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Convergências entre políticas públicas e privadas na História do Ensino das


Artes no Brasil

Era uma vez…a obrigatoriedade do Ensino das Artes no currículo do Ensino


Médio

Ana Mae Barbosa


anamaebarbosa@gmail.com
ECA/USP; Anhembi Morumbi

Mais uma vez o Brasil copia o sistema de Educação dos Estados Unidos operando reduções
comprometedoras para a aprendizagem de nossos jovens em nome da economia de verbas.
A Ditadura de 64 copiou o sistema americano minimizando a qualidade quando tornou a Arte
obrigatória no Ensino de Primeiro e Segundo Graus com o objetivo de mascarar humanisticamente o excessivo
tecnologismo da reforma educacional imposta que pretendia profissionalizar os adolescentes a partir da sétima
série .No processo de redução do modelo americano para país pobre criou a figura absurda do professor
polivalente que com dois anos de formação deveria ensinar Música , Teatro , Artes Plásticas, Artes Cênicas , e
Desenho Geométrico a partir do quinto ano do Primeiro Grau e no que hoje chamamos Ensino Médio . Claro
que não deu certo e as grandes universidades advertiram imediatamente acerca do absurdo epistemológico de se
querer formar arremedo de Leonardo da Vincis no século XX.
Agora a coisa é pior, estão retirando do Ensino Médio a obrigatoriedade do Ensino das Artes,
duramente ampliada pela luta dos Arte/Educadores reunidos na Federação de Arte /Educadores do Brasil
(FAEB), que em abril deste ano conseguiu fazer aprovar no Senado a obrigatoriedade de Música, Teatro, Artes
Visuais e Dança antes não incluída.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra os alunos de “high school” escolhem um certo número de
disciplinas de um enorme cardápio de disciplinas que a escola oferece. Entre as disciplinas oferecidas estão todas
as áreas das Artes.
Inglês é obrigatório, mas para cada semestre são oferecidos diferentes cursos e o aluno escolhe que tipo
de curso quer fazer. Lembro-me que meu filho no primeiro ano de high school escolheu como disciplina
obrigatória um curso de inglês baseado em William Shakespeare no qual teve de decorar vários trechos de peças
que não esqueceu até hoje, no semestre seguinte escolheu um curso de inglês baseado em notícias de jornais mais
fácil e metodologicamente menos conservador. Não é obrigatório o aluno escolher Artes, mas é obrigatório a
escola oferecer todas as Artes. Quando fiz Pós-Doutoramento na Inglaterra minha filha de 15 anos me
acompanhou. A escola só permitia escolher quatro disciplinas por semestre e ela foi obrigada a escolher Inglês,
Matemática, História e uma disciplina em Ciências para ter o semestre reconhecido no Brasil. Entretanto foi
colocada para fazer deveres de casa e outras obrigações na sala de uma professora (room teacher) de Artes
Visuais. Não demorou muito a professora perguntou porque ela não escolhera Artes se gostava tanto e diante do
argumento burocrático combinou que ela faria Artes Visuais escondido, extraoficialmente. Enquanto era tratada
como estranha nas outras aulas, na aula de Artes Visuais fez amigas e se entrosou.
Não se discute mais nestes países, que o governo do Brasil pretende imitar embora sob um olhar redutor, a
importância do Ensino das Artes na Escola.
Foi fundamental nos Estados Unidos a descoberta nos anos 90 de que os alunos que por 10 anos
tiveram as melhores notas no teste SAT, equivalente ao ENEM, todos haviam tido alguma disciplina de Artes
em seu currículo. Passou-se então a estudar o ensino das Artes em referência à transferência cognitiva. As
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perguntas eram: O que se aprende e o como se aprende Artes é transferível para outras disciplinas? O
desenvolvimento mental que as Artes proporcionam é aplicável ao modo como se aprende as outras disciplinas?
James Catterrall1 dedicou grande parte de sua vida pesquisando as pesquisas que provam que as Artes
desenvolvem a cognição do indivíduo, cognição esta que pode ser aplicada a outras áreas do conhecimento.
Chegou a conclusão de que as Artes desenvolvem até a inteligência medida pelo teste QI que é apenas uma parte
da inteligência, a inteligência racional. Encontrou apenas quatro pesquisas provando a transferência de
aprendizagem das Artes Visuais para outras áreas. Estas pesquisas demonstraram que o estudo de Desenho
aumenta a qualidade de organização da escrita; raciocinar sobre Arte desenvolve a capacidade de raciocinar sobre
imagens científicas; a análise de imagens da Arte propicia a capacidade de leitura mais sofisticada, interpretação
de textos e inter-relacionamento de diferentes textos. Enfim, a “instrução em Artes Visuais” desenvolve a
prontidão para a leitura compreensiva, foi uma das conclusões das quatro pesquisas que Catterrall analisou. Já, o
número de pesquisas provando a transferência de cognição em Teatro para outras áreas foi quase cinco vezes
maior o que o levou a identificar também maior número de consequências positivas da experiência em Teatro
para o comportamento cognitivo dos jovens de ensino médio .
Maior compreensão da leitura oral de textos
Maior compreensão do discurso oral.
O aumento da interação entre pares.
Capacidade de escrever com eficiência e prolixidade
Habilidades de resolução de conflitos.
Concentração de pensamento
Habilidades para compreender as relações sociais.
Capacidade para compreender problemas complexos e emoções.
Engajamento.
Habilidade de interpretação de textos não relacionados.
Disposição e capacidade de desenvolver estratégias para resolução de problemas
Nas pesquisas sobre as Artes Integradas, que não podem ser confundidas com a perversa polivalência,
mas que tem cada Arte o seu professor todos trabalhando interdisciplinarmente, foram comprovados avanços
individuais e coletivos em:
Autoconfiança.
Melhoria do autoconceito.
Capacidade de assumir riscos
Concentração de atenção.
Perseverança.
Empatia pelos outros.
Auto iniciação à aprendizagem

1 James Catterral. The Arts and the Transfer of Learning.


http://209.59.135.52/resources/toolkits/criticallinks/cl_overview.pdf pag 151 a 157
As pesquisas sobre transferência de aprendizagem das Artes para outras áreas que James Catterrrall examinou foram
imediatas, não houve um decurso de tempo entre as aulas de Artes e os testes aplicados .
Provavelmente se houvesse um tempo de espera os resultados seriam mais positivos ainda do ponto de vista da
transferência
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Persistência em tarefas difíceis.


Aprendizagem autoral
Habilidades de colaboração.
Liderança.
Evasão reduzidas.
Aspirações educacionais mais altas
Habilidades de pensamento de ordem superior.
A lista de transferência cognitiva da Música para outras áreas não artísticas de conhecimento é grande
também e inclui desenvolvimento em Matemática e em percepção espacial e espaço/temporal.
Retirar Arte das Escolas de Ensino Médio, portanto de adolescentes é reduzir a possibilidade do
desenvolvimento de habilidades importantes em outras disciplinas além das Artes.
Por outro lado, que outra disciplina desenvolve o que é específico das Artes? Qual a disciplina no currículo
que desenvolve especificamente a percepção e discriminação visuais? As Artes Visuais e nenhuma outra
mais. Qual a que prepara para a leitura da imagem? As Artes Visuais. A leitura do discurso Visual, que não se
resume só a uma análise de forma, cor, linha, volume, equilíbrio, movimento, ritmo, mas principalmente é
centrada na significação que estes atributos em diferentes contextos conferem à imagem é um imperativo
da contemporaneidade. Os modos de recepção da obra de Arte e da imagem ao ampliarem o significado da
própria obra a ela se incorporam.
Não se trata mais de perguntar o que o artista quis dizer em uma obra, mas o que a obra nos diz, aqui e
agora em nosso contexto e o que disse em outros contextos históricos a outros leitores.
Em nossa vida diária, estamos rodeados por imagens veiculadas pela mídia, vendendo produtos, ideias,
conceitos, comportamentos, slogans políticos etc
A leitura das imagens fixas e móveis da publicidade e da Arte na Escola nos exercita a consciência acerca
daquilo que aprendemos através da imagem. Por outro lado, na Escola, a leitura da obra de Arte prepara o
grande público para a recepção de obras de Arte e nesse sentido Arte/ Educação é também mediação entre
Arte e Público. Tirar as Artes da escola e depois clamar por meios de “ampliação de plateia” para Teatro ou
Cinema é uma contradição.

Outro aspecto importante da Arte na Escola em nossos dias é o fato de se reconhecer que o conhecimento
da imagem é de fundamental importância não só para o desenvolvimento da subjetividade mas também para o
desenvolvimento profissional.

Um grande número de trabalhos e profissões estão direta ou indiretamente relacionados à arte comercial e
propaganda, outdoors, cinema, vídeo, fotografia, à publicação de livros e revistas, à produção de Cds, cenários
para a televisão, e aos campos do design para a moda , indústria têxtil, design gráfico, design digital, games,
decoração etc. Não posso conceber um bom designer gráfico que não possua algumas informações de História
da Arte. Não só designers gráficos, mas muitos outros profissionais similares poderiam ser mais eficientes se
conhecessem, fizessem arte e tivessem desenvolvido sua capacidade analítica através da interpretação dos
trabalhos artísticos em seu contexto histórico. Tomei conhecimento de uma pesquisa que constatou que os
camera men da televisão são mais eficientes quando tiveram algum contato sistemático com apreciação da arte.
O conhecimento crítico de como os conceitos visuais, sociais e históricos aparecem na arte, como eles têm
sido percebidos, redefinidos, redesignados, distorcidos, descartados, reapropriados, reformulados, justificados e
criticados em seus processos construtivos, ilumina a prática da arte, mesmo quando essa prática é meramente
comercial.
Até agora usei argumentos de ordem objetiva e resultado de pesquisas para demonstrar a importância do
ensino das Artes por que a educação emocional não interessa a políticos que em educação almejam apenas ver o
Brasil subir no ranking mundial, reduzindo ao mínimo o que tem de ser aprendido e criando testes para provar
que a aprendizagem foi realizada .
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Mas quero ressaltar a importância das experiências com Artes na adolescência , idade difícil, de
mudanças hormonais , corporais, de modo de pensar e sentir, de início de autonomia na vida privada e na
sociedade, de inter- limites , ora sendo tratados como adultos ora sendo vistos como crianças .A linguagem
presentacional das Artes articula a cognição através da integração do pensamento racional , afetivo e emocional
numa escola a qual só interessa a linguagem discursiva e cientifica das evidencias. A minha geração fez sua
educação emocional a margem da escola nos filmes de Hollywood , a geração da minha filha nas novelas da
Globo e esta geração ?
As gerações de hoje educadas com Artes nas Escolas já estão lotando as exposições de Artes Visuais, os
cinemas e os teatros. O ensino atual inter-relaciona o fazer Arte, a leitura da obra de Arte ou da imagem e a
contextualização do que se faz e do que se vê (Abordagem Triangular) Como resultado deste novo ensino os
Centros Culturais não são mais exclusividade das elites, jovens que nasceram pobres estão usufruindo das Artes
porque tiveram bons professores de Artes nas Escolas públicas. Vamos perder esta conquista se as Artes não
forem incluídas no Ensino Médio. Apelo aos artistas para que façam campanha e salvem o direito às Artes das
próximas gerações. A educação do corpo foi salva pelas olimpíadas e pelo apelo de um apresentador da TV
Globo. Nós das Artes, que podemos fazer para que os ”homens do poder” nos ouçam?
Segundo as pesquisas nós próprios seriamos menos inteligentes se não tivéssemos experiência com as Artes
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A poética e política do Curso Intensivo de Arte na Educação

Sidiney Peterson2
sidney.peterson@gmail.com
Instituto de Artes - UNESP

Resumo: A proposta do trabalho é tratar sobre o Curso Intensivo de Arte na Educação, criado na Escolinha de Arte do
Brasil, na cidade do Rio de Janeiro- RJ, em 1961. Consciente da impossibilidade de abarcar ‘toda e verdadeira
história’ sobre o CIAE, nem é o meu objetivo, pretendo aqui construir uma narrativa, a partir das brechas na
história concebida (DIDI-HUBERMAN, 2012), recorrendo aos cantos da experiência (LARROSA, 2015) de Noêmia
Varela, coordenadora técnica e pedagógica do CIAE, entre 1961 e 1981 e, os ecos desses cantos: Ana Mae
Barbosa (1986, 2015), Lucimar Bello Frange (2001), Fernando Azevedo (2000), entre outros, conforme se
apresente a necessidade. Os textos, as entrevistas e os registros de Noêmia Varela, são aqui trabalhados como
arquivos (DIDI-HUBERMAN, 2012), e como arquivos, são entendidos não como um ‘stock’ de que se retirariam
coisas por prazer, o arquivo, é constantemente uma falta (...) ele quebra as imagens preconcebidas, oferece nele próprio, a
cada descoberta, uma brecha na história concebida3.

