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SOBRE A
DEPENDÊNCIA
PSICOLÓGICA
J. KRISHNAMURTI
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[...] TENHAM CUIDADO com o homem que lhes descreve
o desconhecido, a verdade, ou Deus. Tal descrição do desconheci-
do oferece-lhes um meio de fuga, e, além disso, a verdade desafia
qualquer descrição. Nessa fuga não há compreensão, não há reali-
zação. Na fuga só existe rotina e decadência. A verdade não pode
ser explicada nem descrita. Ela é. Afirmo que existe uma beleza
que não pode ser posta em palavras; se o fosse, seria destruída;
então já não seria a verdade. Mas vocês não podem conhecer essa
beleza, essa verdade, perguntando sobre ela; só podem conhecê-
la quando tiverem compreendido o conhecido, quando tiverem
alcançado o significado total disso que está perante vocês. Portan-
to, estão constantemente procurando fugas, e dignificam essas
tentativas de fuga com variados nomes espirituais, com palavras
altamente e imponentemente sonantes; essas fugas satisfazem-
nos temporariamente, isto é, até que a próxima tempestade de
sofrimento chegue e arrase o seu refúgio.
Vamos, por agora, pôr de lado esse desconhecido, e preo-
cupar-nos com o conhecido. Ponham de lado, por agora, as suas
crenças, a sua escravidão das tradições, a sua dependência no seu
Bhagavad Gita, nas suas escrituras, nos seus Mestres. Não estou
atacando as suas crenças favoritas, as suas sociedades favoritas;
estou dizendo-lhes que, se quiserem compreender a verdade do
que digo, têm que tentar escutar sem ideias preconcebidas. Atra-
vés dos nossos variados sistemas de educação – que podem ser a
formação universitária, ou o seguimento de um guru, ou a depen-
dência do passado na forma de tradição e de hábito, que cria a
incompletude do presente – através desses sistemas de educação
temos sido encorajados a obter, a adorar o sucesso. Todo o nosso
sistema de pensamento, bem como toda a nossa estrutura social,
está baseada na ideia de obtenção. Olhamos para o passado por-
que não podemos compreender o presente. Para compreender o
presente, que é experiência, a mente tem que estar aliviada das
tradições e dos hábitos passados. Enquanto o peso do passado
nos dominar, não podemos compreender, não podemos colher
integralmente o perfume de uma experiência. Portanto, tem que
haver incompletude enquanto houver a procura de obtenção. Que
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todo o nosso sistema de pensamento está baseado na obtenção
não é uma mera suposição hipotética da minha parte; é um fato. E
a ideia central da nossa estrutura social é também uma de obten-
ção, de consecução, de sucesso. Mas porque eu disse que a sua
procura dessa ideia de obtenção não resultará no viver completo,
não pensem por isso em termos de oposto. Não digam “Não de-
vemos procurar? Não devemos obter? Não devemos ter sucesso?”
Isto demonstra pensamento limitado. O que quero que façam é
questionar a ideia de obtenção.
Conforme disse, toda a estrutura social, econômica e
pseudo-espiritual do nosso mundo está baseada nessa ideia cen-
tral de lucro: lucro da experiência, lucro da vida, lucro dos profes-
sores. E dessa ideia de lucro gradualmente cultivam em si próprios
a ideia de medo, porque na sua procura de lucro estão sempre
com medo da perda. Portanto, tendo esse medo da perda, esse
medo de perder uma oportunidade, criam o explorador, seja ele o
homem que os guia moralmente, espiritualmente, ou uma ideia à
qual se apegam. Têm medo e querem coragem; por isso a cora-
gem se torna no seu explorador. Uma ideia torna-se o seu explo-
rador. A sua tentativa de consecução, de lucro, é apenas uma
fuga, uma fuga da insegurança. Quando falam de ganho estão
pensando em segurança; e, após estabelecerem a ideia de segu-
rança, querem encontrar um método de obter e manter essa se-
gurança. Não é assim? Se tiverem em consideração a sua vida, se
a examinarem criticamente, descobrirão que ela se baseia no me-
do. Estão sempre cuidando de ganhar; e, depois de procurarem e
encontrarem as suas seguranças, após constituí-las como os vos-
sos ideais, voltam-se para alguém que lhes oferece um método,
um plano, para alcançar e proteger os vossos ideais. Por isso di-
zem: “Para alcançar essa segurança, tenho que me comportar de
certa maneira; tenho de procurar a virtude, tenho que servir e
obedecer, tenho que seguir gurus, professores e sistemas; tenho
que estudar e praticar para obter o que quero”. Por outras pala-
vras, uma vez que o seu desejo é segurança, encontram explora-
dores que os ajudarão a obter o que querem.
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Portanto, vocês, como indivíduos, constituem religiões pa-
ra servir de seguranças, para servir de padrões para a conduta
convencional; devido ao medo da perda, o medo de perder algo
que querem, aceitam guias ou ideias como os que as religiões
oferecem. Ora, tendo constituído os seus ideais religiosos, que são
na verdade as suas seguranças, têm que ter modos de conduta,
práticas, cerimoniais e crenças específicas, para alcançar esses
ideais. Ao tentar levá-los a cabo, aí surge a divisão no pensamento
religioso, resultando em cisões, seitas, credos. Vocês têm as suas
crenças, e outros têm as deles; vocês mantêm-se fiéis à sua forma
específica de religião e outros à deles; vocês são Cristãos, outros
são Muçulmanos, e outros ainda Hindus. Têm essas dissensões e
distinções religiosas, mas contudo falam de amor fraternal, tole-
rância e unidade – não que tenha que haver uniformidade de pen-
samento e ideias. A tolerância de que falam é apenas uma inven-
ção engenhosa da mente; essa tolerância apenas indica o desejo
de se apegarem às suas próprias idiossincrasias, às suas próprias
ideias limitadas e preconceitos, e de permitirem que os outros
procurem as deles. Nessa tolerância não há diversidade inteligen-
te, mas somente uma espécie de indiferença superior. Existe ab-
soluta falsidade nessa tolerância. Dizem: “Vocês continuem no seu
caminho, e eu continuarei no meu; mas sejamos tolerantes, fra-
ternais”. Quando houver verdadeira fraternidade, amizade, quan-
do houver amor no seu coração, então não falarão de tolerância.
Somente quando se sentem superiores na sua certeza, na sua
posição, no seu conhecimento, somente então falam de tolerân-
cia. São tolerantes somente quando há distinção. Com o cessar da
distinção, não se falará de tolerância. Nessa altura não falarão de
fraternidade, porque então nos seus corações serão irmãos. Sen-
do assim, vocês, como indivíduos, constituem várias religiões que
atuam como a sua segurança. Nenhum professor constituiu essas
religiões organizadas, exploradoras. Vocês próprios, a partir da
sua insegurança, a partir da sua confusão, a partir da sua falta de
compreensão, criaram as religiões como seus guias. Depois, após
terem constituído religiões, procuram gurus, professores; procu-
ram Mestres que os ajudem.
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[...] Para despertar o pensamento claro, tenho que saber
primeiro que não estou pensando abertamente. Por outras pala-
vras, tenho que me tornar consciente do que estou pensando e
sentindo. Somente então posso saber se estou pensando verda-
deiramente ou falsamente. Não é assim? Quando dizem que são
críticos, estão apenas opondo-se através do preconceito, através
do gosto e antipatia pessoais, através de reações emocionais.
Nesse estado, dizem que estão pensando claramente, que são
críticos. Mas afirmo que para serem inteligentemente críticos têm
que estar livres desse preconceito pessoal, dessa oposição pesso-
al. E para serem inteligentemente críticos, têm que compreender
primeiro que o seu pensamento é influenciado, limitado, fanático,
pessoal, mesmo que não tenham estado conscientes dessa de-
pendência. Portanto primeiro têm que se tornar conscientes dis-
so.
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Em primeiro lugar, para compreender a verdade têm que
permanecer sozinhos, inteiramente e integralmente sozinhos.
Nenhum Mestre, nenhum guru, nenhum sistema, nenhuma auto-
disciplina jamais levantará para vocês o véu que oculta a sabedo-
ria. A sabedoria é a compreensão dos valores duradouros e o viver
desses valores. Ninguém os pode conduzir à sabedoria. Isso é ób-
vio, não é? Nem precisamos discuti-lo. Ninguém os pode forçar,
nenhum sistema os pode instar a libertarem-se do instinto de
possessividade, até que vocês próprios voluntariamente compre-
endam, e nessa compreensão há sabedoria. Nenhum Mestre,
nenhum guru, nenhum professor, nenhum sistema os pode forçar
a essa compreensão. Somente o sofrimento que vocês próprios
experimentam pode fazê-los ver o absurdo da posse da qual surge
o conflito; e desse sofrimento chega a compreensão. Mas, quando
procuram uma fuga desse sofrimento, quando procuram refúgio,
conforto, então têm que ter Mestres, têm que ter filosofia e cren-
ça; então voltam-se para os tais refúgios de segurança como a
religião. Assim, com essa compreensão, vou responder à sua
questão. Esqueçamos de momento o que a Dra. Besant disse e
fez, ou o que eu disse e fiz. Deixemos isso de lado. Não tragam a
Dra. Besant para a discussão; se o fizerem, reagirão emocional-
mente, aqueles de vocês que têm simpatia pelas suas ideias, e
aqueles de vocês que a não têm. Dirão que ela me criou, que sou
desleal, e palavras semelhantes que utilizam para mostrar a sua
desaprovação. Coloquemos de lado tudo isso de momento e
olhemos para a questão com toda a franqueza e simplicidade.
Em primeiro lugar, querem saber se os Mestres existem.
Eu digo que, quer eles existam ou não, isso é de muito pouca im-
portância. Agora, por favor, não pensem que estou atacando as
suas crenças. Compreendo que estou falando para membros da
Sociedade Teosófica, e que aqui sou o seu convidado. Mas fize-
ram-se uma pergunta, e estou simplesmente respondendo-a. As-
sim, vamos considerar o porquê de quererem saber se os Mestres
existem ou não. “Porque”, dizem para vocês próprios, “os Mestres
podem guiar-nos através da confusão, tal como um sinal luminoso
do farol guia o marinheiro”. Mas o fato de dizerem isso mostra
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que estão apenas à procura de um porto de abrigo, que têm medo
do mar alto da vida. Ou, mais uma vez, podem fazer a pergunta
por que querem fortalecer a sua crença; querem fundamentação,
corroboração da sua crença.
Senhores, uma coisa que é um brinquedo, embora torna-
do belo pela corroboração de milhares de pessoas, permanece um
brinquedo. Vocês dizem-me “Os nossos professores deram-nos fé,
mas agora vem lançar a dúvida nessa fé. Por isso queremos saber
se os Mestres existem ou não. Por favor, fortaleça-nos na nossa
crença de que eles existem; diga-nos se o senhor mesmo foi ou
não guiado por eles”. Se apenas desejam ser fortalecidos na sua
fé, então eu não posso responder a essa pergunta, porque não me
limito com a fé. A fé é mera autoridade, cegueira, esperança, an-
seio; é um meio de exploração, seja aqui ou na Igreja Católica
Romana, ou em qualquer outra religião. É um meio de forçar o
homem à ação, à ação correta ou incorreta. O fortalecimento da
fé não produz compreensão; mais exatamente, o próprio duvidar
dessa fé e a descoberta do seu significado, trazem compreensão.
Que diferença faria se pudessem ver os Mestres fisicamente todos
os dias? Todavia, continuariam a agarrar-se aos seus preconceitos,
às suas tradições, aos seus hábitos; seriam todavia escravos das
suas crueldades, das suas crenças fanáticas, tacanhas, da sua falta
de amor, do seu orgulho na nacionalidade, mas esses vocês con-
servariam secretamente fechados a sete chaves.
Depois da primeira questão surge a segunda: “Duvida dos
mensageiros dos Mestres?” Eu duvido de tudo, porque só através
da dúvida se pode descobrir, não através de colocarmos a nossa
fé em algo. Mas vocês evitaram cuidadosamente, perseverante-
mente, a dúvida; desfizeram-se dela como de uma grilheta. Então,
de novo dirão “Se eu entrar em contato com os Mestres, posso
descobrir o seu plano para a humanidade”. Referem-se a um pla-
no social, um plano para o bem-estar físico do homem? Ou refe-
rem-se ao bem-estar espiritual do homem? Se responderem “Am-
bos”, então eu digo que o homem não pode alcançar o bem-estar
espiritual através da atuação de outra pessoa. Isso está inteira-
mente nas suas mãos. Ninguém pode planejar isso para outro.
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Cada homem tem que descobrir por si mesmo, tem que compre-
ender; há plenitude na realização, não no progresso. Mas se disse-
rem “Procuramos um plano para o bem-estar físico do homem”,
então têm que estudar economia e sociologia. Então porque não
fazer de Harold Laski o seu mestre, ou de Keynes, ou de Marx ou
de Lenin? Cada um destes oferece um plano para o bem-estar do
homem. Mas vocês não querem isso. O que vocês querem, quan-
do procuram um Mestre, é abrigo, um refúgio de segurança; que-
rem proteger-se do sofrimento, esconder-se da confusão e do
conflito.
Afirmo que não existe tal coisa como um refúgio, como
conforto. Podem apenas fazer um refúgio artificial, criado intelec-
tualmente. Porque o fizeram durante gerações, perderam a sua
inteligência criativa. Tornaram-se limitados pela autoridade, es-
tropiados com crenças, com falsas tradições e hábitos. Os seus
corações estão secos, duros. Eis porque apoiam todas as formas
de sistemas de pensamento cruéis, que conduzem à exploração.
Eis porque encorajam o nacionalismo, porque lhes falta fraterni-
dade. Falam de fraternidade, mas as suas palavras são desprovi-
das de sentido enquanto os seus corações estiverem limitados
pela distinção de classes. Vocês, que acreditam tão profundamen-
te em todas essas ideias, o que é que vocês têm, o que são vocês?
Conchas vazias retumbando palavras, palavras, palavras. Perde-
ram todo o sentido de sentimento pela beleza, pelo amor; apoiam
instituições falsas, ideias falsas.
Aqueles de vocês que acreditam nesses Mestres, no seu
plano, nos seus mensageiros, o que são vocês? Na sua exploração,
no seu nacionalismo, nos seus maus-tratos das mulheres e das
crianças, na sua aquisitividade, são tão cruéis como o homem que
não acredita em Mestres, no seu plano, nos seus mensageiros.
Apenas estabeleceram novas instituições para as antigas, novas
crenças para as antigas; o seu nacionalismo é tão cruel como o
antigo, só que vocês têm argumentos mais sutis para as suas cru-
eldades e exploração. Enquanto a mente estiver aprisionada na
crença, não há compreensão, não há liberdade. Assim, para mim,
se os Mestres existem ou não é totalmente irrelevante à ação, à
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realização, com o que nos deveríamos preocupar. Mesmo que a
sua existência seja um fato, não tem qualquer importância, por-
que para compreender têm que ser independentes, têm que estar
entregues a si próprios, completamente nus, despojados de toda a
segurança. Foi isto o que eu disse na minha palestra introdutória.
Têm que descobrir se estão à procura de segurança, conforto, ou
se estão à procura de compreensão. Se realmente examinarem os
seus próprios corações, a maior parte de vocês descobrirá que
procura segurança, conforto, locais de proteção, e que nessa pro-
cura se munem de filosofias, gurus, sistemas de autodisciplina;
estão assim frustrando, restringindo continuamente o pensamen-
to. Nos seus esforços para fugir do medo, entrincheiram-se nas
crenças, e, aumentando desse modo a sua própria autoconsciên-
cia, o seu próprio egoísmo, apenas se tornaram mais sutis, mais
astutos.
Sei que disse todas essas coisas anteriormente, de uma
forma diferente, mas aparentemente as minhas palavras não tive-
ram qualquer efeito. Ou querem compreender o que digo, ou
estão satisfeitos com as suas próprias crenças e sofrimentos. Se
estão satisfeitos com eles, por que me convidaram para vir aqui
falar? Por que me ouvem? Não, fundamentalmente não estão
satisfeitos. Podem preconizar que estão satisfeitos; podem asso-
ciar-se a instituições, efetuar novas cerimônias, mas interiormente
sentem uma incerteza, uma dor interminável que nunca se atre-
vem a enfrentar. Em vez disso, procuram substitutos; querem
saber se lhes posso dar novos refúgios, e é por isso que me fize-
ram esta pergunta. Querem que eu os apoie nessas crenças das
quais não têm a certeza. Querem estabilidade interior, mas eu
lhes digo que não existe tal estabilidade. Querem que eu lhes dê
certezas, garantias. Eu digo-lhes que têm tais certezas, tais garan-
tias às centenas nos seus livros, nas suas filosofias, mas elas não
têm qualquer valor para vocês; são pó e cinzas, porque no seu
próprio íntimo não há compreensão. Só podem ter compreensão,
garanto-lhes, quando começarem a duvidar, quando começarem a
questionar precisamente os refúgios em que se confortam, em
que se refugiam. Mas isso significa que têm que entrar em conflito
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com as tradições e com os hábitos que estabeleceram. Talvez
tenham posto de parte as velhas tradições, os velhos gurus, as
velhas cerimônias, e tenham aceito novos. Qual é a diferença? As
novas tradições, os novos gurus, as novas cerimônias são exata-
mente o mesmo que os velhos, exceto que são mais exclusivos.
Pelo questionamento constante descobrirão o real, o valor ineren-
te das tradições, dos gurus, das cerimônias. Não lhes estou pedin-
do que abandonem as cerimônias, que deixem de seguir os Mes-
tres. Esse é um assunto de menor importância e pouco inteligen-
te; se efetuam cerimônias ou contam com os Mestres para sua
orientação, não é importante. Mas enquanto houver falta de
compreensão há medo, há sofrimento, e a mera tentativa de en-
cobrir esse medo, esse sofrimento, através de cerimônias, através
da orientação dos Mestres, não os libertará.
Já me tinham feito esta pergunta antes; fizeram-me a
mesma pergunta no ano passado. E de cada vez que a fazem, fa-
zem-na porque querem refugiar-se por trás da minha resposta;
querem sentir-se protegidos, pôr um fim à dúvida. Ora, eu posso
contradizer a sua crença; posso dizer que não existem Mestres.
Depois chega outro para lhes dizer que os Mestres existem. Eu
digo: duvidem de ambas as respostas, questionem ambas; não se
limitem a aceitá-las. Vocês não são crianças, macacos imitando a
ação de alguém; são seres humanos, não para serem condiciona-
dos pelo medo. Pressupõe-se que sejam criativamente inteligen-
tes; mas como podem ser criativamente inteligentes se seguem
um professor, uma filosofia, uma prática, um sistema de autodis-
ciplina? A vida é rica somente para o homem que se encontra no
movimento constante do pensamento, para o homem cujas ações
são harmoniosas. Nele há afeto, há consideração. Esse cujas ações
são harmoniosas usará um sistema inteligente para curar as feri-
das supurantes do mundo. Sei que o que estou dizendo hoje já o
disse inúmeras vezes; disse-o muitas vezes. Mas vocês não sen-
tem essas coisas porque lhes deram explicações satisfatórias, e
nessas explicações, nessas crenças, tomam refúgio, conforto. Só
estão preocupados consigo próprios, com a sua própria seguran-
ça, com o seu próprio conforto, como os homens que lutam por
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títulos governamentais. Fazem o mesmo de maneiras diferentes, e
as suas palavras de fraternidade, de verdade, nada significam; são
apenas conversa oca.
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gradualmente, em sua busca por conforto, você novamente se
põe a dormir por seu próprio esforço; e o que o outro pode fazer
é simplesmente mostrar como você está fazendo isto. Você se põe
a dormir buscando conforto, o que você chama de busca de Deus,
da verdade.
Quando a mente é despertada por um choque, que você
chama sofrimento, esse é o verdadeiro momento para investigar a
causa do sofrimento sem buscar conforto. Se você observar, verá
que quando existe sofrimento agudo seu pensamento busca um
remédio, um conforto. E você encontra um remédio que não faz
mais que embrutecer a mente e a afasta da causa do sofrimento,
criando ilusão. Mostrando diferentemente, quando a mente se
detém numa rotina costumeira de pensamento, então não há
conflito, então não há sofrimento, nem interesse despertado na
vida. Mas quando você tem uma experiência de algum tipo que
lhe dá um choque, que é chamado sofrimento e que desperta
você do hábito, então sua reação imediata é buscar outro confor-
to ao qual o pensamento pode novamente se acostumar. A mente
está constantemente buscando por certezas, de modo que fique
segura e não seja perturbada, e, assim, a vida fica cheia de lágri-
mas e reações defensivas. Mas a experiência está continuamente
destruindo nossas certezas, e sutilmente buscamos criar outras.
Assim, a vida se torna um processo contínuo de disputa e sofri-
mento, criação e destruição. Mas se a mente não procurasse fina-
lidades, conclusões e seguranças, ela, então, descobriria que exis-
te um constante ajustamento, uma compreensão da significação
do movimento da vida; e só nisso está a realidade duradoura, só
nisso está a felicidade.
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[...] Pergunta: Desejaria saber se necessitamos de oração
e como devemos orar?
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[...] PERGUNTA: A concepção Teosófica dos Mestres de
Sabedoria e da evolução da alma, não será tão sã quanto a con-
cepção cientifica do crescimento biológico da vida na matéria
orgânica?
Krishnamurti: Aquilo que é capaz de crescimento não é
eterno. A concepção teosófica ou religiosa é a do crescimento
individual, — o processo do “eu” tornando-se cada vez maior por
adquirir mais virtude e compreensão. Isto é, o “eu” é capaz de
crescimento indefinido, alcançando cada vez maiores alturas de
perfeição, e, para o ajudar a avançar, são necessários Mestres,
disciplinas e organizações religiosas.
Enquanto o indivíduo não compreende o que é o “eu”, os
Mestres, de uma espécie ou de outra, tornam-se uma necessidade
ilusória. Pode não ser um Mestre no sentido Teosófico, mas um
santo da igreja ou a autoridade espiritual de uma organização. O
que nós temos de compreender não é se os Mestres existem ou
não, se eles são necessários ou não, porém se o “eu”, em seu
crescimento, em sua expansão pode tornar-se eterno ou conduzir
à compreensão da verdade. O problema não é se o Mestrado é
um processo perfeitamente natural, mas sim se o discernimento
da verdade pode vir à mente que esteja aprisionada no processo
do “eu”. Se considerais o “eu” como eterno, então ele não pode
crescer, tem que estar fora do tempo e do espaço. Portanto, a
ideia de que o “eu” se torna o Mestre por meio do crescimento e
da experiência, é uma ilusão. Ou então, o processo do “eu” é tran-
sitório. Para terminar este processo, nenhum agente externo, por
maior que seja, jamais pode servir de auxílio, pois o processo do
“eu” é auto-ativo, mantendo-se a si mesmo por meio de suas ati-
vidades volitivas. Vós tendes que considerar se o “eu” é eterno ou
transitório. Não é, porém, uma questão de escolha, pois toda a
escolha se baseia na ignorância, no preconceito e na carência.
Talvez alguns de vós não se preocupem com a crença nos
Mestres dos teosofistas, contudo, quando a tristeza vos bate à
porta, talvez procureis alguma outra autoridade ou guia espiritual,
e essa dependência de outrem é que perpetua o processo do “eu”
com sua sutil exploração e tristeza.
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[...] Pergunta: Minha tristeza fez-me compreender que
nâo mais devo procurar conforto de qualquer espécie. Estou con-
vencido de que outrem não pode curar a dor que está em mim. E
no entanto, uma vez que a minha tristeza continua, haverá algo
de errado no modo pelo qual tomei meu sofrimento?
Krishnamurti: Dizeis que não mais buscais conforto, mas,
por acaso, não desteis fim, deliberadamente, a esta busca por
meio de uma decisão, de uma resolução? Ela não é o resultado
espontâneo da compreensão. Ela é simplesmente a resultante de
uma decisão de não buscar conforto, porque a busca do conforto
vos trouxe decepção. Portanto dizeis a vós próprios: não devo
mais procurar conforto. Quando, profundamente ferido por causa
do apego, o homem começa a cultivar o desapego, louvando-o
como sendo uma nobre qualidade, o que ele realmente está fa-
zendo é proteger-se a si próprio contra uma nova ferida, e a este
processo ele chama desapego. Assim, pela mesma razão, o medo
de sofrer vos fez verificar que o conforto, a dependência, implica
ulterior sofrimento, e por isso dizeis a vós mesmos: não devo bus-
car conforto, devo ser auto-confiante. Apesar disto, a carência,
com as suas múltiplas e sutis formas de temor, continua.
A carência cria dualidade no pensamento e quando uma
carência cria sofrimento, a mente busca o oposto a essa carência.
Tanto a ânsia pelo conforto como a abstenção do conforto são a
mesma coisa, ainda são carência. Portanto, a mente mantém o
conflito dos opostos. Quando começardes a sofrer não digais:
devo libertar-me desta ou daquela carência ou causa, mas obser-
vai, silenciosamente, sem negação nem aceitação, e desse aper-
cebimento isento de escolha, a carência sem seus temeres e ilu-
sões começa a ceder lugar à inteligência. Esta inteligência é a pró-
pria vida e não está condicionada pela compulsão da carência.
[...] Pergunta: Dizeis que nos podemos tornar plenamente
apercebidos desse processo do “eu” que está focalizado em cada
um de nós individualmente. Significa isto que nenhuma experiên-
cia pode ter valor senão para a pessoa que a realiza?
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Krishnamurti: Se estais condicionando o pensamento pela
vossa própria experiência, como poderá a experiência de outrem
libertá-lo? Se condicionastes a vossa mente pelas vossas próprias
atividades volitivas, como pode a compreensão de outrem liber-
tar-vos? Pode-vos estimular superficialmente, porém, semelhante
auxilio não é perdurável. Se compreenderdes isto, então todo o
sistema daquilo que é chamado auxilio espiritual através da ado-
ração, da disciplina ou de mensagens vindas do além, tem muito
pouco significado. Se discernirdes que o processo do “eu” se sus-
tenta a si mesmo pelas suas próprias atividades volitivas nascidas
da ignorância, da carência, do temor, então a experiência de ou-
trem muito pouco significado pode ter. Grandes instrutores religi-
osos declararam o que é moral e verdadeiro. Seus seguidores
apenas os imitaram e por isso não realizaram o preenchimento. Se
disserdes que necessitamos de ideais para viver de acordo com
eles, isto indica simplesmente que há medo em vossa mente-
coração. Os ideais criam dualidade na consciência e assim apenas
continuam o processo do conflito. Se perceberdes que o despertar
da inteligência é o fim do processo d “eu”, então haverá espontâ-
neo ajustamento à vida, relações harmoniosas com o ambiente,
em lugar da compulsão do temor, ou da imitação de um exemplo,
coisa que apenas aumenta o processo do “eu” que é ignorância,
carência e temor.
Agora, se cada um de vós realmente percebesse isto, as-
seguro-vos que haveria uma vital mudança em vossa vontade e
atitude para com a vida. Perguntam-me frequentemente: Não
deveríamos ter autoridade? Não deveríamos seguir os Mestres?
Não deveríamos ter disciplina? Outros há que dizem: “Não nos
faleis em autoridade porque já a ultrapassamos”. Enquanto o pro-
cesso do “eu” continuar, tem que haver as muitas formas sutis de
autoridade, de carência, com seus temores, ilusões e compulsão.
A autoridade do exemplo indica que ha medo, e enquanto não
compreendermos o processo do “eu”, os meros exemplos tornar-
se-ão apenas obstáculos.
Palestras em Ommen, Holanda - 1935
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[...] HÁ MUITO descontentamento, e pensa-se que uma
ideologia, a comunista ou outra, vai resolver tudo, até mesmo
banir o descontentamento, o que seguramente uma ideologia
nunca poderá fazer. O comunismo, ou qualquer outro condicio-
namento religioso organizado, nunca pode afastar o desconten-
tamento; mas as pessoas tentam de todas as maneiras abafá-lo,
moldá-lo, alegrá-lo; mas o descontentamento está sempre lá.
Pensamos que o descontentamento está errado, que não é cor-
reto, mas não conseguimos livrarmos dele; temos de compreen-
dê-lo. Compreender não é condenar. Entra nele, observa-o sem
qualquer intenção de o alterar, de o canalizar. Está atenta a ele à
medida que vai atuando ao longo da vida, compreende as suas
formas, está a sós com ele.
A liberdade surge quando a mente está só. Pela graça que
isso tem, tenta manter a mente quieta, liberta de qualquer pen-
samento. Brinca com isso, não o transformes num assunto muito
sério; sem qualquer esforço, está atenta e deixa que a mente se
aquiete.
