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Marcelo Medeiros 1
Debora Diniz 2
Ida Vanessa Doederlein Schwartz 3
Abstract This paper evaluates the hypothesis that Resumo O artigo avalia a hipótese de se a judicia-
the judicialization of medicine for mucopolysac- lização de medicamentos para o tratamento das
charidosis in Brazil is an action promoted by eco- mucopolissacaridoses no Brasil seria uma ação
nomic elites. Previous studies upholding the the- das elites econômicas. Debatem-se estudos prévios
sis of judicialization by elites in the case of other que defendem a tese da judicialização pelas elites
types of medication that are more costly for the em outros medicamentos. Discute-se, a metodo-
Unified Health Service are discussed. An analysis logia desses estudos e as inferências dela derivadas
of all 196 processes containing information about e o respaldo empírico dessa tese no caso de um dos
judicial processes brought to court between Feb- medicamentos judicializados de mais alto custo
ruary 2006 and December 2010 that ended by para o SUS. Foram analisados os 196 processos
determining that the State should provide such julgados entre fevereiro de 2006 e dezembro de
medication free of charge to patients was con- 2010 que determinam a provisão gratuita dos me-
ducted. There is evidence that attorneys’ fees were dicamentos para mucopolissacaridoses pelo Mi-
covered by entities interested in the results of ju- nistério da Saúde. Há evidências de que os custos
dicialization, such as the distributors or phar- advocatícios sejam financiados por entidades in-
maceutical industries. Patients may also be mi- teressadas nos resultados da judicialização, como
grating for diagnosis and treatment to university as empresas distribuidoras ou indústrias farma-
centers that are a benchmark for medical inno- cêuticas, de que pode haver migração dos pacien-
vation in the country, as the option for public tes para diagnóstico e tratamentos em centros uni-
health services is related to their higher technical versitários de referência para a inovação médica
and scientific capacity. Therefore, the resort to no país, e de que a opção por serviços públicos se
private lawyers, indicators of social exclusion dá por sua capacidade técnica e científica supe-
1
Departamento de
based on the address of patients and the use of rior à de outras instituições. Logo, a advocacia
Sociologia, Universidade de
Brasília. Caixa Postal 8011. public health services, are not adequate class in- privada, indicadores de exclusão social do local de
70673-970 Brasília DF. formation to corroborate or refute the thesis of residência dos pacientes e uso de serviços públicos
anis@anis.org.br
2
judicialization by the elites. não são informações de classe que corroborem ou
Programa de
Pós-Graduação em Política Key words Judicialization, Health policy, Mu- refutem a tese da judicialização pelas elites.
Social, Universidade de copolysaccharidosis, Rare genetic diseases Palavras-chave Judicialização, Política de saú-
Brasília.
3
Departamento de Genética,
de, Mucopolissacaridose, Doenças genéticas raras
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
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Medeiros M et al.
em que participa como réu, mas esse registro não mandantes. Há casos em que governos estaduais
é feito para fins de pesquisa. Por esse motivo, op- e municipais firmam convênios com advogados
tou-se por não utilizar os registros administrati- privados, subsidiando os custos de serviços de
vos e realizar a coleta diretamente nos documen- assistência judiciária. A Procuradoria-Geral do
tos. Para assegurar confidencialidade, os proces- Estado de São Paulo, por exemplo, firmou con-
sos foram lidos na íntegra em sala reservada no vênios desse tipo com a seção local da Ordem
MS e os dados foram registrados em formulário dos Advogados do Brasil a partir de 1997 (a um
eletrônico com validação em três rodadas de pré- custo médio por ação de R$ 238). Terceiro, por-
teste, cada uma testando 40 (20% do total) pro- que não há informações nos processos sobre
cessos, totalizando 120 testes (61%). Ao final do quem arca com os honorários advocatícios. A
levantamento, para controlar a qualidade da co- judicialização é um palco com vários atores inte-
leta, a equipe contrastou os dados coletados nos ressados, entre eles a indústria farmacêutica, que
processos com os registrados pelo MS. Em caso têm motivos econômicos para subsidiar a advo-
de discordância entre os dois registros, a verifica- cacia privada2,7,9,12,13. Isso pode indicar interesse
ção recorria aos processos originais. de elites (indústria farmacêutica) na judicializa-
O teste de uma hipótese de judicialização pe- ção, mas de modo algum permite inferir que os
las elites requer uma definição de elite econômica. demandantes dos medicamentos no SUS fazem
A tendência geral dos estudos de estratificação é parte dessas elites.
