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NA AMÉRICA LATINA
Luiza Lobo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO:
Este ensaio apresenta, concisamente, uma historia da literatura de autoria feminina latino-
americana comentada, incluindo escritoras da America Hispanica e do Brasil. Dados
biograficos e referências às principais obras publicadas por cada uma delas, situados dentro
do contexto historico-social de seu tempo e seguidos de crítica, e a divisao das autoras pelos
temas que melhor as caracterizam visam a tornar transparente a importância desta
literatura. Na introdução do ensaio busca-se, a partir da noção de estudos de gênero, discutir
o significado da escrita de autoria feminina e como se estabeleceu a autonomia desta
literatura na America Latina, através dos seus poucos séculos de existência.
ABSTRACT:
This essay presents a concise information on the history of Latin-American women's
literature, including Spanish America and Brazil. Biographical data and reference to their
main published works are situated within their contemporary social-historical context and
are followed by a short criticism about them. Authors are grouped by the theme that best
characterizes their work. This aims to show their importance in general literature and to
situate them by the literary themes that they employ. In the introduction of the essay,
departing from the notion of gender studies, there is a discussion of the meaning of these
women writers' production and how the autonomy of Latin-American literature was
established throughout its few centuries of existence.
INTRODUÇÃO
Nosso interesse neste trabalho é demarcar o espaço da literatura de autoria feminina através
da história da literatura da América Latina em geral, as grandes linhas em que esta se divide e
que vias se abriram para a escritora contemporânea. No entanto, seria aconselhável,
inicialmente, definir o que é literatura de autoria feminina e em que consiste a postura
feminista na literatura de mulheres.
Atualmente, é extensa a discussão sobre a teoria do "feminismo" enquanto "gênero sexual"
(gender), que deve ser compreendido não como um dado recebido da natureza no nascimento,
mas como uma "construção cultural", ou, na acepção psicanalítica, uma "diferença sexual".
Notamos, por outro lado, que esta discussão faz parte do campo da antropologia cultural e da
sociologia. Ali se explica o feminismo a partir de embasamentos supostamente mais
"coerentes", atendendo a uma exigência de cientificismo racional, naquele sentido lógico e
cartesiano que constitui o pano de fundo das oposições dicotômicas ou binárias que costumam
nortear a sociedade em que vivemos. No entanto, nem sempre esse binarismo contrastante
responde a nossas dúvidas ou corresponde a nossa sensibilidade sobre o assunto. A principal
origem dessas dúvidas repousa na desconfiança de que este propalado "cientificismo", que
eterniza as dicotomias contidas nas divisões entre homem, macho, e mulher, fêmea, se baseia
numa simples analogia inconsciente entre o mundo natural - aparência física - e o mundo
psíquico e cultural.
Hélène Cixous considera, em "Sorties" (ver La jeune née, Paris, 1975), que as oposições com
que a filosofia metafísica caracteriza o real são "clássicos pares heterossexuais da
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filosofia"[1]. Hélène Cixous chama este tipo de reducionismo de "death-dealing binary
thought" (pensamento binário de transação com a morte) [2]. Toril Moi nos alerta sobre a
necessidade da desconstrução de oposições binárias tipo "macho", "fêmea", "forte", "fraco",
"violento", "delicado", "público", "íntimo" etc. Jacques Derrida também criticou as oposições
binárias que constituem o quadro epistemológico de conhecimento do mundo no Ocidente:
espírito versus corpo, cultura versus natureza, razão versus emoção, considerando-as um
sistema falogocêntrico, isto é, centrado no logocentrismo e no falocentrismo (Cixous, 1975,
in Navarro, 1995, p. 186), duas fortes estruturas de poder na sociedade. Jacques Derrida nos
esclarece amplamente como tais polaridades foram estabelecidas através da história da
sociedade greco-judaico-cristã-ocidental a partir do logocentrismo (evidentemente, contendo
idéias patriarcais), e como elas se estabeleceram como verdade. No entanto, tais juízos de
valor podem ser desconstruídos a todo momento a partir de uma escrita feminista crítica, por
exemplo. Por outro lado, os estudos feministas precisariam se descolar com relação a posturas
naturalistas, que encaram a situação dos seres humanos como analógica à natureza, como se
vê nos mitos e nas religiões. O fato é que todas essas assertivas são construções culturais que
têm tanta verdade em si quanta fé coloquemos nelas. Neste sistema falocêntrico que é
transmitido, logocentricamente, a partir da tradição oral da cultura, institui-se um cânone que
privilegia determinados seres - homens - de determinada raça - brancos - e de uma certa classe
social - ricos. As mulheres, os negros, e outras "minorias" (nem sempre numéricas) vêem-se
excluídos das posições sociais mais elevadas, dos estudos acadêmicos, das editoras, dos
cânones literários, e, assim, não surgem como formadores de opinião.
Do ponto de vista teórico, a literatura de autoria feminina precisa criar, politicamente, um
espaço próprio dentro do universo da literatura mundial mais ampla, em que a mulher
expresse a sua sensibilidade a partir de um ponto de vista e de um sujeito de representação
próprios, que sempre constituem um olhar da diferença. A temática que daí surge será tanto
mais afetiva, delicada, sutil, reservada, frágil ou doméstica quanto retratará as vivências da
mulher no seu dia-a-dia, se for esta sua vivência. Mas o cânone da literatura de autoria
feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou
repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo,
que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas "domésticas" e "femininas" e ainda
de outros estereótipos do "feminino" herdados pela história, voltando-se para outros assuntos
habitualmente não associados à mulher até hoje.
Com relação às discussões sobre a teoria da literatura de autoria feminina, o estudo e a
produção do texto literário vivem diversos dilemas: 1) o propósito do escritor, do crítico e do
historiador da literatura é ler ou criar o escrito com uma compreensão que não violente o
texto, mas o ouça como depoimento pessoal e histórico, de modo que muitos conceitos
oriundos de diversas fontes teóricas, seja dos campos citados acima, seja da psicanálise ou da
neurologia, da história, etc acabam por violentar a própria essência sensível da obra literária;
2) muitas das definições que encontramos partem de ensaístas e teóricas que vivem, trabalham
e escrevem em universidades do Primeiro Mundo, e são, portanto, definições que derivam de
observações ligadas àquele universo conceitual e experiência, refletindo as relações
interpessoais que ocorrem ali. Muitas destas definições vêm se formando e se transformando
há muito mais tempo do que na América Latina, devido a se constituírem de culturas com um
índice de leitura e escolaridade, acesso ao saber e níveis de desenvolvimento muito mais
elevados que os das culturas primordialmente orais em que vivemos no chamado Terceiro
Mundo. Isto mesmo se considerarmos, na América Latina, a burguesia, média ou alta, como
praticamente a única classe social que tem uma produção intelectual ligada à escrita, leitura e
discussão de textos literários; 3) o fascínio que em geral sentimos pelas definições
antropológicas ou filosóficas externas ao campo da literatura pode nos levar a fugir de nosso
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objetivo principal, que é o estudo do texto literário em si, embora a partir dele se vislumbrem
possibilidades de intertextualidades. Contudo, estas só podem ser objeto de estudo na medida
em que o próprio texto abra essas janelas, e não quando as comparações textuais sejam
impostas de fora para dentro pelo teórico da literatura, pois, neste caso, se infringiria a
conduta de "escuta" da fala do outro que caracteriza o texto literário criativo; 4) outra
característica dos estudos de literatura de autoria feminina, mas que se apresenta antes como
armadilha num campo minado, é o descritivismo biográfico. A vida das autoras,
minuciosamente descrita, acaba se confundindo com sua obra, cuja qualidade é pouco
discutida, ou cujas características são pouco aprofundadas. Isto ocorre porque as autoras -
especialmente as latino-americanas, incluindo-se aí as brasileiras, mas também as de língua
francesa, inglesa e holandesa do Caribe, as que utilizam o quéchua e outras línguas indígenas
para se comunicarem e cujos textos são anotados e traduzidos por outras pessoas - são muito
pouco conhecidas do público em geral. Assim, a biografia surge como um recurso para avivar
o interesse por suas obras, mas não se deveria reduzir o estudo da literatura dessas autoras à
história de suas vidas.