Palavras-Chave: História, Ensino de Artes, Curso Intensivo de Arte na Educação

Résumé: Le but de cette étude est de traiter sur le ‘Curso Intensivo de Arte na Educação’ (CIAE), créée en
Escolinha de Arte doBrasil (EAB), à Rio de Janeiro-RJ en 1961. Conscient de l'impossibilité d'embrasser «tout et
histoire vraie» sur le CIAE, ni est mon but, je veux ici pour construire un récit de violations histoire conçue
(DIDI-HUBERMAN, 2012), en utilisant les coins de l'expérience (Larrosa, 2015) Noemia Varela, coordinateur
technique et pédagogique de CIAE, entre 1961 et 1981, et les échos de ces chansons: Ana Mae Barbosa (1986,
2015), Lucimar Frange Bello (2001), Fernando Azevedo (2000), entre autres, la nécessité présente. Les textes,
interviews et dossiers de Noemia Varela, ici travaillé en tant que fichiers (DIDI-HUBERMAN, 2012), et sous
forme de fichiers, sont compris non pas comme un «stock» qui retire les choses pour le plaisir, le fichier est
constamment un manque (...) il se casse les images préconçues, offre lui-même, chaque découverte, une brèche
dans l'histoire conçue.

Mots-clés: l'histoire, l'éducation artistique, Curso Intensivo de Arte na Educação.

A história se constrói em torno de lacunas que perpetuamente se questionam, sem nunca serem totalmente
preenchidas,

Georges Didi-Huberman4, Imagens apesar de tudo, 2012.

1958- 1963: período de efervescência no campo educacional e cultural no Brasil

Em seus escritos sobre História do Ensino de Artes no Brasil, a arte-educadora Ana Mae Barbosa
(2011) já apontava que para se compreender a Arte/Educação no Brasil hoje ou qualquer outra manifestação social, faz-se
necessário compreender a dinâmica, nos campos educacionais e culturais, do período de 1958- 1963, pois, afirma a autora, é
nesse período que a educação dá um passo decisivo em direção a sua emancipação (BARBOSA, 1982, p. 18).

2 Doutorando no PPG em Artes do Instituto de Artes- UNESP, com pesquisa que está sendo realizada com apoio da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)- Processo nº 2016/05781-9
3 Concepção de ‘arquivo’ por Arlete Farge citada por DIDI-HUBERMAN (2012, p. 130).
4 DIDI-HUBERMAN, G. (2012, p. 132-133).
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Trata-se de um período em que o projeto econômico nacional-desenvolvimentista se constituiu como


projeto de modernização do país. De acordo com o sociólogo Octávio Ianni, o desenvolvimento desse modelo
permitiu a democratização das relações políticas e sociais, a expansão do sistema educacional, a conquista de direitos políticos e
benefícios sociais, por parte das classes médias e operárias (IANNI, 1968, p. 08), além de outras transformações
institucionais importantes. Foi durante este momento, politicamente intenso com as manifestações estudantis, a união
de trabalhadores e ligas camponesas que a cultura e a educação brasileiras atingiram um alto grau de auto-identificação
(BARBOSA, 2011, p. 45).
Do referido período, Ana Mae Barbosa destaca na educação geral e, especificamente, no campo de
ensino de artes, diferentes dinâmicas que ocasionaram uma renovação educacional e cultural no país, entre elas: o
desenvolvimento das concepções de Paulo Freire; a criação da Universidade de Brasília; o decreto da Primeira Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional; a organização de Classes experimentais (sancionada por Lei Federal), o que permitiu o
desenvolvimento de uma atitude voltada para a experimentação em arte nas escolas comuns (BARBOSA, 2011, p. 43).
No campo da educação não formal, a Escolinha de Arte do Brasil, em funcionamento na cidade do
Rio de Janeiro-RJ, desde 1948, se afirmava, no cenário educacional, como experiência modelo de um processo
que se apoia na arte para desenvolver a capacidade criadora da criança. Em pouco tempo, a Escolinha de Arte do
Brasil, além de permanecer oferecendo atividades em suas classes de arte para crianças, tornou-se um centro de
treinamento de professores de artes (BARBOSA, 1984, p. 15).
No campo da educação não formal, a Escolinha de Arte do Brasil, em funcionamento na cidade do
Rio de Janeiro-RJ, desde 1948, se afirmava, no cenário educacional, como espaço de referência no campo de
formação de professores de artes. No relatório de pesquisa denominado ‘Escolinha de Arte do Brasil: análise de
uma experiência no processo educacional brasileiro5’, a arte–educadora Noêmia Varela enfatiza que: o período áureo
da Escolinha foi o final da década de 1950 até meados da década de 1970 (...) De certo modo, porque, estivemos acumulando e
preparando subsídios, incentivando a preparação de recursos humanos para a educação e dando direta e indiretamente contribuições
para o Ministério da Educação e Cultura6. Depoimento que contribui para pensarmos sobre: o período mencionado
por Ana Mae Barbosa (1958- 1963) como um momento especial para a educação (formal), mas também para o
campo das práticas realizadas na educação não formal.

Assim, as ações desenvolvidas no âmbito da Escolinha de Arte do Brasil passaram a estimular a


criação de outras Escolinhas em diversos Estados (BARBOSA, 1984, p. 15)7, expansão que originou o Movimento
Escolinhas de Arte (MEA) que, até 1981 congregava 144 Escolinhas8 em funcionamento, considerando as
Escolinhas abertas no Brasil, Paraguai, Argentina e Portugal.

Os cursos de formação de professores realizados na Escolinha de Arte do Brasil e, em outras


Escolinhas espalhadas pelo Brasil, disseminaram os princípios filosóficos e metodológicos fundamentais para a

5 Até a escrita do trabalho este documento não foi publicado, na integra. Partes do mesmo compõe a obra: Escolinha de
Arte do Brasil, publicada em 1980, pelo INEP.
6 Trechos de entrevista de Noêmia Varela que compõe o relatório de pesquisa Escolinha de Arte do Brasil: análise de uma

experiência no processo educacional brasileiro,1978, p. 418- 425.


7 Algumas Escolinhas já haviam sido abertas até 1958, a contagem realizada no no relatório de pesquisa Escolinha de Arte

do Brasil: análise de uma experiência no processo educacional brasileiro,1978, p. 525-538, aponta que até 1958: 20
Escolinhas já funcionavam em território nacional.
8 Contagem realizada no relatório de pesquisa Escolinha de Arte do Brasil: análise de uma experiência no processo

educacional brasileiro,1978, p. 525-538.


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Escolinha de Arte do Brasil, princípios que começam a se fazer presentes na escola primária e secundária. A Escolinha
de Arte do Brasil ganhou visibilidade, passou a ser considerada como uma referência na elaboração e realização de
cursos voltados para a formação de professores. Com isso, as Escolinhas passaram a ser consideradas como uma espécie de
consultores de arte-educação para o sistema escolar público (BARBOSA, 1984, p. 15-16).

Não somos mais uma Escolinha e sim um Movimento9.

Em 21 de junho de 1959, a arte-educadora Noêmia Varela passa a integrar a equipe de profissionais


que coordenavam as ações realizadas na Escolinha de Arte do Brasil. Sobre deixar a cidade do Recife, a
Escolinha de Arte do Recife que dirigia e a cadeira na Escola de Belas Artes daquele Estado e seguir para o Rio
de Janeiro para trabalhar na EAB, ela revela que

Em 1958, a cadeira de didática do Curso de Professorado de Desenho [que ensinava desde


1954] não foi ministrada. Por esse motivo estava livre desse compromisso, tendo ensejo de
ficar no Rio. Podia viajar, fazer o que quisesse. Mas, em 1959, deveria reassumir, deveria voltar
ao Recife. Este foi um momento decisivo e daí o passo ainda mais decisivo que tomei. Deixei a
cadeira de Didática da Escola de Belas Artes e passei a viver na provisória-permanência da
Escolinha de Arte do Brasil, na riqueza de toda experiência dessa Escolinha 10.

Na Escolinha de Arte do Recife, Noêmia Varela era diretora técnica, cargo que passou a ocupar na
Escolinha de Arte do Brasil além de coordenadora pedagógica. Para Noêmia Varela, era algo muito importante a
abertura de novas Escolinhas de Arte, contudo, ponderava que a medida em que o movimento foi se divulgando
mais e mais, muitas ‘escolinhas’ foram fundadas sem a necessária vinculação ideológica e formativa com a experiência do Rio de
Janeiro, porque o Brasil não é brincadeira, é grande, e há outro aspecto, iniciativas de sucesso ficam na moda11.
Como combater um propenso desgaste do Movimento e da nomenclatura ‘Escolinha? Como
combater possíveis práticas inócuas e trabalhar no sentido de expandir as diretrizes filosóficas e metodológicas
da EAB? É neste ponto que entra em ação uma das principais políticas educacionais coordenadas por Noêmia
Varela na Escolinha de Arte do Brasil: O Curso Intensivo de Arte na Educação, um curso de formação que,
entendemos, se constituiu como base de sustentação do Movimento Escolinhas de Arte, como também uma
política de expansão da filosofia desse movimento: a educação através da arte.
Em carta destinada ao artista pernambucano Augusto Rodrigues, um dos fundadores da Escolinha de
Arte do Brasil, Noêmia Varela, já em 1958, revela seu interesse em criar um curso de formação de professores,
abaixo alguns trechos da carta:

Recife, 24 de setembro de 1958.

Augusto,

9 Frase de Noêmia Varela In FRANGE, L. (2001, p. 186).


10 Trecho de entrevista com Noêmia Varela que compõe o relatório de pesquisa Escolinha de Arte do Brasil: análise de uma
experiência no processo educacional brasileiro, 1978, p. 420.
11 Idem, p. 424.
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Há dias falei com Raquel Crasto e Paulo Freire sobre o nosso projeto. Com a primeira, por ter
experiência bem próxima do que entendemos como boa orientação de escola pré-primaria e
primária, tendo procurado, no Instituto Capibaribe, respeitar a auto-expressão da criança e
valorizá-la como parte do currículo. Ainda, pelo contato que tem tido com professoras- cursos
para concursos e extensão. Em relação à experiência de Paulo, considero-a, sobretudo, pelo
aspecto objetivo de sua crítica construtiva às nossas ideias. Raquel considera nossa experiência
a base de suas observações diárias. Para ela, as Escolinhas devem funcionar, especialmente,
porque não julga suficiente a atividade artística desenvolvida na escola primária. (...) Há muitos
fatores a considerar em relação à integração da arte na escola. Não bastam diretores
compreensivos- há necessidade de formar professores (...). Em relação ao curso foram essas as
suas sugestões: a) melhor formação para compreensão da criança, de forma mais prática
possível: psicologia do desenvolvimento, psicologia educacional (aprendizagem e motivação)
em função da educação artística. (...) Paulo Freire achou o plano , em suas linhas gerais, ‘um
dos melhores em sua fase inicial de planejamento’, entretanto ‘utópico’ se considerarmos nossa
realidade. (...) Julga que nosso plano deva ser orientado dentro dos objetivos do Ministério de
Educação e Cultura. Precisamos dar ao nosso projeto propósitos claros, imediatos, feição
prática. (Não vejo tão longe, em seus fundamentos, de um plano de desenvolvimento
econômico. Leia o capítulo de ‘ARTE E INDÚSTRIA’, de Read, sobre arte e educação a idade
industrial.). Com essa observação Paulo deseja defender nosso projeto frente ao julgamento do
M. de Educação. Sugeriu também que o curso poderia ter uma parte introdutória- série de
conferências sobre a realidade brasileira no plano da educação de base, levantamento de
problemas críticos da educação entre nós, fundamentação filosófica ligada à arte e educação,
como também à indústria e ao desenvolvimento econômico. Lembrou que o próprio Anísio
Teixeira poderia integrar essa equipe de conferencistas (...). Quanto as matérias do curso,
pensando na formação de professores, opinião de Paulo foi bem clara: além da parte criadora,
do desenvolvimento estético da aluna-professora, focalizar as matérias de cultura geral. Creio
que já temos muitas sugestões a considerar e com elementos comuns. Aguarde a opinião de
[Antônio] Baltar com quem falarei amanhã. (...) Poderemos divulgar amplamente o que de
melhor se fizer durante o curso (entrosamento das Escolinhas). Noêmia. (INEP, 1980, p. 76-
77).

