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O Reino dos Céus como experiência interior

O coração dos sábios instruirá a sua boca, e aos seus lábios aumentará o saber.
Provérbios 16,23

Aquele que procura a justiça e a misericórdia conquistará a vida, a justiça e a glória.


Provérbios 21,21

Meu filho atende à minha sabedoria, presta atenção aos meus ensinamentos, a fim de
guardares a prudência, e conservares a ciência nos teus lábios.
Provérbios 5,1-2

Começamos por afirmar que os “Céus” na época de Jesus, eram sinónimo de Deus, o
Reino dos Céus significa o «reino» de Deus. Ter recompensas ou tesouros nos céus
significa estar nas boas graças de Deus1.
Dizer «venha o teu Reino» é o mesmo que dizer «seja feita a tua vontade, assim na terra
como nos céus» (Mateus 6,10).
O debate que divida a nossa busca pela essência destas palavras é a passagem de Lucas
17,21, uns afirmam que «O Reino de Deus está dentro de vocês», outros «o Reino dos
Ceus está entre vocês» ou «no meio de vocês». Todas têm os seus argumentos e na
verdade isto é propriamente algo ideológico e não algo de natureza gramatical.
Tudo passa pela nossa posição como cristãos, até onde estamos dispostos a vislumbrar o
espaço do Reino dos Céus.
Estará esse espaço num futuro distante ainda por realizar neste mundo caído e alheio a
esse reino? 3
Estará esse espaço confinado aos limites escritos por palavras dos dogmas teológicos do
cristianismo que abraçamos?
Ou estará esse reino numa igreja cristã propriamente dita e de forma visível conseguimos
vê-lo nessa estrutura humana?
Estas são possibilidades que respeito com reverência e ternura, um olhar para Jesus é
sempre um olhar sagrado.

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Nolan. A. (2010) Jesus Antes do Cristianismo. Lisboa: Paulinas Editora. 84
Como tal a forma como se olha para ele, deve ser encarada como uma epifania, um lindo
milagre, nunca veremos tudo, nunca saberemos tudo.
Nem tivemos o privilégio de estar com ele nos momentos mais difíceis da sua vida.
Mas há outros olhares sobre o seu Reino, há a coragem de pela fé, procurarmos esse Reino
no interior do cristão.
Pelos primeiros textos da nossa fé, quer as epístolas paulinas repletas de uma experiência
interior, onde o apóstolo comungava com o “Cristo da Fé”, até aos escritos dos monges e
dos primeiros teólogos.
Todas estas pessoas sublinhavam uma interioridade latente à experiência cristã, elas
sentiam dentro delas a fé de uma forma intensa.
E seria uma pena perdermos estas riquezas, estas interioridades, pela superficialidade
prática da nossa mente objetiva e moderna.
Oremos como Paulo orou: “que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações; que estejais
enraizados e alicerçados no amor, para terdes a capacidade de (…) conhecer o amor de
Cristo” (Efésios 3,17)
“E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama:
Abbá – Pai!” (Gálatas 4,6)
O Reino dos Céus é assim uma realidade interior em que Jesus é o Rei entronizado no
coração do Cristão. Esta imagem ilustrativa que podemos imaginá-la como uma casa ou
uma cidade rodeada de muros, pode ser desenhada pelo pensamento através das próprias
metáforas que Jesus compôs para o descrever.
Por todo o evangelho o «Reino de Deus» é ilustrado por Jesus da seguinte forma: as
pessoas podem ou não entrar nesse «Reino» (Marcos 9,47; Marcos 10,15.23-25; Mateus
5,20; Mateus 7,21; Mateus 18,3; Mateus 21,31; Mateus 23,13; João 3,5). Estas pessoas
podem sentar-se no «Reino» e comer e beber nele (Marcos 14,25; Mateus 8,11-12; Lucas
22,30). Este «Reino» tem uma porta ou um portão (Mateus 7,13-14; Lucas 13,24), nas
quais a pessoa pode bater (Mateus 7,7-8; Mateus 25,10-12). Este «Reino» também tem
chaves (Mateus 16,19; Lucas 11,52) e pode ser fechado (Mateus 23,13; Lucas 13,25)2.
Jesus também definiu o «reino» de Satanás, como sendo uma casa ou cidade oposta ao
«Reino de Deus»
“Como pode Satanás expulsar Satanás? Se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino
não pode perdurar; e se uma casa se dividir contra si mesma, essa casa não pode subsistir.