Portanto, definições "importadas" diretamente para nosso contexto literário causam
inevitavelmente um mal-estar; o mal-estar da sensação de subdesenvolvimento e da
impossibilidade real de ver, perceber, entender além dos horizontes de nossa própria cultura -
a qual, no atual período pós-moderno e de comunicação de massa, só pode ser entendida em
comparação com outras culturas. Por outro lado, o estudo biográfico das autoras também
funciona como uma "importação" quanto ao estudo e análise da literatura, que consiste na
leitura, apreciação - enfim, na recepção do texto literário pelo público leitor - o que ainda não
tem ocorrido em larga escala na América Latina, com algumas exceções.
Tecnicamente, não se poderia falar em literatura "feminista" antes que o termo fosse cunhado,
na década de 60 deste século. O termo "feminino" vem sendo associado a um ponto de vista e
uma temática retrógrados, o termo "feminista", de cunho político mais amplo, em geral é visto
de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser aplicado a uma
perspectiva de mudança no campo da literatura. A acepção de literatura "feminista" vem
carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo
trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no
que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc. Entretanto, o texto
literário feminista é o que apresenta um ponto de vista da narrativa, experiência de vida, e
portanto um sujeito de enunciação consciente de seu papel social. É a consciência que o eu
da autora coloca, seja na voz de personagens, narrador, ou na sua persona na narrativa,
mostrando uma posição de confronto social, com respeito aos pontos em que a sociedade a
cerceia ou a impede de desenvolver seu direito de expressão. Neste sentido, sempre houve
autoras "feministas" dentro do contexto de suas épocas, tornando-se o termo impróprio apenas
por uma questão cronológica. Como exemplo, Safo, Sóror Juana Inés de la Cruz, Gertrudis
Gómez de Avellaneda mostraram uma consciência política ou esclarecida de sua existência
em face da história excepcionais para seu tempo, e poderiam ser eventualmente identificadas
com o "feminismo".
A alteridade pode ser vista não só como um outro antropológico (Lévi-Strauss mostra o
selvagem como um outro igual ao civilizado que deve ser conhecido) ou um outro filosófico
(a consciência da diferença entre pessoas), mas também do ponto de vista psicanalítico: neste
caso consistiria no confronto entre consciente e inconsciente, e, por conseguinte, na
consciência de que não somos um eu total, sem arestas, como querem o humanismo e a
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metafísica, mas um eu com fissuras, com desdobramentos, que é representado pela própria
entrada no universo da linguagem através da fala que constitui, para Lacan, a entrada no plano
do simbólico exterior. Esta alteridade do eu em relação a si mesmo é o ponto de partida da
literatura contemporânea, mas se torna mais aguda quando a literatura, pelo menos desde
1970, percebe que se comporta de modo logocêntrico e etnocêntrico, nas palavras de Lévi-
Strauss, não só a respeito de outros povos e raças mas também com respeito ao outro sexo e às
minorias sexuais. O cânone é demarcado pelo homem branco, de classe média, ocidental. A
mulher insere-se nesta cena a partir de uma ruptura e o anúncio de uma alteridade ou
diferença para com esta visão "falogocêntrica", na expressão de Hélène Cixous.
A alteridade da literatura de autoria feminina tornou-se assim a base da abordagem feminista
na literatura. Ser o outro, o excluso, o estranho, é próprio da mulher que quer penetrar no
"sério" mundo acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por motivos mitológicos,
antropológicos, sociológicos e históricos a mulher foi excluída do mundo da escrita - só
podendo introduzir seu nome na história européia por assim dizer através de arestas e frestas
que conseguiu abrir através de seu aprendizado de ler e escrever em conventos. Por exemplo,
na Alemanha, a freira Hildegard de Bingen (1098-?). Na Colômbia, a Madre Francisca Josefa
del Castillo (1671-1742). No México, a freira Sóror Juana Inés de la Cruz (1648?-1695). Esta,
apesar de sua inteligência privilegiada (além da beleza), precisou declinar da possibilidade de
um casamento ou do trabalho de dama de companhia na Corte do Vice-Reinado, só para ter a
liberdade de escrever e estudar na sua cela no Convento das Dominicanas. Na França, a
primeira escritora francesa, a poetisa Marie de France (antes de 1170-?), embora não fosse
religiosa, só foi alfabetizada devido a sua alta posição social na corte do rei Henrique II e da
rainha Eleonor de Aquitânia. Seu l'Ysopet foi amplamente aproveitado por La Fontaine, em
suas fábulas. Na introdução aos seus Lais, tirou humildemente o valor original de sua
produção, dizendo que se originavam da cultura oral - como se as outras produções da época
também não o fizessem.
Na literatura de autoria feminina, como na literatura de autoria negra ou africana, percebe-se a
existência de um discurso de alteridade político, na medida em que seus representantes se
assumam e se declarem como tal, isto é, como negros, negras, africanos, africanas, ou seja,
como parte de uma etnia não prestigiada ou como mulheres. A literatura de autoria feminina
se constitui naquelas obras em que a literatura se exerce como tomada de consciência de seu
papel social. Ao contrário, há uma postura de igualamento não-feminista ou não racial com as
outras vozes, ou seja, de apagamento das diferenças, e não como uma voz alternativa ou a
expressão de uma minoria. Neste caso, o suposto humanismo que tenta apagar as diferenças
é na verdade temor de acirrá-las, ao fingir não vê-las, como se não tivessem sexo ou cor, e
como se tudo fosse universal. Neste caso, não se pode destacar essas autoras como parte
representativa da literatura de autoria feminina, uma vez que não tomam consciência de sua
posição em face do todo social. É como se essas "minorias" fossem perfeita e placidamente
contempladas pelo cânone literário em geral.