O enunciado nos mostra questionamentos, sugestões e contextualizações presentes no projeto


estruturado a partir de algumas importantes leituras, do ponto de vista educacional, cultural e de experiências
com a educação. Mostra ainda um interesse: o entrosamento das Escolinhas, em suas práticas e fundamentações.
Noêmia Varela sentia a necessidade de estarem preparados teoricamente para enfrentar oposições ao projeto,
construir bases filosóficas, educacionais e culturais para ensinar a ensinar artes. As sugestões do educador Paulo
Freire, dialogam diretamente com o contexto econômico, político e educacional do momento e, Noêmia Varela,
concorda, sugerindo um texto do filósofo inglês Herbert Read12 que aborda, a partir do campo da arte, alguns
temas sugeridos por Paulo Freire, entre eles: sociedade e indústria.
Os estudos, as referências e as experiências de Noêmia Varela foram base para os cursos, por ela
coordenados, na Escolinha de Arte do Brasil. Estes ocorreram, de acordo com os registros do relatório de
pesquisa, já mencionado, a partir do segundo semestre de 1959: um curso de formação de professores que tinha
como tema: a importância da arte para o desenvolvimento da criança. Este curso, realizado em parceria com o INEP,
segue nos registros de 1960- 1962, como ‘curso regular’.

12O pensamento de Herbert Read (91893- 1968) é considerado como a referência mais importante para a pedagogia da arte
que fundamentou o Movimento Escolinhas de Arte. Isso se torna claro quando percebemos que o título de sua obra mais
famosa – Educação Através da Arte, publicada em 1943 – traduz de maneira sintética a filosofia do Movimento Escolinhas de
Arte. Para leituras mais aprofundadas sobre as contribuições de Herbert Read para o MEA, conferir AZEVEDO, Fernando
A. Movimento Escolinhas de Arte: em cena memórias de Noêmia Varela e Ana Mae Barbosa. Dissertação, ECA/USP.
2000.
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É em 1960 que, como aponta Noêmia Varela, foi criado um clima propício para a implantação de novas
experiências, visando com mais força à formação do educador (VARELA, 1973, s/p). Naquele ano, a Escolinha de Arte do
Brasil aceitou para Estágio Intensivo cinco professores de desenho e pintura do Rio Grande do Sul-RS, encaminhados pela
professora e artista Alice Soares13, da Escola de Belas Artes de Porto Alegre. Estas estagiárias estavam interessadas em
trabalhar em Escolinhas de Arte e também em escolas e colégios, seguindo nossa orientação (VARELA 1986, p. 16).

Das análises de Noêmia Varela, coordenadora desse Estágio Intensivo, podemos compreender o
ritmo de trabalho e os desdobramentos dessa experiência. Durante um mês ocorreram debates que reuniam estagiárias e
professores, das 9 às 17 horas, porém o dia de trabalho terminava quase sempre às 20 horas. Esses debates visavam à análise da
experiência Escolinha de Arte do Brasil em sua estrutura e dinâmica, em seus processos e técnicas, em seus princípios
fundamentais (Idem).
Seguindo a análise, durante o Estágio Intensivo, as participantes discutiam textos diversos, havia ainda os
debates sobre como integrar arte no processo educativo, e qual a forma de fundar e fazer funcionar uma Escolinha (VARELA,
1986, P. 16-17). Não apenas fundar, mas criar e fazer funcionar com mais êxitos e, ainda, como melhor preparar o
educador para a avaliação de sua experiência em classe (Idem).
É importante pensar que um dos desdobramentos desse estágio, era a criação de Escolinhas por
profissionais com fundamentação teórico/metodológica. Conforme aponta Noêmia Varela, o Estágio Intensivo
se caracterizou como uma experiência-matriz, de resultados surpreendentes. Até hoje esses estagiários, continuam fazendo
trabalho de nível nas Escolinhas de Arte, como diretores e professores em Colégios e Escolas Normais, sempre em contato com a
nossa Escola (VARELA, 1973, s/p).
Com a procura, por parte de professores de diferentes Estados do Brasil, bem como de outros países
da América do Sul, por realizar estágio na Escolinha e, considerando a abertura de novas Escolinhas, em 1961,
ocorreu na Escolinha de Arte do Brasil, o primeiro Encontro do Movimento Escolinhas de Arte (RODRIGUES, 1980,
p. 78). Encontro que, na visão de Noêmia Varela, deu um novo elã para o Movimento, a partir das avaliações do
Estágio Intensivo, no ano anterior e, com a realização deste encontro, novos impulsos foram dados para
mudanças fundamentais, sobretudo, para a formação de professores14.
Essas mudanças, diz Noemia Varela, ocorreram em um momento decisivo da vida da Escolinha de Arte do
Brasil dos cursos de preparação de professores e da proposta de difusão da importância da integração da arte na educação, 1961
foi um ano áureo e decisivo para o alargamento do Movimento Escolinhas de Arte, a meu ver, porque tivemos meios e propostas
para, por um lado analisar nossa experiência, naquele primeiro encontro e, por outro lado, impulsionar pensamentos de mudanças
estruturais e diretivas. Acredito que toda e qualquer escola deva, de tempos em tempos, partir, como o fez a Escolinha de Arte do
Brasil, para mudanças fundamentais, sobretudo quando isto se realiza num clima de atitudes positivas e colaborativas15.

Na análise que realiza sobre aquele encontro, Noemia Varela fala da importante colaboração de
estagiários na configuração do encontro e das ideias que surgiram dos debates, bem como agradece a atuação do
grupo fundador da Escolinha de Arte do Paraguai, destacando a participação de Olga Blinder e Ramiro

13 Ao lado de Iara Mattos Rodrigues (uma das estagiárias do curso de 1959), Alice Soares fundou a Escolinha de Arte da
Associação Cultural dos Ex-Alunos do Instituto de Artes da UFRGS, em setembro de 1960.
14 Trecho de entrevista com Noêmia Varela que compõe o relatório de pesquisa Escolinha de Arte do Brasil: análise de uma

experiência no processo educacional brasileiro,1978, p. 416-417.


15 Varela, Noemia. Trecho de entrevista registrada no relatório de pesquisa Escolinha de Arte do Brasil, 19778, p. 415-417.
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Dominguez, dois dos fundadores daquela Escolinha, no plano de ação proposto por eles, por outros diretores
presentes, entre eles Beatriz Vettori, fundadora da Escolinha de Arte de Rosário na Argentina e, Iara de Mattos
Amaral que, tendo participado do Estágio Intensivo, naquela ocasião representava, como uma das fundadoras, a
Escolinha de Arte da Associação Cultural de Ex-alunos do Instituto de Artes- UFRGS, aberta naquele mesmo
ano16.
Naquele Encontro, dentre outros assuntos, destaca-se a discussão sobre a definição de novas
diretrizes de integração das Escolinhas com a educação formal e a formulação de novas perspectivas para o
futuro do Movimento Escolinhas de Arte. Tais objetivos buscavam fortalecer o ensino de Artes nas escolas de
Educação básica, em face da Reforma Educacional que se instalara no Brasil, a LDB 4024/61, que transformou o
ensino de Artes, na educação formal em ‘atividade complementar de iniciação artística (FERRAZ; FUSARI, 2009, p. 39).
Com base nas normas adotadas para o ensino de Artes na educação básica, outro ponto de discussão,
entre os participantes daquele encontro, dizia respeito à necessidade de desenvolvimento de um currículo
apoiado na estrutura metodológica das práticas educativas do MEA. Este currículo deveria contemplar a formação de
um novo mestre (RODRIGUES, 1980, p. 81), dentro dos ideais filosóficos e metodológicos daquele movimento.
Com as ideias em discussão, pretendia-se a formação de um professor atualizado, consciente das tendências e
transformações no ensino de Artes. Uma pretensão já experimentada desde 1960, quando foi realizado o Estágio
Intensivo que, apontou para uma nova modalidade de curso (VARELA, 1986).
Essa nova modalidade, citada por Noemia Varela, diz respeito à criação do Curso Intensivo de Arte
na Educação (CIAE), que se configura como marco histórico no processo de formação de professores para o
ensino de Artes no Brasil (AZEVEDO, 2000; FRANGE, 2001), considerando suas proposições teóricas e
metodológicas, baseadas na educação através da arte.

Curso Intensivo de Arte na Educação: trata-se de um curso sui generes17.

Presente na bibliografia que se ocupa da análise do Movimento Escolinhas de Artes no Brasil, Varela
(1986), Barbosa (2008), Antônio (2012), Frange (2001), Azevedo (2000), Nascimento (2005), Silva (2005, 2015),
Ferraz, Fusari (1991, 2009), Lima (2014), o Curso Intensivo de Artes na Educação (CIAE), durante os vinte anos
em que foi realizado (1961- 1981) teve como diretora técnica e pedagógica a arte/educadora Noemia Varela, para
quem a experiência no CIAE pode ser reconhecida como um caminho que buscava por respostas mais adequadas
sobre a formação do professor18.
Em recente revisão histórica, a arte/educadora Ana Mae Barbosa refere-se ao Curso Intensivo de
Arte na Educação (CIAE) como o primeiro curso regular, frequente, continuado, para a formação dos professores modernistas
de Artes no Brasil (2015, p. 394). Foi sob essa orientação identificada como modernista que, em 20 anos de sua
existência, o CIAE formou aproximadamente 1.200 (mil e duzentos) arte/educadores (SILVA, 2015, p. 43) procedentes de

16 rela, Noemia. Trecho de entrevista registrada no relatório de pesquisa Escolinha de Arte do Brasil, 19778, p. 415-417.
17 Frase de Lea Eliott em entrevista sobre o CIAE, concedida, via-email ao autor, em 2013.
18 Trecho de entrevista de Noemia Varela. In: FRANGE, Lucimar B. Noemia Varela e a Artes. Belo Horizonte, C/ Artes.

