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A Dimensão Sacramental da Vida Cristã

ou

INICIAÇÃO à vida CRISTÃ

Introdução

O intuito desse subsidio não é o de fazer uma análise sobre a Catequese, assunto
tão bem discutido e aprofundado em inúmeros detalhes com uma incrível riqueza de
estudos e documentos que são fonte e base para uma autêntica renovação da linguagem
com a qual o Evangelho pode e deve ainda penetrar na cultura contemporânea. Não
pretende ser um estudo sobre as inúmeras implicações que a catequese renovada pode
produzir no âmbito do novo impulso desejado pelo Documento de Aparecida: “Desejamos
que a alegria que recebemos no encontro com Jesus Cristo, a quem reconhecemos como
o Filho de Deus encarnado e redentor, chegue a todos os homens e mulheres feridos
pelas adversidades; desejamos que a alegria da boa nova do Reino de Deus, de Jesus
Cristo vencedor do pecado e da morte, chegue a todos quantos jazem à beira do
caminho” (DA 29).

Este subsídio é a continuação do caminho que já iniciamos com a reflexão sobre a


Igreja. É o produto das reflexões efetuadas ao longo de um percurso formativo realizado
com um número significativo de catequistas que, com extrema generosidade, continuam
fazendo da sua vida um sinal visível de que o amor por Deus é uma uma força impetuosa,
uma força que não pode ficar represada, mas que se espalha com dinamismo próprio,
embelezado pelo encanto da alegria que transparece na vida toda.
Cada pessoa que faz uma autêntica experiência de Deus em Jesus Cristo pode
certificar que: “Conhecer a Jesus é o melhor presente que qualquer pessoa pode receber;
tê-lo encontrado foi o melhor que ocorreu em nossas vidas, e fazê-lo conhecido com
nossa palavra e obras é nossa alegria” (DA 29).

A questão que se põe, então, não é quanto ao conteúdo nem quanto às motivações
do anúncio; provavelmente precisamos encontrar um caminho alternativo para que a
mesma linguagem de Jesus possa tornar-se novamente compreensível com todo o seu
impacto. Precisamos redescobrir um caminho antigo e sempre novo para que o
Evangelho possa ser acolhido em toda a sua beleza. Podemos nos perguntar ainda: qual
é a linguagem que as pessoas hoje compreendem? O que buscam para a própria vida? O
que a Igreja pode ainda propor como «tesouro escondido» no seu campo e «pérola
preciosa» pela qual vale a pena vender e arriscar tudo (Mt. 13,44-46)?

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I. UM OLHAR RETROSPECTIVO

No texto que precede a esse subsídio, pudemos refletir sobre o significado da


Igreja para Jesus e para a nossa fé. Naquela ocasião nos perguntamos: Para nossa fé,
é realmente necessária a Igreja? Porque Jesus quis uma comunidade em torno de si?
Como Ele a desejou? Porque na escolha dos seus discípulos não agiu como qualquer um
de nós agiria?

Os passos que demos indicaram claramente que Jesus não reuniu em torno de si
uma comunidade que se regia sobre os princípios comuns, próprios de qualquer outra
organização. Por exemplo, em nenhum sistema social alguém daria a chave do cofre a
alguém que, notoriamente, rouba; ora, Jesus entregou justamente a Judas o caixa comum
(Jo. 12,6)! Jesus escolheu pessoas de extração cultural bem diferente, com visões
políticas opostas, pessoas cheias de preconceitos... Enfim, a escolha dos Doze trazia
consigo um desafio público a qualquer outro critério com o qual um líder escolhe seus
colaboradores. Foi por acaso? Ou foi uma decisão oculada que pretendia abrir uma
brecha aos limites com os quais o homem gosta de cercar-se? O que deveria aparecer
naquele grupo tão heterogêneo e com motivações tão diferentes?

A vida com Jesus foi uma constante escola de amor na qual, diariamente1 os
discípulos precisaram aprender a pensar com uma “mentalidade nova” , a superar a si
mesmos e as visões particulares de cada um. Precisaram aprender a arte da conversão
do coração para que pudessem, na hora certa, agir e falar com autoridade em nome de
Jesus. Acompanhar Jesus de modo estável significou para os Apóstolos permitir que o
estilo de vida do Senhor penetrasse nas suas próprias vidas e a vida de cada um
penetrasse na vida do seu Senhor. Foi uma troca constante que prepararia os Doze à
missão de levar ao mundo a mesma realidade do Reino que haviam experimentado ao
lado de Jesus. Assim, antes que eles pudessem falar do “Reino de Deus”, Jesus lhes fez
sentir e experimentar o que significa a vida quando Deus reina como centro e motivo de
tudo2.

Os anos que Jesus viveu ao lado dos Apóstolos 3 e dos discípulos, tiveram como
objetivo principal a educação dos Doze 4 para que estes, posteriormente, pudessem agir e
falar com a mesma autoridade com a qual Jesus falava.

Todos nós lembramos das expressões de maravilha que a palavra de Jesus


suscitava: «as multidões ficavam admiradas pela sua doutrina, porque Ele as

1
A ideia de “conversão” está na base do primeiro anúncio e também da primeira exigência de Jesus:
«Convertei-vos e acreditai no Evangelho» (Mc. 1,15). A palavra significa exatamente “mudar de
mentalidade” sugerindo, na língua originária, a capacidade de ir “além” (met£) do próprio modo de ver.
2
É este o significado da expressão “Reino de Deus”.
3
A palavra “Apóstolo” significa: “ser enviado para uma finalidade específica”: o verbo grego “ apostellw”
indica o fato de ser enviado com autoridade em nome de alguém e poder representar o mandante.
4
Cfr. Por exemplo, a anotação feita em Mc. 4,34: «... porém, explicava em particular aos seus
próprios discípulos». Jesus estabeleceu vários tipos de relacionamentos com as pessoas. Podemos
distinguir fundamentalmente três: o primeiro com as “multidões” anônimas, às quais oferecia curas,
palavras de conforto, e ensinamentos; o segundo com os “discípulos”, indicados de modo genérico,
eram aquelas pessoas que seguiam de algum modo o anúncio do Reino; os “Doze” ou “Apóstolos”
indicados por nome próprio, identificados por uma escolha que partiu diretamente de Jesus e
caracterizados por uma permanência estável ao lado de Jesus.

-2-
ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas» (Mt. 7,28-29);
pois bem a autoridade não é coisa que se improvisa, nem é uma usurpação de poder.
A autoridade possui duas características:

 é recebida, isto é, alguém reconhece que o agir de uma pessoa é capaz de


“construir” (ser autor)
 é adquirida, com o tempo e a sabedoria própria de quem consegue ter claramente
diante dos olhos o objetivo e, contemporaneamente, a maneira correta de alcançar
o objetivo, uma maneira capaz de “construir”.

A vida de Jesus com os Apóstolos foi impregnada do desejo de Jesus de dar a eles
a mesma autoridade que havia recebido do Pai. Os “Doze” eram a herança que Jesus
deixaria à humanidade para que a Sua presença fosse mantida viva.
Já pudemos refletir no escrito anterior sobre a convocação que Jesus fez dos
Apóstolos, permito-me apenas recordar as três motivações fundamentais pelas quais
Jesus os convocou; essas foram sintetizadas de modo catequético por São Marcos com
estas palavras: «...Então, designou doze para estarem com ele e para os
enviar a pregar e exercer a autoridade de expelir demônios» (Mc. 3,15). A
vida de Jesus com eles foi um contínuo ato educativo para que aprendessem o que
significa:

1. estar com Ele; isto é a “fidelidade” ao Seu modo de ver, de agir, de aderir mesmo
não compreendendo 5;
2. pregar não é difícil; pregar em nome de Jesus isso sim que requer bem mais do
que a simples vontade de falar “sobre Jesus”. Exige sintonia profunda com Ele, de
tal modo que as palavras de quem fala coincidam com as palavras de Quem
“envia” para exercer essa missão;
3. curar e libertar o homem dos medos que o prendem, dos inimigos que o podem
afastar do sentido da própria existência. A dor, o sofrimento podem muito bem
afastar uma pessoa de Deus e dos outros se vividos numa maneira; por outro lado
podem também aproximar as pessoas a Deus e entre si se vividos de outra
maneira. Ora, o que pode fazer a diferença em tudo isso é a presença ou ausência
da fé que um discípulo carrega consigo e leva aos outros que sofrem...

O Evangelho nos traz, claramente visível, a intenção de Jesus de delegar aos seus
a “autoridade” para que eles pudessem agir em Seu nome. Isso aparece visível desde o
primeiro envio dos discípulos aos quais o Senhor disse: «Eis que Eu vos dei
autoridade para pisardes serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do
inimigo…» (Lc. 10,19). E, mais claramente ainda, ficou definido logo após a Sua morte e
Ressurreição: «Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio» (Jo. 20,21).

5
Vemos, por exemplo a dificuldade de Pedro que ainda pensa « como satanás» (Mt. 16,23); o mal-
entendido de Tiago e João: «Permite-nos que, na tua glória, nos assentemos um à
tua direita e o outro à tua esquerda » (Mc. 10,37); o ingresso triunfal em Jerusalém é um
caso limite das diferentes posições de entendimento entre Jesus e “os seus”.

-3-
II. “COMO O PAI ME ENVIOU EU TAMBÉM VOS ENVIO”

Quando ressoam aos nossos ouvidos essas palavras de Jesus é toda a dimensão
missionária da Igreja que é evocada em nós. É como se o Senhor entregasse aos Seus
discípulos o mesmo patrimônio que Ele mesmo recebeu do Pai. É Jesus estabelecendo
definitivamente um laço permanente de continuidade que perpassa todo o projeto salvífico
do Pai para alcançar todos e cada um dos homens.

 O projeto que nasce de Deus,


 nos é transmitido pela história, a leitura da história e os eventos consignados na
Escritura antes de Jesus;
 nos é revelado com Jesus
 e nos é entregue com a Igreja,
 de modo que volte ao Pai com todos os frutos por Ele desejados.

O processo todo é explicado por Jesus 6 com a imagem da videira e dos ramos (Jo.
15,1-8). A videira, isto é, Jesus, transmite a força vital, é o lugar por onde a vida se
manifesta e se propaga, mas o frutos nascem nos ramos, são colhidos nos ramos. Desse
modo os ramos, ou seja a Igreja, a comunidade dos discípulos, são o lugar onde
aparecem os frutos que a videira produziu; são os cachos de uva que o Agricultor poderá
apanhar para o banquete escatológico que Isaías imaginava 7.

Aqui temos evidente um nítido mandato missionário; estamos diante de um desejo


explícito de Jesus, transmitido sob a forma de um compromisso a ser assumido por todos
os discípulos no decorrer dos tempos. Ora, como já vimos alhures, Jesus estabeleceu
uma equivalência entre o seu “ser enviado” e o “ser enviados” dos discípulos. Jesus se
percebe continuamente como enviado pelo Pai 8 e isso é manifestado continuamente nos
Evangelhos, contudo não fica evidente que tenha recebido um “mandato” assim como o
receberam os discípulos. Ao contrário, o que fica evidente é a correspondência entre o
que Jesus faz e o que o Pai deseja. Sendo assim aparece claro para nós o que significa
“envio” para Jesus, sim, não é fruto de um “comando”, mas o resultado de duas vontades
que se encontram e, uma delas, manifesta o que existe na outra. Se quisermos usar a
linguagem do Evangelista João para expressar esse dinamismo poderiamos dizer que
“desejo de Um é a obra do Outro”.
Aos judeus que estavam intrigados com o questionamento sobre quem fosse
Jesus, Ele apenas respondeu: «As obras que eu faço em nome de meu Pai
testificam a meu respeito» (Jo. 10,25); ou seja, o Senhor entende a si mesmo como o
único que pode agir e falar com autoridade em nome de Jahvé cujo nome os judeus
sequer podiam pronunciar. Jesus não é apenas um “emissário” do Pai que tem a
incumbência de transmitir algumas verdades sobre Deus, mas é Deus enquanto age e
6
Segundo o simbolismo da Escritura, o Pai é o “agricultor”; o campo, a vinha são a imagem de Israel que
Deus planta, cultiva, cerca de proteção (cfr. Is. 5). Não se dá uma “vinha” sem “videira”. Jesus indica a si
mesmo como a Videira presente da vinha plantada por Deus. Ele é o que constitui Israel, assim como a
videira é o que constitui a vinha. Ele está presente no Israel de Deus porque Ele é a Palavra que,
através de Israel, na história dos homens, Deus deseja comunicar aos homens. A identificação possível
entre Israel e o Verbo de Deus fica evidente nos trechos de Isaías que falam do Servo de Jahvé: esse é
contemporaneamente o povo de Israel e o “Servo”, com o qual Jesus se identificará explicitamente.
7
«No monte Sião, o Senhor do universo preparará para todos os povos um banquete
de carnes gordas, acompanhadas de vinhos velhos » (Is. 25,6).
8
Tal ligação transparece em todos os Evangelhos e é objeto central do discurso de Jesus após a cura do
enfermo narrada em Jo. 5,1-39.

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realiza a Sua obra na pessoa de Jesus de Nazaré. É Deus que se faz presente e vive na
história dos homens.

Infelizmente inúmeras vezes a expressão de Jesus «fazer a vontade» 9 é


interpretada como sinônimo de “obedecer a um comando”, “atender a uma exigência”.
Sim, existe também esse sentido, mas não é o principal. “Fazer a vontade” significa
“tornar visível” , “tornar real”, “fazer com que seja” compreensível a todos e possível para
todos aquilo que é a vontade do Pai 10. É permitir que um desejo supere a esfera do
sentimento e se transforme em vida real, concreta, visível. É isso que Jesus se empenhou
a “fazer”. Ora, o Pai não tem umas “vontades” entendidas como uma série de dicas ou
orientações a serem cumpridas, mas sim apenas uma vontade que é tão bem
sintetizada nas palavras de Paulo: «Esta é a vontade de Deus: que sejais santos»
(1Tes. 4,3). O que isso significa? Com certeza não é uma atribuição ética nem moralista;
“ser santo” na linguagem bíblica não corresponde a se impecável, sempre irrepreensível
ou coisas semelhantes; “Santo” é apenas Deus, ser chamado a ser santo significa
participar daquilo que Deus é, cada um pela condição que lhe é própria.
Sendo assim, se vê que Jesus compreendeu toda a sua missão como um levar a
cumprimento o processo já iniciado há séculos pelo Pai; o longo processo com o qual
Deus desejou estreitar a si mesmo o homem. Antes com Israel e agora com o Novo Israel
de Deus realizado em Jesus Cristo. Trata-se de uma vida inteira entregue para que
aconteça a vontade de Deus, bem com nós também rezamos na oração do Pai-nosso:
“faça-se a tua vontade”; ou seja, que se torne possível para todos o teu desejo!
Não se trata apenas de uma ou outra ação a ser cumprida, se trata de uma atitude
continuada de adesão ao único grande desejo de Deus ao qual unimos o nosso desejo,
do mesmo modo que Jesus unia o Dele ao Pai. É assim que Jesus interpretava o seu
agir: «Aquele que me enviou está comigo, não me deixa só, porque eu faço
sempre o que lhe agrada» (Jo. 8,29).

Pelo que pudemos ver, “ser enviado” não corresponde estritamente e “cumprir um
mandato”, especialmente no caso de Jesus. Precisamos nos perguntar, então, o que
significa “ser enviado” e “como” Jesus foi enviado? Ou seja, quais são as características
que O envolviam e que Ele ainda hoje entrega aos seus discípulos?
Creio que um dos trechos dos Evangelhos que nos possam ajudar melhor a esse fim é a
narração do episódio na Sinagoga de Nazaré. Refletir sobre ele nos ajudará a entender
também o sentido da nossa presença no mio dos homens, sim, porque o que trazemos
conosco é a autoridade de falar e agir em nome de Jesus. Desse modo, apenas
entendendo “como” Jesus se sentia em relação aos homens da época poderemos
compreender o nosso “como”...

1. “Como” Jesus compreendeu a sua missão?

Se a nossa fé deve recuperar a sua força e o seu potencial de ser uma alternativa
9
«A
minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e
realizar a sua obra.» (Jo. 4,34).
10
Nos Evangelhos se faz uma distinção no uso de dois vocábulos diferentes com significados também
diferentes. Para nós “fazer” é quase sinônimo de “construir”, é ligado mais ao sentido de “agir”. Os
Evangelhos usam a lingua grega e esta tem uma grande variedade de vocabulos para indicar o modo
de “fazer”. Pois bem, quando estes se referem à ação de Jesus e ao seu pedido para que nós
“façamos” o que Ele fez, isto é, a vontade do Pai, não se usa a palavra “” (tecne = movimento dos
dedos) mas sim outros vocábulos que, resumindo, significam: “visibilizar”, tornar “concreta”, “mostrar
que é possível” a vontade de Deus, não é coisa abstrata.

-5-
ainda possível para as angústias do homem contemporâneo, é necessário que se sempre
mais “Cristocêntrica”. Precisamos novamente “partir de Cristo” (como escrevia João Paulo
II). Para compreender o sentido da nossa presença no mundo como discípulos, para
entender os gestos sacramentais da Igreja precisamos “partir de Cristo”. Então, antes de
tudo vamos ler o episódio narrado em Lc. 4,14-21 11.
Com certeza aqui temos uma exposição clara de como Jesus interpretava o sentido
da Sua presença no meio dos homens. As palavras que Ele dirigia aos ouvintes
manifestam o que Ele sentia de si mesmo, do Pai e da missão que carregava em si
mesmo. Não podemos saber se o trecho que Jesus comentou fazia parte da liturgia do dia
ou foi escolhido de propósito, contudo, em ambos os casos é significativo o fato de que
Ele tenha usado a profecia de Isaías 61 para falar de si mesmo. Precisamos, por isso, dar
um pouco de atenção.

 Na leitura percebemos imediatamente que o agente principal é o Espírito:


«Impelido pelo Espírito...», é Ele quem move Jesus, é Ele quem deu vida
humana e tornou visível a Palavra que Deus sempre diz; a Palavra que é a
expressão de Si mesmo, do Seu amor que se expande 12. Não se trata de um
“mandato” que Jesus recebeu do mesmo modo que se “manda” a um subalterno;
Ele é a prorrompente e trasbordante força de um Amor que está em Deus, se
expande e se faz conhecer. Ele é a Palavra, a comunicação que Deus fa 13 da Sua
presença no mundo, primeiro através da contemplação da criação , em seguida
com uma história construída junto a um povo que aprendeu (com seus limites e
entre erros e acertos) a perceber a presença do Altíssimo interpretada e
manifestada pelos seus Líderes religiosos, pelos Profetas, pelos “homens de
Deus”, a Ele consagrados. Ora, aquilo que nós chamamos de “presença” na
verdade traduz o conceito de “Espírito de Jahvé”; ou “Espírito Daquele que é
Santo”. Eis que se esclarece para nós o primeiro aspecto de “como” Jesus se sente
enviado: não como um emissário que precisa “comunicar” coisa sobre Deus mas
como manifestação, glória, transparência da Presença do Pai, que ainda age no
mundo dos homens mesmo que eles não tenham entendido a linguagem dos
Profetas. É desse modo que podemos compreender as parábolas dos vinhateiros
(Mc. 12,1-8) 14, a parábola do rico e do mendigo Lázaro (Lc. 16,19-31) e outras
palavras de Jesus. O Autor da carta aos Hebreus resume o que dissemos com
11
«Impelido pelo Espírito, Jesus voltou para a Galileia e a sua fama propagou-se por
toda a região. Ensinava nas Sinagogas e todos o elogiavam. Veio a Nazaré, onde
tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na Sinagoga e
levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o,
deparou com a passagem em que está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre
mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me a
proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a dar
liberdade aos oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor”.
Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que
estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes:
“Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir”.»
12
Quando falamos de “palavra” não podemos nos limitar à manifestação dos “lábios”. Nos comunicamos
não apenas com a verbalização, mas como todo o nosso ser: o modo de agir, de vestir, de decidir... Pois
bem, quando falamos de Palavra de Deus não entendemos “palavras de Deus”, mas a única
comunicação total de Si mesmo.
13
«...Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois,
nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as
invisíveis, ..., quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes
de todas as coisas. Nele, tudo subsiste» (Col. 1,15-17). A criação é também lugar por onde
Deus se faz conhecer, é, de algum modo, sua “palavra”.

-6-
estas palavras:«Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos
pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os
últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de
todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo. Este Filho, é
resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância» (Hebr.
1,1-3). Enfim: Jesus é a glória, a manifestação viva que corresponde fielmente ao
Pai.

 A primeira frase, «O Espírito está sobre Mim» não é uma afirmação priva de
significado escatológico porque depois da morte do último dos Profetas, os Rabinos
lamentavam a “ausência do Espírito” (como se lê no Talmude). O Espírito parecia
estar “inquieto”, sem encontrar alguém sobre o qual “pousar”. A imagem da pomba
que pousa sobre Jesus no Batismo indica que, finalmente, o Espírito encontrou o
lugar próprio para “pousar definitivamente!”. Esse “lugar” é Jesus: «Hoje se
cumpriu». Pois Nele se realiza plenamente a função do Espírito Santo que é a de
unir. O Espírito une Pai e Filho; o Espírito une a humanidade de Maria e a
divindade de Deus em Jesus; o Espírito une todos os homens entre si e com Deus.

