilhada, se move em círculos, gera e transmite imagens-informações no jogo e
na roda de Capoeira Angola. O corpo, então, assume dinâmica- triangular do sistema
simbólico do mito de Exu.
No locus de performance artística cultural gerada pelas motrizes Africana-Bantu-Kongo
no BRA, atribui-se, aqui, a performance artística da Capoeira Angola, o valor e qualidade de
um sistema simbólico (dinâmico), que se expressa através dos desdobramentos do corpo na
mandinga: em uma dinâmica de movimentos triangulares e circulares.
O sistema dinâmico, o corpo do capoeirista desenvolveu-se em movimentos, através,
de 3 partes extremas do corpo: a cabeça, os pés e as mãos. Identifica-se, estas partes, como
dispositivos de inversão, pois, além delas constituírem-se no corpo – o sistema de percepção
dos sentidos (visão, audição, tato, olfato e paladar) –, também desempenham as funções de
129
Mandinga: se constitui, aqui, como o elemento essencial que define o jogo de corpo de cada capoeirista
no exercício, neste caso, de suas habilidades de dissimular e lançar seus movimentos, entre o sim, o não
e o talvez. Refere-se ao corpo que se move gerando estratégias com seus dispositivos de inversão
(cabeça, pés e mãos) da lógica de percepção e sensação. Para vivenciar as ações do corpo no presente.
104
significados em uma dinâmica de plasticidade visual. Nota-se, aqui, que ela se integra no
campo das Artes, através da sua estética de mandinga, na qual estão associados ritos, mitos e
símbolos em conjunto com as expressões estéticas do cantar, tocar e dançar-lutar.
Estabelecendo-se como um sistema simbólico-artístico, dinâmico e visual, um corpo
tridimensional, que é imanente a ela e que também pode constituí-la como um corpo-escultura
em movimento. Inserindo-a, assim, em um contexto atual da escultura como um campo
ampliado que a situa como arte de escultura-e-não-escultura. “Nesse sentido, a escultura
assumiu sua total condição de lógica inversa para se tornar pura negatividade, ou seja, a
combinação de exclusões” (KRAUSS, 1984, p. 133).
Portanto, o corpo na performance artística da Capoeira Angola pode ser traduzido como
um corpo de percepção de sentidos, reconhecendo, formando e informando imagens-ações
sobre o mundo, neste sentido, ela pode instituir-se, aqui, como a arte do corpo-escultura-em-
movimento.
130
“A Lei de Lavoisier, postulada em 1785 pelo químico francês Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794),
corresponde a Lei da Conservação das Massas. Considerado o Pai da Química Moderna […]”
(LAVOISIER, [201-]).
131
Documento online não paginado.
108
Há também elementos estéticos entre as esculturas citadas que denotam relações espaço-
temporais, geradas das articulações do exercício criativo do pensamento circular, presente na
produção poética-artística.
De forma breve e objetiva, descreve-se, nestas sucintas palavras organizadas em linhas
(pensamento linear), a presença do pensamento circular na criação artística como um princípio
constante de transformação exercido na produção escultórica da arte.
Abre-se um parêntese, para evidenciar a importância da obra escultórica de Brancusi
(LA COLUMNA…, (2011)), como uma das produções artísticas associada as transformações
que ocorreram no mundo das Artes. A partir da ação, seu trabalho corresponde a uma
classificação da escultura como uma categoria formalizada pelo historicismo. Com suas ideias
e ações, Brancusi (LA COLUMNA…, (2011)) foi um dos artistas do período do Modernismo
que deu o primeiro passo à frente para abolir a escultura de seus pré-requisitos que à
categorizavam em um modo fixo e imutável de produção artística tridimensional. “A arte de
132
Documento online não paginado.
110
Brancusi é uma demonstração extraordinária de como isto acontece” (KRAUSS, 1984, p. 132),
e continua em sua reflexão: “Num trabalho como o Galo, a base se torna o gerador
morfológico da parte figurativa do objeto; nas Cariátides e Coluna sem fim, a escultura é a
base, enquanto que em Adão e Eva a escultura está numa relação de reciprocidade com sua
base” (KRAUSS, 1984, p. 132, grifos do autor).
No sentido indicado por Krauss (1984), os procedimentos criativos na arte mudam as
coisas de lugar, e que essas ações geram uma inversão da lógica, transformando valores
estéticos pré-estabelecidos sobre a escultura.
O trabalho, aqui, ocupa o lugar de uma escultura sem base. Ele foi posicionado e
montado no espaço físico, em construção de superposições de caixotes que compõem um corpo
vertical e uniforme, que se apoiou em 2 pontos, entre o chão e o teto do galpão. Ao mesmo
tempo, esse trabalho de escultura-instalação apresenta-se como procedimento criativo gerado
no contexto de pensamento circular que tira de lá e bota cá (tira de onde não tem e coloca
onde não cabe). Neste contexto, as ações-pensar, realizadas através dos procedimentos
criativos do artista, constituíram-se em uma inversão da lógica na qual os valores formais e
visuais (estéticos) estabelecidos sobre o que é o lixo foram deslocados para o campo da
escultura-instalação, ré-contextualizando-os, na estética da Arte em sua forma e função.
Passa-se a se denotar aqui, o pensamento circular, presente no fazer da arte,
expressos nos processos criativos do artista. Ou seja, a partir de procedimentos criativos, os
caixotes descartados, como lixo, foram transformados em uma escultura-instalação. Nesse
contexto de reflexões e ações, traduz-se que, o fazer arte é movido e regido por um
pensamento circular de outra ordem lógica. Com essa constatação, se observa que a presença
do pensamento circular no processo de criação nas Artes é constante.
A escultura-instalação Mono-lixo entre o Céu e a Terra se realizou na montagem-
exposição no galpão de Linguagens Visuais (espaço atelier), do PPGAV da UFRJ, que a
envolveu em sua arquitetura interna. Por compor-se de madeira, matéria diferente e oposta às
qualidades materiais (cimento e concreto) que constituem o espaço do galpão, destacou-se
como escultura e elemento aquém do espaço, uma instalação.
É VENTO NO GALPÃO foi o titulo da Exposição no Espaço Público133 que
apresentou a escultura-instalação, como trabalho de final de Curso. A experiência-ação, neste
133
Espaço Público: “São confusas as noções do senso comum sobre espaço público. Normalmente, associa-
se a espaço público somente as estradas, as ruas, as praças e os edifícios de propriedade governamental.
Na verdade, cinemas e shopping centers são espaços públicos tanto quanto um estádio esportivo, um
museu ou um centro cultural, não importa o regime jurídico de propriedade” (DUARTE, 2006, p. 14,
grifo do autor).
111
134
Passo para trás: “A capacidade para a reflexão é a capacidade para afastar-se de si mesmo e ver-se a si e a
sua situação de fora; sendo a situação diferente caso a caso, diferente será também a filosofia”
(FLUSSER, 1998a, p. 142).
135
Arapuca: “Armadilha para apanhar pássaros, feita de pauzinhos ou talas de bamboo dispostas em forma
de pirâmide; urupuca. […] Armação para emboscar […]; armadilha, cilada” (ARAPUCA, [201-?]).
112
um entendimento sobre as origens das imagens míticas da Capoeira Angola além de uma
reflexão mais apurada sobre a unidade dinâmica do triângulo presente no ritmo das culturas de
matrizes africanas no BRA, constituindo os seus sistemas de pensamento e tempo circular.
Passou-se, aqui, a identificar as imagens míticas no corpo-mandinga da Capoeira
Angola como prováveis, propriedades derivadas de matriz africana no BRA. Nesta direção,
evidenciou-se as assimilações que reforçaram as constatações sobre o mito de Nzila (Exu), os
símbolos da encruzilhada, da unidade dinâmica do terceiro ponto (o triângulo) e do movimento
circular (o círculo). Além dessas relações expostas sobre tais elementos simbólicos do
Cosmograma Bakongo, se constituíram também, as relações desses elementos como
estruturas do sistema de pensamento e tempo circular na Arte e na Capoeira Angola. Neste
contexto, os 2 trabalhos apresentados são os 2 elementos que, em suas interações, geraram o
terceiro elemento (o trabalho Jogo-de-Corpo) que, por sua vez, gerou o terceiro capítulo a
seguir.
113
136
Omucongo: “significa em Nhaneca-Humbi caçador” (Informação verbal transmitida pelo Mestre Alberto,
em sua residencia Comuna do Mucope, Província do Cunene, Lubango, ANG, 2017).
137
Mafima: “significa em Nhaneca-Humbi sapo” (Informação verbal transmitida pelo Mestre Alberto, em
sua residencia Comuna do Mucope, Província do Cunene, Lubango, ANG, 2017).
138
Kanzo: palavra que na língua Bantu Kibundo significa “pequena casa” (NKISI, [201-]).
114
Na natureza o Engolo vem dos sapos. Porque no tempo chuvoso veio por
método de caça, então, o mais velho foi à caça e então encontrou esses sapos
ali numa lagoa. Então, ele já não foi mais com intenção de caçar. Então, tinha
que estar a observar o que é que aqueles animais estavam a fazer e qual era o
ritmo daqueles animais. Então, a partir dali foi avisar aos outros. Epá!
Vamos lá ver o que é que está a se fazer estes sapos. Estavam a dançar, mas
essa dança quer dizer lutar mesmo. Dava-se golpes. Ele aí aproveitou. Ah!
Isto aqui, tenho que aproveitar este som e essa dança. Então, a partir dali nas
139
“A capoeira tem sido vinculada a Angola desde os primórdios. Angolanos foram proeminentes entre os
africanos escravizados que jogavam capoeira nas ruas e largos do Rio de Janeiro, Salvador e outras
cidades portuárias no início do oitocentos. Na época, 80% de todos os africanos no Rio de Janeiro
vinham da África Centro-ocidental (territórios dos atuais Gabão, Angola e duas Repúblicas do Kongo)”
(ASSUNÇÃO, 2012, p. 2).