Para Luce Irigaray, em "Une chance de vivre,"[3] a literatura é sexuada, pois "Como se pode
expressar a sexualidade senão através da linguagem?" Como pode haver "uma diferença
sexual, mas não uma sexualidade do discurso"? (1989, p. 50). A língua também não é neutra,
segundo a psicanalista, porque: a) o plural dos gêneros sempre concorda no masculino; b) as
realidades de valor são freqüentemente masculinas em nossas culturas patriarcais; c) em
francês, o neutro, que em geral intervém no lugar de uma diferença sexual apagada, se diz
com a mesma forma que o masculino, no caso de fenômenos da natureza: "il tonne, il fait
soleil" etc, ou nas realidades concernentes ao dever ou ao direito: "il faut, il est nécessaire"
etc. (1989, p. 44-5). Incidimos no aspecto ideológico, quando percebemos que todas essas
afirmações quanto ao gênero da palavra nos parecem verdadeiras, incontestáveis, sem que
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tomemos consciência de que nossa língua resulta de acumulações ideológicas, constituindo
discursos - e quando esquecemos que todo discurso é mutável e historicamente datado (1989,
p. 45).
A proposta de Luce Irigaray é de que a maioria dos discursos de cunho político é vazio, e
nossa tendência é projetar nele nossas sensações, pois o vazio, o nulo, inquieta e apavora
(1989, p. 45). Portanto, junto a um trabalho de autoconsciência coletivo, seria importante que
as mulheres se mantivessem ligadas a um discurso que manifestasse sua experiência subjetiva
como elemento do saber, e o lugar/a origem da fundação deste saber, pois a ciência não é
neutra, universal, perfeita e inacessível, e sim relativa: caso contrário, a ciência se
transformaria em um novo superego para as mulheres. Irigaray propõe também que a mulher
não se abandone a sentimentos espontaneístas ou à espontaneidade excessiva em público,
expressando agressividade, ingenuidade, como se estivesse excluída da cultura, ou como se a
verdade fosse independente da experiência do sujeito (mulher); e que retomasse
constantemente um trabalho de dialética subjetividade-objetividade, para sair da posição de
objeto em que é constantemente colocada (1989, p. 47). Evidentemente, não basta ter-se um
sexo definido, ser-se "fêmea" para se exercer uma posição feminista na literatura, afirma Toril
Moi.[4] Não basta um objeto ligado à experiência da mulher ou ser-se do sexo feminino para
tornar o texto feminista; o que torna um texto feminista é o seu ponto de vista (1989, p. 121).
Aqui lembraríamos, igualmente, a importância da adoção de um sujeito de enunciação, a
consciência deste eu feminista, de que falávamos acima.
A conclusão a que se chega é de que a crítica feminista se insere no plano político, uma vez
que "se caracteriza por seu engajamento político contra toda e qualquer forma de
patriarcalismo e sexismo", como afirma Toril Moi (1989, p. 120). Aqui se poderia alegar: a)
uma contradição com os parágrafos iniciais deste trabalho, em que se colocava a literatura
como o estudo do texto literário autônomo, e não como apêndice da antropologia, da história,
da sociologia etc; b) que a literatura deve ser política, livre, artística. Ora, ambas as
colocações estariam corretas se não houvesse uma situação atualmente insustentável na
história literária mundial. É que a literatura foi até este século uma atividade masculina,
regida por princípios patriarcais e falocêntricos, assim como foi exercida quase
exclusivamente por nobres e por religiosos, durante os períodos medieval, renascentista,
barroco e neoclássico. Foi apenas com o Romantismo que o discurso literário se democratizou
e pôde ser escrito e lido por outras classes sociais, inferiores, e não exercido
hegemonicamente pelo sexo masculino.
A prática e o estudo da literatura sempre foram feitos por homens que estabeleceram os
conceitos teóricos a respeito da posição da mulher na sociedade. Na Antigüidade, passando
pela organização das primeiras sociedades não-nômades, a força física era importante na
guerra, na caça e nos trabalhos pesados, enquanto o trabalho exercido pela mulher no fabrico
dos bens de consumo (tecidos, culinária e trabalhos domésticos e com a prole em geral) pôde
ser substituído pelo trabalho de escravos. Na sociedade grega, o trabalho da mulher, ligado à
casa - tecidos, culinária, organização da casa - quando foi transferido para os escravos
capturados na guerra, foi igualado negativamente ao trabalho escravo, e assim surgiu um
simbolismo negativo com relação a ambos que o exerciam. Assim, surgem, nos escritos da
filosofia platônica e aristotélica, opiniões altamente negativas sobre as mulheres, que depois
vão fundamentar o cristianismo e o pensamento ocidental, e os preconceitos patriarcalistas e
falocêntricos até hoje repetidos sobre as mulheres. Essas idéias penetram na sociedade judaica
e medieval através da Bíblia, que já reflete a passagem do estágio nômade para estável, com a
respectiva divisão do trabalho entre posição de poder e posição de escravo. À medida que a
sociedade passou de nômade a não-nômade, a divisão do trabalho deixou à mulher o trabalho
doméstico, não-remunerado, e os que gozavam de maior prestígio social por suas atividades
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fora do âmbito doméstico assumiram as melhores posições e ganhos sociais oriundos do
trabalho: área jurídica, governamental, financeira etc. Tambem na sociedade medieval, o
trabalho feminino foi igualado ao do servo, no interior do castelo.[5] A desigualdade social
ampliou-se com o mercantilismo e o capitalismo.
O reconhecimento da literatura de autoria feminina, a partir da consciência feminista, que
revolucionou a cultura através da história, ainda não terminou, e a literatura, hoje, não só
atinge o novo público produtor e leitor feminino, como também incorpora outras visões de
alteridade. Hoje esta noção inclui o continente africano, asiático e da América Latina, que
rarissimamente obtiveram voz nas histórias literárias canônicas do passado.[6] Seria
importante estudar a literatura feminista do ponto de vista da Estética da Recepção e da teoria
barthesiana da écriture, pois, no contexto da Nova História ou da história das mentalidades, a
escrita feminista implica um corte em relação às idéias hegemônicas na sociedade patriarcal.
As vivências, o modus vivendi e as mentalidades não podem continuar os mesmos depois da
inserção deste discurso da diferença, que lentamente estabelecerá novos cânones como
conseqüência da introdução de outras formas de expressão e de comunicação social.
É evidente que não há uma história feminista matrilinear ou matriarcal do passado, nem há
teorias puramente feministas - como apontou Simone de Beauvoir em O segundo sexo, ou
como exigiu Mary Jacobus, afirmando que as mulheres não produzem teorias próprias. Para
Toril Moi, apenas importam, na sociedade pós-moderna multidisciplinar e multifacetada, a
aplicação e os efeitos que cada juízo ou cada teoria em particular possam produzir, e não tanto
a origem de uma determinada idéia. Nesta perspectiva, a reescrita, a reinvenção, a recriação -
sempre baseadas na repetição, que nunca é igual - são tão válidas quanto uma suposta criação
original - que desconfiamos que não exista, pois a linguagem se cria a partir de uma cadeia
discursiva incessantemente repetida e diferenciada (ver Deleuze, Logique du sens, 1969).
Luce Irigaray retoma sua posição em "Comment devenir des femmes civiles?"[7] e propõe
não uma dialética dupla, uma voltada para o sujeito masculino e outra voltada para o sujeito
feminino, mas sim uma dialética tríplice: a do sujeito masculino, a do sujeito feminino, e
a de suas relações em pares ou em comunidade.