 A presença do Espírito é sempre ligada àquele processo que chamamos


consagração. Isto é, a participação ao Sagrado; tal consagração era indicada com
o sinal da unção. Como veremos mais adiante a unção é também simbolo de uma
“escolha preferencial”. Eis então mais um elemento que nos permite entender como
Jesus se sentia: ligado por um laço preferencial. A força do anúncio e da ligação
entre quem envia e quem é enviado nasce da consciência de ter sido escolhido
de modo preferencial. Tal consciência tem o poder de manter sempre viva e
dinâmica a relação entre quem envia e quem é enviado.

 A consagração é a mola propulsora da missão. Não é possível representar, agir,


falar autoritativamente em nome de alguém se não se tem uma forte ligação que
permita garantir a sintonia entre um e outro. A revelação que Jesus faz do Pai com
a Sua vida alcança o homem em todas as suas dimensões: aos “pobres” 15, é dado
o que precisam, isto é a esperança; aos “presos” é oferecida a liberdade que é
própria dos filhos de Deus; para os “cegos” é oferecida a possibilidade de ver o
mundo com outro olhar. Acima de tudo isso Jesus se sente chamado a mostrar a
todos a “graça”, isto é, a gratuidade com a qual Deus age; um Deus que não cobra,
que perdoa antes de julgar, que dá o mesmo salário a quem trabalhou o dia inteiro
e quem trabalhou apenas uma hora..!

Enfim, podemos dizer que esses três elementos: Presença estável do Espírito,
consciência de escolha preferencial, visibilização do verdadeiro rosto de Deus, são

14
«...No tempo da colheita, enviou um servo aos lavradores para que recebesse
deles dos frutos da vinha; eles, porém, o agarraram, espancaram e o mandaram
embora de mãos vazias. De novo, lhes enviou outro servo, e eles o espancaram e
o insultaram. Ainda outro lhes mandou, e a este mataram. Muitos outros lhes
enviou, dos quais espancaram uns e mataram outros. Restava-lhe ainda um, seu
filho amado; a este lhes enviou, por fim, dizendo: “Respeitarão a meu filho”. Mas
os tais lavradores disseram entre si: “Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo e a
herança será nossa”. E, agarrando-o, mataram-no e o atiraram para fora da vinha »
15
Os “pobres de Jahvé” são a categoria de pessoas que “se sentem necessitadas de Deus”. Isso pode se
verificar em todas as dimensões da vida da pessoa, não se restringe apenas ao fator econômico. É
pobre quem não encontra saída e apela a Deus porque sabe que Ele é a saída...

-7-
norteadores na vida e na ação de Jesus. Ele é a manifestação do Pai enquanto é a
visibilização daquilo que o Pai é para o homem.

2. Anunciar e Proclamar

O texto anterior faz referência à missão de Jesus, a mesma que Ele, mais tarde,
entregará aos discípulos, à Sua Igreja. Ora, percebemos que Jesus usou duas
expressões diferentes quando aplicava a si mesmo o texto de Isaías: a primeira é
«anunciar» (v. 18) e a segunda é «proclamar» (v.19). A diferença não é insignificante e
indica as duas principais características que devem estar presentes quando se representa
alguém. Assim como Jesus, nós também somos chamados para “anunciar” e “proclamar”.
Mas o que significam essas duas maneiras de se expressar?
Podemos distinguir assim:

 Anunciar: na linguagem bíblica, indica uma proclamação realizada em forma de


memória onde os eventos passados são base compreender o momento
presente e a lógica de Deus.
O anúncio é quase sempre ligado ao conceito de “missão”, de deslocação
para cumprir uma tarefa. Indica um movimento em direção de alguém que é
destinatário; o verbo “apostello” (), que significa “ser enviado em
direção...”, está na origem da palavra “apóstolo”. O mesmo verbo, na língua
hebraica (Mal’ak) significa “enviado”, “anjo”, “mensageiro”. Disso se deduz que o
“Apóstolo” é o enviado por excelência, a pessoa indicada para dar testemunho,
com a sua vida e a sua autoridade, dos mesmos conteúdos que fizeram parte da
vida de Jesus de Nazaré. O anúncio é quase sempre unido à pregação com a qual
se une o evento passado com o momento presente o qual é lido e explicado à luz
do inteiro projeto de Deus. O anúncio não tinha apenas a função de propaganda,
tinha a finalidade de explicar uma verdade de fé já recebida e vivida. Era um
RECORDAR, isto é, “trazer ao coração”. Implica representatividade e ministério.
O anúncio corresponde ao “ministério da Palavra” (cfr. At. 6,2).
 São Paulo foi convocado por Cristo com estas palavras: «Eu sou Jesus, a quem
tu persegues. Por isto te apareci, para te constituir ministro e
testemunha » (At. 26,16)
 Ainda Paulo fala de “sagrado ministério do anúncio” da «graça que me foi
outorgada por Deus, para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os
gentios, no sagrado encargo de anunciar o evangelho de Deus,»
(Rm.15,15)
 « vós que recebestes a lei por ministério de anjos e não a guardastes »
(At. 7,53)
 « No dia seguinte, Paulo foi connosco a casa de Tiago, e todos os
anciãos aí se reuniram. Depois de os saudar, começou a expor,
minuciosamente, tudo quanto Deus tinha feito entre os pagãos, pelo
seu ministério » (At. 21,17-19).

 Proclamar: é fazer um apelo público, diante de uma multidão. É “clamar” em favor


de uma urgência. Isto significa que, quem “proclama”,, é instituído para “dar uma
resposta” ou seja, é dar uma resposta visível e confiavel a um o a mais dramas que

-8-
o homem vive. Isso deve acontecer tanto em nível pessoal quanto em nível mais
amplo, justamente com Jesus fez, procurando dar uma resposta visível, concreta
aos dramas das pessoas que encontrava em seu caminho. As necessidades ho
homem não se resumem apenas em necessidades práticas, pois a vida d euma
pessoa é sempre infeliz, não resolvida mesmo na opulência quando não se
encontra uma resposta para o sentido da vida. Sendo assim, também a proposta
de Jesus é uma repsosta. De fato “vocação” não é um simples chamado, mas sim
é uma convocação para algo urgente. Para poder dar às pessoas a resposta que
Jesus dava.
Com a palavra “proclamar” entendemos o inteiro processo de comunicação o
qual não é dado apenas através da “informação” mas é a transmissão de uma
realidade com toda a sua força demonstrativa. A etimologia do verbo proclamar,
vem do verbo grego “kerusso” (). Tal verbo se aplicava a quem possuía o
“Kerix”, uma espécie de cetro semelhante ao cetro do Príncipe. Muitas vezes
ouvimos falar de “Querigma” e com isso, entendemos o conjunto essencial dos
elementos que compõem a nossa fé em Jesus Cristo 16 . Quando um enviado
falava tendo em mão o kerix gozava de uma autoridade direta do Príncipe e,
contemporaneamente, da proteção divina. Ele era um era porta-voz; isso não
significa que fosse um um simples “instrumento” de transmissão; como “porta-voz”
ele tornava presente o Príncipe; gozava da proteção divina e da autonomia para
poder interpretar em nome do mandante. Contudo não podia expressar a sua
posição particular, mas devia ser o mais possível fiel ao entendimento do
Príncipe. Não era autorizado a tratativas com o inimigo!
Jesus usou esta expressão na Sinagoga de Nazaré
 «Jesus passou a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o
reino dos céus (Mt. 4,17)
 Jesus fala de «Proclamar dos telhados» (Mt. 10, 27)

Anunciar e proclamar o Evangelho tem sentido apenas se aquilo que os nossos


lábios proferem é manifestação de uma autêntica e profunda realidade que o coração
carrega em si pois, como dizia Jesus, «a boca fala daquilo que do qual o coração
está cheio» (Mt. 12,34). Tanto ontem quanto hoje apenas a credibilidade da pessoa que
anuncia dá ao destinatário a condição de poder receber o anúncio. Mais do que nunca o
homem de hoje está saturado de ideologias, de propostas e fica desconfiado diante de
qualquer recomendação. Dificilmente é capaz de acreditar em “verdades”, mas ainda é
capaz de acreditar numa pessoa. É pouco sensível às novidades propostas. Invés que
doutrinas busca líderes e, mesmo depois que os sistemas culturais tenham desacreditado
a maioria dos pontos de referência (família, educação, religião, história, futuro, bem
comum...), ainda o homem é capaz de procurar uma pessoa significativa, alguém que
vive verdadeiramente o que crê!
Era isso que todos viam em Jesus, é isso que Jesus espera ver no discípulo.

16
Um exemplo do “Querigma” o encontramos na primeira pregação públida da Igreja na manhã de
Pentecostes (cfr. At. 2,22-ss). O “querigma” se compõe de uma parte histórica, que liga toda a ação de
Deus (é a continuidade, elemento essencial no processo de salvação que é chamdo também de
“tradição”), e um onde são evidenciados os princípios. Em Atos dosApóstolos, o “querigma” é resumido
em cinco pontos fundamentais, como se este fosse um paralelo com o cinco livros da Lei. Isso não é
casual pois, no dia de Pentecostres, os Hebreus celebravam a festa do “Dom da Lei”.

-9-
3. Jesus é testemunha do Pai

Pudemos esclarecer que anunciar e proclamar não se resumem apenas no ato de


“dizer” algo sobre Deus ou Jesus. Vimos como a autoridade com a qual se anuncia ou
proclama o Evangelho é essencial para a credibilidade e essa autoridade é estritamente
vinculada à credibilidade da pessoa que anuncia; à “sua” palavra. Ou seja, é como se
alguém dissesse: “é porque foi ele quem disse assim que isto só pode ser verdadeiro”.
Clara é, a esse respeito a expressão dos Apóstolos a Jesus: «Sobre a tua palavra
lançaremos as redes» (Lc. 5,5); não haveria outra motivação capaz de superar a
convicção que nascia da experiência de pescadores que haviam feito aquilo a vida inteira!

A palavra dada tinha bem mais força do que a nossa; hoje precismos de tabelião,
documentação, provas, declarações que nos desresponsabilizem etc... e isso nos fez
perder a referência à pessoa.
Com certeza pode não mostrar toda a maturidade, toda a liberdade, toda a
autonomia a expressão de uma criança que continua dizendo: “foi mamãe quem disse...”;
sim, mas quantos outros valores existem atrás disso! E quantos valores se perdem com a
perca da referência a alguém!

Principalmente na época de Jesus, a credibilidade do conteúdo era estritamente


ligada à pessoa que falava; assim, por exemplo, não era uma pessoa qualquer que podia
dar o anuncio de uma vitória ou derrota em batalha. Apenas a credibilidade da pessoa
que falava dava valor a o que era anunciado. Antigamente, por exemplo, não existia um
documento de identidade, era suficiente dizer o próprio nome e a família; o “nome” da
família, a sua história davam credibilidade à afirmação de quem se identificava. Isso era
suficiente. Do mesmo modo alguém que desse um anúncio não era questionado quanto
ao conteúdo se a sua história, a sua “família”, o seu modo de agir era fidedigno.
Por outro lado ao enviado cabia a difícil tarefa de agir de modo tal que o ouvinte deixasse
de lado seus receios e confiasse em algo que não estava vendo, que não podia verificar.
Nisso era essencial que o enviado se envolvesse plenamente, a todo custo. Tal atitude,
de envolvimento sem retornos, a qualquer custo era expressa com a palavra
“testemunho”. Dar “testemunho” não é sinônimo de “contar uma história”, ou descrever
fatos. O testemunho é algo ainda mais comprometedor do que o anúncio em si mesmo,
porque a testemunha paga com a própria vida!

É dessa adesão total, incondicional, até a morte que deriva a palavra “mártir” (em
grego: marturion- martyrion). Por isso, com toda a propriedade, o Apocalipse define
«Jesus Cristo a Testemunha fiel o primogênito dentre os mortos e soberano
da terra» (Ap. 1,5). Sim, Jesus interpretou o conjunto da sua existência e da sua missão
sentindo-se Testemunha autêntica do Pai. Jesus foi testemunha não apenas com
palavras, mas com todo si mesmo através de um estilo de vida que não apenas falasse
do Pai, mas mostrasse o Pai; o Pai agindo com Ele em favor dos homens.
Para entender melhor o que dissemos, vou usar um exemplo. A experiência de
Israel o conduziu aos poucos a compreender a providência de Deus e que Ele é capaz de
encontrar uma saída aonde não há saída, como aconteceu em muitas situações durante o
caminho no deserto. Para indicar essa característica de Deus, que supera toda
expectativa e mantém viva a esperança no coração das pessoas, os Hebreus usavam
repetir frases como esta que se encontra no livro de Salmos: «O Senhor abre os olhos
aos cegos» (Sal. 146,8). Obviamente o significado perpassa o gesto de abrir os olhos do
cego, mas sim indica que Deus é capaz de fazer o impossível e que vale a pena acreditar
na Sua fidelidade. Ora, levando isso em consideração, porque será que Jesus curou, por
- 10 -
exemplo, o cego de Jericó 17? Não é difícil dar uma resposta.

Sem dúvida alguma os milagres de Jesus nunca tiveram a intenção de ser gestos
demonstrativos do Seu poderio; se assim fosse Ele teria “descido da cruz” – como Lhe
haviam pedido os sacerdotes 18. Os milagres que Jesus realizou eram gestos
significativos cuja finalidade prin19ipal era dizer: as expectativas de sempre agora estão
ao vosso alcance. Grande parte das pessoas entendeu muito bem o sentido dos gestos
de Jesus e reconheceu o sentido que Jesus estava dando, por isso encontramos no
Evangelho frases como esta: «No auge do assombro, diziam: “Faz tudo bem feito:
faz ouvir os surdos e falar os mudos”» (Mc. 7,37); aqui, «bem feito» não significa
“corretamente”, mas sim: “conforme o que se esperava” de Deus.
Creio que, nesse sentido, a resposta que Jesus deu a Felipe seja mais
esclarecedora do que tantas outras palavras: «Felipe, quem vê a Mim, vê o Pai» (Jo.
14,9).

4. O Pai e o Espírito são testemunhas de Jesus

Deus não pode ser conhecido através de um raciocínio, nem de palavras. Deus
não é um sentimento nem uma força. É uma Pessoa e como “Pessoa” Ele se revelou na
longa história de Israel. Conhecer uma pessoa é bem mais complexo do que conhecer
uma coisa, pois qualquer coisa possui um limite enquanto cada pessoa é portadora de um
mistério insondável, que a supera. De uma pessoa podemos conhecer este ou aquele
aspecto, podemos tentar descrever uma ou outra qualidade, podemos nos atrever a
identificar algumas características mas, em última análise, qualquer pessoa é bem mais
daquilo que podemos dizer dela. Mais complicado ainda é pretender de fazer conhecer
uma pessoa à partir da nossa visão dessa pessoa. De qualquer modo façamos para falar
de alguém, sempre o nosso modo de dizer será condicionado da visão que nós temos
quanto àquele de quem falamos. Isso nos diz imediatamente uma coisa: é impossível
fazer conhecer alguém apenas por aquilo que dele nós vemos.
Se é assim para uma pessoa humana, o que será possível dizer de uma Pessoa
divina? Como será possível “anunciar” Deus, anunciar Jesus? Qual é o limite entre a
visão que cada um de nós tem de Jesus e Ele assim como é? Não poderemos correr o
risco de “anunciar” antes a nós mesmos ou a nossa visão particular de Jesus do que a Ele
mesmo? Mas então, como poderemos explicitar o mandato missionário de tornar
“conhecido” o Nome de Jesus, a Sua pessoa, a Sua mensagem?
Se vê claramente como a linguagem verbal é insuficiente para transmitir o bom
anúncio de Jesus, pois a fé cristã não é uma teoria, uma ideologia que pode ser explicada
e organizada, é um fato, um evento; ou melhor, é a decisão de aderir a uma Pessoa.
Apenas depois de ter aderido a Ela é que se começa a compreender; é exatamente o
inverso de qualquer outra resposta que somos solicitados a dar; nesses outros casos,
17
Mc. 10,46-52
18
«Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel! Desça da cruz, e
creremos nele» (Mt. 27,42).
19
«Partindo Jesus dali, seguiram-no dois cegos, clamando: Tem compaixão de nós,
Filho de Davi! Tendo ele entrado em casa, aproximaram-se os cegos, e Jesus lhes
perguntou: Credes que eu posso fazer isso? Responderam-lhe: Sim, Senhor! Então,
lhes tocou os olhos, dizendo: Faça-se conforme a vossa fé » (Mt. 9,27-28). «…Jesus,
respondendo, disse-lhes: “Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os
cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os
mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho” » (Mt. 11,4-
5).

- 11 -
primeiro queremos conhecer e depois dizemos “sim” ou “não”; com Deus é o oposto!

Existe um outro caminho... E se nós também invertêssemos o processo? Se ao


invés de falar de Jesus pudêssemos deixar Jesus falar de Si? Sem dúvida tal processo
não exclui o anúncio verbal, a explicação dos valores que o Senhor trouxe, mas coloca o
conhecimento de Jesus em outro nível. Fazer conhecer a Deus é introduzir e conduzir
alguém dentro do mistério de Jesus, homem-Deus. É permitir a quem está em busca de
Deus que possa fazer uma experiência real da Sua presença através da pessoa de
Jesus. Conhecer é entrar na intimidade de alguém, sem pretender “conquistar” e
apoderar-se da pessoa que se dá a conhecer pois ela é, e sempre permanecerá, um
mistério. Por outro lado é também um deixar-se penetrar, na intimidade, de tal modo que
haja uma recíproca transmissão de si mesmo ao outro. Trata-se de um envolvimento que
supera a conceitualização e se transmite fundamentalmente pelo caminho da relação.
Por consequência torna-se evidente que o conhecimento de alguém é estritamente ligado
ao tempo e à intensidade da relação; apenas o desenvolver-se desses dois fatores nos
permite de “conhecer” alguém; não apenas à imagem do outro que se cria na minha
mente. Eu diria, com São Paulo: «é o Espírito que fala ao nosso espírito» (Rm. 8,16),
com uma linguagem que dificilmente pode ser codificada em palavras, mas é autêntica e
real.

Lembro de algumas palavras que o então Card. Ratzinger dirigiu aos catequistas
de Roma: “Apenas pela experiência de uma vida vivida com Deus é que aparece também
a evidência da sua existência” (10/12/2000).

Deus não se entende, se vê!

Já consideramos que anunciar, proclamar, testemunhar, implicam necessariamente


no envolvimento pessoal, mesmo que em vários níveis. Ora, surpreende porém que Jesus
tenha sempre falado de “anunciar o Evangelho” ou anunciar as “obras de Deus” e não de
“anunciar a Ele”. Assim, por exemplo Ele agiu com o endemoninhado 20 e com os
discípulos 21; e mais, o Evangelista Lucas diz de Jesus que «andava de cidade em
cidade e de aldeia em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do reino de
Deus, e os doze iam com ele» (Lc. 8,1). Por outro lado vemos também que Jesus não
considera a possibilidade de que um homem, na sua condição natural, possa dar
testemunho de Jesus; pelo menos não aparece nos Evangelhos alguma afirmação em
propósito. Não pede isso aos discípulos, não pede a nenhum dos que foram curados ou
beneficiados... Por outro lado Jesus afirma que é possível dar testemunho Dele, mas isso
não é obra apenas humana. Em duas circunstâncias diferentes Jesus afirma: «O Pai, que
me enviou, esse mesmo é que tem dado testemunho de mim» (Jo. 5,37) e noutra
situação: «Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do
Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim»
(Jo. 15,26). Sendo assim parece que, na ótica do Senhor, apenas o Pai e o Espírito

20
«Tendo Jesus entrado no barco, aquele que fora endemoninhado, suplicava-lhe que
o deixasse ficar com ele. Jesus, porém, não lho permitiu, mas ordenou-lhe: “Vai para
tua casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez e como teve
compaixão de ti.” Então, ele foi e começou a proclamar em Decápolis tudo o que
Jesus lhe fizera» (Mc. 5,18-20)
21
«Curai os enfermos que nela houver e anunciai-lhes: o Reino de Deus está próximo
de vocês!» (Lc. 10,9)
- 12 -
podem dar testemunho de Jesus 22. E isso é a mais pura verdade pois nenhum homem,
na sua condição natural, pode falar apropriadamente de Deus; qualquer coisa ele diga é
absolutamente parcial e insuficiente. E mais ainda; se testemunhar é “conduzir à
intimidade” é “introduzir no mistério”, como será possível pretender que um homem possa
conduzir alguém, introduzir alguém, numa dimensão que não lhe pertence, que é divina?
Se é divina não é humana. Pretender de “introduzir” alguém no mistério divino é o mesmo
que reduzir o que é divino a o que é humano.