140
“Nhaneca-Humbi: Pelo menos dez línguas e grupos existem em Angola. Nhaneca, às vezes chamados de
nhaneca-nkumbi, é uma familia linguística localizada nas Províncias de Huíla e Cunene. Hoje sete
grupos étnicos – mwila, gambo, humbi, handa, quipungo, dongoena / hinga e quilengue – falam variantes
do nhaneca, representando 4% da população angolana” (ASSUNÇÃO, 2012, p. 4).
115
festas onde veio surgir o Engolo, através dos sapos, da dança dos sapos: nós
dizemos mafima (informação verbal)141.
O mito de origem do Engolo, narrado pelo Mestre Alberto, foi imprescindível porque
revelou outras possibilidades de identificar propriedades derivadas como as imagens míticas
expressas, visualmente, nessa luta-dança e, em outras performances culturais, constituídas da
estética-mandingada do cantar, batucar e dançar. Performances dinâmicas que, pela força e
resistência dos angolanos, ainda se fazem presentes no seu cotidiano. Especificamente, na zona
rural, em forma de ritos e rituais. Em tal contexto da cultura Bantu-Kongo-Angolana, se
apresenta, aqui, as narrativas e reflexões sobre o encontro com o Engolo, Okhadenka e
Onkhankula.
As festas para os angolanos não se limitam entre tristeza e alegria, trata-se, sim, de um
momento no qual se celebra a vida, o simples fato de estar vivo. Como disse meu amigo
angolano-Bantu, Anyelkes Batista, professor de química do ISPH: “Aqui quando a gente tá
triste, a gente canta e dança, e quando está feliz, também, a gente canta e dança.” (informação
verbal)142.
O autor desta Pesquisa se reconheceu como irmão de Anyelkes Batista. Aliás, ambos
se reconheceram como irmãos.
Anyelkes Batista viveu as atrocidades da Guerra quando criança, mas estar com ele era
sempre uma festa! A festa faz parte do cotidiano nas culturas de matrizes africanas Bantu-
Kongo.
Neste sentido, a presença ou apresentação do Engolo e outras lutas (Okhadenka) e
danças (Onkhankula) ocorreram e acontecem, especificamente, em exibições que são festas,
pois, as festas são também os momentos de trocas de informações e transmissão de
conhecimento nessa cultura de oralidade.
141
Informação verbal transmitida pelo Mestre Alberto, em Comuna do Mucope, Província do Cunene,
Lubango, ANG, em março de 2017.
142
Informação verbal transmitida por Anyelkes Batista, em Comuna do Mucope, Província do Cunene,
Lubango, ANG, em março de 2017.
116
143
Otchoto: OTCHOTO ou melhor OTYOTO, é o espaço físico, o santuário onde nossos ancestrais
preservavam e transmitiam a sua cultura e tradições de Geração em Geração (WAPOTA, 2017a).
117
busca restituir o saber de suas culturas, vítimas do processo de aculturação dos seus ditos
colonizadores.
Em um período de 5 dias de imersão com a comunidade do Mucope, hospedado no
Kimbo (casa da família) da Sra.144 Angelina e do Sr.145 Felipe vivendo o dia a dia do lugar.
A alimentação básica era o fungi146 de maçaroca ou maçango acompanhados com
lombí147, galinha nacional ou bode assado acompanhados, normalmente, com o macau148.
Foi curta a duração temporal, mas foi rica e substancial a relação tempo-espacial de
convivência com a simplicidade de viver daquelas pessoas em um ambiente insólito e précario,
devido às condições pós-guerra.
Incrível, inenarrável, foi sentir a força e riqueza espiritual dessas pessoas, expressadas
sem separação entre a dor e a alegria. Em um rito-mágico de festa de luta, vivenciado todos
os dias, na manutenção das suas imagens míticas de tempo e pensamento circular no qual o
sagrado e o profano se fazem juntos para celebrar a vida e constituir o presente.
Aqui, se propõe a explanação de alguns elementos plásticos visuais dos desdobramentos
do corpo nessas performances culturais, no lugar de imagens míticas que foram
assimiladas como o / ou no corpo-Capoeira Angola.
As lutas-danças foram apresentadas também em um contexto de atualização de suas
práticas no qual se percebe, visualmente, a reestruturação dessas no cotidiano, através do cantar,
dançar e batucar como um conjunto de ações que as reorganizam em seus símbolos e mitos. Em
um estado de festa e interação com os seus mitos antepassados. Neste âmbito, se realizaram as
performances culturais que, aqui, se pronunciam.
A apresentação do Engolo tem início organizada, demarcada, circularmente, pela
presença dos engolistas e da comunidade. Os engolistas começam batendo palmas emitindo
sons como grunhidos de sapos. Os cantos se desenvolvem em narrativas de situações do seu dia
a dia. Um engolista vai para o centro da roda e desafia outro, que aceita e começa o embate
(FOTO 12).
144
Senhora (Sra.).
145
Senhor (Sr.).
146
Fungi: comida tradicional de Angola feita de milho ou maçango.
147
Lombi: comida feita de folha que, normalmente na zona rural, acompanha o fungi.
148
Macau: bebida tradicional da região de ANG.
118
Em um jogo-luta-dança que, cada performer tem seu jeito e adequa o seu corpo às
formas e funções dos seus movimentos, lançando-os, subitamente, em pulos no espaço. Um
jogo-luta no qual se apresenta uma mandinga de balanços suingados, que exige atenção, pois
a qualquer momento tudo pode acontecer…
Nesse jogo-luta, o corpo-engolo se desdobra em esquivas em uma ginga pulada e
sincopada regida pelo ritmo triangular-dinâmico do cantar, batucar (nas palmas das mãos),
dançar (lutar-jogar). A luta-dança ocorre com movimentos simples, entre golpes de giro das
pernas, chapas de costa com a planta do pé e rasteira, que se assemelham a alguns movimentos
da Capoeira Angola. Sequencialmente, eles se revezam na roda, nos cantos, nas palmas e nos
jogos (embates). O engolista vence a luta quando o outro cai no chão, mas o jogo-luta do
engolo149 nunca acaba. Os movimentos do corpo-engolo, dinamizado em jogo-luta-dança,
fluem e se assimilam à formas de animais como o sapo, a zebra e o boi (FIGURA 9).
149
Engolo: “[…] Ainda que engolo apareça nas narrativas brasileiras, sobretudo, como dança, podia ser
também um combate mortal, Mesmo jogos amistosos podiam acabar mal. Por isso, qualquer pessoa
entrando na roda do engolo nos tempos antigos, entrava a seu próprio risco, sem possibilidade de pedir
indenização. Como diz o mais conhecido refrão do engolo. ‘Quem morre no engolo não é chorado’”
(JOGO…, 2013).
119
150
JOGO de corpo: capoeira e ancestralidade. Direção: Richard Pakleppa, Matthias Assunção, Cinézio Feliciano
Peçanha (Mestre Cobra Mansa). Roteirista: Matthias Assunção. Produtor: Matthias Assunção, Richard
Pakleppa. Diretor de fotografia, Diretor de Arte e Cameraman: Richard Pakleppa. Brasil: Oh Land
Poductions; Manganga Produções, 2013. 1 longa-metragem (87 min.).
120
chifres e seus corpos, os bois. Um jogo-luta-dança que prevalece quem tiver mais habilidade
com as mãos, firmeza nos pés e molejo no corpo para desviar a atenção do seu oponente e
vencer derrubando-o no chão. Dá-se continuidade ao jogo-luta, com o vencedor sendo
desafiado por outro oponente que se apresenta na roda.
Os movimentos gingados do Okhadenka se aproximam dos movimentos da ginga-
mandinga da Capoeira Angola, no sentido de compor um desenho triangular com seus passos
e seus molejos corporais e de deslocamentos, em pulos alternados, de um lado para o outro
(FOTO 13).
Mas, neste caso, se distanciam por não utilizarem essa ginga-mandinga para lançar
movimentos (golpes) sequenciais com as pernas. E sim, para lançar e dinamizar os seus
movimentos lançados pelos braços (os chifres do boi). Nesse jogo-de-corpo-luta, as pernas são
usadas como base de sustentação que se movem entre equilíbrio e desequlíbrio para os braços
atingirem seu alvo (o outro). Os seus movimentos estão, especificamente, relacionados
somente à forma do boi que é representado na luta.
Percebe-se, neste contexto, que a relação estabelecida com esse animal, suponhe-se,
simbolicamente, representa a conexão entre o céu e a terra, que nutre e sedimenta os laços
ancestrais dessa cultura com a natureza.
121
Denota-se, também, que essa postura do corpo do lutador com os braços apontados
para o céu como chifres de boi se aproxima, em semelhança, de postura corporal do
movimento de chamada que realiza-se no jogo de Capoeira Angola (FIGURA 10).
151
Onkhankula: “é […] um desafio entre proprietaries de gad, Os pastores louvam cada um dos seus bois num
canto recitado (Sprechgesang) acompanhado de breves inserções dançadas que imitam a forma dos chifres ou
o andamento do boi como o soba pingafona explica no filme, isso permite aos homens maias abastados (e
geralmente mais velhos) brilhar, já que pastores mais pobres não têm tantas cabeças de boi para se gabar”
(JOGO…, 2013).
122
Capoeira Angola, seguidos de aulas com os mestres sobre Engolo e Okhadenka e roda de
conversas. A estrutura básica para as aulas foram uma caixa de som, o quadro negro (verde) e
a sala que ficou à disposição da Pesquisa durante 3 meses. As aulas transcorreram obtendo
resultados saisfatórios com relação à troca de informações no aprendizado entre os alunos.
Com a chegada dos mestres foram intensificados os encontros que se estenderam pelas
manhãs e tardes no ISPH (FOTO 15).
As pessoas nas ruas com suas composições de cores, roupas e estilos muito simples e
diversos.