Existe frustração enquanto houver a busca de realização
pessoal. O prazer da realização é um desejo constante e nós que-
remos a continuidade desse prazer. O acabar desse desejo dá
frustração, o que é doloroso. Logo de seguida a mente busca pre-
enchimento em diferentes direções e, de novo, vai encontrar frus-
tração. Essa frustração é o movimento do sentir egocêntrico, que
é isolamento, separação, solidão. A mente quer fugir disso e, mais
uma vez, vai mergulhar em qualquer forma de preenchimento
pessoal. O esforço no sentido da realização traz o conflito da dua-
lidade. Só quando a mente vê a futilidade ou a verdade da realiza-
ção pessoal, na qual há sempre frustração, é que pode estar nesse
estado de solitude, de onde não há qualquer fuga. Quando a men-
te está nesse estado de solitude, sem fugir, é que nos libertamos
do desejo de realização. A separação existe porque há o desejo de
preenchimento; frustração é separação.
Por agora, não podes passar por mais choques, nem
mesmo pelos mais ligeiros. As reações psicológicas afetam o corpo
com os seus efeitos adversos. Sê muito forte interiormente. Sê
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firme e lúcida. Sê completa; não tentes ser completa, sê completa.
Não dependas de ninguém, de nada, nem de qualquer experiência
ou memória; depender do passado, mesmo sendo este agradável,
impede a plenitude do presente. Está atenta e deixa que essa
atenção permaneça intacta e inteira, nem que seja por um só
minuto.
O sono é essencial; durante o sono parece que tocamos
profundidades desconhecidas, profundidades que a mente cons-
ciente nunca pode atingir ou experienciar. Embora não possamos
lembrar-nos da extraordinária experiência de um mundo que está
para além do consciente e do inconsciente, ele tem os seus efeitos
na consciência total da mente. É provável que isto não seja muito
claro; faz apenas uma simples leitura e brinca com isso. Sinto que
há certas coisas que nunca poderão ficar claras. Não há palavras
adequadas para elas; contudo, essas coisas existem.
Especialmente contigo, e isto é importante, o teu corpo
não pode estar sujeito a qualquer doença. Deves, facilmente e de
forma voluntária, pôr de lado todas as memórias e imagens que te
dão prazer, para que a tua mente fique liberta, descontaminada
para a verdade. Por favor, toma bem atenção ao que está escrito.
Cada experiência, cada pensamento, deve cessar em cada dia, em
cada minuto, logo que aparece, para que a mente não se enraíze
no futuro. Isto é realmente importante porque é a verdadeira
liberdade. Assim, não há qualquer dependência; esta gera dor,
afeta o corpo e alimenta a resistência psicológica. E, como tu dis-
seste, a resistência cria problemas - alcançar, tornar-se perfeito,
etc. Na busca há luta, empenho; este empenho, esta luta, invaria-
velmente acaba em frustração – “quero aquilo” ou “quero ser
alguém”; no próprio processo de alcançar existe a ambição por
“mais”, e o “mais’ nunca está à vista e, assim, há sempre a sensa-
ção de falhanço. Consequentemente, há dor. E, mais uma vez,
voltamo-nos para uma outra qualquer forma de preenchimento,
com as suas inevitáveis consequências. As consequências da luta,
do esforço, são vastas. Por que buscamos nós? Por que está a
mente constantemente à procura, e o que a faz procurar? Será
que sabes ou tens consciência de que procuras? Se tens consciên-
23
cia disso, verás que o objeto da tua procura varia de tempos a
tempos. Vês o significado da busca, com a sua frustração e dor?
Vês que no encontrar algo que é muito gratificante há estagnação,
com as suas alegrias e medos, com o seu desenvolvimento e o seu
“vir a ser”? Se te dás conta de que estás em busca, será possível à
mente não buscar? E se a mente não busca, qual é a sua reação
real e imediata?
Brinca com isso, descobre; não pressiones nada, não dei-
xes que a mente se force na direção de uma qualquer experiência
porque, desse modo, ela iria alimentar-se de ilusão.
Estive com alguém que está a morrer. Temos muito medo
da morte; temos medo de viver; não sabemos viver; conhecemos
a dor psicológica, e a morte é a derradeira dor. Dividimos a vida
em viver e morrer. Assim, acontece a dor da morte, com a sua
separação, solidão e isolamento. A vida e a morte são um só mo-
vimento, e não estados isolados. Viver é morrer, morrer para cada
coisa, renascer em cada dia. Isto não é uma afirmação teórica,
mas algo para ser vivido e experienciado. É o querer, esse cons-
tante desejo de ser que destrói por completo a simplicidade do
ser. O ser simples é totalmente diferente do sono que vem da
satisfação, do preenchimento ou das conclusões da razão. Esse ser
é alheio ao “eu”. Uma droga, um interesse, uma entrega, uma
completa identificação pode gerar um estado de desejo, que é
ainda o sentir do “eu”. O verdadeiro ser é a cessação do querer.
Brinca com estes pensamentos e vai fazendo tentativas, alegre-
mente.
26
isso é um fato, a que assistimos hoje no mundo. Quando uma
pessoa ingressa num partido, ou se candidata a uma eleição para
o parlamento, ou que quer que seja, tem de aceitar o programa
do partido. Por conseguinte, deixa de pensar. E como pode um
homem que se entregou a um outro – a um partido, a um gover-
no, ou a um guru - achar a realidade? E como pode aquele que
busca a verdade ter qualquer relação com a política das potên-
cias?
Vede, Senhores, fazemos tais perguntas, porque nos agra-
da depender da autoridade exterior, do ambiente, para a trans-
formação de nós mesmos. Esperamos que os chefes; os governos,
os partidos, os sistemas; os padrões de ação, de alguma maneira
nos transformarão, de alguma maneira implantarão a ordem e a
paz em nossas vidas. Esta é por certo a base de todas as perguntas
deste gênero, não é verdade? Pode um outro, seja um governo,
um guru, ou um demônio, dar-vos a paz e a ordem? Pode alguém
trazer-vos felicidade e amor? De certo que não. A paz só pode
nascer depois de perfeitamente compreendida a confusão que
nós mesmos criamos, compreendida não só nível verbal, mas inte-
riormente; depois de afastadas as causas da confusão e da luta,
teremos sem dúvida a paz e a liberdade. Entretanto, sem cuidar-
mos de eliminar as causas, preferimos recorrer à autoridade ex-
terna, para que nos dê paz; e o exterior é sempre submergido
pelo interior. Enquanto existir o conflito psicológico, a ânsia de
poder, de posição, etc., qualquer que seja a estrutura exterior, por
melhor que tenha sido edificada, por mais benéfica e ordeira que
seja, sempre será dominada pela confusão interior. Por conse-
guinte, é óbvio que devemos dar toda a importância ao interior e
não ficar na mera dependência do exterior.
29
Krishnamurti: Antes de tudo, para se compreender a in-
fluência que a educação pode ter na atual crise mundial, precisa-
mos compreender como a crise se originou. Se, sem compreen-
dermos isso, nos limitamos a, edificar sobre os mesmos valores,
no mesmo terreno, sobre os mesmos alicerces, provocaremos
novas guerras e novos desastres. Cabe-nos, portanto, em primeiro
lugar, investigar como se originou a presente crise, e ao compre-
endermos as causas, compreenderemos, inevitavelmente, a espé-
cie de educação de que necessitamos.
É bem evidente que a crise atual é o resultado de valores
falsos – valores falsos nas relações do homem com a propriedade,
com as pessoas e com as ideias. A expansão e o predomínio dos
valores dos sentidos produzem necessariamente o veneno do
nacionalismo, das fronteiras econômicas e do espírito patriótico,
que excluem a cooperação de homem com homem para beneficio
do homem, e corrompem as suas relações com as pessoas, que
constituem a sociedade. E se as relações de um indivíduo com
outro são erradas; a estrutura da sociedade há de ruir, necessari-
amente. Do mesmo modo, nas suas relações com as ideias, o ho-
mem justifica uma ideologia – quer da direita, quer da esquerda,
sejam corretos ou errados os meios empregados – a fim de alcan-
çar um resultado. Assim, a desconfiança mútua, a falta de boa
vontade, a crença de que um fim justo pode ser alcançado por
meios injustos, o sacrifício do presente a um ideal futuro – tudo
isso são obviamente causas do desastre atual. Não há tempo para
entrarmos em todos os pormenores, mas é fácil ver, num relance,
como surgiu este caos e esta degradação. É fora de dúvida que
tudo isso provém dos valores errôneos e da dependência da auto-
ridade, dos chefes, quer na vida diária, quer na escola secundária,
quer na grande universidade. Os chefes e a autoridade são fatores
de decomposição em qualquer sociedade. Desde que dependeis
de outro, não tendes mais confiança em vós mesmos, e quando
falta ao indivíduo essa confiança em si mesmo, tem de haver ne-
cessariamente o conformismo, que conduz, afinal, à ditadura dos
estados totalitários.
30
Ora, quando estamos realmente cônscios das causas da
guerra, da catástrofe atual, da presente crise moral e social, per-
cebendo ao mesmo tempo as causas e os efeitos, começamos
naturalmente a compreender que a função da educação é criar
novos valores, e não meramente implantar no espírito do discípu-
lo valores que só podem condicioná-lo, em vez de despertar-lhe a
inteligência. Quando, porém, o próprio educador não percebeu as
causas do caos atual, como pode ele criar valores novos; como
pode despertar a inteligência, como pode evitar que a geração
vindoura enverede pelas mesmas trilhas que o conduzirão a ou-
tros desastres? Não há dúvida, pois, que muito importa ao educa-
dor não cuidar apenas de implantar certos ideais e transmitir sim-
ples conhecimentos, mas compreender que deve aplicar todo o
seu pensamento, todo o seu zelo, todo o seu afeto à criação do
ambiente adequado, da atmosfera adequada, de sorte que o dis-
cípulo fique capacitado para, depois de atingir a maturidade,
atender a todos os problemas humanos que se lhe depararem. A
educação, portanto, está em íntima relação, com a atual crise
mundial; e todos os educadores, pelo menos na Europa e na Amé-
rica, começam a compreender que a crise é o resultado de uma
educação errada. A educação só, pode ser reformada se se tratar
de educar o educador, e não com a simples criação de um novo
padrão, um novo sistema de ação.
34
Não vos preocupeis, pois, sobre a questão de levantar
fundos. Ela pode não vos preocupar agora, e por alguns minutos,
enquanto estais comprimido num canto, nesta reunião, podeis
perceber a significação de tudo isso. Mas, depois caireis de novo
na vossa rotina diária, voltareis ao vosso magistério e às vossas
profissões, porque tendes de ganhar dinheiro. Assim sendo, serão
muito poucos os que estão seriamente interessados. Todavia, são
aqueles dentre vós que se sentirem seriamente interessados que
promoverão uma revolução no pensamento. Senhor, à revolução
deve começar no pensamento, e não com sangue; e se houver a
verdadeira revolução no pensamento não haverá sangue. Mas se
não houver correto pensar, verdadeiro pensar, haverá sangue; e
mais sangue. Os meios justos nunca produzirão um fim justo; por-
quanto o fim está contido no meio.
36
[...] PERGUNTA: Porque condenais a religião, a qual obvi-
amente contém grãos da verdade? Porque lançar fora a criança
juntamente com a água do banho? Não deve a verdade ser reco-
nhecida, onde quer que se encontre?
43
ninguém deve ter mais do que umas poucas coisas, pois é absur-
do, insensato, possuir muitas coisas e depender delas. O homem
possui muitas coisas e vive apegado a elas — propriedades, títu-
los, etc. Mas será vida simples a de um homem que tem inúmeras
crenças, ou mesmo uma só crença? A dependência de sistemas,
de autoridades, o impulso de “vir a ser”, de alcançar, adquirir,
imitar, conformar-se, disciplinar-se de acordo com um determina-
do padrão... Será isso vida simples? Indicará simplicidade? Sem
dúvida, a simplicidade deve começar não na expressão de coisas
exteriores, mas muito mais profundamente. O homem que é sim-
ples não tem conflito. O conflito denota uma fuga para o “mais”
ou para o “ menos”. Isto é, o conflito indica o interesse de aquisi-
ção, o desejo de nos tornarmos algo “mais” ou algo “menos”; e
será o homem que deseja tornar-se alguma coisa uma entidade
simples? Desprezais o homem que luta para adquirir riquezas,
posses, e apreciais aquele que, supostamente, não se interessa
pelas coisas mundanas, mas luta por se tornar virtuoso ou por
igualar ao Buda, ao Cristo, ou por observar um determinado pa-
drão: dizeis que esse homem é um ser maravilhoso. Indubitavel-
mente, o homem que luta para se tornar alguma coisa no mundo
é igual ao outro que deseja ser espiritual. Estão ambos unidos por
um mesmo desejo: o de vir a ser alguém ou alguma coisa, o de se
tornar respeitável ou, como se costuma dizer, espiritual. A vida
simples, por certo, não é uma coisa espetacular. Pode ser desco-
berta na vida cotidiana; neste mundo corrupto que, depois de
duas guerras medonhas, já está, talvez, preparando a terceira, é
possível viver com simplicidade, não apenas exteriormente mas
também interiormente. Porque atribuímos tamanha importância
às manifestações exteriores da simplicidade? Porque começamos
sempre, invariavelmente, do lado errado? Porque não começamos
pelo lado certo, que é o psicológico? Sem dúvida, precisamos co-
meçar pelo lado psicológico para descobrir o que é vida simples,
pois é o interior que cria o exterior. É a insuficiência interior que
faz as pessoas se apegarem a seus haveres, a suas crenças; é esse
sentimento de insuficiência interior que nos força a acumular
bens, roupas, saber, virtude. Evidentemente, por esse caminho só
44
havemos de criar muito mais malefícios e muito mais dano. É ex-
traordinariamente difícil ter uma mente simples — não a chamada
mente intelectual dos eruditos, mas a simplicidade que nasce
quando compreendemos uma coisa, aquela simplicidade que per-
cebe o problema do que é. Positivamente, não podemos compre-
ender coisa alguma quando nossa mente é complexa. Não sei se já
notastes que quando estais preocupado com um problema, preo-
cupado com qualquer coisa, não percebeis coisa alguma com cla-
reza, tudo fica fora de foco. Só quando a mente é simples e vulne-
rável é possível ver as coisas claramente, em suas exatas propor-
ções. Assim, a simplicidade da mente é essencial à simplicidade da
vida. O mosteiro não constitui solução. Surge a simplicidade
quando a mente não tem apego, quando a mente não está adqui-
rindo, quando a mente aceita o que é. Isso significa, realmente,
estar livre do fundo (background), do conhecido, da experiência
adquirida. Só então é a mente simples, e só então é possível ser
livre. Não pode haver simplicidade enquanto o indivíduo pertence
a uma religião, a uma certa classe ou sociedade, a um dogma, da
esquerda ou da direita. Ser simples interiormente, estar esclareci-
do, ser vulnerável, é ser como uma chama sem fumo; e por isso
não se pode ser simples sem amor. O amor não é uma ideia, o
amor não é pensamento. É só no cessar do pensar que existe a
possibilidade de se conhecer aquela simplicidade que é vulnerá-
vel.
45
cialistas só são capazes de tratar de problemas num âmbito único,
aumentando assim os nossos conflitos e a nossa confusão.
É desastroso considerar o nosso complexo problema hu-
mano como situado num nível único, e permitir que os especialis-
tas dominem as nossas vidas. Nossa vida é um processo complexo,
que requer profunda compreensão de nós mesmos, como pensa-
mento e como sentimento. Sem compreendermos a nós mesmos,
nenhum problema, por mais superficial ou por mais complexo que
seja, pode ser compreendido. Sem compreendermos a nós mes-
mos, as nossas relações, inevitavelmente, hão de levar-nos ao
conflito e à confusão. Sem compreendermos a nós mesmos não
pode haver uma ordem social nova. Uma revolução sem autoco-
nhecimento é simples continuação modificada do nosso estado
atual.
Autoconhecimento não é coisa adquirível nos livros, nem
tampouco produto de longos e penosos exercícios e disciplina; ele
é percebimento, instante por instante, de cada pensamento e
cada sentimento que surge, na vida de relação. A vida de relação
não se situa num nível abstrato, ideológico, mas é uma coisa real
— são as nossas relações com a propriedade, com as pessoas,
com as ideias. O estado de relação supõe existência; e como nada
pode viver no isolamento, ser é estar em relação. Nosso conflito
está nas relações, em todos os níveis da nossa existência; e a
compreensão dessas relações, completa e extensamente, consti-
tui o único problema real de cada um de nós. Esse problema não
pode ser adiado nem evitado. O evitá-lo só pode criar mais confli-
to e mais sofrimentos. A fuga tem como consequência a privação
de pensamento, a qual é explorada pelos astutos e ambiciosos.
Religião, consequentemente, não é crença, nem dogma; é
a compreensão da verdade, que se deve descobrir na vida de rela-
ção, momento por momento. Religião que é crença e dogma não
passa de uma fuga da realidade das relações. O homem que pro-
cura a Deus, ou o que quiserdes, pela crença, a que chama reli-
gião, apenas cria oposição, que gera a separação, isto é, desinte-
gração. Qualquer espécie de ideologia, da direita ou da esquerda,
46
desta ou daquela religião, lança o homem contra o homem, como
está acontecendo no mundo.
A substituição de uma ideologia por outra não constitui a
solução para os nossos problemas. O problema não consiste em
saber qual seja a melhor ideologia, mas sim no compreendermos
a nós mesmos como um processo total. Podeis dizer que a com-
preensão de nós mesmos exige um tempo infinito e que, nesse
interim, o mundo se fará em pedaços. Pensais que, com uma ação
planejada de acordo com uma ideologia haverá possibilidade de
se operar, em breve tempo, uma transformação no mundo. Se se
der um pouco mais de atenção ao assunto, ver-se-á que as ideolo-
gias não unem os homens. Uma ideia pode servir para formar um
grupo, mas esse grupo fica contra outro grupo, que tem uma ideia
diferente, e assim por diante, acabando por se tornarem as ideias
mais importantes do que a ação. As ideologias, as crenças, as reli-
giões organizadas, separam os homens.
A humanidade não pode ser integrada por uma ideia, por
mais nobre e ampla que essa ideia seja. Porque ideia é simples
reação condicionada; e uma reação condicionada, ante o desafio
da vida, é necessariamente inadequada, trazendo consigo conflito
e confusão. A religião baseada em ideia não pode unir os homens.
A religião como experiência de uma autoridade qualquer pode
ligar vários indivíduos entre si, mas, inevitavelmente, há de gerar
antagonismo; a experiência alheia não é verdadeira, mesmo que o
“experimentador” seja um grande homem. A verdade nunca pode
ser o produto de autoridade. A experiência de um guru, um ins-
trutor, um santo, um salvador, não é a verdade que vos cumpre
descobrir. A verdade alheia não é a verdade. Podeis repetir para
outra pessoa a expressão verbal da verdade; mas esta se trans-
forma em mentira no processo de repetição.
A experiência alheia não é válida para a compreensão da
realidade. Entretanto, as religiões organizadas, no mundo inteiro,
baseiam-se na experiência alheia e, por essa razão, não estão
libertando o homem mas, unicamente, prendendo-o a um deter-
minado padrão que lança o homem contra o homem. Cada um de
nós tem de começar de novo; porque o que somos o mundo é. O
47
mundo não é diferente de vós nem de mim. O pequeno mundo
dos nossos problemas, ampliado, transforma-se no mundo e nos
problemas mundiais.
Desesperamos de nossa compreensão, em face dos vastos
problemas mundiais. Não percebemos que não se trata de um
problema que requer ação em massa, mas sim o despertar do
indivíduo para o mundo em que vive, a fim de que resolva os pro-
blemas do seu mundo, por mais limitado que seja ele. A massa é
uma abstração explorada pelo político, pelo homem que tem uma
ideologia. A massa, na realidade, sois vós e eu e mais outro.
Quando vós e eu e outro estamos hipnotizados por uma palavra,
tornamo-nos, então, “a massa” , isto é, uma abstração, porquanto
a palavra é abstração. A ação em massa é uma ilusão. Essa ação,
na realidade, é a ideia que uns poucos têm sobre a ação a qual
adotamos em nossa confusão e desespero. Em nossa confusão e
desespero escolhemos o nosso guia político ou religioso; e estes,
inevitavelmente, em razão de nossa escolha, hão de estar tam-
bém confusos e desesperados. Podem eles assumir ares de segu-
rança e onisciência mas, em verdade, visto que são os guias dos
confusos, têm de estar igualmente confusos; pois, do contrário,
não quereriam ser guias. Neste mundo em que tanto o chefe
(guia) como o chefiado (guiado) estão confusos, seguir qualquer
padrão ou ideologia, consciente ou inconscientemente, é criar
mais conflito e mais sofrimento.
O indivíduo, por conseguinte, é que é importante, e não a
sua ideia ou aquele a quem segue, ou a sua pátria, ou a sua cren-
ça. Vós é que tendes importância e não a ideologia ou a nação, a
bandeira ou o credo a que pertenceis; a ideologia é apenas uma
projeção de nosso próprio condicionamento. Esses fatores de
condicionamento podem, num dado nível, ser úteis como conhe-
cimento; mas, noutro nível, nos níveis mais profundos da existên-
cia, tornam-se eles daninhos e destrutivos em extremo. Como
essas coisas — religiões e ideologias, nacionalismo e padrões —
são vossas próprias projeções, qualquer ação nelas baseada seme-
lha a atividade do cão que persegue a própria cauda. Porque to-
48
dos os ideais são produtos de vossa própria fabricação. São o re-
sultado de vossa própria projeção e não revelam a verdade.
Só quando cada um de nós perceber claramente a atual
estrutura da existência, a estrutura dos ideais e conclusões, só
então teremos a possibilidade de nos libertar e de olhar o pro-
blema de maneira nova. A crise, os desastres iminentes não po-
dem ser dissolvidos por uma nova coleção de ideologias, mas só
quando vós, como indivíduo, perceberdes a verdade aí contida e
começardes, assim, a compreender o processo total de vosso pen-
samento e vosso sentimento. O indivíduo só é importante nesse
sentido e não na reação isolada e cruel ao problema.
Afinal de contas, o problema, em todo o mundo, é a ina-
dequada reação ao desafio, sempre novo e variável, da vida. Essa
inadequacidade gera o conflito, o qual dá origem ao problema.
Enquanto não for adequada a reação, teremos sempre uma mul-
tiplicidade de problemas. A reação adequada não exige um novo
condicionamento, mas sim completa isenção de condicionamento.
Isto é, enquanto fordes budista, cristão, muçulmano, hinduísta, ou
pertencerdes à esquerda ou à direita, não podeis corresponder de
maneira adequada aos problemas que são vossas próprias cria-
ções e, portanto, do mundo. Não será o fortalecimento do condi-
cionamento religioso ou social, que há de trazer a paz, para vós e
para o mundo.
O mundo é vosso problema; e para o compreenderdes,
precisais compreender a vós mesmo. Essa compreensão de vós
mesmo não depende do tempo. Vós só existis em relação, de ou-
tro modo não existis. Vossas relações são o problema — vossa
relação com a propriedade, as pessoas, as ideias ou as crenças.
Essas relações, atualmente, são de atrito, de conflito; e enquanto
não compreenderdes as vossas relações, não importa o que fizer-
des, podeis deixar-vos hipnotizar por qualquer ideologia ou dog-
ma, não pode haver descanso para vós. Essa compreensão de vós
mesmo é a ação nas relações. Descobris a vós mesmo, tal como
sois, diretamente, nas relações. As relações são o espelho no qual
podeis ver-vos assim como sois. Não podeis ver-vos com fidelida-
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de, nesse espelho, se vos chegais a ele com uma conclusão e uma
explicação, ou com condenação, ou com justificação.
A percepção mesma do que sois, de como sois, no mo-
mento da ação da relação, traz liberdade do que ê. Só na liberda-
de pode haver descobrimento. A mente condicionada não pode
descobrir a verdade. Liberdade não é uma abstração, mas vem à
existência com a virtude. Porque é da própria natureza da virtude
trazer a libertação das causas da confusão. Afinal de contas, a
“não- virtude” é desordem, conflito. Mas a virtude é liberdade, é a
clareza de percepção que a compreensão nos traz. Não podeis
tornar-vos virtuoso. Tornar-se, “vir a ser”, é ilusão gerada pela
avidez, pela ânsia de aquisição. Virtude é a percepção imediata do
que é. O auto- conhecimento, pois, é o começo da sabedoria; e é a
sabedoria que resolverá os vossos problemas e consequentemen-
te os problemas do mundo.
55
Adquirir conhecimentos, eis o que chamamos educação. É
fácil adquirir conhecimentos, bastando que se saiba ler. A educa-
ção, até agora, com efeito, tem constituído um meio de fugirmos
de nós mesmos; e, como acontece com todas as fugas, engendra
necessariamente, mais confusão e mais sofrimentos. Sem com-
preenderdes o processo total de vós mesmos, que é a compreen-
são das vossas relações, o simples acumular de conhecimentos, o
mero decorar de livros, para passar nos exames, é inteiramente
fútil. Não estou exagerando. Educação é compreender, e ajudar os
outros a compreenderem o inteiro significado, o processo total de
nossa existência. Cabe ao professor o dever de compreender o
inteiro significado da sua ação, em relação com a sociedade, com
o mundo; é por isso essencial educar-se o educador. Para se pro-
duzir uma revolução no mundo é necessário que haja uma trans-
formação em vossas ações; mas, evitamos a revolução radical em
nós mesmos, queremos revolucionar o Estado, o mundo econômi-
co! A educação, por conseguinte, tem de começar em vós mesmo,
no guru. Se transmitis à criança os vossos preconceitos e tradições
(background), a mente da criança reagirá de acordo com esse
condicionamento; e só quando estivermos livres de condiciona-
mento será possível a verdadeira salvação do mundo.
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procuremos pôr de parte todos os nossos conhecimentos adquiri-
dos, nossas peculiares idiossincrasias e pontos de vista, para escu-
tarmos com o intuito de descobrir a verdade contida em cada
questão. É só a verdade que nos liberta, real e fundamentalmente
— não as especulações, as conclusões, porém tão somente a per-
cepção do que é verdadeiro. O verdadeiro é o real, e somos inca-
pazes de observar a realidade se dela nos abeiramos com nossas
conclusões, preconceitos e experiências pessoais. Assim sendo, se
posso sugeri-lo, devemos tentar, no correr destas palestras, escu-
tar não apenas o que se enuncia verbalmente, mas também o
conteúdo de cada enunciado; cumpre-nos descobrir por nós
mesmos a verdade contida em cada questão.
Ora, a verdade só pode ser descoberta quando não nos
entretemos com distrações de espécie alguma; e a maioria de nós
quer estar distraída. A vida, com todas as suas lutas, problemas,
guerras, crises comerciais e disputas familiares, oferece-nos algo
excessivo para as nossas forças e por isso desejamos distrair-nos;
provavelmente viemos assistir a esta reunião em busca de distra-
ção. Mas a distração, quer externa, quer interna, não nos ajudará
a compreender a nós mesmos. A distração — seja a distração que
se busca na política, na religião, na ciência, nos entretenimentos,
seja a distração que encontramos na procura daquilo a que cha-
mamos verdade — a distração, por mais estimulante que seja a
princípio, no fim embrutece a mente, enclausura-a, circunscreve-a
e limita-a. As distrações são tanto externas como internas. As
externas, nós as conhecemos mais ou menos bem. Ao ficarmos
mais velhos, começamos a reconhecê-las, se meditamos, por pou-
co que seja. Entretanto, ainda que nos livremos das distrações
exteriores, muito mais difícil é compreendermos as interiores; e
se fazemos destas reuniões apenas uma nova forma de distração,
acho que elas terão muito pouco valor para a compreensão de
nós mesmos, a qual é de vital importância.