5. Sereis minhas testemunhas

Chegamos num aparente empasse: por um lado Jesus pede para anunciar e
proclamar o Evangelho, por outro lado tais atitudes exigem um envolvimento pleno, por
outro ainda surge a pergunta: como será possível envolver-se plenamente sabendo que,
afinal das contas, um homem não pode dar testemunho de Cristo? No entanto, o impulso
de extravasar que o Evangelho gera no coração de quem o recebe é tão grande que
Paulo chega a dizer: «ai de mim se eu não evangelizar!» (1Cor. 9,16).

Ainda hoje a força exuberante do Evangelho transparece em quem se deixou


envolver por ele; age de tal modo que não pode ser encoberta e se transforma no
caminho ainda possível para que o homem encontre-se com Deus. A esse respeito
permito-me citar parte do discurso que Bento XVI fez em Fátima no dia 13 de maio de
2010:

“Se não estivermos entusiasmados pela profundidade e pela beleza da nossa fé,
não poderemos verdadeiramente transmiti-la nem aos vizinhos nem aos filhos nem às
gerações futuras. Neste tempo em que, no sentir de muitos, a fé cristã deixou de ser
patrimônio comum da sociedade, não bastam os discursos, os apelos morais ou os
acenos genéricos aos valores cristãos, ainda que estes continuem a ser indispensáveis. É
sabido, de fato, que “a mera enunciação da mensagem não chega ao mais fundo do
coração da pessoa, não toca a sua liberdade, não muda a vida”. Num tempo assim,
aquilo que fascina é, sobretudo, o encontro com pessoas crentes que, pela sua fé,
atraem para a graça de Cristo, dando testemunho Dele”.

Como poderá alguém dar testemunho de Jesus?

Chegamos assim ao núcleo da questão. Por quanto falemos de Jesus estaremos


cumprindo apenas o estádio primário do anúncio, por aqui se dá um conhecimento
superficial feito de “informações sobre Jesus”, isso porque estamos ainda no âmbito
natural. Mas o discípulo de Jesus poderá sim ser testemunha real de algo Divino a partir
do momento em que a dimensão divina entrará nele e será nele transparente, visível,
perceptível. Sim, é isso que acontecerá logo após a ressurreição de Jesus, é o mistério da
festa de Pentecostes.
Sabemos perfeitamente que a nossa Páscoa não se resume na lembrança e
celebração de um defunto que voltou a viver. Se fosse esse o sentido da Páscoa, porque
então não celebraríamos a festa de tantos que, como Lázaro, voltaram à vida? A Páscoa
é muito mais do que isso, como veremos melhor adiante. Com a Ressurreição de Jesus,
toda a criação foi permeada pelo Espírito do Senhor, o mesmo Espírito presente no Pai e
no Filho. Veremos isso mais claramente ao falar do Batismo; veremos que esse mesmo
Espírito insere o discípulo na dimensão em que Jesus está, na dimensão divina. O
22
Aos judeus um dia Jesus respondeu: «Eu, porém, não aceito testemunho humano …» (Jo. 5,34)

- 13 -
discípulo, unido a Cristo, participa dos mesmos efeitos que o Espírito Santo provocou em
Jesus no dia da Ressurreição, é essa convicção que Paulo manifesta aos cristãos de
Roma: «Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os
mortos, esse mesmo Espírito que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos,
vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós
habita» (Rom. 8,11). Se Jesus foi constituído como “criatura nova” com a Páscoa,
aqueles que a Ele aderem participam da sua mesma natureza; sendo assim o cristão não
é apenas um homem “natural”, mas um homem “sobre-natural”, algo que Paulo tenta
descrever com a imagem do “Adão” 23 e do “novo Adão”, a “nova criatura” 24 que é
permeada pelo Espírito de Deus.

Eis o que ele escreve aos cristãos de Corinto «Assim está escrito: o primeiro
homem, Adão, foi feito um ser vivente e o último Adão 25, um espírito que
vivifica. Mas o primeiro não foi o espiritual, mas o terreno; o espiritual vem
depois. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo vem do céu»
(1Cor. 15,45-47). Há um homem terreno, ligado às leis da natureza assim como Deus a
fez, e há um homem “novo”, isto é, uma criatura que possui em si o que Jesus de Nazaré
possuía em si: o humano e o divino. Dessa nova criatura Cristo é o “primogênito” no
entender de São Paulo: «Porque àqueles que Ele de antemão conheceu, também
os predestinou para serem uma imagem idêntica à do seu Filho, de tal modo
que Ele é o primogênito de muitos irmãos.» (Rm. 8,29).

Pois bem, ao deixar a dimensão histórica da sua vida e pouco antes de ascender
ao céu, Jesus dirigiu aos seus estas palavras: «Recebereis a força do Espírito
Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém,
por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo» (At. 1,8). Aqui se trata de
uma promessa, uma garantia que Jesus está dando ao seus, está asserindo que eles
receberiam o mesmo Espírito o qual que pode dar testemunho autêntico de Cristo. Ao
receber o Espírito eles receberiam também a condição divina para poder ser
testemunhas de Jesus, isto é, não apenas “falar Dele” mas sim mostrar Ele presente.
Sim, porque ser testemunha de Cristo não é falar Dele nem mesmo imitar o que Ele fazia,
como tampouco obedecer às suas indicações. Testemunhar Cristo é deixar irradiar a sua
presença no mundo. É ser transparência do Senhor Ressuscitado e permitir ao Espírito
que está em nós de envolver, com a luz da verdade sobre Jesus, aquele que se aproxima
do discípulo o qual, mesmo com todos os seus limites, é portador desse grande mistério.

Pouco antes nos perguntamos: “...e se nós também invertêssemos o processo? Se


ao invés de falar de Jesus pudêssemos deixar Deus falar de Si?”. A resposta agora
começa a aparecer. Sim podemos dar testemunho de Jesus não apenas falando Dele,
mas permitindo a Deus que fale de Deus, ao Espírito que fale do Filho, que comunique o
Filho com a linguagem do espírito. É isso que veremos mais tarde, quando iremos
considerar o que aconteceu no dia de Pentecostes e o que significa ser “ministro da
Palavra”.

23
“Adam”, na língua dos Hebreus não é um nome próprio, é um nome genérico que significa “homem”,
“senhor”. Adão, então é o homem como Deus o fez, com a natureza “humana”, com a sua
“humanidade”. Todos nascem como “Adão”.
24
«E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura » (2Cor. 5,17);
25
Evidentemente aqui Paulo se refere a Jesus Cristo de quem provém o Espírito santificador.

- 14 -
III. LUGAR DA MEMÓRIA

Geralmente quando pensamos em “testemunhar”, a primeira coisa que vem à


nossa mente é “dizer algo” sobre um evento; obviamente isso é verdade mas é apenas
um aspecto do testemunho. Tem coisas que falam sozinhas, que não precisam de
explicações, aliás, quanto mais se explica tanto menos se entende. A linguagem
simbólica, por exemplo, é empobrecida proporcionalmente a quanto mais se fala. Não é
preciso explicar o que significa um presente, um sorriso, um aperto de mão... Nesse
casos, quanto mais se tenta dizer tanto menos se comunica.
Na maior parte da nossa história e das culturas com as quais o homem expressa o
que é e o que vive, a linguagem verbal foi a menos usada para “testemunhar”; o uso
desse tipo de linguagem é muito recente e limitado. Grande parte do testemunho não é
dado por palavras mas por objetos ou atos que evocam um fato. Testemunhar, então,
não significa fazer divulgação de um episódio, nem apenas tentar encontrar “provas” para
demonstrar algo que desejamos demonstrar. Testemunhar é,antes de tudo, gerar no
outro uma condição tal que traga à memória um evento fundamental.
Para fazer isso nós utilizamos gestos, músicas, imagens, ritos, cores... enfim, tudo
o que pode gerar hoje, no coração de quem está diante de nós, o mesmo sentimento que
ele tinha ontem, isto é, quando se verificou o evento evocado. Por exemplo, o esposo
que, com um gesto quase instintivo, roda a aliança que está no dedo da esposa,
fundamentalmente deseja evocar nela o sentimento que ambos sentiram no dia do seu
“sim”. Isto porque aquela peça de metal “estava presente no dia do recíproco “sim”.
Pois é, é exatamente este o significado, a etimologia da palavra “testemunhar”; em sua
origem “testemunha” é o que está presente num evento passado. Isso é fundamental
para entendermos o que Jesus fez com a Igreja, o que Ele desejou realizar através dos
Sacramentos, o valor do qual cada batizado é revestido! Eis como Jesus via toda essa
riqueza com a qual os discípulos (nós também) seríamos envolvidos: «Quando, porém,
vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade,
que dele procede, esse dará testemunho de mim; e vós também
testemunhareis, porque estais comigo desde o princípio» (Jo. 15,26). O Espírito
é Testemunha da “verdade” quanto a Jesus porque está presente Nele, desde sempre,
na unidade trinitária. Uma vez que o discípulo for enriquecido com o Espírito de Deus
também ele será capaz de ser testemunha porque é transformado em sinal vivo, através
do qual Deus poderá comunicar-se a quem estiver disposto a ouvir.

6. Sinal da memória

Desde o V sec. antes de Cristo, foi se afirmando


também no Oriente Médio uma cultura chamada

- 15 -
“megalítica” 26, que fazia uso de grandes pedras para marcar lugares especiais, lugares
diferentes do comum. De algum modo se tratava de sinais que serviam para identificar e
diferenciar um espaço sagrado de outros espaços chamados “profanos”. As escavações
arqueológicas trouxeram à tona muitos desses sinais sagrados. A pedra recebia um valor
simbólico altíssimo porque a sua duração era considerada infinita. Desse modo a
estabilidade da pedra era associada à firmeza da divindade. Também entre os Hebreus
existia uma prática semelhante, embora não se atribuísse às pedras nenhuma
propriedade divina.

Um exemplo desse costume, semelhante às crenças pagãs, o encontramos num


episódio que teve um grande valor para o próprio Jesus ao qual Ele se referiu em várias
ocasiões. Estamos falando do “sonho de Jacó” narrado em Gen. 28,10-22. Voltaremos
mais adiante nesse trecho, mas agora me permito apontar apenas um detalhe. Jacó
sonhou uma escada e anjos subindo e descendo por ela. É preciso esclarecer que, na
linguagem bíblica, a expressão “sonho” não corresponde a um conjunto de fantasias que
a mente gera durante o sono; trata-se, antes, de um modo para expressar aquela
condição da qual se faz experiência quando sentimos ou percebemos algo que está
acima da capacidade de expressar ou descrever como fenômeno. É também o estado
“típico” de uma pessoa que está entre o sono e a vigília, quando a mente parece “solta” e
se deixa levar sem freios. Mais propriamente, diríamos nós, se trata de uma experiência
mística 27.
Pois bem, nessa experiência, Jacó sentiu Deus confirmar através dele a
continuidade da Aliança feita com Abrão. Foi um momento muito forte que precisou ser
marcado de um modo “sagrado”. Vamos ler o que Jacó fez: «No dia seguinte de
manhã, Jacó tomou uma pedra que lhe servira de travesseiro e, depois de a
erguer como um memorial e derramou óleo sobre ela. Chamou aquele lugar de
Betel, quando, originariamente, a cidade se chamava Luz.». Temos aqui dois
gestos: erguer uma pedra como memorial e derramar óleo em sinal de consagração.
Em seguida a mudança de nome indicará também a mudança o significado daquele
lugar.

Outro episódio digno de consideração está narrado no livro de Josué.


Depois de um momento de crise, Josué reafirmou a sua fidelidade a Deus diante
do povo o qual também aderiu. Foi um momento importante para a história de Israel, um
ato que precisava ser marcado de um modo definitivo. Eis, a seguir, a narração do
ocorrido: «O povo respondeu a Josué: “Nós serviremos o Senhor nosso Deus, e
obedeceremos à sua voz”. Naquele dia, Josué fez uma aliança com o povo e
deu-lhe, em Siquém, leis e prescrições. Josué escreveu estas palavras no livro
da Lei de Deus e, tomando uma grande pedra, erigiu-a ali como um
monumento, sob o carvalho que se encontrava no lugar santo. Josué disse a
todo o povo: “Esta pedra servirá de testemunho entre nós, pois ela ouviu
todas as palavras que o Senhor nos disse; ela servirá de testemunho contra
vós, para que não renegueis o vosso Deus”» (Jos. 24, 24-27).

Notamos aqui alguns elementos que formam como que a base antropológica e
cultural sobre a qual, séculos depois, alguns gestos especiais foram chamados “gestos

26
Do grego “mega” () que significa “grande” e “litos” () que significa “pedra”.
27
Mais adiante veremos o significado desta expressão, ligada ao “mistério” com o qual o homem de Deus
é envolvido; é uma expressão muito significativa, principalmente para a dimensão sacramentária da
nossa vida de fé.

- 16 -
santos”, ou seja, que pertencem a Deus e conduzem a Deus. Estamos falando dos
sacramentos da Igreja.

 Tudo começou à partir de um momento de crise de identidade, no qual se


tornava necessário reiterar a aliança; ou seja, trazer ao “hoje” de Josué 28
aquilo que havia acontecido já com Abrão (Gen. 15), depois com Moisés (Ex.
24). Nos momentos de dificuldade os Hebreus costumavam fazer memória
dos grandes gestos do Senhor.

 Temos uma decisão, uma retomada de consciência ratificada com palavras e


um gesto: «tomou uma grande pedra».

 O lugar onde acontece essa retomada de consciência e da decisão de seguir a


Deus se transforma em lugar sagrado, é um «lugar santo» porque é um
lugar de encontro entre Deus e o homem, embora isso não aconteça de fato,
mas apenas por “representação”.

 A pedra «ouviu» a renovação da decisão; no sentido de que esteve presente e


pode falar sem palavras mas com autenticidade apenas por aquilo que
representa. Para os dois envolvidos, Deus e o homem, ela se transforma em
símbolo 28 que faz os dois se entenderem sem palavras, com aquilo que ela é,
remete ao mesmo episódio em que ambos estavam presentes. É como se
projetasse novamente os dois participantes de um pacto num tempo que já
correu.

7. A Arca da Aliança

O uso dos povos Cananeus 29 de gravar na pedra ou usar pedras para indicar um
pacto estável ou um acontecimento importante, influenciou os Hebreus os quais usaram o
mesmo método para indicar a Aliança estabelecida entre Jahvé e eles. É o evento do
Sinai, quando Deus entregou a Moisés os termos de um caminho de consagração e
Moisés, por resposta, gravou isso em tábuas de pedra: «Então disse o Jahvé a
Moisés: “Sobe a mim, ao monte, e fica lá; te darei tábuas de pedra a lei e os
mandamentos que escrevi, para os ensinares”» (Ex.24,12).

Moisés «lavrou duas tábuas de pedra e, levantando-se pela manhã de


madrugada, subiu ao monte Sinai, como o Senhor lhe ordenara, levando nas
mãos as duas tábuas de pedra» (Ex.34,4). Tais tábuas de pedra receberam o nome
de “Testemunho” já que representavam sinais estáveis e permanentes de um pacto
irreversível e definitivo, eterno assim como a pedra é “eterna”. Foram colocadas numa
arca de madeira coberta com metais preciosos assim como podemos ler: «Porás o
propiciatório em cima da arca; e dentro dela porás o Testemunho, que eu
te darei. Ali, virei a ti e, de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins
que estão sobre a arca do Testemunho, falarei contigo acerca de tudo o que
eu te ordenar para os filhos de Israel» (Ex.25, 21) 30.
28
Sem entrar em questões mais detalhadas, podemos dizer que os fatos aos quais nos estamos referindo
aconteceram em torno do ano 931 a.C.; a Aliança com Abrão pode ser datada em torno do ano 1850
a.C. e a Aliança estabelecida no Sinai com Moisés em torno do ano 1250 a.C.
29
Era chamado “Cananeu” o povo que habitava a terra da Palestina antes que Israel ocupasse o território.
30
Toda a descrição da Arca da Aliança, nos seus pormenores, se encontra em Ex. 37,1ss.

- 17 -
A Arca do Testemunho, isto é, das pedras
gravadas, passou a ser chamada “Arca da
Aliança” por causa do significado que trazia em si;
ela tinha sido transformada em simbolo de um
evento e de uma história vivida juntos entre Jahvé
e Israel. Carregar a Arca da Aliança significava
manter sempre vivo o pacto estabelecido de
fidelidade e confiança recíprocas entre Deus e
Israel. Com o progredir do conhecimento e do
aprofundamento da relação entre Jahvé e Israel, a
Arca foi enriquecida com outros elementos que
haviam marcado e fortalecido o pacto de
fidelidade. Tratava-se de outros símbolos que tinham sido importantes no decorrer do
caminho percorrido juntos; foram colocados na Arca, junto com as tábuas da Lei, um
galho de hissopo que foi usado no dia da saída do Egito 31 e da consagração do povo 32 e
uma porção do maná 33 dentro de um vaso de ouro.

A Arca da Aliança acompanhava sempre os Hebreus durante o caminho. O relevo


que foi dado à presença da Arca era tão grande que, por exemplo, a conquista da cidade
de Jericó foi descrita como um cortejo religioso encabeçado pela Arca 34 acompanhada
pelos sacerdotes, os quais faziam uso de instrumentos litúrgicos. O significado era
simples: foi a presença da Arca que permitiu a Josué de expugnar uma cidade
considerada a mais antiga fortificação do Oriente Médio.

IV. UM LUGAR DE ENCONTRO

No rápido excursus que fizemos vimos como situações e lugares especiais fossem
marcados como memorial, testemunho, símbolos que eram capazes de tornar sempre
presente um passado que não havia sido encerrado. Podiam ser sinais estáveis, como as
pedras fincadas no chão ou móveis, como a Arca da Aliança. De algum modo todos eles
significavam a estabilidade de uma relação.

Ora, encontrar-se diante de um desses símbolos não suscitava apenas uma


lembrança do passado; ao ver o símbolo, ao tocar o símbolo era toda uma história, uma
vivência que era evocada e voltava não apenas à mente, mas sim ao coração. Sim a
palavra recordar significa exatamente isto: trazer ao coração. Ora, sabemos que a Bíblia
chama “coração” não apenas o órgão físico, não apenas a sede dos sentimentos, mas,

31
«Imolai a Páscoa. Tomareis depois um ramo de hissopo, mergulhá-lo eis no sangue que
estiver na bacia, e marcareis o dintel e as duas ombreiras da porta com o sangue que
estiver na bacia» (Ex. 12,21-22). Sendo que a Arca foi destruída e as informações que possuímos são
de fontes diferentes, existe também outra versão, testificada, por exemplo, na Carta aos Hebreus (9,4)
segundo a qual a Arca continha a vara de Arão (cfr. Ex. 7,19).
32
«De fato, tendo Moisés proclamado a todo o povo cada prescrição, segundo a Lei, tomou o
sangue de novilhos e dos bodes com água, lã escarlate e um hissope e aspergiu o livro e
todo o povo, dizendo: “Este é o sangue da aliança que Deus estabelece convosco”» (Hebr.
9,19)
33
Era o símbolo da Providência de Jahvé (Ex. 16,16-18) e da confiança que, diariamente, os Hebreus
tinham que renovar.
34
Jos. 6,1-16

- 18 -
principalmente a expressão indica o lugar onde se tomam as decisões fundamentais.
De fato as decisões importantes da nossa vida não vêm da sensação, não vêm do
sentimento, não vêm da razão... vêm do conjunto de tudo isso misturado com algo que
intuímos mas não conseguimos nos explicar. Tudo isso é coração. Trazer ao coração um
evento passado significa reencontrar-se com ele e reviver aquilo que foi vivido então e
renovar uma decisão. Talvez isso nos ajude um pouco a entender Jesus que dirá aos
seus: «fazei isto como meu memorial» (Lc. 22,19); mas nos ocuparemos com isso
mais adiante...

O sinal simbólico, posto diante de duas pessoas, lhes permite de deixar de lado os
problemas que se deram durante o caminho, lhes permite de desprender-se de falhas que
aconteceram entre o primeiro momento, (o momento inicial) e a situação contingente que
os dois estão vivendo. Olhar juntos, por exemplo, para uma flor doada e recebida quando
o casal ainda era noivo, reconduz imediatamente os dois a se perguntarem: “ o que tinha
no início?” e, com isso ter uma ocasião para fortalecer a união, esquecer pequenas falhas
recíprocas etc.
O sinal simbólico é também um termo de juízo, um ponto de referência para avaliar
as atitudes, a fidelidade, o entusiasmo, em suma, a inteira posição que tomamos diante
de uma escolha que foi fundamental na nossa vida. No livro do Apocalipse o Cordeiro
julgará a Igreja de Éfeso e reprovando-a com estas palavras: «... esqueceste o
primeiro amor!» (Ap. 2,4).

Enfim, o memorial é:
) a contemplação do passado
b) para entender o presente e assim,
) poder escolher o futuro 35.

O Memorial evoca, traz à tona o primeiro encontro, para renovar a decisão de


caminhar juntos.