Como estamos distantes de todas essas afirmações na América Latina! Ao mesmo tempo em
que recebemos as teorias que vêm de outras culturas externas a nós, basicamente da Europa e
dos Estados Unidos, deparamos com o mais vil e mesquinho ambiente social do ponto de
vista econômico e cultural, que impede a mulher do povo de crescer, de ter acesso ao saber e
de desfrutar dos direitos que a sociedade lhe deve, até mesmo antes de nascer, durante a
gravidez da mãe, que é o direito à alimentação, à educação, à saúde e à moradia, enfim, ao
bem-estar social. A literatura, entendida enquanto documento escrito e publicado, na América
Latina, será, talvez, ainda durante um século, uma atividade de uma elite intelectual e dirigida
a um público intelectual. Apesar dos passos gigantescos dados pela mulher latino-americana
em termos de liberdade, de direito ao trabalho e de escolha de sua vida, no que diz respeito ao
todo da sociedade no Terceiro Mundo, só basicamente as mulheres da classe média têm
condições de acesso à escrita e à leitura, à escola e à universidade, à leitura de jornais, revistas
e livros.[8]
Se é verdade que, por um lado, "o período de industrialização integrou a mulher em todas as
esferas do mundo do trabalho, e particularmente no mundo operário", como afirma Luisa
Ballesteros Rosas,[9] por outro são muito poucas as vozes femininas que conseguem superar a
luta pela sobrevivência e escrever ou apreciar a literatura, pesando aí o influxo da mídia que
tem desviado as populações de um exercício mais crítico sobre a sociedade - função que a
literatura exerce de forma primordial. Portanto, apenas num sentido genérico é verdade que
"Hoje as autoras latino-americanas, libertadas do ostracismo dos séculos passados,
introduzem suas vozes em todos os registros da vida intelectual. Suas obras abordam com
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êxito os mais diversos gêneros, que elas enriquecem com múltiplas perspectivas" (idem, p.
277).
CONTEXTO POLÍTICO-SOCIAL
Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação por que
passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade
e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira - através,
basicamente, do trabalho jornalístico, diplomático (na América Hispânica, principalmente na
Argentina e México) e o professorado. Ocorreu assim uma paulatina mudança da condição
"feminina" para a condição "feminista". Desde a década de 1970, a consciência do corpo e o
questionamento da existência, com a maciça entrada das escritoras na Universidade, pelo
menos desde a década de 1950, tornaram suas vozes mais intensas. As escritoras passaram a
expressar suas realidades psicológicas, interiorizadas, filosóficas, introvertidas e superaram o
estágio em que repetiam o estilo dos homens, no século XIX. Para Elaine Showalter houve
três fases neste tipo de literatura: 1) feminina: aparecimento da produção na década de 1840
até a morte de George Eliot, em 1880; 2) feminista: de 1880 a 1920, com obtenção do voto; 3)
"fêmea" (de cunho sexual assumido ou de gênero feminino): de 1920 até o presente, mas com
novo estágio de autoconsciência por volta de 1960.[10]
Situações políticas vividas na América do Sul levaram ao exílio muitas escritoras do século
XX. Por exemplo, a chilena Isabel Allende (1942- ), Cristina Peri Rossi (Uruguai, 1941- ) e
Luisa Valenzuela (Argentina, 1938- ). No século passado, a poeta e dramaturga cubana
conhecida como "La Avellaneda" - Gertrudis Gómes de Avellaneda (1814-1873). Ela viveu
durante anos na Espanha, até mesmo num convento num período em que ficou viúva, mais
tarde retornando para Cuba, onde foi muito celebrada. As guerras nacionalistas levaram a
argentina Juana Manuela Gorriti (1818-1892), em companhia do pai, general Gorriti,
derrotado pelo federalista Juan Facundo Quiroga, e a família, a exilar-se na Bolívia. A peruana
Clorinda Matto de Turner (pseudônimo de Grimanesa Martina Mato Usandivaras, 1852-
1909), depois de sair de Arequipa para Lima, ao casar-se, em 1885, teve de exilar-se no Chile,
em 1895, após a destruição de seu jornal e casa devido à subida ao poder de Piérola, quando
ela havia apoiado Cáceres; depois de uma viagem pela Europa, em 1908, exilou-se em
Buenos Aires, já enferma de pneumonia, e ali veio a falecer.
No início deste século, a porto-riquenha Julia de Burgos (1914-1953) viveu em constante
conflito político, lutando pela causa independentista de seu país. Sofreu todo tipo de
preconceito racial, por ser mulata, como, por exemplo, não ser aceita em público por seu
amante, o político de São Domingos Jiménez Grullón. Por esses motivos, veio a exilar-se em
Nova York. Ali se casa, em l943, com Armando Marín, muda-se para Washington e, voltando
a Nova York, morre extremamente pobre e abandonada, sofrendo discriminação racial, sem
conseguir obter trabalho, sendo enterrada como mendiga. Só posteriormente a família localiza
seus restos mortais, trasladando-os para Porto Rico[11]. Também María Luisa Bombal, que
travou contato em Paris com Breton e foi amiga de Borges, quando viveu em Buenos Aires,
casa-se com um norte-americano e passa a residir em Washington, onde traduz suas novelas.
Só retorna ao Chile já viúva e idosa, recebendo muitas honrarias. A chilena Gabriela Mistral
(pseudônimo de Lucila Godoy Alcayaga, 1889-1957), inicialmente professora primária de
origem humilde, e nascida numa região indígena pobre no norte do Chile, chegou a ganhar o
Prêmio Nobel de literatura, em 1945, quando estava no Rio de Janeiro, ocupando um cargo
diplomático. Também residiu no México, a trabalho, e termina por fixar residência definitiva
nos Estados Unidos, onde veio a falecer. Rosario Castellanos, mexicana, dedicou-se
Madre María Francisca Josefa del Castillo y Guevara, Madre Castillo, ou Josefa del
Castillo, da Colômbia (Vice-Reino de Granada, 1671-1742), é autora de poemas, uma
autobiografia, Vida (1. ed. 1817) e uma segunda obra em prosa intitulada, nos manuscritos,
"Afectos sentimentales", mas que é publicada com o título de Sentimentos espirituales, apenas
em 1843 (vol. 1) e 1945-1946 (vol. 2). Esta já foi comparada aos escritos da madre espanhola
Sóror Teresa de Jesús, Castillo interior, o tratado de las moradas (1588). Ali se revela
profundamente mística, relatando suas iluminações, que a tornam "a esposa de Deus". As
vozes que ouvia são atribuídas ao diabo por seu confessor. Após trabalhar numa Ordem como
simples leiga, lutou contra muitos preconceitos para ser aceita como freira, exercer cargos
hierárquicos, chegando a madre superiora, por saber ler. Por isto e por provir de origem
humilde, despertou desconfiança e despeito das outras freiras. Manteve, com elas, um
péssimo relacionamento, mas uma obediência total para com os confessores. Como está longe
Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (R. S. ?) escreveu uma novela de apenas 40 páginas,
de feição romântica, acompanhada de contos curtos, intitulada O ramalhete; ou flores colhidas
no jardim da imaginação (Porto Alegre, Typ. de T. J. Lopes, 1845. 78 p.).