Consequentemente, é necessário compreender, na ínte-
gra, o processo da distração; porque, enquanto a mente está dis-
traída, a buscar um resultado, a querer fugir através de excitações
ou da chamada inspiração, é ela incapaz de compreender o seu
57
próprio processo. E, se desejamos compreender qualquer dos
inumeráveis problemas que se apresentam a cada um de nós, é
essencial conhecer perfeitamente o processo de nosso próprio
pensar, não o achais? O autoconhecimento é, sem dúvida, o único
meio de resolvermos nossos incontáveis problemas; e o autoco-
nhecimento não pode, de modo algum, ser um resultado, um
produto de excitação ou distração. Ao contrário, a distração, a
excitação, a chamada inspiração só têm o efeito de nos afastar do
problema central. Com efeito, sem o indivíduo conhecer a si
mesmo, fundamental, radical e profundamente, sem conhecer
todas as camadas da sua consciência, tanto as superficiais como
as profundas, não existe base alguma para o pensar, existe? Se
não conheço a mim mesmo, tanto nas camadas superficiais como
nas mais profundas, de minha mente, que base tenho eu para
qualquer atividade pensante? E para chegar ao conhecimento de
si mesmo, nenhuma forma de distração é útil. Todavia, do co-
mum, vivemos interessados em distrações. Nossas atividades reli-
giosas, sociais e econômicas, nosso empenho em seguirmos mes-
tres diversos, com suas peculiares idiossincrasias, nossos clamores
por aquilo que denominamos saber — tudo isso são fugas, são
inegavelmente distrações que nos desviam do problema central
— o conhecimento de nós mesmos. Embora já se tenha dito mui-
tas vezes que é essencial conhecermos a nós mesmos, em ver-
dade concedemos muito pouco tempo ou reflexão ao assunto; e
sem conhecermos a nós, mesmos tudo o que pensemos ou faça-
mos levar-nos-á, inevitavelmente, a confusão, a aflição, maiores
ainda.
Nessas condições, é essencial, em todas as coisas, que
compreendamos o processo de nós mesmos; porque, sem conhe-
cermos a nós mesmos, nenhum problema humano pode ser re-
solvido. Qualquer solução de um problema, sem autoconhecimen-
to, é pura distração, que nos leva ao sofrimento, à confusão, e à
luta, em maior escala. Isso, se refletimos a tal respeito, é uma
coisa bem óbvia. Percebida a verdade desse fato, resta saber co-
mo é possível conhecer o conteúdo integral, a estrutura completa
de nós mesmos. Essa é uma questão fundamental, acho eu, a que
58
cada um de nós tem de fazer frente; e, ao considerarmo-la, con-
juntamente, não estais só a escutar-me enquanto vos transmito
uma série de ideias, nem eu estou só a expor-vos um determinado
sistema ou método. Pelo contrário, vós e eu estamos tentando
descobrir, juntos, como é possível o indivíduo conhecer a si mes-
mo — conhecer esse "eu" pessoal, que é o agente, o observador,
o pensante, o vigia. Se não conheço o processo integral de mim
mesmo, as simples conclusões, teorias, especulações, são, eviden-
temente, de mui pouca importância.
Ora, para conhecer a mim mesmo, preciso conhecer as
minhas ações, meus pensamentos, meus sentimentos; porque só
posso conhecer a mim mesmo em ação, e não separadamente da
ação. Não posso conhecer a mim mesmo independente de minhas
atividades na vida de relação. Minhas atividades, minhas qualida-
des, são eu mesmo. Só posso conhecer todo o processo do meu
pensar, tanto o consciente como o inconsciente, na vida de rela-
ção — minhas relações com as ideias, com as pessoas, e com as
coisas, a propriedade, e o dinheiro; e o estudar a mim mesmo
separadamente das minhas relações, tem muito pouca significa-
ção, É só na minha relação com essas coisas que posso conhecer a
mim mesmo. O dividir a mim mesmo em “"o superior” e o “infe-
rior” é coisa absurda. O pensar que sou o "eu superior" a dirigir ou
a controlar o meu "eu inferior", é uma teoria da mente; e, sem
compreender a estrutura da mente, o mero inventar de cômodas
teorias é um processo de fuga de mim mesmo.
Assim, o importante é descobrir quais são as minhas rela-
ções com as pessoas, com a propriedade e as ideias, pois a vida é
um processo de relações. Nada pode viver em isolamento, salvo
teoricamente; e, para compreender a mim mesmo, preciso com-
preender todo o processo da vida de relação. Mas a compreensão
da vida de relação se torna extremamente difícil e quase impossí-
vel, quando me ponho a olhar o espelho da vida de relação com a
tendência de condenar, justificar, ou comparar. Como posso com-
preender uma relação, se a condeno, justifico ou comparo com
alguma coisa? Só posso compreendê-la quando a ela me aplico
por maneira nova, com uma mente nova, uma mente que não
59
esteja aprisionada nos seus princípios tradicionais de condenação
e aceitação.
O compreender a mim mesmo é essencial, porquanto,
quaisquer que sejam os problemas, eles são projetados, de mim.
Eu sou o mundo, não sou independente do mundo, e os proble-
mas do mundo são os meus problemas. Para compreender os
problemas que me cercam, e que são a projeção de mim mesmo,
cumpre-me compreender a mim mesmo em relação com todas as
coisas; mas não pode haver compreensão se me ponha a compa-
rar, a condenar ou a justificar. Ora, é da natureza da mente o con-
denar, o justificar, o comparar; e ao vermos, no espelho da vida
de relação, as nossas próprias idiossincrasias, nossa reação instin-
tiva é condená-las ou justifica-las. A compreensão desse processo
de condenação e justificação é o começo do autoconhecimento —
e sem autoconhecimento não podemos ir muito longe. Podemos
inventar um grande número de teorias e especulações, podemos
ingressar em vários grupos, seguir Mestres, praticar rituais, formar
pequenas confrarias e sentir-nos superiores aos outros — mas
tudo isso não conduz a parte alguma, não passa de ação imatura
de pessoas que não pensam. Para descobrirmos o que é real, para
descobrirmos se há ou não a realidade, Deus, precisamos, em
primeiro lugar, compreender a nós mesmos; porque qualquer que
seja a ideia que tenhamos da realidade ou de Deus, ela é mera
projeção de nós mesmos, e isso, evidentemente, nunca pode ser
real. Só quando a mente está de todo em todo tranquila — sem
ser forçada à tranquilidade, sem ser compelida nem disciplinada
— é que é possível descobrir o que é real; e a mente só pode estar
tranquila na compreensão de sua própria estrutura. Só o real,
aquilo que não é uma projeção da mente, pode libertá-la de todas
as tribulações, de todos os problemas que cada um de nós enfren-
ta.
Devemos, pois, em primeiro lugar, perceber a importân-
cia, a necessidade de compreendermos a nós mesmos; porque,
sem a compreensão de nós mesmos, problema algum pode ser
resolvido, e continuarão as guerras, os antagonismos, a inveja e a
luta. Um homem que realmente deseja compreender a verdade,
60
necessita de uma mente tranquila; e essa quietude só lhe pode vir
pela compreensão de si mesmo, A tranquilidade da mente não se
consegue a poder de disciplina, de controle, de subjugação, mas
tão somente quando os problemas, que são projeções de nós
mesmos, são de todos compreendidos. E só quando a mente está
tranquila, sem projetar-se, a si mesma, é possível existir o real.
Isto é, para que a realidade se apresente na existência, é necessá-
rio que a mente esteja tranquila — sem que a tenhamos posto
tranquila, sem que ela tenha sido controlada, subjugada ou repri-
mida, mas, sim, que esteja espontaneamente silenciosa em virtu-
de de sua compreensão da estrutura integral do "eu", com todas
as suas lembranças, limitações e conflitos. Uma vez compreendido
tudo isso por maneira completa e exata, a mente está quieta; e só
então há possibilidade de conhecer-se aquilo que é real.
Fizeram-me algumas perguntas, e responderei a umas
poucas nesta manhã; mas, antes de o fazer, deixai-me dizer que é
muito fácil fazer uma pergunta, esperando uma resposta, como
"sim" ou "não". Cumpre-nos descobrir a verdadeira resposta por
nós mesmos; e para descobrir a resposta verdadeira precisamos
examinar o problema. Examinar um problema, principalmente um
problema que profundamente nos interessa, é dificílimo; porque a
maioria de nós se aplica ao mesmo com preconceito, com o dese-
jo de encontrar um resultado, uma solução satisfatória. Nessas
condições, ao atendermos estas perguntas, vamos investigar o
problema juntamente, não se devendo esperar que eu vos diga a
resposta, porque a verdade precisa ser descoberta em cada minu-
to, não é suscetível de explicar-se. A verdade não é conhecimento;
conhecimento é mero cultivo da memória, e a memória é uma
continuidade de experiências; e aquilo que é contínuo nunca pode
ser a verdade. Vamos, pois, investigar juntos essas questões. Não
o digo apenas para efeito de retórica: essa é minha verdadeira
intenção. Vós e eu vamos descobrir a verdade de cada questão. Se
a descobris por vos mesmos, ela vos pertence; mas se esperais
que eu vos dê a resposta, terá esta muito pouco valor, porquanto
nesse caso ficareis no nível verbal, ouvindo somente palavras, e as
palavras não nos levarão muito longe.
61
[...] ACHO QUE É importante perceber a necessidade de
auto conhecimento; porque, o que nós somos, projetamos. Se
estamos confusos, incertos, preocupados, se somos ambiciosos,
cruéis ou timoratos, é justamente isso que produzimos no mundo.
Não parecemos compreender quanto é essencial ao pensamento
e à ação que haja uma compreensão fundamental de nós mesmos
— não só das camadas superficiais da consciência, mas também
das camadas mais profundas do inconsciente, compreensão da
totalidade do processo do nosso pensar e sentir. Parecemos con-
siderar essa compreensão de nós mesmos como uma tarefa tão
difícil que preferimos fugir para todas as espécies de infantilida-
des, atividades imaturas, tais como cerimônias, as chamadas or-
ganizações espirituais, grupos políticos, etc. — tudo menos estu-
dar e compreender" a nós mesmos integral e completamente.
A compreensão fundamental de nós mesmos não nos vem
através do conhecimento ou da acumulação de experiências, pois
isso é apenas cultivo da memória. A compreensão de nós mesmos
dá-se de momento a momento; e se nos limitamos a aumentar o
conhecimento do "eu", êsse mesmo conhecimento nos impedirá
de nos compreendermos mais profundamente, porque os conhe-
cimentos e experiências acumulados se tornam o centro focal do
pensamento e o próprio fator de sua existência. O mundo não é
diferente de nós e de nossas atividades, pois o que somos é que
cria os problemas do mundo; e a dificuldade, da maioria de nós
está em que não conhecemos a nós mesmos diretamente, prefe-
rindo procurar um sistema, um método pelo qual sejam resolvidos
os múltiplos problemas humanos.
Ora, existe um meio, um sistema, de conhecer a si mes-
mo? Qualquer pessoa inteligente, qualquer filósofo pode inventar
um sistema, um método; mas, sem dúvida, o seguir um sistema só
produzirá um resultado criado por êsse sistema, não é verdade?
Se eu sigo um determinado método de conhecer a mim mesmo,
terei então o resultado que êsse sistema necessariamente produz;
62
mas êsse resultado por certo não será a compreensão de mim
mesmo. Isto é, quando sigo um método, um sistema, um meio de
conhecer a mim mesmo, eu moldo o meu pensar, as minhas ativi-
dades, de acordo, com um padrão; mas a observância de um pa-
drão não é a compreensão de si mesmo.
Não existe, portanto, método algum de auto conheci-
mento. A procura de método implica invariavelmente o desejo de
alcançar um certo resultado — e é isso o que todos nós queremos.
Seguimos a autoridade, se não a de uma pessoa, pelos menos a de
um sistema, de uma ideologia, porque desejamos um resultado
que seja satisfatório, que nos proporcione segurança. Não dese-
jamos realmente compreender a nós mesmos, os nossos impulsos
e reações, o processo integral do nosso pensar, tanto o consciente
como o inconsciente; preferimos seguir um sistema que nos ga-
ranta um resultado. Mas o interesse por um sistema é sempre
produto de nosso desejo de segurança, de certeza, e o resultado
disso, sem dúvida, não é a compreensão de nós mesmos. Quando
seguimos um método, precisamos de autoridades — o mentor, o
guru, o salvador, o Mestre — que nos garantam aquilo que dese-
jamos; e esse, por certo, não é o caminho do autoconhecimento.
A autoridade impede a compreensão de nós mesmos, não
é verdade? Sob a égide de uma autoridade, de um guia, podeis ter
temporariamente um sentimento de segurança, um sentimento
de bem- estar; mas tal não é a compreensão do processo total de
si mesmo. A autoridade, pela sua própria natureza, impede o co-
nhecimento pleno de nós mesmos e destrói, por fim, a liberdade;
e só na liberdade pode haver ação criadora. Só pode haver ação
criadora em virtude do autoconhecimento. Os mais de nós não
somos criadores, somos meros relógios de repetição, meros dis-
cos de gramofone a tocar sempre as mesmas cantigas de experi-
ências, de conclusões e lembranças, nossas ou de outrem. Tal
repetição não é criação — mas é o que desejamos. Desejando a
segurança, interiormente, vivemos numa incessante busca de
métodos e meios de alcançá-la, e por essa maneira criamos a au-
toridade, a veneração por outro indivíduo, a qual destrói a com-
63
preensão, aquela espontânea tranquilidade da mente, imprescin-
dível à criação.
A nossa dificuldade, por certo, está em que a maioria de
nós perdeu o senso da criação. O ser criador não significa pintar
quadros ou escrever poemas, para nos tornarmos famosos. Isso
não é criação — é apenas a capacidade de expressar uma ideia,
que o público aplaude ou menospreza. Não se devem confundir
capacidade e potência criadora. Capacidade não é potência cria-
dora. A atividade criadora é um modo de ser inteiramente dife-
rente, não é verdade? É um estado no qual está ausente o "eu",
no qual a mente já não é um foco de nossas experiências, nossas
ambições, nossos empenhos, nossos desejos. A atividade criadora
não é um estado contínuo; é nova de momento a momento, é um
movimento no qual não existe "eu" e "meu", no qual o pensamen-
to não está concentrado em torno de determinada experiência,
ambição, realização, propósito ou motivo. É só quando não existe
o "eu", que existe ação criadora — esse estado que é o único onde
se pode encontrar a realidade, a criadora de tôdas as coisas. Mas
esse estado não pode ser concebido ou imaginado, não pode ser
formulado ou copiado, não pode ser alcançado por meio de sis-
tema algum, por nenhum método, nenhuma filosofia, nenhuma
disciplina; ao contrário, ele só pode manifestar-se pela compreen-
são do processo total do "eu".
A compreensão do "eu" não é um resultado, uma culmi-
nação; é o vermos o nosso "eu", momento por momento, no es-
pelho da vida de relação — em nossas relações com a proprieda-
de, com as coisas, as pessoas e as ideias. Mas achamos difícil estar
atento, estar vigilante, e preferimos embotar as nossas mentes,
seguindo um método, aceitando autoridades, superstições e teo-
rias aprazíveis; por essa maneira, a mente se fatiga, fica exausta e
insensível. Uma mente em tais condições não pode conhecer o
estado de criação. Esse estado de criação só se manifesta quando
o "eu", que é o processo de reconhecimento e acumulação, deixa
de existir; porque, afinal de contas, a consciência, como "eu", é o
centro do reconhecimento, e o reconhecimento é simples proces-
so de acumulação da experiência. Mas temos mêdo de ser nada,
64
porque todos desejamos ser alguma coisa. O homem pequeno
quer ser um grande homem, o não virtuoso quer ser virtuoso, o
fraco e obscuro aspira ao poder, à posição, à autoridade. Tal é a
atividade incessante da mente. Uma mente assim não pode estar
serena e, por consequência, nunca poderá compreender o estado
criador.
Nessas condições, para se transformar o mundo que nos
circunda, com suas misérias, suas guerras, desemprego, fome,
divisões de classes e confusão extrema, urge uma transformação
em nós mesmos.
A revolução deve começar dentro de nós mesmos, mas
não de acordo com qualquer crença ou ideologia; porque a revo-
lução baseada numa ideia ou conforme com determinado padrão,
não é, obviamente, revolução alguma. Para se operar uma revo-
lução fundamental dentro em nós, precisamos compreender, in-
tegralmente, o processo de nossos pensamentos e sentimentos,
na vida de relação. É a única solução para todos os nossos pro-
blemas — e não o termos mais disciplinas, mais crenças, mais
ideologias e mais instrutores. Se pudermos compreender a nós
mesmos, tais como somos, momento por momento, sem o pro-
cesso da acumulação, veremos então como surge uma tranquili-
dade que não é produto da mente, uma tranquilidade não imagi-
nada nem cultivada; e só nesse estado de tranquilidade pode ha-
ver criação.
Tenho várias perguntas para responder e, ao examiná-las
em conjunto, vamos, como indivíduos, experimentar, juntos, des-
cobrir a verdade contida em cada questão, Não é a minha
explicação que irá resolver o problema, nem a vossa ardente
busca de solução; mas o que dissolve qualquer problema é o
esclarecê-lo, passo a passo, e chegar-se assim a perceber a
verdade nele contida. É o perceber a verdade contida em nossas
dificuldades, que as dissolve; mas não é fácil perceber as coisas
como realmente são. Escutar é uma arte; se, quando escutamos,
somos capazes de seguir, experimentalmente, ativamente, o que
se diz, temos então a possibilidade de enxergar a verdade e, por
65
essa maneira, dissolver o problema que porventura se depara a
cada um de nós.
[...] PERGUNTA: Todos temos tido a experiência do isola-
mento, conhecemos suas tristezas e percebemos suas causas,
suas raízes. Mas que é “estar só”? É diferente do isolamento?
71
Conheceis a essência íntima do isolamento? Fazeis, apenas, uma
descrição dela, mas a palavra não é a coisa, não é o real. Para o
compreenderdes, tendes de chegar-vos sem nenhuma intenção
de fuga. A simples ideia de fugir ao isolamento é em si uma forma
de insuficiência interior. A maioria de nossas atividades não são
evasões? Quando vos sentis só, ligais o rádio, executais pujas, saís
em busca de gurus, conversais com amigos, ides ao cinema, às
corridas, etc. Vossa vida de cada dia é um fugir de vós mesmos, e
por isso todos os meios de fuga se tornam importantíssimos e
competis uns com os outros por causa deles — quer se trate da
bebida ou de Deus. A fuga é que constitui o problema, embora
tenhamos diferentes maneiras de fugir. Podeis causar malefícios
imensos, psicologicamente, com as vossas fugas respeitáveis, e eu
sociologicamente, com minhas fugas mundanas; mas, para se
compreender a solidão, todas as fugas devem cessar — não por
meio de coerção, de compulsão, mas com o perceber a falsidade
da fuga. Estais então em confronto direto com o que é, e aí come-
ça o verdadeiro problema.
Que é o isolamento? Para o compreenderdes, não lhe de-
veis dar nome. O simples dar nome, a simples associação do pen-
samento com outras lembranças dele, acentuam mais ainda o
isolamento. Experimentai-o, e vereis. Quando tiverdes desistido
de fugir, vereis que, enquanto não compreenderdes o que é o
isolamento, tudo o que fizerdes por sua causa é sempre um modo
de fugir a ele. Só compreendendo o isolamento sois capaz de o
transcender.
A questão do “estar só” é inteiramente diferente. Nunca
estamos sós; estamos sempre em companhia de outras pessoas, a
não ser, talvez, quando damos passeios solitários. Somos o resul-
tado de um “processo” total, constituído de influências econômi-
cas, sociais, climáticas, e outras; e enquanto vivermos sujeitos a
tais influências, não estaremos sós. Enquanto houver o “processo”
da acumulação e da experiência, nunca será possível “estarmos
sós”. Podeis imaginar que estais só, quando vos isolais por meio
de estreitas atividades individuais e pessoais; mas isso não é “es-
tar só”. Só é possível “estar só”, quando não existe influência al-
72
guma. “Estar só” é ação que não é o resultado de uma reação, que
não é resposta a desafio ou estímulo. O isolamento é um processo
de exclusão, e nós procuramos o isolamento em todas as nossas
relações, sendo esta a verdadeira essência do “eu” — meu traba-
lho, minha natureza, meu dever, minha propriedade, minhas rela-
ções. O próprio processo do pensamento, que é o resultado de
todos os pensamentos e influências do homem, conduz ao isola-
mento. Compreender o isolamento não é um ato burguês; não
podeis compreendê-lo enquanto houver em vós a dor daquela
insuficiência não revelada que acompanha o sentimento de vazio
e frustração. “Estar só” não é isolamento, e não é, tampouco, o
seu oposto; é um “estado de ser” em que há completa ausência
da experiência e do conhecimento.
73
amor que utiliza, que explora, e depois se lamenta, não pode ser
amor, porque o amor não é uma coisa da mente.
Vamos, pois, “experimentar” e descobrir o que é o amor;
descobrir, não apenas verbalmente, mas “experimentando” real-
mente aquele estado. Quando vos servis de mim como vosso gu-
ru, e eu me sirvo de vós como meus discípulos, há exploração de
parte a parte. De modo idêntico, quando vos utilizais de vossa
esposa e vossos filhos, para conveniência própria, há exploração.
Isso, sem dúvida, não é amor. Quando há utilização, há posse; a
posse, invariavelmente, gera o temor, e com o temor vem o ciú-
me, a inveja, a suspeição. Quando há utilização, não pode haver
amor, porque o amor não é coisa da mente. Pensar numa pessoa
não significa amar essa pessoa. Pensais numa pessoa só quando
ela não está presente, quando morreu, quando fugiu do vosso
lado, ou quando não vos dá o que dela desejais. É aí que a vossa
insuficiência interior põe em operação o “processo” da mente.
Quando aquela pessoa está perto de vós, não pensais nela; pensar
nela, quando presente, significa estar perturbado; e, por isso,
consideramos a sua presença como coisa muito natural. O hábito
é um meio de esquecer, de se estar em paz, a salvo de perturba-
ções. A utilização, pois, conduz invariavelmente à invulnerabilida-
de, e isso não é amor.
Que estado é aquele em que a utilização — que é “pro-
cesso” de pensamento, como meio de encobrir a insuficiência
interior, positiva ou negativamente — não existe? Que estado é
aquele em que não existe o intuito de satisfação? A busca de sa-
tisfação é a própria natureza da mente. O sexo é sensação, criada,
pintada, pela mente; e então a mente age ou se abstém de agir. A
sensação é um processo de pensamento, que não é amor. Quando
a mente predomina e tão importante é o processo do pensamen-
to, não existe amor. Esse “processo” de utilização, de pensar,
imaginar, prender, fechar, rejeitar, é só fumo; e quando não existe
o fumo, está viva a chama do amor. Às vezes temos essa chama,
rica, cheia, completa; mas a fumaça volta, porque não podemos
viver muito tempo com a chama, que não nos dá nenhum senti-
mento de proximidade, seja de um só, seja de muitos, pessoal, ou
74
impessoal. Quase todos nós temos conhecido ocasionalmente o
perfume do amor e a sua vulnerabilidade; mas a fumaça do uso,
do hábito, do ciúme, da posse, do contrato e da quebra do contra-
to — se tornou importante para nós, e por isso não existe a chama
do amor. Quando existe a fumaça, não existe a chama; mas quan-
do compreendemos a verdade sobre a utilização, a chama existe.
Servimo-nos de um outro, porque, interiormente, somos pobres,
insuficientes, mesquinhos, pequenos, solitários; e esperamos,
com a utilização de outra pessoa ter uma possibilidade de fuga.
Do mesmo modo, servimo-nos de Deus como meio de fuga. O
amor de Deus não é o amor da verdade; amar a verdade é um
simples meio de nos servirmos dela para alcançarmos alguma
outra coisa que conhecemos, e por conseguinte há sempre o re-
ceio pessoal de perdermos algo que conhecemos.
Conhecereis o amor quando vossa mente estiver muito
tranquila e livre da busca de satisfação e das fugas. Em primeiro
lugar, a mente precisa acabar de todo. A mente é resultado do
pensamento, e o pensamento é simples passagem, meio que con-
duz a um fim. Quando a vida é mera passagem para alguma coisa,
como pode existir o amor? Nasce o amor quando a mente está
quieta, naturalmente, e não quando a fizemos quieta, — quando
percebe o falso como falso e o verdadeiro como verdadeiro.
Quando a mente está tranquila, então, tudo o que sucede é ação
do amor, não é ação do conhecimento. Conhecimento é mera
experiência, e experiência não é amor. A experiência não pode
conhecer o amor. Vem o amor à existência, quando compreen-
demos o processo total de nós mesmos, e a compreensão de nós
mesmos é o começo da sabedoria.
91
resposta é a nossa satisfação, nossa consciente ou inconsciente
identificação com o desejo que queremos satisfazer.
Tenho, pois, um problema. Não quero evitá-lo, não quero
uma solução, não quero uma conclusão. Quero compreendê-lo;
porque, logo que compreendo alguma coisa, estou livre dela. Ne-
cessito, então, de passar por um processo de auto-hipnose, a fim
de compreender, ou de me deixar hipnotizar por palavras, forçan-
do a mente a pôr-se tranquila? Não, de certo. Quando tenho um
problema, quero compreendê-lo. A compreensão só pode vir
quando a mente não mais está julgando o problema, isto é, quan-
do a mente pode olhar o problema sem condenação nem justifi-
cação. Nesse caso, a mente está tranquila, não foi posta tranquila;
e quando a mente está tranquila, pode-se ver como o problema se
desdobra. Se não condenais, se não tentais encontrar uma solu-
ção, a mente está tranquila; nessa tranquilidade, o problema reve-
la a sua própria solução, e não uma solução que vos satisfaça. Por
conseguinte, a verdade do problema sai do próprio problema;
mas não podeis perceber a verdade do problema, se a ele vos
chegais com uma conclusão, uma prece, uma súplica, que se in-
terpõe entre vós e o problema.
Assim, o homem que deseja compreender qualquer pro-
blema, só o pode compreender com a mente quieta, imparcial.
Quando desejais compreender o problema do desemprego, do
sofrimento humano, não podeis ter parcialidade. Se quereis com-
preender o problema, não podeis tomar partido, porque o pro-
blema não é uma questão de opinião, não exige ideologia alguma.
O que ele requer é que o vejais claramente, a fim de compreen-
derdes o seu conteúdo; e não podeis compreender o conteúdo de
um problema, se há uma cortina de ideologia entre vós e o pro-
blema. De modo idêntico, a prece, sem autoconhecimento, con-
duz à ignorância, à ilusão. Autoconhecimento é meditação, e sem
autoconhecimento não há meditação. Meditação não é o fixar da
mente num determinado objeto: meditação é compreensão do
que ê, em relação. A mente não precisa, então, ser forçada à quie-
tude: ela está extremamente sensível e, portanto, altamente re-
92
ceptiva. Mas o disciplinar a mente para estar quieta, destrói a
receptividade.
[...] Para se compreender um problema, precisamos com-
preender o criador do problema, que somos nós mesmos. O pro-
blema não está separado de nós. Assim, a compreensão de nós
mesmos é de suma importância; e para compreendermos a nós
mesmos não podemos afastar-nos da vida de relação, porque a
vida de relação é um espelho no qual nos vemos. Relação é ação,
não ação abstrata, mas a ação de todos os dias: nossas disputas,
nossas cóleras e pesares; e ao compreendermos tudo isso em
relação com nós mesmos, sobrevêm a serenidade mental, a tran-
quilidade. Nessa tranquilidade, há liberdade. Só com essa liberda-
de, é possível o percebimento da verdade.
94
[...] ONTEM FALÁVAMOS a respeito do temor. É o temor
que impede a iniciativa, porque em regra, quando temos medo,
nos apegamos às coisas como ostra ao rochedo. Apegamo-nos aos
nossos pais, nossos maridos, nossos filhos, nossas filhas, nossas
esposas. Tal é o aspecto externo do temor. E porque interiormen-
te sentimos medo, faz-nos horror a solidão. Podemos ter muitos
vestidos, ou roupas, ou haveres; mas, no íntimo, psicologicamen-
te, somos muito pobres. Quanto mais pobres somos interiormen-
te, tanto mais intrigamos exteriormente, tanto mais nos apega-
mos aos nossos pais, às coisas, aos haveres, às roupas. Ao temer-
mos, apegamo-nos às coisas exteriores, bem como a coisas interi-
ores, tais como a tradição. Já observastes os velhos e as pessoas
que em si são insuficientes, que estão vazias interiormente? Para
todos eles a tradição tem enorme importância. Já o observastes
nos vossos amigos, nos vossos pais e mestres? Já o observastes
em vós mesmos? No momento em que há temor, temor interior,
procurais encobri-lo com a respeitabilidade, com o seguir uma
tradição; e perde-se assim a iniciativa. Se apenas seguis a tradição,
ela se torna muito importante — tradição do que os outros dizem,
tradição que foi transmitida do passado, tradição sem nenhuma
vitalidade, que não torna a vida mais deleitável, tradição que é
mera repetição e nada significa.