utilizar algum tipo de linha de riqueza construída Por outro lado, se a natureza profissional dos
a partir de dados de rendimentos familiares11. Os advogados não é um indicador seguro da condi-
processos judiciais, no entanto, não registram in- ção de elite, ela pode ser um indicador de posicio-
formação sobre renda dos litigantes, o que impe- namento no outro extremo da escala social: dada
de o uso desse tipo de linha e indica que o dado a insuficiência de defensores públicos no Brasil,
não foi considerado na formação do convenci- seria pouco plausível supor que as elites recorrem
mento do juiz. Problema similar foi enfrentado a eles para defender seus interesses, até porque
por dois outros estudos brasileiros sobre judicia- para recorrer à defensoria pública o indivíduo
lização da saúde9,10. Na impossibilidade de obter atesta em documento de fé pública sua hipossufi-
informações sobre renda, optou-se pelo uso de ciência de renda. Assim, quem recorre à defenso-
indicadores indiretos de status socioeconômico. ria pública muito provavelmente não pertenceria
Indicadores indiretos não seriam recomendá- à elite, mas quem recorre à advocacia privada pode
veis para o propósito de defender a tese da judici- ou não pertencer à elite. Em consonância com
alização pelas elites, mas prestam-se mais ade- esse raciocínio, neste estudo optamos por tratar
quadamente para questionar essa tese. Os estu- o uso de advogados públicos (categoria que in-
dos anteriores identificam a classe social dos usu- clui defensores e procuradores) como indicador
ários do SUS utilizando: i) a natureza profissional de que os demandantes não pertencem à elite e o
dos advogados; ii) indicadores de vulnerabilida- recurso a advogados privados como indicador
de (IPVS) ou exclusão social (Iex); e iii) o tipo de de pertencimento a qualquer classe social.
serviço de saúde. O uso de indicadores indiretos Resultados obtidos a partir de indicadores
merece uma discussão mais pormenorizada. sintéticos de vulnerabilidade e exclusão monta-
No que se refere à natureza profissional dos dos por agregação espacial também podem ser
advogados, não é simples assumir que a contra- questionados. Essas medidas se alinham mais a
tação de um advogado privado caracterizaria a indicadores de pobreza do que de riqueza: seus
posição de elite do requerente. O pressuposto que construtos revelam hipossuficiência de recursos,
justificaria a validade desse tipo de indicador se- não afluência. Tome-se, por exemplo, o IPVS, um
ria o de que a barreira de entrada para a advoca- índice sintético construído por análise fatorial,
cia privada é alta, isto é, que os custos de acesso a que atribui grande carga à porcentagem no setor
um advogado privado seriam proibitivos para censitário de responsáveis por domicílios com
grande parte da população. Este não parece ser rendimentos de até três salários mínimos. Os
um pressuposto razoável. Primeiro, porque, valores do IPVS permitem classificar os indiví-
embora seja correto assumir que os honorários duos como vulneráveis ou não, mas não permi-
de advogados de elite possam ser altos, assim tem inferir que indivíduos não vulneráveis po-
como o acesso à medicina privada, a advocacia dem dispensar a assistência do SUS, quanto me-
privada também pode ter custos absorvíveis por nos concluir com segurança que o atendimento
muitas pessoas fora das elites. Segundo, porque de não vulneráveis ameaça a equidade de um sis-
esses custos nem sempre são cobertos pelos de- tema de saúde.
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se 60% das doses adquiridas. Esses três são ad- lidade já haviam migrado de sua cidade natal à
vogados privados. época da abertura do processo.
No outro extremo da distribuição estão os 21 Dos 178 pacientes cujos serviços de saúde fo-
advogados responsáveis pelo processo de apenas ram completamente identificados, 144 (81%) re-
um paciente. Eles correspondem a mais da meta- correram a hospitais públicos. Destes, 83 (58%)
de da lista de advogados, porém estão relaciona- foram a hospitais universitários, e a maioria dos
dos a apenas 10% das quantidades adquiridas e hospitais públicos atendendo os demais pacien-
menos de 15% de todo o gasto despendido. Nesse tes estava de algum modo relacionada à pesqui-
grupo, encontram-se, com alguma frequência, sa em doenças genéticas. Naqueles hospitais pú-
defensores e procuradores públicos, embora se- blicos atendendo 10 ou mais indivíduos predo-
jam ainda minoria. Do total de 195 indivíduos, mina a situação em que um único médico res-
155 foram representados por advogados priva- ponde pela indicação do medicamento para to-
dos, 20 por defensores e procuradores públicos, dos os pacientes e não raro um único advogado
e, sobre 21 indivíduos, não há informações. Ne- é responsável pela maioria dos processos.
nhum dos defensores e procuradores públicos
defendeu mais de quatro indivíduos, mas entre
os advogados privados há pelo menos seis que Discussão
trabalharam para cinco ou mais pacientes.