2001, p. 182.
223

todas as regiões do Brasil, vindos também da Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Peru, Venezuela, Honduras, Panamá,
Portugal, França e Israel (VARELA, 1986, P. 20).
A grande procura pelo CIAE, se por um lado pode ser apontada pela quase inexistência de cursos
dessa natureza no Brasil (ANTONIO, 2012), por outro pode ser entendida pelas inéditas características do curso
oferecido na EAB, entre elas a reestruturação, a cada edição, do seu corpo docente na medida de seu conteúdo,
interesses e necessidades dos alunos e da Escolinha e de nosso sistema educacional19.
Havia, desde as primeiras edições do CIAE, de acordo com a leitura de textos publicados
(BARBOSA, 2008; VARELA, 1986; LIMA 2012, 2014; ANTONIO, 2012 e SILVA 2015), e com a análise de
documentos e depoimentos de participantes desse curso, o interesse em reunir um corpo docente conformado
por diferentes formações e concepções culturais, políticas e educacionais.
Das primeiras edições do CIAE participaram educadoras e educadores brasileiros como Augusto
Rodrigues, Ferreira Gullar, Noemia Varela, Nise da Silveira, Anísio Teixeira, Cecília Conde e docentes oriundos
de outros países como Helena Antipoff e Lea Eliott. Em edições posteriores, são apontados como colaboradores
os brasileiros Abelardo Zaluar, Laís Aderne, Ana Mae Barbosa Liddy Mignone, Silvia Aderne, Maria Lúcia Freire,
Genny Marcondes Ferreira, Pedro Domingues, Edison Carneiro, José Maria Neves, Carlos Cavalcanti, e
educadores argentinos como Maria Fux e Ilo Krugli.

Ainda colaboraram, em diferentes edições do curso, profissionais de áreas diversas como o técnico de
futebol, o artista, o Artesão, a atriz, o crítico de arte, o jornalista e o poeta (VARELA, 1986, p. 18), em palestras e oficinas
que tinham como finalidade a ampliação da percepção dos cursistas participantes. Essa diversidade constituiu
fonte de renovação e transformação do CIAE (VARELA, 1986). Pensamos que essa maneira de propor a
formação tenha relações com aquilo que o educador Paulo Freire sugeriu, em 1958, vide carta de Noemia:
ampliar a formação cultural dos professores além do campo das práticas artísticas.
Como estratégia de renovação conceitual, teórica e metodológica, no intervalo entre uma edição e
outra do CIAE, a partir de 1963, conforme depoimento de Noemia Varela, a Escolinha passou a promover cursos de
curta duração sobre a arte no processo educativo, que foram testados para integração de novos conteúdos nos cursos intensivos20.
Denominados de Ciclos de Estudos, estes cursos de curta duração trataram de diferentes temas como:
Educação Criadora, programado e realizado pelo artista e Creative Educator Tom Hudson21; Desenvolvimento Criador e
Linguagem Pessoal também realizado por Tom Hudson; Linguagem Expressiva e criadora sob a orientação de Ilo
Krugli; Dança na Educação que foi orientado pela especialista desse campo Maria Fux; Educação Musical com Cecília
Conde e Arte na Escola realizado por Noemia Varela e Augusto Rodrigues22. Cada um desses cursos trouxe novos
elementos para a renovação dos programas e corpo docente dos cursos intensivos anuais23.
Em documento datilografado em 1973 é possível verificar que, a edição do Curso Intensivo de Arte
na Educação naquele ano, apresentava a seguinte programação: 04 meses de duração, as segundas e quintas-feiras, das

19 Trecho de entrevista de Noemia Varela. In: FRANGE, Lucimar B. Noemia Varela e a Artes. Belo Horizonte, C/ Artes.
2001, p. 187.
20 Trecho de entrevista de Noemia Varela. In: FRANGE, Lucimar B. Noemia Varela e a Artes. Belo Horizonte, C/ Artes.

2001, p. 187.
21 Forma de apresentação de Tom Hudson no folder original com informação sobre o Curso.
22 Informações verificadas em documentos sobre o CIAE localizados no acervo pessoal da arte/educadora Ana Mae

Barbosa.
23 Idem.
224

10h às 12h e das 14h às 17h; as terças, quartas e sextas-feiras, das 8h30 às 11h30 e das 14h às 16h24. Eram aceitos até 20
alunos por turma (previsão média)25 que deveriam atender aos seguintes requisitos: ser estudante de Artes, pedagogia e áreas
afins, ser professor do 1º e/ou 2º graus, com prática de ensino; professor de Artes (Artes plásticas, música, teatro, literatura, dança,
etc); professor de Artesanato, orientador de ensino, artista26
No conteúdo programático dessa edição constam os seguintes temas:

Ensino criativo/Arte-Educação, Artes e personalidade, criatividade e


desenvolvimento, o processo da ação criativa, o homem e sua Artes, natureza da Arte,
introdução à apreciação artística, a Artes da criança e do adolescente- e seus aspectos
educativos, Arte na educação, experiências criativas, estudos sobre literatura, cinema,
fotografia, dança, teatro e Artes plástica na educação, desenho, pintura, o livro no
processo educativo, rádio e tv de massa, levantamento e pesquisa de outras
experiências criativas, trabalhos práticos com materiais diversos, aulas teóricas e
projeções27

Os conteúdos mencionados acima indicam uma proposta de formação de arte/educadoras (es)


baseada no contato, discussão e experiências com diferentes linguagens artísticas, meios de comunicação e
aprofundamento de saberes acerca de materiais, por meio de aulas teóricas e práticas em um curso com foco no
entrosamento entre arte e educação.
Nosso contato mais atento, com relação ao CIAE, ocorreu durante o desenvolvimento da pesquisa
de mestrado sobre a Escolinha de Artes de São Paulo (EASP)28 em que analisamos as práticas educativas
realizadas nesta instituição e onde verificamos a realização de duas edições do CIAE, ambas em 1971, o que
confirma que o CIAE foi realizado além da Escolinha de Artes do Brasil (EAB) em outras instituições ligadas ao
MEA.
Ao buscar depoimentos que pudessem auxiliar na pesquisa de forma mais ampla sobre o CIAE, em
2013, realizamos entrevistas com Cecília Conde, professora de música na EAB/CIAE e com a educadora e
psicóloga inglesa Lea Eliott, colaboradora nas primeiras edições do CIAE. A análise dessas entrevistas apontou
para diferentes características do CIAE, entre elas determinadas propostas de formação que se aproximavam do
que denominamos de práticas multiculturais. As reflexões sobre tais aspectos resultaram na escrita do texto A
formação de professores no CIAE: perspectivas multiculturais29
Durante o desenvolvimento da pesquisa de mestrado, tendo como fontes recortes de jornais,
depoimentos de professoras e alunas da EASP e em publicações da época, percebemos que se por um lado havia
identificações entre os objetivos do curso oferecido na Escolinha de Artes do Brasil (EAB) e o oferecido na

24 Informações verificadas em documentos sobre o CIAE localizados no acervo pessoal da arte/educadora Ana Mae
Barbosa.
25 Informações verificadas em documento que faz parte do acervo doado por Noemia Varela à Escolinha de Artes do

Recife. Neste projeto, utilizamos uma cópia do mesmo que foi, gentilmente, cedida pela arte/educadora Maria das Vitórias
Negreiros do Amaral, em 2013.
26 Idem.
27
Idem.
28
LIMA, Sidiney Peterson Ferreira de Lima. Escolinha de Artes de São Paulo (EASP): instantes de uma história. Pesquisa
orientada por Rejane Galvão Coutinho e defendida em agosto de 2014, no Instituto de Artes- UNESP.
29
O trabalho foi apresentado durante o II Encuentro de las Ciências Humanas y Tecnológicas para la integración en el
Conosur: Diálogos en nuestra América/ Simposio Latinoamericano de Formación de Professores de Artes:
Investigaciones actuales y sus contextos, 2013, Bogotá.
225

capital paulista, por outro lado diferenças se apresentaram quanto às concepções teórico/metodológicas e
duração de cada edição, o que sugere que cada Escolinha, além de São Paulo30 organizou, interpretou e realizou a
formação de professores de acordo com as necessidades apresentadas, em cada contexto.

É importante ressaltar que, em 1971, ano de realização do CIAE em São Paulo e em outros Estados
brasileiros, entrava em vigor a Lei Federal nº 5692 em que a Educação Artística ganhou espaço e status nos
currículos da educação básica. As implicações decorrentes da aprovação dessa Lei Federal, como a
obrigatoriedade da disciplina Educação Artística no ensino de 1º e 2º graus, aumentaram a procura do Curso Intensivo
de Artes na Educação (VARELA, 1986, p. 19).
Naquele contexto, o Movimento Escolinhas de Arte (MEA), representado por educadores,
psicólogos e artistas teve influência direta na gestão da inclusão da Educação Artística nos currículos, levando o
Ministério da Educação a organizar em conjunto com representantes da EAB o curso denominado: Educação
Artística no Ensino de 1º grau, sob a orientação de Noemia Varela, Maria Helena Novaes e Augusto Rodrigues
(LIMA, COUTINHO, 2012). Este curso, mencionado por Noemia Varela, tinha como público alvo Professores e
Técnicos das Secretarias de Educação31 e apresentava como objetivo a orientação para a implantação da Educação
Artística no currículo escolar de acordo com o artigo 7º da Lei 5692/71 (BARBOSA, 2008). Sobre o curso, no
relatório de pesquisa de 1978, já mencionado, Noêmia Varela revela que havia

Um intenso trabalho de contatos, incentivos junto a indivíduos e instituições. Não negamos


em nenhum momento a importância de tudo isso- em termos de penetração neste grande
Brasil. Buscávamos dar a imagem mais característica da experiência Escolinha de Arte. Uma
surpreendente revelação em 1973: O Departamento de Ensino Fundamental do Ministério da
Educação e Cultura pediu nessa época, à Escolinha de Arte do Brasil para organizar um curso
para 24 professores de todo o país que trabalhavam na reformulação de currículos e novas
propostas curriculares, na área da educação artística. No início do Curso, no primeiro contato
com o grupo de 24 professores participantes dessa iniciativa, ao levantarmos as experiências e
interesses, ficamos sabendo que- fora o representante do DEF, professor Bartolomeu Campos,
de Minas Gerais, e que veio enviado diretamente pelo próprio ministro- dos 24 representantes
de Secretarias de Educação e Cultura de cada unidade da Federação, comente oito tinham
ouvido falar em nossa Escolinha. (...) Eram todos, porém, responsáveis pela área curricular de
educação artística. Eram os indicados a fazer a programação na área de educação artística.
Tomamos aquela informação como forma de analisar nossa experiência dentro dos meios
responsáveis por formar outros professores, fizemos o curso, foi muito inspirador, mas nos
alertou da necessidade de divulgação maior. Estávamos trabalhando com professores da
educação formal, eles eram responsáveis pela arte que chegaria a escola, pela forma com que os
alunos e mesmo os professores teriam contato com a arte. Isso é muito importante e sério32.

1973, ano emblemático para o campo de formação de professores de arte, uma vez que, é neste ano
que são implantados os cursos de Licenciatura Curta em Educação Artística, nas Universidades brasileiras, fruto
da obrigatoriedade do ensino de Artes, com a LDB 5692.

30
No documento Escolinha de Artes do Brasil: análise de uma experiência no processo educacional brasileiro que foi
editado e publicado pelo INEP em 1980, verificamos que até 1981 foram criadas 144 Escolinhas. No mesmo
documento observamos que o CIAE foi oferecido na Escolinha de Artes do Recife, Escolinha de Arte da Associação
Cultural dos Ex-alunos do Instituto de Artes da UFRGS e, dentre as Escolinhas ligadas ao MEA no exterior, na Escolinha
de Artes do Paraguai.
31
Informação verificada no documento de programação do referido curso. Este documento pertence ao acervo
pessoal da Arte/educadora Ana Mae Barbosa.
32
VARELA, Noêmia. Trecho de entrevista que compõe o relatório de pesquisa sobre a Escolinha de Arte do Brasil.
(1978)
226

É possível verificar, a partir das análises empreendidas, a profunda influência do Movimento


Escolinhas de Arte no processo de inclusão da Educação Artística no currículo escolar. As práticas no Curso
Intensivo de Arte na Educação se configuram como ações voltadas para a realização de um desejo, político, de
professores já envolvidos com o MEA de expandir o ideário de educação através da arte na escola de educação
formal, e tinha, o Curso Intensivo de Arte como uma política educacional voltada para a preparação de
arte/educadores, um programa de formação em que teórica e metodologicamente os professores eram
preparados para atuar em Escolinhas e em salas de aula na educação formal (LIMA, COUTINHO, 2012).

