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Cartografia queen – três ou mais momentos e movimentos.

O que lhes interessa é que espetáculos


como o seu possam tocar não somente a
massa de homossexuais, mas também a
massa de pessoas que estão mal por não
assumirem seus desejos.

Félix Guattari – Revolução Molecular

♪ Leona Vingativa vale mais do que um milhão ♪ 1, ela que está pelas
estradas da vida, cortando diversos ambientes festivos, mas também gravando
seus clipes desde as periferias da cidade – ou ainda circulando pelas feiras
públicas, cantando suas músicas enquanto é registrado para ser exposto na
internet. Cada passo dado pela “diva”, autointitulada “assassina e vingativa” 2,
tem sido acompanhado por investimentos na capacidade de dramatizar a vida.

No corrente ano, aos 21 anos de idade, Leona Vingativa é conhecida na


internet por suas criações artísticas e montações. Mas, retornando a 2009
quando um dos seus vídeos viralizou na internet pode ser visto que aos 13
anos de idade a web diva já estava treinando para tudo a mais que viria a ser
sua carreira nas noites – e dias. Na gravação realizada de uma breve web
novela, Leona tanto queima as provas que incriminariam sua vida – por matar o
seu “marido” – como foge chamando um táxi para ir para Paris.

Leona vai experimentando de início a capacidade de ser uma


“personagem fria” no drama da sua web novela, indo constituir a partir das
conexões com a vida vivida na trama com a internet e as redes sociais.
Reproduzidos exaustivamente os seus vídeos tornaram-se memes e eram
difundidos massivamente. Mas, o que vale reter desse tipo de experimentação,
são as conexões entre a vida vivida, a dramaticidade da cena e a extrapolação
via internet dos limites daquilo que era produzido – e fica a questão acerca das
dinâmicas de conexões entre pontos díspares, em que o fluxo vem arrastando
algo, o que seria?

1 Leona Vingativa – Vida de Patrícia, disponível em: <https://youtu.be/7GULzFfiliU>, acesso:


15/01/2018.
2 Leona Vingativa, disponível em: <https://youtu.be/ACXFHGanR7w>, acesso: 15/01/2018.
Logo de início foi elencado um trecho de uma das músicas de Leona, em
sua Vida de Patrícia, onde frescar, frescar, frescar é o modo pelo qual esse tipo
de vida é experimentado. Com ♪ as travas e as passivas tomando cerveja ♪
elas partem para a noitada. Habitando as noitadas, bem como intensificando
suas aparições via internet, os remixes realizados por DJs carregam as falas
dos closes de Leona que são gravados e disponibilizados nas redes sociais;
transpondo para outros ambientes a presença de uma vida de Patrícia e que se
faz emergir nos cenários noturnos das festividades.

De um passado não tão ermo, são trazidos os memes para o presente e


arrastando-os para o agora, estão sendo atualizados pelas bocas cantantes e
dispostas em ambientes festivos. O que estaria ganhando espaço para este
estudo? Conexões que (entre)acontecem pela possibilidade deslocamento
tanto de músicas, quanto de corpos, de espacialidades e por fim, a capacidade
de despontar algo sobre própria capacidade artística que certos modos de vida
desempenham, a partir de um tipo de inserção no mundo.

Entre ser uma bicha e trava3, Leona vai afirmando em suas músicas as
potências da afirmação de localizadores que resvalem por sobre o seu corpo.
Mas, aqui não irei me deter a este momento de segmentaridade da vida – mais
a frente será apresentada os motivos pelos quais esta problemática não será
contemplada. O que interessa deste deslizar é a multiplicação das
possibilidades de afirmação e a capacidade de atravessar de forma
descentralizada ambiências – inclusive a fala aqui apresentada.