Quando temos medo, há sempre a inclinação, a tendência
para imitar. Já o notastes? Sabeis o que é imitação? Por causa do
medo, estais apegados à tradição, aos vossos pais, esposas, ir-
mãos, maridos. Por causa dele, há sempre o desejo de imitar. A
imitação destrói a iniciativa. Deveis saber que pintar uma árvore
não significa simplesmente “imitar” a árvore, copiá-la exatamen-
te, pois isso seria, apenas, fotografá-la. Mas, para podermos pin-
tar com liberdade, precisamos sentir o que a árvore, a flor ou o
pôr do sol significam para nós; não se trata apenas de copiar, nas
suas cores exatas, o sol poente, mas, principalmente, de sentir a
sua significação. É sumamente importante revelar o significado
das coisas, e não apenas copiá-las; pois então começamos a des-
pertar o processo criador. E, para despertá-lo, requer-se uma
mente livre, uma mente que não esteja sujeita à tradição, à imita-
95
ção. Observai vossas próprias vidas, as vidas dos que vos cercam
— vede como tudo é vazio!
Em certos níveis da vida somos forçados a imitar, não é
verdade? Infelizmente, temos de ser imitadores com relação às
roupas que vestimos, aos livros que lemos. Tudo isso são formas
de imitação; mas é necessário ir além; isto é, deveis sentir-vos
livres, para que possais pensar profundamente nas coisas, por vós
mesmos, sem meramente aceitardes o que os outros dizem, se-
jam eles quem forem — vossos mestres, vossos pais, ou grandes
instrutores. Pensar verdadeiramente a fundo nas coisas, sem se-
guir alguém, é coisa muito importante, porque, no momento em
que seguis alguém, esse mesmo seguir é um indício de temor, não
é verdade? Alguém vos oferece algo que desejais — o paraíso, o
céu, ou um emprego melhor. Enquanto desejardes alguma coisa,
há de haver temor; e o temor destrói a mente livre. Sabeis o que é
uma mente livre? Já observastes a vossa mente? Será ela livre?
Não, não é livre, porque estais sempre atentos ao que dizem os
vossos amigos. Vossa mente é como uma casa vedada por um
portão ou cercada de arame farpado. Nesse estado, nada pode
acontecer. Só pode verificar-se algo novo quando não existe me-
do. E é difícil em extremo a mente estar livre do medo — quer
dizer, verdadeiramente livre da imitação, do desejo de imitar, do
desejo de acumular riquezas ou de seguir uma tradição — o que
não significa que devais dar escândalos.
A liberdade só pode germinar na mente isenta do temor,
naquela que não intriga para alcançar posição, prestígio, para
salientar-se; porque nessa mente não existe nenhuma tendência
para a imitação. Muito importa sejamos verdadeiramente livres,
livres da tradição, que é o mecanismo da formação de hábitos na
mente. Tal é excessivo para a vossa compreensão, difícil demais?
Ora, isso não é tão difícil como a vossa Geografia ou as vossas
Matemáticas. É bem mais fácil, mas acontece que nunca pensas-
tes nestas coisas. Passais a maior parte da vida escolar entregues
à aquisição de conhecimentos. Passais dez ou quinze anos na es-
cola, e, no entanto, nunca tendes tempo para pensar nisso; nem
uma semana, nem um dia, sequer, dedicado a pensar profunda-
96
mente, de maneira completa, em todas essas coisas. É por isso
que elas parecem difíceis. Mas não são difíceis, absolutamente.
Ao contrário, se lhes dedicardes algum tempo, podereis ver como
a vossa mente trabalha, opera, funciona. Deveis perceber, en-
quanto sois muito jovens — como o é a maioria dos que aqui es-
tão — deveis perceber quanto é importante compreendê-las,
porque, se não o fizerdes, crescereis seguindo alguma tradição
sem qualquer significação; vossa vida será um contínuo imitar, um
contínuo cultivar do temor, e consequentemente, nunca sereis
livres.
Já notastes como estais escravizados à tradição, aqui na
Índia? Tendes de casar-vos de uma certa maneira; vossos pais
escolhem o marido ou a esposa. Tendes de observar certos ritos;
podem eles nada significar, mas sois obrigados a observá-los.
Tendes guias, que deveis seguir. Tudo o que vos cerca, se já o
observastes bem, representa uma conduta de vida em que a auto-
ridade se acha muito bem firmada. Existe a autoridade do guru, a
autoridade do grupo político, a autoridade dos pais, a autoridade
da opinião pública. Quanto mais velha a civilização, como aconte-
ce na Índia, tanto maior o peso da tradição, o peso da série de
imitações. Por isso, vossa mente jamais é livre. Podeis falar de
liberdade, liberdade política ou de outra espécie; mas vós, como
indivíduos, nunca sois livres para investigar as coisas diretamente,
estais sempre a seguir alguém, a seguir um ideal ou algum guru,
ou mestre, ou tradição.
Vossa vida, pois, está circunscrita, limitada, restrita a idei-
as; e, profundamente, dentro em vós, lá está o temor. Como pen-
sar livremente, se há medo? O importante, pois, é que estejais
cônscios de todas estas coisas. Se vedes uma serpente que sabeis
venenosa, fugis dela ou a afastais de vós. Mas ignorais as numero-
sas imitações que impedem a iniciativa; estais inconscientemente
aprisionados nelas. Mas se vos mantiverdes advertidos, se vos
achais conscientes delas, se averiguastes porque elas vos pren-
dem; se percebeis a maneira como surge em vós o desejo de imi-
tar, como resultado de vosso temor ao que os outros digam, do
medo aos vossos pais ou vossos mestres; se estais cientes dessas
97
séries de imitações, vós as poreis de parte. Assim conscientizados,
podereis olhá-las bem, examiná-las, estudá-las, exatamente como
estudais Matemática ou outra matéria qualquer. Sabeis porque
usais kum-kum? Porque o fazeis? Não pergunto se se deve ou não
fazê-lo. Porque tratais as mulheres diferentemente dos homens?
Porque as tratais desdenhosamente? Pelo menos os homens o
fazem. Por quê? Porque ides a um templo, porque praticais ritos,
porque seguis um guru?
Se, pois, estais conscientes de todas essas coisas, podeis
examiná-las, podeis contestá-las, estudá-las; mas se tudo aceitais
cegamente, porque assim se tem feito nos últimos trinta séculos,
isso não tem sentido algum, não achais? Portanto, o que se neces-
sita, no mundo não são meros imitadores, nem meros guias, com
seguidores cada vez mais numerosos. A necessidade atual é de
indivíduos, como vós e eu, dispostos a pensar continuamente em
todos esses problemas, não de maneira superficial ou fortuita,
porém profundamente, a fim de que a mente seja livre, para criar,
para pensar, para amar.
A educação é o modo de se descobrir a nossa relação
com todas essas coisas, a nossa relação com os entes humanos e
com a natureza. Mas a mente cria ideias, e as ideias se tornam
tão poderosas, tão essenciais, que nos impedem de ver além.
Enquanto existe amor, existe tradição; enquanto existe temor,
existe imitação. A mente que só imita é mecânica, não é verdade?
Funciona tal qual uma máquina — sem criar, sem pensar a fundo
nos problemas. Poderá produzir certas ações, certos resultados;
mas não é criadora. Assim, pois, aqui nesta escola, o que deseja-
mos fazer — vós e eu, bem como os mestres e os membros e diri-
gentes do “Trust” — o que todos devemos fazer é considerar a
fundo todos esses problemas, para que, ao deixardes a escola,
sejais um ente humano amadurecido, capaz de pensar nos pro-
blemas por si mesmo e não de acordo com alguma estupidez tra-
dicional; de maneira que sejais um ente humano possuidor de
dignidade, um ente humano realmente livre. Tal é a verdadeira
finalidade da educação, e não o fazer exames e ficar depois esta-
cionado, efetuando uma determinada coisa para o resto da vida,
98
como escriturários, donas de casa, ou máquinas de procriar. De-
veis exigir dos vossos mestres, deveis insistir em que a educação
seja um meio de ajudar-vos a ser livres, a pensar livremente e sem
temor a compreender, a indagar. Do contrário, a vida é inteira-
mente inútil, não achais? Sois educados, vos formais, obtendes
um emprego de que não gostais, um trabalho que não vos agrada,
casais, cabe-vos ganhar dinheiro, gerais filhos, e aí ficais atolados
para o resto da vida. Sois um ente lastimável, infeliz, irascível; não
tendes outra perspectiva senão ter filhos, curtir mais misérias e
mais sofrimentos. Isso não é educação. A verdadeira educação
deve ter por fim ajudar-vos a ser tão inteligentes que com essa
inteligência possais escolher uma ocupação a vosso gosto... ou
passar fome, mas nunca fazer uma coisa estúpida, que vos fará
infeliz em toda a existência.
Enquanto sois jovens, deveis acender a chama do descon-
tentamento. Enquanto sois jovens, deveis achar-vos num estado
de revolução. Agora é que é o tempo próprio para investigar, de-
senvolver, moldar. Insisti, pois, em que vossos mestres e pais vos
eduquem adequadamente. Não vos contenteis apenas com estar
sentados numa sala de aulas, recebendo informações a respeito
de um certo rei ou uma certa guerra. Sede descontentes, investi-
gai, interrogai os vossos mestres — se eles são insensatos, fá-los-
eis inteligentes, interrogando-os — de maneira que, ao deixardes
esta escola, esta atmosfera, estejais progredindo em madureza,
em inteligência; e continueis aprendendo, toda a vida, até mor-
rerdes, tornando-vos, assim, entes humanos inteligentes.
Novos roteiros em educação - 1952
99
como a agulha da bússola em presença do magneto. Qual é o pri-
meiro passo para sermos realmente livres?
105
pendência que se baseia no temor e na exigência interior de con-
forto. Como não sei viver sinto-me confuso, e sozinho, preciso da
ajuda de alguém; preciso de alguém para me guiar, me amparar
— um mestre, um livro, uma ideia. E assim, se se me tira esse
arrimo, vejo-me perdido. Esse sentimento de perda cria sofrimen-
to.
Não é importante que, enquanto estamos na escola,
compreendamos esse problema da dependência, para que cres-
çamos sem depender de pessoa alguma, interiormente? Tal coisa
requer muita inteligência e muita investigação. É por certo função
da educação ajudar a libertar a mente de todo sentimento de
temor, que contribui para a dependência. Nessa situação de de-
pendência, perguntamos: “como posso ficar livre da dependên-
cia?”. Mas se se compreendesse o processo, o verdadeiro caráter
da dependência, não haveria então o problema de como se ficar
livre da dependência. A compreensão, ela própria, liberta a mente
da dependência.
106
medo, que nos obscurece a mente, embotando-a, insensibilizan-
do-a.
Dependemos, porque, em nós mesmos, estamos tão vazi-
os, em nós mesmos não existe nada, nem uma semente, sequer,
capaz de florescer. Visto nada sabermos a respeito dessas coisas,
não achais que a função da educação deve ser a de nos mostrar
tudo o que a existência humana implica, exterior e interiormente?
Nosso viver não é só o que aparece exteriormente, que é muito
superficial. Somos muito mais profundos; há muitas coisas ocultas
em nós mesmos. Descobrir e compreender todas elas, e passar
além, eis a função da educação.
109
vou meditar sobre a ausência de perturbação” — essa é a mente
falsa, estúpida.
114
117
este é o nosso mais íntimo desejo, psicologicamente falando, é
bem óbvio que temos de estribar-nos na autoridade. Eis a verda-
deira anatomia da autoridade, a sua verdadeira estrutura; aqui
temos a razão por que a mente cria a autoridade. Podeis rejeitar a
autoridade de uma certa sociedade, de um certo líder, ou de uma
certa religião; mas, nesse caso, vós mesmos criareis outra autori-
dade. E então será vossa própria experiência, vosso próprio saber
que se tornará vosso guia. Porque a mente quer sempre estar
certa; não pode viver num estado de incerteza. Por estar sempre
interessada na certeza, ela tem de criar autoridades.
E esta é a base em que está assentada a nossa sociedade,
com sua cultura, seu saber, suas religiões. Ela se baseia essencial-
mente na autoridade, a autoridade da tradição, do sacerdote, da
Igreja, ou a autoridade do especialista. Como a nossa intenção é
viver em segurança, tornamo-nos escravos dos especialistas. Mas,
sem dúvida, se queremos achar algo que seja real, e não apenas
ficar a repetir as palavras “Deus”, “Verdade”, que nenhuma signi-
ficação tem, quando repetidas; se queremos fazer algum desco-
brimento, a mente tem de achar-se numa insegurança absoluta,
num estado de não dependência de qualquer autoridade. Isto é
dificílimo para a maioria de nós, que fomos educados, desde pe-
quenos, para crer, para viver sempre em alguma espécie de de-
pendência; e, na falta do líder, do guia, do instrutor, do sacerdote,
criamos nossa imagem própria do que pensamos ser verdadeiro e
que nada mais é do que a reação de nosso próprio condiciona-
mento.
Assim sendo, parece-me que, enquanto a mente estiver
sendo moldada e controlada pela sociedade — não só o ambiente
social, educativo e cultural, mas o conceito geral de autoridade,
crença e conformismo — é bem óbvio que ela, a mente, não pode
encontrar o que é verdadeiro, e, portanto, não poderá ser criado-
ra; só saberá imitar, repetir. O problema, por conseguinte, não é
— “Como ser criador?” — e sim, — “se podemos compreender de
modo completo o “processo” do medo” — o medo da opinião dos
outros, o medo à solidão, o medo de perdermos dinheiro, o medo
de não alcançarmos a meta, de não sermos bem-sucedidos neste
118
mundo ou noutro mundo qualquer. Enquanto houver alguma
forma de temor, este temor criará a autoridade, da qual a mente
ficará dependendo; e, em tais condições, é bem de ver que a men-
te não será capaz, de avançar, de investigar, de afastar todos os
obstáculos, a fim de descobrir o que é “ser verdadeiramente cria-
dor”.
Não achais, pois, que é importante perguntemos a nós
mesmos, cada um de nós, se realmente somos indivíduos, e não
fiquemos meramente a dizer que o somos? Na realidade, não
somos indivíduos. Podeis ter um corpo separado, um rosto dife-
rente, nome e família diferentes; mas a vossa estrutura mental
interna está essencialmente condicionada pela sociedade; por
conseguinte, não sois indivíduos. Por certo, só a mente não acor-
rentada pelas imposições da sociedade, e todas as respectivas
complicações, só essa mente pode ser livre para investigar o que é
a Verdade e o que é Deus. Do contrário, nada mais fazemos senão
provocar repetidas catástrofes e nunca haverá possibilidade de
realizar-se aquela revolução que fará nascer um mundo totalmen-
te diferente. Esta me parece a única coisa verdadeiramente im-
portante — não a que sociedade, a que grupo, a que religião de-
vemos ou não devemos pertencer (pois tudo isso já se tornou
muito infantil), porém sim que cada um investigue, por si mesmo,
se a mente pode libertar-se de todas as imposições do uso, da
tradição, da crença, para investigar livremente o que é verdadeiro.
Só então poderão existir entes humanos criadores.
123
Não sei se já notastes como toda experiência deixa um re-
síduo, um resultado, ao redor do qual as experiências ulteriores
vão sendo traduzidas, colhidas, acumuladas e conservadas. A
memória, pois, como experiência, como tradição, como saber,
constitui uma carga que nos impede a capacidade de ser livres,
completamente individuais, e capazes de descobrir as coisas por
nós mesmos. Se um homem nasceu hinduísta ou cristão, o seu
espírito naturalmente foi condicionado segundo uma determinada
simbologia, segundo várias ideias relativas à realidade, à medita-
ção; e através desse condicionamento a mente experimenta, e
fortalece, assim, cada vez mais tal condicionamento. O cristão, em
matéria espiritual, estará sempre apegado à imagem do Cristo ou
da Virgem Maria, e o hinduísta faz a mesma coisa, à sua maneira.
Quando se é livre, totalmente, e não apenas à superfície - o que
significa: quando não há imitação em circunstância alguma, quan-
do não há tendência para o conformismo, psicologicamente, inte-
riormente -, só então, por certo, tem o indivíduo a capacidade de
investigar, de descobrir.
Se prestastes atenção até aqui, ocorrer-vos-á naturalmen-
te esta pergunta: "Como posso libertar-me de toda acumulação
do passado, de todo o meu condicionamento?" Não há "como"; só
há o descobrimento da Verdade, sem se perguntar "como ser
livre?" Porque se toda nossa atenção está aplicada ao descobri-
mento do que é verdadeiro, então este próprio percebimento,
este próprio escutar do que é verdadeiro, liberta. Enquanto esta-
mos pensando em termos de crença, ilusão, coisas que desejamos
ser, somos incapazes de escutar, de dar toda a nossa atenção.
Nossas crenças, nossas tradições, nossos símbolos, nos impedem
o efetivo escutar de qualquer verdade. A mim me parece que a
única coisa importante é a atenção; a atenção completa é o bem
completo. A atenção que tem em mira um objetivo já não é aten-
ção, é exclusão.
Por conseguinte, se formos capazes de escutar, não com o
fim de ganharmos alguma coisa - porque tal atenção se torna ex-
clusivista, estreita, limitada - e, sim, com o nosso ser inteiro, escu-
tar totalmente, sem objetivo algum, ver-se-á que nunca mais pe-
124
diremos o "como", o método, o sistema, a filosofia, a disciplina.
Nesse estado de atenção completa não há contradição dentro de
nós mesmos, não há batalha entre o consciente e o inconsciente -
é a atenção total. Por conseguinte, não há necessidade de se per-
correr todo o "processo" psicanalítico, exumando, uma por uma,
as lembranças, para nos tornarmos livres delas.
Podemos, então, vós e eu, que estamos escutando, expe-
rimentar de fato, sem que cada experiência deixe resíduo algum?
Compreendeis o problema. Se experimento algo, essa experiência
deixa uma lembrança, esta lembrança condicionará as experiên-
cias futuras; e, nessas condições, não será possível experimentar
aquilo que é imensurável. O que é está fora do tempo; e a memó-
ria é do tempo. Quer se trate da lembrança superficial de um da-
do incidente, quer da lembrança de uma experiência que tivemos
em raras ocasiões, em que sentimos, em que conhecemos talvez
algo que excede todas as medidas da mente, algo eterno, como
quer que seja, estamos perenemente apegados a tal experiência,
com o que a mente fica impedida de experimentar mais além,
mais profundamente. Enquanto a experiência deixar vestígio de
memória, que é tempo, nunca será possível experimentar o que é
eterno. A mente, portanto, deve deixar-se morrer, momento por
momento, para cada experiência. Efetivamente, só nesse estado
ela é criadora. E pode-se adquirir a capacidade de profunda pene-
tração? Acho que sim, mas isso só é possível quando não nos sa-
tisfazemos com explicações, quando não nos deixamos nutrir com
palavras; quando já não dependemos da experiência de outros;
quando não recorremos a ninguém e empreendemos a viagem
completamente sós, depois de nos desvencilharmos de todas as
tradições, toda a cultura, toda crença, e, sobretudo, todo o saber.
Porque, se a mente está abarrotada de sabença, só poderá expe-
rimentar aquilo que sabe.
Assim sendo, é possível pormos de parte, vós e eu - não
teoricamente, não apenas por agora, porque estamos escutando
uma palestra, mas realmente, diretamente -, é possível pormos de
parte toda a acumulação racial, hereditária, deixarmos de ser
ingleses, ou hindus, deixarmos de ter religião, no sentido de orto-
125
doxia, dogmas, símbolos? Se ficamos apegados a todas estas coi-
sas já não somos verdadeiros descobridores.
Estamos, então, meramente em busca de uma satisfação,
do prazer de uma experiência exigida pelo nosso condicionamen-
to. E eu penso que aquela capacidade não é coisa do tempo. Se
levamos em conta o tempo, cairemos de novo na sujeição ao mé-
todo. Mas se vemos, se sentimos a importância de perceber cla-
ramente a necessidade de completa liberdade interior, se vemos a
verdade a esse respeito, então esse próprio percebimento, esse
próprio escutar com plena atenção, traz a capacidade.
127
Como dizia, porque dependemos e fazemos da dependên-
cia um problema? Na verdade, penso, o problema não é a depen-
dência; a meu ver, há outro fator mais profundo, que nos faz de-
pender.
E, se pudermos descobrir esse fator, então a dependência
e a luta pela libertação se tornam muito pouco significativas; en-
tão, todos os problemas que surgirem em razão da dependência
reduzir-se-ão a nada.
Qual é, pois, esse fator mais profundo? É a mente detes-
tar e temer a ideia de estar só? E conhece a mente esse estado
que está evitando? Dependo de alguém, psicologicamente, interi-
ormente, por causa de um estado que estou tentando evitar, mas
que nunca investiguei, nunca examinei. Por isso, a minha depen-
dência de uma pessoa - de quem desejo amor, estímulo, orienta-
ção - se torna imensamente importante, como todos os proble-
mas dela decorrentes. Mas, se sou capaz de perceber o fator que
é o meu depender de uma pessoa, de Deus, da oração, de certa
capacidade, certa fórmula ou conclusão que chamo "crença", tal-
vez então eu possa descobrir que tal dependência resulta de uma
exigência interior a que, em verdade, nunca prestei atenção, nem
levei em conta.
Podemos, nesta tarde, dar atenção a este fator, o fator
que a mente evita o sentimento de completa solidão, que só co-
nhecemos superficialmente? Que é "estar solitário"? Podemos
examinar isso agora, sem o perdermos de vista um só instante,
sem introduzirmos nenhum outro problema? Considero, com
efeito, esta questão sumamente importante, porque, enquanto
aquela solidão não for realmente compreendida, sentida, pene-
trada, dissolvida - ou qualquer outra palavra que preferirdes -,
enquanto persistir este sentimento de solidão, será inevitável a
dependência, nunca seremos livres, nunca poderemos descobrir
por nós mesmos o que é verdadeiro, o que é religião. Enquanto
estou dependendo tem de haver alguma autoridade, tem de ha-
ver imitação, tem de haver compulsão sob diferentes formas, tem
de haver disciplinamento segundo certo padrão. Pode, pois, a
mente descobrir o que é "estar na solidão", e passar além, de
128
modo que seja posta em liberdade e não dependa mais das cren-
ças, dos deuses, dos sistemas, das orações, nem de coisa alguma?
Não há dúvida de que, enquanto estamos buscando um
resultado, um fim, um ideal, essa própria ânsia de achar cria de-
pendência, de que resultam os problemas da inveja, da "exclu-
são", do isolamento, e tudo o mais. Nessas condições, pode a
minha mente conhecer a solidão em que de fato se encontra,
embora eu a esteja encobrindo com o saber, relações, e várias
outras formas de distração? Posso compreender efetivamente
essa solidão? Porque não é este um dos nossos maiores proble-
mas, este apego e a luta para nos desapegarmos? Podemos exa-
minar juntos este problema, ou isto é completamente impossível?
Enquanto há apego, dependência, tem de haver "exclusão" (sepa-
ração). A dependência da nacionalidade, a identificação com de-
terminado grupo, determinada raça, determinada pessoa ou cren-
ça, é evidentemente um fator de separação. Assim, é provável
que a mente esteja sempre, como entidade separada, buscando
isolamento e evitando um fator mais profundo, que realmente é
separativo: o processo egocêntrico de seu próprio pensar, gerador
de solidão.
Vós conheceis o sentimento de que devemos identificar-
nos como hinduístas, cristãos, como pertencentes a certa casta,
grupo, raça, tudo isso é bem sabido de vós. Se pudermos, cada um
de nós, compreender o problema mais profundo, o problema
implícito, talvez então termine toda influência geradora de de-
pendência, e a mente fique de todo livre. Este problema é talvez
tão difícil que não possa ser discutido num tão grande grupo.
135
tantemente. Não há estado permanente de preenchimento, há?
Portanto, por que existe o desejo de preenchimento?
Ouvinte: Porque ansiamos pela permanência.
Krishnamurti: Logo, visto que, em nós mesmos, não so-
mos permanentes, que nenhuma riqueza existe em nós, que so-
mos interiormente pobres, e sofremos, buscamos o preenchimen-
to, procuramos adquirir, ser algo. Esta é a raiz do problema, não
achais? Estais percebendo?
Auditório: Sim.
Krishnamurti: Continuemos, então. Estamos confusos,
sentimo-nos sós, insuficientes interiormente. Tal é o fato. Toda
ação que nos distancia deste fato é uma fuga, não? E esta é uma
das coisas mais difíceis: não fugir. Porque o observar, o considerar
o fato, estar cônscio dele, exige não condenação do fato, não
comparação, não avaliação. Assim sendo, podemos, não teorica-
mente, mas de maneira real, "experimentar" esta coisa de que
estamos falando? Porque, então, veremos que é possível ficar
totalmente livre desse sentimento de insuficiência, dessa causa
fundamental dos nossos sofrimentos.
Ouvinte: Quereis dizer que devemos estar satisfeitos as-
sim como somos?
Krishnamurti: Não, senhor - porque isso só leva à estag-
nação, à imobilidade, à morte. Eu estou mostrando que qualquer
interpretação de um fato ou se baseia na satisfação ou na insatis-
fação. Assim, posso observar aquele fato, que é a insuficiência
interior, sem comparar, sem julgar? Posso observá-lo sem medo?
Não é o meu medo ao fato que me obriga a fazer todas essas coi-
sas, que me faz perseguir o ideal? Compreendemos agora que é o
medo que nos leva a comparar, o medo de algo que não conhe-
cemos? Demos-lhe o nome de "insuficiência", "solidão", "desdita",
"confusão"; e, tendo dado um nome ao fato, condenamo-lo e
fugimos dele. Quando não condenamos, quando não julgamos,
quando não avaliamos e comparamos, resta-nos então só o medo.
Está tudo claro até aqui?
Auditório: Sim. Sim.
136
Krishnamurti: Medo de quê? Entendeis esta pergunta?
Tenho medo de um estado a que chamo "insuficiência". Eu não
conheço esse estado, nunca o observei verdadeiramente, mas
tenho-lhe medo. Porque lhe tenho medo, fujo dele. Mas, agora,
não estou fugindo, por meio da comparação ou do ideal, porquan-
to já percebo a falsidade da fuga. Resta-me, pois, só o medo de
uma coisa, a respeito da qual nada sei. Não é exato isso?
Auditório: Sim.
Krishnamurti: Se estais seguindo realmente o que estou
dizendo - não verbalmente, intelectualmente, "descritivamente" -
podereis ver claramente o "processo" revelando-se, e as profun-
dezas a que se pode descer. Já não tenho ideais, que perderam
toda significação. Não estou mais lutando por um alvo. O fato é:
tenho medo de uma coisa que não conheço; mas, se deixo de
fugir dessa coisa, fico então em companhia do fato e do medo. Se
me ocupo com o medo, se pergunto "como me livrarei do medo",
isto será outra fuga do fato, não achais? Agora, estou interessado
na compreensão de o que é; e vejo que, porque dei a uma coisa o
nome de "vazio", "solidão", "insuficiência", criou-se o medo. O por
um rótulo na coisa fez surgir a reação de medo a tal rótulo.
Em vista disso, pode a mente tornar-se cônscia da coisa,
sem a condenar, nem julgar, nem fugir, nem lhe dar nome? É difi-
cílimo, porque quase todos estamos tão condicionados para o
cultivo do ideal que isso nos impede de encarar o fato real. Não
somos capazes de observar o fato, por causa da comparação, por-
que a mente lhe põe um rótulo, lhe dá um nome. Mas, quando
não se dá nome ao fato, quando não fugimos dele por meio dos
ideais, da comparação, do julgamento, que resta então? Fica al-
guma coisa que possa ser chamada "insuficiência"? Existe ainda
aquele desejo de preenchimento, que gera a frustração? Estamos
começando a descobrir como nossa mente foi até agora incapaz
de observar qualquer coisa, livre desse processo confuso e con-
traditório. Só quando a mente é capaz de abandoná-lo de todo -
não à custa de esforço, mas porque percebe a verdade a seu res-
peito -, só então a inveja cessa, cessa de todo. Já não está essa
mente sob a influência de nenhuma sociedade ou cultura, porque
137
toda a nossa cultura se baseia na inveja. E ver-se-á, então, que a
mente não mais estará buscando, porque nada mais há que bus-
car. Essa mente estará então deveras tranquila. O mero repetir do
que acabo de dizer não terá significação nenhuma. Mas o "expe-
rimentar", de fato, pelo autoconhecimento, sem acumular o que
se "experimentou" - uma vez que a acumulação desfigura toda
experiência ulterior -, o estar cônscio de tudo isso, dá-nos a ver-
dade, dá-nos aquela extraordinária liberdade que vem quando
estamos completamente sós. A mente que está completamente
só, não contaminada, que não foge - essa mente é capaz de rece-
ber o que é verdadeiro.