8. Céu e terra

Na concepção antiga o universo todo era dividido em duas partes bem distintas,
chamadas “céu” e “terra”. Por “céu” se entendia tudo aquilo que está acima do homem,
que é inalcançável, que é infinito; a ideia material de céu foi enriquecida de um sentido
religioso, pois ali onde tudo é inalcançável também moravam as “potências” que regiam
as leis da natureza, as estrelas, a fertilidade da terra, o recorrer das estações etc. Ali
moravam as “divindades” que regiam tudo, inclusive os sentimentos e a história humana.
Em muitos casos essas “potências” eram personificadas a tal ponto de receber uma
imagem antropomórfica, isto é, como se fossem pessoas semelhantes aos homens.
A outra parte do universo era a “terra”, isto é tudo que de algum modo o homem
pode controlar, ver, alterar, compreender etc. Também na Escritura encontramos
afirmações que são reflexo deste modo de pensar «O Senhor, que fez os céus e a
terra. Os céus são os céus do Senhor, mas a terra, Ele a deu aos filhos dos
homens» (Sal. 115,12) 36.
35
Isto será fundamental para a compreensão da Eucaristia através dos gestos que Jesus deixou gravados
na mente e no coração dos discípulos.
36
Que Deus fez os “céus” e a “terra” significa que Ele está na origem de tudo, tanto daquilo que podemos
entender e que faz parte da vida do homem, quanto daquilo que supera a nossa condição.

- 19 -
O mundo dos homens era entendido como o espelho das coisas que aconteciam
no “céu”. Se havia, por exemplo, uma tempestade, a motivação era era porque a
divindade que regia o vento estava em conflito com a divindade que regia a chuva. As
próprias guerras tinham sentido religioso pois eram a manifestação de divindades
protetoras de uma ou outra cidade que combatiam entre si 37 e tal conflito precisava ser
reproduzido na terra para poder garantir a estabilidade e a posição tanto do homem
quanto das divindades . O conflito era a alma da existência; o seguir-se das estações, por
exemplo, era a manifestação do conflito entre vida (primavera) e morte (inverno) ligadas
entre si por um laço incompreensível a tal ponto que podia ser garantida a vida apenas à
partir da morte e vice-versa 38. O conflito era a “lógica” do universo, a lei que dava
movimento e vida; sem o conflito não existiria nada 39.
Ora, o conflito é algo que não se explica por si próprio, pode nascer a qualquer
momento, às vezes com uma causa e às vezes sem motivação alguma. Se o conflito é a
lógica do universo, esse mesmo não tem lógica em si. Isso fazia com que os povos
antigos precisassem interpretar o que os deuses faziam, seus caprichos, suas atitudes
ilógicas para poder reproduzir na terra o que eles faziam no céu, caso contrário estaria em
risco o inteiro equilíbrio do cosmo. Mas não era apenas por isso que era absolutamente
imprescindível tentar conhecer as vontades dos deuses porque eles também eram
imprevisíveis e, geralmente ciumentos dos homens. Entre os homens e as divindades
existia uma regra implícita: a única coisa que os deuses não podiam ter era o louvor e o
reconhecimento dos homens, assim como tributos à sua majestade. Em troca disso as
divindades invocadas os protegiam de outras divindades maléficas. Havia uma
competição entre qual fosse a divindade na qual se podia confiar e qual não o fosse; era
necessário tentar entrar no mundo delas para antecipar os seus comportamentos. A
tentativa de entender as divindades era chamada de “adivinhação”. Para tanto se usavam
vários meios, como, por exemplo a transmigração das aves; as vísceras dos animais,
amuletos ou outros instrumentos semelhantes 40 (conchas, dentes de animais, pó...). A
interpretação da posição das estrelas, ou “astrologia”, era um dos meios mais comuns
que se usavam. Veja-se por exemplo qual foi a motivação que conduziu os Reis de Magi a
Jesus: «vimos a sua estrela no Oriente» (Mt. 2,2ss).

O uso de amuletos, talismãs, imagens de qualquer tipo que servissem como


representação de divindades ou qualquer meio usado de modo mágico para
escamotear os segredos dos deuses era terminantemente proibido na
Escritura 41.

37
Jahvé foi considerado maior do que os outros deuses (não se negava a existência de outros deuses!)
porque Ele foi capaz de derrotar os deuses Egípcios; « O Senhor é maior que todos os deuses,
porque livrou este povo das mãos dos egípcios » (Ex. 18,11); «E que nação há na terra,
semelhante ao povo de Israel, a quem o seu Deus veio resgatar para que se
tornasse o seu povo,...resgatado-o do Egito e dos seus deuses? » (cfr. 2Sam. 7,23).
38
Grande parte dos sacrifícios, inclusive sacrifícios humanos praticados também entre os Hebreus
(«Edificaram alturas a Baal para queimar seus filhos como holocaustos a Baal...» Jer.
19,5), tinham a função de garantir o ciclo de vida-morte mantendo essa ligação através da imolação de
um animal ou mesmo de uma criança.
39
Grande parte das mitologias e cosmogonias têm com origem um conflito entre duas divindades, uma
caótica e a outra organizadora (cfr. Mitos de Arta Harsis, Guilgameš).
40
Também entre os Hebreus existiam técnicas de adivinhação que conviviam com a proibição do uso de
amuletos. Até no campo religioso era usada uma técnica –não muito clara para nós- chamada “ urim e
tummim” (?) cfr. (Lv. 8,8; Dt. 33,8)
41
«Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em
cima nos céus ou na terra» (Ex. 20,4)
- 20 -
A motivação é clara: se para todas as religiões naturalistas tais meios serviam para
poder penetrar no mundo das divindades e antecipar-se a elas precavendo-se assim de
seus caprichosos comportamentos, não era o mesmo para o Deus de Israel o qual, único
entre todos, não tinha segredos escondidos. Ao contrário! Jahvé era um Deus que se
revelava, que queria deixar-se conhecer. Essa era a diferença mais profunda da relação
entre Jahvé com Israel e das outras divindades com seus seguidores. Desse modo era
absurdo fazer uso de imagens ou amuletos porque o Deus de Israel, Jahvé, era diferente
dos outros deuses; para entrar em contato com Ele o homem não precisava de magia
mas sim, precisava apenas aprender a escutar 42.

9. Um lugar sagrado

A ligação entre “céu” e “terra”, era mantida não apenas através de objetos, mas
também através de pessoas. Todo grupo social, clã ou tribo, possuía um seu sacerdote
(a palavra significa: “conduzir ao sagrado”) e um feiticeiro. O sacerdote agia através de
ritos para por em comunicação o “céu” e a “terra” enquanto o feiticeiro geralmente
funcionava como um (desculpem a comparação) para-raios das divindades. O feiticeiro
entrava em convulsão 43 para manifestar a superioridade da “força divina” que o havia
invadido, mudava de voz, fazia gestos incomuns, às vezes, devido à excitação e o
descontrole físico manifestava uma força muito maior do que era o normal. Entrando em
trance incorporava alguma divindade e, interrogado, respondia às perguntas das pessoas
que iam consultar o “oráculo” 44. Às vezes, (como no caso do Oráculo de Delfos) o oráculo
respirava substâncias alucinógenas, como gases que vinham de fendas da terra (daqui a
palavra “inspiração”) e, já que se imaginava a existência de divindades também debaixo
da terra, então o Oráculo caía tomado de convulsões porque tais divindades estavam
falando com ele e através dele . Seja o que for, independentemente dos meios usados,
todos precisavam de um lugar de encontro entre o divino e o humano. O feiticeiro, o
sacerdote eram cada um com a sua função e identidade, lugares visíveis, públicos do
encontro com a divindade. Era fundamental que houvesse um lugar que fosse
objetivamente representado e não apenas sentimentalmente imaginado. Um “lugar”
santo que podia ser simbolizado por um objeto, uma pessoa e um rito. Esses três
elementos formarão a retrospectiva também dos nossos sacramentos, e da própria Igreja.

A forte ligação entre os deuses e objetos sagrados ou pessoas sagradas era tão
forte que, em alguns circunstâncias havia quase uma identificação entre a divindade e o
instrumento que a representava. Assim, por exemplo, em caso de derrota numa batalha, o
derrotado simplesmente “abandonava” seus deuses no campo de batalha e o vencedor se
apressava a recolhê-los (às vezes os acorrentava e colocava aos pés da divindade
vencedora, no templo a ele dedicado). Temos um caso desse tipo narrado no 2º livro de
Samuel; depois de uma derrota «Os Filisteus abandonaram ali os seus deuses e
Davi os levou embora» (5, 17-21) 45. Objetos, ritos, pessoas eram como a “chave” para
poder ter acesso ao mundo incógnito dos deuses; se esses eram as “chaves”, também

42
O hebreu dava início à sua oração com as primeiras palavras da Aliança do Sinai: «escuta, Israel»
(Dt. 4,1).
43
O uso de entrar em convulsão, falar línguas estranhas, fazer gestos incompreensíveis era a forma mais
segura de expressar, simbolicamente, que aquele “homem” por alguns momentos não era mais apenas
um ”homem”, mas o espírito da divindade o havia tomado e falava por ele.
44
A palavra “oráculo” vem do latim e significa “boca” da divindade.
45
Também Gen. 35,4 e outros

- 21 -
existiam lugares próprios que funcionavam como “acesso” ao divino, lugares de encontro
onde o divino e o humano por alguns átimos podiam se aproximar.
Não era difícil para os povos antigos identificar tais “lugares sagrados”. Por
exemplo, um carvalho secular era sem dúvida alguma um lugar de concentração de
“vida”, ali com certeza havia mais “vida” do que num espinheiro. Momentos importantes
na Escritura são narrados como acontecidos “debaixo de um carvalho”.

 Abrão se encontrou com Deus no lugar chamado «carvalhos de Manré» (Gen.


18,1ss)
 Abimeleque foi proclamado rei debaixo de um carvalho (Jz. 9,6) 46
 Gedeão também se encontrou com o anjo de Deus perto de um carvalho (Jz.
6,16ss) 47.

Pedras estranhas ou cavernas que emitissem um som (por causa do vento)


também eram tidas como lugares sagrados. Para reconhecer que se tratava de lugares
sagrados se erguiam postes sagrados 48 ou altares, esses eram tidos como a porta de
acesso ao divino o qual, de outro modo, era inalcançável. É necessário ainda fazer uma
última anotação: o contato era provisório e momentâneo, ligado a um tempo restrito;
nunca de modo permanente.
A semelhança de todos os povos, também Israel construía altares nos lugares que
pudessem servir como porta de acesso a Deus. O altar era o lugar sagrado onde o
homem podia oferecer a Deus o que lhe era próprio e Deus aceitava a oferta retribuindo
com a sua bênção.

Eis a seguir alguns exemplos:


 Noé, símbolo do homem que sabe obedecer, ao sair da Arca elevou a Deus um
altar (Gen. 8,20);
 Abrão construiu um altar ao receber a promessa de uma descendência e de uma
terra (Gen. 12,7-8);
 Moisés fez um altar ao celebrar a aliança no Sinai (Ex. 24,6)
 O livro do Êxodo traz uma descrição detalhada para fazer um altar

... e muitos outros exemplos. Mas queira mais uma vez retomar o texto do sonho de Jacó
que já vimos acima. Encontramos aqui algo diferente em relação às convicções dos povos
pagãos. Eis a seguir o trecho de Gen. 28,10ss:
«Jacó saiu de Bercheba e tomou o caminho de Harã. Chegou a um
determinado lugar e resolveu ali passar a noite, porque o sol já se tinha posto.
Serviu-se de uma das pedras do lugar como travesseiro e deitou-se. Teve um
sonho: viu uma escada apoiada na terra, cuja extremidade tocava o céu; e, ao

46
«Então, todos os cidadãos de Siquém e toda Bete-Milo se reuniram e foram e
proclamaram Abimeleque rei, junto ao carvalho memorial que está perto de
Siquém»
47
«Jedeão preparou um cabrito e bolos asmos de um efa de farinha e o trouxe até
debaixo do carvalho e lho apresentou. Ele viu que era o Anjo do Senhor e disse: “Ai
de mim! Pois vi o Anjo do Senhor face a face”. Então, Jedeão edificou ali um altar
ao Senhor»
48
Cfr. 2Cron. 24,18 «Abandonaram o templo do Senhor, Deus de seus pais, e prestaram
culto aos troncos sagrados e aos ídolos. E essas faltas atraíram a ira divina sobre
Judá e Jerusalém. O Senhor enviou-lhes profetas para que eles se convertessem ao
Senhor com as suas exortações. Mas eles não lhes deram ouvidos .»; também 1Rs.
14,23 etc.

- 22 -
longo desta escada, subiam e desciam mensageiros de Deus. Por cima dela
estava o Senhor, que lhe disse: “Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão, teu pai, e
o Deus de Isaac...”
Despertando do sono, Jacó exclamou: “O Senhor está realmente neste
lugar e eu não o sabia!» Atemorizado, acrescentou: “Que terrível é este lugar!
Aqui é a casa de Deus, aqui é a porta do céu”. No dia seguinte de manhã, Jacó
pegou na pedra que lhe servira de travesseiro e, depois de a erguer como um
monumento, derramou óleo sobre ela.».

Desta vez veremos o conteúdo do sonho. Temos a representação de uma escada,


um instrumento que liga a “terra” e o “céu”; temos aqui uma inovação muito grande e
revolucionária: o mundo do homem e o mundo divino para a Escritura, não são divididos
com barreiras intransponíveis. A escada apoia no mundo dos homens, mas o céu fica
aberto aos homens. Acima da escada está Deus, o qual não se esconde nem protege o
mundo divino –como era em todas as religiões do período- mas a primeira coisa que faz
é se deixar conhecer de modo que o mundo que céu e terra não sejam mais dois eones
separados. Ao pronunciar o próprio nome, Deus não apenas se identifica, mas reafirma a
sua qualidade de ser um Deus que se revela. Jacó ficou tomado pelo “temor de Deus” 49 e
identificou de um modo todo especial aquele lugar que depois consagrou construindo um
altar: ele disse: «Que terrível é este lugar! Aqui é a casa de Deus, aqui é a porta
do céu ». Prescindindo de muitos detalhes algo fica bem claro: Jacó intuiu a mais
profunda verdade sobre a relação entre o homem e Deus, ou seja, que o mundo de Deus
é aberto; há uma porta localizada bem no topo da escada.

10. Jesus é a porta

Hoje é mais familiar à linguagem comum ouvir falar de um imaginário “portal” que
dá acesso a várias dimensões, prescindindo do tempo e do espaço. Grande parte da
cultura de ficção científica recorre a essa estratégia para indicar o desejo do homem e a
hipotética possibilidade de superar o mundo em que ele se percebe cincunscrito. Um
“portal” é um limite de aceso entre dois mundos que podem encontrar-se mas nunca
confundir-se um com o outro. Pois bem, essa mesma ideia era antigamente representada
com a imagem de uma “porta”, pois a palavra “porta”, na língua Persa significava
“passagem”.
A mitologia latina representava esse lugar de passagem
com a imagem do deus Giano com duas faces, guardião de
dois mundos. A convicção de que existissem duas
dimensões pertencentes uma ao homem e outra aos
espíritos se encontra também em muitas outras culturas,
inclusive nas civilizações pré-colombianas; é o caso do
Portal de Aramu Muru, (perto do lago Titicaca) por onde o
feiticeiro passava para entrar no mundo dos espíritos que
protegiam o disco solar. Por alguns aspectos, a distinção
entre dois mundos foi aplicada também às cidades. Às
49
O temor de Deus é uma virtude gerada pelo Espírito Santo, bem diferente do “medo” de Deus. O temor
de Deus coloca Deus no lugar de Deus e, por isso, mantêm uma relação humilde de confiança e
entrega. Ter “medo de Deus”, do que Ele pode nos pedir, do que Ele pode fazer com a nossa vida, de
que Ele nos tire alguma coisa, principalmente o medo que Ele não seja capaz de nos deixar felizes, é a
declaração clara que em nós não existe amor por Ele; «No amor não existe medo; antes, o
perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz sofrimento; logo, aquele que teme
não é aperfeiçoado no amor» (1Jo. 4,18).

- 23 -
portas da cidade, colocadas uma ao lado da outra, era fato comum ver representações
sombrias, assustadoras, semelhantes a carrancas, de monstros e quimeras que tinham a
finalidade de separar o espaço profano, o deserto, lugar de morte (que era povoado de
demônios) do espaço sagrado, a cidade, onde havia “vida”.
Para os Hebreus a divisão entre o mundo profano e o mundo sagrado era ainda
mais acentuada enquanto era forte neles a convicção que Jerusalém fosse a habitação do
“nome” de Jahvé e, por isso, lugar sagrado 50. Jerusalém era chamada «Cidade
Santa»assim como tinha sido durante a viagem no deserto a Tenda do Encontro, lugar
onde estava guardada a Arca da Aliança.

Levando em consideração esses pressupostos, é possível entender melhor o fato


de que Jesus retome a imagem da porta e a aplique a si mesmo em vária ocasiões.

Numa ocasião em que Jesus precisou indicar “quem” Ele era e qual fosse a sua
missão o fez com estas palavras: «Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será
salvo; entrará, e sairá, e achará pastagem» (Jo. 10,9). Tal expressão não é casual,
Jesus a deduz da profecia de Miqueias o qual esperava um “Pastor-Rei” que daria a
liberdade verdadeira a Israel e o conduziria para novos caminhos. È com estas palavras
que Miqueias expressa o seu vaticínio: «Tenha certeza, ó Jacó, te ajuntarei todo;
certamente, congregarei o restante de Israel; os reunirei, todos juntos, como
ovelhas no aprisco, como rebanho no meio do seu pasto; Aquele que lhes abre
o caminho subirá diante deles; eles encontrarão uma saída, entrarão pela porta
e sairão por ela; e o seu Rei irá adiante deles; sim, o Senhor, à sua frente» (Miq.
2,12). Podemos notar aqui a expressão “entrar e sair”; tal modo de dizer indica a
liberdade, o livre acesso. Ora, quando Jesus precisou indicar “quem” Ele fosse e qual
seria a sua missão o fez com estas palavras: «Eu sou a porta. Se alguém entrar por
mim, será salvo; entrará, e sairá, e achará pastagem» (Jo. 10,9). Desse modo
Jesus usou e aplicou a si mesmo a expressão de Miqueias: “entrar e sair”. Por um lado
Jesus é o Pastor que dá a liberdade, a liberdade para “entrar e sair” entre um espaço e
outro, entre o sagrado e o profano. Por outro lado Ele é também a “porta” entre uma
dimensão e outra; entre o humano e o divino. Aquele que desejar unir-se a Ele, poderá
“entrar e sair”, não encontrará barreiras entre o mundo sagrado e mundo profano pois, em
Jesus, humano e divino não têm limite: tudo o que é humano é divino!

Jesus é aquilo que as religiões naturalistas intuíam e o mundo Bíblico pressentiu: é


a porta, o ponto de acesso ao divino. «Em verdade, em verdade vos digo: eu sou a
porta das ovelhas. Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e
salteadores; mas as ovelhas não lhes deram ouvido.»(Jo. 10,7). Em Jesus o sonho
de Jacó não era mais apenas um sonho, se transformava numa realidade, melhor, numa
Pessoa. Na conversa com Natanael que se questionava sobre a identidade de Jesus, o
próprio Senhor mencionou o sonho de Jacó com estas palavras: «Em verdade, em
verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e
descendo sobre o Filho do Homem» (Jo. 1,51). Jacó havia visto uma escada que dava
acesso ao mundo de Deus e, sobre tal escada, os anjos podiam “subir e descer” 51 à
vontade; a escada tinha a função de ponte que liga permanentemente duas dimensões.
Jesus se apresentava a Natanael como “pontífice”, ponte, lugar de acesso, caminho...
Enfim, é por Ele que se chega realmente a Deus e isso de modo definitivo.
50
«Desperta, desperta, reveste-te da tua fortaleza, ó Sião; veste-te das tuas
roupagens formosas, ó Jerusalém, cidade santa; porque não mais entrará em ti nem
incircunciso nem imundo» (Is. 52,1); cfr. Ne. 11,1
51
A expressão é análoga a “entrar e sair”.

- 24 -
11. Os ritos de introdução, o altar a purificação

Sagrado e Profano se encontram e se distinguem em espaços próprios, o limite


entre os dois espaços é marcado por um ponto de acesso, uma “lugar limite” que
chamamos “porta” de acesso. A passagem entre as duas dimensões, os dois mundos,
não acontece apenas atravessando a porta, para que isso possa acontecer é necessário
que se cumpram alguns ritos capazes de algum modo de diminuir a distância que
naturalmente existe entre os dois mundos. Esses ritos são chamados ritos de passagem,
dos quais nos ocuparemos mais adiante quando daremos a eles um nome especial se a
pessoa que os cumpre se refere a Jesus, o nome antigo de iniciação ao mistério de
Cristo.