A partir desta vivência, uma ordem reversa de pensamento e tempo circular passaram
a se apresentar nesta experiência-em-ação em ANG, na cidade de Lubango, na África.
Estas características foram identificadas também nas relações traçadas no encontro com
os Mestres do Engolo. O autor desta Pesquisa sentiu-se lisonjeado, agraciado com as
presenças dos Mestres, pois, naquele momento, eles eram o elo da dinâmica cultural Bantu-
Kongo-Angola, representavam e representam os ancestrais da Capoeira Angola. Eles,
também, são os Mestres do autor desta investigação.
Nas conversações que ocorriam sempre nos momentos após as aulas, observou-se que
o Mestre Kahani Waupeta, quando estava a pensar (sem falar), direcionava o seu dedo
indicador, da mão direita, um pouco acima do seu septo nasal e, de repente, emitia uma opinião
e se engajava no papo. Curioso, o autor desta Pesquisa, perguntou ao Mestre Alberto o que
significava aquele gesto. Ele direcionou essa questão ao Mestre Khani, e depois traduziu o
seguinte: “Kahani disse que, quando ele coloca o dedo em sua testa é para refletir sobre os
problemas e que, quando faz esse ato, sempre se depara com soluções” (informação
verbal)152.
Foi um grande ensinamento filosófico transmitido de forma oral-corporal.
A partir daquele dia, o autor desta investigação aprendeu, com o Mestre Kahani
Waupeta, que a melhor forma de refletir é apontar o seu dedo indicador para você mesmo, ou
seja, dar um passo atrás e lançar a dúvida sobre si e não sobre o outro.
Tal constatação também causou uma reflexão sobre essa relação, no jogo de Capoeira
Angola e na roda do jogo da vida. Como um movimento circular entre sujeito (ser humano) e
objeto (natureza ou outro).
No dia do encerramento das atividades, visitou-se a pequena fazenda do decano
Alberto Raimundo Wapota. Passeou-se com o professor que apresentou os seus projetos sobre
o Otchoto naquele espaço (FOTO 18).
152
Informação verbal proferida pelo Mestre Alberto, em Comuna do Mucope, Província do Cunene, Lubango,
ANG, em março de 2017.
127
153
Informação verbal proferida pelo professor Alberto Raimundo Watchilambi Wapota, em sua fazenda no
município de Huíla, Lubango, ANG, em março de 2017.
128
154
Informação verbal proferida pelo Mestre Muhalanbandje Mwendangula, na fazenda do professor decano
Alberto Raimundo Watchilambi Wapota, no município da Huíla, Lubango, ANG, em março de 2017.
155
Informação verbal proferida pelo Mestre Muhalanbandje Mwendangula, na fazenda do professor decano
Alberto Raimundo Watchilambi Wapota, no município da Huíla, Lubango, ANG, em março de 2017.
156
Informação verbal proferida pelo professor Alberto Wapota, na fazenda do professor decano Alberto
Raimundo Watchilambi Wapota, no município da Huíla, Lubango, ANG, em março de 2017.
157
Informação verbal proferida pelo professor Alberto Wapota, na fazenda do professor decano Alberto
Raimundo Watchilambi Wapota, no município da Huíla, Lubango, ANG, em março de 2017.
129
158
Mandinga: neste caso, são as estratégias que o corpo assume através da percepção-sensação desenvolvendo
sua forma e função, integrados, a partir dos seus dispositivos de inversão (cabeça, pés e mãos) e assim,
transmitir informações e conhecimento desse corpo (sujeito) sobre o mundo (natureza). Se observou esse
fenomeno, da mandinga, no contato in loco com as danças e lutas Bantu-Kongo-Angolanas nas suas
expressões para gerar e lançar movimentos envolvidos pelo seu ritmo dinâmico triangular.
130
159
“O mito do engolo como origem da capoeira tornou-se mais conhecido na década de 1990, quando a
política identitária brasileira fez das origens da capoeira, em particular de suas raízes africanas, uma
questão importante para muitos praticantes. Foi a partir das comemorações do centenário da abolição da
escravidão, em 1988, que aumentou o questionamento do significado da emancipação dos escravizados
em 1888” (JOGO…, 2013).
133
3.3 O mito de origem da Capoeira Angola: a dança da zebra que virou a dança do sapo
O relato mítico que foi apresentado no início deste capítulo sobre a origem do Engolo,
descrito pelo Mestre Alberto de Freitas, foi confirmado também pelos Mestres Muhalanbandje
Mwendangula e Kahani Waupeta (os mais velhos). Portanto, um relato que contradiz a versão
instituida, historicamente, no BRA. Versão esta, que sedimentou a mítica do Engolo (N’golo)
como uma luta dança, criada, a partir da observação da dança da zebra160 que seria a origem
mítica da Capoeira Angola. Neste sentido, um dos históriadores brasileiros que ressaltou e
apresentou o Engolo como dança da zebra, referenciando-o, como a origem mítica da
Capoeira, foi Camâra Cascudo. Na sua obra histórica Folclore do Brasil, Cascudo (1967, p.
184, grifo do autor), descreveu que o seu amigo, “Albano de Neves e Souza, de Luanda,
poeta, pintor, etnógrafo, encarregou-se de elucidar o lado de lá; as fontes da capoeira.” Souza
([19--?] apud CASCUDO, 1967, p. 184-185, grifos do autor) lhe forneceu a seguinte
informação: “Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra, N’golo, que ocorre
durante a Efundula, festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de ser muficuenas,
meninas, e passam à condição de mulheres, aptas ao casamento e a procriação”.
A ocorrência sobre as exibições do Engolo serem realizadas durante as festas 161 da
puberdade, registrada por Souza ([19--] apud CASCUDO, 1967), contradiz, com a fala do
Mestre Alberto, pois, de acordo com a sua informação, in loco (no Mucope), o Engolo
também era apresentado em outras festas (informação verbal)162.
160
“Ao mesmo tempo, as semelhanças formais de movimentos entre a capoeira e o engolo do século XX impõem
a pergunta: que vínculos existem entre os dois, e que ancestrais comuns poderiam ter? Essa é a linha que
estamos seguindo no projeto interdisciplinar « As raízes angolanas da capoeira ». Ao invés de amalgamarmos
provas e indícios contraditórios numa narrativa aparentemente coerente, procuramos, nesse projeto,
problematizar as disparidades e contradições nas informações que conseguimos. Assim, é forçoso reconhecer
que o engolo da atualidade difere bastante da descrição de Neves e Sousa, e ainda mais do mito um tanto
machista que se criou a partir do seu relato, editado e divulgado pelo folclorista Câmara Cascudo desde a
década de 1960. Cascudo […] enfatiza que o « vencedor » do engolo podia escolher sua noiva entre as
iniciadas e que não precisaria pagar « dote », estória muito repetida entre os capoeiristas. Os praticantes de
engolo de hoje, pelo contrário, afirmam que isso não é nem foi o caso, enfatizando o direito das mulheres de
escolher o seu parceiro. Além do mais, o engolo não se restringe a festa da puberdade feminina – essa é
apenas uma das muitas ocasiões de sua prática” (ASSUNÇÃO, 2012).
161
Festas: “[…] é forçoso reconhecer que o engolo da atualidade difere bastante da descrição de Neves e
Sousa, e ainda mais do mito um tanto machista que se criou a partir do seu relato, editado e divulgado
pelo folclorista Câmara Cascudo desde a década de 1960” (ASSUNÇÃO, 2012).
“Cascudo (1967, p. 185-186 […] apud ASSUNÇÃO, 2012, grifos do autor) enfatiza que o « vencedor »
do engolo podia escolher sua noiva entre as iniciadas e que não precisaria pagar « dote », estória muito
repetida entre os capoeiristas”.
“Os praticantes de engolo de hoje, pelo contrário, afirmam que isso não é nem foi o caso, enfatizando o
direito das mulheres de escolher o seu parceiro. Além do mais, o engolo não se restringe a festa da
puberdade feminina – essa é apenas uma das muitas ocasiões de sua prática” (ASSUNÇÃO, 2012).
162
Informação verbal proferida pelo Mestre Alberto, no Mucope, em Cunene, Lubango, ANG, em março de
2017.
134
Vale tornar visível que a palavra Engolo (N’golo) não se refere à dança da zebra, mas
tem semelhança com a palavra ongolo que significa zebra, especificamente, em Nhaneca-
Humbe (Umbûndu).
No grupo étno-linguístico Nhaneca-Humbe, a palavra ongolo também significa
joelho163, ou seja, uma parte do corpo humano.
Suponhe-se que, diante da complexidade da língua Umbûndu (Nhaneca), o artista
Albano de Neves e Souza tenha associado a conjunção da palavra ongolo (zebra) assimilando-a
com a sonoridade da palavra Engolo.
Os mestres do Engolo afirmaram de forma comum, entre eles, que o Engolo é a dança
dos sapos. Mas há uma característica na luta-dança do Engolo que interessou, no contexto da
investigação de campo, sobre as origens das imagens míticas da Capoeira Angola. Esta
característica refere-se à inserção de movimentos de lutas e danças de outros animais na
constituição da prática do Engolo.
O Mestre Kahani Waupeta disse que, no Engolo, existem movimentos que foram
referenciados em outros animais além dos sapos. Como exemplo, citou o coice da zebra: “Já
vi uma zebra matar um leão com um coice na cabeça” (informação verbal)164. Afirmou, com
esse exemplo, que um golpe do Engolo, que se assemelha ao coice de zebra, provém da
observação dos movimentos de outros animais pelos primeiros engolistas, que assimilaram
estes e adaptaram às suas práticas (informação verbal)165.