Haveria a possibilidade quando escrevemos de dimensionar as diversas


forças que nos motiva? A cartografia e seu princípio antropofágico4 daria conta
de trazer à tona a importância de cada um dos componentes que são
devorados no percurso de um estudo? Como poderiam ser utilizadas essas
forças para a composição do texto? O que acontece quando ao enveredar-se
pelos caminhos da escrita são colhidos fragmentos de vida para a composição

3 Abreviação, por vezes, utilizada para Travesti.


4 Há um princípio ético antropofágico para a subjetividade, como Suely Rolnik (2011)
dimensiona em sua Cartografia Sentimental. Neste princípio – que ela bebe do Manifesto
Antropofágico de Oswald de Andrade – o que importa é a abertura ao desconhecido e para
experimentações, para das experimentações e do que se desconhece “apropriar, devorar e
desovar”.
de textos? Ou, de forma mais elaborada, o que acontece quando nos
deparamos com acontecimentos que são experimentados diante da escrita a
partir dos delírios festivos?

Relacionando a potência da devoração – quer seja das músicas a serem


cantadas ao vivo ou reproduzidas em dublagens e discotecagens – cada uma
destas composições vem a somar para que as personagens atuem num
ambiente. O que é retido deste tipo de apresentação seria: a potência da
música em associação com os corpos para fazer com que outros corpos
bailem, ou ainda estejam diante dos palcos da vida para contemplação de um
tipo de experimentação queen. Há as queens que tramam suas apresentações
através de músicas inéditas, atuando pela capacidade de gravação de discos,
ampliação e difusão destas em plataformas de streaming 5.

Talvez a tessitura o que minha pesquisa almeja seja justamente a


tentativa de criar um território para lidar com os acontecimentos que
atravessam a vida. Os acontecimentos enquanto força que arrasta a vida a ser
efetuada em ações. Ações estas atuando justo no intento da inquietude daquilo
que não se deixa atravessar sem instaurar um problema como condição de
atração do que é visível – ou seja, pela afirmação de um modo de vida.

Como tratar daquilo que se experimenta justo pelo viés que só estamos
ali na experimentação quando não há o imperativo da afirmação de si? Nós, os
intelectuais precisamos sempre afirmar nosso ponto de vista como sendo o de
quem esteve lá e desse modo podemos afirmar, e, por conseguinte, tratar
aquilo como a certeza do que aconteceu e como a verdade dos fatos 6. Eu não
consigo passar ileso à tentações de refletir acerca das experimentações,
corroboro com Belchior quando ele afirma ♪ minha alucinação é suportar o dia-
a-dia, meu delírio é a experiência com coisas reais ♪ 7.

5 As plataformas de streaming são mecanismos de distribuição e transmissão contínua onde


estão disponíveis músicas, vídeos e etc. A exemplo deste tipo de plataforma podem ser citadas
o Youtube, Spotify, Deezer, Apple Music, entre outras.
6 Quando Stengers (2015) encara o que o êxito e, por conseguinte da verdade dos fatos obtida
pelos cientistas isto é transformação de algo em método. A cartografia aqui invade e revira tudo
para trazer a cena que o que se acompanha com ela não são as provas da existência do novo,
mas sim as suas nuances que se resvalem na possibilidade de vida e não no pressuposto da
certeza, durabilidade e demonstração.
7 Belchior – Alucinação, disponível em: <https://youtu.be/9K3Wj5BZBF4>, acesso: 21/01/2018.
Um investimento nas forças que lidam os seres na terra, enquanto aquilo
que circula em um acontecimento, e, desse modo, com a política investida
nestes. Talvez a linguagem menor8 que transpassa o corpo montado seja
justamente a capacidade de criar estéticas que se compõem pelos
deslocamentos ocorridos na natureza do corpo, a capacidade de agir mediante
as modificações.

A dificuldade em cartografar as queens faz-se justo pelo fato de lidar


com as dimensões estéticas para mostrar o que ali circula, pode-se recair
naquilo que são as queens, e não as máquinas de existências no mundo ali
circulando e agenciando vida.

A gente tenta cristalizar duas maneiras de ser de um mesmo ser: In drag


e out of drag. Mas mesmo assim, o que está em jogo é justamente o fosso
criativo entre as existências dos dois polos. Quando Ciara Le Glam está
apresentando cada camada anexada a sua pele que é trabalhada enquanto
tela, tentamos fixar em Ciara a força inovadora da atividade performática. Mas,
Leôncio que fica por trás daquela montação, ainda está ali presente. Por mais
que os traços de apagamento sejam reforçados, ainda assim estamos diante
daquilo que sempre está indo, mas que nunca deixou de ficar. E que,
justamente por isso conjura a potência da atração enquanto força de ser visível
em fluxo.