O mais comum dos ritos de passagem entre as duas dimensões era o rito que as
mulheres faziam depois de ter dado à luz um filho. Ainda hoje, na celebração da Missa
temos a lembrança desse rito 52. No Evangelho de Lucas lemos assim: «Passados os
dias da purificação, segundo a Lei de Moisés, levaram o menino Jesus a
Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, conforme o que está escrito na Lei
do Senhor: “Todo primogênito ao Senhor será consagrado”; e para oferecer um
sacrifício, segundo o que está escrito na referida Lei: “Um par de rolas ou dois
pombinhos”» (Lc. 2, 22). Maria, como todas a mulheres que haviam dado à luz, foi ao
Templo para cumprir o rito de purificação. Do que se tratava? Evidentemente precisamos
nos livrar da ideia de que dar à luz uma criança fosse considerado algo “impuro” ou
pecaminoso... A questão é bem mais profunda e rica de significado. Ao ficar grávida uma
mulher entrava diretamente em contato com algo que não lhe pertencia, ou seja o
mistério da vida que, exclusivamente, pertence a Deus. Ninguém conhecia os processos
fisiológicos ligados à gestação. Isso fica claro, por exemplo, nas palavras que a mãe dos
sete irmãos (mortos por Antíoco) dirigiu a um deles: «Não sei como aparecestes nas
minhas entranhas, porque não fui eu que vos dei a alma nem a vida, nem fui
eu que formei os vossos membros...» (2Mac. 7,22). Pois bem, já que a mulher tinha
participado de algo “divino” ela precisava realizar alguns ritos que a tornassem digna
daquilo que, sem saber, tinha vivido em si mesma. O rito de purificação era realizado com
a água e um sacrifício unido a orações específicas. Algo semelhante se encontra também
na nossa celebração eucarística quando sacerdote “lava as mãos”; obviamente isso é um
gesto ritual que indica que, a partir daquele momento, o padre está entrando numa
“esfera” que não pertence ao homem, mas exclusivamente a Deus. De fato, o padre pode
gerir a inteira celebração como bem quiser dentro das normas litúrgicas próprias, mas não
pode modificar nem as palavras nem os gestos realizados por Jesus e que ele atualiza na
consagração do pão e do vinho. Ninguém a não ser Deus, pelo próprio Espírito que o
Padre invoca, pode modificar algo natural (pão e vinho) em algo divino (o próprio Jesus).
No rito antigo o padre lavava as mãos também depois da consagração, exatamente como
faziam as mulheres depois de ter dado à luz um filho, para indicar que reconhecia o dom
de ter entrado numa esfera que não lhe pertencia e agradecer de ter sido honrado de
tanto mesmo não sendo digno.

Os Evangelhos relatam muitas vezes o que Jesus pensava em relação aos ritos de
purificação, veremos isso mais adiante, gostaria apenas de lembrar um episódio que
explicitamente mostra a diferença entre a “purificação” do Antigo Testamento e a nova
52
Um rito muito bem evidenciado antes da reforma litúrgica e que se tornou menos visível na celebração
atual

- 25 -
proposta de Jesus. Um dia alguns discípulos de João Batista foram ter com Jesus
questionando Ele nesses termos: «Por que nós jejuamos, e os fariseus o fazem
muitas vezes, e teus discípulos não jejuam?» 53. A resposta de Jesus foi clara: «
Podem, acaso, fazer penitência os convidados para o casamento, enquanto o
noivo está com eles?» (Mt. 9,14-15). Ora, a lógica de Jesus é simples: o que purifica
uma pessoa não é o sacrifício que ela possa fazer, como tampouco o rito, mas sim a
capacidade de permanecer ao lado do Noivo, partilhar com Ele a missão, a vida, enfim
participar da festa que o Pai dá em honra do Noivo que desposa a “noiva” (no caso a
imagem da noiva é tirada do Antigo Testamento e indica o povo que Deus escolheu, as
pessoas que chamou e educou). É isso que purifica o homem, o torna puro, “apto” a
entrar na esfera do divino: ao lado e com Jesus, homem-Deus.

Em outras circunstâncias, quando um hebreu desejava “apresentar-se ao


Senhor” também precisava fazer ritos de purificação e sacrifícios . De maneira especial
era exigido um sacrifício quando alguém precisava “falar com Deus”. Na porta da Tenda
do Encontro onde estava a Arca da Aliança, havia um altar, que era como um marco de
divisão entre o Sagrado e o Profano (o mundo comum), ali era praticado o sacrifício que
permitiria o acesso ao mundo do divino, como podemos ler no livro de Êxodo: «Imolarás
o novilho perante o Senhor, à porta da tenda do Encontro» (Ex.29,11) e, também,
alhures: «… O sacerdote colocará aquele sangue sobre os chifres do altar do
incenso aromático, perante o Senhor, no altar que está na tenda do encontro; e
todo o restante do sangue do novilho derramará à base do altar do holocausto,
que está à porta da tenda do encontro» (Lev. 4,7) 54.

Se antigamente a pedra erguida simbolizava e indicava um lugar especial de


encontro entre Deus e o homem, um lugar especial que “concentrava” a presença da
divindade 55, do aos poucos o altar foi substituindo as pedras; isso por causa de uma
diferença de fundo: a pedra apenas recordava o evento, o altar podia fazer “reviver” um
evento, ou melhor, de algum modo dava a possibilidade de que fosse vivido um evento
semelhante ao primeiro e isso através de uma ação ritual. Sim, porque embora o rito
fosse perpetuado e estabelecido com regras fixas, o sacrifício era sempre “novo”, nunca
igual ao primeiro 56. Enfim o altar funcionava como elo de ligação entre o divino e o
humano fazendo uso de uma ação que era sempre a mesma mas sempre nova. Assim
a dimensão “sem tempo” isto é, a dimensão do “céu”, podia ser unida à dimensão “ligada
ao tempo”, a “terra”. É daqui que vem a expressão que ouvimos já algumas vezes: “o
altar une o céu à terra”. Na noite do Sábado de Aleluia o sacerdote marca o Círio pascal
com um estileta indicando simbolicamente um lugar onde se encontram “o tempo e a
eternidade” já que Cristo é “o princípio e o fim, A e W”.

V. JESUS CRISTO, LUGAR DE ENCONTRO

Segundo a perspectiva que tivemos até agora, a pessoas de Jesus não nos
aparece mais apenas como a de um “mestre” que nos ensina um caminho a seguir; Ele
53
O jejum era uma das formas de purificação, junto com a esmola, a penitência e o rito de lavar as mãos
54
«Este será o holocausto contínuo por vossas gerações, à porta da tenda do
encontro, perante o Senhor, onde vos encontrarei, para falar contigo ali » (Ex. 29,42)
55
Como já vimos com o sonho de Jacó etc.
56
O próprio fato de que a vitima fosse imolada, repetir um sacrifício necessariamente implicava uma nova
vitima; do mesmo modo mudava o dia, a situação etc.

- 26 -
não é um fundador de uma nova religião; não é um iluminado. Tampouco se aplica
facilmente a Ele a figura de um homem integérrimo, não parece ser um homem
perfeitamente aderente às leis religiosas e morais do período. Também não dá para
identificar Nele um revolucionário ético ou político. Enfim, quem Ele é?
É, essa, a mesma pergunta que desde Cesareia de Felipe, Jesus dirige ainda a
qualquer um de nós assim como a dirigiu aos seus discípulos: «Afinal, vocês quem
acham que eu sou?» (cfr. Mt. 16,13ss). Porque será que a Jesus não interessava nada
da opinião das pessoas comuns, dos fariseus, dos religiosos, dos escribas? De fato
quando os discípulos responderam vagamente: «alguns acham que você é um
profeta, outros que... » Jesus simplesmente ignorou as opiniões, procurando nos
discípulos uma resposta que viesse da sua experiência de vida. Mesmo que ainda eles
não tivessem as condições para entender plenamente o mistério de Jesus, mesmo que
tivessem ainda uma experiência parcial, era uma experiência de vida. Sim, porque eles
não falavam por “opiniões”, mas porque antes de entender, tinham aderido, mesmo sem
entender. É o amor que se substitui ao entendimento. É a escolha de uma pessoa, antes
das ideias. Isso é o que faz um discípulo.

Até agora consideramos que objetos, ritos, práticas religiosas, de algum modo
serviam para por em contato o humano com o divino. Tudo isso nada mais é do que uma
série de instrumentos humanos que podem ser vistos como a antecipação de uma última
e definitiva maneira de se encontrar com Deus: Jesus de Nazaré. Jesus é a mão que
Deus estende ao homem para estar junto com o homem. Apenas por Ele é possível entrar
realmente no mundo “celeste”. Para a mulher Samaritana que questionava Jesus sobre
qual fosse o lugar e o modo correto de render culto a Deus, Jesus respondeu dando um
corte definitivo a todas as práticas religiosas considerando-as como “não verdadeiras”,
isto é como não definitivas, consistentes e substituiu Si mesmo a tudo o que havia sido
feito até então.
«Jesus declarou-lhe: “Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que,
nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Mas chega a
hora - e é já - em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em
espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai deseja”» (Jo. 4,21,23)
57

Os atos de Jesus antes de ser uma série de gestos de bondade e compaixão para
com os mais necessitados, são gestos demonstrativos de que Jahvé está mais próximo
do que se pode imaginar. Os pecadores que eram tidos como indignos são os primeiros a
serem acolhidos, assim por exemplo, a moral comum era expressa muito explicitamente
no primeiro dos Salmos que diz: «... feliz o homem que não senta em companhia
dos pecadores» (Sal. 1,1); ora, como não perceber o significado simbólico do fato de
que Jesus sentou à mesa com os amigos de Mateus que eram “pecadores”? Vê-se então
que seus gestos são um convite a aderir a Ele, a entrar pela porta, mesmo que essa não
se acomode às exigências de cada um (é estreita.!) «Entrai pela porta, estreita, (larga
é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz para a perdição, e são muitos os
que entram por ela). Como é estreita a porta e quão apertado é o caminho que
conduz à vida, e como são poucos os que o encontram!» (Mt. 7.13-14).

57
Quanto ao significado da expressão “Espirito e Verdade” indica o novo culto gerado pelo Espírito no
coração de uma pessoa que vive a vida em Cristo que é a “Verdade”. É um culto que tem com base a
“unidade gerada pelo Espírito Santo”, bem como repetimos continuamente nas nossas celebrações: “...
na unidade do Espírito Santo”.

- 27 -
Entrar em comunhão com Ele é o objetivo de cada gesto, palavra, decisão do
Senhor, pois apenas “entrando” Nele cada homem pode entrar no mundo “celeste”, no
mundo de Deus.

12. Jesus revelação viva do Mistério

Em todo o Antigo Testamento, Jahvé é considerado o "Pai" 58 de Israel, isso porém


era apenas pelo fato de que foi Ele quem gerou Israel, o conduziu, o assistiu, corrigia
suas deviações por meio dos Profetas. Não temos nenhum indício de que nas orações
Deus era chamado de “pai” em sentido pleno, afetivo, pessoal. Embora em Israel
estivesse sempre clara a consciência de que toda a vida do povo dependesse
diretamente de Jahvé, todavia o relacionamento entre a história do homem e a “história”
de Jahvé eram geralmente vistas como duas realidades distintas, separadas, que se
encontram em alguns momentos especiais, quando Jahvé age como o "poder de seu
braço" 59 intervindo na história de Israel. Porquanto Jahvé ame seu povo, o proteja, fale
com ele "face a face" 60, Deus permanece sempre o Altíssimo, "sentado no trono", cercado
por Eloim, inacessível, «Porque terrível é o Senhor, o Altíssimo, rei grande em
toda a terra» (Sal. 47,3).

Contudo algo mudou profundamente quando «Na plenitude dos tempos o Pai
enviou seu Filho» (Gal.4,4). É esse o ponto de partida após o qual toda a história
humana passou a ser parte da "história de Deus". A linha de separação entre a esfera
sagrada e a profana ficou definitivamente eliminada. O «véu do Templo (que dava
acesso ao interior do Santo dos Santos onde repousava a Arca da Aliança) 61 se rasgou
em dois» comenta o Evangelista Mateus (27,51), a significar que o Mistério Pascal dava
pleno cumprimento ao designo do Pai que "enviou seu Filho" para restabelecer a plena e
perfeita comunhão entre o Criador e sua tão amada criatura 62 fazendo de duas “histórias”
apenas uma na qual Deus e homem se encontram.

É todo esse grandioso projeto que os primeiros cristãos chamaram “mistério”,


como São Paulo o faz na carta aos Efésios: «A mim, o menor de todos os santos, foi
dada a graça de anunciar aos gentios a insondável riqueza de Cristo, e a todos

58
Eis alguns exemplos que nos fazem entender melhor com que pressuposto Deus era chamado de “Pai”;
«Davi abençoou o Senhor diante de toda a assembleia. Davi disse: “Bendito seja
Jahvé Deus de Israel, nosso pai, agora e sempre” » (1Cron. 29,10). «Exaltai-o diante de
todo vivente; é ele o Senhor, o nosso Deus, o nosso Pai, Deus por todos os séculos »
(Tob. 13,4).
59
«Lembre-se das grandes maravilhas que viste com teus olhos, dos sinais, dos
prodígios da mão poderosa e do braço estendido ....». (Dt. 7,19)
60
«Eles ouviram que tu, Senhor, estás no meio deste povo, e te mostras a ele face a
face, que a tua nuvem para sobre eles...» (Nm. 14,14)
61
Entrar no Santo dos Santos significava realizar o que é impossível para um homem: estar diante da
Presença do Altíssimo. Isaías cobre seu rosto ao perceber a santidade do lugar onde está (Is 6);
Somente o Sumo Sacerdote, após uma série de purificações podia entrar em nome de todo o povo no
interior do Santo dos Santos, e isto exclusivamente no dia do Jom Kippur (=dia do perdão).
62
«Agora, em Cristo Jesus, vós, que estáveis longe, estais perto, pelo sangue do
Cristo. Pois ele é a nossa paz: de dois povos fez um só, derrubando a parede de
inimizade que os separava, quando em sua carne » (Ef. 2,13-14).
- 28 -
iluminar sobre a realização do mistério escondido desde os séculos em Deus»
(Ef. 3,8). Um projeto que encontra o pleno cumprimento em Jesus, que é tudo o que
Deus diz e faz para o homem.

«E o Verbo se tornou carne!» escreveu o Apóstolo João no início do seu


Evangelho. "...E", quase a significar que a vinda de Jesus na dimensão humana
representa o ápice de uma história passada que se transforma numa realidade nova.
Deste momento em diante não haverá mais duas realidades paralelas, mas uma única
vida a dois dimensões. Compreender esta realidade nos permitirá de entender os
sacramentos, a sua ação, o efeito produzido em nós... Tudo se dá a partir dessa fusão
entre o humano e divino cujo princípio se deu com a Encarnação do Verbo de Deus e que
chegou à plenitude com a ruptura do limite espaço-tempo que se deu com a Ressurreição
do Senhor. Esse mesmo limite é continuamente superado em cada sacramento, de modo
especial com o Batismo que o faz de modo permanente.

Seguindo esta lógica, podemos compreender o profundo impacto que teve na vida
dos discípulos o fato de poder “tocar” Deus! Sim tocar a Deus... Imaginemos o peso dessa
expressão, principalmente levando em consideração a mentalidade com a qual foram
educados, segundo a qual Deus era absolutamente desligado do homem a ponto de que
sequer o homem podia pronunciar o Nome Santo sob pena de excomunhão e blasfêmia.
Eis como o Apóstolo João transmite o seu espanto, o encanto e a admiração porque ele,
um homem qualquer, pôde ser envolvido com o mistério de Jesus, um homem como
todos e o Deus Altíssimo! «O que existia desde o princípio, o que ouvimos,o que
vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos tocaram,
o Verbo da Vida, de fato, a Vida manifestou-se; nós a vimos, dela damos
testemunho e vos anunciamos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se
manifestou a nós!» (1Jo. 1,1-2).

Ver Jesus não é apenas ver o Carpinteiro de Nazaré, é contemplar Deus.


Contemplar é superar aquilo que o olhar vê e deixar-se encantar por aquilo que o
olhar da fé entrevê.

Contemplar o que não é visível não é algo obvio, mas sim é resultado de um longo
processo que parte com a adesão ao Senhor bem antes da compreensão e, depois,
transforma em compreensão, entendimento, comunhão. Isso explica, por exemplo, o
modo de falar de Jesus assim como é transmitido pelo Evangelho de João. Na grande
parte dos casos Jesus usa uma linguagem com sentido duplo, um sentido que é
incompreensível ao homem que não aderiu a Ele, o outro é compreensível apenas a
quem já aderiu a Ele. Por exemplo, a Nicodemos, Jesus disse «É preciso nascer de
novo» o primeiro entendimento é apenas natural a ponto de que Nicodemos respondeu:
«Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao
ventre materno e nascer uma segunda vez?»; a resposta de Jesus é sob outro
plano: «em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode
entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido
do Espírito é espírito» (Jo. 3,4-6) 63. Tal dúplice modo de falar é expressão daquilo que
Jesus carrega em si, uma vida em dois níveis que formam uma só realidade: é homem e
é Deus que fala, que age, que se deixa “tocar”. É tudo isso que se entende por mistério
de Jesus.

63
Outro exemplo é evidente em todo o discurso com a Samaritana (Jo. 4); no discurso sobre o Templo
«Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei » (Jo. 2,19) etc.

- 29 -
Nesse sentido, então, dizer que Jesus revela o Pai, não significa que Ele diga
coisas sobre Deus, principalmente coisas “misteriosas”, ocultas, desconhecidas... Jesus
revela o Pai enquanto carrega em si o mistério, o divino e o humano unidos, o que
permite a qualquer pessoa de entrar em contato imediato não apenas com opiniões sobre
Deus ou conceitos sobre Deus, mas “tocar” o próprio Deus enquanto se “toca” um
carpinteiro. “Revelar” então não pode ser entendido num sentido limitativo como de
alguém que torna públicos segredos até então resguardados com cautela; revelar
significa remover o véu que ainda podia deixar dúvidas sobre “quem” fosse Deus, sobre
“como” Ele age para com os homens, sobre “o que” Ele deseja de verdade...

Revelar, significa deixar transparecer o rosto de Deus.

13. Os gestos de Jesus como "sinais"

Muito mais que nós, o mundo antigo vivia na busca dos elementos que, através da
natureza, através de fenômenos exteriores etc. mostrassem qual fosse a "Lei" que
permeava a realidade. Encontrar esta "Lei" significava o máximo da sabedoria, significava
encontrar o sentido daquilo que acontece; isto era de extrema importância para a
existência, já que, do contrário, o homem sentir-se-ia como um "átomo" perdido no
espaço, à mercê de forças imprevisíveis que investiam contra ele.

Como todos os homens da antiguidade o hebreu também buscava esta "Lei" que
permeia todas as coisas; contudo havia uma profunda diferença, ou seja, enquanto os
outros buscavam essa “lei” essa “lógica” utilizando-se da própria filosofia, dramaturgia,
poesia etc. Israel sabe que esta "lei" lhe é Revelada. A revelação acontece de modo
progressivo, primeiramente através de uma história longa e paciente e depois diretamente
na pessoa de Jesus, no Verbo, ou como diziam os gregos, no “Logos”. Dessa palavra
deriva outra, aquela que todos buscavam: a “lógica”, isto é o sentido que rege o mundo.
Contrariamente ao mundo primitivo todo, esta "Lei" não se identificava com uma força (por
quanto elevada que fosse, a ponto de ser deificada), mas numa Pessoa, antes, uma
pessoa que age e enquanto age. Uma pessoa que age a partir do próprio mundo
humano e não estando fora dele. É uma Pessoa que se envolve com tudo o que é
humano e não apenas faz “atos em favor dos homens”. Nesta ótica não é difícil
compreender São Paulo quando diz: «Enquanto os Judeus procuram sinais, os
gregos sabedoria, nós pregamos Cristo crucificado» (1Cor. 1,22).

Ao longo da sua história, Israel fez experiência constante da presença da ação


poderosa de Jahvé; muitas vezes tornou-se espectador e participe de "coisas
maravilhosas" através das quais fazia experiência autêntica de Deus, embora de modo
parcial 64; «Ó Senhor, quem é como tu entre os deuses? Quem é como tu,
glorificado em santidade, terrível em feitos gloriosos, que operas maravilhas?»
(Ex. 15,11). Ora, na teologia rabínica se tinha formado a convicção de que o "dia de
Jahvé" 65 seria precedido por "sinais" maravilhosos que o Messias cumpriria novamente
assim como Deus havia feito. Eis um indício, por exemplo, nestes dois trechos de Isaías:

64
Essas “coisas maravilhosas”, são celebradas como Memorial, como base dos sacramentos que a Igreja
celebra hoje, neles revivemos as “grandes coisas” que Jesus fez, tanto durante a sua vida terrena
quanto hoje, na nossa vida privada e comunitária.
65
dia em que Jahvé irá mostrar todo o seu poder, que marca o restabelecimento do seu Reinado diante da
injustiça, da opressão, do mal - cfr. Amós etc.

- 30 -
«As multidões se maravilharão com ele, os reis diante dele fecharão sua boca
porque verão algo nunca narrado e compreenderão o que nunca ouviram »
(Is. 52,15); «Naqueles dias, os surdos ouvirão as palavras de um livro, os
cegos, libertados da escuridão das trevas enxergarão» (Is. 29,18).