Este fato constata que o Engolo, por ter sua origem mítica na dança dos sapos, não
limitou-se só a esta referência, pois, os seus praticantes também inseriram movimentos de
outros animais em suas práticas. Portanto, se concluiu que a origem do Engolo na dança dos
sapos, evidenciado pelos Mestres, não anula a sua relação com os movimentos da zebra. E
também, não anula as possibildades de origem das imagens míticas da Capoeira Angola
relacionadas ao Engolo. Pelo contrário, essas evidências trazem à tona a concepção e prática do
Engolo e outras lutas-danças angolanas, enquanto performances culturais. Elas apresentam
características dinâmicas de inserção de movimentos, de elementos e de seres vivos na natureza,
como: o vento nas árvores, as águas do rio e do mar, o voo dos pássaros, os animais na caça e
163
Ongolo: os significados sobre essa palavra na língua Umbûndo-Nhaneca foram transmitidos pela Sra.
Angelina esposa do senhor Filipe chefe do Kimbo (casa da família), no Mucope, durante a investigação
na região do Cunene sobre o Engolo.
164
Informação verbal proferida pelo Mestre Kahani Waupeta, no Mucope, em Cunene, Lubango, ANG, em
março de 2017.
165
Informação verbal proferida pelo Mestre Kahani Waupeta, no Mucope, em Cunene, Lubango, ANG, em
março de 2017.
135
em suas lutas e danças de acasalamento, etc. Diante destas dúvidas historificadas, a origem
Africana-Bantu da Capoeira Angola veio à tona com mais firmeza.
Segundo Assunção (2012), a prática da Capoeira não tinha sido relacionada com
nenhum jogo de combate (lutas e danças) africano (a) de forma consistente, associado a uma
origem de ANG, ou seja, até 1960166, com a visita do pintor luso-angolano Albano de Neves e
Souza (1921-1995) ao BRA (JOGO…, 2013)167.
A origem angolana da Capoeira relacionada aos aspectos de combate do Engolo168
será abordada, aqui, especificamente, na relação ambígua que existe entre luta e dança nas
performances culturais de matrizes africanas Bantu, em ANG e no BRA.
Neste sentido, observa-se que os elementos do dançar, cantar e batucar se fazem
presentes em contextos semelhantes nos quais tais elementos integram o corpo em uma
dinâmica que se funde em luta-dança-jogo de mandinga (estética).
Acredita-se que estas movimentações põem em prática uma estratégia que lança a
dúvida para o espectador, desconstruindo o caráter de combate marcial ao dissimular a luta
em dança. Neste sentido, a Capoeira Angola por situar-se entre luta, dança e jogo já traz em
sua mandinga (estética), de corpo, características que se assimilam as lutas e danças
(performances artísticas) Africanas-Bantu-Kongo. São características expressivas, que, com
certeza, encantaram o olhar artístico de Albano de Neves e Souza que buscou refletir,
revindicar, em seu trabalho, a maternidade africana da Capoeira no BRA (FIGURA 14).
166
“Até a década de 1960, quando o pintor luso-angolano Albano de Neves e Souza (1921-1995) veio ao Brasil, a
Capoeira não tinha sido relacionada de maneira consistente com nenhum jogo de combate africano específico.
Observando a capoeira nas academias dos mestres Bimba e Pastinha na Bahia, Albano lembrou do engolo,
um dos jogos de combate que tinha assistido e retratado durante os anos 1955-1956 no sul de Angola. Ele
descreveu o engolo como acontecendo numa roda, acompanhado de palmas e canto, durante a celebração do
efiko, o ritual de iniciação feminine” (ASSUNÇÃO, 2013, p. 2, grifo do autor)
167
JOGO de corpo: capoeira e ancestralidade. Direção: Richard Pakleppa, Matthias Assunção, Cinézio Feliciano
Peçanha (Mestre Cobra Mansa). Roteirista: Matthias Assunção. Produtor: Matthias Assunção, Richard
Pakleppa. Diretor de fotografia, Diretor de Arte e Cameraman: Richard Pakleppa. Brasil: Oh Land
Poductions; Manganga Produções, 2013. 1 longa-metragem (87 min.).
168
“A prática do ENGOLO tem sido muito restrita em termos geográficos, pelo menos na memória oral – e
não se conhecem fontes escritas anteriores a 1995. Pelo que esta Pesquisa apurou, sua prática era
limitada aos humbi, subgrupo dos nhaneca, ao ponto que constituía um indicador de identidade étnica.
Além do mais, não tem sido praticado, de maneira regular, desde a década de 1970. Por isso, algumas
técnicas, ainda documentadas por Albano Neves e Souza, caíram em desuso e muitas das cantigas que
acompanhavam o engolo não são mais lembradas” (JOGO…, 2013).
136
zebra era a origem mítica do Engolo e que a Capoeira Angola, no lugar de prática de matriz
Africana, se originou deste.
Vale ressaltar que, as relações de conexão entre a Capoeira e ANG já vinham sendo
pronunciadas e identificadas por Querino ([1916]) desde a primeira publicação do seu livro A
Bahia de Outrora. Em uma de suas narrativas, Querino ([1916], p. 67) descreve: “O Angola
era, em geral, pernóstico, excessivamente loquaz, de gestos amaneirados, typo completo e
acabado do capadócio e o introdutor da capoeiragem, na Bahia.” Esta descrição de Querino
([1916]) sobre a prática da Capoeira, no início do século XX, já informa 2 dados importantes.
No primeiro, Querino ([1916]) anuncia que, pelas suas habilidades e características, os
praticantes de Capoeira eram, referencialmente, os negros de ANG; no segundo momento,
Querino ([1916]) denota que os negros de ANG detinham o pertencimento da Capoeira, como
introdutores desta prática na BA.
Em tal contexto, especificamente, na década de 1940, o Mestre Pastinha, principal
referência na Capoeira Angola, já presumia e afirmava a sua procedência africana. Indicando
este fato, Pastinha (1988, p. 20) diz: “Não há duvida que a Capoeira veio para o Brasil com os
escravos africanos”. O Mestre Pastinha, apoiado por outros angoleiros169, fundou no dia 23 de
fevereiro de 1941, o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), a primeira academia de
Capoeira Angola do BRA (COUTINHO, 1993). De acordo com Pastinha (1988, p. 20): “O
nome da Capoeira Angola é consequência de terem sido os escravos angolanos, na Bahia, os
que mais se destacaram na sua prática.” Como o seu mestre, Mestre Benedito 170, um ex-
escravo de origem Bantu-Kongo-Angola.
As reflexões do Mestre Pastinha estabelecem uma filosofia do corpo-Capoeira Angola
que têm como precedente restituir a capoeira (filha), a ancestralidade africana de Angola (sua
mãe). Este objetivo é inseparável da vida e obra do Mestre angoleiro, que se faz notar em outra
frase que se desenha assim: “[...] minhas palavras seja fatos de conforto e esperança que sai do
meu coração com gestos confirmativos de circunscrever observações exclusivamente a capoeira
de origem Angola” (PASTINHA, 1960, p. 21).
Suponhe-se que, quando ele, juntamente com os outros mestres, fundou a primeira
Academia de Capoeira Angola, restituiu, simbolicamente, a unidade, entre a Capoeira (filha)
169
Mestres: “Daniel Coutinho, Noronha, Livino, Maré, Amouzinho, Raimundo ABR, Percilio, Gerado [sic]
(chapeleiro), Juvenal (engraxate), Gerado [sic] Pé de Abelha, Zehi Feliciano (bigode de Ceida [sic],
Bonome, Henrique (cara queimada), Anca Preita [sic] (cimento), Algimiro Grande (olho de pambo [sic],
Antonio estivador, galindeu, Antonio (burca de porco) estivador, Cândido pequeno (argolinha de ouro),
(campeão bahino [sic], Lúcio pequeno, Paqueite do Cabula” (COUTINHO, 1993, p. 17).
170
“Mestre Benedito, um preto natural de Angola com o qual iniciou a prática da Capoeira Angola e, nessa
época, o menino Vicente Pastinha contava 10 anos de idade” (GUARDIÃO…, [20--?]).
139
e Angola (mãe). Entende-se, assim, que a partir daquele momento, torna-se notório ao público
a restituição da legitimidade entre a Capoeira e ANG, através do uso corrente, com a junção
dos termos Capoeira Angola.
O Mestre Pastinha registrou, em seus escritos, a necessidade de agrupar e ordenar os
preceitos e ritos da Capoeira Angola como estratégia que possibilitasse o ensinamento e o seu
aprendizado, integrados no contexto da comunidade (PASTINHA, 1960). Sua vida e obra se
misturam. Sua filosofia oral-corporal se expressam em sua luta-dança para não se deixar
esquecer, do pertencimento às suas raízes africanas. A filosofia do Mestre Pastinha é
carregada de uma poeisis, do corpo-mandinga-Capoeira Angola, inusitada, que referencia a
fenomenologia e a estética desta arte-luta-dança-jogo. Evidenciando-a em sua subjetividade e
complexividade. Um bom exemplo deste fato, se denota na sua memoravél frase que reflete
sobre a prática da Capoeira Angola: “Angola, Capoeira, Mãe! Mandinga de escravo em ânsia
de liberdade; seu príncipio não tem método; seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”
(PASTINHA, [20--?])171.
O Mestre Pastinha associa, poeticamente, a relação da Capoeira Angola com a sua
matriz africana. Na primeira frase, o termo mandinga pode ser compreendido como o
comportamento do corpo fugindo da escravidão (um jogo172 de corpo, um rito de magia). Na
segunda frase, evidencia, de forma metafórica, que o fundamento da Capoeira Angola não
nasce de um método de pensamento de ordem linear, mas sim, de uma ordenação de
pensamento circular. Este fato se constata na última frase, quando Pastinha realiza uma
verdadeira diagnose da Capoeira Angola, instituindo-a como uma dinâmica de tempo e
pensamento circular, ou seja, que em sua prática, não se estabelece nenhuma relação
cartesiana de causalidade que indique: o início, o meio ou o fim de suas ações dinâmicas.