O esforço que está aqui em questão não são as imagens do “feminino” e


da “feminilidade” que são elencadas para a montação, tampouco os acessórios
e toda a indumentária que se diz ser deste universo. O que se expressa
enquanto força é a capacidade e unir estas maquiagens e toda uma série de
conteúdos e arrastá-lo em fluxo para assim fazer-se acontecer a montação, um
devir-montação. A montação em si se insurge do encontro entre a potência
presente no mesmo – os corpos originários – e a criação daquilo que não deixa
de um ser-outro para o mesmo que é a si – as dragferações, montações,
apresentando modos efêmeros de máscaras monstruosas.

8 Deleuze e Guattari (2015) investiram nas obras e vida de Kafka para dimensionar a
capacidade da desterritorialização em uma língua, atravessá-la com outros conteúdos,
enunciações outras. Se Kafka metamorfoseia o humano em um devir-animal, há queens que
devoram um mundo em sua capacidade finita ilimitada para composição de suas personagens.
Maqui(n)agens – ou alguns direcionamentos.

Já não há limites não tem bem, nem mal,


agora já não é o final e você meu bem vai
querer também estrelar o meu filme.

Tulipa Ruiz – Script

Giorgio Agamben, (2009, p. 58) em seu ensaio O que é o


contemporâneo? dissertou acerca da noção de contemporâneo, “É
verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com
este” tempo, diz o filósofo. O contemporâneo também não está “adequado às
suas pretensões”, pretensões do tempo que formula adequações pra os
corpos, para as vivências. Seriam então contemporâneos alguns corpos-drag
presentes nas baladas? Seria nossa contemporaneidade um estado de ação
de desajuste e anacronia? Seguindo levantando essas questões, acerca do
contemporâneo, me questiono se há a possibilidade de contemporaneizar-se a
partir da construção de corpos-drag e se daquilo escoa algo que se forma e
insurge enquanto novidade, é isto que tenho perseguido: se há essas
possibilidades nas noites e como isto se dá.

Lazzarato (2014), no lastro das contribuições de Guattari e Deleuze,


realizou uma série de apontamentos acerca de como o capitalismo está voltado
para a captação dos processos de subjetivação, sendo estes processos, as
vias de se realizar - a partir de diversos dispositivos - a sujeição social e
servidão maquínica (LAZZARATO, 2014, p. 17). Desse modo, o autor
apresentou como se dá o entrelaçamento entre questões do capitalismo que
opera junto aos processos de subjetivação.

Preciado em Manifesto contrassexual (2014) falou da necessidade de se


adotar contratos contrassexuais, onde o sistema do corpo assume novas
figurações e possibilidades. Se Latour (2009, 2012) preocupou-se num debate
antropológico entre a cisão do que é da ordem da natureza e da cultura, bem
como a necessidade de se rastrear os corpos humanos e não-humanos,
mostrando desta maneira que a modernidade é essa promessa não se
cumpriu, em Preciado (2014) encontrou-se a preocupação nos termos da
contrassexualidade ser não a construção de uma nova natureza para o corpo,
mas o contrário, a afirmação que nada há de natural no corpo, e, por
conseguinte, nas práticas as quais o corpo está sempre atrelado.

Ainda na temática da modernidade, mas continuando seguindo o lastro


de Preciado, ficou marcado em seu manifesto que “a contrassexualidade não
fala de um mundo por vir; ao contrário, lê as marcas daquilo que já é o fim do
corpo, tal como foi definido pela modernidade” (PRECIADO, 2014, p. 24). Na
temática do fim do corpo enquanto algo natural e constitutivo nas dualidades e
oposições (homem/ mulher, heterossexualidade/homossexualidade), para
então entrar nos fluxos onde estes corpos são atravessados por tecnologias de
gênero e sexualidades. Com isso, ao elencar o pensamento de Preciado,
almeja-se o debate acerca da potência de mobilização realizada pela
construção do corpo-drag, e com ele a capacidade de debater a fugacidade de
uma prática que se faz pelo deslizar do corpo em suas tecnologias.