Transformação fundamental - 1955
138
mem que não sabe" se torna seu discípulo. E o discípulo vai sem-
pre seguindo o mestre, na esperança de alcançá-lo, de se colocar
no mesmo nível que ele. Agora, prestai atenção! Quando o guru
diz que sabe, já não, é guru. Porque o homem que diz que sabe,
não sabe. E vede porque não sabe: porque a Verdade, a Realida-
de, ou "o outro estado", não se acha num ponto fixo, não se pode
alcançar por um certo caminho, e temos de descobri-la momento
por momento. Se está num ponto fixo, nesse caso esse ponto se
acha dentro dos limites do tempo. Para um ponto fixo pode haver
caminho, como há um caminho para vossa casa; mas para uma
coisa viva que não tem pouso fixo, que não tem começo nem fim,
não pode haver caminho algum.
Ora, um guru que se oferece para ajudar-vos a conhecer a
Realidade só poderá ajudar-vos a reconhecer o que já conheceis;
porque o que se pode reconhecer, experimentar, tem de ser re-
conhecível, não achais? Quando o reconheceis, dizeis: "Experi-
mentei" - mas o que é reconhecível, não pode ser aquele outro
estado. O outro estado não é reconhecível, pois nunca foi conhe-
cido; não é uma coisa que já experimentastes e que sois capazes
de reconhecer. O "outro estado" é uma coisa que tem de ser des-
coberta momento por momento; e para descobri-la, a mente tem
de ser livre. Senhor, a mente tem de estar livre para descobrir
qualquer coisa; e a mente agrilhoada pela tradição, antiga ou mo-
derna, a mente que leva a carga da crença, dos dogmas, dos ritos,
não é livre, evidentemente. Para mim, a ideia de que um outro
pode despertar-vos, não tem validade alguma. Isto não é uma
opinião; é um fato. Se um outro vos desperta, ficais sob sua in-
fluência, dependente dele; por conseguinte não sois livre; e só a
mente livre pode descobrir.
É este, portanto, o problema, não achais?
Aspiramos àquele outro estado, e uma vez que não sabe-
mos como alcançá-lo, passamos invariavelmente a depender de
alguém, a quem chamamos instrutor, guru, ou a depender de um
livro, ou de nossa própria experiência. E está criada, assim, a de-
pendência, e onde há dependência há também autoridade. A
mente se torna, por conseguinte, escrava da autoridade, escrava
139
da tradição, e essa mente, de toda evidência, não é livre. Só a
mente que é livre, pode descobrir; e contar com a ajuda de outro
para o despertar da mente, é o mesmo que recorrer a uma droga
que vos fará ver as coisas com muita nitidez, muita clareza. Há
drogas que podem fazer a vida parecer, momentaneamente, mui-
to mais "vital", de modo que todas as coisas assumem um relevo,
um brilho extraordinário - as cores que vedes todos os dias, sem
lhes dar atenção, se tornam extraordinariamente belas, etc. Tal
poderá ser o vosso "despertar" da mente, mas estareis então na
dependência da droga, como dependeis agora de vosso guru ou
de um certo livro sagrado. E quando se torna dependente, a men-
te se embota. Da dependência provém o temor - o temor de não
realizar o que se quer, o temor de não ganhar. Quando depende-
mos de outro, seja o Salvador, seja outro qualquer, isso significa
que a mente está em busca de um resultado feliz, um fim satisfa-
tório. Podeis chamá-lo Deus, a Verdade, ou como quiserdes - mas
é sempre uma coisa que se quer ganhar. E, assim, a mente fica
aprisionada, se torna escrava e, não importa o que faça - sacrifi-
car-se, disciplinar-se, torturar-se - essa mente nunca descobrirá o
outro estado.
O problema, pois, não é quem seja o instrutor correto,
mas sim descobrir se a mente pode manter-se desperta. E isso só
se pode descobrir quando todas as relações se tornam um espe-
lho, em que ela se vê exatamente como é. Mas a mente não pode
ver-se como é, quando há condenação ou justificação daquilo que
vê, ou se há qualquer forma de identificação. Todas essas coisas
tornam a mente embotada e, embotados que estamos, desejamos
ser despertados. Por essa razão amparamo-nos em outro, para
que nos desperte. Mas, em virtude do próprio desejo de ser des-
pertada, a mente embotada se torna mais embotada ainda, por-
quanto não percebe a causa do seu embotamento. É só quando a
mente percebe e compreende todo esse processo, e não depende
de explicações de ninguém, é só então que ela é capaz de libertar-
se.
Mas, como é fácil nos satisfazermos com palavras, com
explicações! São muitos poucos os que rompem a barreira das
140
explicações, ultrapassando as palavras e descobrindo por si mes-
mos o que é verdadeiro. A capacidade é produto da aplicação, não
é? Mas nós não, nos aplicamos, porque nos satisfazemos com
palavras, com especulações, com as tradicionais respostas e expli-
cações com que fomos criados.
143
Por exemplo, ledes no Gita ou no Upanishads a descrição
de uma certa coisa que é permanente, de uma perene bem-
aventurança, ou o que quer que seja; e porque esta nossa vida é
transitória, porque o vosso pensar, as vossas atividades, as vossas
relações se acham num estado de confusão, transtornando-vos,
tornando-vos infelizes, começais a aspirar àquele outro estado, a
cujo respeito lestes. É isso o que estais buscando. Na busca desse
estado, estais cultivando a aceitação da autoridade, pondo-vos na
dependência de alguém que promete levar-vos àquilo que ambi-
cionais. Por conseguinte, vos tornastes um seguidor; e enquanto
um homem está seguindo, é parte integrante do coletivo, da mas-
sa. Já reconhecestes, já fixastes na mente uma imagem daquele
outro estado e agora o estais buscando, apoiado num guru, na
meditação, na prática de várias disciplinas, etc. O que estais real-
mente buscando é uma coisa que já conheceis, ou que vos ensina-
ram, um estado a cujo respeito lestes alguma coisa ou que vaga-
mente experimentastes; a vossa busca, pois, visa à continuação de
uma experiência aprazível ou ao descobrimento de um estado
deleitável que, esperançosamente, supondes existir. Não é exato
isso? Eu vos digo que esta busca nunca vos revelará o desconheci-
do; ela, portanto, tem de cessar.
[...] INTERPELANTE: Andamos de guru em guru, até en-
contrarmos a satisfação. Mas, mesmo quando isso acontece, não
sabemos o que irá acontecer no futuro. A insatisfação é nossa
força propulsora, o estado em que passamos a nossa vida.
Krishnamurti: E à medida que ides envelhecendo, vos ides
tornando cada vez mais sério nessa busca; mas nunca investigas-
tes se existe realmente uma coisa tal, como seja a satisfação.
Interpelante: O homem está sempre sedento e deseja de-
salterar-se.
Krishnamurti: Senhor, se continuásseis sedento depois de
beber, não procuraríeis saber se é possível satisfazer a sede? E se
a satisfação é apenas momentânea, porque então atribuir tanta
importância aos gurus, aos sacrifícios, disciplinas, sandhanas, e
tudo o mais? Porque vos fragmentais em seitas, criando conflito
com vosso próximo e com a sociedade, só por causa de um efê-
144
mero conforto? Porque vos entregais ao hinduísmo, ao cristianis-
mo, se isso só vos dá um alívio temporário? Podeis dizer: "Sei que
tudo isso só dá alívio temporário, e não lhe atribuo muita impor-
tância". Mas, é verdade que, ao irdes ao vosso guru, lhe dizeis que
só estais buscando um alívio temporário? Não deveis investigar a
este respeito? E pode haver investigação quando o coração é obs-
tinado? A obstinação do coração impede a investigação, não é
verdade?
Comecemos daí. Se for obstinado em minha maneira de
pensar - o que significa "ser positivo" - se minha mente está en-
tregue a alguma forma de conclusão, opinião ou julgamento, es-
tou realmente em condições de investigar? Dizeis que não. Todos
concordamos, mas não está a nossa mente dominada por uma
certa conclusão, uma certa experiência? A investigação, nessas
condições, não só é tendenciosa mas também impossível.
Senhores, podemos conversar um pouquinho precisamen-
te a respeito disso, devassando a nossa mente, rebuscando-lhe as
profundezas, despertando, assim o autoconhecimento. Podemos
averiguar se estamos dominados por alguma fórmula, conclusão
ou experiência, a que nossa mente está apegada?
Interpelante: Há sempre a esperança de acharmos a satis-
fação final.
Krishnamurti: Vejamos, antes de tudo o mais, se nossa
mente está entregue a uma dada experiência, uma dada conclu-
são ou crença, que nos está tornando obstinados, inflexíveis, no
sentido profundo. Só quero começar daí, porque, como pode ha-
ver investigação, quando a mente é incapaz de ceder? Lemos o
Gita, a Bíblia, o Upanishads, tal ou tal livro, o qual deu uma certa
tendência à nossa mente, uma certa conclusão a que ela ficou
amarrada. Uma mente em tais condições é capaz de investigar?
Não é isso que acontece com a maioria de nós, e não deve nossa
mente ficar livre de todos os compromissos decorrentes de ser-
mos hinduístas, teosofistas, católicos, ou o que mais seja, antes de
podermos investigar? E porque não estamos livres dessas coisas?
Quando temos compromissos e queremos investigar, não pode
haver verdadeira investigação, mas tão somente uma repetição de
145
opiniões, juízos, conclusões. Assim, nesta nossa palestra desta
tarde, podemos largar todas essas conclusões?
Certamente, até os maiores cientistas têm de abandonar
todo o seu saber, antes de poderem descobrir qualquer coisa no-
va; e se vós sois sérios, esse abandono do conhecimento, da cren-
ça, da experiência tem de efetuar-se realmente. Os mais de nós
somos um tanto "sérios", quando se trata de nossas próprias con-
clusões, mas eu acho que isso de modo nenhum é seriedade. Não
tem valor nenhum. O homem sério, sem dúvida, é aquele que é
capaz de abandonar as suas conclusões porque percebe que só
assim está capacitado para investigar.
146
É muito estranha esta nossa adoração dos exemplos, mo-
delos, dos ídolos. Não queremos o que é puro, verdadeiro em si
mesmo; queremos intérpretes, exemplos, mestres, gurus, para,
por seu intermédio, alcançarmos alguma coisa - e tudo isso é puro
absurdo, um meio de explorar a outros. Se cada um de nós fosse
capaz de pensar claramente desde o começo, ou de reeducar-se
para pensar claramente, todos esses exemplos, mestres, gurus,
sistemas, se tornariam completamente desnecessários, como
realmente são.
Da solidão à plenitude humana - 1956
147
todo o vosso processo de pensar sofra uma “explosão”, se torne
“inocente”, fresco, novo?
Senhores, não há resposta a esta pergunta. Eu a estou
apenas indicando. Vós é que tendes de esclarecê-la, “cravar-lhe os
dentes”, torturar-vos com ela. Vós é que tendes de trabalhar nela,
vigorosamente, porque, se o não fizerdes, vossa vida estará liqui-
dada, acabada, e vossos filhos, a geração vindoura, estarão tam-
bém liquidados. Dizeis sempre que a geração vindoura irá criar o
novo mundo, o que é um contra-senso, porquanto já estais condi-
cionando essa geração com vossos livros e jornais, com vossos
líderes, vossos políticos e religiões organizadas; tudo isso está
forçando os jovens a seguir em determinada direção, enquanto
vós ficais a “verbalizar”, incessantemente, a respeito de nada.
Eis, pois, o vosso problema, e não me parece que o este-
jais levando a sério. Isso não vos importa tanto como “fazer di-
nheiro”, ou exercer vosso emprego e deixar-vos prender nessa
medonha e fastidiosa rotina a que chamais “vossa vida”. Quer
sejais advogado, juiz, governador, quer sejais o mais eminente
político, vossa vida, em sua maior parte, é uma rotina terrível,
estafante e destrutiva, e nessa rotina estais presos; e vossos filhos
nela também ficarão cativos, se não vos transformardes funda-
mentalmente. Isto não é retórica, meus senhores, porém algo
sobre que deveis refletir, trabalhar, cooperar, e achar a solução.
Porque o mundo necessita de entes humanos capazes de pensar
de maneira nova, e não pelo mesmo e velho “canal”, e que não se
revoltem contra o velho padrão só para criar um novo padrão.
Encontraremos a solução nas relações corretas ao saber o
que é amar. É extraordinário como o amor tem sua ação própria;
não, provavelmente, num nível reconhecível, mas quem é real-
mente compassivo tem uma ação, uma certa coisa que falta aos
outros homens.
Os que são sérios, que escutam, que pensam, que traba-
lham — são esses os que farão nascer uma ação diferente no
mundo, não no fim, mas agora mesmo. E o problema me parece
ser: Como poderá um ente humano transformar tão a fundo sua
maneira de pensar, que sua mente se torne de todo descondicio-
148
nada? — Se dedicardes vossos pensamentos a isso tanto quanto
os dedicais ao vosso trabalho, ao vosso ritual, descobrireis a solu-
ção.
150
paz de considerar a vida de maneira inteiramente diferente e dei-
xar de criar problemas e mais problemas.
Provavelmente estivestes escutando tudo isso verbal ou
intelectualmente apenas, porque para vós mesmo dizeis: “Que
faria eu na vida, se não tivesse ambição?” Talvez fôsseis destruído
pela sociedade. No momento em que compreendeis a sociedade e
rejeitais toda a estrutura em que está baseada — ambição, inveja,
ânsia de êxito, dogmas religiosos, crenças e superstições — , es-
tais fora da sociedade e, por conseguinte, sois capaz de pensar no
problema de maneira nova; talvez não exista então problema
algum. Mas provavelmente só escutastes no nível verbal e conti-
nuareis, amanhã, do mesmo modo: lendo a Bíblia, frequentando o
guru ou o sacerdote, etc. Podeis escutar tudo isso e aceitá-lo inte-
lectualmente, verbalmente, mas vossa vida continua na direção
oposta e, desse modo, apenas criastes mais um conflito; por con-
seguinte, é muito melhor não escutar nada, pois já tendes sufici-
entes conflitos e problemas e não precisais acrescentar-lhes um
novo. É muito interessante estar aqui sentado a ouvir o que se
está dizendo, mas se isso nenhuma relação tem com vossa vida, é
preferível tapardes os ouvidos; porque, se escutais a Verdade mas
não a viveis, vossa vida se torna uma medonha confusão, a lamen-
tável trapalhada que realmente é.
Pergunta: Pareceis contrário à própria essência da autori-
dade. A aceitação da autoridade não é inevitável em nossa vida
individual?
Krishnamurti: Vejamos o que se entende por autoridade e
por que a aceitamos — em vez de especularmos sobre se, se não
houvesse autoridade, a sociedade se desintegraria. A sociedade se
está desintegrando, quer gosteis, quer não; ela se está despeda-
çando porque temos seguido a autoridade. Portanto, investigue-
mos isso.
Por que seguimos a outrem? Este é um problema muito
complexo e, por conseguinte, devemos abeirar-nos dele cautelo-
sa, judiciosa e pacientemente. Ele compreende o problema do
conhecimento, isto é, o problema da aceitação da autoridade de
um que possui conhecimento, na suposição de que vós não sabeis
151
e ele sabe. Admitimos a autoridade do médico e a autoridade civil
que nos manda “conservar a direita”, na estrada. Se não tiverdes
o bom senso de obedecer à regra geral de trafegar pelo lado direi-
to da estrada, acabareis num posto policial. Assim, em certas coi-
sas, importa obedecer à autoridade normal. Se desejo construir
uma ponte, não posso rejeitar os conhecimentos acumulados
através de séculos; isso seria absurdo. Não nos referimos a essa
espécie de autoridade. Referimo-nos à autoridade existente num
nível completamente diferente: a autoridade do instrutor, do gu-
ru, que diz que sabe e é seguido pela pessoa que não sabe e dese-
ja ser conduzida à Realidade. Fique, pois, bem claro que é sobre
essa autoridade que estamos falando, não a autoridade do conhe-
cimento positivo, acumulado durante séculos, na medicina ou
qualquer outro ramo científico. Rejeitar tudo isso seria muita in-
sensatez. Estamos falando da autoridade que vós criastes na pes-
soa que afirma conhecer Deus, a Verdade, e poder conduzir-vos a
essa realidade. O problema está, portanto, claro, não? Aludimos à
autoridade espiritual, se posso empregar o termo “espiritual” sem
ser mal entendido; a autoridade do guru que sabe, em sua relação
com o discípulo que não sabe.
Quando o guru diz que sabe, que significa isso? Significa
que ele “experimentou” Deus, a Verdade, a paz perfeita, etc.; ele
“sabe” e vós “não sabeis” e por isso o seguis, esperando que vos
leve àquela realidade. Eis como criamos a chamada autoridade
espiritual.
Agora, por favor, prestai atenção. Que entendemos por
“saber”? Quando eu digo “sei”, que significa isso? Só posso co-
nhecer uma coisa já acabada. Entendeis? Só posso saber o que já
se passou; e quando um guru diz que sabe, ele só conhece o pas-
sado, o que experimentou; e o que ele experimentou é sempre
estático, coisa morta, sem vida. A Verdade, Deus, não pode ser
conhecida; não a podeis conhecer ou experimentar, porque no
momento em que dizeis: “Sei, experimentei”, não sabeis. Só po-
deis conhecer o que passou, e o que passou não tem validade, já
não é a verdade. Quando o instrutor vos diz que vos ajudará a
alcançar a Verdade, a Realidade, só poderá ajudar-vos a alcançar
152
algo que está fixado na esfera do tempo e que, portanto, não é
verdadeiro.
Senhores, escutai. Não aceiteis o que estou dizendo. Vede
a verdade respectiva, e o percebimento dessa verdade vos liberta-
rá.
Pensamos que a Verdade, Deus, é um ponto fixo no tem-
po; ela está “ali”, e para a alcançarmos, para percorrermos a dis-
tância intermediária, dizemos que necessitamos de tempo. O que
chamamos “realidade” está fixado num ponto e, portanto, pode-
mos seguir um caminho para lá — ou, melhor, muitos caminhos,
os caminhos das várias religiões, seitas, crenças. Mas a realidade
não pode situar-se num ponto fixo; ela é imensurável, viva, atem-
poral; não tem existência nos termos que conhecemos. Dela só é
possível nos aproximarmos quando a mente já não está aprisio-
nada na esfera do tempo; assim sendo, nenhum guru, nenhum
livro, nenhum sistema de meditação vos pode levar a ela. A mente
deve estar de todo livre das pretéritas compulsões, deve achar-se
imóvel, completamente silenciosa, não mais investigando com o
fim de pôr-se em segurança, de ser feliz, de realizar algo. Eis por
que o homem verdadeiramente religioso não segue nenhuma
autoridade, dogma, tradição ou crença. Tradição, crença, dogma,
autoridade, tudo isso se encontra na esfera do tempo, e a mente
aprisionada nessa esfera nunca descobrirá o que é atemporal.
Libertar a mente do tempo é um problema imenso, porque a
mente é resultado do tempo, resultado de inumeráveis influên-
cias, memórias; e essa mente pode estar livre do passado? En-
quanto a mente não se libertar do passado, não poderá descobrir
o que é verdadeiro.
Os entes humanos, porque sofrem, porque se veem per-
didos em meio à sua confusão, recorrem a outrem e esperam
encontrar uma resposta, um sentimento de conforto, um abrigo
seguro; e encontram esse abrigo, porque assim desejam, mas esse
abrigo seguro não é Deus, não é a Verdade. É coisa feita pela
mente, construída pelo homem, e o que foi feito pode ser desfei-
to. Eis por que tanto importa compreenderdes a vós mesmos. O
autoconhecimento é o começo da sabedoria. Mas o “eu” é uma
153
entidade muito complexa, e o conhecimento próprio não é sim-
ples questão de lerdes um livro, de praticardes um insensato mé-
todo de introspecção, e depois dizerdes: “Aprendi tudo a meu
respeito.” Isso não traz autoconhecimento. Os movimentos do
“eu” devem ser descobertos momento por momento, e não me-
diante acumulação. Observai como vossa mente opera, o que
pensais, vossos impulsos, vossas compulsões, vossos motivos
ocultos — ficai cônscio de tudo isso, de instante a instante, e, em
seguida, libertai vossa mente dessa maldição que é a autoridade,
de todos os livros, de todos os guias, políticos ou outros, porque
todos eles são tão ambiciosos como vós. Os ambiciosos, os que
têm êxito, nunca criarão o novo mundo. O novo mundo só pode
ser criado pelo homem já livre da ambição, do desejo de êxito,
livre de todos os dogmas e crenças — e isso significa: livre de si
próprio, de seu “ego”, seu “eu”. Só com esta revolução religiosa, e
nunca com a revolução econômica, poderá vir à existência o Novo
Mundo.
O homem livre - 1956
[...] AO DESPERTARMOS, no meio da noite, experimen-
tamos um estado de espírito de incalculável expansão; a própria
mente era este estado. A “sensação” desse estado era despojada
de todo sentimento, de qualquer emoção, porém muito concreta
e real. Perdurou longo tempo; a pressão e a dor, em toda a ma-
nhã, foram intensas.
A destruição é essencial. Não de edifícios e coisas, mas de
todos os mecanismos de defesa psicológica adotados pelo ho-
mem, dos seus deuses, das suas crenças, da dependência de cu-
nho religioso, das experiências, do conhecimento, etc. A criação
só é possível quando tudo isto deixar de existir. Ela surge do esta-
do de liberdade. Ninguém pode ajudar-nos a destruir essas defe-
sas; isto só é possível através do autoconhecimento.
154
Reformas sociais ou econômicas acarretam mudanças su-
perficiais de maior ou menor alcance, mas sempre dentro do limi-
tado campo do pensamento. Para que ocorra a revolução total, o
cérebro tem de renunciar à sua íntima e secreta estrutura de au-
toridade, de inveja, do medo, e assim por diante.
A força e a beleza de uma folha tenra de planta está em
sua extrema vulnerabilidade. Como o capim que brota do calça-
mento, ela tem a virtude de suportar o aniquilamento.
159
[...] À DISTÂNCIA, vinha o ruído incessante das ondas do
mar; quanta fúria, perigo e ameaça naquele contínuo movimento!
0 mar parecia calmo e sonhador, mas o tamanho das ondas reve-
lava impaciência e terror. As pessoas eram arrastadas pela forte
correnteza e ali morriam afogadas. As ondas nada tinham de deli-
cado; de longe, o magnífico desenho de suas curvas deleitava-nos,
mas elas continham cruel e brutal vigor. As pequenas e frágeis
jangadas, conduzidas por homens morenos e esquálidos, corta-
vam as ondas com indiferença e destemor; iam afastar-se muito
da praia, na direção do horizonte, e voltariam ao entardecer, com
sua pesada carga. Mas, àquela noite, era inusitada a violência das
ondas e ensurdecedor o ruído que faziam ao arrebentarem sobre
a areia da praia; a beira-mar se estendia para o norte e para o sul,
com extensa faixa de areia limpa, amarelada, ligeiramente doura-
da pelo sol. E o sol tampouco era delicado; ele ardia intensamente
e só bem cedo, pela manhã, logo ao nascer do fundo do mar, ou
ao morrer entre as nuvens do entardecer, é que ele se mostrava
suave e generoso. O mar furioso e o sol ardente fustigavam aque-
la terra árida onde havia fome e pobreza; a miséria era uma pre-
sença constante e, por ser ali muito mais fácil morrer do que nas-
cer, as pessoas estavam entregues à indiferença e à decadência.
Os ricos também eram indiferentes, embotados e só saíam do seu
estado de apatia quando se tratava de ganhar mais dinheiro, de
buscar o poder ou de construir uma ponte; nisso, exibiam extrema
habilidade, querendo sempre mais — mais saber, mais eficiência
— mas saíam sempre perdendo, pois tudo termina na morte. E
isto é tão definitivo que nada pode desviar-nos dela, pois a morte
é inevitável. É impossível escapar da morte, mas da vida, sim; po-
demos ludibriá-la, podemos dela fugir, frequentar igrejas, seguir
gurus, projetar uma viagem à lua; na vida, tudo é possível, mas a
dor e a morte estão sempre presentes. Podemos evitar o sofri-
mento, mas jamais escaparemos da morte. Mesmo àquela distân-
cia podia-se ouvir o estrondo das ondas do mar; e as palmeiras
recortavam-se contra o rubro céu do entardecer. A superfície das
águas dos charcos e do canal refletia a luz do poente.
160
Qualquer motivo nos impele a agir e não há ação sem mo-
tivo; daí sermos destituídos de amor. Tampouco existe amor na-
quilo que fazemos. Pensamos ser impossível agir, viver, existir
sem um motivo e com isto nossa vida passa a ser uma atividade
enfadonha e sem sentido. A função é, para nós, um meio de al-
cançar o status, ou outra coisa qualquer. O amor em si não existe
e eis por que é tudo tão falso, tão insignificante, e daí serem terrí-
veis as nossas relações. O apego serve apenas para encobrir nosso
próprio vazio, nossa solidão e insuficiência interior; da inveja nas-
ce o ódio. O amor é sem motivo e, quando o amor está ausente,
toda sorte de motivos se instalam. É tão simples viver sem moti-
vos; basta ser íntegro, sem jamais se conformar com ideias ou
crenças. Ser íntegro é ter autocrítica, é estar consciente de si pró-
prio de momento a momento.
Diário de Krishnamurti - 1961
[...] O HOMEM QUE deseja compreender a liberdade de-
ve, sem remorsos, livrar-se da sociedade — psicologicamente, não
fisicamente. Não podeis estar livre da sociedade fisicamente, por-
que, para tudo, dependeis da sociedade — para a roupa que ves-
tis, o dinheiro de que necessitais, etc. Exteriormente, não, psico-
logicamente, dependeis da sociedade. Mas o estar livre da socie-
dade implica liberdade psicológica — isto é, estar totalmente livre
da ambição, da inveja, da avidez, da vontade de poder, de posi-
ção, de prestígio. Mas, infelizmente, temos interpretado da ma-
neira mais absurda o estar livre da sociedade. Pensamos que o
libertar-se significa “trocar de roupas” — pondes as vestes do
sannyasi, e pensais que ficastes livre do mundo; ou vos tornais
164
monge e pensais que, de certo modo, destruístes o mundo e a
sociedade. Muito ao contrário; podeis vestir uma tanga, mas, inte-
riormente, estais psicologicamente ligado à sociedade, porque
continuais a ser ambicioso, invejoso, desejoso de poder. Assim, a
mente que está investigando o que é a liberdade deve estar de
todo livre da sociedade, psicologicamente, e livre, também, da
dependência da família.
A família é a forma mais conveniente de resistência, por-
que essa resistência é considerada altamente respeitável pela
sociedade; e, se observardes, podereis ver quanto a mente se
vinculou à família. A família se tornou o meio de vosso preenchi-
mento; a família se tornou o meio de vossa imortalidade, pelo
nome, pela ideia, pela tradição. Não estou dizendo que se destrua
a família; toda revolução tem tentado fazê-lo; a família é indestru-
tível. Mas, o indivíduo precisa ficar psicologicamente livre da famí-
lia, não depender da família, interiormente. Por que depende uma
pessoa?
Já alguma vez examinastes a questão da dependência psi-
cológica? Se a tiverdes examinado a fundo, deveis saber que a
maioria de nós está terrivelmente só. Em regra temos a mente tão
superficial, tão vazia! De ordinário, não sabemos o que significa o
amor. E, assim, por causa dessa solidão, dessa insuficiência, dessa
privação de vida, estamos ligados a alguma coisa, estamos apega-
dos à família; dela dependemos. E quando o marido ou a esposa
vos volta às costas, tornamo-nos ciumentos. Ciúme não é amor;
mas o amor que a sociedade reconhece, na família, é considerado
respeitável. Essa é uma outra forma de defesa, uma outra forma
de fuga a nós mesmos. Como vemos, toda forma de resistência
cria dependência. A mente dependente nunca pode ser livre.
A mutação interior - 1962
165
[...] LIBERDADE significa esvaziar a mente do conhecido.
Não sei se já alguma vez o tentastes, vós mesmo. O relevante é
libertarmos a mente do conhecido, ou, melhor, que a mente se
liberte do conhecido. Isso não significa que a mente deva libertar-
se do conhecimento “factual”, pois em certo grau necessitamos
desse conhecimento. É claro que não deveis libertar-vos do co-
nhecimento do lugar onde residis, etc. Mas a mente pode libertar-
se do seu fundo de tradição, de experiências acumuladas, e dos
vários impulsos conscientes e inconscientes que representam
reações daquele fundo; e ficar completamente livre desse fundo
significa rejeitar, pôr de lado, morrer para o conhecido. Se assim
fizerdes, descobrireis por vós mesmo quanto é realmente signifi-
cativa a liberdade.