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228

Mário de Andrade como gestor cultural: ações arte/educativas voltadas para


crianças na cidade de São Paulo

Rejane Galvão Coutinho


rejanegcoutinho@gmail.com
Instituto de Artes - UNESP

Resumo: A criação de um Departamento de Cultura na gestão do Prefeito Fábio Prado foi uma das primeiras
iniciativas públicas de estabelecimento de um projeto de ação cultural para a cidade de São Paulo. A participação
de Mário de Andrade na elaboração deste projeto e na direção do Departamento nos primeiros anos de
funcionamento (1935-1938) junto com outros intelectuais modernistas fez desta iniciativa um espaço para prática
do ideário modernista na década de 1930. A intenção deste texto é procurar entender o contexto político e
cultural que propiciou o surgimento da Instituição no panorama do início do século XX; apresentar sua proposta
inicial e comentar alguns aspectos do desenrolar do seu funcionamento. A partir do mapeamento desenvolve-se
uma análise mais detalhada da criação dos Parques Infantis procurando desvendar as concepções que
fundamentaram as ações arte/educativas voltadas para crianças.

Palavras-chave: Mário de Andrade; Departamento de Cultura de São Paulo 1935-1938; Parques Infantis de São
Paulo; Políticas públicas e arte/educação; História da arte/educação.

Abstract: The creation of a Cultural Department in the management of the Mayor Fabio Prado for the city of
São Paulo was one of the first public initiatives to establish a cultural project to the city. The participation of
Mário de Andrade in the development of this project and it direction in the first years of operation (1935-1938),
along with other modernist intellectuals, made this initiative a space for modernist ideal practice in the 1930s.
The intent of this article is to understand the political and cultural context that led to the emergence of the
institution in the panorama of the early twentieth century, and comment its initial proposal and some aspects of
the progress of its operation. From this mapping, we develop a more detailed analysis on the creation of the
Parques Infantis (Children playgrounds) looking to revel the concepts that underlie this art/education actions
aimed to children.

Key-Word: Mário de Andrade; Cultural Department of São Paulo 1935-1938; Children playgrounds of São
Paulo; Public policy and art/education; History of art/education.

A criação de um Departamento de Cultura na gestão do Prefeito Fábio Prado foi uma das primeiras
iniciativas públicas de estabelecimento de um projeto de ação cultural para a cidade de São Paulo. A participação
de Mário de Andrade na elaboração deste projeto e na direção do Departamento nos primeiros anos de
funcionamento (1935-1938) junto com outros intelectuais modernistas fez desta iniciativa um espaço para prática
do ideário modernista na década de 1930.
229

A intenção deste texto é procurar entender o contexto político e cultural que propiciou o surgimento
da Instituição no panorama do início do século XX; apresentar sua proposta inicial e comentar alguns aspectos
do desenrolar do seu funcionamento. A partir do mapeamento desenvolve-se uma análise mais detalhada da
criação dos Parques Infantis procurando desvendar as concepções que fundamentaram as ações arte/educativas
voltadas para crianças.
Contamos na reconstituição dessa história com os indícios deixados pelo próprio Mário de Andrade
e os relatos de quatro importantes participantes neste processo: Paulo Duarte, parceiro na elaboração do projeto
do Departamento de Cultura, descrito em detalhes no livro que publicou sobre o amigo, Mário de Andrade por ele
mesmo (1985); Oneyda Alvarenga que trabalhou na Divisão de Expansão Cultural do Departamento de Cultura
sob orientação de Mário de Andrade e que também escreveu sobre as experiências que desenvolveram juntos no
livro, Mário de Andrade, um pouco, (1974); os relatórios publicados na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo,
de Nicanor Miranda, que dirigiu a Divisão de Educação e Recreios do Departamento de Cultura e de Maria
Aparecida Duarte que foi Inspetora Geral dos Parques Infantis. Vale ressaltar que os artigos publicados na
Revista do Arquivo Municipal nos anos de 1934 a 1938 trouxeram informações preciosas para esta reconstrução,
além das pesquisas realizadas por Elizabeth F. Abdanur (1992), por Ana Lúcia Goulart de Faria (1993) e por
Maria Ruth Amaral de Sampaio (1999) que possibilitaram a realização de um contraponto entre as experiências
vividas pelos protagonistas e as reflexões críticas acerca das políticas administrativas, culturais e educacionais do
período tratado.

O Projeto do Departamento de Cultura para a Moderna Província de São Paulo

É um desafio instigante e complexo procurar entender São Paulo, cidade que teve um dos maiores
crescimentos do mundo neste último século, principalmente quando nossa intenção é imaginar a cidade de São
Paulo do início do século XX que exalava, junto com o aroma do café, suas míticas contradições. São poucos os
vestígios deixados na paisagem. Foram destruídos durante este crescimento. Ficaram as imagens construídas,
aquelas que ilustram o ideário do paulistano e é caminhando por esta memória, significativamente guardada,
contada e interpretada, que buscamos traçar este painel.
Nas linhas mestras deste traçado é importante reforçar que a elite econômica e cultural da cidade
vivia um clima de constante permuta de valores, em trânsito entre o Brasil e o velho continente, em busca de
formação e informação, reiterando o vício colonial. O processo de europeização de São Paulo havia começado
no final do século XIX. A conhecida aristocracia do café, como a definia Mário de Andrade (1974), recebia em
seus salões intelectuais, artistas e políticos à moda parisiense.
Em contrapartida, a Europa, com seu modelo de civilização, passava por uma grande crise e junto
com sua cultura exportava hordas de emigrantes de diferentes nacionalidades que aqui
230

desembarcavam ansiando “fazer a América”. Esta invasão de valores ameaçava descaracterizar a


antiga província que, entre outras estratégias, procurava salvar sua memória colonial, estimulando a produção de
signos de resistência que a identificariam. Neste processo, aliaram-se com as classes sociais que detinham o poder
econômico, os intelectuais e os artistas, em torno de projetos de afirmação da nacionalidade.
Este conflito foi vivido intensamente na cidade de São Paulo. Se por um lado a descaracterização da
paisagem e o crescimento sem controle da cidade geraram problemas de infra-estrutura que mobilizaram a busca
de novos modelos de intervenção e planejamento urbanos para a sua solução, por outro, foi necessário também
estabelecer um amplo programa educacional, principalmente de alfabetização para assimilação do imigrante e a
formação de mão-de-obra especializada que estivesse apta a colaborar com o desenvolvimento de um Estado cuja riqueza se destacava
no país (SAMPAIO, 1999, p.15). A consolidação do poderio econômico do Estado e a expansão de seus domínios
sobre a nação dependiam de um projeto cultural e educacional que lhe desse sustentação.
A pesquisadora Maria Ruth Amaral de Sampaio (1999) esclarece que Fábio Prado foi nomeado
prefeito pelo interventor do Estado de São Paulo, Armando Salles de Oliveira, administrando a Cidade durante o
primeiro período do governo de Getúlio Vargas, após um longo período de instabilidades no governo municipal,
decorrente de problemas ocasionados pelas revoluções de 1930 e 1932.
Fábio Prado escolheu para Chefe de seu Gabinete o advogado e jornalista Paulo Duarte que fazia
parte dos jornais O Estado de São Paulo e Diário Nacional, este último, órgão oficial do Partido Democrático,
fundado em 1926. Paulo Duarte foi desde o início da gestão responsável pelo projeto da reforma administrativa
da Prefeitura, que entre outras iniciativas previa um órgão de cultura em seu organograma. Era a oportunidade
de realizar um velho sonho partilhado entre os amigos modernistas que freqüentavam, desde o final da década de
1920, seu apartamento na Avenida São João. Este grupo de intelectuais, do qual fazia parte Mário de Andrade,
Sérgio Milliet, Antônio de Alcântara Machado, Tácito de Almeida, Rodolfo Homem de Mello e Rubens Borba de
Moraes entre outros, desejava ter um dia apoio suficiente da elite para realizar uma organização brasileira de estudos de
coisas brasileiras (DUARTE, 1985, p. 49).
Aproveitando então a situação favorável, Paulo Duarte junto com Mário de Andrade elaborou um
projeto de um órgão para a gerência da cultura na cidade a ser implementado pela Prefeitura Municipal. Depois
da Escola de Sociologia e Política, criada em 1933, e da Universidade de São Paulo, em 1934, a criação de um
órgão municipal dessa natureza era parte do mesmo contexto e vinha completar o projeto político e educacional
dos democratas.
O projeto dos modernistas era ambicioso. Paulo Duarte lembrou que nos planos originais o
Departamento seria o germe de um Instituto Paulista de Cultura com jurisdição em todo Estado. Este serviria
também de modelo para um Instituto Brasileiro de Cultura que era ponto de pauta do programa para o governo
federal do aspirante a candidato Armando de Salles Oliveira.
O Departamento de Cultura e Recreação, como era chamado inicialmente, foi criado em maio de
1935 dentro do ideário do projeto modernista da década de 30 que já havia superado a fase de preocupação
apenas com a renovação estética e se aprofundava na necessidade de um maior conhecimento da realidade
brasileira para que se criasse a partir dela, um produto nacional de caráter universal. Elizabeth F. Abdanur,
analisando o prefácio de Antônio Cândido ao livro de Paulo Duarte comenta que:
231

Segundo Antônio Cândido o Departamento de Cultura expressou a tendência geral do


modernismo nos anos trinta de “rotinização da cultura” e, especificamente, expressou a
“tentativa consciente de arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la em fator de
humanização da maioria, através de instituições planejadas”. Esta presença dos modernistas em
escala mais ampla do movimento cultural, não restrita ao movimento artístico propriamente
dito, é fruto da virada nacionalista que se manifesta a partir de 1924. (ABDANUR, 1992, p.61-
2).

A nomeação de Mário de Andrade como diretor do Departamento e chefe da Divisão de Expansão


Cultural foi uma batalha ganha em nome de um projeto de cunho nacionalista, principalmente reforçado pela
competência, credibilidade e engajamento político de seu mentor. Foram respeitados também neste processo os
critérios de escolha dos indicados aos cargos de chefia. A formação e especialização profissional foram levadas
em conta mais do que o perfil político dos candidatos. A dupla, Paulo Duarte e Mário de Andrade, garantia a
qualidade e a possibilidade de êxito do projeto.
Nestas condições, a legislação municipal pela primeira vez assumiu uma diretriz para a cultura na
Cidade de São Paulo tendo como princípio básico:

... o aperfeiçoamento e extensão da cultura à população paulistana em geral. Com este objetivo,
o Departamento de Cultura foi planejado como um órgão: promotor e organizador de
atividades artísticas (música, teatro, canto, cinema); divulgador de cultura geral (palestras e
cursos populares, conferências universitárias, sessões artísticas e literárias); criador e
mantenedor de instituições culturais permanentes (bibliotecas e museus); coordenador de
atividades recreativas e esportivas através da construção de espaços públicos de lazer e esportes
(parques infantis, campos de atletismo) e, finalmente, um órgão que fizesse o reconhecimento
e se responsabilizasse pela preservação do patrimônio artístico histórico e documental do
município de São Paulo. (ABDANUR, 1992, p.68-9)

No organograma do Departamento de Cultura33 foram congregados alguns serviços já existentes na


municipalidade que estavam espalhados em outras divisões ou órgãos como o Teatro Municipal e a Biblioteca
Municipal; o Serviço Municipal de Jogos e Recreios e a Seção de Divertimentos Públicos que pertenciam à
Diretoria de Polícia Administrativa; o Serviço de Documentos Antigos e a Oficina de Encadernação e Reparação
de papéis e livros do Departamento de Expediente e do Pessoal. Toda esta reformulação fazia parte do projeto
de saneamento administrativo e racional da Prefeitura de Fábio Prado idealizados por Paulo Duarte. O
organograma inicial tinha a seguinte configuração:

Diretoria – Mário de Andrade


Divisão de Expansão Cultural - Mário de Andrade
Abrange artes plásticas, artes dramáticas, música e cinema;
Seção de Teatros, Cinemas e Salas de Concerto;
Teatro Municipal
Conselho Técnico
Orquestra Municipal
Seção da Rádio-Escola
Discoteca Pública Municipal

