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Diário de campo: reflexões epistemológicas e metodológicas. In: SARRIERA, J. C.

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SAFORCADA, E. T. (Org.). Introdução à psicologia comunitária: bases
teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Sulinas, 2010. p. 169-187.
Introdução
O termo “diário de campo” é usualmente utilizado para referir-se a uma técnica
específica de registro de dados muito utilizado nas pesquisas qualitativas que
utilizam principalmente a observação. Sua origem remonta aos estudos
antropológicos de Malinowski, no início do século, que observava os nativos das
Ilhas Trobriand, no Oceano Pacífico. (p. 169)
Portanto, a importância da observação da realidade cotidiana para a construção do
conhecimento científico situa a observação participante na discussão
epistemológica e metodológica dentro das ciências humanas e sociais. (p. 170)
Campo epistemológico/metodológico
A utilização de diário de campo nas pesquisas deve ser situada numa primeira
discussão sobre o estatuto da realidade nas pesquisas das ciências sociais, para as
quais a observação constitui uma técnica privilegiada de coletas de dados. À
primeira vista, todas as ciências se apropriam da observação de fenômenos para a
construção de seus conhecimentos. Mesmo nas ciências naturais, que priorizam os
métodos experimentais de controle de variáveis, a observação integra o conjunto de
técnicas de coleta de dados disponíveis para o pesquisador registrar seus
resultados. (p. 171)
Trabalho de campo e coleta de dados
Como técnica de registro, o diário de campo é parte integrante da observação
participante, que constitui algo mais do que uma simples técnica de coleta de
dados. Para Fernando Rey (1999), que discute a epistemologia da pesquisa
qualitativa em psicologia, a representação da pesquisa como trabalho de campo
enfatiza a comunicação como processo que articula a pesquisa qualitativa em seus
diferentes momentos, e a presença/participação do pesquisador dentro da
instituição, comunidade ou grupo de pessoas que está investigando, que lhe permite
o acesso a fontes importantes de informação “informal”. (p. 172)
O trabalho de campo diferencia-se de uma simples coleta de dados quando
pressupõe a participação do pesquisador no cotidiano dos sujeitos estudados,
possibilitando redes de comunicação e a observação das mais variadas formas de
expressão desses sujeitos, o que certamente é fonte excepcional para a produção de
conhecimentos no âmbito da psicologia. Trabalho de campo é aquele que permite o
contato interativo do pesquisador em um contexto relevante para o último.
Diferentemente da coleta de dados, o trabalho de campo representa um processo
permanente de estabelecimento de relações e de construção de conhecimento no
próprio cenário em que estudamos o fenômeno. (p. 172)
O trabalho de campo, portanto, é visto como essencial para o desenvolvimento da
iniciativa e da bagagem intelectual do pesquisador, na medida em que esse se vê
obrigado/provocado a elaborar suas próprias ideias frente ao que está acontecendo
no cenário da pesquisa. A coleta de dados é o momento de contato com a
informação, está terá seu sentido/interpretação atribuída só posteriormente, na
etapa de interpretação dos resultados. Na coleta de dados tradicional, o
pesquisador tem um papel totalmente passivo, que com frequência se identifica
com a aplicação de instrumentos. Na maioria dos casos não há a mínima
possibilidade de registrarem-se observações imprevistas que podem ser relevantes
para a qualificação dos próprios instrumentos utilizados. (p. 173-174)
O trabalho de campo, onde o pesquisador participa e interage com a cultura, a
linguagem e com os sujeitos de sua pesquisa, revela-se um meio eficaz de
contemplar a multiplicidade de aspectos da realidade social, as contradições, a
polifonia das vozes e das linguagens, permitindo maior apreensão da realidade
social tal qual ela se apresenta. […] pensamos que certos fenômenos da realidade
não podem ser apreendidos por formas de coleta de dados altamente estruturados,
como questionários, que só alcançariam descrever seus aspectos menos complexos.