Propõe-se, a partir daqui, realizar uma re-leitura do termo mandinga, em verdade,
uma desconstrução dos seus lugares que ocupa como conceitos de feitiçaria e malandragem
que foram caracterizados a partir de um olhar de fora. Busca-se realizar um processo de
reversão destes conceitos, a partir de um olhar de dentro, para assim, situá-la nos lugares de
rito mágico e jogo de corpo além de lhe instituir um lugar que deve ocupar, como à expressão
estética (aisthésis) das culturas de matrizes africanas no BRA. Para tanto, utiliza-se recursos
do processo de procedimentos criativos no fazer artístico em poéticas visuais. O mesmo se
resume em um jogo de troca e inversão de sentidos da ordem e lugar das coisas no mundo, que
171
Documento online não paginado.
172
“Jogo: atividade que tem fim em si mesma” (FLUSSER, 2011c, p. 18).
140
173
Mestre do autor desta Pesquisa.
174
“Em […] 2014, fez-se uma expedição conjunta entre o ISPH / UMN, a Universidade de ESSEX […] do
Reino Unido / Inglaterra, a Universidade de Bahia no Brasil, e a produtora sul africana de documentários
histórico-culturais de Richard Pokklepa que integra jornalistas Sul Africanos e Namibianos. Expedição
denominada ‘as rotas angolanas da capoeira’ que visa o resgate da Capoeira angolana, o Engolo, sua
estruturação em uma unidade didáctica [sic] e divulgação no estrangeiro (lá onde está a capoeira
brasileira) com a sua clara identidade estética e filosófica como uma das possíveis ancestrais da
capoeira Brasileira. Esta acção [sic] está prevista no projecto [sic] e-Otchoto, no seu subprojecto e-
Antropology (resgate e digitalização do património Cultural, Histórico dos Angolanos nas perspectivas
das antropologias cultural e botânica)” (WAPOTA, 2017a, grifo do autor).
“Está em curso, desde 15 de Abril de 2017, uma expedição conjunta com o investigador Marco [Aurélio]
Damaceno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, para o resgate das raízes Angolanas da
Capoeira Angola no Brasil, que se presume ser o Engolo praticado na comuna do Mucope na Província
do Cunene. Dentro do conceito da e-antropology, a nossa equipa [sic] de resgate do Engolo esta [sic] a
trabalhar na digitalização do Engolo para sua divulgação em plataformas digitais no âmbito do projecto
[sic] integrado e-Otchoto, bem como a sua estruturação em uma cadeira para ser ministrada no Instituto
Superior Politécnico da Huíla, como orienta o Ministério do Ensino Superior na sua circular Nr 2/16, sobre
a necessidade do desporto universitário, incluindo o resgate das actividades [sic] desportivas tradicionais
e suas práticas nas Instituições do ensino superior” (WAPOTA, 2017a, grifo nosso).
141
Ilha do fundão, no seu entorno, pontes a conectam à cidade. No seu meio, pairam
pequenos prédios, UFRJ e outros. Há um que se enfatiza, especificamente, não por constituir-
se em uma arquitetura insólita, e sim porque nele ocorrerá uma grande luta de performance-
142
Logo após, levanta e com um bastão de giz branco faz um grande círculo envolvendo
o seu corpo vertical. Divide o círculo ao meio com uma linha horizontal (FOTO 21):
Traça uma linha vertical, cruzando-a com a sua oposta (linha horizontal). O mono-lixo
fica no centro da encruzilhada, entre essas duas linhas.
Prosseguindo com seus movimentos arquetípicos, de rito-mágico175, realiza-se o
desenho de um ponto do Cosmograma Bakongo.
Assim, imerso nestes gestos, afirma-se sua conexão circular entre os 2 mundos (FOTO
22):
175
“Desenho de um ‘ponto’, invocando Deus e os antepassados, formou apenas uma parte desse ritual de
mediação Kongo mais importante. O ritual também incluiu ‘cantar o ponto’. Na verdade, os Bakongo
resumem o contexto completo da mediação com a frase ‘cantar e desenhar (um ponto)’, yimbila ye sona.
Eles acreditam que a força combinada de cantar palavras de Ki-Kongo e traçar em meios adequados o
‘ponto’ ou ‘marca’ ritualmente designado de contato entre os mundos resultará na descida do poder de
eus nesse mesmo ponto [...]” (THOMPSON,1984, p. 110).
145
176
Monumento: “A categoria escultura, assim como qualquer outro tipo de convenção, tem sua própria
lógica interna, seu conjunto de regras, as quais, ainda que possam ser aplicadas a uma variedade de
situações, não estão em si próprias abertas a uma modificação extensa. Parece que a lógica da escultura é
inseparável da lógica do monumento. Graças a esta lógica, uma escultura é uma representação
comemorativa — se situa em determinado local e fala de forma simbólica sobre o significado ou uso
deste local” (KRAUSS, 1984, p. 131).
177
Movimento: na luta-jogo e dança da Capoeira Angola, não se pronuncia a palavra golpe como em outras
práticas semelhantes, nela, o termo se refere a movimento.
147
Este movimento repercutiu de forma desestruturante no seu corpo-vertical que, por sua
vez, desmonta-se de sua rigidez desconstruindo-se, rapidamente, de sua forma linear
realizando, assim, um jogo de corpo criativo e mirabolante (FOTO 26):
Sua queda foi transformando seu jogo, desenhou-se, como imagem de uma
escultura-sinética de quadrados em movimento circular no espaço-tempo. No chão se
transformou construindo-se em uma imagem de corpo-escultura (FOTO 27):
178
“[…] In-formar é um gesto negativo, orientado contra o objeto. O gesto de um sujeito que avança contra
os objetos. Ele faz incisões nos objetos. Ele faz incisões do ‘Espírito’ nas coisas que se preenchem
demais por elas próprias, para que essas coisas não queiram condicionar o sujeito. É o gesto do querer
livrar-se de uma resistência obstinada que os objetos oferecem ao sujeito. O inscrever é um gesto
informacional, cujo objetivo é romper com as condições do cárcere, isto é, abrir crateras nos muros do
mundo objetivo que nos encarceram” (FLUSSER, 2010, p. 26).
150
179
Documento online não paginado.
152
Há uma expectativa, aqui, que será abordada devidamente. Muita calma nessa hora!
Porque ela corresponde e trata do processo de identificação dos elementos poéticos
apresentados e representados nas narrativas que seguirão. É imprescindível, neste caso, situar
que a poiesis dessa Obra se reverbera com e no corpo-mandinga envolvido no seu contexto
de pensamento circular do sistema simbólico / dinâmico da Capoeira Angola. Nesta direção, se
faz necessário refletir sobre sua forma função na práxis desta performance artística, é a ação
para realizar uma transdução de suas características.
180
Quilogramas (Kg).
181
Solta a mandinga: corrido de domínio popular de Capoeira Angola cantado correntemente nas rodas.
154
182
Estéticos: neste caso, se refere aos desdobarmentos do corpo a partir de sua aisthésis (sensação e
percepção dos sentidos.
155
fim” (DISPOSITIVO, 2010, p. 727), tendo, portanto, a função, neste caso, de desenvolver os
movimentos que conjugam e constituem o corpo-mandinga da Capoeira Angola, para
denotarem a forma específica de sua prática. Sendo assim, os dispositivos de inversão
resumem-se como um conjunto de ações mediadoras, dispostas e planejadas, por uma ordem
que organiza outro tipo de lógica exercida pelo corpo-mandinga. Esta tem, como fim,
apreender e performar à arte da Capoeira Angola. Para se entender a funcionalidade dos
dispositivos de inversão, integrados no corpo-mandinga, é necessário realizar uma apreciação
dos movimentos lançados pelo corpo no seu jogo-luta-dança.
Há uma ordem que rege o corpo-mandinga, que se faz presente no composto geral dos
elementos que consolidam o sistema dinâmico da Capoeira Angola. Uma ordem que é a
estrutura dos dispositivos de inversão e estruturante dos ritos e mitos que constituem sua prática.
A presença desse princípio ordenador pode ser identificada como uma unidade
dinâmica. Daqui por diante, o tratamento deste fenômeno estruturador do corpo-mundus da
Capoeira Angola será como ordem reversa de triangulação dinâmica.
É imprescindível aqui dar outro passo para trás para refletir sobre a presença da
ordem reversa nos movimentos, nos cantos e toques do jogo-luta-dança. Na performance
artística-cultural do corpo-mandinga da Capoeira Angola, só com o movimento (ginga) de um
passo para trás é possível repensar. Dar 2 passos para frente.
Entendendo tal unidade dinâmica como elemento essencial que estrutura a Capoeira
Angola, tem-se a função / imagem do tripé, que impulsiona e rege o seu jogo de mandinga em
3 instâncias, compreendendo a totalidade de seu corpus. Sendo presença constante e
irrevogável nos cantos (cantar); nos toques (batucar); e nos movimentos (jogar-dançar), é sobre
esta presença como composto estruturante no corpus da Capoeira Angola que apontam os
escritos a seguir.
3.10 Jogo de Corpo: mandinga triangular, integração entre a Arte e a Capoeira Angola
183
“Signo: fenômeno cuja meta é outro fenômeno” (FLUSSER, 2011c, p. 19).
159
184
“Produção: atividade que transporta o objeto da natureza para a cultura” (FLUSSER, 2011c, p. 19).
160
Capoeira Angola e se expressam através de sua mandinga185. Ele foi o último trabalho
realizado como experiência-em-ação de performance-ritual, no qual o performer é o própio
autor desta Pesquisa como artista-capoeirista, mas passou a ser o ponto de partida para a
realização de mais 2 trabalhos que são essenciais, aqui, relatá-los, pois os mesmos contribuem
com mais veracidade no intento que denota a Arte e a Capoeira Angola, imersas, em um
contexto de tempo e pensamento circular. Foi, a partir dos desdobramentos estéticos de Jogo
de Corpo, que se constituiu o trabalho Mutuê-Luminar e, em seguida, o trabalho Tempo
Circular os quais serão relatados e descritos, brevemente, nas subseções seguintes.
185
Mandinga: Os depoimentos dos capoeiras mais antigos evidenciam a mandinga enquanto componente
fundamental da capoeira. Nesse imaginário, afirma Vieira (1998, p. 111), “A mandinga aparece como a
estruturante central, o que atribui a verdadeira identidade ao jogo da capoeira.” No contexto da capoeira,
diz Vieira (1998, p. 111-112), “[…] o termo mandinga designa tanto a malícia do capoeirista durante o
jogo, fazendo fintas, fingindo golpes e iludindo o adversário, preparando-o para um ataque certeiro,
quanto também uma certa dimensão sagrada, um vínculo do jogador da capoeira com o Axé, a energia
vital e cósmica para as religiões afro-brasileiras.”
161
A sua estrutura foi concebida como um dispositivo186 para a cabeça com 4 hastes de
alumínio que compõem à forma de uma pirâmide feita de estruturas lineares, que se consolida
com uma pequena e potente lanterna fixa no final da sua parte superior triangular.
A sua base se constitui como um capacete, em verdade, trata-se de um design
anatômico vazado na parte da cabeça que integra em suas partes auriculares, um
headphone187. No lado direito deste, se encaixa um pequeno cartão de memória que contém
áudio com música de Capoeira Angola.
A exposição deste trabalho aconteceu em 2 momentos sequenciais:
1) exposição188 realizada no 14º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia: Arte e
desenvolvimento humano, na cidade de Aveiro, Portugal (POR), em outubro de 2015, como
186
Dispositivo: “Aparelho ligado ou adaptado a instrumento ou máquina, que se destina a alguma função
adicional ou especial” (DISPOSITIVO, [20--?]).
187
“O Headphone é um fone de ouvido, como qualquer outro, porém ele vêm com uma funcionalidade a mais
que é com o microfone, onde você pode conectá-lo a um pc, notebook, celular, etc, e conversar com outra
pessoa, como por exemplo por Skype” (RODRIGUES, 2015, grifo nosso).
188
Exposição coletiva no Museu da Capitania.
162
189
Performer: Maria Luíza Fragoso.
190
“Laboratório aberto Hiperorgânicos consiste de encontro imersivo (manhã e tarde) entre artistas-
pesquisadores, acadêmicos, cientistas e o público, tendo por objetivo, através de metodologia dialógica e
processual, o intercâmbio de experimentos em baixa e alta tecnologias de ponta, focados na construção de um
modelo hiperorgânico integrando práticas de hibridação, robótica, sonorização, visualização de dados,
performance e arquitetura” (HIPERORGÂNICOS…, 2015).
163
Mutuê na língua kikongo significa cabeça; o ponto mais alto do corpo humano;
espiritualmente, no Candomblé, é cultuada como parte sagrada, principal órgão receptor e
transmissor de energia (ngolo)191 ou axé.
A palavra luminar significa espalhar luz; aquilo que esparge luz em um foco fanal, por
exemplo: a lanterna. A junção destas duas palavras configurou esta experimentação artística
de Pesquisa em poéticas visuais, que teve como objetivo gerar um ambiente imersivo, no qual
o espectador se permita à experiência da percepção do movimento e pensamento circular.
Propôs-se, com este Trabalho, que o participante, envolto pelo foco de luz, o áudio
(acionado no head-phone) e a imagem em movimento (vídeo: Encruzilhada: a passagem),
vivenciasse uma experiência estética de movimento e pensamento circular. A partir de uma
interação relacional com a luz, o som e a imagem, de forma transcultural, possibilitando-lhe
uma ação entre performance e ritual. A mesma experiência se propõe, como performance, a
ser realizada em espaço aberto sem iluminações externas.
Neste contexto, o objeto-escultórico Mutuê-Luminar é um dispositivo de cabeça (objeto
artístico) que foi e é usado para possibilitar ao performer a sensação e percepção do corpo em
movimentos circulares regido por um campo de luz e o ritmo musical da dinâmica da Capoeira
Angola. Portanto, esse objeto-escultórico e vídeo-instalação-paisagem-sonora teve como
principal objetivo evidenciar e tornar visível, sensorialmente, o pensamento circular como
elemento presente e transformador nas culturas de cosmovisão africana no BRA.
191
Ngolo: em Kibundu significa “energia” (NGOLO, [20--?]).
164
Ele foi resultado do processo de vivência de 15 dias no Nzinga192, fazendo aulas, como
professor e aluno na companhia dos malungos193 e Mestres: Rosanjela Costa Araújo (Mestra
Janja); Paula Cristina Barreto (Mestra Paulinha); e Paulo Roberto Barreto (Mestre Poloca).
Durante as aulas, foram abordadas as relações dinâmicas entre os movimentos da Capoeira
Angola e a simbologia do Cosmograma Bakongo, em ações – com desenhos do Cosmograma
no chão realizaram-se analogias entre os movimentos, a ginga e as direções cíclicas do Sol (de
acordo com os estudos e desenhos apontados no capítulo 1). Neste âmbito, ocorreram os
procedimentos e processos criativos que o constituíram.
Tempo Circular apresenta, especificamente, as expressões da mandinga da Capoeira
Angola como sua aisthésis (percepção totalizante). Suas imagens foram capturadas e editadas
conservando o plano fixo e frontal. Buscou-se, com a edição e produção deste vídeo,
apresentar as imagens-informações que o corpo-mandinga (estética) da Capoeira Angola
produz, envolvido em movimentos de tempo e pensamento mítico (circular ou espiralar). Sua
estratégia é denotar as ações de imagem-em-movimento do performer-capoeirista em seus
balanços suingados, titubeantes de aleotrias, mugangas e ludicidades. Nele, se busca
192
“O Grupo Nzinga de Capoeira Angola nasceu em 1995, quando Rosângela Araújo – hoje conhecida como
Mestra Janja – passou a residir em São Paulo, em função da elaboração de suas teses de mestrado e
doutorado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, na área temática de Filosofia e
Educação” (GRUPO…, [20--?]).
193
Malungo: palavra de origem Banto que significa “companheiro, camarada”; “nome que se davam
mutuamente os negros escravos vindos da África no mesmo navio”; “[Brasil] irmão colaço, irmão de
criação” (MALUNGO, [20--?]).
165
apresentar a mandinga como o jogo-de-corpo da Capoeira Angola que, com a sua dinâmica, o
rege nos seus movimentos de rito-mágico para dissimular entre o sim, o não e o talvez.
Através destes movimentos, o corpo-capoeira194 do performer se estabelece entre o
equílibrio e o desequílibrio, imerso no ritmo de uma lógica de inversão de tempo e pensamento
circular pois, já é sabido, que esse corpo-Capoeira Angola move-se em todas as direções, em
cima, embaixo, no meio e se posiciona de ponta-cabeça entre o céu e a terra no espaço-tempo.
A sua plasticidade visual se revela pela mandinga, expressa na forma que informa e
transforma-se em jogo-de-corpo para se fazer testemunho presente e ativo de uma performance
artística, uma luta de resistência, de libertação, de uma lógica cartesiana, de discurso linear
(pensamento lógico). O jogo-de-corpo-mandinga da Capoeira Angola se move em uma
ordem reversa na qual inexiste o príncipio de não contradição195 nem tampouco o do terceiro
excluído196. Pelo contrário, ela se trata de uma lógica de movimento reverso197 no qual a
contradição se faz presente e o terceiro excluído é sempre o incluso visto que ele é o elemento
dinamizador que gera o ritmo de tempo e pensamento circular. A mandinga (estética), neste
caso, é o corpo-arte da Capoeira Angola que, entre o sim, o não e o talvez, se dinamiza em um
jogo-de-corpo-arte em movimento no qual o passado, o presente e o futuro se conjugam no
mesmo espaço-tempo circular.
194
Corpo-capoeira: “O termo corpo-capoeira, será a expressão utilizada para se referir aos dispositivos
usados pelo corpo na produção de narrativas e de conhecimentos produzidos, bem como os saberes que
estes corpos expressam utilizando-se de outros signos, outras formas de linguagem e de expressão, que
fogem a toda e qualquer tentativa de uma tradução meramente racionalista. Geralmente, são
conhecimentos enigmáticos, ricos em complexidades, e que revelam não só uma força cultural a partir da
realidade dos bens materiais de produção, mas também fruto do sentimento das realizações das paixões
humanas” (CASTRO JÚNIOR, 2012, p. 7).
195
Princípio da Não Contradição: “Uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo”
(GONÇALVES, 2014).
196
Princípio do Terceiro Excluído: “Toda proposição ou é verdadeira ou é falsa, ou seja, verifica -se sempre
um destes casos e nunca um terceiro” (GONÇALVES, 2014).
197
Reverso: “Que está na parte posterior ou contraria àquela que se observa; avesso: lado reverse”
(REVERSO, [20--?]).
166
um jogo em que passado, presente e futuro podem pôr-se juntos num movimento ou num
repente”. De acordo com o que já foi constatado antes (nos capítulos anteriores) sobre a
Capoeira Angola como sistema dinâmico de pensamento e tempo circular, sabe-se que o seu
jogo-de-corpo-mandinga se institui através dos seus ritos e mitos que são dinamizados em
trânsito espaço-temporal, entre passado, presente e futuro. Estes movimentos se expressam na
ação criativa da mandinga (sua estética) através das ações artísticas de cantar, dançar e
batucar. Neste sentido, o corpus-Capoeira Angola traduz-se em um jogo-de-corpo-mandinga
que se apresenta e se revela como rito-mágico por comportar, conformar sua existência entre
passado, presente e futuro. Nesta direção, Sodré (2002) também reforça a existência e
manutenção do corpo-mandinga desta Arte a partir dos seus ritos na relação entre os sujeitos
em grupo (nas aulas e rodas),
observação dele mesmo, tornando-se sujeito-objeto de si, pois, no vai-e-vem circular do jogo
de Capoeira Angola, simbolicamente, sujeito e objeto se fundem (objeto vira sujeito e sujeito
vira objeto). Desse encontro entre o sujeito (objeto) e objeto (sujeito), ocorre a reflexão
gerada a partir do nascimento da dúvida, neste tempo breve do jogo acaba a cisão entre o
sujeito e o objeto tendo em visa que, no jogo-de-mandinga da Capoeira Angola duvidar é dar
um passo atrás e refletir sobre qual movimento dará e sobre qual movimento seu parceiro de
jogo vai lançar.