2
Nolan. A. (2010) Jesus Antes do Cristianismo. Lisboa: Paulinas Editora. P.85
Se, portanto, Satanás se levanta contra si próprio, está dividido e não poderá subsistir; é
o seu fim.” (Marcos 3,23-25)
“Todo o reino, dividido contra si mesmo, fica devastado; e toda a cidade ou casa, dividida
contra si mesma, não poderá subsistir.” (Mateus 12,25)
Nas parábolas Jesus apresenta como figura mais comum o dono da casa, menciona-o em
sete parábolas diferentes (Lucas 11,5-8; Lucas 12, 42-46 e 16,1-8; 17,7-10; Mateus 20,1-
15; Mateus 21,28-31 e 25,14-30).
Em seis das parábolas a cena decorre numa casa onde se passa uma refeição festiva (Lucas
11,15-32; Lucas 12,36-38; Lucas 14,7-10; Mateus 22, 1-10 e Mateus 22, 11-13; Mateus
25,1-12).
Estas passagens podem ser analisadas em contexto de meditação, Jesus descreveu o Reino
dos Céus sempre em termos figurativos com ideias, símbolos e imagens para que nós
pudéssemos também visualizar essas realidades e procurarmos compreendê-las de forma
profunda.
Ao afirmar a Pilatos “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36), talvez Jesus quisesse
indicar que não seria por uma estrutura política como sociedade, mas antes uma estrutura
humana idealizada por Deus.
Como um renovo na criação, cada semente semeada em bom solo gera os bons frutos de
Deus no mundo humano e desta forma o Reino expande-se.
Façamos agora a nossa reflexão desta experiência naquilo que é a parte prática desta
entrada no Reino, a sua santidade.
Ao lermos atentamente algumas das ideias presentes nos evangelhos sobre a maneira
como Jesus encarava as suas práticas espirituais. Fica desde logo assente que Ele foi
profundamente influenciado pela literatura sapiencial das escrituras.
Jesus expressa uma ideia sobre a expiação do pecado muito similar àquela que
encontramos no livro de Provérbios: “O pecado expia-se pela bondade e pela fidelidade;
o mal evita-se pelo temor do SENHOR.” (Provérbios 16,6).
Note-se que no âmbito do Antigo Testamento o pecado expiava-se no ritual do perdão
dos pecados descrito em Levítico 16,6 ainda hoje este é o rito mais importante do
judaísmo. Existem de facto alguns ecos nos profetas e nos salmos acerca da noção do
sacrifício e da adoração que Deus tinha como verdadeira.
“Abre, Senhor, os meus lábios, para que a minha boca possa anunciar o teu louvor.
Não te comprazes nos sacrifícios nem te agrada qualquer holocausto que eu te ofereça.
O sacrifício agradável a Deus é o espírito contrito; ó Deus, não desprezes um coração
contrito e arrependido.” (Salmo 51,17-19);
“Porque Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios, o conhecimento de Deus mais do
que os holocaustos” (Oseias 6,6) este apelo profético fecha-se com chave de ouro a
profundidade da sua ideia nas reflexões dos sábios de Israel: “A prática da justiça e da
equidade é mais agradável ao SENHOR que os sacrifícios.” (Provérbios 21,3).
Este é um dos poucos textos das escrituras dentro da literatura sapiencial que sintonizam
a doutrina dos profetas de Israel, esta doutrina insiste que o culto verdadeiro começa e
depende exclusivamente da retidão de coração como condição de vida de toda a
observação dos rituais e das peregrinações ao Templo.
Jesus ensinou e reinterpretou a Lei a partir da sua revelação como Filho de Deus, mas ele
enfatizou sempre as leituras e as tradições já registadas na sabedoria dos sábios de Israel
e na vida consagrada dos profetas hebreus.
Ele valoriza acima de tudo uma pureza interior e um amor supremo que coloca Deus
acima de qualquer realidade da vida interior humana.
No fundo Jesus não criou por si só uma religião nova, ele apenas revelou à cegueira da
humanidade caída a forma correta e genuína de como se deve adorar o Criador.
Quando Ele se despediu daqueles que curava e dizia-lhes para não mais pecarem,
claramente ele fazia alusão ao verso de provérbios: “O pecado expia-se pela bondade e
pela fidelidade; o mal evita-se pelo temor do SENHOR”.
Iremos agora problematizar a noção de Reino do Céu neste contexto interior, certa vez
Jesus disse uma frase interessante ao justificar as curas e as expulsões de demónios que
fazia em nome do Reino de Deus (Mateus 12,28; Lucas 11,20).
Ele afirmou que se ele expulsava demónios pelo dedo de Deus, então o «Reino de Deus»
era tinha chegada àqueles lugares.
Em aramaico o «Reino de Deus» diz-se malkhuta delahah este reino era uma realidade
onde o seu Pai era Rei.
É importante compreendermos que este Reino os proporciona uma experiência interior
do poder de Deus, a todos aqueles que se sentem impuros, enfermos, endemoniados ou
possuídos pela força de vícios destruidores, este Reino é uma manifestação presente do
poder do Pai.
Jesus ensinou que o Reino de Deus era um princípio revolucionário inerente a todo o
cosmos: um dia haveria de brilhar com a plenitude e a energia divinas3.
Imaginem as multidões desesperadas dos evangelhos perante a voz ressonante de Jesus,
que falava com autoridade e não como os escribas e os fariseus.
Jesus um homem poético com uma beleza celeste nas suas palavras, anunciava o relato
de uma visão.
A visão de uma nova era, uma transformação completa do mundo.
Jesus desenhou nos corações dos seus ouvintes os quadros das suas parábolas, quadros
repletos de retratos, onde as pessoas podiam sentir-se cercadas pelo seu mundo interior e
pelo seu dia a dia particular.
Jesus transportava estas ovelhas para um mundo íntimo seu, as parábolas eram digamos
nós, as janelas por onde cada alma poderia espreitar o que se passava dentro da alma de
Jesus.
O mundo que estas parábolas retratam é um mundo onde a misericórdia e a justiça do seu
Pai reinariam como forças supremas, transformando assim inevitavelmente toda a
humanidade.
Não é só nas palavras que lemos a definição do Reino, ainda que nunca tenhamos a
profundidade de o definir, tal qual como Jesus o entendeu.
Olhar para os gestos é também ler a sua visão do Reino transformador, sempre que ele
expulsava um demónio ou curava um enfermo.

“Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no


Evangelho”
(Marcos 1,15 e Lucas 19,9-11)

A palavra arrependimento tem um sentido especial na tradição bíblica o termo grego


metanoia descreve uma realidade interior em que cada um de nós vai para além do
pensamento ou intelecto. É uma mudança e conversão radical e total do espírito do
coração e de todo o nosso ser.
A questão que aqui deve ser sublinha é que esta conversão não se enquadra apenas em
termos morais para uma preparação futura em que vamos entrar no céu.

3
Chilton Bruce. (2006) Maria Madalena. Lisboa: Editorial Estampa. 34
Na verdade, existe já a ideia de o céu entrar em nós e nós neste mesmo instante
conseguirmos desenvolver uma abertura à sua experiência.
Jesus revela-se como o Senhor que vem e que acontece de forma verdadeira dentro do
coração daqueles que estão concentrados na sua presença.
Este é o nosso messianismo do instante, o Reino de Deus está próximo e envolve-nos de
forma misteriosa a cada instante.
Nesta perspetiva começamos a compreender a ideia fundamental da santificação, Deus
não está velado num futuro a descobrir através da exegese de uma leitura horizontal
baseada no tempo, mas na profundidade da alma há uma leitura vertical em busca do
mistério baseada no instante eterno da sua presença.
A palavra usada por nós para “reino” (Basileia) traduz-se normalmente por “reino”, mas
este é um termo enganador e complicado que distorce a compreensão do texto4.
O termo reino define na nossa mente humana uma estrutura política ou um local físico, o
reino cristão é a presença pessoal de Jesus.
Por um lado, Jesus ensina-nos a pedir ao Pai dele na oração do Pai Nosso: “venha o teu
Reino” (Mateus 6,10) e a vinda na sua plenitude acontecerá apenas no Eschaton, o
acabamento e realização última do mundo.
A esta primeira forma de lermos o que Jesus disse chamamos leitura histórica-horizontal,
num horizonte temporal nós temos a expetativa que a escatologia se realize e altere a
realidade.
Esta é a leitura tradicional da maior parte do cristianismo e como tal será respeitada por
mim.
Contudo, Jesus também fala nos evangelhos que o Reino já chegou, nesta sequência dos
seus ensinamentos, milagres, morte e ressurreição, há uma revelação do amor do Pai.
Ele afirma durante o seu ministério: “o Reino de Deus está entre vós” (Lucas 17,21), este
ensino encontra eco noutras palavras: “Pois, onde estiverem dois ou três reunidos em meu
nome, Eu estou no meio deles” (Mateus 18,20).
Jesus equipara em muitas circunstâncias a sua presença pessoal ao Reino dos Céus, os
milagres foram alguns dos argumentos que ele usou para apresentar esta tese: “Mas se eu
expulso demónios pela mão de Deus, então o Reino de Deus já chegou até vós.” (Lucas
11,20).