33 Em 1936 o Departamento de Cultura e Recreação passou a ser denominado Departamento de Cultura apenas.
232

Divisão de Bibliotecas - Rubens Borba de Moraes


Biblioteca Municipal
Biblioteca Infantil
Bibliotecas Populares e Circulantes
Curso de Biblioteconomia e regulamentação da profissão (extensão)

Divisão de Educação e Recreios - Nicanor Miranda


Seção de Parques Infantis
Seção de Campos de Atletismo, Estádio e Piscinas

Divisão de Documentação Histórica e Social - Sérgio Milliet


Sub-Divisão de Documentação Histórica
Publicação da Revista do Arquivo
Museu da Cidade de São Paulo
Sub-Divisão de Documentação Social
Seção Gráfica

Divisão de Turismo e Divertimentos Públicos


Seção de Turismo
Seção de Divertimentos Públicos

Entre o idealizado e o possível, comentamos brevemente as principais ações desenvolvidas no


período de implantação do Departamento de Cultura durante a gestão de Mário de Andrade, de 1935 a 1938,
procurando ressaltar os empreendimentos mais ousados e também aqueles que tiveram uma repercussão mais
duradoura como ação educativa. A partir dos relatos de Paulo Duarte e Oneyda Alvarenga que participaram de
toda a movimentação na época e das análises mais recentes da pesquisadora Elizabeth F. Abdanur.
Importante destacar que a Divisão de Expansão Cultural dirigida por Mário de Andrade tinha como
prioridade entre suas ações a questão da cultura popular, através de uma abordagem etnográfica. Uma das
primeiras propostas realizadas na Divisão foi um Curso de Etnografia como extensão universitária no ano de
1936. Idealizado por Mário de Andrade e coordenado por Dina Lévi Strauss o curso tinha o objetivo de formar
pesquisadores da cultura popular. Os alunos eram em sua maioria os próprios funcionários do Departamento, e
os professores convidados para dar palestras foram requisitados na Escola de Sociologia e Política e na nova
Universidade de São Paulo. A intenção era a preparação do pessoal interno para acompanhar as ações previstas
para o órgão dentro de uma metodologia científica de pesquisa.
A instalação da Discoteca Pública com arquivos sonoros, gravados e escritos (hoje pertencente ao
acervo do Centro Cultural São Paulo) dirigida e organizada por Oneyda Alvarenga, foi um dos projetos que teve
também a orientação direta de Mário de Andrade. O serviço de gravação se compunha de registro de música
erudita paulista, registro do folclore musical brasileiro, e o Arquivo da Palavra que se subdividia em: registro das
vozes dos homens ilustres do Brasil e registros destinados ao estudo da fonética (análise das diversas pronúncias
regionais do Brasil através da fala de um cidadão culto e outro inculto).
Foram realizados alguns eventos de grande porte também na Divisão de Expansão Cultural como o
Congresso da Língua Nacional Cantada realizado em 1937 e que levantou questões polêmicas acerca dos padrões
de norma culta da expressão oral nacional, com repercussão nos principais jornais da época. Outro
233

empreendimento foi a Missão de Pesquisa Folclórica que partiu em fevereiro 1938 e explorou durante seis meses
o Norte e Nordeste do país com intenção de registrar todas as manifestações culturais encontradas ao longo do
percurso colhendo um rico material de pesquisa que foi depois catalogado e arquivado na Discoteca.
A música, como não poderia deixar de ser, teve uma atenção especial na gestão de Mário de Andrade.
Foram realizados ao todo 45 concertos públicos no Teatro Municipal, sempre aos domingos e acompanhados de
programa com texto didático informativo de caráter educativo. Estes programas quase sempre ilustrados por
artistas modernistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, podem hoje ser consultados no Arquivo Mário de
Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. O Coral Paulistano sob regência de Camargo Guarnieri e a
Escola Paulista de Música confirmam a atenção dada à área que contou também com alguns concursos de
música em 1936 e 1937.
A Divisão de Bibliotecas a cargo do modernista Rubens Borba de Moraes teve um programa arrojado
de atualização de serviços que repercute ainda hoje na vida cultural dos paulistanos. O projeto de construção de
uma nova sede para a Biblioteca Municipal (hoje a Biblioteca Municipal Mário de Andrade) vinha acompanhado
de uma política de incentivo e ampliação do acervo e de visitação das bibliotecas. A construção da nova sede foi
iniciada nesta gestão e terminada no governo posterior. Ampliaram-se as verbas municipais para compra de
livros e foi assinado o ato que previa o “depósito legal”, em favor da municipalidade, pelas editoras e empresas
de jornais e revistas para toda e qualquer obra publicada. Iniciou-se também uma política de compra de acervos
com a aquisição da Biblioteca Félix Pacheco que constituiu o núcleo de uma Brasiliana Paulista na Biblioteca
Municipal em 1937.
Paralelamente, desenvolveu-se uma ação profissionalizante na Divisão de Bibliotecas com a
regulamentação da profissão e a criação da Escola de Biblioteconomia na própria Biblioteca Pública.
A Biblioteca Infantil da Rua Major Sertório, projeto da professora Lenyra Fraccaroli do Instituto
Caetano de Campos, foi anexada à Biblioteca Municipal e passou a ser gerida pelo Departamento de Cultura que
instituiu também concursos anuais de livros infantis valorizando a produção e estimulando edição dos mesmos.
O programa de Bibliotecas nos Parques foi implantado em conjunto com a Seção de Parques Infantis e a
Biblioteca Circulante teve uma
234

aceitação imediata da população dos bairros distantes do centro começando a funcionar depois da
adaptação de um ônibus para a função.
A Divisão de Documentação Histórica e Social com suas várias seções chefiadas por Sérgio Milliet
chegou a apresentar em 1937 os resultados de suas pesquisas em um Congresso de População na França. A Sub-
Divisão de Documentação Social criada para subsidiar a Prefeitura com pesquisas, principalmente econômicos e
sociais, era dirigida pelo professor americano Samuel Lowrie. Os temas desenvolvidos nas pesquisas tratavam,
por exemplo, do padrão de vida dos operários de S. Paulo, da imigração e do crescimento da população, da
origem da população e da localização geográfica dos imigrantes nos bairros da cidade, da origem das crianças que
freqüentavam os parques infantis, entre outros.
A Sub-Divisão de Documentação Histórica passou a recolher, tratar, catalogar, conservar e divulgar
uma série de documentos antigos de valor histórico. Passaram a ser considerados documentos antigos aqueles
documentos com mais de 30 anos. Mas era tal a situação de abandono de toda a documentação encontrada nas
repartições e cartórios do Estado, que para se ter uma idéia da dimensão das tarefas desta Sub-Divisão, o serviço
de restauração e encadernação conseguiu com muito esforço reunir em noventa volumes os documentos de 1800
a 1841. Segundo Paulo Duarte (1985, p.95), todos os documentos avulsos do século XIX haviam sido
catalogados em ordem cronológica para serem restaurados e encadernados e havia documentos manuscritos
datados de 1555 aguardando restauração. Eram mais de três séculos de história para serem resgatados.
A Revista do Arquivo Municipal de São Paulo criada em junho de 1934 como uma publicação da
Diretoria do Protocolo e Arquivo da Prefeitura, passou em junho de 1935 a ser publicada e administrada pelo
Departamento de Cultura. Sob a direção de Mário de Andrade e de Sérgio Milliet, a revista ampliou sua área de
atuação incluindo a documentação social, a etnografia, a antropologia, a literatura e a lingüística. A Revista era
mensal e se tornou um veículo de expressão das ações desenvolvidas pelo Departamento de Cultura e passou a
representar também a Sociedade de Etnografia e Folclore e a Sociedade de Sociologia.
A Divisão de Educação e Recreios era chefiada por Nicanor Miranda, o único dos nomeados para os
cargos de chefia do Departamento de Cultura que não fazia parte nem do grupo dos modernistas nem dos
intelectuais ilustrados. Nicanor Miranda era especialista em educação física. A Divisão foi responsável pelos
Parques Infantis que eram instituições extra-escolares, instalados em bairros operários e próximos das escolas
públicas. Os primeiros Parques funcionaram no Ipiranga, na Lapa e no Parque Pedro II. Lá as crianças tinham
atividades recreativas e de assistência médica e dentária coordenadas por instrutoras e educadoras sanitária. Os
objetivos desta instituição de assistência eram calcados nas ideias da pedagogia científica e da Escola Nova que
previam a possibilidade de usar a experiência para estudar a criança, sem, entretanto, perturbar ou ameaçar a liberdade e
a espontaneidade no brinquedo (ABDANUR, 1992, p.80). Os instrutores e as instrutoras deveriam ser diplomados
pela Escola Normal, prestar concurso e apresentar provas de títulos. Aceitavam-se também diplomas do Centro
de Educação Física do Exército, do
235

Departamento de Educação Física do Estado e do Instituto Nacional de Música. Estava previsto na


continuidade oferecer um Curso de Psicologia da Criança e Pedagogia Especializada no próprio Departamento
de Cultura. O curso não chegou a ser criado, mas os Parques funcionaram como campo de pesquisa sobre a
criança, seu universo e sua cultura onde foi possível colher material para subsidiar as próprias atividades ali
oferecidas. As mais freqüentes eram ginástica, jogos, torneios infantis e trabalhos artísticos.
A Divisão de Educação e Recreios não conseguiu implantar as Praças de Jogos para Adolescentes
porque esbarraram na indisponibilidade de terrenos. Entretanto, como a educação dos jovens era uma prioridade
e a questão passava pela prevenção e contenção política foi criado temporariamente um Clube de Menores
Operários que funcionou no Parque Pedro II. O projeto de construção de um grande estádio de esportes só foi
concretizado no final da gestão dos democratas quando a Cia. City negociou junto à Prefeitura um espaço no
recém aberto loteamento do Pacaembu. Todas as negociações para a construção do Estádio do Pacaembu,
inclusive o início da construção e o projeto, foram estabelecidos na gestão de Fábio Prado, Paulo Duarte e Mário
de Andrade, no entanto, a sua construção e inauguração ocorreram no governo Prestes Maia.
Outras tantas idéias foram pensadas e discutidas durante o período em que este grupo de jovens
intelectuais pode ter nas mãos a direção dos projetos culturais para a cidade de São Paulo. Eles sonharam alto,
queriam mais, muito mais. Mário de Andrade, depois de deixar a direção do Departamento de Cultura com a
saída de Fábio Prado da prefeitura em 1938, entrou em um processo de depressão, auto exilando-se no Rio de
Janeiro, de onde escreveu para os amigos decepcionado com a experiência de administração pública. Em uma de
suas cartas a Paulo Duarte lamentou o fato de não ter conseguido colocar o Departamento de Cultura no
cotidiano da vida dos cidadãos paulistanos. Naquele momento ele via todo seu sonho escorrer por água abaixo.
Não podia ter um distanciamento para avaliar a profundidade e extensão daquela experiência modernista na
administração cultural de uma cidade já tão complexa quanto São Paulo.
Mário de Andrade via apenas o que não tinha podido ser feito. A Divisão de Expansão Cultural, por
exemplo, chefiada por ele cumpriu em parte seu objetivo de popularização da arte porque atuou de maneira
restrita à música. As outras áreas de expressão foram muito pouco, ou quase nada, beneficiadas. A ideia de fazer
um museu de reproduções dos clássicos do Louvre e também o Museu da Cidade de São Paulo foram estudadas
e discutidas entre os administradores do Departamento de Cultura, porém não conseguiram ser efetivadas. As
propostas ousadas de um Laboratório de Cinema, da Rádio Escola, da Escola de Gravura previstos no projeto
inicial, ficaram também no papel. O cinema educativo se restringiu às exibições gratuitas em cinemas da cidade
para crianças e jovens que freqüentavam os Parques infantis. A Divisão de Turismo e Divertimentos Públicos
não chegou a se tornar realidade.
Entretanto é importante ressaltar, nesta análise, as ideias que permaneceram. O alvo das ações
desenvolvidas pelo Departamento de Cultura foi sem sombra de dúvida o público leigo que não tinha acesso às
manifestações artísticas promovidas pela burguesia. Para este público foram
236

realizados os Parques Infantis para as crianças filhas de operários; esporte para adolescentes e adultos
operários; bibliotecas populares; cinema educativo; concertos públicos; cursos de divulgação cultural e pesquisa
de caráter social junto aos imigrantes e à população mais pobre da cidade. Foram sem dúvida ações de caráter
pedagógico, pois houve sempre uma clara intenção de ampliação da formação cultural dos cidadãos.
O Departamento de Cultura, junto com a Escola de Sociologia e Política e a Universidade de São
Paulo dividiram entre si as funções atribuídas à educação e à cultura no programa de governo dos democratas
ilustrados. Ao Departamento coube o aprimoramento cultural do povo. Segundo a avaliação de Sampaio o
projeto foi o carro-chefe das realizações da Prefeitura de Fábio Prado. Para os modernistas que sonharam,
planejaram e executaram este projeto, o caminho foi o da busca das raízes culturais regionais e nacionais que
fortaleciam a identidade e o sentimento de brasilidade como pregava o ideário modernista da década de 1930 que
direcionou essas ações.