Desde a montação, até o momento do corpo em close, várias questão


atravessam aquela corporeidade que existe na relação entre o espaço, os
corpos humanos e não-humanos (LATOUR, 2012). Aqui está inserida a nossa
proposta/projeto: buscando verificar se no socius das festividades existem
meios pelos quais a vida manifesta-se enquanto uma vida de deslocamento, e,
desse modo, um modo de existência que engendra políticas-outras.

Rolnik (2011) mostrou que na cartografia busca-se como uma existência


produz efeitos nas outras existências, efeitos de captura capitalística ou efeitos
de alargamento da realidade. Estamos cartografando os efeitos de vida junto
de outros olhares, o cartógrafo-pesquisador e aquilo que se propõe cartografar:
as cenas, os corpos-drag, mas sobretudo uma postura queen em conjuração
de um tipo de glória ascendendo mundos. A motivação está alicerçada em
corpos insanos que existem em cenários de práticas libertárias, mesmo que
momentâneas. Fazendo, deste modo uma narrativa reflexiva a partir das redes
interativas, onde o corpo se conecta com espacialidades, materialidades e
imaterialidades.

Deparamo-nos com os corpos reais, corpos com órgãos que existem.


Mas, na existência, os CsO assumem espaços no percurso da vida. Com isso,
estamos atentos à fruição de um estado ao outro, e, por conseguinte, um
agenciamento coletivo que se dá em face desse transbordamento do corpo. A
produção do inconsciente em Deleuze (2014, p. 345) enquanto algo da ordem
da “produção do desejo no campo social histórico”, vale-nos uma aposta de
compreensão deste desejo que revela-se com a “aparição de enunciados e
enunciações de um gênero novo” (idem).

No transbordar dos corpos, deparamo-nos com a possibilidade de


compreensão do que seriam os efeitos menores de montação e desmontação:
entre o encontro daquilo que se monta e aquilo que se dissipa no ar enquanto
algo da ordem do que está em devir – toda a natureza humana ou os estados
de paralisia corpórea – e a flutuação em cenas onde estes modos de vida se
adensam e se desdobram na criação de um território de contraespacialidade –
heterotopológico.

A vibração do corpo, da peruca, das canções em determinando sentido


que se fazem tremendo não estaria colocando no ar justamente essa postura
de algo de impossível? ♪ Talvez com sorte algo invisível apareça na
expectativa de que o inesquecível aconteça ♪ 9. Pequenos gestos então podem
ser apontados como a emergência de novas maneiras de atuação no mundo.

♪ E aí bebê, vai chupar ou vai lamber? ♪ questiona Kaya Conky, drag


queen que com a música de lançamento foi arrastada a toda uma rede de
montações. A questão da montação ainda está perpassada pela construção de
rostos que não cessam de ser elaborados para a apresentação, sobretudo
quando todo o rosto está expandido para o corpo, como a capacidade de
liberar as alegrias dos encontros. Neste sentido, apostamos aqui nesta
máquina de criar rostos enquanto algo da ordem da urgência e do contágio.
Mas o que faria essa máquina? Deleuze e Guattari (2015, 148) frisam: “O que
faz máquina, falando propriamente, são as conexões, todas as conexões que
conduzem a desmontagem”.

Kaya Conky está atada ao segmento de produção de eventos festivos,


que não cessa de produzir espaços em que abarquem as montações.
Potyguara Bardo não cessa de produzir monstruosidades em formato de
legado, a partir do contato com pessoas que lhe buscam enquanto referência

9 Tulipa Ruiz – Expectativa, disponível em: https://youtu.be/dko6xk8HDxA, acesso: 22/01/2018.


de “mãe drag”. O que daqui estamos tomando é que cada uma dessas figuras
circulantes da cena trazem consigo o princípio de grupelhamento. Se cada uma
investe tempo e criatividade em se ligar com tantos outros pontos para fazer
um determinado modo emergir na cidade, o fazem sempre com a preocupação
de abertura. Não é meramente uma abertura para que possa ser quem são,
mas sim para que tantas outras queens possam acessar estes espaços na
tentativa de expansão – não somente das cenas que estão propondo, mas da
multiplicação de outras possibilidades. Quando Clarice Lispector afirma que
Macabéa parece ter nascido de uma ideia vaga qualquer dos seus pais, a Haus
of Bardo10 parece seguir a mesma linha. Quando cada um dos pontos se liga a
ideia para criar e unir-se a uma Bardo, sendo filha, neta, sobrinha, é criado do
ponto zero de ligação a um ponto de composição com algo que ainda não
sobreviveu se não pelo desejo de ser artista – como o sonho de Macabéa em
ser artista de cinema.

