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A coragem do

obscurantismo – Alain
Badiou
Alain Badiou ilustra seu conceito de hipótese comunista baseado em
três axiomas: a ideia igualitária, a ideia de que a ação política
popular pode ser organizada sem ser sujeita à ideia de poder e a
ideia de que a organização do trabalho não envolve sua divisão, a
especialização de tarefas, e particularmente a distinção opressiva
entre os trabalhos intelectuais e manuais.
by Vinicius SiqueiraPublished maio 19, 2019Deixe um comentário

Por Alain Badiou, tradução de Vinicius Mendes*.

Alain Badiou (1937 – )

O período atual, em um país como a França, tem sido, de quase trinta anos
para cá, um período desorientado. Quero dizer: um período que apresenta uma
juventude, e particularmente uma classe trabalhadora jovem, sem princípios
que orientem sua existência

Que desorientação é essa? Um das suas principais operações consiste em fazer


com que o período anterior seja ilegível – o período que era, ao contrário, bem
orientado. Essa manobra é característica de todos os retrocessos e períodos
contra-revolucionários, como o que estamos vivendo desde o fim dos anos
1970.

Devemos, por agora, remarcar que o caracterizou a reação termidoriana,


depois da conspiração do 9º Termidor e a execução sem julgamentos dos
principais jacobinos, foi fazer o período anterior ilegível: sua redução à
patologia de alguns criminosos sanguinários impediu qualquer compreensão
política. Essa visão persistiu por décadas, procurando permanentemente
desorientar o povo, que é visto – que é sempre visto – como revolucionário.

Tornar um período ilegível é muito mais do que simplesmente condená-lo.


Um dos efeitos da ilegibilidade é impedir que se encontre no período em
questão os mesmos princípios que podem prover uma saída para os becos sem
saída. Se o período é considerado patológico, então não há nada nele que a
orientação possa extrair para si, e a conclusão – cujos efeitos prejudiciais
podemos ver no nosso cotidiano – é que devemos nos resignar à desorientação
como um mal menor.

Vamos, portanto, postular, em relação ao período anterior, visivelmente


próximo à política de emancipação, que ela deve permanecer legível para nós,
e isso independentemente do seu julgamento final..

No debate sobre a racionalidade na Revolução Francesa que aconteceu na


Terceira República, Clemenceau estabeleceu a famosa formulação: “A
Revolução Francesa constitui um bloco unitário”. A formulação é notável em
declarar a ilegibilidade integral do processo, quaisquer que tenham sido as
trágicas mudanças no seu desenvolvimento.

Nos dias de hoje está claro que o discurso predominante sobre o comunismo
torna o período anterior uma patologia opaca. Portanto, ouso dizer que o
período comunista, incluindo todas as nuances dentro desta idéia, tanto no
poder como na oposição, também constitui um bloco unitário.

O que pode hoje, então, ser o princípio e o nome de uma verdadeira


orientação? Em qualquer caso, proponho chamá-lo – por fidelidade à história
da política emancipatória – de hipótese comunista.

Vamos notar que nossos críticos tentam descartar o termo “comunismo” sobre
o pretexto de que uma experiência de comunismo de Estado que durou setenta
anos falhou tragicamente. Que piada! Quando se trata de inverter a dominação
pelos ricos e a natureza hereditária do poder, que tem durado milênios, nós
somos reprovados por setenta anos de tentativas, de violência e de becos sem
saída. Verdade seja dita, a ideia comunista teve somente um tempo minúsculo
para sua verificação, sua implementação.

Qual é essa hipótese? Ela consiste em três axiomas.

Primeiro, a ideia igualitária. A ideia pessimista comum, que mais uma vez
domina nossos tempos, é que a natureza humana está condenada à
desigualdade, que é uma vergonha, mas que depois de derrubar algumas
lágrimas é essencial persuadir-se dessa verdade e aceitá-la. A isso, a ideia
comunista não responde exatamente por meio da proposição da igualdade
como um programa – vamos trazer a igualdade fundamental que é imanente à
natureza humana –, mas declarando que o princípio igualitário torna possível
distinguir, em qualquer ação coletiva, o que é homogêneo à hipótese
comunista, e portanto, a um valor real e aquilo que o contradiz. Portanto, nos
traz de volta a uma visão animal da humanidade.

Logo vem a convicção que a existência de um Estado coercitivo não é


necessária. Essa é a tese, comum a anarquistas e comunistas, do declínio do
Estado. Existiram sociedades sem Estado, e é racional postular a possibilidade
de outros. Mas para além deles, a ação política popular pode ser organizada
sem ser sujeita à ideia de poder, de representação no Estado, de eleições, etc.

