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`A PESCA DO
BACALHAU
TORNOU-SE UM
MITO ALÉM-
-FRONTEIRAS POR
CAUSA DESTE LIVRO'
José Cabrita Saraiva
jose.c.saraiva(a sol.pt
N
experimentar na pele. Depois de Matemáticas Superiores, mas
ja, Alvaro Garrido é Campanha do Bacalhau, um es- antes deste livro ele tinha escri- acabar a Segunda Guerra estes nunca se desligou dos navios, da
um apaixonado e quema de economia dirigida de- to várias crónicas de viagem ma- grandes marinheiros e cronistas vela e sobretudo da pesca do ba-
um estudioso do senhado pelo Estado Novo para li- rítimas e uma biografia do capi- tiveram muito mercado. Havia calhau, que ele aliás ainda incen-
mar e das pescas. bertar Portugal da dependência tão Cook, e era muito procurado um certo encantamento com as tivou quando esteve no governo
Entre 2003 e 2009 foi face ao estrangeiro no que tocava por editoras norte-americanas e crónicas da vida marítima. E ele como ministro do comércio e da
diretor do Museu Marítimo de ao consumo deste peixe. britânicas. Para ter uma ideia, os interessou-se muito, a dada altu- indústria, nos anos 30. Aliás foi
fihavo, de que hoje é consultor. Já Licenciado em História e atual- artigos dele na National Geo- ra, por experiências mais.ou me- ele que lançou, com o ministro
viajou a bordo do Crioula e dedi- mente professor na Faculdade de graphic normalmente aumenta- nos anacrónicas e sobre-humanas que precedeu, Sebastião Ramirez,
tesanal, arcaica - já nenhuma fro- do regime para fazerem também
ta internacional pescava assim - crónicas de viagem com fins pro-
e havia que justificar um pouco pagandísticos, nomeadamente o
esse anacronismo, a dureza do tra- Jorge Simões, que era jornalista e
balho, bem como a organização assessor de imprensa do Tenrei-
cooperativa que governava todo o ro, mas isso era muito incomum.
subsetor da pesca do bacalhau. Mas o Villiers fica amigo dos ofi-
Então Pedro Teotónio Pereira, que ciais náuticos e mesmo depois
era um grande leitor do Villiers, ainda volta a conviver com eles.
convida-o para embarcar num na-
vio da frota portuguesa, e paga-lhe Foi bem aceite?
- é uma encomenda. Villiers em- O Villiers era um homem de mar.
barca no Argus na campanha de Tinha uma cultura náutica mui-
1950, encanta-se por tudo aquilo - to forte, tinha embarcado em con-
pela bravura dos pescadores, pela textos muito diversos, e estabele-
destreza técnica, pelos capitães - ceu uma relação de cumplicidade
e escreve este livro, que se torna muito fácil com o comandante, o
um bestseller internacional. É edi- capitão Adolfo Paião, a quem ele
tado em inglês em 1951 e em Portu- tece uma homenagem rasgada no
gal no mesmo ano. Depois disso livro - que curiosamente era um
conhece edições em 16 línguas, o antepassado do cantor Carlos
que é extraordinário. Paião -, mas também com os ofi-
ciais, com o piloto, com o imedia-
É um sucesso. to, e com a tripulação em geral.
E torna-se muito conhecido nas Admirou os seus gestos e cha-
províncias atlânticas do Canadá, mou-lhes 'os melhores pescadores
nos Estados Unidos, na Grã-Breta- do mundo', e portanto entranhou-
nha e em Portugal. Era um livro -se naquele universo e tornou-se
de camarote muito comum nos um deles também, porque era um
navios da marinha de guerra de homem de mar.
vários países, e fez uma propagan-
da muito eficaz da pesca do baca- Quantos homens compunham a tri-
lhau como arte de marinharia, tal pulação de um navio bacalhoeiro
como o Estado Novo esperara que como o Argus?
ele fizesse. Não por acaso em 1951 Normalmente estes navios leva-
Salazar recebe Villiers, que é ob- vam à volta de 50, 60 homens, de-
jeto de uma série de mordomias pendendo da dimensão. Houve
em Portugal, e depois atribui-lhe navios com cem homens, mas em
o prémio Camões do SNI, em 1952, regra andavam à volta dos 50 tri-
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- - que distinguia obras estrangeiras pulantes.