Não há correlação forte entre a dispersão geo- Os medicamentos para MPS têm alto custo e seus
gráfica dos advogados e a incidência das MPS no mercados de produção e distribuição são mono-
país. Observou-se que, entre os defensores, pro- polizados por poucas empresas Os grandes vo-
curadores públicos e advogados privados condu- lumes financeiros movimentados fazem com que
zindo processos de até quatro pessoas, a judiciali- os resultados da judicialização de medicamentos
zação geralmente ocorre na mesma unidade da sejam objeto de interesse dessas empresas. Uma
Federação onde o paciente recebe tratamento. Esse interpretação dos resultados obtidos nesta pes-
quadro, porém, é diametralmente oposto no caso quisa não pode ignorar as potenciais consequên-
dos advogados privados que concentram gran- cias desses interesses.
des volumes de processos. Nestes, os processos de Há uma altíssima concentração de casos em
pacientes residindo na unidade da Federação onde poucos advogados privados. Por outro lado, não
os advogados atuam são minoria. há forte correlação entre o local de residência ou a
Existem informações sobre os serviços de saú- origem dos pacientes e o local de atuação desses
de de origem de 89% (174) dos indivíduos. No advogados concentradores. É pouco provável que
total, 53 instituições são listadas. A maior parte a contratação atomizada de advogados privados
dessas instituições trata de um ou dois indivídu- por uma população geograficamente dispersa
os. No entanto, há seis instituições tratando de gerasse um padrão distributivo desse tipo, o que
10 ou mais indivíduos, o que corresponde a 41% sugere a existência de algum tipo de rede que co-
dos pacientes com serviço de saúde conhecido. loca em contato pacientes e advogados. Não há
As instituições estão distribuídas em todo o Bra- evidência empírica suficiente para fazer qualquer
sil, mas há concentração de indivíduos sendo tra- afirmação segura sobre a organização dessa rede,
tados em serviços de saúde das metrópoles das mas considerando que o volume médio de uma
regiões Sul e Sudeste, onde se localizam centros ação ultrapassa o custo normal de um advogado
de referência universitários para a pesquisa so- privado na ordem de milhares de vezes, uma hi-
bre as MPS. pótese que merece ser cogitada é a de que essa
Para uma população em que predominam rede seria financiada pela indústria farmacêutica
crianças e jovens, observa-se migração muito ele- ou pelos distribuidores dos medicamentos.
vada, tanto em relação à cidade de origem no iní- Os indícios da existência de uma rede poten-
cio do processo judicial e à cidade de tratamento cialmente financiada por empresas interessadas
quanto em relação à naturalidade do paciente e nos resultados da judicialização são o primeiro
cidade de origem. Apenas 56 (32%) dos 177 indi- elemento que desafia a noção de que apenas as
víduos cujo processo trazia informação completa elites recorreriam a advogados privados na judi-
viviam na mesma cidade antes do tratamento com cialização. O segundo elemento é o custo relati-
os medicamentos (início do processo judicial) e vamente baixo da contratação privada de alguns
no momento do acesso ao serviço de saúde. Essa advogados. Os estudos que utilizaram o recurso
migração, porém, já havia sido iniciada: 42 (44%) à advocacia privada como indicador de classe9,10
dos 96 indivíduos com informação sobre natura- presumiram que esse custo é excessivo para as
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se do indivíduo, mas sim a avaliação de quais víduos mais ricos teriam razões para preferir ser-
demandas protegem necessidades de saúde não viços públicos.
satisfeitas. A conclusão geral a que se pode chegar é a de
O objetivo deste artigo não foi discutir se a que, usando as metodologias de outros estudos
judicialização fere princípios filosóficos de justi- e os dados até o momento disponíveis sobre a
ça como equidade em uma política universalista judicialização de medicamentos para a MPS, não
de saúde, até mesmo porque a judicialização pode é possível refutar nem corroborar a tese da judi-
ser um instrumento legítimo para a promoção cialização pelas elites. Não há como dizer que a
da igualdade, mas avaliar se há evidências razoá- judicialização é uma questão de classe. O que se
veis de que seriam as elites que judicializam me- coloca é se essa conclusão pode ser extrapolada
dicamentos para as MPS no Brasil. Uma análise para a judicialização de outros medicamentos ou
da metodologia utilizada por estudos que defen- mesmo outros tipos de judicialização da saúde.