Maria Firmina dos Reis (São Luís, 1825-Guimarães, 1917) é provavelmente a primeira
romancista brasileira e sem dúvida a primeira maranhense, com seu Úrsula (1859). Este foi
também o primeiro romance abolicionista brasileiro. Era pobre, mulata, solteira, e foi a
primeira professora primária concursada no Maranhão. Adotou cerca de dez crianças, e
morreu pobre, cega e esquecida na cidade de Guimarães, no continente, longe da capital.
Úrsula emprega uma ótica folhetinesca e europeizante, que nada fica a dever à Moreninha, de
Joaquim Manuel de Macedo, e se assemelha ao idílio ingênuo e exacerbado de Paulo e
Virgínia (1787), de Bernardin de Saint-Pierre, obra que ela cita no capítulo 13. Escreveu
poemas e contos no Semanário Maranhense e outros jornais, e publicou o livro de poemas de
cunho lírico ou político, Cantos à beira-mar (São Luís, 1871). Escreveu também o primeiro
diário de mulher de que se tem notícia (embora publicado apenas em 1975, pelo historiador
José Nascimento Moraes Filho, integrando o importante Maria Firmina, fragmentos de uma
vida). Neste livro, Moraes Filho inclui suas composições enquanto folclorista, autora de
charadas e compositora.
Úrsula, no romance homônimo, é descrita na cena final de forma semelhante a Ofélia, louca,
delirante, vestida de branco e segurando flores. O contexto do romance é o "gótico" ultra-
romântico: vejam-se a morte da mãe da heroína, enterrada num cemitério com lúgubres aléias
de ciprestes curvados ao vento, o assassinato do noivo na porta da igreja, momentos antes do
casamento com Úrsula, pelo próprio tio, que a amava, a reclusão da noiva num convento, o
tema do quase incesto (entre tio e sobrinha), tão ao gosto do Romantismo, a conversão do
assassino (o tio de Úrsula) a padre e seu arrependimento diante da loucura ofeliana da moça.
Júlia Lopes de Almeida (Rio de Janeiro, 1862-1934) tem ampla obra em prosa, em diversos
gêneros, do teatro ao romance, seja didático, lírico ou epistolar. Correio da roça (1913) é um
romance epistolar, didático e de formação (Bildungsroman) - aqui centrado na educação das
moças. A troca de cartas entre duas amigas apresenta, por parte da amiga da cidade, conselhos
que permitem à outra plantar e organizar um sítio para seu sustento e o de suas filhas, depois
que ficou viúva. A educadora urbana é caracterizada com o perfil da mulher "moderna",
dinânima, auto-sustentável. A outra, do campo, viúva, com dificuldades de sobreviver, educar
e casar as filhas, conforma-se com seu papel de "educanda" e "rural". Este romance de
formação (Bildungsroman) não é um convite à aventura e à manutenção da tradição familiar,
como no romance centrado no personagem masculino, mas antes se constitui num romance de
formação doméstica, caseira.
Gabriela Mistral (pseud. de Lucila Godoy Alcayaga,Vicuña, 1889-Estados Unidos, 1957) foi
a única mulher na América a receber o Prêmio Nobel. Seu principal livro foi o primeiro,
Desolação (1922), refletindo profunda tristeza pessoal pelo suicídio de seu jovem amado.
Talvez este livro nunca tenha sido superado pela autora, devido a sua lírica e intensa
dramaticidade afetiva. Não traz as marcas modernistas de outros grandes nomes da literatura
de então: Joyce, Eliot, Pound, Gertrude Stein, nem os protestos nacionalistas e programáticos
do Modernismo brasileiro, de um Oswald e de um Mário de Andrade. Muitos críticos também
se indagaram se o uso imperfeito da métrica e da rima por Mistral era voluntário ou se
resultava do desconhecimento das regras de versificação. Na sua obra, marcada pela
musicalidade, destacam-se a elegia dos pequenos momentos, o despojamento, a sinceridade
nos afetos, revelando o amor de professora primária. Não teve filhos, adotando uma criança
que morreu na adolescência, o que provocou nova e profunda tristeza na autora.
Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901-1964) estréia parnasiana e segue, na sua poesia, o
caminho do Simbolismo para penetrar no Modernismo, aliás, como o próprio Mário de
Andrade, que também partiu das teorias musicais simbolistas de René Ghil. Ao contrário
deste, contudo, desvia-se das ousadias experimentais e ideológicas dos modernistas,
preferindo um mundo de sentimentalismo quase místico - como o do Romanceiro da
Inconfidência, no qual compara Tiradentes a Jesus Cristo e os outros Inconfidentes aos
Apóstolos.[14] Pode-se considerar a mineira
Adélia Prado (Divinópolis, M.G., 1936- ) assume abertamente, em seus livros de poesia,
conto, pensamentos e memórias, seu misticismo católico, como Gabriela Mistral, Murilo
Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, entre outros que a
antecederam, principalmente os poetas da fase mística conhecida como "geração de 45".
1.3. EROTISMO
Delmira Agustini (Montevidéu, 1886-1914), culta e mimada menina rica, se mostra ousada
na sua poética da segunda década do século XX. Desenvolve o verso branco, moderno e
despojado em O livro branco e Correspondência, ambos influenciados pelo simbolismo
hispano-americano (chamado, na literatura hispânica, "Modernismo"), de Julio Herrera Y
Reissig, Leopoldo Lugones e Rubén Darío. Porém, envolvendo-se num casamento mal-
sucedido e condenado pela família, pois ele era um negociante de cavalos, encontra a morte
pelas mãos do próprio ex-marido. O Dicionário de literatura uruguaia insinua que um amante
no meio literário pode tê-lo levado a assassiná-la com um tiro e a atirar em si mesmo em
seguida, numa tragédia que até hoje marcou a interpretação da vida e da obra da autora,
devido ao mistério que a cerca.
Alfonsina Storni (Suíça, 1892-Rosário, 1938), ativa moça, filha de imigrantes suíços (nasce
naquele país casualmente, numa visita dos seus pais aos avós), começa a vida em Mendoza,
na Argentina, vive o drama da falência da fábrica de cerveja do pai, trabalha numa fábrica de
toucas, torna-se atriz itinerante, professora. Como Gilca Machado, Storni também viveu
dificuldades financeiras, sofreu preconceitos e teve de educar a uma filha ilegítima sozinha, o
que marcou excessivamente a orientação nas suas peças teatrais com uma revolta quase
pessoal contra o homem e o machismo. Seus poemas são incisivos e eficazes. Mas pode-se
dizer que foi, na década de 1920-30, uma feminista. Suicida-se em Mar del Plata, ao descobrir
que tem câncer, tendo antes enviado, na véspera, seu poema de despedida a um jornal. O
suicídio corta muitas carreiras de escritoras.
Josefina Plá (Paraguai, 1909- ) tem uma poesia erótica com uma forte relação com a terra, a
lama, o amor, o corpo, a vida. Suas peças teatrais mostram uma forte valorização do índio
guarani na cultura paraguaia.
