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Partitura

que fez Villa-Lobos ser acusado


de plágio é descoberta
Documento original da ária de 'Bachianas nº 5' foi encontrado por pesquisadores
20.mai.2019 às 21h37
Luciana Medeiros
RIO DE JANEIRO

Em março de 1939, estreava na Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro, a


primeira parte da peça que se tornaria o maior hit da música clássica brasileira
no mundo —“Ária”, ou “Cantilena”, das “Bachianas n° 5”, de Heitor Villa-
Lobos, para oito violoncelos e soprano.
A partitura que se conhece desde então tem letra de Ruth Valladares Corrêa, que
cantou na primeira audição. Pouco depois, em maio, a “Ária” seria interpretada
por Bidu Sayão no pavilhão brasileiro da Feira Mundial de Nova York. A partir
daí, entrou para o repertório de grandes sopranos, regentes, orquestras e até
estrelas da música popular como Joan Baez e Elizeth Cardoso.

Mas essa história acaba de ganhar um novo capítulo com a aparição da partitura
original manuscrita da composição de Villa-Lobos, com letra de Altamirando de
Souza. A descoberta foi feita no acervo do compositor, regente e professor José
Siqueira. Pela primeira vez surge o documento sem intervenções, com data de
1938.
Sobreposição de nova partitura da ‘Ária’ das ‘Bachianas nº 5’ sobre o rosto de Villa-Lobos  - Edson
Salles/Folhapress

A ordenação desse acervo vem sendo feita pela Academia Brasileira de Música,
a ABM, em parceria com a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. O vice-presidente da ABM, André Cardoso, achou a partitura no
material doado pela neta de Siqueira às instituições.

Paraibano, Siqueira marcou época, embora não seja tão famoso. Fundou, com
Villa-Lobos, a ABM, além da Ordem dos Músicos do Brasil, a Orquestra
Sinfônica Brasileira e a Sinfônica Nacional. Foi aposentado na época do AI-
5 por sua militância comunista.

Claudia Castro, diretora do Museu Villa-Lobos, vê no achado “uma pepita de


ouro”. “A ‘Ária’ representa a alma lírica brasileira. Vamos agora nos debruçar
sobre essa história.”
João Guilherme Ripper, presidente da ABM, foi quem notou a letra diferente. “E
ninguém sabia quem era Altamirando”, conta o musicólogo Manoel Corrêa do
Lago. “Havia só um boato de que Villa-Lobos teria sido processado e mudara a
letra”, explica.

Jornais da época noticiaram a polêmica. Nos anos 1930, o baiano Altamirando


de Souza oferecia com pouco sucesso poemas a revistas e não mereceu atenção
até acusar Villa-Lobos pelo uso de “Fim de Tarde” sem dar o devido crédito.

Ao jornal A Noite, em 20 de março de 1939, Souza afirmou que Villa-Lobos


ouvira seus poemas em 1938 e, um mês depois, o procurara dizendo que
“aproveitaria” um deles numa peça que seria gravada para integrar um pacote de
32 discos de 78 rotações, encomendado a diversos compositores e destinado a
rádios e orquestras americanas, no âmbito da Feira de Nova York, para divulgar
a cultura brasileira.

O musicólogo Flávio Silva tem um raro exemplar desse disco, com a voz de
Ruth Valladares Corrêa entoando a letra original. “A música reunia o melhor da
produção musical brasileira”, diz.

Quando convidado para a gravação, Souza viu que seu nome não constava da
etiqueta do disco e declara, ainda na reportagem do A Noite, que se queixou e
entregou “a defesa dos direitos a advogados”. Pediu indenização e recolhimento
dos exemplares.

Villa-Lobos confirmou em entrevista da mesma semana que não dera o crédito.
“Me utilizei dos versos de poetas como Alvaro Moreyra, Manuel Bandeira, sem
jamais lhes pagar direitos autorais. Sentem-se até muito satisfeitos. Minha
música não é samba, é expressão artística, elevação espiritual. Seria absurdo ter
que pagar pela inspiração. Eu iria pagar ao Brasil pela natureza em que tenho me
inspirado.”

O caso foi julgado em abril de 1939, mas Villa-Lobos já havia providenciado


outra letra, a de Ruth Valladares Corrêa. Na partitura do Museu Villa-Lobos, é
possível notar uma superposição dos textos. “É a mesma temática. Imagine,
Altamirando perdeu a chance de reconhecimento planetário”, aponta Corrêa do
Lago.
Mais tarde, o próprio poeta também seria acusado de plágio. O alagoano Jayme
de Altavilla escreveu em junho de 1939 no Jornal das Moças apontando a
“apropriação indébita” do soneto “Você” —publicado antes por Altavilla na
revista Fon-Fon em 1926, ele foi reproduzido por Souza em O Malho de
fevereiro de 1939 e no mesmo Jornal das Moças de abril daquele ano.
Pagina da partitura da a Ária da Bachiana n° 5, de Villa-Lobos. ABM/Acervo
José Siqueira/
Pagina da partitura da a Ária da Bachiana n° 5, de Villa-Lobos. ABM/Acervo
José Siqueira/
Marisa Gandelman, advogada especialista em direitos autorais na música,
confirma os fatos. Muitas vezes, em especial com Villa-Lobos, não era
formalizada a relação entre os autores. “Poetas musicados por Villa-Lobos,
parece, se sentiram honrados ou não se preocupavam com isso”, diz. “Era uma
informalidade criativa. Há pelo menos outro caso com Villa-Lobos, a querela
com o poeta Catulo da Paixão Cearense pelo uso de ‘Rasga o Coração’ nos
‘Choros n° 10’.”
Segundo Corrêa do Lago, a “Ária” ou “Cantilena”, a primeira parte das
“Bachianas n° 5”, é “a fantástica mistura da nossa modinha e da ária barroca”.

A peça, que ganharia uma segunda parte em 1945, com letra de Manuel
Bandeira, “Dança” ou “Martelo”, foi fartamente gravada. Há versões com
regência de Villa-Lobos, cantadas por Bidu Sayão, em 1947, Victoria de Los
Angeles, em 1957, e pelas cantoras líricas Barbara Hendricks, Kiri Te Kanawa e
Renée Fleming, além de variações regidas por Bernstein e Gustavo Dudamel.

André Cardoso levantou na ABM o número de execuções da obra entre 2015 e


2018. Houve oficialmente 468 ocasiões em 32 meses, cerca de uma a cada dois
dias. “E juntar oito violoncelos não é fácil. Nenhuma peça brasileira de câmara
nem chega perto.”

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