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O desenho educacional que move a inovação na China

Por Aline Naoe


10/04/2012

“Esta é a história sobre uma mãe, suas duas filhas e suas duas cadelas. Era para ser uma
história de como os pais chineses são educadores mais competentes do que os pais
ocidentais. Em vez disso, narra um amargo choque de culturas, um sabor fugaz de glória e a
forma como fui humilhada por uma menina de treze anos”. Esse texto estampa a capa da
versão brasileira do livro Grito de guerra da mãe-tigre, de Amy Chua, filha de chineses e
professora de direito na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, onde criou suas filhas.
Elas receberam uma educação rigorosa, que proibia brincadeiras com os amigos, considerava
9 uma nota ruim e exigia dedicação intensa ao piano e ao violino. O livro ganhou destaque
na imprensa norte americana e as críticas de pais e educadores horrorizados diante de uma
criação tão severa e tão pouco complacente com as dificuldades e desejos das crianças.

Quando falamos de China, seja política, econômica ou socialmente, o que vemos é um


impressionante quadro, de dimensões tão grandes quanto o próprio país. A educação chinesa
não é exceção. E não há consenso na visão ocidental sobre ela. Ao passo que muitos no
Ocidente desferiram críticas cortantes à professora de Yale, há quem enxergue na China um
modelo educacional a ser seguido – possivelmente, o segredo da emergente potência chinesa.
É arriscado dizer que foi a educação quem ergueu o gigante, mas é certo que a maneira como
a educação é encarada no país reflete muito os valores chineses e as suas expectativas na
liderança mundial.

Em 2009, a China participou pela primeira vez do Programa Internacional de Avaliação de


Alunos (Pisa, na sigla em inglês), uma prova aplicada pela Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) que testa habilidades de leitura e conhecimentos em
matemática e ciências de estudantes de 15 anos de idade. A primeira posição chinesa nas três
áreas impressionou os mais de 60 países que participaram do estudo. Em março de 2011,
um relatório da Royal Society Britânica apontou a possibilidade de a China alcançar já em
2013 os Estados Unidos em produção científica, tomando a dianteira da ciência no mundo.
Segundo o levantamento, desde 1999 os investimentos em pesquisa e desenvolvimento no
país têm crescido aproximadamente 20% ao ano. O número de cientistas e engenheiros
formados também impressiona. Dados do Ministério da Ciência e Tecnologia chinês
informam que em 2006 formaram-se 1,5 milhão de profissionais dessas áreas. Universidades
chinesas estão entre as melhores do mundo. Diante dos bons resultados da China em CT&I, a
educação chinesa tem sido apontada como uma das grandes “armas” de seu crescimento.
É necessário, no entanto, comedimento ao avaliar os números chineses. “Os dados recentes,
informando que seu sistema educacional é eficiente, baseiam-se somente em dados isolados
de Xangai e nos esforços que estão fazendo nas suas grandes universidades, que estão se
equiparando com as melhores do mundo”, avalia o economista Paulo Yokota, ex-professor da
Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretor do Banco Central do Brasil. “A recuperação
do desenvolvimento chinês deve-se à abertura para o mundo e à intensificação do uso do
mercado, em decorrência das contribuições de Deng Xiaoping, principalmente”, afirma
Yokota, que atualmente escreve para o site Ásia Comentada. Xiaoping foi quem promoveu
as principais reformas econômicas na China após a morte de Mao Tsé-Tung, implantando a
chamada economia socialista de mercado, modelo que permanece até hoje.

Mas para Zhou Zhong, professora do Departamento de Educação da Universidade Tsinghua,


em Beijing, não há dúvida quanto à sustentação do crescimento chinês. “A educação é a base
do sucesso da economia chinesa. Creio que esta afirmação é geralmente verdadeira quando
se fala no desenvolvimento econômico, social, cultural, sustentável de todos os países do
mundo”.

Ensino superior: conquistas

Segundo relatório elaborado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial


(IEDI), o governo chinês vem investindo pesado em recursos humanos em ciência e
tecnologia na última década. Houve um esforço grande em elevar o prestígio das
universidades chinesas e torná-las polos de atração de estudantes e pesquisadores
estrangeiros, especialmente a partir do chamado Programa 985, pelo qual o governo criou
universidades, investiu nelas e escolheu algumas das mais importantes para transformarem-
se em centros de excelência. Essas universidades são uma das chaves para o sistema nacional
de inovação chinês, como afirma o relatório da Thomsom Reuters, que fala da uma “nova
geografia da ciência”.
Se o destaque nas décadas de 1980 e 1990 foi a expansão da educação básica, pode-se
afirmar que na primeira década do século XXI, o foco tem sido a expansão do ensino
superior. Em 2010, o governo anunciou o Plano de Médio e Longo Prazo e Desenvolvimento
de Talentos, que pretende elevar o número de pesquisadores para quase 4 milhões até 2020,
em especial nas áreas de inovação, além de aumentar as matrículas nas universidades. Esse
plano prevê também políticas para atrair talentos de fora do país para trabalhar na China.
Outro plano decenal é o Programa de Reforma e Desenvolvimento da Educação Nacional,
que até 2020 almeja aproximar o ensino superior do mercado de trabalho, com destaque para
a escola vocacional.

Chama a atenção a existência de uma visão estratégica de longo prazo em relação à


educação, manifesta não só em políticas educacionais recentes, mas em toda uma trajetória
da educação no país.

Uma cultura da educação

Nosso olhar ocidental frequentemente se espanta ao observar os exemplos que chegam até
nós sobre a educação e os costumes chineses. Recentemente, um vídeo de um garoto de
quatro anos obrigado pelo pai a correr na neve vestindo apenas uma sunga se espalhou
rapidamente na internet e, assim como o livro da “mãe-tigre”, provocou indignação. Para
compreender esse contexto com menos estranhamento, é preciso recuperar algumas
características dessa sociedade milenar que é a China, onde a valorização da educação – e o
rigor para que esse valor seja cumprido – faz parte de uma longa tradição.

O chamado exame civil, implantado ainda no século VII, era o sistema pelo qual se
selecionavam as pessoas que serviriam o imperador, um processo bastante rigoroso do qual
todas as classes poderiam participar. Assim, acabou virando sinônimo de mobilidade social.
A educação, ou seja, a preparação voltada para os exames, era enxergada como única
esperança para o futuro e, por isso, os pais estimulavam fortemente os filhos a se dedicarem
aos exames imperiais, abolidos somente em 1905. “Sempre houve uma formação e seleção
pela meritocracia do pessoal que se chamava ‘mandarim’ para servir o Imperador”, revela
Yokota. A meritocracia, mesmo com o fim dos exames, permeia até hoje o sistema
educacional chinês, estimulando a busca por eficiência e produtividade.
É importante observar que falar em “sistema educacional” é buscar uma expressão que tente
resumir uma certa linha, um desenho de como se constitui a educação na China, mas que
certamente não abrange as disparidades, contradições e aspectos diversos da questão.
Também não dá conta de explicar por que mesmo os chineses ou descendentes que vivem em
outros países também reproduzem as características lá observadas. “Estima-se que existem
cerca de 250 milhões de chineses e seus descendentes no resto do mundo, e eles são
economicamente bem dotados, possuem um nível educacional dos mais elevados”, destaca
Yokota. Ele lembra que cerca de um terço do Sudeste Asiático é de chineses e eles
representam a elite econômica.

Zhou Zhong, da Universidade Tsinghua, lembra a complexidade que envolve a definição de


educação chinesa. “Eu acho que é uma ideia muito interessante pensar em termos de um
‘modelo educativo’ da China. Se pudesse ser resumido como um modelo, ele seria complexo,
com fatores profundamente enraizados no contexto passado e atual da China". Para Zhou,
esse modelo está profundamente arraigado no confucionismo, que vê o respeito à educação
como um caráter nacional do povo chinês ao longo da história. Quanto à severidade desse
modelo, Zhou dá uma outra abordagem. “Eu prefiro descrevê-lo como um sistema
competitivo, especialmente em termos de oportunidades de educação de qualidade”, afirma.

Segundo o historiador Arilson Silva de Oliveira, professor da Universidade Federal de Mato


Grosso do Sul e estudioso da sociologia das religiões, Confúcio foi o pensador que mais
influenciou a cultura e a sociedade chinesa desde a antiguidade até hoje. “Não é exagero
dizer que o atual amor nutrido pelo antigo (mesmo diante da ditadura socialista) e pela
tradição na China tem grande parte de suas raízes fincadas no pensamento desse sábio, um
entusiasta da história e dos costumes”. Para Oliveira, os pressupostos religiosos do
confucionismo estão sendo difundidos pela República Popular da China dentro e fora do
país, citando como exemplo o Instituto Confúcio, criado pela Universidade Estadual
Paulista (Unesp). “Atualmente, o confucionismo também adentra os currículos educacionais,
os debates universitários e os best sellers do país”, constata Oliveira. “Diante de tudo isso, é
o caso de se perguntar, afinal, qual a importância das ideias de Confúcio para uma China
socialista. Simples: promover um sentido para a vida e restabelecer valores morais, perdidos
com o regime ditador que se estabeleceu no século XX”.