Outras escritoras brasileiras que apontam para o comportamento erótico da mulher, embora de
modo velado e ligado à casa, são Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo
Bandeira de Melo (Rio de Janeiro, 1852-1910), no livro de contos Gradações (1897) e Maria
Benedita Bormann (Porto Alegre, 1853-Rio de Janeiro, 1895), que assinou com o
pseudônimo de Délia o romance Celeste (1893), entre outros.[15]
2. POLÍTICA
2.1. INDIANISMO
Isabel Allende, já no século XX, em A casa dos espíritos, após apresentar o índio arrasado no
sul do país, ao final do livro introduz a misteriosa e mágica cultura dos índios nos altiplanos
ao norte do Chile, através de rituais aterrorizantes e fantasmagóricos - um tom já presente na
última fase da poesia de Mistral, quando ela se volta para a mesma região, envolta em
sombras, onde nascera.
Josefina Plá (Espanha, 1909- ) emigrou da Espanha para o Paraguai em 1927, com o marido,
um ceramista paraguaio. Mesmo após a morte deste, continuou morando no país. Foi
importante figura cultural no país, também ceramista, poeta, ensaísta e autora de várias peças
teatrais premiadas. Entre estas, Cenáculo Vy' à Raity, título que em guarani significa "Ninho
de alegria", centra-se num pai espanhol que não queria legitimar os cinco filhos que tivera
com uma índia guarani. A comédia Aqui não se passou nada (1942) é considerada sua melhor
peça.
2.2. ABOLICIONISMO
Sab (1839), por Gertrudis Gómez de Avellaneda, é um romance de tese em dois volumes
escrito ao gosto de A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, mas se baseia numa
lenda cubana, em que um escravo apaixonado pela dona sacrifica sua vida por ela, ocultando
o caso amoroso desta com um cavalheiro indigno.
Maria Firmina dos Reis escreveu o conto abolicionista "O Escravo" (publicado no
Seminário Maranhense em 1870), reproduzindo uma conversa de salão na qual um dos
convivas culpava a escravidão por ser um anti-humanismo degradante para a sociedade.
Julia de Burgos (Porto Rico, 1914-1953) teve vida trágica, como relatado acima, em seu
exílio em Washington e depois em Nova York, vítima da pobreza e falta de trabalho, devido
ao preconceito racial. Seu poema "Ay ay ay de la grifa negra" elogia os próprios cabelos de
negra.
Victoria Ocampo (Buenos Aires, 1890-1979) foi editora da prestigiosa revista Sur de 1931 a
1970. Por sua ousadia, foi vítima de preconceitos sociais entre outros proprietários da alta
sociedade no campo próximo à capital, por ter construído uma casa em estilo moderno.
Mulher rica, age como conquistadora e empreendedora mulher de negócios. Publica ensaios e
romances e retrata, nos sete volumes de Testimonios, a vida e o mundo literário na Europa e
na Argentina, por onde circula, íntima de intelectuais e homens de poder. Recebe Keyserling e
Rabrindanah Tagore na Argentina, tornando sua casa em Buenos Aires um verdadeiro salão
literário. Traduz e escreve sobre Virginia Woolf.
Teresa de la Parra (Paris, 1889-Caracas, 1936), depois de órfã de pai, que era cônsul
venezuelano em Paris, foi com a família de Paris para Valencia, Espanha, onde estudou numa
escola católica, e finalmente para Caracas. Permaneceu solteira, criou um grupo de escritoras
francesas e latino-americanas em 1924, foi conferencista. Seu primeiro romance, Diário de
uma senhorita que se entediava (1922), republicado como Ifigênia (1924), é um clássico do
costumbrismo, mostrando a vida em Caracas no início do século a partir de suas recordações.
As Memórias de Mama Blanca (1929), com depoimentos imaginados sobre a infância de uma
velha que vivia numa fazenda de açúcar, é considerado seu melhor livro, embora não a meu
ver. Ifigênia é um livro vivo, universal, retrato de uma época em que o "feminino" ocupava o
procênio da vida da mulher burguesa. A personagem mostrava uma preocupação exagerada
com compras, faceirice, narcisismo, casamento, vida em família, ao mesmo tempo em que
demonstrava um início de tênue luta pela liberdade. A escritura mostra, respeitando o contexto
do seu tempo, a rebeldia e a inteligência como aspectos vivos e persistentes, apesar da
repressão social, tornando a personagem, além de verossímil, altamente feminista, a seu
modo. Escapa da fantochização e da infantilização do personagem feminino, tão comuns nos
romances costumbristas ou "de época". A autora revela influência das teorias racistas de seu
tempo ao criticar a figura física do negro em Bogotá ou a petulância da mulher mulata do tio
de Ifigênia, que lhe roubou a herança paterna.
Poderíamos traçar um paralelo entre Ifigênia e o diário Minha vida de menina (1942, escrito
entre 1893 e1895), de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant,
Diamantina, M.G., 1880-Rio de Janeiro, 1970). Este contém memórias de infância em Minas
Gerais, redigidas em estilo cativante e cultivado, como o de Mme. de Ségur, na França, mas
destituídas da visão universal, de mundo e da crítica urbana e social que encontramos na prosa
de Teresa de la Parra, principalmente em Ifigênia. O termo "costumbrismo" teria como
paralelo "romance de costumes" no Brasil, e, embora praticado aqui, no século XIX, por
Martins Pena, no teatro, e por José de Alencar, essencialmente na prosa, não encontra o
mesmo interesse por parte da crítica brasileira que por parte da crítica de língua espanhola.
Julia de Burgos (Porto Rico, 1914-1953) escreveu poemas políticos, de defesa da abolição da
escravatura, da independência com relação à Espanha, e poemas de negritude, anunciando-se
negra e elogiando os próprios cabelos, como em "Ay ay ay de la grifa negra". "Rio Grande de
Loíza" é um poema lírico que todos conhecem de cor em Porto Rico e que se transformou
numa espécie de culto nacional, depois da grande destruição da natureza da ilha, com o
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capitalismo selvagem do Terceiro Mundo. Poderíamos traçar um importante paralelo entre
Julia de Burgos e
Maria Firmina dos Reis, cujos Cantos (1872) trazem inúmeros poemas patrióticos sobre
soldados retornados da Guerra do Paraguai, poemas abolicionistas, além do conto "O
Escravo", e sua posição abolicionista e republicana aprofundada em Úrsula (1859). Poucas
escritoras desenvolveram o espírito patriótico no século XIX, como Juana Manuela Gorriti e
Clorinda Matto de Turner. No Brasil, o espírito político-patriótico, com a exceção de Maria
Firmina dos Reis, encontra representação apenas no século XX, com Patrícia Galvão (Pagu),
que escreve Parque industrial (1933), um livro de feitio comunista.
Isabel Allende (Santiago de Chile, 1942- ) se exilou no Peru, como jornalista, e se destacou
com o romance A casa dos espíritos (1985), ainda não superado quer por seu outro romance,
De amor e de sombras (1984), quer por sua novela, Eva Luna (1987), nem por suas demais
obras. Embora denote um forte parentesco com Cem anos de solidão (Buenos Aires, 1967), de
Gabriel García Márquez, pois seu estilo também emprega o realismo mágico, o livro traz, no
entanto, como marca de originalidade, um ponto de vista exclusivamente feminino,
delineando a ação real sempre a partir desta ótica. Os diários da avó Clara, localizados pela
neta Alba, que conduz a narrativa, servem de argumento e fio condutor para que esta articule
todo o discurso fragmentado das mulheres da família e revele a alegria da descoberta do belo
e da vida, que em geral é o reprimido e o recalcado no discurso feminino.
