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Apresentação:

Prefácios, introduções ou apresentações abrem e fecham um texto. São guias dos


significados, introduzem, dizem como iniciar, por onde começar, como ler, estabilizam a
tagarelice das palavras escritas na intenção apresentada pelo autor – abre para a possibilidade do
texto e o fecha para outras, enclausura o texto em um limite. Adianta ou antecipa o significado
do que está porvir, garantindo que sempre seja o mesmo.

O objetivo geral deste texto é estar à sombra desse problema. Como escrever um texto
aberto, que deixe brechas e janelas que permitam entrar e sair de outras maneiras, numa
arquitetura vazada, ou que se deixe inconclusivo – nunca presente tal como ele é, nunca pleno?
Que comporte sempre mais, sempre mais um e mais que um, imedível e incalculável. Uma zona
de indeterminação, dissenso, indecidibilidade, sempre indistinta <<entre>> coisas sem nunca dar
plenamente seu significado, um entre-lugar que não pode ser localizado nem no campo do
mesmo nem como outro – oscilando entre o mesmo e o outro, algo mais que o mesmo e que o
outro.

Dedicar-se ao problema da alteridade, à questão do <<outro>>, é também tatear outra


pergunta: o que significa estar aberto? Entregar-se à outridade; o que é entregar sua vida ao
<<outro>>? É possível falar <<fora>> ou <<nos limites>> da branquitude? O que fazer com
minha (branca) herança? Como viver <<em prol>> do outro? Por isso esse <<prefácio>>, á
maneira de uma porta que abre e fecha a interpretação do que se segue, é também um
posicionamento. Que esteja escrito aquilo que velamos: A filosofia, sendo a mitologia branca, a
mais branca das ciências, deve observar o dissenso dentro do mundo branco masculino: as
populações pretas, negras, as mulheres, @s queer, os toxicomaníacos, aqueles brevemente
listados por Vigine Despentes em Teoria King Kong. A desconstrução para mim é uma forma de
justiça.

Outra questão que me levou a escrever isso foi um espanto, uma perturbação que me
assombra e que aqui desejei levantar invés de solucionar. Desejei perturbar-los, à vocês, leitores.
À alguns leitores. Sou assombrado por uma indecidibilidade entre amor e critica pela filosofia e
pelo fantasma da América-latina, colonial e brasileira.
Quanto a situação brasileira isso assume a forma de uma interdição que não é nem
festejar nossa suposta situação antropofágica e aberta à alteridade no <<entre-lugar do discurso
latino americano>>, devido o ruído da violência machista, racial e colonial imanente à esse
encontro com o <<outro>>, nem, tampouco, permite tachar-nos e definir nossa natureza como
homofóbica preconceituosa, e assim decretar sua falência escatológica (me recuso a dizer que a
versão opressora é nossa natureza). É importante ter amor pelas minhas raízes, nossos ritmos,
nosso despojado local periférico, nossa cultura e nossa memória – não aquelas vendidas como a
oficial, mas justamente na nossa aversão à oficialidade, uma forma de escrever a cultura que
comporta memórias múltiplas e faz circular outras tantas minoritárias, múltiplos fantasmas que a
oficialidade tenta exorcizar. O suposto <<acolhimento>> social multiétinico brasileiro muitas
vezes está a serviço, como no caso da ditadura e dos cientistas eugenistas, de um apagamento da
alteridade e da exclusão do diferente, do dissenso dentro do mundo branco.

Cortejo desenclausurar o Brasil das redes daquilo que se entende pela identidade
brasileira ou o brasileiro autêntico; abri-lo e deixá-lo incompleto de forma que o jogo do que se
passa por ele, por sua face, nunca seja encerrado. Que ele seja todas as possibilidades não sendo
nenhuma delas, que tudo possa ser (d)escrito brasileiro, sem que nem tudo possa se-lo,
valorizando a diferença invés de apagá-la. Dito de outra forma, perturbar, tornar perturbador o
que se passa pela identidade brasileira. Meu intuito não é nem uma solução messiânica – ela é
uma problemática incompletude inclusiva devendo ser sempre aprimorada – nem uma declaração
de falência escatológica – nossa alteridade é uma idéia que cortejo, permanece promissora.
Enfim, de que formas podemos escrever o lugar comum de que nosso próprio natural é não ter
natureza própria?