As ações do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo voltadas para a criança

Figura 1. Desenho de Lourdes Chedib, 11 anos, 1937.Figura 2. Desenho de Olinda Silva, 13 anos, 1937.
Fonte: Arquivo Mário de Andrade, desenhos n.368 e n.392 IEB/USP.

O projeto dos Parques Infantis teve início já em 1934, quando o então prefeito de São Paulo,
Antônio Carlos Assumpção assinou um ato34 que criava a Comissão de Recreio Municipal. Esta Comissão tinha
o intuito de organizar um sistema de recreio para as crianças da cidade de São Paulo, tendo como modelo a
experiência já realizada com Parque Pedro II e sua praça de jogos infantis. Pelo teor do texto do ato ficava claro
que a preocupação com o lazer das crianças se coadunava com o projeto político e educacional da elite dirigente
da época, que tomava para si a responsabilidade pela formação moral e espiritual dos futuros cidadãos.
Pouco se sabe acerca do funcionamento da Comissão de Recreio Municipal apenas que o novo
prefeito Fábio Prado ampliou esta Comissão em 1935, criando o Serviço Municipal de Jogos e Recreio para
crianças. No texto deste novo ato35, explicava-se que a criação deste Serviço vinha antecipar a organização do
futuro Departamento de Cultura, que estava em fase de elaboração. É importante destacar o quanto esta ação,

34 Ato n. 590 de 26 de maio de 1934. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. III agosto de 1934, p.99.
35 Ato n. 767 de 9 de janeiro de 1935. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. IX, fevereiro de 1935, p.157.
237

voltada para as crianças da cidade de São Paulo, teve uma repercussão política positiva no início da administração
do novo prefeito. Em um discurso proferido em uma reunião de prefeitos das cidades paulistas, Fábio Prado
citou os Parques Infantis como a única obra realizada por sua administração nos quatro primeiros meses de seu
governo. Nas palavras do prefeito, percebe-se o incômodo da nova situação quando, segundo ele, os governos
precisavam pensar em plantar árvores ao invés de arrasar as florestas e completou:

Se se falasse, há vinte anos, na construção, pelos poderes públicos, de um parque de


brinquedos para criança, rir-se-iam todos do prefeito maluco que tivesse pensado em deixar as
crianças brincar no gramado de um jardim... E, no entanto, aí estão eles, poucos ainda, mas
repletos e pedindo a construção de outros recantos onde se principie a enrijecer, nos meninos
de agora, a alma dos homens de daqui a pouco36.

O Serviço Municipal de Jogos e de Recreios tinha como finalidade localizar, organizar e instalar os
parques de jogos infantis e orientar todos os serviços relativos à construção e ao aparelhamento de praças desse gênero e ao
desenvolvimento e a prática de jogos e diversões. A intenção era aparelhar a cidade que crescia aceleradamente com
espaços organizados e destinados às crianças e situados preferivelmente nas proximidades de escolas, de casa de
apartamentos e nos bairros operários37.
O texto desse segundo Ato é bem mais específico quanto à previsão de funcionamento do Serviço e
dos Parques. Previa-se que além das atividades inerentes aos espaços desta natureza, fossem realizadas, por
exemplo, inquéritos e pesquisas higiênicas, psicológicas e sociais nas populações infantis que freqüentassem essas instituições extra-
escolares e que o resultado desses trabalhos fossem publicados em uma revista semestral, que refletisse também
sobre os problemas relativos ao período da infância38. A idéia, portanto, era que a experiência dos Parques
Infantis pudesse gerar conhecimentos sobre aquelas crianças e que esses conhecimentos avaliados fossem
divulgados para os interessados através de uma publicação específica. Essa revista não chegou a ser realizada,
entretanto as pesquisas e as reflexões sobre os trabalhos ali realizados foram publicadas nas edições mensais da
Revista do Arquivo Municipal de São Paulo.
Quatro meses após a criação do Serviço Municipal de Jogos e Recreio para crianças, em 30 de maio
de 1935, o Ato n. 861 deliberava sobre a criação e organização do Departamento de Cultura e de Recreação. Este
novo Ato incluiu, entre outros setores previstos, a Divisão de Educação e de Recreios que se subdividia em três
seções: Parques Infantis; Campos de Atletismo, Estádio e Piscinas; Divertimentos Públicos. A Seção de Parques
Infantis incorporou o já mencionado Serviço de Jogos e Recreio. O texto do Ato n.767 foi quase que
integralmente repetido nesta nova estrutura, salvo algumas questões que foram ampliadas. Como por exemplo,
depois do item que previa a realização de pesquisas sobre questões de higiene, de psicologia e de sociologia,
seguia um novo item que especificava outras questões agora relativas ao campo da etnografia como podemos ver
no tópico a seguir:

i) promover, com a colaboração do corpo docente das instituições escolares municipais,


estaduais e particulares, um inquérito permanente de pesquisas “folclóricas”, e, mais
geralmente, etnográficas, entre a população escolar, recolhendo, assim, as tradições de

36 Discurso do Dr. Fábio Prado. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. X, março de 1935, p. 5.
37 Ato n.767, op.cit., p.158.
38 Idem, ibidem, p.158.
238

costumes, superstições, advinhas, parlendas, histórias, canções, brinquedos, etc., sendo os


resultados desses inquéritos devidamente selecionados, organizados e catalogados em seções
distintas e publicados na Revista do Departamento 39.

Permaneceu, no entanto, a idéia de aproveitar o espaço dos Parques Infantis como um laboratório de
pesquisa para subsidiar com conhecimentos e informações, tanto os próprios instrutores dos Parques quanto
outros profissionais de instituições envolvidas e interessadas. Aliás, como já foi apresentado anteriormente, uma
das principais finalidades do Departamento de Cultura, como um todo, era a de estimular e desenvolver todas as
iniciativas destinadas a favorecer o movimento educacional, artístico e cultural40 da cidade de São Paulo. A questão da
educação era explicitamente colocada em primeiro lugar.
Para dirigir a Divisão de Educação e Recreio foi nomeado o professor Nicanor Miranda, um
especialista em educação física que veio a elaborar uma extensa obra sobre o assunto durante os vários anos em
que se dedicou à pesquisa. No Plano inicial da Seção de Parques Infantis, publicado na Revista do Arquivo Municipal
de São Paulo, Nicanor Miranda deixou claro que foi buscar fundamentação para o projeto dos Parques nos
princípios estabelecidos por Froebel para o kindergarten que consistiam em:

... proporcionar à criança uma ocupação de acordo com sua própria natureza, robustecer o seu
corpo, exercitar os seus sentidos, estimular o seu espírito que começa a despertar e fazê-la
conhecer pelos sentidos a natureza e o próximo; orientar principalmente o coração e as
paixões, guiar estas no sentido original da vida, unindo as crianças entre si. (MIRANDA, 1936,
p.93)

A estrutura de funcionamento do Parque Infantil abrangia ações de caráter técnico, educacional e


social. No âmbito educacional, o Plano ressaltava os ramos da educação física, moral, intelectual, social e
higiênica41. As atividades de educação física ocupavam a maior parte do tempo das crianças, que tinham também
oportunidade de participar de outras atividades como das relativas à educação intelectual descrita no Plano de
Nicanor Miranda.

Para conseguir parte dos objetivos visados neste ramo, organizamos pequenas
bibliotecas infantis nos parques, afim de que nas horas de descanso, nos dias de sol
muito intenso em que o exercício físico deve ser moderado, nos dias de chuva, sob os
galpões das pérgolas, as crianças procurem, “sponte-sua”, a recreação pelo livro;
recomendando às instrutoras que façam leitura oral de contos, apólogos, fábulas e
textos de fundo moral com a necessária interpretação, afim de despertar nas crianças o
gosto pelos trabalhos do espírito; formando uma pequena discoteca afim de cultivar o seu
comportamento musical e conseguintemente fomentar as vocações intuitivas e congênitas;
ensinando-lhe sob modalidades recreativas as noções primárias da música e do canto coral,
proporcionando audição de discos e de radio; promovendo ainda, nos dias de festa nacional e
em dias de celebração universal como o dia do trabalho e o dia de Natal concertos de bandas;
fundando o teatro infantil afim de cultivar o desembaraço, adestrar o trato social e formar a
personalidade moral; ensinando-lhe declamação afim de inspirar, pela exibição individual a
confiança em si e formar a noção da própria personalidade. (MIRANDA, 1936, p.97)

39 Ato n. 861 de 30 de maio de 1935. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. XII, maio de 1935, p. 236.
40 Idem, ibidem, p.229.
41 Cf. Maria Heloisa C. de T. Ferraz, em Arte e loucura: limites do imprevisível, 1998, p.35-36, o Movimento de Higiene Mental já

havia se difundido entre nós alcançando inclusive as instituições escolares que ampliaram a idéia de bem-estar social
modificando a condução de algumas disciplinas como a de educação física.
239

O tempo da recreação propriamente física, dos jogos, era então enriquecido com atividades de
leitura, audição de disco, noções de música, canto coral e iniciação ao teatro. As atividades artísticas citadas no
texto de Nicanor Miranda como atividades que ajudariam a desenvolver o lado intelectual das crianças denotam
que o autor da proposta era adepto de uma tendência estética e educacional de cunho idealista na qual não se
incluía a atividade artística que dependia de habilidades manuais como as artes plásticas.
Na publicação Parques Infantis42, do Departamento de Cultura pode-se ter uma idéia de todas as
atividades desenvolvidas através das fotografias de Benedito Junqueira Duarte43, então fotógrafo desse órgão. A
publicação, com desenho de capa e contra capa de Anita Malfatti, conta apenas com um pequeno texto
introdutório de uma página e tem 64 páginas ilustradas com as fotos das crianças em atividade nos Parques e
alguns pequenos desenhos infantis ilustrativos como podemos ver no exemplo a seguir.

Figura 3. Página da publicação Parques Infantis com fotos de Benedito J. Duarte, Parques Infantis, Departamento de
Cultura, 64 páginas. Fonte: Arquivo Anita Malfatti, IEB/USP.

42 Parques Infantis, Departamento de Cultura, 64 p., Arquivo Anita Malfatti, Série Documentos Textuais, sub-série folhetos
ilustrados por Anita Malfatti, IEB/USP.
43 Os negativos das fotografias de Benedito Junqueira Duarte sobre as atividades do Departamento de Cultura podem ser

encontradas no Setor de Iconografia do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura da Prefeitura


Municipal de São Paulo.
240

Nos parece oportuno incluir aqui, à guisa de comparação, o relato do Professor Dr. Waldemar de
Oliveira, ex-chefe da Higiene Escolar do Recife que, depois de uma visita aos Parques Infantis no início de 1937,
descreveu saborosamente suas impressões publicadas na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. Nesta
descrição, rica em detalhes, transparece a dinâmica do cotidiano da instituição.