Diante desta expectativa geral em Israel, compreende-se bem porque os


Evangelistas emolduraram a obra e a pregação de Jesus, com contínuos gestos de vitória
sobre tudo quanto distancia o homem de Deus. Os gestos de Jesus, bem mais do que
serem atos que visam chamar a atenção ou enaltecer a Sua figura, são a declaração que
chegou, afinal, o "dia de Jahvé". São o sinal de que o Deus, que "criou o firmamento
com o seu dedo" 66, desta vez «desdobrou a potência do seu braço» (Lc. 1,51) abrindo
definitivamente o caminho para a plena comunhão com o homem, que ele ama.
Encontramos no Evangelho de Lucas um testemunho de que as pessoas tinham
entendido o significado que estava por detrás dos milagres: « No auge do assombro,
diziam: “Faz tudo bem feito: faz ‘ouvir os surdos e falar os mudos’”».
Obviamente nisso precisamos ver não apenas um adjetivo sobre o comportamento de
Jesus mas sim a “constatação” (“fez bem”, como a dizer: “é bem isso que diziam os
profetas”...) de que em Jesus se fazia visível a expectativa antiga.

No Evangelho de João praticamente não encontramos a palavra "milagre" para


designar os gestos de Jesus, mas sim a palavra "sinal" 67. Chamamos “sinais” todas
aquelas manifestações que remetem a uma outra realidade; por exemplo, o halo em torno
da lua é sinal de chuva, a migração de algumas aves é sinal de mudança de temperatura
etc. Assim sendo nenhum sinal é importante apenas por si próprio, mas pela realidade à
qual remete. Ora, grande parte dos milagres de Jesus não são importantes por si próprios
e nem sempre geram os resultados desejados; afinal, quantos daqueles que foram
curados por Jesus continuaram a própria vida sem se envolver com Ele e com o Reino?
A intenção com a qual Jesus operava os milagres era apenas uma: indicar que
Deus está perto da pessoa que precisa, não importando o merecimento ou não. Ao
Senhor interessava que as pessoas pudessem “tocar com mão” o próprio Deus, ali e
naquele momento 68!

Esse "gestos" manifestam a ação do Pai ou seja, a salvação em ato. Por outro
lado, não se limitam a declarar que a salvação está à disposição de todos, mas remetem
à própria essência de Deus, visam fazer conhecer “quem” é Deus, o seu modo de pensar,
de agir, a sua lógica enfim, a qualidade do Seu amor. Aos discípulos Jesus deixou como
herança e missão justamente a “qualidade” do Seu amor: «amai-vos com Eu vos
amei» (Jo. 15,17). Aqui o adverbio “como” não significa: “já que eu vos amei”, mas
podemos ler assim: “amai-vos com a mesma qualidade de amor que experimentaste
comigo”, “do mesmo jeito, com a mesma intensidade...”. Vendo Jesus que ama sem
colocar impedimentos às pessoas, é contemporaneamente revelado o Pai e oferecido
um meio para fazer experiência direta e autêntica de Deus.

Enfim, os Evangelhos nos fazem descobrir no agir de Jesus que os seus gestos e
palavras são o real, autêntico, concreto lugar de encontro entre Deus e o homem e
substituem definitivamente todos os outros meios e práticas que vimos anteriormente.

66
Sal. 8,4 «Se olho o céu, obra de teu dedo, a lua e as estrelas que fixaste»
67
Jo. 2,18; 3,2; 6,2.14 ( em Caná Jesus dá início aos "sinais" Jo 2,4 cfr.)
68
Episódio evidente é a ressurreição de Lázaro: Marta disse a Jesus que ela acreditava numa “futura”
ressurreição dos mortos, mas Jesus não se contentou com isso, quis que ela fizesse experiência de que
o “futuro” já está presente com Jesus no momento em que Ele se faz presente (cfr. Jo. 7,24ss)

- 31 -
14. Gestos de Jesus: lugar de santificação e culto

Em Jesus a porta de acesso ao Divino está definitivamente aberta. Nele, quando


Deus quer entrar a fazer parte da vida de alguém pode fazê-lo com um meio concreto,
que são os atos, as palavras e o Próprio Filho. Desse modo a “linguagem divina”, a “lógica
divina” se torna compreensível à linguagem de qualquer um que estiver disposto a "ler"
através dos gestos, de Jesus. Quando for capaz de superar a ótica humana 69 e ali se
encontrará com a presença de Deus.

«Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação» (1Tess 4,3), em poucas


palavras, Paulo sintetiza todo o projeto de amor de Deus para com o homem. Deus
deseja ir ao encontro de qualquer pessoa, Ele quer a Sua criatura ao lado, tanto durante a
vida que lhe é concedida enquanto durar a dimensão espaçotemporal, quanto pela
eternidade toda.
Encontrar a própria realização no amor e na comunhão, é o sentido e o motivo da
vida e Deus deseja tanto que o homem o descubra. Para que isso aconteça é necessário
que o homem faça experiência do amor, que "conheça" 70 qual é o verdadeiro amor
diante de tantas propostas e até que ponto este possa chegar.
Longe de ser uma qualidade exclusivamente moral, "ser santo" significa na Bíblia
sentir-se parte deste projeto, aderir-lhe profundamente, na confiança depositada em
Deus, e com a consagração a Ele 71.
Jesus interpretava o sentido da Sua missão em fazer conhecer e experimentar
quanto o Pai ama o homem: «Manifestei o teu nome aos homens que me deste do
mundo. Eram teus, tu os confiaste a Mim, e eles têm guardado a tua palavra»
(Jo 17,6); «Eu lhes fiz conhecer o teu nome e ainda o farei conhecer, a fim de
que o amor com que me amaste esteja neles, e eu esteja neles.» (Jo 17,26) e Ele
o fez através de três meios:

 Suas palavras
 Seus gestos
 Suas atitudes

Foi fundamentalmente através desses três meios que Jesus “santificava” as pessoas, ou
seja, lhes abria o caminho, a “porta” para entrar em comunhão com “Aquele que é Santo”.
Veremos, adiante, como esses são os mesmos elementos fundamentais que compõem os
Sacramentos, ações realizadas ainda hoje por Cristo que age na Sua Igreja “Santificando”
os fieis.

Além da ação santificadora dos atos de Jesus, a própria missão se transforma em


ação de louvor e culto ao Pai.
69
A incapacidade de superar aquilo que se vê é sintoma de fechamento, como aconteceu em Nazaré:
«Este não é o filho do carpinteiro?...» (Mt. 13,55)
70
Na linguagem Bíblica se usa o verbo “conhecer” não em sentido racional nem como resultado de uma
informação recebida; conhecer significa antes de tudo ter feito uma experiência profunda e sem
barreiras da outra pessoa
71
Consagrar-se, ser "posto a parte", separado para uma finalidade específica... etc., são todos termos que
expressam de formas diferentes este único ato de fusão de duas vontades: a de Deus e a do homem.
É Deus que consagra, santifica o homem, "cativando-lhe" o coração ao fazer-lhe experimentar o Seu
amor. Para uma ideia do conceito de "santidade" veremos mais adiante ao falar do Batismo.

- 32 -
Fazer a “vontade do Pai” é uma decisão que imprime um estilo de vida. Tal estilo de
vida que está continuamente atento e projetado a viver o desejo de Deus se caracteriza
como a mais elevada forma de louvor e culto a Deus; é transformar em oração a
inteira vida e não apenas “momentos” específicos. Desse modo, aquele que associa a
sua vida a Deus faz da própria existência num louvor constante. Nessa adesão à vontade
do Pai que quer santificar e consagrar o homem feito à sua imagem, o próprio Jesus
rende o culto mais perfeito ao Pai, transformando toda a sua vida numa oração constante.
«Eu te glorifiquei na terra cumprindo a obra que me deste a realizar» (Jo 17,4)
disse Jesus na oração que elevou ao Pai como síntese de sua missão. Jesus interpretava
toda a sua vida como doação à obra do Pai; a Ele entregou o que fez e a si mesmo com
as palavras: «Tudo está cumprido» (Jo 19,30).

Alguns exemplos dos Evangelhos

Quando alguém faz experiência deste amor do Pai, através de Jesus, modifica o
próprio relacionamento com a vida, com as outras pessoas e com o próprio Deus.
«Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo. 8,32). A experiência
do amor transformará o homem em suas relações às vezes desequilibradas. Assim
sendo, nas narrações evangélicas muitos são os casos de pessoas que, encontrando-se
com Jesus, começam uma vida qualitativamente diferente. Eis alguns casos:

 No episódio narrado em Lc. 7,36-50), onde num contexto religioso que dividia o
mundo entre observantes e pecadores -com a consequente valorização de uns e
exclusão de outros- Jesus acolheu a mulher que todos tinham como pecadora
pública. Ela, ao sentir-se acolhida e não julgada ofereceu a Jesus o que ela era,
sem máscaras nem pretensões: Lhe enxugou os pés com seus cabelos 71. Todo
esse dinamismo provoca a conversão e a salvação que é a recuperação de sua
dignidade.

 A mulher que cometeu adultério (Jo. 8,1-11) antes que condenada por Jesus,
sente-se amada, compreendida. A transformação moral de suas atitudes, é
consequência da experiência de um outro tipo de amor.

Independentemente das classes sociais Jesus teve a mesma atitude: acolher,


antes e acima de tudo!

 Tanto Levi (Mt. 9,9ss) quanto Zaqueu (Lc. 19, 1-10), embora ricos, todavia
pertenciam à classe dos impuros, dos pecadores. Contrariamente a quanto poder-
se-ia esperar, Jesus não exigiu uma modificação de suas vidas para, em seguida,
serem dignos de tomar refeições juntos. É Ele quem deu o primeiro passo para que
ambos "pudessem conhecer" o amor do Pai que «faz surgir o seu sol sobre os
bons e sobre os maus...» (Mt. 5,45). Quando se verificou o verdadeiro
"encontro", então a reação não poderia ter sido diferente, Zaqueu deu bem mais do
que a lei obrigava: «Eis que darei a metade dos meus bens aos pobres e se
defraudei, devolverei quatro vezes tanto» (Lc 19,8).

Estes, como tantos outros casos narrados nos Evangelhos, mostram que no
homem que se reencontra, que reencontra o sentido de sua vida, a sua origem e a sua
meta, nesse homem começa o processo de santificação. Isto é de aproximação e

- 33 -
comunhão com Deus.

Para Jesus a "redenção do homem" 72 é oração e glorificação do Pai; mas também


no homem um encontro vivificante se transforma em louvor, reconhecimento, gratidão,
anúncio...

 A mulher de Samaria, no episódio narrado em Jo. 4,1-41, transforma a sua alegria em


anúncio: "a água" que de Jesus recebeu, nela se tornou «fonte de água viva que
jorra para a vida eterna» (cfr. Jo. 4,14). O mesmo Evangelista nos diz que «muitos
creram», muitos aproximaram-se de Jesus por causa dela e do seu testemunho.

 Não obstante a injunção explicita de Jesus, o leproso curado (Mc. 1,40-45) não
conseguiu guardar a felicidade da cura que Jesus tinha realizado.

 No caso da sogra de Pedro (Mc. 1,20-31), a atitude de gratidão, reconhecimento, se


transformava em serviço.

 O endemoninhado (Lc. 8,26,39), conseguiu reconhecer a Deus no gesto de Jesus. A


ele Jesus pediu para anunciar «quanto Deus fez para com ele», mas o
endemoninhado curado, anunciou Jesus...!

 Também a viúva de Naim reconheceu Deus em Jesus e, Nele, a realização das


promessas do Antigo Testamento: «Deus visitou seu povo» (Lc. 7,16). A ênfase da
qual brota essa confissão de fé é a expressão daquele "temor de Deus" que tomava as
pessoas que presenciaram o milagre; "temor" típico de quem sabe de estar à presença
de Jahvé.

Reconhecimento, louvor, anúncio, serviço... são todas expressões própria de


uma pessoa que entrou em comunhão com Deus.
É este o culto que agrada ao Pai!
Jesus realizava sua missão: santificava o homem para este reencontrar-se e
reencontrar a Deus. É interessante que Lucas, narrando o episódio da mulher que sofria
de hemorragia (Lc. 8,40-48) nos transmite uma expressão de Jesus que ficou
emblemática para os discípulos: «Percebi uma força que saiu de mim». Ora, a
expressão "força" foi entendida e traduzida pelos Padres da Igreja com "virtus" (em latim),
palavra, esta, que possui a mesma raiz de "vir" que significa homem, homem plenamente
realizado em todos os seus aspectos.

É esta "virtus" que Jesus transmite, que torna o homem mais homem!

Na Idade Média quando se refletia sobre os sacramentos da fé, todas as opiniões


se reconduziam a uma: os sacramentos são atos que comunicam ao homem a
“virtus” divina. Comunicam aquilo que Deus dá para que o homem seja plenamente
homem, imagem de Deus.

72
Entendo por "redenção" o processo pelo qual Jesus não se esquiva do pecado do homem, antes, utiliza
a própria situação negativa em que o homem se encontra para, por meio desta, levá-lo ao Pai. Não e'
fugindo do pecado, da morte, que Jesus a derrota, mas passando através dela e esvaziando-a do seu
falso poder.

- 34 -
15. Fé e gestos de Jesus

Conforme a lógica de toda a História da Salvação, sempre foi Deus quem deu o
primeiro passo, sempre, mesmo quando o homem colocou-se à distância, «Quando nós
eramos ainda pecadores» nos lembra S.Paulo (Rm 5,6).
Quando os gestos de Jesus penetram o íntimo da pessoa tocada, esta distância é
encurtada e, até, eliminada; este processo de adesão incondicional, é chamado "fé".

Se hoje o significado de "fé" às vezes é utilizado como sinônimo de "crendice", ou


de vaga esperança, ou ainda como um ato de submissão da mente a algum conceito que
não entendemos, não era esta a ideia presente no coração do homem hebreu. Para o
homem bíblico “fé” significa uma posição existencial diante de alguém e,
especificamente, diante de Jahvé. É uma atitude que envolve todas as dimensões da
pessoa humana, o afeto, a decisão, os atos, as opções, os sentimentos... é um "estar à
presença de Jahvé" numa determinada maneira. A fé não nasce da mente, mas da
decisão fundamental de "dar um crédito" a Deus. Tal decisão gera um modo de existir
novo que se manifesta nas duas atitudes que estão à origem da palavra fé: fidelidade e
confiança 73.
Fé, nessa ótica, é sinônimo de "estilo de vida", um modo de existir típico de quem
compreende a si mesmo como relação, relação com Deus e com as pessoas.
Viver a fé é, então, expressão de maturidade humana, de adesão à realização
progressiva do projeto de Deus.

Em grande parte dos gestos de Jesus encontramos a fé, como pressuposto ou


como consequência dos Seus gestos, palavras ou atitudes.
Não importa em que grau, não importa o tipo nem a qualidade da fé, mas o que é claro
para Jesus é que estando ausente esta atitude de fundo, não existem as condições para
que Ele possa agir, como foi no caso dos Galileus, quando Mateus com tristeza comenta:
«Não pôde fazer milagres por causa da incredulidade deles» (Mt. 13, 58). Sim,
porque a fé é sintoma de abertura, mesmo que seja imatura, deficiente, superficial...
Contudo, não podemos pensar que a fé do individuo condicione a ação de Jesus; ou seja
não é porque alguém tem mais ou menos fé que o agir de Jesus é mais ou menos eficaz.
O resultado é tampouco decorrente da “quantidade” de fé que alguém tem. O encontro
com Jesus é sempre eficaz em si mesmo pois é sempre oferecida - por meio deste
encontro- a possibilidade de salvação. No entanto a vida de fé é uma relação a qual por
si própria exige uma resposta da pessoa que Jesus envolve 74 .

A relação entre gestos de Jesus e a fé, é de grande importância para viver aqueles
"gestos" de Cristo que hoje chamamos “sacramentos” e que são “atos de fé”.

Eis alguns casos:

Algumas vezes a fé é anterior à realização do milagre.

a) Para algumas pessoas Jesus requer, exige a fé como condição prévia à Sua ação:

73
Em latim a palavra “fé” se diz “fides”; podemos perceber a mesma raiz (“fi”) nas nossa palavras:
fidelidade e confiança.
74
Neste aspecto a posição dos reformados evidencia a absoluta necessidade da fé para a eficacia dos
gestos salvíficos de Jesus. Como sintetizar a questão? Podemos dizer assim: é necessária a minha fé
para que seja eficaz hoje, para mim, o que em si mesmo é sempre eficaz para todos.

- 35 -
E' o caso dos dois cegos:
«Partindo Jesus dali, seguiram-no dois cegos, clamando: “Tem compaixão de
nós, Filho de Davi!” Tendo ele entrado em casa, aproximaram-se os cegos, e
Jesus lhes perguntou: “Credes que eu posso fazer isso?”. Responderam-lhe:
“Sim, Senhor!”. Então, lhes tocou os olhos, dizendo: Faça-se conforme a
vossa fé. E abriram-se-lhes os olhos. Jesus, porém, os advertiu
severamente, dizendo: Acautelai-vos de que ninguém o saiba”. Saindo eles,
porém, divulgaram-lhe a fama por toda aquela terra» (Mt. 9,27).
Ao chamá-lo "Filho de Davi" os dois já fizeram sua profissão de fé na pessoa de
Jesus, ao responder "sim" operaram um ato de confiança de que realmente Jesus
podia tirá-los definitivamente da situação em que se encontravam.

b) Em alguns casos a fé de quem vai receber um milagre, para Jesus não ocupa o lugar
principal. Por outro lado de algum modo é necessário que haja fé, mesmo que seja a
fé de outras pessoas, parentes, amigos... Essa é suficiente para que aconteça o
gesto salvífico

 No caso do paralitico Jesus não viu nele a fé, mas sim naqueles que Lho
trouxeram: «Eis que lhe trouxeram um paralítico deitado numa maca.
Vendo a fé deles, Jesus disse ao paralítico: “Tem bom ânimo, filho; os teus
pecados estão perdoados”» (Mt. 9,2).
 caso do centurião narrado em Mt. 8,5-13: «…Então, disse Jesus ao centurião:
“Vai, e seja feito conforme a tua fé”. E, naquela mesma hora, o servo foi
curado»
 mesmo diga-se com a mulher que pedia para a sua filha: «Então, lhe disse
Jesus: “Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres”. E,
desde aquele momento a sua filha ficou sã.» (Mt. 15,22-28)

E muitos outros semelhantes.

c) Às vezes Jesus requer a fé de seus discípulos

 para que neles possa agir o poder de Deus: «...Então os Discípulos lhe
perguntaram: “Porque nós não pudemos expulsá-lo?”. Jesus respondeu:
“pela vossa pouca fé”» (Mt. 17,14-20).
 Na multiplicação dos pães narrada por João Jesus põe à prova a fé de seus
discípulos, enquanto os beneficiados seriam o resto do povo... (Jo 6,1-15).

d) Em muitos casos a fé precisa de amadurecimento, é provada, é purificada antes e


depois do gesto salvífico de Jesus:

 Da fé de Jairo, chefe da Sinagoga, Jesus requer a perseverança, mesmo se


objetivamente parece absurdo ainda esperar algo: «Ele ainda estava falando
quando chegaram alguns da casa do chefe da sinagoga, a quem
disseram: “Tua filha já morreu; por que ainda incomodas o Mestre?”. Mas
Jesus, sem acudir a tais palavras, disse ao chefe da sinagoga: “Não
temas, apenas crê!”» (Mc. 5,34-36)
 Nem uma aparente recusa ou resposta que põe à prova o orgulho da pessoa 75
pode ser obstáculo a quem verdadeiramente "crê". «Então Jesus respondeu:
75
"Cachorrinhos" era o termo popular de desprezo com o qual eram indicados os Cananeus

- 36 -
“Mulher, realmente é grande a tua fé! Seja feito para ti como você
deseja” E desde aquele momento a sua filha ficou curada» (Mt. 15,28).
 A confiança de que Jesus possa curar o filho, leva o pai do epilético a reavaliar a
própria maneira de ter fé : «O pai do menino respondeu em voz alta: “Creio,
mas me ajude na minha incredulidade”» (Mc. 9,24)

e) Às vezes existe uma distinção entre cura e salvação, para indicar as duas dimensões
nas quais opera o gesto de Jesus, a dimensão física e a espiritual 76.

 No caso dos dez leprosos (Lc 17,11-19), os nove foram curados, mas somente
para um deles realizou-se a salvação: se instaura um relacionamento com Jesus:
«voltou para agradecer»
 O cego de Jericó (Mc 10,46-53) não somente enxergou, mas "viu" a salvação
realizar-se nele, a ponto de seguir Jesus.
 No episódio do paralítico narrado por Lc. 5,17-26, é bem evidenciada a distinção
entre cura e salvação: o paralítico foi embora «glorificando a Deus!»

16. Estrutura dos gestos de Jesus

Nas narrações evangélicas frequentemente percebemos modalidades diferentes de


Jesus realizar seus gestos salvíficos; às vezes a cura acontece "a distância " como para o
servo do centurião (Mt. 8,5-13); às vezes, a uma ordem de Jesus à qual as forças do mal
obedecem, a pessoa á curada, como para vários endemoninhados ( Mc.1,21-28 e outros);
às vezes, após uma palavra pronunciada sobre o doente, verifica-se sua cura, como para
o paralitico de Mt. 9,1-7.