Neste caso, a dúvida prevalece como elemento de reflexão e de decisão. Sem a dúvida,
o jogo não se desenvolve tornando-se assim, o elemento essencial no jogo de mandinga da
Capoeira Angola. Sem ela, o sujeito não dá o passo atrás para refletir, tornando-se
vulnerável no jogo. Constata-se que, a dúvida como o terceiro elemento, na qual o sujeito
duvida dele mesmo, é imprescindível na filosofia de ancestralidade, do corpo-oralidade, da
mandinga da Capoeira Angola. Nota-se, em uma breve analogia, que no construto da filosofia
ocidental – a partir das ideias cartesianas – que a dúvida só é lançada em direção ao objeto e
nunca é revertida para o próprio sujeito da ação. É neste sentido, que foi absorvido e
reproduzido o pensamento filosófico cartesiano. Sobre esta acepção da dúvida, como um passo
atrás, que não foi dado na filosofia da modernidade, Flusser (2011b, p. 22) descreve: “Trata-
se, com efeito, do último passo do método cartesiano, a saber: trata-se de duvidar da
dúvida. Trata-se, em outras palavras, de duvidar da autenticidade da dúvida em si. A
pergunta ‘porque duvido?’ implica à outra: ‘duvido mesmo?’”.
Descartes198, a partir de sua frase clássica, ‘cogito ergo sum’ (penso, logo existo), tão
recorrente nos modos das culturas ocidentais desde a modernidade, distanciou o exercício
reflexivo da dúvida sobre o sujeito, lançando-a sobre o objeto (FLUSSER , 2011b). De acordo
com a reflexão de Flusser (2011b), a partir do desnvolvimento de tal ideia, afirmou, com sua
reflexão filosófica, a cisão entre sujeito (ser-humano) e objeto (a natureza). Neste sentido,
Flusser (2011b), de forma oposta a Descartes, dando um passo atrás, trás para a filosofia
ocidental, na contemporaneidade, o exercício da dúvida como necessário para se repensar as
relações de aproximação entre o sujeito e o objeto. No construto geral desta investigação, em
tese, suas ideias foram fundamentais e esclarecedoras visto que, a partir delas, pôde-ses realizar
198
Descartes, e com ele todo o pensamento moderno, parece não dar esse último passo. Aceita a dúvida
como indubitável. A última certeza cartesiana, incorruptível pela dúvida, é, a saber: ‘penso, portanto
sou’. Pode ser reformulada: ‘duvido, portanto sou’. A certeza cartesiana é, portanto, autêntica, no sentido
de ser ingênua e inocente. É uma fé autêntica na dúvida. Essa fé caracteriza toda a Idade Moderna, essa
idade cujo os últimos instantes presenciamos. Essa fé é responsável pelo caráter científico e,
desesperadamente, otimista da Idade Moderna, pelo seu ceticismo inacabado, ao qual falta dar o último
passo” (FLUSSER, 2011b, p. 23).
168
uma reflexão mais apurada sobre o pensamento circular nas culturas de matrizes africanas no
BRA além de possibilitar uma reflexão sobre a construção do pensamento linear (pensamento
lógico) das culturas ocidentais. Por outro lado, a sua filosofia foi importante também, neste
contexto, por ter como conceito a dúvida em exercício reflexivo de dar um passo para trás,
ou seja, o sujeito duvidar de si mesmo antes de duvidar do outro. Neste sentido, sua filosofia
foi imprescindível. Nela, deixa-se transparecer uma relação de proximidade do seu
pensamento filosófico com o pensamento filosófico da filosofia de ancestralidade da Capoeira
Angola haja vista que sua filosofia não deixa de ser um exercício de pensamento circular, no
qual o sujeito lança a dúvida sobre si mesmo e, consequentemente, sobre o outro. Para tornar
mais evidente a relação do exercício da dúvida entre sujeito e objeto, apresenta-se, a seguir,
um desenho esquemático que representa, visualmente, o movimento circular entre sujeito e
objeto na dinâmica do sistema de pensamento dinâmico da Capoeira Angola (FIGURA 14)
que indica a dinâmica do seu sistema de pensamento no qual o sim e o não podem se transformar
em uma terceira opção, que se resume em talvez sim ou talvez não. O talvez, neste caso, é a
dúvida entre o sim ou o não. Ela é o outro, o terceiro elemento, que nasce do encontro do
sujeito com o objeto. No sistema de pensamento circular que rege a Capoeira Angola, a
dúvida se faz essencial, não como um movimento do pensar, que é lançado sobre o objeto
(outro sujeito) para ter certeza sobre suas ações, mas sim, como um movimento de pensar que
lança a dúvida na direção de si mesmo e do outro. Neste sentido, se não há dúvida e só se busca
certezas, acredita-se que não há jogo de Capoeira Angola visto que a dúvida é a essência, o
terceiro elemento estruturante do seu sistema de pensamento.
Decerto, o Sistema Dinâmico de Pensamento e Tempo Circular que rege a Capoeira
Angola, a institui também como prática filosófica. Em verdade, refere-se ao exercício de uma
filosofia de ancestralidade na qual o conhecimento e as informações sobre o mundo (a
natureza) são transmitidos através da oralidade e da corporeidade. É a partir da oralidade e do
cantar, batucar (tocar) e dançar – trio de forças motrizes –, em um contexto de jogo, que são
elaborados (atualizados) e transmitidos os seus ritos e mitos no coletivo do grupo. Trata-se de
uma filosofia que se pronuncia através do corpo-em-movimento, que agrega o conhecimento
do sujeito (ser humano) e o objeto (a natureza; o outro; o mundo). O seu campo de ação, inter-
relação, abrange aspectos relacionais do capoeirista, nos seus movimentos e envolvimentos
emocionais entre a roda de capoeira e a roda da vida199. A lógica desta filosofia de
ancestralidade não se trata da lógica da razão, e sim, de uma lógica da emoção-razão na qual o
sujeito é o terceiro elemento que se dinamiza entre suas percepções e sensações de corpo-
mandinga-oralidade. É uma lógica200 reversa pelo fato de que, nela, o terceiro nunca pode ser
excluído, pois ele constitui a sua estrutura sendo, portanto, a sua unidade dinâmica. Neste
contexto, se trata de uma lógica que é contrária, avessa à lógica cartesiana do terceiro
excluído.
199
Roda da vida: frase popular usada, frequentemente, para se referir aos movimentos do mundo e da vida
cotidiana.
200
Lógica: o significado de lógica que se refere, aqui, se distancia do seu conceito formulado a partir da
tradição aristotélica como: “[…] conjunto de estudos que visam a determinar os processos intelectuais
que são condição geral do conhecimento verdadeiro” (FACHIN, 2014). Aqui, se refere a um significado
de lógica que se aproxima mais do seu conceito que se refere a “Maneira de raciocinar particular a um
indivíduo ou a um grupo […]” (SANTOS JÚNIOR; GALASSI; DIONYSIO, 2013, p. 5). Só que, com
uma ressalva, na lógica reversa, a racionalidade existe em conjunção com a emoção.
170
em nova adaptação no mundo. “A linearidade discursiva da língua foi rompida, e com isto foi
rompido o ‘homem unidimensional’ do historicismo” (FLUSSER, 1998a, p. 147). Por
consequência das misturas de tais culturas, este rompimento se instaurou. Flusser (1998a, p.
147) explica:
201
“Não importa que coisa a língua possa articular (e somos tomados de vertigem se considerarmos quanta
coisa pode articular), articula ela também a essência (consciente e inconsciente) do grupo que a ela
recorre para comunicar-se” (FLUSSER, 1998a, p. 153).
202
“O ritmo é um aspecto diacrônico, no sentido de permitir dissolver as estruturas em sequências
organizadas. Pois há um ritmo nitidamente africano e que pode ser constatado, praticamente, em todos os
fenômenos culturais, no nível agora considerado” (FLUSSER, 1998a, p. 136).
172
que derivaram deste corpo-Capoeira Angola, consequentemente, não se situam só nas danças
e lutas angolanas, mas também de todas as culturas de matrizes africanas 203 que foram
transplantadas, sequestradas para o BRA na sua colonização. Neste sentido, se abre, aqui, um
parêntese sobre tais propriedades derivadas que constituíram o corpo da Capoeira Angola.
Este, se refere às culturas Ameríndias no BRA pois, já é sabido que o étimo capoeira204 deriva
da língua Tupi além do encontro e fusão entre os Ameríndios brasileiros e o povo Bantu. Se
desse encontro há algum elemento que derivou compondo o corpo da Capoeira Angola,
provavelmente, foi o seu étimo capoeira.
O termo mandinga é usado, aqui, propondo-se uma desconstrução da sua conjugação
pejorativa de feitiçaria como: “Ação ou prática própria de feiticeira ou feiticeiro”
(MONTEIRO, 2010). Pois, a mandinga, neste caso, refere-se às ações do corpo de imaginar,
transformar as imagens-informações sobre o mundo movendo-se entre passado, presente e
futuro através dos seus ritos e mitos. A triangulação dinâmica exercida no pensamento
circular da filosofia de ancestralidade na Capoeira Angola perpassa, em cruzamentos
intermitentes, em toda a sua extensão prática desde o indivíduo até o coletivo do grupo. Estas
triangulações são definidas, aqui, linearmente seguindo esta ordem: ginga, movimentos e
mandinga; cantar, tocar e jogar; roda, jogo e orquestra. Estas triangulações se subdividem e
geram outras triangulações e se apresentam assim:
• no Cantar: Canto da Ladainha, Canto da Chula e Canto do Corrido;
• no Tocar: Berimbau Gunga, Berimbau Médio e Berimbau Viola;
• no Jogar: Embaixo, em Cima e dos Lados;
• na Roda: Capoeiristas, orquestra e jogadores.