9904 Wills Garry. (2008) O Que Jesus Realmente Quis Dizer. Alfragide: [uma chancela do
grupo LeYa]. 95
Noutra ocasião os discípulos de João Baptista foram-lhe perguntar se ele era o Messias
“que está para vir” – Jesus cita um versículo de Isaías: “os cegos veem, os coxos andam,
os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres (Lucas
7,22).
O anúncio de Deus, o “evangelho”, traduzido em termos bíblicos como “boas notícias,
designa a chegada do Messias.
Neste contexto ele diz em privado aos seus discípulos: “Felizes os olhos que veem o que
estais a ver. Porque – digo-vos – muitos profetas e reis quiseram ver o que vedes e não o
viram, ouvir o que ouvis e não ouviram!” (Lucas 10,23-24).
“A vós é dado a conhecer os mistérios do Reino do Céu, mas a eles não lhes é dado”
(Mateus 13,11). Podemos concluir com estas palavras que sempre existiu no ministério
de Jesus um entendimento mais profundo da realidade do Reino dos Céus.
Alguns discípulos já estão a entrar no Reino (Mateus 21,31).
“Eu disponho do Reino a vosso favor, como meu Pai dispõe dele a meu favor” (Lucas
22,29).
Propomos assim no âmbito da nossa santificação de uma ideia de Reino mais real e
presente, o Reino dos Céus existe como realidade dentro de nós e devemos tomar
consciência e perceção dessa realidade para que o Espírito de Deus flua em nós.
Falta-nos então responder à última questão deste capítulo, como se entra no Reino dos
Céus?
No evangelho de João surgiu essa questão: “Como podemos nós saber o caminho [para o
Pai]?” e ele responde: “Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir ao Pai
se não por mim” (João 14,6).
O Reino dos Céus é Jesus, entrar no reino é o ato de união com Jesus, este Reino une aos
fiéis com o Pai ao uni-los a Jesus, que diz: “Eu estou no meu Pai, e vós em mim, e Eu em
vós.” (Jo 14,20).
Isto e só isto é o Reino dos Céus:

“Permanecei em mim, que eu permaneço em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto
por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se
não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim
e Eu nele, esse dá muito fruto, pois, sem mim, nada podeis fazer. Se alguém não
permanece em mim, é lançado fora, como um ramo, e seca. Esses são apanhados e
lançados ao fogo, e ardem. Se permanecerdes em mim e as minhas palavras
permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e assim vos acontecerá. Nisto de manifesta
a glória do meu Pai: em que deis muito fruto e vos comporteis como meus discípulos.
Assim como o Pai me tem amor, assim Eu vos amo a vós. Permanecei no meu amor, se
guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como Eu, que
tenho guardado os mandamentos do meu Pai, também permaneço no seu amor.
manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja
completa.
É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei.”

João 15,4-12

Falamos assim de um messianismo do instante, e desejamos uma leitura vertical das


escrituras, o Messias terá que vir agora habitar no nosso coração e a nossa entrega a ele
será uma escatologia realizada em nós.
Esta perceção da presença de Cristo em nós, como ramos da videira que se expande pelo
mundo, contribui para uma visualização frutífera da santificação interior.

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