Cada uma das personagens que se fazem artistas nessa cena está em
uma espécie de conexão com diversas paisagens. Circulando entre espaços
como a Ribeira, o enigma hall, a vogue ou Casanova. Mas, em casamentos,
festas de formatura, e afins. Circulam, e a própria localidade faz-se depreender
enquanto uma contraespacialidade – característica fundamental para que
possamos compreender este espaço-outro em conjuração de mundo.

10 A Haus of Bardo foi dimensionada como sendo a união de diversas drag queens, que foram
surgindo e carregaram o Bardo para a composição do “nome de guerra”. Mais à frente
retomaremos a questão da Haus of bardo.
A presença em instantes

Não sei como se faz outra cara. Mas é só na


cara que sou triste porque por dentro eu só
até alegre. É tão bom viver, não é?

Clarice Lispector – A hora da estrela

O que seria a presença em instante? Como medir a dimensão de uma


fração de tempo? Clarice Lispector na morte de Macabéa deixa a possibilidade
de uma das compreensões acerca disto: “O instante é aquele átimo de tempo
em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois
não toca mais e depois toca de novo”. Quando os corpos estão em constante
relação com os instantes e a presença dedica-se ao viver o momento em
intensidade, as músicas convocam a fazer-se circular o corpo – ou seria o
modo de estar no mundo?

Ecoa o som que convocam a exibição: ♪ Quero ver novamente as


moninhas abafando, tomar umas e outras e cair do salto ♪. Entre o salto que
faz o corpo tocar no chão e o estalido sonoro daquela passagem, o corpo vai
bailando por todo o dancefloor. Neste mesmo danceflor um pequeno grupo de
dança composto por jovens reuniu-se para elaboração de uma breve
apresentação. Quando em ato, fizeram de seus corpos as bases para a
montação das coreografias, onde a força de todos só é vista pelo instante em
que estão em toque direto entre si, e que sem o toque entre eles toda a
coreografia desmoronaria e eles iriam ao chão.

Estes corpos bailantes dissipam-se por todos os lados e pude ver as


câmeras que gravam seus momentos de deslize. O desafio de girar no ar e
aceitar a sustentação das mãos alheias como condição de não ir ao chão, bem
como neste ato abrir-se para a apresentação, faz com que se reflita acerca
deste instante em que o chão é tocado quando o corpo aterrissa do seu voo.

Por vezes, suspeitamos que muitas coisas acontecem em determinados


espaços, e é justamente com nossas suspeitas que construímos uma
percepção acerca destes ambientes. Quando Madame Satã delira acerca da
inversão ocorreria do lado oposto do mundo, ela imagina este espaço de forma
completamente oposta:

A china é um lugar maravilhoso, a China fica do outro lado do mundo.


Na china todo mundo é invertido. Quem aqui é preto lá é branco,
quando aqui é dia lá é noite. Na china as pessoas dormem de olho
aberto e acordam de olho fechado.

Inversão da organização do cotidiano, inversão da organização corpórea


dos órgãos a partir das dinâmicas diurnas e noturnas. Precisando então
acessar de alguma forma este espaço que conjura o corpo como delírio, quer
seja a partir da escrita, das músicas, das montações, e circulando pelas cenas.

Exercer instantes como linha de urgência, contra os moinhos de vento


que mais parecem moinhos de vida – ou de (des)possessão das vidas. Ou as
drags como os dragões que perfilam moinhos de vento de Cervantes, com a
ilusoriedade da imagem de si arrastar a percepção a outro nível que confunde
cada uma das partes daquela montação.