Falo de uma total liberdade interior em que não há de-
pendência psicológica, nem apego de espécie alguma. Enquanto
há apego, não há liberdade, porque o apego implica sentimento
de íntima solidão, vazio interior, o qual exige um estado de rela-
ção exterior em que amparar-se. A mente livre não é apegada,
embora possa ter relações. Mas não pode nascer a liberdade, se
não há aquele “estado de aprender” que traz consigo uma pro-
funda disciplina interior, não baseada em ideias nem em nenhum
padrão “conceitual”. Quando a mente se liberta constantemente
pelo morrer de instante em instante para o conhecido, daí pro-
vém uma disciplina espontânea, uma austeridade nascida da
compreensão. A verdadeira austeridade é uma coisa maravilhosa;
não é a seca disciplina, e sem nenhum valor, da renúncia destruti-
va, que em geral imaginamos.
Não sei se já alguma vez experimentastes esse extraordi-
nário sentimento de “ser completamente austero” — coisa que
nada tem em comum com a disciplina de controle, ajustamento,
submissão. E essa austeridade deve existir, porque, nela, há gran-
de beleza e intenso amor. Nessa austeridade há paixão; ela só se
apresenta ao existir solidão interior.
O homem e seus desejos em conflito - 1962
166
167
para desaparecer a dependência, precisamos conscientizar-nos
dela. Se, para ter estímulo, a pessoa depende de sua mulher ou de
seu marido, de um livro, de seu cargo, de ir aos cinemas — qual-
quer que seja o incentivo — deve, em primeiro lugar, perceber
isso. O aceitar simplesmente os estímulos, e com eles viver, dissi-
pa energia e deteriora a mente. Mas, cientificando-nos dos estí-
mulos e do significado que têm em nossa vida, poderemos livrar-
nos deles. Pelo autopercebimento — que não é autocondenação,
etc., porém estar simplesmente cônscio, sem escolha, de si pró-
prio — pode o homem conhecer todas as formas de influência,
todas as formas de dependência, todas as formas de estímulo; e
esse próprio movimento da ação de aprender dá-lhe a energia
necessária para libertar-se de todas as dependências e de todos
os estímulos.
A mente sem medo - 1964
168
sociedade. Compreender os problemas de cada um de nós é com-
preender os problemas das relações dentro da sociedade. Pois só
temos um único problema: o problema das relações dentro dessa
estrutura social, psicológica. Para a compreensão e libertação do
problema das relações, necessita-se de abundante energia, não só
energia física e intelectual, mas também uma energia não “moti-
vada” ou dependente de estímulos psicológicos ou de drogas de
qualquer espécie. Para se ter essa energia, é necessário compre-
ender primeiramente a maneira como dissipamos energia. Entra-
remos neste assunto passo a passo, e peço-vos compreender que
o orador é apenas um espelho: está a expressar o que supõe ser o
problema de cada um de nós; assim sendo, o ouvinte não fica
apenas a ouvir uma série de palavras e ideias, porém está real-
mente escutando e observando a si próprio, não segundo o que o
orador em outra pessoa formula, porém, antes, observando o seu
verdadeiro estado de confusão, de falta de energia, de aflição, de
total desesperança, etc.
Se se depende de algum estímulo para a obtenção da
energia necessária, esse mesmo estímulo embota a mente, torna-
a insensível, sem penetração. Uma pessoa pode tomar a droga
chamada LSD ou outras e, temporariamente, achar energia sufici-
ente para ver as coisas com muita clareza, mas terá de reverter ao
estado anterior e tornar-se cada vez mais dependente dessa dro-
ga. Todo estímulo, quer por parte da igreja, quer da bebida ou
droga, quer do orador, criará inevitavelmente uma dependência
que impede o indivíduo de ter a energia vital necessária para ver
claramente e por si próprio. Toda espécie de dependência de al-
gum estímulo reduz a agilidade e a vitalidade da mente. Por infeli-
cidade, todos nós dependemos de alguma coisa: de uma relação,
da leitura de um livro intelectual, ou de certas ideias e ideologias
por nós formuladas; ou dependemos da solidão, do isolamento,
da rejeição, da resistência. Tudo isso, obviamente, perverte e dis-
sipa a energia.
Temos de perceber de que é que estamos dependendo.
Cumpre descobrir por que razão dependemos de alguma coisa,
psicologicamente; não aludo à dependência tecnológica ou à de-
169
pendência em que estamos do entregador do leite... Mas, psicolo-
gicamente, porque é que dependemos, o que supõe a dependên-
cia? Esta é uma pergunta essencial, quando se quer investigar a
dissipação, a deterioração e a perversão da energia — dessa ener-
gia de que temos vital necessidade para compreendermos nossos
inúmeros problemas.
De que é que tanto dependemos: de uma pessoa, um li-
vro, uma igreja, um sacerdote, uma ideologia, uma bebida ou
droga? Quais são os esteios que sustentam cada um de nós, su-
tilmente ou de maneira muito óbvia? Porque dependemos, e o
descobrimento da causa da dependência liberta a mente dessa
dependência? Entendeis essa pergunta? Estamos viajando juntos;
não estais à espera de que eu vos mostre as causas de vossa de-
pendência, porém, investigando-as juntos, as descobriremos; ha-
verá um descobrimento feito por vós e que, como tal, vos dará
vitalidade. Descobrimos por nós mesmos que dependemos de
alguma coisa, por exemplo, de um auditório, para nos estimular e
dele, portanto, necessitamos. Quando se dirige a palavra a um
grande grupo de pessoas, pode-se adquirir uma certa espécie de
energia e fica-se, portanto, na dependência desses ouvintes, de
sua concordância ou discordância, para se obter aquela energia.
Quanto maior a discordância, tanto maior se toma a batalha e
tanto mais vitalidade se adquire; mas, se o auditório concorda,
não se obtém a mesma energia. Dependemos — por quê? E per-
guntamos a nós mesmos se, descobrindo a causa de nossa depen-
dência, nos libertaremos dessa dependência. Acompanhai-me,
por favor, com vagar. Uma pessoa descobre que necessita de ou-
vintes parque é muito estimulante falar a outras pessoas; porque
necessita desse estímulo? Porque, interiormente, essa pessoa é
superficial, interiormente nada tem, não há nenhuma fonte de
energia, sempre cheia, abundante, vital, em movimento, viva.
Interiormente é paupérrima e descobriu que essa é a causa de sua
dependência.
Pode o descobrimento da causa nos livrar de continuar
dependentes, ou esse descobrimento é meramente intelectual,
mero descobrimento de uma fórmula? Se se trata de uma investi-
170
gação intelectual e se foi o intelecto que descobriu a causa da
dependência da mente, por meio de racionalização, de análise,
pode esse descobrimento libertar a mente da dependência? Não
pode, evidentemente. O mero descobrimento intelectual da causa
não liberta a mente de sua dependência daquilo que lhe dá estí-
mulo, assim como a mera aceitação intelectual de uma ideia ou a
aquiescência emocional a uma ideologia não pode libertá-la.
A mente se liberta da dependência quando vê, em seu to-
do, essa estrutura de estímulo e dependência e vê que o mero
descobrimento intelectual da causa da dependência não liberta a
mente da dependência. O ver a inteira estrutura e natureza do
estímulo e da dependência e perceber como essa dependência
torna a mente estúpida, embotada, inerte — só esse percebimen-
to liberta a mente.
Vemos o quadro inteiro, ou apenas uma parte dele, um
detalhe? Essa é uma pergunta muito importante que nos devemos
fazer, porque nós vemos as coisas em fragmentos e pensamos em
fragmentos; todo o nosso pensar é fragmentário. Temos, pois, de
investigar o que significa ver totalmente. Perguntamos se nossa
mente pode ver o todo, apesar de ter sempre funcionado frag-
mentariamente, como nacionalista, individualista, como coletivi-
dade, como católico, alemão, russo, francês, ou como indivíduo
aprisionado numa sociedade tecnológica, funcionando numa es-
pecialidade, etc. — tudo dividido em fragmentos, com o bem
oposto ao mal, o ódio ao amor, a ansiedade à liberdade. Nossa
mente pensa sempre num estado de dualidade, de comparação,
de competição, e essa mente, que funciona em fragmentos, não
pode ver o todo. Se uma pessoa é hinduísta e olha o mundo por
essa estreita janela, crendo em certos dogmas, ritos, tradições,
educada que foi numa certa cultura, etc., evidentemente não
pode perceber o todo da humanidade.
Assim, para se ver alguma coisa totalmente, seja uma ár-
vore, seja uma relação ou atividade que temos, a mente deve
estar livre de toda fragmentação, porquanto a origem da frag-
mentação é justamente aquele centro de onde estamos olhando.
O fundo, a cultura, na qual o indivíduo é católico, protestante,
171
comunista, socialista, chefe de família, é o centro de onde se está
olhando. Assim, enquanto estamos a olhar a vida de um certo
ponto de vista, ou de uma dada experiência a que estamos ape-
gados, que constitui nosso fundo, nosso EU, não podemos ver a
totalidade. A questão, pois, não é de como nos libertarmos da
fragmentação. Invariavelmente, uma pessoa perguntaria: “Como
posso eu, que funciono em fragmentos, deixar de funcionar em
fragmentos?” Mas, essa é uma pergunta - errônea. Percebe essa
pessoa que depende psicologicamente de muitas coisas e desco-
briu intelectualmente, verbalmente e por meio de análise, a causa
dessa dependência; esse mesmo descobrimento é fragmentário,
por ser um processo intelectual, verbal, analítico; e isso significa
que tudo o que o pensamento descobre é inevitavelmente frag-
mentário. Só se pode ver a totalidade de uma coisa quando o
pensamento não interfere, porque então não se vê verbalmente
nem intelectualmente, porém realmente, como eu vejo o fato que
é este microfone — sem agrado nem desagrado; ele existe. Ve-
mos então a realidade, i. e., que somos dependentes e não dese-
jamos libertar-nos dessa dependência ou de sua causa. Observa-
mos, e fazemo-lo sem termos um centro, sem termos nenhuma
estrutura de pensamento. Quando há observação dessa espécie,
vê-se o quadro inteiro e não um simples fragmento dele; e quan-
do a mente vê o quadro inteiro, há liberdade.
Acabamos de descobrir duas coisas. A primeira, que há
dissipação de energia quando há fragmentação. Pelo observar,
pelo “escutar” a estrutura total da dependência, descobriu-se que
toda atividade da mente que trabalha e funciona em fragmentos
— como hinduísta, comunista, católico, ou como analista que
analisa — é essencialmente a atividade de uma mente dissipada,
de uma mente que desperdiça energia. A segunda coisa foi que
esse descobrimento dá-nos energia para enfrentar todos os frag-
mentos que forem surgindo e, consequentemente, observando-os
à medida que surgem, eles vão sendo dissolvidos.
Descobriu-se a própria origem da dissipação de energia e
que toda fragmentação, divisão, conflito (pois divisão significa
conflito) é desperdício de energia. Todavia, pode-se pensar que
172
não há desperdício de energia no imitar e aceitar a autoridade, no
depender do sacerdote, dos rituais, do dogma, do partido, de uma
ideologia — porque então a pessoa aceita e segue. Mas o seguir e
o aceitar uma ideologia, seja boa, seja má, sagrada ou não sagra-
da, representa uma atividade fragmentária e, por conseguinte,
causa conflito. O conflito surgirá, inevitavelmente, porque haverá
separação entre o que é e o que deveria ser, e esse conflito é uma
dissipação de energia. Pode-se ver a verdade aí contida? Mais
uma vez, não se trata de “como libertar-me do conflito?” — Se
fazemos a nós mesmos a pergunta “Como posso libertar-me do
conflito?”, criamos outro problema e, por conseguinte, aumenta-
mos o conflito. Mas se, ao contrário, vemos — tal como vemos o
microfone — clara e diretamente, pode-se então compreender a
verdade essencial de uma vida inteiramente sem conflito.
Mas, senhores, digamo-lo de maneira diferente. Estamos
sempre a comparar o que somos com o que deveríamos ser. Esse
“deveria ser” é uma projeção do que pensamos deveria ser. Com-
paramo-nos com nosso vizinho, com a riqueza que ele tem e nós
não temos. Comparamo-nos com os que são mais brilhantes, mais
intelectuais, mais afetuosos, mais bondosos, mais famosos, mais
isto e mais aquilo. O mais tem um importantíssimo papel em nos-
sas vidas, e essa medição que em cada um de nós se verifica, a
medição de nós mesmos com alguma coisa, é uma das principais
causas do conflito. Nela, há competição, comparação com isso e
aquilo, e ficamos envolvidos nesse conflito. Ora, porque existe
comparação? Fazei a vós mesmo essa pergunta. Porque vos com-
parais com outrem? Naturalmente, um dos ardis da propaganda
comercial é fazer-vos crer que não sois o que deveríeis ser, etc.
Isso começa desde os mais verdes anos de nossa vida —ser tão
arguto como outrem, nos exames, etc. Porque nos comparamos,
psicologicamente? Verificai-o. Se não comparo, que sou eu? Eu
ficaria embotado, vazio, estúpido — ficaria sendo o que sou. Se
não me comparo com outrem, fico sendo o que sou. Mas, pela
comparação, espero evolver, desenvolver-me, tornar-me mais
inteligente, mais belo, mais isto e mais aquilo. Isso acontecerá? O
fato é que eu sou o que sou e, pela comparação, estou fragmen-
173
tando esse fato, a realidade, e isso é um desperdício de energia;
mas, ao contrário, o não comparar, porém ser o que realmente
sou, é ter a extraordinária energia de que necessito para olhar.
Quando sois capaz de olhar sem comparação, estais fora de toda
comparação, o que não indica uma mente estagnada, contentada;
pelo contrário!
Estamos vendo, pois, em essência, como a mente desper-
diça energia e como essa energia é necessária para compreen-
dermos a totalidade da vida e não apenas os seus fragmentos. Ela
é como um vasto campo todo florido. Se aqui estivestes antes,
notastes como, antes de ser ceifado o feno, havia milhares de
variegadas flores? Mas, em geral, escolhemos só um dado canto
do campo e nesse canto ficamos a olhar uma só flor; não olhamos
o campo inteiro. Damos importância a uma só flor e, com dar im-
portância a essa única flor, rejeitamos o resto. É o que fazemos
quando atribuímos importância à imagem que temos de nós
mesmos; rejeitamos então todas as outras imagens e, por conse-
guinte, ficamos em conflito com cada uma delas.
Assim, como dissemos, é necessária a energia, energia
sem “motivo”, sem direção. Para tê-la, devemos ser interiormente
pobres, não ser ricos das coisas que a sociedade, que nós forma-
mos. Como, em maioria, somos ricos das coisas da sociedade, não
existe pobreza em nós. O que a sociedade formou em nós, o que
em nós mesmos formamos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme,
ansiedade — disso somos riquíssimos. Para compreender tudo
isso, precisamos de uma extraordinária vitalidade, tanto física
como psicológica. A pobreza é uma das coisas mais estranhas da
vida; as várias religiões de todo o mundo têm pregado a pobreza
— pobreza, castidade, etc. A pobreza do monge que veste um
hábito, muda de nome, recolhe-se a uma cela, abre a Bíblia e fica
a lê-la interminavelmente; esse homem é reputado pobre. O
mesmo se faz, de diferentes maneiras, no Oriente, e isso é consi-
derado pobreza. O voto de castidade, o possuir só uma tanga, só
uma túnica, só tomar uma refeição por dia — todos nós respeita-
mos essa espécie de pobreza. Mas, aqueles que tomaram o manto
da pobreza continuam ricos das coisas da sociedade, interiormen-
174
te, psicologicamente, uma vez que estão ainda em busca de posi-
ção, de prestígio; pertencem à categoria do “religioso”, e esse tipo
é uma das divisões da cultura social. Isso não é pobreza; pobreza é
estar-se completamente livre da sociedade, embora se possuam
algumas roupas e se tomem algumas refeições diárias. Torna-se a
pobreza uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente está livre
da estrutura psicológica da sociedade, porque então já não há
conflito, não há buscar, indagar, desejar — não há nada. Só essa
pobreza interior pode ver a verdade existente numa vida inteira-
mente livre de conflito. Essa vida é uma bênção que não se encon-
tra em nenhuma igreja ou templo.
Como viver neste mundo - 1967
175
riado, quando controlado, transtornado, impedido, há então raiva,
agressão, que se torna mais uma forma de prazer.
Que relação tem o prazer com o amor? Ou o prazer não
está em nenhuma relação com o amor? É o amor uma coisa to-
talmente diferente, uma coisa não fragmentada pela sociedade,
pela religião, em "amor profano" e "amor divino"? Como ireis
verificar isso? Como ireis verificá-lo por vós mesmos, quer dizer,
sem serdes informado por outrem? - porque, se outra pessoa vos
diz o que ele é, e vós dizeis "Sim, está certo", não se trata de uma
coisa vossa, de uma coisa que vós mesmos descobrisses e profun-
damente sentistes.
Que relação tem o prazer da "expressão pessoal" com a
beleza e o amor? - É a verdade uma coisa estática? Ou ela é algo
que se vai descobrindo pelo caminho, nunca estacionária, nunca
permanente, mas sempre em movimento? A verdade não é um
fenômeno intelectual, não é nada de emocional ou sentimental, e
nós temos de descobrir a verdade acerca do prazer, acerca da
beleza e do amor.
Conhecemos as torturas do amor, nossa dependência de-
le, o medo que ele gera, a solidão resultante de não ser amado, e
nossa perene busca do amor sem nunca o termos achado à nossa
inteira satisfação. Assim, pergunta-se: O amor é satisfação e ao
mesmo tempo tortura, dentro de um círculo de ciúme, inveja,
ódio, raiva, dependência?
Quando não há beleza em nosso coração, frequentamos
os museus, os concertos, maravilhamo-nos com a beleza de um
antigo templo grego, suas majestosas colunas, suas proporções.
Falamos interminavelmente sobre a beleza, mas estamos perden-
do o contato com a natureza - como o está perdendo o homem
moderno, vivendo cada vez mais nas cidades. Fundam-se clubes
com o objetivo de fazer excursões ao campo, para ver os pássaros,
as árvores, os rios - como se por essa maneira fosse possível en-
trar em contato com a natureza e a beleza sem limites! Por ter-
mos perdido o contato com a natureza, os modernos quadros
"objetivos", os museus e os concertos se tornaram sobremodo
importantes.
176
Há um vazio, uma vacuidade interior que está sempre a
buscar expressão, para dela obter prazer, criando-se, em conse-
quência, o medo de não obtê-lo completamente e, portanto, a
resistência, a agressividade, etc. Tratamos de preencher esse vá-
cuo, esse vazio interior (que decerto já conhecestes) com livros,
conhecimentos, relações, artifícios de toda ordem, mas, no final
de tudo, continua existente essa vacuidade impreenchível e, en-
tão, apelamos para Deus - a última instância... Quando existe esse
vazio, esse vácuo profundo, insondável, é possível o amor, a bele-
za? Se desse vazio nos tornamos cônscios, sem fugir - que deve-
mos fazer? Temos tentado preenchê-lo com deuses, com o saber,
com experiências, com a música, os quadros, com fantásticos co-
nhecimentos técnicos; - nesse preenchimento nos mantemos
ocupados da manhã à noite. Sabemos que a vacuidade não pode
ser preenchida por outrem. Se a preencheis com isso que se cha-
ma "relação com outra pessoa", ou uma imagem, daí resulta a
dependência, o "medo de perder" e, consequentemente, a "posse
agressiva", o ciúme e tudo mais. Assim, perguntamos a nós mes-
mos: Pode esse vazio ser preenchido por alguma coisa, por ativi-
dades sociais, pela prática de "boas obras", pelo recolhimento à
um mosteiro, para meditar, exercitar-se em "estar cônscio"? (o
que, decerto, é outro absurdo). Se não é possível preenchê-lo, que
se pode fazer então? Percebeis a importância desta pergunta? Já
se tentou preenchê-lo com o que se chama "prazer", por meio da
"expressão pessoal", da busca da verdade, de Deus, e vimos que
nada pode preenchê-lo - nem a imagem que criamos a respeito de
nós mesmos, nem a imagem ou a ideologia que criamos a respeito
do mundo; nada pode preenchê-lo. Estivemos, pois, a servir-nos
da beleza, do amor e do prazer, para cobrir o vazio e, se não con-
tinuarmos a fugir dele, porém "ficarmos com ele", que nos cabe
fazer? Está clara a questão - mais ou menos clara?
Que é essa solidão, esse profundo vácuo interior - que é
isso, e como se torna existente? Existe ele porque estamos ten-
tando preenchê-lo ou porque estamos a fugir dele? Trata-se ape-
nas de uma ideia de vazio e, por conseguinte, a mente nunca en-
177
trou em contato com o que realmente há, nunca entrou em rela-
ção direta com o vazio?
Descubro em mim mesmo esse vazio, e deixo de fugir
porque tal atividade é obviamente imatura; percebo que ele exis-
te e que nada pode preenchê-lo. Assim, pergunto: Como se tor-
nou ele existente? Foi o meu modo de viver, foram minhas ativi-
dades de cada dia que o produziram? Será que o "eu", o "ego, (ou
a palavra que preferirdes) está a isolar-se com sua própria ativi-
dade? A natureza mesma do "eu", do "ego", é o isolamento; ele é
separativo. Suas atividades produziram esse estado isolado, esse
profundo vazio em mim existente; trata-se, portanto, de um resul-
tado, uma consequência, e não de uma coisa imanente. Vejo que,
enquanto minha atividade for egocêntrica, enquanto consistir em
expressar meu próprio "eu", esse vazio necessariamente existirá.
Vejo que, para preenchê-lo, faço todos os esforços possíveis. Tais
esforços são igualmente egocêntricos, de modo que o vazio se
torna cada vez mais vasto e profundo.
É possível transcender esse estado - sem dele fugir, sem
dizer "Não quero ser egocêntrico"? Quando um homem diz "Não
quero ser egocêntrico", já é egocêntrico. Ao exercer a vontade
para negar a atividade do "eu", essa mesma vontade se torna o
fator de isolamento.
A mente, com sua necessidade de proteção e segurança,
foi condicionada através de muitos séculos e constituiu, tanto
fisiológica como psicologicamente, esse padrão de atividade ego-
cêntrica. Essa atividade predomina na vida diária e produz aquele
vazio e isolamento. Como pode ela ter fim?
Estais seguindo o que estou dizendo? Vejo esse vazio e ve-
jo como se tornou existente; percebo que a vontade, ou outra
qualquer atividade que eu exerça, é apenas atividade egocêntrica
sob outra forma; vejo-o muito clara e objetivamente e, de repen-
te, percebo que nada posso fazer. Compreendeis? Antes, eu fazia
alguma coisa, fugia ou tentava preencher o vazio, tentava sondá-
lo, compreendê-lo, mas percebi que tudo isso era apenas outra
forma de isolamento. Compreendi assim, subitamente, que nada
posso fazer e que quanto mais tento fazer alguma coisa, mais
178
muralhas de isolamento estou construindo, criando. A própria
mente percebe que nada pode fazer em relação ao vazio e que o
pensamento não pode entrar em contato com ele porque, no
mesmo instante em que o toca, cria mais vazio. Assim, mediante
observação atenta e objetiva, vejo esse processo todo inteiro, e
esse simples ver é suficiente. Vede o que sucedeu. Antes, eu me
servia da energia para preencher o vazio, andava numa lufa-lufa, e
percebo agora quanto isso era absurdo, minha mente o percebe
muito claramente, e, por conseguinte, já não estou dissipando
energia. O pensamento se aquietou, a mente se tornou comple-
tamente silenciosa; nesse silêncio não há solidão. Quando existe
na mente esse silêncio completo, há beleza e amor, que podem
expressar-se ou não.
Seguistes tudo o que estivemos dizendo? Fizemos juntos a
jornada? Minha senhora, não digais "sim". A matéria de que es-
tamos tratando é das mais difíceis e perigosas. O problema é
complexo em extremo, mas, se o olharmos bem, ele se tornará
muitíssimo simples, e essa própria simplicidade faz-nos pensar
que o compreendemos.
Portanto, só há felicidade suprema fora da esfera do pra-
zer; e há a beleza que não é a expressão de uma mente engenho-
sa, mas aquela beleza que conhecemos quando a mente está to-
talmente quieta, em silêncio.
Está chovendo e ouve-se o tamborilar das gotas de chuva.
Podeis ouvi-lo com vossos ouvidos ou podeis ouvi-lo em virtude
daquele silêncio profundo. Se o ouvis com o silêncio total da men-
te, então, tamanha é a sua beleza, que não pode ser expressa em
palavras nem numa tela, porque essa beleza excede a expressão.
O amor, obviamente, é uma bênção, que não é prazer.[...]
180
[...] PARA COMPREENDERMOS e nos libertarmos de um
problema, necessitamos de abundante energia, apaixonada, per-
sistente, não só energia física e intelectual, mas também uma
energia independente de qualquer motivo, de qualquer estímulo
psicológico ou droga. Se dependemos de algum estímulo, esse
próprio estímulo tornará a mente embotada e insensível. Toman-
do uma certa droga, podemos encontrar, temporariamente, ener-
gia suficiente para vermos as coisas muito mais claramente, mas
temos de voltar ao estado anterior e, por conseguinte, nos tor-
narmos cada vez mais dependentes dessa droga. Assim, todo es-
tímulo, seja da igreja, seja do álcool ou das drogas, da palavra
escrita ou falada, acarretará inevitavelmente a dependência — e
essa dependência nos impede de ver claramente, por nós mes-
mos, e, por conseguinte, de ter a energia vital.
Infelizmente, todos nós dependemos de alguma coisa. Por
que dependemos? Por que existe esse impulso a depender? Es-
tamos viajando juntos; não estais à espera de que eu vos mostre
as causas de vossa dependência. Se investigarmos juntos, nós as
descobriremos, e tal descobrimento será então vosso e, por con-
seguinte, sendo vosso, vos dará vitalidade.
Descubro por mim mesmo que dependo de uma certa coi-
sa, de um auditório, por exemplo, para ser estimulado. Desse au-
ditório, do falar a uma grande reunião de pessoas, me vem uma
certa espécie de energia. Consequentemente, dependo desses
ouvintes, dessas pessoas, quer concordem, quer não concordem
comigo. Quanto mais discordarem de mim, tanto mais vitalidade
me darão. Se concordam, o que lhes digo se torna uma coisa mui-
to superficial, vazia. Assim, descubro que necessito de ouvintes,
porque é uma coisa muito estimulante dirigir a palavra a muitas
pessoas. Ora, por quê? Por que tenho essa dependência? Porque
interiormente nada tenho, interiormente não existe em mim uma
fonte sempre cheia, abundante de vida e de movimento. Por isso,
eu dependo. Descobri a causa.
181
Mas o descobrimento da causa me livrará de ser depen-
dente? O descobrimento da causa é puramente intelectual e, por-
tanto, evidentemente, não pode libertar a mente de sua depen-
dência. A mera aceitação intelectual de uma ideia ou a aquiescên-
cia emocional a uma ideologia, não pode libertar a mente da de-
pendência daquilo que lhe dá estímulo. O que liberta a mente da
dependência é o percebimento da inteira estrutura e natureza do
estímulo e da dependência e de como essa dependência torna a
mente estúpida, embotada e inerte. Só o percebimento dessa
totalidade liberta a mente.
Cumpre, pois, investigar o que significa ver totalmente.
Enquanto eu estiver vendo a vida de um certo ponto de vista, de
uma dada experiência ou conhecimento que acumulei e que cons-
titui o meu fundo, meu "eu", não posso ver totalmente.
Descobri intelectualmente, verbalmente, pela análise, a
causa de minha dependência, mas tudo o que o pensamento in-
vestiga só pode ser fragmentário e, portanto, só posso ver a tota-
lidade de uma coisa quando o pensamento não interfere.
Percebo então o fato — minha dependência. Percebo re-
almente o que é. Vejo-o sem agrado nem desagrado, e não desejo
libertar-me dessa dependência ou de sua causa. Observo-a e com
essa qualidade de observação percebo o quadro inteiro; e quando
a mente percebe o quadro inteiro, dá-se a libertação. Ora, desco-
bri que há uma dissipação de energia quando há fragmentação.
Descobri a própria fonte da dissipação da energia.