A restrição libertadora da ação organizada pode ser exercida de fora do


Estado. Há muitos exemplos disso, incluindo alguns recentes: o inesperado
poder do movimento de dezembro de 1995 atrasou por vários anos as medidas
impopulares sobre as pensões na França. A ação militante em favor dos
trabalhadores ilegais não impediu uma série de leis maléficas, mas tornou
possível que eles fossem largamente reconhecidos como um elemento da
nossa vida política e coletiva.

Axioma final: a organização do trabalho não envolve sua divisão, a


especialização de tarefas, e particularmente a distinção opressiva entre os
trabalhos intelectuais e manuais. Devemos e podemos imaginar uma natureza
polimorfa essencial do trabalho humano. Essa é a matéria-prima para a
desaparição de classes e de hierarquias sociais.

Esses três princípios não constituem um programa, mas orientam lemas, que
qualquer pessoa pode se investir como um operador, para avaliar o que está
dizendo e fazendo, pessoalmente ou coletivamente, em sua relação com a
hipótese comunista.

A hipótese comunista teve dois estágios principais, e gostaria de apontar que


estamos entrando no terceiro.
A hipótese comunista foi estabelecida em grande escala entre a Revolução de
1848 e a Comuna de Paris, em 1871. Seus temas dominantes são aqueles do
movimento dos trabalhadores e da insurreição. A ele se seguiu um longo
intervalo de quase 40 anos (entre 1871 e 1905), que corresponde ao apogeu do
imperialismo europeu e a distribuição de muitas regiões do mundo. O período
entre 1905 e 1976 (a revolução cultural na China) é um segundo período da
hipótese comunista.

Seu tema dominante é o tema do partido e seu principal (e inquestionável)


slogan: disciplina é a única arma para quem não tem nada. Em 1976 começa
um segundo período de estabilização reativa que dura até nossos dias — um
período em que nos encontramos, durante o qual temos testemunhado o
colapso da única ditadura socialista de partido único criado no segundo
período.

Minha crença é que um terceiro período histórico da hipótese comunista vai


acontecer inevitavelmente – um período diferente dos dois anteriores, mas
paradoxalmente mais próximo ao antigo do que ao último. Esse período
compartilha com aquele do século 19 o fato de que o que estava em questão
era a existência da hipótese comunista, que nos dias de hoje é constantemente
negada. Podemos definir o que eu, ao lado de outros, estou tentando fazer,
como um trabalho preliminar para a reinstalação dessa hipótese e o
desdobramento do seu terceiro período.

Nós temos a necessidade, nesse novo começo do terceiro período na


existência da hipótese comunista, de uma moralidade provisória para um
período desorientado. O objetivo é manter minimamente uma consistente
figura subjetiva, sem, portanto, ter o apoio da hipótese comunista que ainda
não foi reinstalada em grande escala. O que é importante é encontrar um real
objetivo em que se apoiar – qualquer que seja seu preço –, um objetivo
“impossível” que não pode ser inscrito nas leis da situação. Devemos ter um
objetivo real desse tipo e organizar suas consequências.

A prova cabal ao fato de que nossas sociedades são obviamente inumanas é,


hoje em dia, o alienígena proletário ilegal: ele é a marca, imanente à nossa
situação, do fato de que há um único mundo. Tratá-lo como se ele tivesse
vindo de outro mundo é tarefa específica do “Ministério da Identidade
Nacional”, que tem sua própria força policial (a “Polícia Fronteiriça”). Alegar,
contra um dispositivo de Estado, que qualquer trabalhador ilegal vem do
mesmo mundo que eu, e projetar as consequências práticas, igualitárias e
militantes disso, é um exemplo de uma moralidade provisória, uma orientação
local que é homogênea à hipótese comunista, dentro da desorientação global
que somente sua reinstalação pode afastar.
A principal virtude que precisamos para isso é a coragem. Não é o caso
universal: em outras circunstâncias, outras virtudes podem ser requisitadas
como prioridade. Portanto, na época da guerra revolucionária na China, Mao
promoveu a paciência como uma virtude essencial. Mas hoje em dia é a
coragem. A coragem é a virtude que se manifesta, independentemente das leis
do mundo, por meio da resistência do impossível. A coisa a se fazer é manter
o objetivo impossível sem explicar a situação com um todo: a coragem, na
medida em que é uma questão de tratar o objetivo como tal, é uma virtude
local. Ela surge de uma moralidade local, e seu horizonte é a lenta reinstalação
da hipótese comunista.

* Texto publicado originalmente por Alain Badiou no jornal francês Le


Mondeem 13 de fevereiro de 2010. Tradução de Vinícius Mendes do
inglês publicado no JL em 2011

Vinicius Siqueira
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São
Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do fascismo, suas origens e as
interpretações marxistas sobre o fenômeno.
Autor dos e-books:

 Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;


 Foucault e a Arqueologia;
 Homo Psychologicus: Lendo Doença Mental e Psicologia de Foucault;
 Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.

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