Todos estes elementos se integram e se inter-relacionam no aprendizado da prática da
Capoeira Angola, em triangulações recorrentes.
Estas triangulações constituem a dinâmica de pensamento e tempo circular que é
vivenciada na Capoeira Angola, através de sua filosofia de corpo-ancestralidade. Como já foi
descrito sobre esta filosofia, o seu construto se potencializa e existe a partir do terceiro elemento
que é a unidade dinâmica do triângulo. O nascimento dessa unidade nas culturas de filosofia
ancestral, acredita-se, ocorreu do esbarramento do sujeito (ser-humano) com o objeto (a
203
“Além da sua capacidade de imaginação, buscaram os negros elementos de outros folguedos e de coisas
outras do quotidiano para inventarem novos folguedos, como teria sido o caso da capoeira” (REGO,
1968, p. 31).
204
“Atualmente, são quase unânimes os tupinólogos em aceitarem o étimo caá, mato, floresta virgem, mais
puêra, pretérito nominal que quer dizer o que foi, o que não existe mais, étimo este proposto em 1880 por
Macedo Soares” (REGO, 1968, p. 35, grifos do autor).
173
natureza). Este embate primordial e original nasceu a partir do movimento do sujeito na direção
do objeto, só que, desse esbarramento, o movimento persevero foi transformado em ritmo
pelos antepassados. Conforme o que foi abordado no capítulo 1, nas culturas de tradição oral-
corporal (matrizes Africanas e Ameríndias no BRA) de pensamento e tempo circular,
movimento é ritmo e ritmo é movimento. Neste sentido, o ritmo também é o terceiro elemento
que nasce da interação entre o sujeito e o objeto. Constata-se, assim, que o ritmo é o elemento
dinamizador da vida – o movimento.
174
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
205
Animal que, para os grupos étno-linguísticos Banto-congo, representa o principal dote nas festas de
casamento e iniciação dos rapazes e das moças quando saem da puberdade.
176
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Vintage Books, 1984.
______.; CORNET, Joseph. The four moments of the sun: Kongo art in two worlds.
Washington, USA: National Gallery of Art, 1981.
VIEIRA, Luiz Renato. O jogo de Capoeira: cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro, RJ:
Sprint, 1998.
GLOSSÁRIO227
A
AÚ: movimento circular no qual o corpo apoiado pelos braços (com as palmas das mãos
sobre o chão) é impulsionado pelas pernas, posicionando-se de ponta-cabeça, realizando um
giro em torno dele mesmo.
B
BANANEIRA: movimento no qual o corpo se põe de ponta-cabeça, com as pernas para o
alto e mãos apoiadas sobre o chão, desenvolvendo passos com os braços sustentando-o em
equilíbrio-desequilíbrio.
BERIMBAU GUNGA: primeiro berimbau de som grave que rege o ritmo da orquestra
(instrumentos de percussão), da Capoeira Angola; ele é o Mestre que dá o toque de início e fim
ao ritual da roda. Berimbau, normalmente, tocado por um Mestre.
BERIMBAU MÉDIO: segundo berimbau de som semi-grave que acompanha,
sequencialmente, o Gunga com o toque de angola invertido ou jogo-de-dentro. Berimbau
tocado por mestres e alunos mais experientes.
BERIMBAU VIOLA: terceiro berimbau de som agudo que acompanha o Berimbau médio e
o Gunga, fazendo toques invertidos e dobradas no ritmo da orquestra (instrumentos de
percussão). Berimbau tocado por mestres e alunos mais experientes.
C
CABEÇADA: movimento no qual o corpo do capoeirista se utiliza da cabeça,
impulsionando-a em direção ao corpo do outro capoeirista como forma de ataque e defesa.
CAPOEIRA ANGOLA: performance, de dinâmica cultural, que mantém através da tradição
oral-corporal os seus ritos e mitos originados da filosofia de ancestralidade das matrizes
africanas no BRA.
CHAMADA: movimento no qual o capoeirista (angoleiro) se posta em posição de pé,
chamando o seu parceiro para retomar o ritmo do jogo. Por sua vez, o outro capoeirista vai no
pé-do-berimbau louva a roda e os ancestrais e volta, posicionando-se em um corpo-a-corpo
com o seu parceiro em movimentos de passos para a frente e para trás, momento de atenção e
227
As informações contidas neste glossário são referentes ao conhecimento do autor desta Pesquisa quanto à
Capoeira Angola tanto como professor quanto como aluno.
189
G
GINGA: movimento do corpo na Capoeira Angola, que se constitui a partir da unidade
dinâmica do triângulo, gerada da triangulação de 3 pontos que são alternados pelos passos do
capoeirista em cruzamentos constantes. Base de todos os movimentos do corpo no jogo-luta-
dança da Capoeira Angola.
L
LADAINHA: canto de louvação aos ritos e mitos da Capoeira Angola, primeiro canto que dá
início ao ritual da roda, normalmente, trata-se de narrativas que contam e remontam histórias e
causos sobre os capoeiristas em suas relações com o cotidiano e a natureza.
M
MANDINGA: percepção totalizante do corpo na dinâmica da Capoeira Angola, expressa no
jeito de corpo do jogar, dançar, lutar, tocar e cantar da(s) ou do(s) capoeirista(s).
MEIA-LUA: movimento em posição vertical, no qual o capoeirista com os pés apoiados
sobre o chão desloca a perna posicionada atrás, lançando-a à sua frente e retornando a sua
origem, perfazendo o desenho de uma meia-lua.
N
NEGATIVA: movimento (defesa) no chão no qual o corpo do capoeirista, em posição
agachada, com os 2 pés paralelos e uma perna estirada e outra encolhida, postando-se no
plano horizontal, com as duas mãos sobre o solo e os braços protegendo o rosto.
R
RABO-DE-ARRAIA: movimento (golpe) no qual o corpo do capoeirista perfaz a forma de
um círculo, com uma perna estirada, apoiando-se sobre 3 pontos com as duas mãos e um pé
sobre o chão. O mesmo, se visto de cima, se assimila a forma da Raia (peixe).
190
ROLÊ: movimento circular no qual o corpo gira, em torno dele mesmo, no plano horizontal.
O capoeirista, sentado sobre um dos pés, com as duas mãos apoiadas no chão e com uma perna
estirada, move o seu tronco tirando a mão do lado da perna estirada e, lançando-a por cima
da cabeça, faz um giro sobre si mesmo retornando ao local de origem.
T
TESOURA: movimento (ataque ou defesa) em que o corpo desce miudinho no plano
horizontal constituindo-se, no desenho, a forma de uma tesoura. Este movimento se dá com o
capoeirista de cócoras, apoiando-se, lateralmente, nos 2 braços, com as mãos sobre o chão, ele
vai deslizando suas pernas, abrindo-as e movendo-as, rasteiramente, na direção do seu
parceiro.
191
PPGAV
BOLSISTA: Marco Aurélio Alcântara Damaceno
MATRÍCULA: 113001105
1 BREVE INTRODUÇÃO
2 ATIVIDADES DESENVOLVIDAS
3 DIFICULDADES ENCONTRADAS
• Serviço de migração regido por um sistema muito burocrático, não foi concedido o
visto de pesquisador para a pesquisa ser realizada em 4 meses, mesmo com a apresentação de
todos os documentos, inclusive, a carta de anuência do tutor em ANG, só foi concedido no
consulado de ANG no RJ o visto ordinário válido por 3 meses. Essa foi a maior dificuldade
encontrada, pois fez-se várias tentativas de prorrogar por mais 1 mês a estadia, em Lubango,
inclusive, com o apoio do ISPH, contudo, sem êxito;
• Hospedagem distante e a não existência de transporte público após as 18 horas. Mas,
em compensação, os angolanos são muito receptivos e à adaptação a cultura local ocorreu de
forma bastante fluida. Há muita semelhança com o comportamento do povo brasileiro, sendo
este, um fator positivo no processo da investigação.
4 RESULTADOS ALCANÇADOS
228
Nhaneca-humbi: grupo etno-linguístico Bantu.
194
571/>. Vale ressaltar que este foi um trabalho de Pesquisa gerado na interação com o decano
do ISPH, o Prof. Dr. Alberto Raimundo Watchilambi Wapota, o mesmo se propõe a dar
continuidade em um processo de investigação sobre as raízes ancestrais da cultura Angolana-
Bantu.
• Pela especificidade da Pesquisa e suas sutilezas, a imersão na cultura angolana e a
orientação in loco tornaram-se fundamentais para a assimilação dos elementos simbólicos do
Cosmograma Bakongo. Tornou-se importante, neste sentido, a observação e vivência na
cultura angolana durante 3 meses. Neste período, foram realizadas capturas de imagens em
fotografias (FOTOS 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57 e 58) e vídeo, a partir das derivas realizadas nos
lugares e municípios de ANG (imagens que, após a edição, vão integrar o material expositivo
desta Pesquisa). São imagens que fazem parte e constituem este processo de investigação
poético-visual as quais refletem comportamentos e hábitos e podem ser traduzidas como
imagens arquetípicas. A vivência nesta Pesquisa de campo contribuiu para identificar uma
possível mudança no paradigma229 sobre as imagens míticas da Capoeira Angola em suas
relações de origem com a dança das zebras que se referem ao mito de origem do Engolo.
_____________________________________________________
Marco Aurélio Alcântara Damaceno
Doutorando PPGAV / UFRJ
229
Paradigma: do mito da origem do Engolo e sua relação com a dança das zebras.
195