No entanto, quase fosse um motivo recorrente, quase sempre Jesus associa aos
gestos salvíficos algumas palavras, como nos exemplos a seguir:

«Quando Jesus desceu do monte, muitas pessoas O seguiam. Eis que se


achegou um leproso e, prostrando-se diante dele disse: “Senhor, se você
quer, pode curar-me”. E Jesus estendeu a mão e o tocou dizendo: “Eu
quero, fique curado”. E logo a lepra desapareceu» (Mt. 8,1-3).

«Chegando à casa do chefe da sinagoga, Jesus viu o alvoroço, os que


choravam e os que pranteavam muito. Ao entrar, lhes disse: “Por que estais
em alvoroço e chorais? A criança não está morta, mas dorme”. E riam-se
dele. Porém, Ele mandou sair a todos, tomou o pai e a mãe da criança e os
que vieram com ele e entrou onde ela estava. Tomando-a pela mão,
disse: “Talita cumi!”, que quer dizer: “Menina, eu te mando, levanta-te!”.
Imediatamente, a menina se levantou e pôs-se a andar». (Mc. 5,38-41)

Um realce particular pode ser dado ao episódio a seguir, pois a atualização desse
mesmo fato entrou a fazer parte da liturgia do Batismo desde os primeiros séculos da
Igreja e está sendo recuperado nestes últimos tempos. «Então, lhe trouxeram um
surdo e gago e lhe suplicaram que impusesse as mãos sobre ele. Jesus,
tirando-o da multidão, à parte, pôs-lhe os dedos nos ouvidos e lhe tocou a

76
Para um hebreu era inconcebível pensar o homem como justaposição de dois elementos separados:
matéria e espírito. O homem é uma entidade única a duas dimensões.

- 37 -
língua com saliva; depois, erguendo os olhos ao céu, suspirou e disse:
“Efatá!”, que quer dizer: Abre-te! Abriram-se-lhe os ouvidos, e logo se lhe
soltou o empecilho da língua, e falava desembaraçadamente. Mas lhes
ordenou que a ninguém o dissessem; contudo, quanto mais recomendava,
tanto mais eles o divulgavam» (Mc. 7,32-34)

VI. VIVER O MISTÉRIO

Para progredirmos no percurso da introdução à dimensão sacramental da vida


cristã, precisaremos percorrer o caminho que nos faz conhecer e contemplar o “ mistério
de Cristo”. É o longo processo que necessita de dois elementos são essenciais:

 o tempo
 e a vida comunitária.

Esse caminho educativo no qual acontece uma progressiva assimilação a Cristo vivo na
comunidade de fé, nos primeiros séculos da Igreja foi chamado com um nome um pouco
estranho para nós: a “catequese mistagógica”, ou “mistagogia”. Mistagogia vem da fusão
de duas palavras gregas (o verbo “ago” -- que significa o ato de “acompanhar,
conduzir pela mão” e a palavra “mistério” –Musterion- cujo significado veremos mais
adiante)

Nesses últimos anos a necessidade de falar uma linguagem diferente, o fato que a
fé cristã não seja mais um fator cultural, um ambiente no qual nascemos, mas sim uma
escolha feita com extrema liberdade, também nos trouxe a necessidade de recuperar todo
o processo que existia no inicio da Igreja primitiva, na qual, por exemplo, fazer o sinal da
cruz não era uma coisa tão obvia, assim como não o eram todas as práticas da fé que por
muito tempo fizeram parte da nossa vida como coisa normal. Sim, mas hoje o que para os
nossos pais era normal, não o é mais! Afinal, quantos não sabem dizer o que é a
Ressurreição? Qual a diferença com a reencarnação? Qual é a diferença entre a nossa fé
e uma religião qualquer se Deus é um só... E assim por diante. O mais complicado ainda
é o fato de que a fé, às vezes por falta de uma catequese que fale a linguagem das
pessoas ou por outras motivações, se transformou em sentimentalismo privado,
sensações que devem ser alimentadas a qualquer custo com os meios mais requintados.
Quantas vezes ouvimos pessoas que, como diz o ditado: “vão na igreja e no terreiro” e
quando lhes perguntamos o motivo dessa atitude a resposta é mais ou menos esta: “o
que tem de mal, isso faz bem para mim...”. Assim a fé se transformou num bem de
consumo para o meu privado bem. Pois é, e quando nos deparamos com o sofrimento?
Com uma doença irreversível? Com um acidente de carro que modificou completamente a
nossa vida? Com uma criança que nasce com graves problemas...?
Enquanto a fé for entendida assim nunca poderá ser uma alternativa de vida, mas
apenas a tentativa de suprir a questionamentos não resolvidos.

A fé é acima de tudo um encontro.

É um encontro que funde duas pessoas e as faz caminhar juntos até o último
momento. É esse processo de encontro e caminho, de experiência com Jesus vivo
numa comunidade que chamamos “iniciação ao mistério”. “Iniciação” (na língua latina)
significa “primeiro passo”, o que pressupõe uma série de outros passos; logo, a “iniciação”

- 38 -
não se resume num rito, num único momento, mas é o primeiro de uma série de passos
dados ao longo de um caminho. Trata-se de algo análogo ao matrimônio, que não se
identifica nem com a cerimônia nem com o “sim” de um dia, mas aquele “sim” é o primeiro
de uma série de “sim” que colocamos “à partir daquele dia” nas mãos de Deus.

Quando falamos de “mistério” entendemos todo o agir de Deus na história do


homem. Tudo isso acontece de modo especial e pleno, em Jesus Cristo. O Mistério é a
“sabedoria de Deus” escondida por detrás dos eventos, que conduz à meta a história do
homem.

O Concílio indica com palavra magistrais essa situação em que se encontra a Igreja. Eis o
que podemos ler na Constituição “lumen Gentium”; quando fala da Igreja diz que ela é “ o
reino de Cristo já presente em mistério; pela potência de Deus cresce visivelmente no
mundo”! (LG I,3)

Não há como levar adiante uma catequese embasada apenas sobre “informações”
de verdades da nossa fé quando as pessoas não conseguiram ainda ter feito uma
experiência viva de Jesus. Cabe à catequese, então, providenciar antes de tudo essa
experiência e depois explicar o sentido daquilo que for vivido dentro da comunidade.
Analogamente, por exemplo, a verdadeira teologia não é explicar teorias sofisticadas que
apenas um grupinho de pessoas entende; a verdadeira teologia (como dizia um dos
maiores personagens do nosso tempo, Karl Rahner) é apenas explicar às pessoas aquilo
que já aprenderam a crer, experimentaram, sentiram...
Do mesmo modo, fazer catequese é antes de tudo evidenciar a presença de
Cristo numa comunidade onde se vive aquilo que Cristo viveu e, depois, explicar os
fundamentos de tudo isso.

Para tanto, creio que nos possa ajudar o exemplo do primeiro batismo narrado com
detalhes; o batismo do eunuco 77 funcionário da rainha Candace (At. 8,26-39).
Podemos ler juntos esse trecho?
Agora que lemos o trecho podemos apontar alguns elementos próprios de todo ato
de iniciação à vida cristã. A narração desse fato não é o simples relato de uma história,
mas é a imagem de como se dá o processo de encontro real com Jesus. Vou evidenciar
esquematicamente, alguns elementos próprios de qualquer processo de “iniciação”, que a
fé dos primeiros cristãos nos deixou através desse trecho, deixando a cada um a reflexão
necessária.

1. O funcionário não é necessariamente ligado à fé dos hebreus. O próprio fato de


ser “eunuco” o excluía da possibilidade de prestar culto a Jahvé como faziam
todos os hebreus 78. A motivação pela qual estava em Jerusalém provavelmente
era ligada a negócios que se faziam em ocasião das festas.

2. Alguma coisa desperta a curiosidade desta pessoa de alto nível social. Algo o
atrai. Ele não sabe se explicar o que é e busca com os próprios meios: lê a
Escritura.

3. Mas isso não é suficiente, precisa a mediação de um ministro da


comunidade, no caso é Felipe 79.

77
Mais adiante retomaremos este episódio quando veremos alguns aspectos do sacramento do Batismo.
78
Segundo a Lei nenhum eunuco poderia ser salvo na comunidade judaica (Dt. 23,1ss).
79
No caso de Paulo será Ananias e assim por diante, pois o encontro com Jesus acontece apenas através

- 39 -
4. Felipe explica a ele o que sozinho não conseguia entender; do mesmo modo que
os discípulos de Emaús e outros personagens... É necessário um esclarecimento
por parte da comunidade daquilo que a pessoa intui porque atraída pelo próprio
Cristo.

5. A catequese de Felipe aponta diretamente a Cristo. Embora explique o


Profeta Isaías, ele tem como centro Cristo e visa conduzir o eunuco ao encontro
com o amor de Jesus que se dá como “servo”.

6. A resposta do eunuco manifesta o seu desejo de aderir a Jesus de modo


definitivo. Assim ele pede de poder aplicar sobre si o mesmo gesto de Jesus
quando “mergulhou” nas águas do Jordão. É um gesto simbólico de “adesão
plena”, de morte e vida.

7. O resultado disso é uma grande alegria que ele sente em si e que levará
consigo “continuando a viagem”..

Seguir Jesus não significa mudar de vida, significa deixar-se mudar pela nova vida que
Jesus dá. O eunuco não mudará a sua condição, não mudará a sua vida, mas a sua vida
mudará ele.

17. Uma comunidade vive Jesus Ressuscitado

Acabamos de ver, no episódio acima, como o eunuco “invocou sobre si o mesmo


gesto de Jesus”, pediu de poder entrar no grupo daqueles que foram batizados, de algum
modo transferiu fora do tempo o mesmo episódio que aconteceu alguns anos antes,
quando Jesus se fez batizar dentro de uma comunidade feita de pecadores dispostos à
conversão. Felipe assumiu, de algum modo, a posição do Batista que, com a água, uniu
Jesus de Nazaré ao grupo daqueles que desejavam trilhar um caminho de fé e
aproximação a Deus. Enfim, trinta anos depois do batismo de Jesus o mesmo gesto
estava sendo repetido! Mais uma pessoa disposta a “caminhar na fé” estava sendo unida
ao grupo daqueles com os quais Jesus havia se identificado lá no Jordão: aqueles que
estão “bem dispostos”, que desejam “ouvir”, que desejam deixar-se conduzir pelo Espírito
de Deus 80.

A comunidade cristã repetia para os novos prosélitos, os mesmos gestos de Jesus,


para continuar exatamente o que Ele vivera.

Como vimos, a primeira comunidade cristã interpretou tanto a pessoa de Jesus,


quanto os seus gestos como:

 “lugar” e “meio” de encontro com Deus; é através dos gestos de Jesus que
podemos nos encontrar de fato com Deus.
 “esfera” e “meio” de santificação, é através de Jesus, da Sua ação, do Seu modo
de acolher que podemos ver a bondade de Deus e associar-nos a Ele;

e coma mediação de uma comunidade onde Ele se fez presente.


80
Podemos notar a força da expressão que diziam todos os pecadores que desejavam uma vida nova: «o
que devemos fazer...?»; (Lc. 3,10); essa é uma atitude de autenticidade, disposição, abertura.

- 40 -
 “âmbito” e “meio” de culto a Deus; é através de Jesus que, tendo feito experiencia
de amor e salvação o nosso coração responde louvando e agradecendo.

Com a morte de Jesus mudou totalmente a interpretação que a comunidade dos


Apóstolos tinha de si mesma; se antes se considerava apenas um grupo de discípulos de
Jesus, seus seguidores, o evento da Pentecostes os conduziu a uma compreensão bem
mais profunda. Esse tema já o consideramos no subsídio precedente a este, mas vale a
pena lembrar brevemente.
A surpresa do dia da Ressurreição não foi apenas do fato de que Jesus tinha
superado o limite da morte, mas principalmente o fato de que “Ele estava vivo” 81.
Obviamente quando usamos a expressão “vivo” precisamos entender mais a
“vitalidade”, o “dinamismo” do que o contrário de “morte” como duração temporal. “Ser
vivo” significa “agir”, continuar sem ruptura a existência embora de modo diferente. Enfim,
os Apóstolos intuíram que não houve interrupção do projeto salvífico e que o Senhor
continuava operando do mesmo modo que havia feito até então. Existia, em todo caso um
diferença profunda: dessa vez o Senhor tendo ultrapassado os limites do espaço e do
tempo, da matéria como nós a conhecemos, continuava a agir por meio e dentro da
comunidade dos Apóstolos.

Quando o Evangelista João narra o que aconteceu no dia da Ressurreição, não


quer apenas descrever um fato prodigioso, mas tenta induzir o leitor a sentir aquilo que
eles mesmos sentiram quando «...Na tarde do mesmo dia, que era o primeiro
depois do sábado, os discípulos estavam reunidos com portas fechadas, por
medo dos judeus. Então Jesus entrou, ficou no meio deles, e disse: “A paz
esteja convosco!”» (Jo. 20,19). Creio que seja evidente a todos a relação: “estando as
portas fechadas... entrou”. A tentação de todos seria imaginar de ter tido uma visão ou de
estar à mercê da fantasia que elaborava figuras, porém, justamente para dirimir essa
questão definitivamente, Jesus se fez tocar, em outros momentos comeu com eles e fez
questão de dizer: «um fantasma não come...!» 82. O motivo da narração do episódio é
então evidente, ou seja, com a Ressurreição, toda a dimensão da natureza como a
conhecemos foi mudada estruturalmente pelo mesmo Espírito que «ressuscitou Jesus
dentre os mortos» (cfr. Rom. 8,11).

Estamos diante da parte essencial do evento da Páscoa!


Tirar do evento Pascal essa dimensão torna absolutamente incompreensíveis os
gestos da Igreja, o Batismo e, principalmente a Eucaristia, quando atualizamos, diante
dos nosso olhos, o mesmo processo pelo qual a natureza de um pão é modificada
estruturalmente na natureza de Cristo, assim como houve naquele dia. O pão sobre o
qual invocamos o Espírito é modificado pelo mesmo Espírito que deu a Jesus um “corpo”
novo, livre dos limites do espaço e do tempo, do peso e da medida...

81
Na primitiva pregação o tema central se resumia nestas palavras: «se apresentou vivo, com
muitas provas incontestáveis» (At. 1,3). Cfr. «...Traziam contra ele algumas questões
referentes à sua própria religião e particularmente a um certo homem, morto, chamado
Jesus, que Paulo afirmava estar vivo» (At. 25,19).
82
«Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo; “apalpai-me e verificai, porque
um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho”. Dizendo isto, mostrou-
lhes as mãos e os pés. E, por não acreditarem eles ainda, por causa da alegria, e estando
admirados, Jesus lhes disse: “Tendes aqui alguma coisa que comer?” Então, lhe
apresentaram um pedaço de peixe assado e um favo de mel. E ele comeu na presença
deles» (Lc. 24, 39-43).

- 41 -
Com os pressupostos que colocamos, muitos gestos, atitudes, modos de pensar
dos Apóstolos vão sendo iluminados de uma luz nova, diferente. O fato de estar juntos
não obstante tudo, não obstante as divergências, as possíveis tensões internas etc. não
se limitava a um superficial sentimento de benevolência, afinidade, amizade ou algo
semelhante. O fato de estar reunidos significava manter viva a prescrição de Jesus de
«permanecer unidos» de modo que Ele pudesse continuar agindo neles, por eles e por
meio deles! Sim, a comunidade dos discípulos se tornaria algo maior do que um grupo de
seguidores, seria o “corpo de Cristo” 83.

O que entendemos com a expressão “corpo de Cristo”? É necessário por primeiro


livrar-nos de absurdas interpretações de tipo espírita, como se Jesus incorporasse em
nós. São Jerônimo dizia que apenas “Montano e algumas pessoas insensatas podem
pensar assim” 84; sim porque afirmar que uma pessoa é “invadida”, “tomada” por um
espírito significa negar a sua liberdade e responsabilidade naquilo que diz e faz, e isso é
contraditório com qualquer afirmação da Escritura, segundo a qual Deus respeita a
liberdade e responsabilidade do homem em todas as suas atitudes.
A esse ponto podemos dar o segundo passo.

O que é o corpo?
Quando falamos de “corpo” não podemos nos referir apenas à “carne”, à estrutura
física que vemos; o corpo é o lugar onde se manifesta o nosso “eu”. A medicina
hodierna, especialmente a medicina psicossomática, afirma sempre com maior firmeza
que não há divisão entre o corpo e o nosso “eu”; as nossa opções de vida, o nosso modo
de orientar a existência, tudo isso se manifesta no nosso corpo; quando estamos tristes
também diminui a imunidade, quando não encontramos um sentido para a vida é muito
grande a possibilidade de ser sujeitos a doenças até mortais... Enfim, nós não “temos”
um corpo, “somos” um corpo, em que o nosso “eu” age, vive, se transmite, interage...
Pois bem, será tão difícil então entender a força e a beleza que um cristão sente
quando afirma: “eu sou membro do corpo de Cristo”? Não é isso que o sacerdote recorda
ao fiel quando distribui o Pão Eucarístico? Ele não indica apenas o elemento material do
Pão, mas a Comunhão com o Pão, que é Cristo e o Seu corpo que é a Igreja, assim como
recordava São Paulo: «O pão que partimos não é comunhão com o corpo de
Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só
corpo, porque todos participamos desse único pão» (1Cor, 10,17).

Para descrever a estranha condição da comunidade cristã que carrega em si


contemporaneamente uma dimensão profundamente humana e divina, o Papa Pio XII
usou uma expressão que ainda hoje conhecemos muito bem:
“a Igreja é o Corpo místico de Cristo” 85.

Para a primitiva comunidade cristã (e ainda para nós) viver a união de corações, de
sentimentos e decisões era essencial para que a «obra de Jesus» pudesse continuar por
meio deles. Quando Jesus pedia para permanecer unidos, não se tratava apenas de uma
prescrição moral ou ética. Mas de uma necessidade intrínseca para que pudesse sempre
ser manifestada a “sua obra”, a continuidade de “sua ação redentora” em favor de todos
os homens. Afinal, como poderia viver um “corpo” desconjuntado? Dividido em si mesmo?
83
«Somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros» (Rm. 12,5); «Pois, em um só
Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos,
quer livres.» (1Cor. 12,13) etc.
84
“Montano” era um herege do início do cristianismo, no II séc. Ele se sentia invadido pelo Espírito e
afirmava que o Espírito falasse pela boca dele, de modo direto.
85
Pio XII enc. “Mystici Corporis”

- 42 -
Buscar e viver a unidade numa comunidade é o maior ato de obediência ao desejo de
Jesus para que Ele possa continuar atraindo a Si todas as pessoas: «Quando eu for
elevado da terra atrairei todos a mim» (Jo. 12,32).

18. “Eis o mistério da fé”...

... é uma locução que ouvimos toda vez que participamos da liturgia Eucarística, bem no
centro da celebração; é pronunciada com ênfase tal que parece representar o ponto de
chegada de todo um processo vivido e celebrado. Mas o que significa tal expressão?

Na linguagem comum, por “mistério” entendemos algo que não pode ser
conhecido, não importando qual for a motivação. Muitas vezes usamos esta palavra
quando não conhecemos o significado de algum objeto ou situação. À ideia de “mistério”
frequentemente se associa uma sensação de medo do desconhecido, do imprevisível,
fato pelo qual se têm um certo receio de aproximar-se do “mistério”. Porém, o sentido da
palavra "mistério" não é bem esse.

A palavra (Mysterion, em grego), etimologicamente expressa o ato de "fechar os


olhos" diante de alguma coisa. Não para não querer vê-la ou porque não pode ser
observada, mas porque o que se têm diante dos olhos é tão forte que precisa tempo de
adaptação da pupila para poder enxergar. Uma luz forte sem uma prévia adaptação pode
deixar alguém cego. Por exemplo, a luz do sol é muito forte para ser sustentada então
fechamos os olhos e os abrimos novamente aos poucos. Assim, ao conceito de “mistério”
se associa a ideia de tempo necessário, não de proibição!

Os primeiros cristãos, de modo especial seguindo a linguagem de São Paulo,


definiram “mistério” a situação estranha em que viviam, aquela condição humano-divina,
como comunidade de pessoas comuns e lugar da presença viva de Cristo. O “mistério da
nossa fé” é o fato de nos ver como pessoas comuns, cheias dos mesmos problemas e
defeitos de todos e contemporaneamente saber que o Senhor escolheu esta, (e não
outra) comunidade para continuar agindo e fazendo sentir aos homens a Sua
proximidade. É um pouco a contradição que Paulo expressava assim: «trazemos este
tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de
Deus e não é nosso» (2Cor. 4,7).

