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“Esta é a história sobre uma mãe, suas duas filhas e suas duas cadelas. Era para ser uma
história de como os pais chineses são educadores mais competentes do que os pais
ocidentais. Em vez disso, narra um amargo choque de culturas, um sabor fugaz de glória e a
forma como fui humilhada por uma menina de treze anos”. Esse texto estampa a capa da
versão brasileira do livro Grito de guerra da mãe-tigre, de Amy Chua, filha de chineses e
professora de direito na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, onde criou suas filhas.
Elas receberam uma educação rigorosa, que proibia brincadeiras com os amigos, considerava
9 uma nota ruim e exigia dedicação intensa ao piano e ao violino. O livro ganhou destaque
na imprensa norte americana e as críticas de pais e educadores horrorizados diante de uma
criação tão severa e tão pouco complacente com as dificuldades e desejos das crianças.
Nosso olhar ocidental frequentemente se espanta ao observar os exemplos que chegam até
nós sobre a educação e os costumes chineses. Recentemente, um vídeo de um garoto de
quatro anos obrigado pelo pai a correr na neve vestindo apenas uma sunga se espalhou
rapidamente na internet e, assim como o livro da “mãe-tigre”, provocou indignação. Para
compreender esse contexto com menos estranhamento, é preciso recuperar algumas
características dessa sociedade milenar que é a China, onde a valorização da educação – e o
rigor para que esse valor seja cumprido – faz parte de uma longa tradição.
O chamado exame civil, implantado ainda no século VII, era o sistema pelo qual se
selecionavam as pessoas que serviriam o imperador, um processo bastante rigoroso do qual
todas as classes poderiam participar. Assim, acabou virando sinônimo de mobilidade social.
A educação, ou seja, a preparação voltada para os exames, era enxergada como única
esperança para o futuro e, por isso, os pais estimulavam fortemente os filhos a se dedicarem
aos exames imperiais, abolidos somente em 1905. “Sempre houve uma formação e seleção
pela meritocracia do pessoal que se chamava ‘mandarim’ para servir o Imperador”, revela
Yokota. A meritocracia, mesmo com o fim dos exames, permeia até hoje o sistema
educacional chinês, estimulando a busca por eficiência e produtividade.
É importante observar que falar em “sistema educacional” é buscar uma expressão que tente
resumir uma certa linha, um desenho de como se constitui a educação na China, mas que
certamente não abrange as disparidades, contradições e aspectos diversos da questão.
Também não dá conta de explicar por que mesmo os chineses ou descendentes que vivem em
outros países também reproduzem as características lá observadas. “Estima-se que existem
cerca de 250 milhões de chineses e seus descendentes no resto do mundo, e eles são
economicamente bem dotados, possuem um nível educacional dos mais elevados”, destaca
Yokota. Ele lembra que cerca de um terço do Sudeste Asiático é de chineses e eles
representam a elite econômica.
Já para Mun Tsang, professor de economia da educação da Columbia University, nos Estados
Unidos, e professor honorário da Beijing Normal University, na China, desde 1949, quando
acontece a revolução que colocou o líder comunista Mao Tsé-Tung no poder, a educação
chinesa vem passando por políticas “oscilantes” devido às disputas internas no alto comando.
Tsang aponta a existência de duas vertentes dentro do Partido Comunista Chinês: uma que vê
na educação um papel importante para o desenvolvimento político e ideológico do povo
chinês e que defende a promoção da igualdade social, contra a estratificação e elitismo na
educação; e outra vertente, mais moderada, para a qual a educação deveria apoiar o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Em artigo publicado na China Review, Tsang
afirma que “mudanças políticas na educação refletem mudanças no poder e na perspectiva de
desenvolvimento entre as facções partidárias”. Segundo o pesquisador, “as principais
políticas educacionais e reversões têm sido tomadas para resolver dilemas sobre as funções
políticas e/ou ideológicas contra as funções econômicas da educação”. Ou seja, de um lado, a
educação voltada para a eficiência econômica; do outro, a educação voltada para a igualdade
social e a equidade.
Paulo Yokota, por sua vez, sustenta que o próprio conceito de democracia não pode ser o
único parâmetro para avaliar se a educação pode levar a mudanças. O economista reforça
que na Ásia existe uma hierarquização em que os velhos, por exemplo, são mais
considerados que os jovens, os professores mais que os alunos, de maneira que é sem sentido
a tentativa de transpor modelos. “Apesar da aspiração pela igualdade, no mundo ocidental
acaba predominando o poder econômico, e certamente o mais pobre possui menos direitos de
fato do que os ricos”, avalia Yokota. “Mesmo assim, acredito que a melhoria do padrão
econômico acaba aumentando a aspiração pela democracia e liberdade, dentro do conceito
ocidental. Acredito que a educação e o desenvolvimento que está se obtendo na China
provocam mudanças como as que estão sendo previstas, com reformas políticas, econômicas
e nos seus relacionamentos com o exterior nas próximas décadas”, avalia.