Imagine-se como o do Pedro II, um largo parque varrido de luz e de bom ar, coberto de
vegetação e ensombrado de árvores, onde centenas de crianças, dentro de um simples calção,
durante horas seguidas, fazem boa ginástica francesa, tomam, contentes como os pássaros, um
delicioso banho de piscina, engolem felizes, um ótimo copo de leite e mergulham de novo no
ar puro e na relva macia dentro de um espírito de confraternização infantil que, ao mesmo
tempo, enleia e comove o visitante. Que crianças são essas que vêm ali brincar e saltar, em
contato vivo com a natureza, longe dos seus lares onde não é certo que reinem a saúde e a
alegria? São filhos de operários – sim, para eles são feitos os parques – que, tendo freqüentado
a escola pela manhã, vêm a tarde ao parque e já não querem outra vida, senão esta que o
governo lhes dá em lenta e eficiente obra de educação social. Quanto pagam? Nem um vintém.
(...) O parque está, assim, aberto a qualquer criança que lhe queira transpor as portas
acolhedoras. À entrada, um funcionário toma nota das que entram e das que saem. Assinala o
tempo que cada uma levou no parque. Esses dados sugerem, muitas vezes, inquéritos sociais
que são realizados pelo corpo de monitores, em contato freqüente com as famílias. Não há
nenhuma limitação à liberdade da criança, a não ser as que são naturalmente impostas pela
ordem. Lá dentro as crianças são fichadas. Há um gabinete antropométrico, há médicos às
ordens. Todo um arquivo riquíssimo de indicações de maior apreço estatístico. Num amplo
salão, realizam-se, de vez em quando, ligeiras sessões artísticas em que se toca, se dança, se
representa...44

Os parques estavam preparados para receber crianças de três a doze anos. Quando completavam
doze anos, segundo o Código de Menores da época, os adolescentes já poderiam começar a trabalhar com
autorização dos pais e do juiz. Aos quatorze anos já estavam liberados para as atividades profissionais. Para este
grupo de jovens foi criado posteriormente o Clube de Menores Operários do Departamento de Cultura. Os
Parques Infantis funcionavam das 7:00 às 18:00 horas recebendo as crianças e depois deste horário iniciavam as
atividades do Clube de Menores que iam até às 22:30 (MIRANDA, 1938).
Segundo Maria Aparecida Duarte, Inspetora Geral dos Parques Infantis, a média de freqüência era de
600 crianças por dia em cada parque. O estágio médio de permanência de cada criança no parque era de 4 a 5
horas diário, porém atingiam às vezes até 10 horas. Todas as crianças que se dirigiam aos parques municipais
eram convidadas a fazer uma ficha de registro e acompanhamento, mas o seu preenchimento não era obrigatório.
Nesta ficha constavam informações gerais sobre a criança, sua origem e a situação econômica das famílias. O
estudo realizado pelo pesquisador Samuel Lowrie sobre a Ascendência das crianças registradas nos Parques Infantis de
São Paulo (1937) usou 1.651 registros referentes ao período de um ano, de 1936 a 1937. O resultado mostrou que
mais da metade das crianças registradas tinham pais estrangeiros e que esta ascendência era, sobretudo de origem
latina, ou seja, de italianos, espanhóis e portugueses. Entre estes três grupos, os italianos ocupavam uma posição
privilegiada. Aparecem também na pesquisa as ascendências síria, alemã, austríaca, húngara, russa e outras não
especificadas. Curiosamente não aparecem japoneses entre as crianças filhas de emigrantes que freqüentavam os
parques, apesar do Parque Pedro II ter em sua vizinhança, naquela época, uma grande concentração de famílias

44Waldemar de Oliveira, Os parques de recreação de São Paulo, Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. XXXV,
1937, p.272-273.
241

japonesas. O autor da pesquisa pondera que algum fator cultural deveria impedir a convivência dos filhos de
japoneses com as crianças brasileiras.

Outro dado relevante apresentado por este estudo é a pequena porcentagem de crianças classificadas
como pretas e mulatas em seus registros, apenas 3%. O autor considera então a relatividade das informações
referentes à “cor” das crianças nos registros, pois não havia um critério definido para este dado, que dependia de
uma interpretação subjetiva do instrutor que preenchia a ficha. Entretanto, comparando este resultado com um
outro inquérito respondido por diretores de escolas próximas aos parques, chegou-se também a confirmação da
mesma porcentagem de 3% de crianças negras ou pardas matriculadas na região, o que nos leva a supor que a
população negra, nesta época, não tinha acesso nem a escolarização, nem estavam empregados como operários,
pois seus filhos não frequentavam os Parques Infantis.
O número de meninos registrados nos parques era um pouco mais elevado do que o de meninas:
53% de meninos e 47% de meninas. A faixa etária que apresentava maior número de crianças era dos 7 aos 12
anos. Aparecem também um grande número de crianças de 4 a 6 anos e em número reduzido crianças de 3 anos.
Dos 13 aos 15 anos a presença diminui bastante, pois como já comentamos, nesta idade os jovens faziam parte
do mundo do trabalho e freqüentavam o Clube de Menores.
Os profissionais que trabalhavam como instrutores nos Parques Infantis deveriam passar por um
processo de seleção no qual eram submetidos a uma prova escrita, a uma prova prática e a uma análise de
currículo. No volume XXXI da Revista do Arquivo Municipal de São Paulo do mês de janeiro de 1937, foi
publicado o programa de um concurso para instrutor e para educadora sanitária (no feminino) para os parques.
Os candidatos a instrutores deveriam ter conhecimentos de teoria e prática da educação física elementar,
psicologia infantil, pedagogia especializada e higiene infantil. As educadoras sanitárias deveriam dominar as
questões sobre enfermagem, higiene pessoal e epidemiologia aplicada, higiene da idade escolar e pré-escolar e
prática de visitas domiciliares.
No programa para o concurso de instrutor, apesar de não constar uma indicação bibliográfica
específica, aparecia nos tópicos teóricos alguns nomes de autores conhecidos no campo da psicologia e da
pedagogia como Claparéde e Stanley Hall. Seguindo o programa encontramos os tópicos referentes à recreação
os quais incluíam as atividades artísticas. Vejamos como elas se apresentavam neste contexto:

A recreação. Conceito. Objetivos.


Classificação das atividades num centro de recreio ativo. Valor relativo das atividades segundo o desenvolvimento da criança.
A educação física como uma das principais atividades. Didática dos jogos.
O programa para a criança pré-escolar. Valor do tabuleiro de areia como jogo de construção.
Dramatização de contos e de histórias. A roda cantada.
Atividades diversas. Atividades manuais. Trabalhos de madeira, papelão, cartão e metal. A modelagem. O desenho e a pintura.
O teatro e a educação. A dramatização e a educação física. Organização prática das atividades dramáticas.
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Valor educativo da música. A música e a educação física. Organização prática das atividades musicais.
Ritmo e educação. O bailado. A dança regional e a dança popular.
Atividades que visam a socialização da criança: sociedades infantis; clubes de crianças.
Programas de trabalho. Elaboração de um plano diário. Elaboração de um plano de verão. Vantagens e inconvenientes dum
programa fixo.45

Ao observar os tópicos acima, percebemos, mais uma vez, a distinção feita entre as linguagens
artísticas. O teatro, a dança e a música eram tratados com valores educativos, enquanto que com o título de
atividades diversas encontravam-se elencadas as atividades manuais, trabalhos de madeira, papelão, cartão e metal. A
modelagem. O desenho e a pintura. Ou seja, as artes plásticas eram situadas como “atividade” que deveriam fazer
parte do programa de trabalho das crianças nos Parques Infantis, porém, ainda sem se agregar a estas uma
reflexão mais sistemática sobre seu valor na educação.
Os Parques Infantis Pedro II, da Lapa e do Ipiranga, que funcionaram durante a gestão de Mário de
Andrade no Departamento de Cultura, ofereciam às crianças, em sua maioria filhas de operários, uma estrutura
de assistência que impressionava a todos aqueles que os visitavam. Encontramos na Revista do Arquivo
Municipal de São Paulo, no período de 1935 a 1938, na seção chamada Noticiário a publicação de várias cartas e
artigos como aquele do Professor Waldemar de Oliveira que transcrevemos anteriormente. Afrânio Peixoto e
Evaristo de Morais expressaram também sua admiração pelo trabalho. A Senhora Lois M. Williams, de origem
norte-americana, que era na época superintendente de Educação Física, Recreação e Jogos do Departamento de
Educação do Rio de Janeiro, elogiou a iniciativa e disse que pretendia repetir a experiência em sua cidade. Dos
Estados Unidos veio o Professor Joseph Lee, presidente da National Recreation Association e Howard Braucher,
secretário da mesma associação. A experiência dos parques atravessou também o oceano e foi apresentada por
Nicanor Miranda com o título A recreação operária na cidade de São Paulo no primeiro Congresso Internacional de
Folclore realizado em Paris em 1937.
Em 1938, quando Mário de Andrade deixou a direção do Departamento de Cultura, estavam prontos
para ser inaugurados três novos parques: o de Tatuapé, da Barra Funda e do Catumbi. Estava em andamento a
construção de mais uma unidade na Vila Romana e o levantamento que havia sido feito nesta gestão previa ainda
a construção de mais 46 unidades na capital. A iniciativa de promover uma assistência especializada às crianças se
alastrou por alguns municípios do Estado que fizeram funcionar algumas instituições desta natureza. As
prefeituras de Campinas, de Araraquara, de Santos, de Pirajuí e Amparo tiveram parques em funcionamento.
Outras cidades estavam com processos em andamento aguardando verbas para as instalações.
A pesquisadora da educação infantil, Ana Lucia Goulart de Faria, em sua tese de doutorado, defende
a ideia de que Mário de Andrade foi um educador pioneiro da garantia do direito à educação anterior à escola primária, e
também inovador na política educacional, inaugurando uma rede municipal de educação não-escolar para os menores de 7 anos
(FARIA, 1993, p.17). Toda a tese defende a ideia de que a rede de Parques Infantis foi o embrião da rede
municipal de atendimento ao segmento da educação infantil. Em suas análises a pesquisadora enaltece a atuação
do modernista como gestor cultural, afirmando que Mário de Andrade não só fez o público ser público, como qualificou o
serviço público, atendendo uma clientela pouco atendida: os filhos dos operários, contemplados, portanto, com o direito à infância, isto
é, com o direito ao não-trabalho, com o direito de brincar e criar a cultura infantil (FARIA, 1993, p.21).

45 Programa do concurso para instrutor. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. XXXI, 1937, p.255-260.
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Para finalizar, esta imagem, hoje tão divulgada quando se fala da atuação de Mário de Andrade junto
às crianças, imagem que revela muito do apreço e do respeito que ele nutria pelas crianças e pela cultura,
sobretudo pela cultura popular, como ele próprio explica nesta citação final.

Figura 4. Mário de Andrade junto as crianças na apresentação da Nau Catarineta, no Parque Infantil, 1937. Fotografia de
Benedito Junqueira Duarte.

E se cuidamos todos na atualidade de abrasileirar o Brasil e torná-lo uma entidade realmente unida, talvez não
haja no país região mais afastada da essencialidade nacional que esta região de SP, a mais cruzada de
imigrantes de várias proveniências. Nada mais justo que buscarmos as fontes de nossas tradições, onde elas
ainda sobrevivem. O ano passado já as crianças italianas, espanholas, russas, húngaras dos PIs, realizaram o
baile tradicional da Nau Catarineta, com elementos nordestinos pertencentes ao já importante acervo conseguido
pela Discoteca. (Mário de Andrade, 1938 apud FARIA, 1993, p.103).

Referências

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crianças de família operária na cidade de São Paulo (1935-1938). São Paulo, 1993. Tese de Doutorado, Faculdade
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