A presença no dia de hoje como a condição de não escapar a não ser


naquele momento, que por si só já é duradouro, como Clarice legou-nos:
"vivemos exclusivamente no presente, pois sempre e eternamente é o dia de
hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das
coisas neste momento". A partir deste espaço temporal, reapropriar-se do
corpo pelo álcool, música e etc. Reapropriar-se de toda a ambiência pelo
espectro de vida e força que transpassa tudo e que em nada fica retido. O que
nos interessa é a composição e/ou necessidade deste corpo que se reinventa
nas mil e uma noites para não ser domado / somado / morto, mortificado.
Transformista, travestis, drags e bichas: uma virada artística.

Os investimentos realizados por pessoas circunscritas na atmosfera do


teatro estavam pautados na capacidade destas em transformar-se artista,
visando a participação em espetáculos. A Divina Valéria introspectivamente
reflete se as escolhas dela não seriam outras, caso não tivesse se tornado
artista: “Se eu não tivesse me transformado artista acho que não seria travesti.
Uma coisa estava ligada a outra”11.

A condução das modificações corporais abarcando o mundo da


teatralidade faz-se brotar em diferentes formas, que eram devoradas
antropofagicamente. As vedetes compunham uma grande fonte de materiais a
serem explorados para a composição das Divas que se almejavam montar.
Seria no palco, como afirma Rogéria, que a mulher baixaria e que tudo que
havia sido antes era largado. A influência do palco aqui assume centralidade,
como espaço a ser dominado com esta personagem que descia ao mundo no
momento em que no camarim o papel era tomado para si.

Brigitte de Búzios foi incisiva em seu depoimento em dizer que tinha


horror em se maquiar, que só se maquiava para subir aos palcos. “Minha vida é
até meio caretinha, mas no palco a gente faz o que quer”, dando ênfase de que
no espaço do palco pode-se criar. Em seu cotidiano, as atividades são outras,
como é o caso de participar de grupos de senhoras da terceira idade.
Marquesa, por sua vez, ao palco dispara que vive com sua mãe e animais
domesticados e que exerce o papel um pouco de cuidadora e estilista. Mas,
sua “profissão é a noite”.

Anterior a essa atmosfera das Divas Aberrantes, Madame Satã almejava


espaço para a teatralidade inseparável da vida que levava. Desde o papel que
assumiu de ajudar uma cantora na preparação de seus espetáculos, até a
construção de sua apresentação em um bar – o dono do estabelecimento
negou na primeira tentativa de inserção de um espetáculo ali. A expectativa de
apresentar-se era tamanha que escondido da cantora, Madame Satã utilizava

11 Os trechos dos depoimentos de Divina Valéria, Brigitte de Búzios e Marquesa foram


coletados do filme-documentário Divinas Divas, dirigido por Leandra Leal.
as roupas, chapéus e demais adereços para ensaiar o número que a cantora
estava apresentando no palco.

Priscilla, Rainha do Deserto vai cortando todo o território australiano com


três queens que revezam a pilotagem ônibus. Quando as queens atracam em
uma pacata cidade, após problemas mecânicos em Priscila. À céu aberto, elas
comentam e se montam para testar como será a apresentação na parada final.
Treinando e correndo contra o mundo, bebendo e divertindo-se cada uma das
queens busca na viagem uma forma de enfrentar os desafios a que a vida
colocou-as em face. Anthony (que se montava de Mitzi) estava indo encontrar a
sua esposa – parte de seu passado que seu ciclo de amizades desconhecia.
Adam (que se montava de Felícia) estava fugindo da sua mãe controladora,
que escolhia até as roupas que utilizaria quando montado. Bernadette buscava
sair da atmosfera de seu luto, logo após perder o seu companheiro após um
acidente. Unidas, as queens vão montar um show de drags para um resort,
para que poder executá-lo precisaram atravessar o deserto e realizar uma
verdadeira odisseia para chegar entre aplausos, vaias e deboches.

Rapidamente aqui foi dada uma passada por obras fílmicas com o
intento de deixar registrado que estas produções possibilitam que se consiga
cartografar movimentos e conexões que são realizadas desde o cinema, mas
que ainda estão baseadas numa atmosfera queen. De toda forma, elas
precisam estar no texto ainda com mais fôlego, botando mais corpo para a
cartografia queen que é de nosso interesse tecer.
Quando Kaya chorou.