Podeis pensar que não há desperdício de energia se imi-
tais, se aceitais a autoridade, se dependeis do sacerdote, do ritual,
do dogma, do partido, ou de uma certa ideologia, mas o aceitar e
seguir uma ideologia, boa ou má, sagrada ou profana, é uma ativi-
dade fragmentária e, portanto, uma causa de conflito; e o conflito
surge inevitavelmente quando há separação entre o que "deveria
ser" e "o que é", e todo conflito é dissipação de energia.
184
A pergunta subsequente é esta: Podeis tornar-vos consci-
ente dessa liberdade? Se dizeis "Sou livre", nesse caso não estais
livre. É o mesmo que um homem dizer "Sou feliz". No momento
em que diz: "Sou feliz", está vivendo na lembrança de uma coisa
passada. A liberdade só pode vir naturalmente, e não pelo crer,
desejar, ansiar por ela. Também, não pode ser encontrada medi-
ante a criação de uma imagem do que pensais ser ela. Para encon-
trar-se com ela, a mente tem de aprender a olhar a vida, esse
vasto movimento não sujeito ao tempo, porque a liberdade reside
além do campo da consciência.
Liberte-se do passado - 1969
185
verá temor e a inevitabilidade da morte. Podemos penetrar nesta
questão seriamente não só em forma verbal, teórica, mas tam-
bém investigá-la olhando-a realmente dentro de nós mesmos e
nos perguntando por que existe esta divisão que engendra tanta
desdita, confusão e conflito?
186
187
ro das coisas de que dependeis que não possais imaginar a possi-
bilidade de perdê-las - o amor de vossos filhos, e o conforto que
ele proporciona. Todavia, o medo continua existente. Portanto,
deve ficar-nos bem claro que qualquer forma de dependência
psicológica gera inevitavelmente medo, ainda que as coisas de
que dependemos possam parecer-nos quase indestrutíveis. O
medo se origina dessa insuficiência interior, dessa pobreza e vazio
interiores. Assim, estais vendo que temos agora três questões: a
sensibilidade, a dependência e o medo? Três coisas relacionadas
entre si. Consideremos a sensibilidade: Quanto mais sensível a
pessoa (a menos que saiba ser sensível sem dependência, saiba
ser vulnerável, sem angústia), tanto mais depende. Agora, a de-
pendência: Quanto mais a pessoa depende, tanto maior o seu
desprazer e a necessidade de libertar-se. Essa necessidade de
liberdade dá mais força ao medo, porque é uma reação, e não
libertação da dependência.
Interrogante: E vós - dependeis de alguma coisa?
Krishnamurti: Decerto, fisicamente dependo de alimenta-
ção, roupas e morada, mas, psicologicamente, interiormente, não
dependo de coisa alguma - nem de deuses, nem da moralidade
social, nem de crenças, nem de pessoas. Mas, não é relevante
saber se eu sou ou não sou dependente. Portanto, continuemos.
O medo é o percebimento de nosso vazio, de nossa solidão e po-
breza interiores, e de não haver possibilidade de fazermos alguma
coisa a tal respeito. O que nos interessa aqui é só esse medo que
gera a dependência e, por sua vez, é aumentado pela dependên-
cia. Se compreendemos o medo, compreendemos também a de-
pendência. Portanto, para compreendermos o medo, é indispen-
sável a sensibilidade, para descobrirmos, percebermos como ele
se origina. Se o indivíduo é suficientemente sensível, torna-se
cônscio de sua medonha vacuidade - desse abismo sem fundo que
não se pode encher com o vulgar entretenimento das drogas, nem
com o entretenimento das igrejas ou das diversões sociais; nada o
preencherá. Sabendo-se disso, cresce o medo. Este nos impele à
dependência, a esta dependência torna-nos cada vez mais insen-
síveis. E, vendo que assim é realmente, sentimos medo. A ques-
188
tão, pois, agora, é de ultrapassarmos esse vazio, essa solidão, e
não de aprendermos a depender de nós mesmos, ou de disfar-
çarmos permanentemente o nosso vazio.
Interrogante: Porque dizeis que a questão não é de de-
pendermos de nós mesmos?
Krishnamurti: Porque, dependendo de vós mesmo, per-
deis a sensibilidade; vos tornais endurecido, indiferente e "fecha-
do". Viver sem dependência, ultrapassar a dependência, não signi-
fica tornar-se dependente de si próprio. Pode a mente enfrentar
aquele vazio e com ele viver, sem fugir em direção alguma?
Interrogante: Eu enlouqueceria, só de pensar em viver
com ele para sempre.
Krishnamurti: Todo movimento para nos afastarmos des-
se vazio é uma fuga. E essa fuga de uma coisa, essa fuga de "o que
é" é medo. O medo é a fuga a alguma coisa. "O que é" não é o
medo, a fuga é que é o medo, e esta fuga é que poderá enlouque-
cer-vos, e não o próprio vazio. Que é, pois, esse vazio, essa soli-
dão? Como surge ele? Ele surge, decerto, por causa da medição e
comparação. Comparo-me com o santo, o Mestre, o grande músi-
co, o erudito, o homem que se "realizou". Nessa comparação,
vejo-me incompleto, insuficiente; não tenho talento, sou inferior,
não me "realizei"; eu não sou, e aquele homem é. Assim, em con-
sequência do medir e comparar, vem-nos o horrível sentimento
de vacuidade, de sermos "nada". E a fuga a esse vácuo é medo. E
o medo nos impede de compreender esse abismo sem fundo. E
uma neurose que de si própria se nutre. E, também, a medida, a
comparação, é a essência mesma da dependência. Eis-nos, pois,
de volta à dependência; um círculo vicioso.
Interrogante: Percorremos uma longa distância nesta
nossa palestra, e as coisas se tornaram mais claras. Há dependên-
cia; é possível não dependermos? Sim, acho que é possível. Em
seguida o medo; é possível não fugirmos de maneira nenhuma ao
vazio, isto é, não fugirmos por medo? Sim, creio-o possível. Isso
significa que ficamos com o vazio. E, então, possível enfrentar
esse vazio, já que deixamos de fugir dele por medo? Sim, creio-o
possível. E, por último, é possível não medir, não comparar? Por-
189
que, se chegamos até este ponto - e acho que chegamos - resta-
nos então, unicamente, o vazio, e vemos que ele é o resultado de
comparação. E vemos, também, que a dependência e o medo
provêm desse vazio. Temos, pois, a comparação, o vazio, o medo,
a dependência. Posso realmente viver uma vida isenta de compa-
ração, de medida?
Krishnamurti: Naturalmente, tendes de tirar medidas para
colocar um tapete no soalho!
Interrogante: Sim. Quero dizer: Posso viver sem compara-
ção psicológica?
Krishnamurti: Sabeis o que significa viver sem compara-
ção psicológica, quando em toda a vossa vida fostes condicionado
para comparar - na escola, nos jogos, na universidade, no escritó-
rio? Tudo é comparação. Viver sem comparação! Sabeis o que isso
significa? Significa que não há dependermos de outros nem de
nós mesmos, não há buscar nem indagar; por conseguinte, signifi-
ca - amar. O amor desconhece a comparação e, portanto, o amor
desconhece o medo. O amor não tem consciência de si próprio
como "amor"; porque a palavra não é a coisa.
197
"Estais dizendo que devo largar o meu guru? Abandonar
tudo o que ele me ensinou? Eu me perderia."
Mas, não tendes de perder-vos, para descobrir? Nós te-
mos medo de perder-nos, de ficarmos na incerteza, e por isso
vivemos a correr atrás dos que prometem o céu, no campo religi-
oso, político ou social. Por conseguinte, eles estão em verdade
incentivando o medo e nos conservando prisioneiros desse medo.
"Mas eu posso andar só?" - perguntou com voz incrédula.
Têm aparecido tantos salvadores, mestres, gurus, líderes
políticos e filósofos, e nem um só deles vos salvou de vossa aflição
e conflito. Porque os seguis? Talvez haja uma maneira completa-
mente diferente de considerarmos os nossos problemas.
"Mas eu tenho a seriedade necessária para empenhar-me,
desajudado, nesse trabalho?"
Essa seriedade só a temos quando começamos a compre-
ender - sem a ajuda de ninguém - os prazeres que ora buscamos.
Estais vivendo no nível do prazer. Não digo que não deva haver
prazer, mas se essa busca de prazer é para vós tudo na vida, do
começo ao fim, então, obviamente, não podeis ser um homem
sério.
"Estais-me fazendo sentir desamparado e sem esperança".
Se vos sentis desesperançado, é porque desejais as duas
coisas. Desejais ser sério e desejais também todos os prazeres que
o mundo pode dar-vos. Esses prazeres, afinal, são tão insignifican-
tes que desejais acrescentar-lhes o prazer que chamais "Deus".
Quando virdes tudo isso, por vós mesmo e não de acordo com
outrem, então esse ver vos fará discípulo e mestre. Este é que é o
ponto mais importante. Sois então o mestre, o discípulo e o ensi-
no.
"Mas", alegou, "vós sois um guru. Nesta manhã me ensi-
nastes uma coisa, e aceito-vos como meu guru."
Nada foi ensinado; vós é que olhastes. O olhar vos mos-
trou. O olhar é vosso guru, se gostais da palavra. Mas a vós é que
compete olhar ou não olhar. Ninguém pode forçar-vos. Entretan-
to, se olhais porque desejais uma recompensa ou porque temeis
um castigo, esse motivo impede o olhar. Para ver, deveis estar
198
livre de toda autoridade, tradição, medo, e do pensamento, com
suas sutilezas. A verdade não se encontra em alguma paragem
remota; ela se encontra no olhar o que é. Vermos a nós mesmos
tais como somos - com aquele percebimento em que não entra a
escolha - é o começo e o fim de toda busca.
206
"Nesse caso, tem-se também de rejeitar a tradição... Vós a
rejeitais?"
Transportar o passado para o presente, traduzir o movi-
mento do presente em conformidade com o passado, destrói a
beleza viva do presente. Este país, como quase todos os outros
países, está carregado de tradição, aninhada em palácios e na
choupana da aldeia. Não há nada de sagrado na tradição, por mais
antiga ou moderna que seja. O cérebro contêm a memória de
ontem, que é tradição, e teme largá-la por não ser capaz de en-
frentar qualquer coisa nova. A tradição se torna nossa proteção, e,
quando em segurança, a mente está a decompor-se. Temos de
empreender a viagem sem levar cargas, folgadamente, descansa-
damente, sem nunca nos determos diante de um santuário, de
nenhum monumento, de nenhum herói, social ou religioso - na só
companhia da beleza e do amor.
"Mas nós, os monges, estamos sempre sós, não é verda-
de?" perguntou. "Renunciei ao mundo e fiz voto de pobreza e cas-
tidade."
Vós não estais só, senhor, porque o próprio voto vos está
inibindo, tal como inibe o homem que faz igual voto ao casar-se.
Deixai-me assinalar que não estais só, porque sois hinduísta, assim
como não estaríeis só se fôsseis budista, ou maometano, ou cris-
tão, ou comunista. Assumistes um compromisso, e como pode
estar só um homem que se comprometeu, que se entregou intei-
ramente a uma certa ideia, a qual produz sua atividade própria? A
própria palavra "só" significa o que está dizendo: livre de influên-
cia, inocente, livre e integral - não fracionado. Quando um homem
está só, pode viver neste mundo, mas será sempre um forasteiro.
Apenas nessa solitude pode haver ação completa e cooperação;
porque o amor é sempre integral.
A outra margem do caminho -1970
207
[...] “A DEPENDÊNCIA de qualquer forma de imaginação
subjetiva, fantasia ou conhecimento, gera o medo e destrói a li-
berdade.”
Temos muitos assuntos para considerar, mas, em primeiro
lugar, cumpre-nos examinar a fundo o que é liberdade. Se não
compreenderdes a liberdade, não apenas externamente, mas
sobretudo interiormente; se não a compreenderdes profunda e
seriamente, não apenas com o intelecto, porém sentindo-a deve-
ras, o que vamos dizer pouco significará.
Já estivemos considerando a natureza da mente. É a men-
te séria que vive verdadeiramente, que conhece a alegria de viver
— e não aquela que anda meramente em busca de entretenimen-
tos, de satisfação e preenchimento próprio. A liberdade requer o
repúdio total, a total negação de toda autoridade interna, psicoló-
gica. A geração mais jovem pensa que liberdade é cuspir no rosto
do policial, cada um fazer o que quer. Mas, a rejeição da autorida-
de externa não significa necessariamente que se está completa-
mente livre de toda autoridade interior, psicológica. Quando
compreendemos a autoridade interior, a mente e o coração ficam
total e inteiramente livres; estamos então habilitados a compre-
ender a ação externa da liberdade. A liberdade de ação no exteri-
or depende por inteiro de uma mente livre da autoridade interna.
Esta questão exige uma grande soma de paciente investigação e
reflexão. É uma questão de primacial importância; compreendida
ela, estaremos aptos a considerar outras coisas da vida e do viver
diário com uma mente de todo nova. Conforme o dicionário, a
palavra “autoridade” deriva de “autor”: “aquele que lança uma
ideia original, que cria alguma coisa inteiramente nova”. Esse ho-
mem estabelece um padrão, um sistema baseado em suas ideias;
outros seguem tal sistema, nele encontrando uma certa satisfa-
ção. Ou inicia um novo modo de vida religiosa, que outros seguem
cegamente, ou intelectualmente. Eis como se estabelecem os
padrões ou maneiras de vida e de conduta política, psicológica —
externamente e interiormente. A mente, em geral muito pregui-
çosa e indolente, acha mais fácil seguir o que um outro disse. O
seguidor aceita a “autoridade”, a fim de alcançar o que promete o
208
seu sistema de filosofia ou de ideias; a esse sistema se apega, dele
fica dependendo e, dessa maneira, confirma a autoridade. O se-
guidor, pois, é um ente humano sem originalidade; assim é a mai-
oria das pessoas. Poderão pensar que têm ideias originais, na pin-
tura, na literatura, etc., mas, essencialmente, já que estão condi-
cionados para seguir, imitar, ajustar-se, tornaram-se entes huma-
nos “de segunda mão”, entes humanos absurdos. Este é um dos
aspectos da natureza destrutiva da autoridade.
Como ente humano, estais seguindo alguém, psicologica-
mente? Não nos referimos à obediência externa, à observância da
lei; mas, interiormente, psicologicamente, estais seguindo al-
guém? Se estais, nesse caso sois essencialmente um ente sem
originalidade; podeis praticar boas obras, viver de maneira muito
útil, mas essa vida pouco significa.
Há também a autoridade da tradição. Tradição significa:
“transportar do passado para o presente” — tradição religiosa,
tradição familiar, tradição racial. E há a tradição da memória. Vê-
se que seguir a tradição em certos níveis tem valor; noutros níveis
não tem valor algum. As boas maneiras, a cortesia, a considera-
ção, nascidas do estado de vigilância da mente, podem converter-
se gradualmente em tradição; uma vez fixado o padrão, a mente o
repete: abrir a porta a outrem, ser pontual às refeições, etc. Mas,
tendo-se tornado tradição, esses atos já não procedem do estado
de vigilância, de penetrante percepção, de lucidez. A mente que
cultivou a memória funciona com base na tradição; qual um com-
putador, repete sem cessar as mesmas coisas. Jamais pode perce-
ber uma coisa nova, ouvir uma coisa de maneira totalmente dife-
rente. Nossos cérebros são como gravadores de fitas: certas me-
mórias vêm sendo cultivadas há séculos e não fazemos outra coisa
senão repeti-las. Em meio ao barulho dessa repetição, não pode-
mos escutar nada novo. Assim, perguntamos “Que devo fazer?”,
“Como posso libertar-me do velho mecanismo, da fita velha?”. O
novo só pode ser ouvido quando a fita velha silencia de todo, sem
nenhum esforço de nossa parte; quando somos sérios e, por con-
seguinte, temos interesse em descobrir, prestar atenção.
209
Temos, pois, a autoridade de outrem, de quem depende-
mos, a autoridade da tradição, e a autoridade da experiência pas-
sada, como memória, como conhecimento. Há também a autori-
dade da experiência presente, que reconhecemos com base nos
conhecimentos acumulados no passado; e tal experiência, visto
que pode ser reconhecida, não é coisa nova. Como pode uma
mente, um cérebro que foi tão condicionado pela autoridade, pela
imitação, pelo ajustamento, escutar uma coisa inteiramente no-
va? Como se pode ver a beleza do dia, com a mente, o coração e o
cérebro obscurecidos pelo passado, como autoridade? Se puder-
mos perceber realmente o fato de que a mente está transportan-
do a carga do passado e foi condicionada pela autoridade, sob
várias formas; de que ela não é livre, sendo portanto incapaz de
ver totalmente — deixaremos, então, de lado o passado, sem
nenhum esforço.
A liberdade requer a total cessação de toda autoridade in-
terna. Desse estado mental resulta uma liberdade externa toda
diferente da reação de oposição ou de resistência. O que estamos
dizendo é, em verdade, muito simples e, justamente por causa
dessa simplicidade, pode escapar à vossa apreensão. A mente, o
cérebro está condicionado por causa da autoridade, da imitação,
da obediência; eis um fato. O homem realmente livre não reco-
nhece nenhuma autoridade interior; esse homem sabe o que é
amar e meditar.
Compreendendo-se a liberdade, compreende-se também
o que é disciplina. Esta poderá parecer uma asserção contraditó-
ria, porque em geral pensamos que liberdade significa estar livre
de toda disciplina. Qual a natureza da mente bem disciplinada?
Não pode existir liberdade sem disciplina; mas isso não significa
que devemos primeiro disciplinar-nos para, depois, termos liber-
dade. A liberdade e a disciplina se acompanham sempre, não são
coisas separadas. Assim, que significa “disciplina”? Conforme o
dicionário, a palavra “disciplina” significa aprender — e não, for-
çarmos a mente a ajustar-se a um certo padrão de ação baseado
em alguma ideologia ou crença. A mente capaz de aprender é
toda diferente daquela que só é capaz de ajustar-se. A mente que
210
está aprendendo, observando, vendo realmente o que é, não está
interpretando o que é em conformidade com seus desejos, seu
condicionamento, seus particulares prazeres.
Disciplina não significa reprimir e controlar, nem tampou-
co ajustamento a um padrão ou a uma ideologia; significa que a
mente vê o que é e aprende de o que é. A mente é então sobre-
modo desperta, vigilante. “Disciplinar-se”, no sentido comum,
implica uma entidade que se está disciplinando em conformidade
com alguma coisa. Esse é um processo dualista. Digo entre mim:
“Preciso erguer-me cedo, todas as manhãs, e deixar de ser pregui-
çoso” ou “Não devo deixar-me encolerizar”; um processo dualista:
aquele que, por meio da vontade, procura determinar o que lhe
cumpre fazer, em oposição ao que realmente faz. Nesse estado há
conflito.
A disciplina imposta pelos pais, pela sociedade, pelas or-
ganizações religiosas, é ajustamento. Contra esse ajustamento
vem a revolta —o pai quer obrigar o filho a fazer certas coisas,
este se rebela, etc. — Tal é a vida baseada na obediência e no
ajustamento; e há o contrário: rejeitar o ajustamento, para fazer o
que se entende. Tratemos, pois, de descobrir qual a natureza da
mente que não se ajusta, que não imita, não segue, não obedece
e, contudo, é altamente disciplinada — “disciplinada”, no sentido
de que está constantemente aprendendo.
Disciplina é aprender, e não, ajustar-se. Ajustamento im-
plica que me comparo com outrem, medindo o que sou ou penso
que devia ser, em comparação com o herói, o santo, etc. Onde há
ajustamento, há necessariamente comparação — vede isso, por
favor. Descobri se sois capaz de viver sem comparação, quer dizer,
sem ajustamento. Desde a infância, somos condicionados para
comparar — “Seja como seu irmão, como sua tia-avó”, “Seja igual
ao santo”, “Siga Mao”. Na educação, comparamos: nas escolas
damos notas aos alunos e submetemo-los a exames. Não sabemos
o que significa viver sem comparar e sem competir e, portanto,
não agressivamente, não violentamente. Comparar-se com outro
é uma forma de agressão e uma forma de violência. Violência não
é só matar ou espancar alguém; é também espírito comparativo:
211
“Preciso ser igual a fulano”, ou “Preciso aperfeiçoar-me”. O aper-
feiçoamento próprio é a verdadeira antítese da liberdade e do
aprender. Descobri por vós mesmo uma maneira de viverdes sem
comparação, e vereis acontecer uma coisa maravilhosa. Se real-
mente vos tornardes vigilante, sem nenhuma escolha, vereis o
que significa viver sem comparação e nunca mais pronunciareis as
palavras “Eu serei”.
Somos escravos do verbo “ser”, que implica: “Serei no fu-
turo uma pessoa importante.” A comparação e o ajustamento
andam sempre juntos; nada criam senão repressão, conflito, in-
terminável sofrer. Importa, pois, descobrir uma maneira de viver,
em cada dia, sem nenhuma comparação. Fazei-o, e vereis como
isso é maravilhoso, como vos liberta de tantas das vossas cargas.
Desse percebimento nasce uma mente sobremodo sensível e,
portanto, disciplinada — que está constantemente aprendendo,
não o que deseja aprender ou o que lhe dá gosto e satisfação
aprender: aprendendo. Tornar-vos-eis, assim, cônscios do condi-
cionamento interior causado pela autoridade, pelo ajustamento a
um padrão, pela tradição e a propaganda, pelos ditos de outras
pessoas, e pela experiência acumulada, vossa própria e da raça e
da família. Tudo isso se tornou autoridade. Onde há autoridade, a
mente não será jamais livre para descobrir o que cumpre desco-
brir: uma realidade eterna, inteiramente nova.
A mente sensível não está limitada por nenhum padrão fi-
xo; acha-se em constante movimento, a fluir como um rio, e nesse
movimento constante não há repressão, não há obediência, não
há desejo de preenchimento. Muito importa compreender clara-
mente, com seriedade e profundeza, a natureza da mente que é
livre e, portanto, verdadeiramente religiosa. A mente livre vê que
qualquer espécie de dependência — de pessoas, de amigos, do
marido ou da esposa, das ideias, da autoridade, etc. — gera me-
do: esta é a origem do medo. Se de vós dependo para ter confor-
to, ou como meio de fuga à minha solidão e fealdade, minha su-
perficialidade e insignificância, essa dependência causa medo. A
dependência de qualquer forma de imaginação subjetiva, fantasia
ou conhecimento, gera medo e destrói a liberdade.
212
Ao perceberdes todas as implicações, isto é, que não há
liberdade quando há dependência interior e, por conseguinte,
medo; e que só uma mente confusa e sem luz é dependente, per-
guntais: “De que maneira posso livrar-me da dependência?” E aí
está mais uma causa de conflito. Já se observardes que a pessoa
dependente está necessariamente confusa; se conhecerdes esta
verdade, que a pessoa que interiormente depende de qualquer
autoridade só pode criar confusão; se perceberdes isso e não per-
guntardes de que maneira podeis livrar-vos da confusão, então
deixareis de depender. Vossa mente se tornará sobremodo sensí-
vel e, portanto, capaz de aprender e de disciplinar a si própria sem
nenhuma espécie de compulsão ou de ajustamento.
Está mais ou menos claro tudo isso — não verbalmente,
porém de fato? Posso imaginar ou pensar que estou vendo clara-
mente, mas essa claridade é de breve duração. A verdadeira e
clara percepção só se torna possível quando não há dependência
e, por conseguinte, não há a confusão oriunda do medo. Podeis,
honesta e seriamente, aplicar-vos a descobrir se estais livre de
qualquer autoridade? Isso requer muita investigação de vós mes-
mo, atenta vigilância. Daquela percepção clara provém uma ação
de espécie totalmente diversa, ação não fragmentária, não dividi-
da, política ou religiosamente; eis a ação total.
216
Krishnamurti: Por favor, não vos precipiteis. Ides seguindo
passo a passo. Quem é que está cônscio do vazio? A mente? Uma
parte da mente cônscia de outra parte que está só? Compreendeis
esta pergunta? Torno-me subitamente cônscio de que estou só. É
um fragmento de minha mente que diz “Estou só”? Então, há divi-
são. E, enquanto houver divisão, haverá fuga. Não percebeis isso?
Interrogante: Que sucede quando se experimenta o va-
zio? Ao experimentar-se a solidão, já não se está cônscio dela.
Krishnamurti: Tende a bondade de escutar, senhor. O que
se requer aqui é a observação persistente, e não uma conclusão
ou alguma coisa que achais que “devia ser”. Isto é, estou cônscio
de meu vazio; antes eu o escondia, agora ele foi desnudado e dele
estou cônscio. Quem está cônscio dele? Um segmento separado,
de minha mente? Se é, há então divisão entre o vazio e a entidade
que está percebendo o seu vazio. Que sucede, então, nesse vazio,
nessa divisão? A esse respeito nada posso fazer. Mas, como quero
fazer alguma coisa, digo: “Preciso desfazer a divisão”, “preciso
experimentar o vazio”, “Preciso agir”. Enquanto houver divisão
entre o observador e a coisa observada, haverá contradição e, por
conseguinte, conflito. É isso que estais fazendo? Um segmento
separado, da mente, a observar um vazio que não faz parte de si
próprio? Qual é o caso? Senhores, vós tendes de responder a esta
pergunta. Se é uma parte que está observando, então, que parte é
essa?
Interrogante: A inteligência nascida da energia?
Krishnamurti: Não compliqueis a questão, já suficiente-
mente complexa. Não aduzais novas palavras. Minha pergunta é
muito simples. Perguntei: Ao vos tornardes cônscio desse vazio,
do qual estáveis fugindo por meio do apego, e dele não estais
fugindo agora, quem é que está cônscio? Cabe-vos descobri-lo.
Interrogante: Esse percebimento de estarmos vazios é
uma outra forma de fuga, e vemos que nada mais somos do que
todas essas coisas juntas.
Krishnamurti: Quando dizeis “Estou cônscio de meu va-
zio”, isso é outra forma de fuga e ficais emaranhado numa rede de
fugas. Assim é nossa vida. Se percebeis que apego é fuga, aban-
217
donais o apego. Quereis continuar andando de um meio de fuga
para outro? Ou, vendo um só fator da fuga, compreendestes to-
dos os demais fatores?
223
tos. Devo fazê-lo pouco a pouco, ou há uma maneira de ver toda a
trama instantaneamente? Respondei-me, por favor.
Interrogante: A estrutura dos hábitos se compõe de duas
partes...
Krishnamurti: Duas partes: os hábitos e o observador
ocupado com esses hábitos. E o observador é também um hábito.
São, portanto, dois hábitos. Estou tamborilando com os dedos e a
observação desse hábito vem de uma entidade que é também o
resultado de hábitos. Tudo hábito! Assim, senhores, como ireis
ajudar-me, ensinar-me, fazer-me aprender a esse respeito?
Interrogante: Minha vida é toda de hábito; minha mente
é um hábito; é o estado de minha mente que tenho de mudar.
Krishnamurti: Quem é o “eu” que vai mudá-lo? O “eu” é
também um hábito, o “eu” é uma série de palavras, memórias e
conhecimentos, vindos do passado, também um hábito.
Interrogante: Já que estamos completamente enredados
em hábitos, é óbvio que não sabemos.
Krishnamurti: Então, porque não dizeis logo: “Não sei” —
em vez de ficardes jogando com palavras? Se não sabeis, vamos
então aprender juntos. Mas, primeiro, tende certeza de que “não
sabeis”; e não citeis ninguém. Estamos preparados para dizer “Re-
almente, não sei”?
Interrogante: Mas, porque é que temos esses hábitos?
Krishnamurti: Isso é bastante simples. Se tenho uma dúzia
de hábitos — levantar-me todas as manhãs às oito horas, ir para o
escritório, voltar a casa às seis, tomar um “gole”, etc. — não tenho
necessidade de pensar muito, de estar muito desperto. A mente
gosta de funcionar dentro de canais, de hábitos, porque, assim, se
sente abrigada, em segurança. Isto não requer muita explicação.
Ora, como pode a mente observar toda a rede dos hábitos?
Interrogante: Talvez prestando atenção em todos os mo-
mentos, enquanto nossas energias o permitirem.
Krishnamurti: Estais vendo? — isso é uma pura ideia. Não
me interessam ideias. Senhor, dissestes uma coisa: Se a mente for
capaz de ver toda a estrutura e a natureza do mecanismo do hábi-
224
to, poderá haver uma ação de espécie diferente. É isso que esta-
mos investigando; posso examiná-lo? Façamos juntos esse exame.