dem a tese da judicialização pelas elites e as evi- Uma extrapolação desse tipo só será segura com
dências empíricas obtidas nesta pesquisa sobre o acúmulo de evidências em outros estudos e, por
os medicamentos para as MPS indicam que os isso, qualquer generalização feita neste momento
fundamentos empíricos sobre os quais essa tese deve ser tomada com cautela. No entanto, como é
poderia se fundamentar não são seguros: razoável aceitar que os mecanismos que motivam
i. A advocacia privada não é bom indicador e possibilitam a judicialização dos medicamentos
de posição de classe. Primeiro, porque os custos para as MPS sejam compartilhados por outros
advocatícios podem estar sendo financiados por tipos de judicialização, alguma extrapolação pode
entidades interessadas nos resultados da judicia- ser feita: indicadores de natureza profissional dos
lização – empresas distribuidoras, por exemplo. advogados, local de residência e uso de serviços
Segundo, porque mesmo que o financiamento médicos públicos ou privados não são indicadores
fosse feito pelos próprios usuários, sob as cir- sólidos para sustentar teses definitivas sobre os
cunstâncias particularíssimas da busca por tra- padrões distributivos de renda do público que ju-
tamento em saúde, os custos de advocacia priva- dicializa medicamentos no Brasil.
da podem ser uma barreira para pessoas muito Mas como o que motiva a avaliação da tese
pobres, mas não necessariamente para uma gran- da judicialização pelas elites são preocupações de
de massa da população. natureza moral quanto à ameaça da judicializa-
ii. O local de residência dos pacientes não é ção ao igualitarismo em saúde, as conclusões
um bom indicador de classe. A migração em bus- deste debate devem ir além da avaliação dessa
ca de tratamento médico é um tipo muito singu- tese. Se há um problema distributivo relevante
lar de migração, por isso não se pode presumir no debate sobre judicialização, ele não parece es-
que os padrões médios de segregação espacial tar na origem de classe dos usuários que recor-
por classe típicos de metrópoles brasileiras se re- rem ao Judiciário, mas i) na composição de inte-
pliquem entre esses migrantes. O posicionamen- resses de laboratórios e empresas distribuidoras
to desses indivíduos nas cidades para garantir de medicamentos de alto custo cuja eficácia clíni-
tratamento pode ter relação com fatores não es- ca ainda está sob avaliação; ii) nas dificuldades
tritamente econômicos. do Estado em administrar a política de assistên-
iii. O uso de serviços públicos ou privados de cia farmacêutica quanto aos critérios de incor-
saúde não é um bom indicador de classe. Os tra- poração tecnológica, transparência e publicida-
tamentos de alto custo judicializados muitas ve- de dos atos; e iii) nas dificuldades do Estado em
zes estão relacionados à medicina altamente es- administrar uma política farmacêutica quando
pecializada; esta, por sua vez, é encontrada em instrumentos típicos de administração – plane-
serviços públicos de saúde dedicados à pesquisa jamento, compras em escala, controle de esto-
científica e à inovação tecnológica, como os hos- ques, chamadas de preços – não podem ser usa-
pitais universitários. Neste caso, mesmo os indi- dos em decorrência de determinações judiciais.
1097
M Medeiros, D Diniz e IVD Schwartz participa- 1. Ventura M, Simas L, Pepe VLE, Schramm FR. Judi-
ram igualmente de todas as etapas de elaboração cialização da saúde, acesso à justiça e a efetivi-
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do artigo. 2. Machado MA de Á, Acurcio F de A, Brandão CMR,
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Agradecimentos mentos no Estado de Minas Gerais, Brasil. Rev Sau-
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3. Boy R, Schwartz IVD, Krug BC, Santana-da-Silva
O projeto foi financiado pela Organização Pan- LC, Steiner CE, Acosta AX, Ribeiro EM, Galera MF,
Americana da Saúde, Agradecemos a colabora- Leivas PGC, Braz M. Ethical issues related to the
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va, Suelen G. Anjos, Eduardo B. Felizola e Wilza content/early/2011/01/24/jme.2010.037150.abstract.
C. Fávila foram interlocutoras na etapa de pes- 4. Muenzer J, Wraith JE, Beck M, Giugliani R, Har-
quisa de campo, a quem agradecemos as autori- matz P, Eng CM, Vellodi A, Martin R, Ramaswami
zações para a pesquisa empírica. U, Gucsavas-Calikoglu M, Vijayaraghavan S, Wendt
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