Neste livro entre o romance e o memorialismo, ressurge o recalcado do passado feminino.
Allende mostra as atitudes patriarcais e colonialistas do avô espanhol, Estebán Trueba,
permitidas pela colonização que arrasa os índios, no sul do Chile, suas atitudes autoritárias na
fazenda, reprimindo os empregados e seus familiares, e até sua própria mulher, Clara. Esta
acaba se calando, deixando apenas os diários para a imaginação da neta Alba recortar na
criação do romance. Da vida na fazenda, o texto passa a incursionar pela atuação do avô
Esteban Trueba na política, no centro urbano de Santiago, acompanha a vida do casal dentro
da casa cheia de recordações e silêncios e as conseqüências da repressão política da década de
1970 sobre a família de Trueba. É um verdadeiro "romance de fundação" da América
Hispânica, além de se constituir num Bildungsroman feminino. Pode-se comparar a ele, em
alguns aspectos, o romance A República dos sonhos (1984), de Nélida Piñon, mas não há
muitos outros exemplos de romances semelhantes de autoria feminina latino-americana, na
atualidade. É, portanto, uma tentativa de épica chilena, na ótica feminina. Infelizmente, a
autora incide eventualmente no sentimentalismo novelesco ou na vitimização e dependência
da personagem Alba (neta e narradora). Estes aspectos denunciam uma certa imaturidade
desta obra, principalmente no seu desfecho. Alba Trueba não exerce uma escolha consciente e
política, sendo presa pelo Exército não por sua atuação política, mas por vingança pessoal
familiar. Inicialmente, na prisão, mostra um perfil vitimizado, ingênuo e dominado. A
motivação da prisão de Alba é a busca de seu namorado, o ativista Miguel. Ela se mostra
totalmente despreparada para um acontecimento desses, em plena ditadura. A dura realidade
do golpe do Estado chileno de 1973 é diluída nesta trama novelesca que se reduz ao drama
pessoal do neto ilegítimo de Trueba, que pertence aos quadros da direita e quer se vingar da
neta legítima e herdeira. Esta trama pessoal pode até parecer "justificar" torturas e choques
elétricos, e a coincidência dos dois herdeiros se enredarem nesta situação é bem ao gosto
romântico e inverossímil.
Raquel de Queirós (Fortaleza, 1910- ) sempre será lembrada por seu primeiro romance, O
Quinze (1930), que é um dos melhores do chamado "ciclo nordestino do romance de trinta".
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Relata os problemas e a situação de pobreza atávica oriundos das constantes secas e
emigrações dos povos interioranos para as capitais do Nordeste, num interminável ciclo. Esta
obra sobrepuja A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, que, embora
cronologicamente anterior e inauguradora do ciclo da literatura regionalista, guarda um
indisfarçável tom sentimental romântico, e muito pouca preocupação com o meio ambiente e
a crítica social.
Patrícia Galvão (que tinha o apelido de Pagu, São Paulo, 1910-Santos, 1962), teve destacada
atuação no Partido Comunista Brasileiro. Foi jornalista e figura importante entre os
modernistas, chegando a casar-se com Oswald de Andrade, com quem teve um filho.
Jornalista, viajou à China, donde trouxe a semente de soja para o Brasil. Presa por suas
atividades comunistas na França, passou cinco anos encarcerada, sendo deportada para o
Brasil. A famosa revista (1945) é um livro escrito a quatro mãos com o segundo marido,
Geraldo Ferraz. Deixou alguns poemas e manuscritos, e um romance proletário, Parque
industrial (1933). Este era um retrato psicológico original do dia-a-dia das operárias numa
fábrica (no qual o marido Oswald de Andrade aparece como um burguês conquistador), e teve
de ser publicado com o pseudônimo de Mara Lobo, por exigência do Partido Comunista
stalinista de então, que o considerou excessivamente intimista. Na verdade, a autora assumia
ali, como ponto de vista, os sentimentos das proletárias ingênuas que trabalhavam na fábrica e
eram enganadas pelos homens burgueses.
María Luisa Bombal (Santiago do Chile, 1910-EUA, 1980) provoca uma virada da
linguagem realista-regionalista para a literatura surrealista do imaginário, sob a influência de
Breton e Borges, tendo com este travado contato pessoal. Contribuiu para a fixação da escrita
feminina enquanto expressão do imaginário, seja enquanto gênero testemunhal, seja na
narrativa em prosa, subjetiva, introjetada, enquanto poema em prosa ou romance lírico.
Escreveu contos e novelas tão enigmáticos quanto belos, de uma beleza só explicável pela
simbolização de elementos femininos recalcados.
Além de imagens surrealistas, Bombal utiliza o mito, como no conto "Tranças", em que a
mulher perde sua força ao cortar os cabelos. Em A Amortalhada (1938), posterior a Enquanto
agonizo (As I lay dying, 1930), de Faulkner, também é uma mulher de dentro do caixão (a
persona da autora) que relata a estória, mas aqui em plano imaginário e na primeira do
singular, e não como no escritor americano, no qual as falas da mãe morta são dramatizadas e
deslocadas para as pessoas da família, sendo a ação que prevalece.
Luisa Ballesteros Rosas lastima a omissão de Bombal e outras escritoras dos livros que tratam
do boom da literatura latino-americana. Considera que a mulher sempre se recusou a assumir
uma posição militante nos movimentos modernistas radicais, deixando aos homens a posição
de liderança (ver comentários acima sobre Gilca Machado, Cecília Meireles e Clarice
Lispector, com relação ao Modernismo/programático).
Silvina Ocampo (Buenos Aires, 1903- ), em parte ofuscada pelo sucesso literário e brilho
social da irmã Victoria e a atuação do marido Adolfo Bioy Casares, parceiro de Borges,
deixou contos preciosos no estilo do Surrealismo e do Realismo mágico, embora não seja
citada no movimento do boom latino-americano, como nos informa Ballesteros Rosas.
Lygia Fagundes Teles (São Paulo, 1923- ), que faz incursões no plano do psicológico e nas
motivações internas das personagens, como no romance As Meninas (1973), e no realismo
mágico, como na coletânea de contos de Seminário dos ratos (1977), entre outros.
Luisa Valenzuela (Buenos Aires, 1938- ) é uma jornalista que se exilou em Nova York desde
1979, onde mora e leciona. Há em sua obra, como nos mostra a intensa leitura de feministas, a
partir dos psicanalistas Deleuze e Guattari e dos escritos barthesianos, um constante
autocentramento na própria linguagem. Suas tramas enredam-se em metáforas, jogos de
palavras que se referem, sob disfarces e de forma irônica, à violência na política e no
patriarcalismo da sociedade argentina. Gilles Deleuze afirma, a respeito de Klossowski (ver
Logique du sens, 1969), que, na literatura contemporânea, o corpo desliza para a linguagem e
esta dramatiza a expressão do corpo, vivenciando-o. Noutros termos, uma sintomatologia
corporal é repassada para a linguagem, tornando-a ativa, libertária. Em Rabo de lagartixa
(1983), Valenzuela trabalha temas políticos em estilo onírico, metafórico e lírico; em Livro
que não morde (1980), coletânea de alguns contos de outras antologias, exibe a fragmentação
de idéias no uso da linguagem do cotidiano e dá vida ao significante, que ganha uma estranha
independência com relação ao significado.