Momentos da educação na China

Ao abordar os resultados do Pisa, o relatório da OCDE aponta Xangai como um exemplo de


reforma educacional e contextualiza a China e seus estágios de desenvolvimento da
educação. Segundo o texto, o sistema educacional chinês passou por vários estágios de
desenvolvimento: adotou o modelo rígido russo na década de 1950; passou pelo período de
"renascimento" no início dos anos 1960; viveu o dano desastroso durante a Revolução
Cultural de Mao Tsé Tung, entre 1966-1976; e experimentou, enfim, a rápida expansão
durante os anos 1980 e 1990, e a transição para o ensino superior em massa no século XXI.
Os autores do relatório apontam que, possivelmente com exceção do período da Revolução
Cultural, a educação em geral tem apresentado uma tendência ascendente, tanto em escala
como em qualidade.

Já para Mun Tsang, professor de economia da educação da Columbia University, nos Estados
Unidos, e professor honorário da Beijing Normal University, na China, desde 1949, quando
acontece a revolução que colocou o líder comunista Mao Tsé-Tung no poder, a educação
chinesa vem passando por políticas “oscilantes” devido às disputas internas no alto comando.
Tsang aponta a existência de duas vertentes dentro do Partido Comunista Chinês: uma que vê
na educação um papel importante para o desenvolvimento político e ideológico do povo
chinês e que defende a promoção da igualdade social, contra a estratificação e elitismo na
educação; e outra vertente, mais moderada, para a qual a educação deveria apoiar o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Em artigo publicado na China Review, Tsang
afirma que “mudanças políticas na educação refletem mudanças no poder e na perspectiva de
desenvolvimento entre as facções partidárias”. Segundo o pesquisador, “as principais
políticas educacionais e reversões têm sido tomadas para resolver dilemas sobre as funções
políticas e/ou ideológicas contra as funções econômicas da educação”. Ou seja, de um lado, a
educação voltada para a eficiência econômica; do outro, a educação voltada para a igualdade
social e a equidade.

Educação, política e o futuro da China

Governada exclusivamente pelo Partido Comunista, a China é comumente definida como um


regime ditatorial, autoritário e fechado. Especialistas se dividem sobre se a educação teria o
potencial de provocar mudanças no sistema político, já que é considerada um elemento
libertador, de desenvolvimento humano. Arilson Oliveira, por exemplo, tem uma visão pouco
otimista. Para o historiador, todo regime totalitário ou ditador possui uma educação de
altíssima qualidade, já que pretende formar “mentes educadas”. Essa qualidade, entretanto,
não é sinônimo de contestação, mas de manutenção do status quo. Sua crítica não se
restringe apenas à estrutura chinesa, mas à educação em geral. “Educação, na modernidade,
não é sinônimo de o ‘melhor para o homem’. Ela é sinônimo, isso sim, daquilo que melhor
representa os desejos de quem está no poder”, afirma. Para o pesquisador, nenhuma
educação moderna tem o poder de mudar regimes. Todas elas, ao contrário, reforçam
situações vigentes, são educações técnicas, não humanistas.

Paulo Yokota, por sua vez, sustenta que o próprio conceito de democracia não pode ser o
único parâmetro para avaliar se a educação pode levar a mudanças. O economista reforça
que na Ásia existe uma hierarquização em que os velhos, por exemplo, são mais
considerados que os jovens, os professores mais que os alunos, de maneira que é sem sentido
a tentativa de transpor modelos. “Apesar da aspiração pela igualdade, no mundo ocidental
acaba predominando o poder econômico, e certamente o mais pobre possui menos direitos de
fato do que os ricos”, avalia Yokota. “Mesmo assim, acredito que a melhoria do padrão
econômico acaba aumentando a aspiração pela democracia e liberdade, dentro do conceito
ocidental. Acredito que a educação e o desenvolvimento que está se obtendo na China
provocam mudanças como as que estão sendo previstas, com reformas políticas, econômicas
e nos seus relacionamentos com o exterior nas próximas décadas”, avalia.

Artigo retirado do link: http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?


section=8&edicao=76&id=947

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