Quanto a filosofia, esta me forma e informa. Eu a amo e queria salva-la, dentro da


medida em que salva-se o que perde-se, o que se vai. Deste modo, salva-la, mas, não para
purificá-la do que não lhe pertencia, como se esses elementos fossem infiltrações corruptas
estrangeiras, ao invés, queria salva-la das dinâmicas preconceituosas que ela mesma movimenta,
das barreiras e segregações que ela mesma põe em jogo, de seu próprio. Não estabilizá-la
protegida em seu núcleo. Não. Desejo justamente abri-la a tudo que ela possa ser, o completo
oposto de cristaliza-la. Desejo seu desencarceramento, de sua asfixia por si mesma, pela sua
definição, pelo limite de como podia ser traduzida, do machismo e do sexismo, da homofobia, do
racismo, do classismo e etc. Uma salvação não messiânica, que não a salva nem condena – que
não resolve ou apazigua, sempre incompleta e perturbadora.

Peço, portanto, que este não seja lido fora desse limite, dessa aporia, mas nos limites
disso – até onde isso, o desejo de justiça social junto à diferença cultural, pode ir? Peço também,
complacência, dado que os capítulos comunicam-se e que nenhum poder ser lido isoladamente –
puramente – sem o assombro do outro, dessa maneira expresso que um de meus maiores temores
é a descontextualização de certas partes para que estas sirvam a posições que aqui, abertamente,
são combatidas. Para apaziguar o racismo e o machismo invés de evidenciá-lo.

Por fim, é curioso que toda introdução é, também, uma forma de explicação, explica o
que está por vir. Se o texto estivesse presente – se minhas intenções estivessem presentes – não
haveria necessidade de explicação. Não se pode prescindir de um contexto, do outro, de uma
explicação para entender o texto. O prefácio já é um outro ele mesmo. Portanto, se um prefácio
adianta o significado do livro, ele também denuncia a lógica de uma certa ausência do texto, de
qual seria exatamente sua natureza, de como lê-lo, qual seu significado próprio, legítimo e
autêntico. Toda explicação é, também, um suplemento: um enxerto, uma coisa externa ao texto
que se soma à sua presença até o ponto de ser sua suplente na sua ausência, ou seja: uma
explicação se passa pela coisa. O sentido de um texto – que se considera a presença de algo – é
só um rastro na cadeia de suplementos. Toda presença precisa do externo, do outro, para fazer
constituir-se, nada sendo original e sendo todo texto um comentário, uma nota de rodapé de
outro texto anteriormente escrito que a ele soma-se para causar o efeito de presença (um
fantasma que vem junto) e, ao mesmo tempo, um prefácio a um livro ainda não escrito. Dessa
maneira peço permissão para me suprir, encerrando essa apresentação e começando a
dissertação, com as palavras do outro, de outro – sempre se começa e se termina no outro. O que
almejo que aconteça à cultura e à filosofia é similar ao que Derrida sonhava que ocorresse com a
língua francesa:

Que sonho? Não o de fazer mal à língua (nada existe que eu respeite e ame
tanto), não o de a lesar ou a ferir [...], não o de a maltratar, a esta língua, na sua
gramática, na sua sintaxe, no seu léxico, no corpo de regras ou de normas que
constituem a sua lei, na ereção que a constitui a ela mesma em lei. Mas o sonho que
então devia começar a sonhar-se era o de talvez fazer com que lhe acontecesse qualquer
coisa, a esta língua. Desejo de a fazer chegar aqui fazendo com que lhe acontecesse
qualquer coisa, a esta língua que todavia permanece intacta, sempre venerável e
venerada, adorada na oração das suas palavras e nas obrigações que aí se contraem,
fazendo com que lhe acontecesse qualquer coisa de tão interior que ela nem estava mais
em condição de protestar sem ao mesmo tempo estar obrigada a protestar contra sua
própria emanação, a que ela não podia opor-se senão através de hediondos e
inconfessáveis sintomas, qualquer coisa de tão interior que ela acaba por fruir com isso
como de si-mesma no momento de se perder encontrando-se, convertendo-se a si-
mesma, [...] obrigando-a então a falar, ela-mesma, a língua, na sua língua,
diferentemente. (DERRIDA, XXXX, p.69, grifos do autor)

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