Alejandra Pizarnik (Buenos Aires, 1936-1972), como Virginia Woolf, Sylvia Plath, Anne
Sexton, Ana Cristina César e, em menor escala, Clarice Lispector, freqüentou os hospitais
psiquiátricos, sofrendo os tratamentos de choque-elétrico disponíveis na época. Transforma os
sintomas do corpo e do sentimento em matéria de poesia. Ironia, solidão e metáfora
impregnam A terra mais longínqua (1966) e seus quase dez livros de poemas. O apelo sem
resposta diante da perda da identidade está claro neste trecho poético de Pizarnik: "alejandra,
alejandra / por debajo yo soy / alejandra" (La última inocencia, 1956, p. 27).
Comparando-se este trecho com o "Estou procurando, estou procurando", que abre A paixão
segundo G.H. (1964), nota-se que, apesar da constante busca de novos significados para
povoar um mundo existencialmente insatisfatório e aberto ao questionamento, Clarice
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Lispector jamais em sua obra efetua a total dissociação entre o eu consciente e o eu
inconsciente, sempre se amparando no emprego do significado dicionarizado da palavra. Em
Pizarnik, ao contrário, o significante psíquico substitui o uso denotativo e o significado vulgar
dos vocábulos e o sentido é obtido através da associação de idéias do leitor, que o deduz a
partir de metáforas soltas e entrecortadas antes que de uma leitura lógica, sintagmática e
racional do texto. Em Lispector, a linguagem é vista como o espelho do real em si, a partir do
eixo da verossimilhança, e a identidade de quem narra é relativamente una e indivisível, não
fragmentária e dissociada como no discurso pós-1980. Neste tipo de prosa, a loucura invade o
discurso e a fala do eu desintegra-se ao ocorrer a identificação entre a subjetividade e a
realidade, através da linguagem metafórica. Na dissociação do eu e sua identificação com a
linguagem de expressão metafórica, Pizarnik compartilhava de um mundo onírico e poético
semelhante ao presente em Júlio Cortázar, em Jogo da Amarelinha (1963), Sérgio Sant'Anna,
em Memórias de Ralfo (1970), e Carlos & Carlos Sussekind, em Armadilha para Lamartine
(1976), falso diário no qual o filho Carlos questiona o mundo real através de uma
identificação maníaca e psicótica com o outro Carlos, seu pai, homem político, a própria Lei,
cujo diário reutiliza, em nome do pai.
Assim, para autoras contemporâneas como Pizarnik e Valenzuela, a linguagem é vista como
significante e não como significado. Esta consciência autodiscursiva, derivada da écriture
femme de Hélène Cixous, já presente no cotidiano da escrita dessas duas escritoras
argentinas, não tem correlato na escrita das brasileiras, cujo uso da linguagem liga-se ao
significado, com uma escrita em geral colada à verossimilhança na descrição do real.
Desde o Barroco, morte e vida, erotismo, narcisismo e suicídio surgem através da busca da
morte procurada por Sóror Juana Inés de la Cruz. O gênero "biográfico" e "memorialista"
(depoimentos, diários, cartas, testemunhos) que apareceu na Europa e outros países, com
George Sand e Virginia Woolf, se expandiu no século XIX, e pode ser encontrado em Anais
Nïn, Anne Sexton, Sylvia Plath; mas, na América Latina, já estava presente em Madre
Castillo, Alfonsina Storni, Alejandra Pizarnik e Ana Cristina Cesar - sendo o suicídio apenas
uma faceta externa da imagem de autosacrifício e melancolia presentes nas letras pós-
simbolistas e decadentistas, onde o ego erótico não cabe em si e se transborda na morte.
Para além da explicação psicanalítica, o fracasso em se encontrar o sublime kantiano no
período pós-romântico - que no teatro e na poesia romântica autobiográfica de La Avellaneda
é puro sucesso - explica-se pela dificuldade que sentem as escritoras, no mundo real
contemporâneo do fazer, quando já não é possível continuar a exercer um papel puramente
literário no plano do imaginário e da sublimação. Superar a barreira do real e penetrar no
mundo do trabalho, do concreto, do reconhecimento literário é o lento caminho da escritora
contemporânea. O fracasso da escritora em conseguir penetrar no cânone literário falocêntrico
- como no caso de Gilca Machado, ou no suposto suicídio de Benedita Bormann - pode levá-
la à denegação da vida e ao exílio social. Por outro lado, a atuação de Victoria Ocampo, que
fundou a revista Sur e nos deixou o amplo depoimento sociopessoal Testemunho, em seis
volumes, mostra que a escrita da mulher não precisará ser sempre uma Via-crucis do corpo,
para relembrar título de obra de Lispector.
O erotismo na poesia do século XX esteve acompanhado de uma profunda consciência da
iminência da crise e da morte, em Alejandra Pizarnik e em Ana Cristina César, com
fragmentação, loucura, desespero, suicídio - mas já era traço latente na poetisa Sóror Juana
Inés de la Cruz ou na vida social reclusa de Juana de Ibarborou. Esta inclinação para a morte,
a auto-reclusão, a auto-consumação com traços de expiação da culpa, que são traços
recorrentes na escrita feminina, que assassina aos poucos o próprio corpo, também pode se
deslocar simbolicamente para um objeto imóvel, como na identificação da narradora de La
última niebla (1935), de María Luisa Bombal, com a árvore, o fruto, a terra, a natureza.
Uma nova épica feminina pode ser vislumbrada a partir do romance de fundação de Isabel
Allende, A casa dos espíritos (1982), paralelamente à nova ficção feminina negra brasileira da
década de 1970. A prosa e a poesia que tentam apresentar uma mulher ousada, independente,
não vitimizada pela sociedade patriarcal, na verdade constituem uma tentativa de criar uma
nova expressão rebelde ou autoassertiva da mulher - enquanto grupo não passivo, e como uma
alteridade na sociedade pós-moderna. Esta nova linguagem empresta, efetivamente, um papel
ativo à mulher na ficção, e sem dúvida terá um efeito importante na sua relação com a história
da literatura escrita por homens, como um todo.[16]
Em meio a um panorama tão pessimista na literatura feminina da América Latina, reprimido
entre o narcisismo e a viagem interior,[17] talvez sejam Allende e Lispector as pioneiras na
apresentação de um quadro mais combativo e revolucionário rumo a esta nova épica, urbana
e afirmativa para a mulher, afastada do regionalismo ou do didatismo moralista do
Bildungsroman, que ainda mascaravam a situação de dependência psicológica e econômica
da mulher. Neste caso, a forma didática e distanciada de tratamento do tema feminino não
considera a subjetividade e a identidade da mulher, afastando-se do ponto de vista feminista.
É claro que suas heroínas ainda não são modelos totalmente autônomos de mulheres, mas tais
modelos deverão aparecer com maior freqüência, na medida em que se estabeleça uma
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Notas: