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Georges erman a» trad. R.C.B Georges Didi-Huberman AO PASSO LIGEIRO DA SERVA (Saber das imagens, saber excéntrico) A HISTORIA DA ARTE COMO UM SABER LOCAL OU MENOR Tal como o nome indica, a historia da arte é a histéria de um objecto particular, Em primeiro lugar, particular no sentido em que 0 objecto dessa historia & um objecto limitado: quem pretenderia encontrar, numa obra de arte ou numa imagem, o odo daquilo que uma sociedade faz num dado momento da sua historia? Mas essa particularidade decorre também do facto de ele resistir as tentativas de definigio: quem um dia nos diré 0 que faz o jodo da arte? A historia, por seu lado, como o nome também indica — ou antes, como indica a auséncia de especificagio ', por direito, a histéria de fudo. A histéria da arte surgird, portanto, deste ponto de vista, como uma disciplina local no contexto global de tudo o que, entregue ao devir ou a alteragdo, a evolugio ou as revolugdes, pertence ao foro de uma historicidade. Se, por alguns momentos, aceitarmos seguir 0 vocabulirio de Gilles Deleuze e Félix Guattari no seu ensaio de cartografia do saber,' diremos que a histéria se posiciona como uma «ciéncia maior», uma «ciéncia real», perante a qual a historia da arte deveria assumir 0 seu cardcter de disciplina menor: a historia formaria um grande «aparelho» de saber, funcionando a historia da arte, no fundo, como uma mples «méquinay de conhecimento parcial, ou mesmo como uma simples disciplina auxiliar de hist6ria enquanto tal. A consequéncia natural de um tal pressuposte encontra-se bem patente na situagao de disciplina minoritéria que a historia da arte ocupa no seio de uma instituigdo como a Ecole des hautes études en sciences sociales: face aos cerca de duzentos investigadores do Centre de recherches historiques, actualmente os historiadores de arte do Centre d'histoire et théorie des arts Ch. G. DELEUZE e F. GUATTARI, Mil Planaltas, Capitalismo ¢ esquizofrenia, 2 (1980), trad. R, Godinho, Lisboa, Assirio & Alvim, 2007, p. 476-483. PROJECTO PROJET PROJEKT YMAQO PROJECT | KKYM 2011 Georges a» trad. RC contam-se pelos dedos de uma mio,? ainda que integrem uma entidade mais vasta ¢ transversal — inclusive em termos institucionais -, 0 Centre de recherches sur les arts et le langage. Naturalmente, esta situagio é, ela prépria, fruto de uma historia: a historia, simultaneamente intelectual e in: estatuto que, justamente, as questdes relativas & arte e & imagem ocupam no panorama do saber histérico actual. conhecido o papel fundador desempenhado pela escola dos Anais na Ecole constituigdo da famosa VI* Seegiio de «Ciéneias econdmicas e sociaisy da pratique des hautes études, em 1948, sob a direegiio de Lucien Febvre.> Nas vinte ¢ nove unidades curriculares propostas no edital desse primeiro ano — onde figuravam, designadamente, os nomes de Fernand Braudel. Charles illois, Alexandre Morazé, André Leroi-Gourhan, Ignace Meyerson, Roger Ca Koyré ou Claude Lévi da arte no estava Strauss —, a disciplina de histor representada.* Mas Lucien Febvre, que conheceu Pierre Francastel na altura em que dava aulas em Estrasburgo, integrou o historiador de arte na VP Secgio da Ecole pratique a partir de 1951. Como bem resumiu Jean-Claude Bonne, «Francastel defendia uma forma de (ria ou — como a nomeou para se demarear da histéria da arte académica — uma sociologia da arte especificamente coneebida de molde a interessar aos historiadores, na medida em que visava reinserir as obras na cultura visual do tempo que as viu nascer, sendo desejdvel que se mantivesse atenta ao "pensamento figurativo" que Ihes conferia forma e sentido».* Num texto escrito em 1969, como introdugao aos seus Etudes de sociologie de Vart, Pierre Francastel tentou resumir as ligdes metodolégicas de uma vintena de anos de ensino na Ecole des hautes études en sciences sociales: Ora, esse texto revela-se duplamente interrogativo, portanto secretamente iesoluto, como que em suspenso. Por um lado, batia-se «por uma sociologia ® Nomeadamente tr8s directeurs diémdes (Giovanni Careri, Frangois Lissarrague e Eric Michaud) e dois professores (André Gunthert ¢ eu proprio). > Cf. B. MAZON, due origines de I'Ecole des Hautes Etucles en Sciences Sociales. Le réle du micénat américain (1920-1960), Paris, Cerf, 1988. B. Lepetit, «Les Annales ; portrait de groupe ayee revuen, in Une éeole pour les scienves sociales, De la VF Section a I'Beole des Hawes Etudes en Sciences Sociales, dir. J, Revel ¢ N. Wachtel, Paris, Cerf ¢ EHESS, 199% 31-48. "Cf. J. REVEL et N. WACHTEL, «Une école pour les sciences sociales», in Une école pour les sciences sociales, op cit, p. 16-20. PROJECTO PROJET PROJEKT YMAQO PROJECT | KKYM 2011 Georges a» trad. RC da arte.” ou seja, por propor desafios {enjeux], mais do que apresentar resultados. Uma forma de afirmar que o mobil da disciplina em jogo [en jeu] era sobretudo constituide pelas suas exigéneias e pelo cardcter inovador das suas abordagens, € menos que esta procurava constituir-se através d seu resultados ou das suas conquistas. Por outro lado, tratava-se sobretudo de colocar uma série de questdes capaz es de deslocar a pertinéneia de nogdes do dominio da histéria da arte como as de «objecto» e «método», ¢ nao tanto afirmar uma doutrina, um objecto ou um método, «Método ou problemitica, interroga-se Francastel:’ uma forma de expressar — insurgindo-se* contra aqueles que queriam fazé-lo «apresentar 0 seu método», como quem diz capresentar as suas raz0es» ~ 0 primado da problemdtica ou da enunciagio camétodos» € dos seus resultados. interrogativa sobre o enunciado apressado d A historia da arte, no contexto da Ecole des hautes études en sciences sociales, tera sido, portanto, reivindicada primeito através do estilo 20 mesmo tempo categdrico — ou mesmo alt vo ~ € interrogativo de Pierre Francastel, estilo que encontramos renovado na escrita do seu discipulo Hubert Damisch, por exemplo em L Origine de la perspective, um livro mareado por questdes incisivas ¢ contundentes, que seria muito dificil resumir a uma lista de respostas coneretas sobre a histéria da perspectiv: |. assim como uma questio de «origem» imente, aos olhos de Damisch, ser reduzida nao poder . precis simples narragio de uma «hist6riay.” Colocar as questBes epistemologicas de fundo para depois as recolocar, as «debater» sem fim: era o prego a pagar por ndo se limitar as estreitas positividades fornecidas por uma hist6ria da are que se contentava, nas universidades ¢ nos museus, em desfiar 0 rosirio ~ ou 0 romance familiar, segundo a grande tradigfo vasariana — dos artistas e das suas obras. § J.C. BONNE, «Art et images, in ibid, p. 353. “P. FRANCASTEL, Etudes de sociologie de Wart, Paris, Denoé', 1970 (reed. Paris, Gallimard, 1989), p. 7. 0 Italleo & da minka autoria, 7 dbl, p.7. * tid, p. 10-12. PROJECTO PROJET PROJEKT YMAQO PROJECT | KKYM 2011

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