Sábado, dia 30 de setembro de 2017. Segundo dia da edição em


comemoração aos 19 anos do festival M.A.D.A., edição esta que contava com
artistas de renome do cenário nacional dentre eles: Pitty, Karol Conká, Nando
Reis, headlinears consagrados neste festival. Após uma sequência de shows,
quando a cantora Pitty finaliza sua apresentação era a vez de Kaya Conky
adentrar no palco e fazer uma performance de 30 minutos. A queen estava
nitidamente nervosa, dava pequenos saltos – visão esta que eu tinha da pista
para o backstage da lateral do palco – enquanto esperava o momento da sua
apresentação. Eu e meus amigos gritamos seu nome e mandamos um beijo
para a queen acalmar-se, ela retribuiu acenando e mandando outro beijo.
Porém, a responsabilidade em suas mãos era tremenda. Kaya estava
adentrando ao palco para ver o maior público da sua vida. Era a primeira drag
a se apresentar em um dos palcos principais do evento.

O show transcorre, eram apenas trinta minutos de apresentação, mas


que parecia uma eternidade para a drag. Ao subir ao palco cantando seus
funks, com o auxílio do seu produtor que fazia então as vezes de DJ, pode-se
perceber a expressão de surpresa em larga escala na face das pessoas que
frequentavam o festival. As pessoas se interpelavam a fim de descobrir quem
era aquela pessoa que estava realizando a apresentação e que músicas eram
aquelas que estavam sendo cantadas. Esta é uma das pistas que vão deixando
pontos a serem ligados. Todo um investimento foi realizado para que a
apresentação de uma drag acontecesse naquele espaço. O festival MADA é
um dos maiores e mais consagrados no cenário local.

Quando Kaya chorou em seu palco no momento de realizar sua


performance podemos perceber o acontecimento que dali brota e desponta
para além daquilo que estava sendo planejado, desperta as reflexões da
potência que vaza para além do que se propõe ou é almejado. A drag estava
diante do público e ali expressava sua tentativa de disparar os corpos, mas ela
se depara diante do desafio de fazer bailar e quicar aqueles corpos que
aparentemente estavam desinteressados e estáticos. Os olhos mirando o palco
na expectativa de que o que ali estava se passando se encerasse, a artista
tentando fazer com que aquele momento animasse aqueles dispersos no
público, só remete a capacidade do encontro. Indo ao encontro do público, que
ansiosos aguardavam pelos próximos shows ela finda indo de encontro das
expectativas.

A apresentação faz vazar a potência de um duplo encontro: a potência


de aumentar a percepção do que acontece naquele território conjurado; abrir o
território para a imprevisibilidade de um evento. Operar pelo desmoronamento
das expectativas colocando no palco a montação, os funks e “transa reggaes” e
ainda investir nos delírios de fazer o corpo quicar no chão. O encontro que
poderia acontecer nos moldes do que se esperava, haja vista que o line-up do
festival era amplamente divulgado. Mas, conscientemente – ou não – aquele
show adentrava ao cenário do MADA como sendo a possibilidade de retornar
uma atmosfera festiva de subversão do próprio festival.

Se Elza Soares anuncia que é A mulher do fim do mundo12 e que ♪ Na


avenida, deixei lá a pele preta e a minha voz. Na avenida, deixei lá. A minha
fala, minha opinião ♪. O que restaria deste corpo que se despedaça pelas ruas,
becos, palcos? O que se passa nesse corpo que se abre em poros, que sua
pele se estende por todo o tecido poroso da cidade, que vai apresentar-se em
festivais? Mais que isso, o que demanda esta superfície estendida? O regime
dos olhos que sentem com a visão a dinâmica de um corpo convocado aos
bailes da vida. Escuta-se com esta superfície planeificada, exposta, deposta de
si e arrombada.

12 Elza Soares – a mulher do fim do mundo. Disponível em:


<https://youtu.be/6SWIwW9mg8s>, acesso: 07/10/2017.

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