Pescador no dóri, com o navio-mãe ao fundo, ao largo da Gronelândia sobre a realidade portuguesa. A
obra é muito bem recebida pelos E faziam todos a mesma coisa?
conserveiro algarvio, a campanha ta. Os navios de Aveiro, de Viana, Cerejeira. Pedro Teotónio Perei- homens do mar porque oferece Não. Grande parte eram pescado-
do bacalhau e o fomento da frota da Figueira vinham todos a Lis- ra foi o mentor de tudo isso. um retrato muito realista da pes- res, pescadores-marinheiros, mais
nacional. Mesmo depois de aban- boa para carregar víveres e par- ca, embora recalque aspetos de exatamente, porque quando eram
donar essas funções, quando era tiam depois de uma missa campal E onde entra o Villiers? conflito, tensões, dissensões, e largados no seu bote, o dóri, preci-
embaixador em Espanha junto do que durante os primeiros anos foi A maneira como os portugueses exalte o enquadramento político savam de ter rudimentos de mari-
franquismo, gostava de vir ver os presidida pelo próprio Cardeal pescavam bacalhau era muito ar- que o Estado Novo ofereceu a esta nharia, de remar, de saber orien-
navios de vela, os lugres, os baca- atividade. Aliás, a pesca do baca- tar-se e regressar ao navio-mãe, o
lhoeiros, a largada triunfal. lhau como herança cultural por- que era um perigo. Muitos eram
Em que medidas concretas se tra- Nessa altura a pesca ainda era fei-
duziu essa campanha? ta de acordo com esses métodos
A Campanha do Bacalhau era um rudimentares?
programa de substituição de im- Só em 1961 é que a maioria dos na-
portações baseado na técnica de vios da frota portuguesa começam
cartelização das importações. Em a ser arrastões. Até aí, a maioria
primeiro lugar, procura limitar a dos navios eram de pesca à linha,
concorrência do bacalhau estran- ou seja, assistimos a uma resistên-
geiro, constituindo a Comissão cia de uma tecnologia de pesca
Reguladora do Comércio do Baca- muito primitiva, muito arcaica,
lhau, que ocupa o edifício onde que é contra a corrente interna-
hoje está o Museu do Oriente. cional, e que se explica basica-
Essa comissão estabelece o se- mente pela natureza da procura:
guinte mecanis: os importadores o mercado interno do bacalhau
armazenistas, que era um negó- salgado seco é um mercado de
cio poderoso em Portugal e que grandes dimensões, a tabela esta-
'Retrato de família' dos pescadores-marinheiros do Argus, em 1950 representava mais de 80% do con- va organizada para remunerar
sumo, só obtinham licença de im- mais o peixe graúdo e de média
mente, e apesar de haver hoje ou- tos relacionados com o guincho e ca e de transformação Pascoal & portação depois de comprarem qualidade, e só a pesca à linha per-
tros cuidados de segurança, na pes- com os cabos de rede. Filhos, da Gafanha da Nazaré, e uma parte do contingente de pro- mitia a captura desse peixe por-
ca à linha do bacalhau morreu-se hoje está lá. dução nacional, uni esquema pro- que era muito mais seletiva que a
menos do que na pesca de arrasto. Ainda temos frota pesqueira? tecionista clássico imitado da Itá- pesca de arrasto.
Hoje Portugal tem apenas dez na- Pode ser visitado? lia de Mussolini. O que acontecia
Como foi isso possível? vios em atividade. O contributo Não. É visível só a partir do cais. até aí era os importadores e Antes da campanha o bacalhau já
Havia o apoio do navio-hospital da pesca por navios armados por Foi uma iniciativa arrojada do ex- brokers ingleses que trabalhavam era o prato nacional por excelên-
Gil Eannes, que era muito efeti- empresas portuguesas é residual, -proprietário do Santa Maria Ma- no Porto e em Lisboa, quando che- cia?
vo, havia a entreajuda dos navios não chega a 2% do consumo. Mas nuela. Hoje o Argus é parte do pa- gavam os navios portugueses, ata- Era. O mito do fiel amigo vem do
entre si e a entreajuda dos ho- temos uma indústria transforma- trimónio naval português, é um cavam o mercado com bacalhau século XIX. Já nessa época o baca-
mens das mesmas campanhas. dora de bacalhau muito competi- navio com uma história mítica e, estrangeiro mais barato, não per- lhau é objeto de um consumo de
Eram grandes pescadores, gran- tiva, muito moderna e muito in- graças ao Alan Villiers, é conhe- mitindo que o português se ven- massas. Quando havia escassez e
des marinheiros, com muita ex- teressante. Visitei algumas fábri- cido no mundo inteiro e muito desse. Resolvida esta questão, es- os preços subiam havia crises ali-
periência e muito arrojo... Parece cas na Noruega e as condições procurado pelas pessoas que se in- tabelece-se uma tabela oficial de mentares muito complicadas que
incrível. mas a mortalidade na não têm nada a ver - se fosse aqui, teressam por estas coisas. preços em todos os setores. O ba- eram glosadas pela imprensa satí-
pesca à linha acabou por ser ligei- essas unidades fechavam. calhau era tabelado, desde o ne- rica. O Estado Novo procura dar
ramente menor do que na pesca Em que estado se encontra? gócio importador até ao retalho. uma resposta autoritária a esse
por arrasto. Sendo hoje uma pes- O que aconteceu ao Argus? Está à espera de um projeto e de De seguida há um megaprograma problema, concretizando aquilo
ca mais profissional, com muito Quando terminou a vida de mar uma oportunidade de recupera- de fomento da frota nacional para que S alar defmiu em 1918, quan-
mais cuidados de segurança, con- como navio bacalhoeiro foi com- ção. Tem o casco em decomposi- reduzir as importações. O progra- do estava na Universidade de Coim-
tinua a haver acidentes. prado por uma empresa de cruzei- ção mas penso que haverá uma ma começa em 1936 e é um êxito bra, num texto em que disse que
ros turísticos nas Caraíbas, foi congregação de esforços para fa- completo: em 1934 Portugal im- era necessário criar em Portugal
De que tipo? adaptado, fez muitos anos ali e a zer daquele navio um património portava 89% do bacalhau que con- um Estado ditador de víveres. .
Acidentes naturais, pernas corta- determinada altura, há uns anos, naval flutuante e recuperá-lo. Se- sumia, e nos anos 50 chega a con- Esse escrito é depois concretizado
das com cabos, acidentes violen- foi comprado pela empresa de pes- ria muito importante para o país. sumir 80% da produção nacional. na Campanha do Bacalhau.
CONSELHEIRO EDITORIAL: JOSÉ ANTÓNIO SARAIVA EDIÇÃO N.o 607 14 ABRIL 2018 3C WWW.SOL.PT
COSTA ASSUME
AUSTER DADE Diretor Mário Remires
Diretor Executivo Vítor Rainho
Dir. Exec. Adjunta Ana Sá Lopes
Subdir. Exec. José Cabrita Saraiva
Dir.de Arte Francisco Alves
• O líder do PS prefere
1111k •
abanar a 'geringonça' a
cometer 'erros do passado'
e guarda excedente por
Paulo Trigo
Pereira
Aprendemos
temer uma nova crise
com o
• Mário Centeno exemplo
e Carlos César avisam: de 2009'
`Não pode haver Págs. 8-10
cedências' ou 'Isto vai
tudo por água abaixo' Miranda Calha
• BE e PCP já dizem que II `Entre bloco
.
central e
discurso do Governo `geringonça',
está cada vez mais igual preferia
ao de Passos Coelho o primeiro'
Págs. 6-7 :"..% Págs. 16-18
e
ARGUS
SPORTING COM ELEIÇÕES À VISTA A história do
bacalhoeiro mítico
Bruno de Carvalho resiste, mas os meandros dos anos 50 que fez
sportinguistas movimentam-se em busca cruzeiros nas Caraíbas
de alternativas: Miguel Relvas, Bernardo Trindade -----
e Rogério Alves estão na grelha de partida e hoje está a apodrecer
Pág. 48 na Gafanha da Nazaré
1
Págs. 38-41
TEATRO POLITEAMA E STA C APA
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