(p. 175)
O relacionamento pesquisador-pesquisado
Os profissionais envolvidos com seus projetos de pesquisa, ao tomar como tema de
estudo outros segmentos socioeconômicos, cujas práticas e cotidianos geralmente
só conhecem superficialmente, necessariamente entram no campo da investigação
com muito mais estranhamento do que familiaridade. A relação que se estabelece,
então, entre o pesquisador e/ou equipe de pesquisa e os atores sociais envolvidos
no trabalho parte de planos desiguais. Segundo Minayo (1996, p. 62), “o objetivo
prioritário do pesquisador não é ser considerado um igual, mas ser aceito na
convivência.” […] nunca podemos nos transformar, enquanto pesquisadores em um
“nativo”. (p. 176)
[…] as atividades que integram o método da observação participativa, momentos de
reflexão, teóricos ou práticos, registrados ou não no diário de campo, implicam,
necessariamente, mesmo que o pesquisador more na comunidade estudada, um
distanciamento. É um instante de saída, uma “saída” simbólica. (p. 176-177)
Diário de campo/notas de campo
“Ele ou ela [diário ou nota] dão uma descrição das pessoas, objetos, lugares,
acontecimentos, atividades e conversas. Em adição e, como parte dessas notas, o
investigador registrará ideias, estratégias, reflexões e palpites, bem como os
padrões que emergem. Isto são as notas de campo: o relato escrito daquilo que o
investigador ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da recolha, refletindo sobre
os dados de um estudo qualitativo.” (BOGDAN; BILKEN, 1994, p. 150)
[…] identificando dois tipos de conteúdos nas notas de campo: um
caráter descritivo, cujo objetivo é captar uma imagem do local, pessoas, ações e
conversas observadas e o outro marcantemente reflexivo, que inclui o ponto de
vista, as ideias e preocupações do pesquisador. (p. 179)
Consideram que a parte descritiva das notas de campo é geralmente mais extensa e
nela o pesquisador exercita ao máximo sua capacidade de escrita, sua memória,
energia e esforço. O pesquisador deve resistir, nesse momento, à tentação de
resumir ou avaliar. É fundamental que seja o mais descritivo possível. (p. 179)
O registro cuidadoso do comportamento do pesquisador, com a descrição sobre o
modo de vestir, ações e conversas com os sujeitos pode ajudar a entender o impacto
que tais aspectos podem produzir. Para cada um desses itens os autores fornecem
“dicas” úteis e interessantes. (p. 180)
O aspecto mais subjetivo do registro encontra-se na parte reflexiva das notas de
campo. Segundo os autores: “A ênfase é na especulação, sentimentos, problemas,
ideias, palpites, impressões e preconceitos. Também se inclui o material em que
você faz planos para a investigação futura bem como classificações e correções dos
erros e incompreensões das suas notas de campo (…) O objetivo da reflexão não é
de fazer terapia (p. 165)”. Esse momento mais subjetivo das anotações inclui
reflexões sobre a análise, sobre o método, conflitos e dilemas éticos, reflexões sobre
pontos de vista do observador antes de entrar no campo e o que denominam pontos
de clarificação, onde se corrige erros de informação que foram registrados em
outras etapas da pesquisa. (p. 180)
A parte reflexiva tem uma função extra para os autores, frente às críticas muitas
vezes feitas às influências “nefastas” e nem sempre visibilizadas dos aspectos
subjetivos desse tipo de abordagem metodológica. Podem constituir uma forma de
tentar dar conta e de controlar esse efeito. Insistem, entretanto, que toda a
pesquisa, todo o comportamento humano é um processo subjetivo e que tal
condição não impossibilita a produção científica. (p. 180)
Para disciplinar a memória Bogdan e Bilken (1994) dão algumas pistas que incluem
desde o não adiantamento das anotações, o conselho para não falar da observação
antes de escrevê-la e até dicas sobre o local e o tempo ideal […]. (p. 180)

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