Como pode a mente, que inclui o cérebro, ver uma coisa
totalmente? — não apenas o hábito: qualquer coisa? Nós vemos
as coisas fragmentariamente, não é verdade? Trabalho, família,
comunidade, indivíduos, minha opinião, vossa opinião, meu Deus,
vosso Deus — tudo vemos em fragmentos. Não é um fato isto?
Estais cônscio dele? Se só se vê fragmentariamente, não há possi-
bilidade de ver-se a totalidade. Se vejo a vida em fragmentos,
porque minha mente está condicionada, é claro que não posso ver
a totalidade do ente humano. Se me separo, por causa de minha
ambição, de meus preconceitos pessoais, não posso ver o todo.
Estou bem cônscio de estar olhando a vida parcialmente — “eu” e
“não eu”, “nós” e “eles”? É assim que olho a vida? Se é, então,
naturalmente, não posso ver coisa alguma totalmente. Apresenta-
se, assim, a questão: Como pode a mente, tão enredada que está
nesse hábito de ver e agir fragmentariamente, ver o todo? Claro
que não pode. Se estou todo interessado em meu próprio preen-
chimento, na realização de minha ambição, no competir e no meu
desejo de sucesso, não posso ver a humanidade no seu todo. As-
sim, que me cumpre fazer? O desejo de me preencher, de ser uma
notabilidade, de realizar alguma coisa importante, é um hábito —
um hábito social e bem assim um hábito que me dá prazer. Se
ando pela rua, e todos me olham e apontam: “Lá vai ele!” — isso
me dá um enorme prazer. Enquanto a mente continuar a operar
nesse campo da fragmentação, é óbvio, não poderá ver o todo.
Agora, o que pergunto é isto: “Que pode fazer a mente que está
funcionando em fragmentos e percebe que não tem nenhuma
possibilidade de ver o todo? Terá de analisar e compreender cada
fragmento? Isso levará uma eternidade. Estais aguardando uma
resposta deste orador?
Interrogante: Há necessidade de silêncio total.
Krishnamurti: Lá está ele citando alguém!(*)
Interrogante: Se pudéssemos ver, agora mesmo, todos os
nossos hábitos, tais como realmente são, e ver o processo que nos
está impedindo de vê-los realmente, neste instante...
225
Krishnamurti: Não é isso o que estamos fazendo? Não es-
tais indo para diante, mas voltando para trás repetidamente. Nes-
te momento, estou a tamborilar com os dedos, a escutar de boca
aberta o que se diz, e vejo que isso é um hábito. E o que pergunto
é isto: Posso compreender, agora mesmo, todo o mecanismo do
hábito? Não estais prestando atenção. Ora, senhor, a mente que
está em fragmentos não pode de modo nenhum ver o todo. As-
sim, pego um determinado hábito e, aprendendo a respeito desse
hábito, percebo o inteiro mecanismo de todos os hábitos. Que
hábito podemos considerar?
Interrogante: Fumar...
Krishnamurti: Está bem. Eu não estou analisando; com-
preendeis a diferença entre análise e observação? Análise implica
a entidade que analisa, e as coisas que vão ser analisadas. A coisa
a analisar é o hábito de fumar e, para analisá-la, há necessidade
de um analista. A diferença entre análise e observação é esta:
observar é ver diretamente, sem análise, ver sem o observador,
ver o vestido vermelho, cor-de-rosa ou preto, tal qual é, sem dizer
“não gosto”. Só há observação. Entendeis? No ver, não há obser-
vador. Vejo a cor vermelha e não há “gostar” nem “não gostar”. A
análise implica: “Não gosto do vermelho porque minha mãe, que
brigava muito com o meu pai. . A análise levou o que estou anali-
sando para os dias de minha infância. A análise, portanto, requer
um analista. Por favor, procurai perceber a divisão entre o analista
e a coisa analisada. Na observação, não há separação: há observa-
ção sem o “censor’’, sem se dizer “gosto”, “não gosto”, “isto é
belo”, “aquilo não é belo”, “isto é meu”, “aquilo não é meu”. Eis o
que vos cabe fazer, em vez de vos limitardes a tecer teorias a res-
peito do assunto. Então, descobrireis!
Como disse, não estamos analisando, porém simplesmen-
te observando o hábito de fumar. Observando-o, que é que se
revela? — não peço vossa interpretação do que se revela. Perce-
beis a diferença? Não há interpretação, não há tradução, não há
justificação, não há condenação. Que revela o hábito de fumar?
Interrogante: Revela que estamos enchendo os pulmões
de fumaça.
226
Krishnamurti: Sim, isso é um fato. Em segundo lugar, que
vos diz esse fato? Ele vos “contará a história” do hábito de fumar,
se vos abstiverdes de interpretar. Se puderdes “escutar”, se pu-
derdes observar o hábito de fumar, o quadro que observardes vos
dirá tudo. Ora, que vos revela esse hábito? — que estais enchen-
do de fumaça os pulmões. Que mais?
Interrogante: Que dependemos dele.
Krishnamurti: Revela-vos que estais na dependência de
uma erva.
Interrogante: E que, interiormente, estamos vazios.
Krishnamurti: Essa é vossa tradução. Que é que o hábito
vos revela — a vós?
Interrogante: Vejo que é apenas uma ação mecânica, que
pratico automaticamente, sem pensar.
Krishnamurti: Revela-vos que estais fazendo maquinal-
mente uma certa coisa. Revela-vos que, a primeira vez que fumas-
tes, vos sentistes mal; achastes desagradável fumar, mas, vendo
outras pessoas fumarem, continuastes a fazê-lo. Agora, isso se
tornou um hábito.
Interrogante: Não nos revela também que, de certo mo-
do, ele nos tranquiliza?
Krishnamurti: Revela-vos que ele vos faz dormir, ajuda-
vos a narcotizar-vos, acalma-vos os nervos, tira-vos o apetite, não
vos deixando engordar demais.
Interrogante: Revela-nos que estamos aborrecidos da vi-
da.
Krishnamurti: Demonstra-vos que ele vos põe à vontade,
quando travais conhecimento com certas pessoas, se vos sentis
nervoso. Muita coisa pode ele revelar.
Interrogante: Mostra-me que estou desatento.
Krishnamurti: Essa é vossa tradução; ele não vos está di-
zendo que sois desatento.
Interrogante: Proporciona-me uma certa satisfação, prin-
cipalmente depois do jantar.
Krishnamurti: Sim, ele vos ajuda, vos está dizendo tudo is-
so. E, porque fazeis essa coisa? Escutai, senhor, não me respon-
227
dais tão apressadamente, por favor. Porque é que estais aceitan-
do tudo o que ele vos revelou? A televisão vos diz o que deveis
saber, que marca de sabonete usar, etc. etc. Conheceis bem esses
anúncios. A todas as horas vos estão dizendo alguma coisa — por-
que a aceitais? Os livros sagrados vos dizem o que deveis e o que
não deveis fazer. Porque aceitais a propaganda das igrejas ou dos
políticos?
Interrogante: Porque é mais fácil seguir um sistema.
Krishnamurti: Porque o seguis? Porque necessitais de se-
gurança; da companhia de outros; porque desejais ser igual aos
demais? Isso significa que tendes medo de não ser igual aos ou-
tros. Quereis ser igual a todos os demais porque nisso achais per-
feita segurança. Se não sois católico num país católico, encontrais
muitas dificuldades. Se estais num país comunista, e não seguis a
linha do partido, encontrareis também dificuldades. Vejo, agora, o
que revelou o quadro desse hábito (o fumo) e porque nele estou
enredado: a relação entre mim e o cigarro. Assim é o hábito, tal é
a maneira como está funcionando minha mente inteira. Faço uma
certa coisa porque ela me dá segurança. Contraio um hábito —
trivial ou importante — porque ele me dispensa de pensar no que
estou fazendo. Assim, a mente considera seguro funcionar na
rede dos hábitos. Estou vendo todo o mecanismo da formação
dos hábitos. Por meio do hábito de fumar, descobri todo o pa-
drão, descobri o mecanismo que está produzindo os hábitos.
Interrogante: Não compreendo bem como, “escutando”
um só hábito, posso ver todo o mecanismo do hábito.
Krishnamurti: Eu vo-lo mostrei. O hábito implica estarmos
funcionando mecanicamente e, pela observação do hábito mecâ-
nico de fumar, percebo como a mente funciona numa rede de
hábitos.
Interrogante: Mas, são mecânicos todos os hábitos?
Krishnamurti: Têm de ser; se usamos a palavra “hábito”,
ela indica necessariamente uma coisa mecânica.
Interrogante: Não há formas de dependência mais pro-
fundas do que os meros hábitos mecânicos?
228
Krishnamurti: Se se usa a palavra “hábito”, ela implica re-
petição mecânica; formar um hábito significa fazer a mesma coisa
vezes sobre vezes. Assim, não há “bom hábito” nem “mau hábi-
to”: estamos interessados unicamente no hábito.
Interrogante: Se, por exemplo, tenho o hábito do poder,
ou o hábito do conforto, ou o hábito da propriedade, isso não é
uma coisa mais profunda do que o mero hábito mecânico?
Krishnamurti: O “hábito do poder”, a necessidade de po-
der, posição, domínio, agressão, violência — tudo isso está impli-
cado no desejo de poder. Fazer o que se quer, como uma criança,
ou um adulto — isso se tornou um hábito.
Interrogante: Ou, necessitando de segurança...
Krishnamurti: Eu já disse que o hábito proporciona segu-
rança, etc. Examinando aquele hábito (fumar), vi que todos os
hábitos se baseiam na necessidade de segurança. Uma vez que os
hábitos são mecânicos, “repetitivos”, quando digo “Desejo ser um
grande homem”, caí na rede, porque nesse hábito encontro segu-
rança, e é isto que estou buscando. No fundo (não estamos consi-
derando os hábitos bons ou maus, mas, tão-só, o hábito), no fun-
do todos os hábitos são mecânicos. Tudo o que faço repetidamen-
te, o que significa fazer a mesma coisa de ontem para hoje, de
hoje para amanha, é necessariamente mecânico. Certas ações
mecânicas podem ter um pouco mais de “polimento”, não sofrer
atritos, mas são sempre hábitos, coisas repetidas, como é bem
óbvio.
Interrogante: Diríeis que certas atividades criadoras são
hábitos?
Krishnamurti: Respondamos a esta pergunta: Pode-se di-
zer que a atividade criadora é um hábito?
Interrogante: A ação criadora implica vigor; não se faz es-
forço para ser criador.
Krishnamurti: Estais dizendo isso porque sois “criador”, ou
estais apenas conjecturando? Temos de perguntar o que enten-
deis por “atividade criadora”. Esta pergunta é importantíssima, e
vós a desconsiderais. Pintais um quadro: ou o fazeis porque amais
a arte, ou porque ela vos dá dinheiro, ou porque desejais desco-
229
brir uma maneira original de pintar, etc. Que significa “ser cria-
dor”? Um homem que escreve um poema porque não pode su-
portar sua mulher ou a sociedade, é criador esse homem? O ho-
mem que está apegado ao seu violino, porque com ele ganha rios
de dinheiro, é criador? E aquele que, vendo-se num estado de
grande tensão interior, escreve dramas que o mundo aplaude —
chamaríeis a esse homem “criador”? O homem que bebe e, no
estado de embriaguez, escreve uma maravilhosa poesia, cheia de
ritmo — é criador?
Interrogante: Como podeis julgar?
Krishnamurti: Eu não julgo.
Interrogante: Mas vós suscitastes esta questão. Se digo
que alguém é ou não é criador, estou julgando.
Krishnamurti: Eu não estou julgando, senhor; estou per-
guntando, estou aprendendo. Observo as pessoas que escrevem
livros, que compõem poemas ou dramas, que tocam violino. Vejo
o fato à minha frente, não digo “isto é bom” ou “isto é mau”; per-
gunto: Que é atividade criadora? No momento em que digo “Isto
é bom”, acabou-se, não posso aprender. E eu quero aprender,
quero descobrir o que significa “ser criador”.
Interrogante: Talvez signifique ser dotado de uma certa e
“inocente” capacidade de apreender o todo...
Krishnamurti: Não sei; talvez. Eu quero descobrir, quero
aprender.
Interrogante: Significa estar desperto, vivo.
Krishnamurti: Vou ao museu, vejo todos os quadros, ad-
miro-os, comparo-os entre si e digo: “Que gênios criadores!” Por
isso, quero averiguar o que significa “ser criador”. Preciso compor
uma poesia, pintar um quadro, escrever um drama, para ser cria-
dor? Isto é, a potência de criar exige expressão? Tende a bondade
de escutar atentamente. A mulher que coze pão, numa cozinha
sufocante, é criadora?
Interrogante: Em geral chamamos “criadoras” a tais ativi-
dades.
Krishnamurti: Estou interrogando. Não digo que não se-
jam; não sei; quero aprender.
230
Interrogante: Se faço pão, sem nunca o ter feito na minha
vida, sou criador.
Krishnamurti: Eu vos estou perguntando, senhor, o que é
atividade criadora.
Interrogante: Nós somos “criadores” neste momento.
Krishnamurti: Não, não. Observando as atividades que o
homem costuma chamar “criadoras”, pergunto a mim mesmo:
Que é potência criadora? Ela necessita de expressão? — tal como
assar pão, pintar quadros, escrever dramas, ganhar dinheiro. Ela
exige expressão?
Interrogante: Sim, penso que somos criadores agora.
Krishnamurti: Não é esse o ponto essencial. O ponto é es-
te: Sois criador ou estais meramente a ouvir alguém que vos está
chamando a atenção para isso?
Interrogante: Penso que uma pessoa cria quando observa
não criticamente.
Krishnamurti: Não digais “penso'’. Vede, senhor, estou
apaixonadamente empenhado em descobrir.
Interrogante: No momento em que uma pessoa vê que
está apegada a certas coisas, nesse mesmo momento de ver ela
atua. Esse é o momento da criação.
Krishnamurti: Por conseguinte, estais dizendo “ver é agir,
e nesse momento há criação”. — Isso é uma definição.
Interrogante: Criação não é estar em harmonia com a Na-
tureza?
Krishnamurti: Vós estais em harmonia com a Natureza?
Não estais percebendo aonde quero chegar. Eu quero descobrir,
senhor, tenho fome; observei os grandes pintores, assisti a todos
os dramas célebres, etc., e pergunto: Que é criação? Que é ser
criador? Não deis uma definição. Eu quero aprender.
Interrogante: Fazer uma coisa nova é ser criador.
Krishnamurti: Que significa isso? Fazer uma coisa total-
mente nova e original, sem nenhuma decisão? Isso significa que o
passado deve terminar. Em vós, ele terminou? Ou estais mera-
mente a falar acerca de criação assim como falais acerca de um
livro? Se é isso, estou fora desse jogo. Quero aprender, estou
231
apaixonado, quero verter lágrimas nesse trabalho, nessa busca!
Um homem pode viver criadoramente, sem fazer nenhuma dessas
coisas, sem assar pão, sem pintar quadros, sem escrever um poe-
ma. Só podeis viver criadoramente quando vossa mente não está
fragmentada, quando não há medo, quando a mente está livre de
tudo o que vem do passado, livre do conhecido.
Interrogante: Para mim a criação não é uma coisa, é um
movimento.
Krishnamurti: Não “para vós”, senhor, nem “para mim” —
estais, todos vós, tornando a coisa pessoal. Criação não é uma
opinião. Estou com fome, e me estais enchendo de palavras. Isso
significa que vós não tendes fome. Ontem, depois de falar sobre o
apego, estive observando esse fato; a mente esteve vigilante o dia
todo, para ver se eu tinha apego a alguma coisa — a sentar-me
num estrado para discursar, falar a pessoas, a escrever; apego a
alguém, a ideias, a uma cadeira. Cumpre investigar, pois, investi-
gando, descobrem-se coisas extraordinárias, a beleza da liberda-
de, e do amor que nasce dessa liberdade. Quando se fala em cria-
ção isso significa uma mente que desconhece a agressão. Assim,
para compreendermos o mecanismo, a trama dos hábitos, temos
de estar vigilantes, penetrar o fato, fazê-lo circular em nossas
veias, fluir como aquele rio em movimento. Deixai que essa inves-
tigação vos conduza, através do dia, a maravilhosos descobrimen-
tos!
A questão do impossível - 1970
234
Estamos, a todas as horas, tendo experiências, das quais
estamos conscientes ou inconscientes. Cada experiência deixa
uma marca; dia após dia, essas marcas vão tomando forma e se
tornam a imagem. Alguém vos insulta, e neste momento está
formada a vossa imagem dessa pessoa. Ou alguém vos lisonjeia e,
mais uma vez, está formada a imagem. Assim, inevitavelmente,
cada reação produz uma imagem. E, tendo criado a imagem, po-
deis acabar com ela?
Para se pôr fim a uma imagem, deve-se primeiramente
descobrir como se torna ela existente: e sabemos que, se não
reagimos adequadamente a um desafio, ele deixa inevitavelmente
uma imagem. Se me chamais “idiota”, vos tornais imediatamente
meu inimigo, não gosto de vós. Quando me chamais idiota, devo,
nesse momento, estar intensamente cônscio, sem nenhuma esco-
lha, nenhuma condenação; escutar, apenas, o que dizeis. Se não
há nenhuma reação emocional ao que dizeis, nenhuma imagem se
forma.
Devemos, pois, estar cônscios da reação e não lhe dar
tempo para enraizar-se; porque, no momento em que a reação
lança raízes, forma-se a imagem. Sois capaz disso? O que se re-
quer é atenção. Não podeis passar pela vida a sonhar; ao ocorrer
um desafio, deveis prestar-lhe atenção com todo o vosso ser, es-
cutar com todo o coração e toda a mente, de modo que vejais
com clareza o que se está dizendo — seja um insulto, seja uma
lisonja, seja uma opinião, a vosso respeito. Vereis, então, que
nenhuma imagem se forma. A imagem é sempre do que sucedeu
no passado. Se é agradável, a ela nos apegamos. Se dolorosa, dela
queremos livrar-nos. Assim nasce o desejo: uma coisa desejamos
conservar, outra coisa queremos rejeitar; e o desejo produz confli-
to. Se vos tornardes bem cônscio disso, prestando-lhe atenção
sem nenhuma escolha, simplesmente observando, sereis então
capaz de descobrir por vós mesmo; não estareis, então, vivendo
de acordo com algum psicólogo, sacerdote ou doutor. Para des-
cobrirdes a verdade, deveis estar completamente livre, só. E “es-
tar só” é voltar às costas à sociedade.
235
Se vos observastes atentamente, tereis visto que uma par-
te de vosso cérebro, evolvida através de muitos milhares de anos,
é o passado; e o passado é experiência, memória. Nele se encon-
tra segurança. Espero estejais observando tudo isso em vós mes-
mo. O passado reage sempre imediatamente, e, retardar a reação
do passado, ao apresentar-se um desafio, de modo que haja um
intervalo entre o “desafio” e a “resposta”, é pôr fim à imagem. Se
isso não se fizer, ficaremos vivendo sempre no passado. Nós so-
mos o passado, e no passado não há liberdade. Eis, pois, a nossa
vida — uma constante batalha, o passado, modificado pelo pre-
sente, em marcha para o futuro, que é ainda o movimento do
passado, embora modificado. Enquanto existir esse movimento, o
homem não será livre, achar-se-á sempre num estado de conflito,
de sofrimento, confusão, aflição. Pode a reação do passado ser
retardada, de modo que não haja a imediata formação de uma
imagem?
Temos de olhar a vida tal como é, ver esta interminável
confusão e aflição, e a fuga desse estado para alguma superstição
religiosa ou o culto do Estado, ou para divertimentos de várias
espécies. Impende ver como fugimos para as neuroses — pois
uma neurose oferece uma extraordinária impressão de segurança.
O homem que crê é neurótico, e neurótico é também o que adora
uma imagem. Nestas neuroses encontra-se muita segurança. E a
segurança não faz operar-se uma radical revolução em nós mes-
mos. Para realizá-la, cumpre observar sem escolha, sem nenhuma
deformação causada pelo desejo, pelo prazer ou pelo medo. Te-
mos de observar o que realmente somos, sem nenhuma espécie
de fuga. E não deis nome ao que vedes: observai-o, apenas! Tereis
então a paixão, a energia necessária ao observar, e nesse observar
verifica-se uma extraordinária transformação.
Que é o amor? A seu respeito muito se fala: amor a Deus,
amor à humanidade, amor à Pátria, amor à família; todavia, o
estranho é que esse amor anda acompanhado do ódio. Amais ao
vosso Deus e odiais o deus de outrem, amais vossa pátria, vossa
família, mas estais contra a família de outrem, a pátria de outrem.
E, cada vez mais, em todas as partes do mundo, o amor está sen-
236
do associado ao sexo. Não estamos condenando, nem avaliando,
nem tampouco julgando: estamos apenas observando o que de
fato está sucedendo, e, se souberdes observá-lo, essa observação
vos dará uma energia extraordinária.
Que é amor? Que é compaixão? A palavra “compaixão”
significa paixão por todos, afeição para com todos os seres —
inclusive os animais que matais para comer. Olhemos primeira-
mente o que realmente é — não “o que deveria ser”, mas o que
realmente existe em nossa vida diária. Sabemos o que significa
amar, ou só conhecemos o prazer e o desejo, chamando-os
“amor”? É certo que o prazer e o desejo se acompanham também
de ternura, desvelo, afeição, etc., mas o amor é prazer, desejo?
Para a maioria de nós, é, evidentemente. Um homem depende de
sua esposa, ama sua esposa, mas se ela olha para outro homem,
fica enraivecido, sente-se frustrado, infeliz — e o epílogo é o tri-
bunal de divórcios. É isso que chamais “amor”; e se vossa esposa
morre, tomais outra esposa, tamanha é a dependência! Um ho-
mem nunca indaga por que razão depende psicologicamente de
outrem. Se examinardes bem isso, vereis quanto, bem no fundo
de vós mesmo, estais só, frustrado, quanto sois infeliz. Não sabeis
o que fazer com essa solidão, esse isolamento, que é uma forma
de suicídio. E, assim, não sabendo o que fazer, dependeis. Essa
dependência proporciona consolação, uma relação de compa-
nheirismo, mas, se esse companheirismo se altera ligeiramente,
ficais enciumado, furioso.
Mandaríeis vossos filhos à guerra, se os amásseis? Dar-
lhes-íeis a espécie de educação que agora estão recebendo, con-
sistente em prepará-los tecnicamente para obterem empregos,
passarem em exames, desprezando-se o todo desta vida maravi-
lhosa? Até os cinco anos de idade, tendes muitos desvelos para
com eles; depois, os jogais às feras. Eis o que chamais “amor”.
Existe amor, se há violência, ódio, antagonismos?
Assim, que fareis? Nessa violência e ódio está contida vos-
sa vida e vossa moralidade; quando os rejeitardes, sereis virtuoso.
Isso significa compreender o inteiro significado do amor; estais,
então, só, e sois capaz de amar. Escutai isto, porque é a verdade.
237
Se não viveis essa verdade, ela se torna um veneno; se ouvis uma
coisa verdadeira e dela fazeis pouco caso, ela produzirá mais uma
contradição na vida e, por conseguinte, mais aflição. Portanto, ou
escutai com o coração, com vossa mente inteira, ou tapai os ouvi-
dos. Mas, como aqui vos achais, estais escutando — espero-o!
O amor não é o oposto de coisa alguma. Não é o oposto
do ódio ou da violência. Mesmo quando não dependeis de nin-
guém e viveis uma vida muito virtuosa — tomando parte em
obras sociais, desfilando em manifestações — se não tendes
amor, nada disso tem valor. Se amais, podeis fazer o que quiser-
des. Para o homem que ama não há erro; ou, se há, sabe corrigi-lo
imediatamente. O homem que ama não tem ciúme, não tem re-
morsos. Para ele não existe o perdão, porque nunca surge uma
ocasião em que haja algo para perdoar. Tudo isso exige profunda
investigação, muito zelo e atenção. Mas, vós estais aprisionado na
armadilha da moderna sociedade; vós mesmo criastes a armadi-
lha, e se alguém vos chama a atenção para ela, não fazeis caso
disso. E, assim, continua a haver guerras e ódio.
Eu gostaria de saber como considerais a morte; não teori-
camente, mas o que ela, de fato, significa para vós — não como
uma coisa que inevitavelmente se verificará, por acidente, doença
ou velhice. Esta vem para todos — a velhice, e o que se faz para
disfarçá-la, para parecer jovem. Todas as teorias e toda espécie de
esperança significam que vos achais em desespero; por causa
desse desespero, buscais algo que vos dê esperança. Já olhastes o
vosso desespero, para ver por que ele existe? Ele existe porque
vos estais comparando com outra pessoa, porque desejais preen-
cher-vos, “vir a ser”, realizar coisas.
Um dos fatos estranhos da vida é estarmos condicionados
pelo verbo “ser” — porque nele está contido o passado, o presen-
te e o futuro. Todo condicionamento religioso baseia-se no verbo
“ser”; nele se baseiam o céu, o inferno, todas as crenças, todos os
salvadores, todos os excessos. Pode um ente humano viver sem
esse verbo — quer dizer, viver e não ter passado nem futuro. Isso
significa “viver no presente” — pois não sabeis viver no presente.
Para viverdes completamente no presente, deveis conhecer a
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natureza e estrutura do passado — ou seja, conhecer a vós mes-
mo. Deveis conhecer-vos tão completamente que não haja ne-
nhum canto oculto; o “vós” é o passado e se nutre daquele verbo
“ser”: “vir a ser”, realizar, lembrar. Descobri o que significa viver,
psicologicamente, interiormente, sem esse verbo.
Que é a morte? Por que nos inspira ela tanto terror? Em
toda a Ásia crê-se na reencarnação; essa crença proporciona uma
grande esperança — não sei por quê; sobre ela se fala e se escre-
ve incessantemente. Ao considerardes a coisa que vai encarnar,
que é ela? — vosso passado, vossa aflição, vossa confusão, tudo o
que sois agora? E pensais que o “vós” (aqui se usa a palavra “al-
ma”) é uma entidade permanente. Existe alguma coisa, nesta vida,
que seja permanente? Gostaríeis de ter algo de permanente, e,
por isso, afastais a morte para longe, para bem longe de vós; nun-
ca a encarais, porque a temeis. Tendes, então, o “tempo” — o
tempo que pondes entre “o que é” e o que inevitavelmente acon-
tecerá.
Ou “projetais” a vossa vida para o amanhã e continuais a
ser o que agora sois, na esperança de uma certa espécie de res-
surreição, de encarnação; ou morreis cada dia para vós mesmo,
para vossa aflição e vosso sofrer; lançais fora essa carga, em cada
dia, para que vossa mente seja nova, juvenil, “inocente”. A palavra
“inocente” significa “incapaz de sofrer dano” (sic). Ter uma mente
incapaz de sofrer dano não significa ter construído um baluarte de
resistência; pelo contrário, essa mente está morrendo para tudo o
que tem conhecido e lhe tem trazido conflito, prazer e dor. Só
então a mente é inocente e, por conseguinte, capaz de amar. Não
podeis amar com a memória; o amor não depende de lembrança,
não depende do tempo.
Assim, o amor, a morte e o viver não existem separados;
são um todo e, em consequência, uma coisa sã. Não se pode ser
são se há ódio, cólera, ciúme; se há a dependência, geradora de
medo. Havendo sanidade, a vida se torna sagrada; há nela supre-
ma alegria, e podeis fazer o que quiserdes e tudo o que fazeis é
virtuoso, verdadeiro.
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Tudo isso desconhecemos; só conhecemos nossa aflição.
E, desconhecendo-o, apelamos para a fuga. Que bom seria se não
fugíssemos de “o que é”, e tratássemos de observá-lo, de nunca
nos afastarmos dele, nem por uma fração de segundo, dando-lhe
um nome, condenando-o ou julgando-o; se pudéssemos apenas
observá-lo. Para observardes uma coisa, necessitais de zelo; zelo
significa compaixão. Numa vida tão esplêndida e completa, po-
demos entrar num estado de que falaremos amanhã e que se
chama “meditação”. Sem essa base, meditação é auto-sugestão.
Lançar essa base significa ter compreendido esta vida maravilho-
sa; tendes então uma mente livre de conflito e podeis viver uma
vida em que existe a compaixão, a beleza, e, por conseguinte, a
ordem — não a ordem planejada, mas a ordem que vem quando
compreendeis a desordem — a vossa vida. Vossa vida está em
desordem. Desordem é contradição e conflito entre opostos. Ao
compreenderdes a desordem em vós existente, dessa compreen-
são vem a ordem — uma ordem precisa, matemática, em que não
há deformação alguma. Tudo isso requer uma mente meditativa,
uma mente capaz de olhar em silêncio.
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