"Mistério" não é algo de incognoscível mas algo que pode ser "conhecido" através
de outros caminhos às vezes incomuns, mas sempre com e através de um caminho
lento e progressivo. Longe de ser algo inacessível, o mistério pode ser penetrado,
sabendo, todavia, que quanto mais se penetra nele, tanto mais existe ainda algum outro
aspecto. Para sintetizar em poucas palavras a complexidade daquilo que a Igreja chama
“mistério” poderíamos dizer que é aquilo que se entrevê além daquilo que se vê.
Podemos ver uma comunidade de pessoas mas entrevemos que além daquilo existe algo
a mais, algo que nos atrai, algo que responde às nossas buscas...
Pois bem, este “algo” não é apenas “algo”, um sentimento, uma sensação, mas sim é uma
Pessoa viva: Cristo. Ver o “mistério” exige uma profunda educação à contemplação;
podemos fazer como que uma analogia: a capacidade contemplativa do mistério é
semelhante à atitude de um cego o qual não pode "enxergar" uma pessoa ou objeto, no
entanto ele é capaz de "sentir" sua presença (“ver” que está presente, dar-se contas
que...), mesmo que o olho não consiga enxergar

- 43 -
Ver o quê? Nada mais do que o “mistério” «que é...Cristo entre vós, a esperança
da glória!».

Eis, a seguir, o trecho do qual é extraída a citação acima. Aqui vemos que Paulo se
interpreta como ministro do mistério, enviado por Deus a revelar a “presença” desse
mistério que age na história e que os “santos” (isto é, aqueles que estão em Cristo que é
“o Santo de Deus”): « Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e
completo o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu
corpo, que é a igreja; da qual me tornei ministro de acordo com o ministério
que recebi da parte de Deus, que me foi confiada a vosso favor, para dar pleno
cumprimento à palavra de Deus, ou seja, o mistério que estivera oculto dos
séculos e das gerações e que agora se manifestou aos seus santos; aos quais
Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste mistério entre os
gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória» (Col. 1,24-27).

A comunidade cristã é portadora desse “mistério” que é a presença de Cristo, por


isso, aproximar-se da comunidade, viver na comunidade de fé que é a Igreja é «viver em
Cristo Jesus» 86. Fazer e viver a comunhão na Igreja é fazer e viver a comunhão com
Cristo ressuscitado.

A força desse axioma fundamental da fé da Igreja é plenamente evidente desde as


mais primitivas narrações da sua história. Prestemos atenção à resposta que Pedro deu
ao paralítico sentado à porta do Templo: «... o que eu tenho te dou: “em nome de
Jesus Cristo, levanta-te”...» (At. 3,6). O que Pedro tinha? O que Pedro podia dar?
Uma única coisa: a riqueza da presença de Cristo que,vivo, agia na comunidade («em
nome de Jesus Cristo...») da qual ele era a personalidade corporativa, o sinal vivo
que resume em si o “corpo” de Cristo.

Descobrir o “Mistério”

 É descobrir a presença de Deus que constrói a "história de Deus" dentro da


'história do homem";

 É ver a Deus que age na história, por Cristo e em Cristo, no Seu Corpo que é a
Igreja.

HISTÓRIA DO HOMEM
um mundo construído no tempo

HISTÓRIA DE DEUS:
o mistério que age
no tempo e além do tempo

86
A expressão “em Cristo” corresponde a dizer: “na Igreja”. Cfr. «Também nós, embora muitos,
somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros» (Rm. 12,5); «Saudai Andrônico e
Júnias, meus parentes e companheiros de prisão, os quais são notáveis entre os apóstolos e
estavam em Cristo antes de mim» (Rm.16,8).

- 44 -
19. A comunidade cristã é lugar de manifestação e descoberta do Mistério

O Evento da Encarnação fez irromper a dimensão divina dentro da dimensão


humana, com tal intensidade que a história profana tornou-se, em Cristo, história sagrada.

Sim, daquele dia em diante, quando «o Verbo se fez carne» toda a história
humana recebeu uma qualidade nova e irreversível: o que é eternamente divino e
imutável, permeou também a história mutável do homem, a história que ele constrói. O
fato do nascimento de Jesus tem repercussões muito maiores do que, por exemplo,
limitar-se ao fato de que Deus se “abaixou” ao homem, ou que quis partilhar a nossa vida
para nos dar uma esperança. Sim, ninguém nega isso, mas existe algo que vai além
disso. A presença do “divino” no “humano” fez da nossa história a portadora do “mistério”,
o qual progride definitivamente unindo o que é próprio de Deus como que é próprio do
homem. São Paulo dirá que esse mistério prossegue segundo o projeto do Pai até a
«Recapitulação de todas as coisas em Cristo» (Ef. 1,10). Os dois planos se
intersecam e, a história do homem - enquanto profana - é elevada a nível da "história" de
Deus -sagrada-. Consequentemente também a história particular de cada pessoa torna-se
parte da história de salvação para todo o homem.
Ora, tal arcano valor que para nós é relativamente compreensível, envolve todos os
homens justamente pelo fato de ser “homens”, ou seja, de participar da “humanidade” que
é o que Cristo assumiu. Por outro lado é no Corpo de Cristo que o mistério se manifesta
mais evidentemente e pode ser oferecido a toda a humanidade para que ela descubra o
que já aconteceu. O cristão, unido na Igreja visibiliza e oferece à humanidade aquilo
que Jesus já realizou para todos. Essa é a missão da Igreja! Jesus a constituiu para que
pudesse tornar visível e possível a todos aquilo que Ele realizou para todos.

É com estas palavras que Paulo comenta a realidade na qual está mergulhado o
cristão: «Todos nós que, de rosto descoberto, refletimos a glória do Senhor como
num espelho, somos transformados em sua imagem com de gloria em gloria
conforme a ação do Espirito Santo » (2Cor. 3,18). Assim, permanecer na Igreja,
deixar-se conduzir pelo Espírito do Senhor que está presente e age na Igreja, transforma
o cristão em “glória”, isto é “manifestação sempre maior” da presença de Cristo no mundo
que conduz a história humana junto com a “história divina” (se assim se pode dizer!).

Assim sendo, a Igreja carrega em si as duas dimensões que unem o divino ao


humano: o homem a Deus e Deus ao homem. Tal posição é chamada desde os
primeiros séculos com o termo “sacramento” isto é, um lugar de encontro real e
transformador entre Deus e o homem. Logo no início dos documentos do Concílio
Vaticano II podemos ler uma profunda intuição sobre o que é a Igreja para Deus e para os
homens: “a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou seja, sinal e instrumento da
íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG I,1). A comunidade
de Jesus é o elo de conjunção entre a história de Deus e a história dos homens.

O mesmo tema é proposto por Paulo na Primeira carta aos Corintos (1Cor. 2,1-7)
87
. Aqui Paulo, parafraseando ironicamente o desejo de "sabedoria" dos cristãos de

87
«Quanto a mim, irmãos, quando fui ao vosso encontro, não fui anunciar o testemunho de
Deus com o prestígio da palavra ou da sabedoria. Entre vós, não quis saber de nada, a não
ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Apresentei-me fraco, tímido e todo trêmulo
diante de vós. Minha palavra e pregação não consistiram em discursos de sabedoria, mas
em demonstração do espírito e do poder divino, para que a vossa fé não se apoiasse na

- 45 -
Corinto, fala de uma outra "sabedoria", ligando-se assim aos Livros Sapienciais
Veterotestamentários nos quais a Sabedoria é personificada, é colocada desde a
eternidade ao lado de Jahvé, está presente na criação do mundo 88 e João a identifica
com «o Verbo»: Cristo.

A experiência que o cristão vive na sua comunidade é essencialmente a


experiência do conhecimento do Mistério, ou seja ter uma profunda comunhão com o
mistério que é Cristo vivo; uma comunhão que implica em penetrar e deixar-se penetrar
por ele. Ouçamos o que escreve São Paulo aos Colossenses: «Eu, Paulo, sou o
prisioneiro de Cristo Jesus, por amor de vós, gentios, pois, segundo uma
revelação, me foi dado conhecer o mistério, conforme escrevi há pouco,
resumidamente; pelo que, quando ledes, podeis compreender o meu
discernimento do mistério de Cristo, o qual, em outras gerações, não foi dado a
conhecer aos filhos dos homens, como, agora, foi revelado aos seus santos
apóstolos e profetas». Deus ofereceu e providenciou para os cristãos (os “santos”) a
possibilidade de fazer uma experiência antecipada daquilo que está reservado para todos
os homens; isso para que possam ser como uma “luz para o mundo”.

A ação pastoral e espiritual de Paulo era orientada para que aqueles que Deus
havia chamado à fé, pudessem compreender 89 o mistério, para serem testemunhas da
nova realidade que invadia o mundo dos homens. «Gostaria, pois, que soubésseis
quão grande luta venho mantendo por vós, … para compreenderem
plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da
sabedoria e do conhecimento estão ocultos» (Col. 2,1).

20. Iniciação ao Mistério da fé

Pouco antes vimos que a experiência que o cristão vive na sua comunidade é
essencialmente a experiência do conhecimento do Mistério, ou seja ter uma profunda
comunhão com o mistério que é Cristo vivo. Evidentemente isso não acontece uma vez
nem num momento, mas é o resultado que vai acontecendo enquanto se caminha no
próprio Mistério; digamos que é a história vivida dentro da comunidade de fé que traz
consigo o significado de si mesma e a meta de si mesma. Enfim, o mistério não é algo
que se atinge com esforços, métodos ascéticos, técnicas gnósticas etc. O mistério é
simplesmente algo que se vive e se compreende à medida em que se vive. O cristão
não alcança o mistério, mas

 se deixa alcançar por ele;


 se deixa envolver por ele,
 se deixa moldar por ele.

sabedoria dos homens, mas no poder de Deus. Mas, entre os perfeitos, pregamos uma
sabedoria, não uma sabedoria deste mundo, nem a dos grandes deste mundo, que vão ser
destruídos. Anunciamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos
tempos, já tinha determinado para a nossa glorificação»
88
Sab. 9,9
89
Quando se fala de “compreender” uma realidade, não se entende apenas um movimento da razão; o
homem possui uma multiplicidade de “inteligências” por isso a compreensão de uma evento, ou de uma
relação acontece no homem em vários níveis, dos quais a razão é apenas um deles.

- 46 -
O cristão configura a sua vida permitindo ao Mistério de agir através do Espírito de
Santidade que o transforma «conforme a imagem de Cristo» (cfr. Rm. 8,29).

Um grande estudioso, Karl Rahner, dizia uma verdade muito importante para os
nossos dias em que vivemos uma religião que esqueceu o “mistério”. Sim, esquecemos o
mistério e quisemos preencher esse vazio ou com um racionalismo religioso, ou com um
pragmatismo litúrgico, ou com um filantropismo misturado de pressuposta “caridade”, ou
ainda, com uma religião de sensações. Ele dizia assim: “O cristão de amanhã deverá ser
um cristão místico, isto é um cristão que tem entrado em contato com o mistério: alguém
que experimentou algo vivo ... ou não existirá mais”.

“Místico” não é um cristão “avoado”, desligado do mundo, à mercê de sensações


internas... Místico é uma pessoa que vive o mistério. Ele rege a sua vida na relação com
o mistério, se deixa envolver e conduzir pela força santificante do Mistério que é a
presença viva de Cristo na sua Comunidade e nele mesmo. É um homem que se
confronta e, humildemente, se deixa moldar; é um homem em quem Cristo Jesus está no
centro de sua vida! Contudo, isso não é obvio, elementar, imediato, fácil. O mistério se
compreende apenas enquanto se vive assim como não se pode explicar um sabor; ele se
entende apenas enquanto se saboreia. Como explicar a sensação de estupor diante da
beleza? O que belo é simplesmente “belo”, não se explica, não se pode projetar nem
programar... apenas acontece; se “sente” e acomuna todos aqueles que sentem em si o
que é a beleza. Do mesmo modo o mistério atrai, se percebe, se sente porque, na
verdade, já está implícito na essência do homem. Logo possui em si uma dinâmica de
atração recíproca. O que é místico, mistérico, não se provoca, não se planeja, não é
resultado de artifícios humanos...

Como esquecer as palavras de Jesus? «A vós é dado conhecer os mistérios do


reino e não a outros!» (Mt. 13,11). Jesus está se referindo aos discípulos, isto é,
àqueles que já empreenderam uma caminhada com Ele, que já renunciaram ao seu
particular projeto de vida; se dirige a pessoas que entregaram as próprias vidas nas mãos
do Senhor. O mistério do Reino não é compreensível “fora” de um contexto, fora de uma
comunidade que se sente, juntos, atraída e envolvida pelo mistério da presença viva de
Cristo. Não é por acaso que Paulo distingue claramente “os de fora e os de dentro” (cfr.
1Cor. 5,12-13). O grau de intensidade de entrega permite a compreensão sempre maior
do mistério, do fascínio de sentirmo-nos unidos a Cristo, Corpo de Cristo, lugar onde
Cristo age!
A esse ponto torna-se fundamental todo o processo pelo qual alguém que se sente
atraído por Deus, precisa ser conduzido durante o caminho.
Vejamos um caso, um caso importante, a conversão de Paulo.

Antes de refletir sugiro de ler At. 9, 1-20...


... feito?

Podemos agora evidenciar alguns pontos que servem para entender “como” procedia
a Igreja primitiva para introduzir um neófita no mistério de Cristo. Não podemos fazer
uma análise detalhada deste tgrecho, apenas nos serviremos de alguns pontos que
devem nortear ainda hoje o processo de iniciação à vida de fé que pode ser oferecido
como alternativa dentro de um processo de nova evangelização.

a) O episódio acontecido com Paulo no caminho de Damasco não é acidental.


Mesmo que o pareça, de fato não é inesperado. Sim, Deus dificilmente faz as

- 47 -
coisas sem tê-las preparado com cuidado. O que aconteceu a Saulo durante o
caminho é apenas o desfecho de algo que já estava acontecendo no seu
coração desde o momento em que viu morrer Estevão. O fato, que é narrado
por Lucas (seu confidente amigo até os últimos momentos da sua vida), deixa
entrever que Paulo ficou marcado com aquele evento e com o modo de morrer
de Estevão 90. Eis então descrito aqui como começa o caminho da fé: Deus
atrai a si e faz isso através de alguém que vive o que Cristo viveu;

b) O encontro com Cristo é descrito como uma experiência “mística”. Sim, Paulo
entrou em contato com o Mistério. Não estou apenas referindo-me ao fato
extraordinário nem às manifestações externas que o acompanharam. O núcleo
é outro. É aquilo que marcou totalmente Paulo, a ponto de dedicar toda a sua
vida à estruturação, amadurecimento e santificação das comunidades. Porque?
Vejamos bem quais palavras Paulo ouviu: «Saul, Saul, por que Me
persegues?». Paulo estava perseguindo os cristãos, deveria ter ouvido
outras palavras, assim como: “por que está perseguindo os meus discípulos?”...
mas não! Pois bem, essa é a intuição principal da vida de Paulo: a comunidade
dos discípulos é o corpo de Cristo, perseguir os discípulos é o mesmo que
perseguir Aquele que está vivo. Paulo entrou, tocou o Mistério.

c) Essa experiência mística é indescritível, supera a possibilidade de esclarecer


em que consiste, a esse ponto entra em jogo a linguagem simbólica que será
também a linguagem própria dos gestos que a Igreja chamará de
“sacramentos”. Aqui as componentes mais evidentes são a palavra e a luz.
Obviamente a Palavra é a auto-comunicação de Deus o qual se faz encontrar e
vai ao encontro. Quando Deus dirige uma palavra essa palavra é eficaz e
realmente produz quando o terreno está pronto (assim como o era o coração de
Paulo). O significado da luz aqui pode ser reconduzido ao significado da palavra
“mistério” que,como vimos anteriormente, indica o ato de fechar os olhos por
causa da intensidade da luz... Não é por acaso que o Batismo será chamado
“iluminação” na Igreja primitiva.

d) Embora autêntica a experiência de Paulo, a ponto de ter sido chamado


“Apóstolo” com a mesma dignidade daqueles que haviam visto Jesus; todavia
enquanto permanecia um experiência privada era absolutamente insuficiente.
Sim, porque o Mistério se revela plenamente apenas dentro de uma
comunidade, e dentro da comunidade de fé que Jesus escolheu. Por isso se fez
necessário que um ministro da comunidade, um representante escolhido
introduzisse Paulo no caminho da fé: era Ananias (vv. 10-17)

e) Ananias, ministro da comunidade, reconhece o que Cristo havia feito em Paulo:


é a Igreja que vê a ação de Cristo que vai ao encontro de alguém que Ele
chama a Si. Em seguida Ananias cumpre um gesto litúrgico, que é a
imposição das mãos. Por último batiza Paulo, introduzindo-o definitivamente no
Mistério do qual havia precedentemente feito experiência.

90
A morte de Estevão, narrada em Atos, 7; é descrita nos mesmos parâmetros da morte de Jesus: o
perdão, o louvor, a esperança etc. Em Estevão que morre por causa da fé, é Jesus que “morre” na Igreja
que proclama a sua fé. Ver um cristão dar a vida para os valores pelos queis Jesus deu a Sua vida é o
que os primeiros cristãos chamavam de “testemunho” ( o que não é “propaganda). Testemunhar é deixar
transparecer em nós a profunda união e sintonia que existe entre a nossa vida e a vida de Jesus. É isso
que fala de Deus sem palavra humanas.

- 48 -
f) O efeito foi uma “iluminação”: começou a enxergar com o olhar de Cristo, o
olhar que lhe foi dado pela comunidade onde se encontrou com Cristo.

g) A nova experiência de vida se transforma logo em missão, necessidade de


tornar conhecida a nova vida que ele estava vivendo.

Ora, aquilo que vimos sintetizado como num itinerário nesse episódio acima, na
verdade era um longo processo no qual se realizava um conhecimento progressivo da
Pessoa de Jesus; um porocesso que tinha com o Batismo o marco fundamentel de uma
longa caminhada, mas que continuavria ao longo dos anos vividos dentro de uma
comunidade de fé. Muitas vezes encontramos na linguagem de Paulo a expressão:
«batizados em Cristo Jesus» (Rm. 6,3); ora, essa locução indica a permanência estável
do discípulo dentro da comunidade onde Cristo vive, corresponde a “estar em Cristo”,
“onde Cristo está vivo”. Se Cristo é vivo e se faz experiência real Dele na comunidade que
Ele escolheu, consequentemente não se pode imaginar um Batismo nem o discípúlado
como uma qualificação adquirida e cristalizada, pois nós podemos “parar”, mas Cristo
não, está vivo, continuamente age de modo diferente, santifica, aproxima a Si as pessoas
de modo sempre novo... Ficar “parado” significa escolher uma progressivo distanciamento
Daquele que é vivo e age!
Nesse sentido me permito relembrar aqui algumas das principais características do
documento “Catequese Renovada”:

 A Catequese é um processo de iniciação à vida de fé: é passar de uma


“informação” sobre os valores da nossa fé a uma experiência do que significa
viver a fé. Trata-se de um caminho através do qual se aprende a tornar-se
discípulo de Jesus. É interessante notar que na maioria dos casos os
Evangelistas usam e expressão «tornar-se discípulo»; desse modo fica mais
evidente que o discipulado não é um estado de vida ou uma meta alcançada. É,
ante, uma atitude com a qual recordamos continuamente a nós mesmos que a
dimensão divina não nos pertence, que as coisas de Deus apenas se aprendem
continuamente, ouvindo e aprendendo.

 Iniciação à vida de fé em comunidade: Cristo se revela no dia a dia de pessoas


que vivem em comunidade. A catequese é concebida como uma iniciação à fé em
sua dimensão pessoal e comunitária.
 Processo permanente de educação da fé: isto é, a própria fé é educada, não
apenas o cristão. A fé descobre a si mesma num constate ato de adesão.

VII. COMO NASCERAM OS SACRAMENTOS?

Quantas vezes ouvimos a frase: “os sacramentos foram instituídos por Jesus
Cristo” 91? Tal ensinamento é essencial na nossa doutrina. A questão que se põe porém, é
91
Essa declaração (DS 1061) foi emitida no Concílio de Trento nos trabalhos realizados entre o 1545 e
1563 para que ficasse clara a doutrina que transparece do Novo Testamento e, assim, orientar o povo
católico diante das posições dos Reformados, os quais negavam que Jesus estivesse na origem dos
Sacramentos, e que esses (menos o Batismo) eram apenas ritos instituídos pela Igreja como lembrança
de Jesus.

- 49 -
outra: Jesus terá indicado diretamente todos e cada um dos sacramentos? O que significa
“instituídos”? Jesus entregou à sua comunidade alguns ritos que deveriam ser repetidos?
E ainda: querer a todo custo imaginar que Jesus determinou o modo, o rito, o significado
de sacramentos como, por exemplo, a Ordem, o Matrimônio, a Confissão... é uma
empresa um pouco ariscada e, quem sabe um caminho que parte com o pé errado. Será
útil prosseguir nesse sentido?

Como é sempre importante fazer para não cair em mal entendidos, precisamos
esclarecer que o significado da palavra “instituir” não é “determinar nos detalhes”, mas
sim “dar fundamento”, “dar consistência”. Pois bem, sendo assim não há como negar que
todos e cada um dos sacramentos têm como fundamento e origem o próprio Jesus e,
especificamente, os seus atos que, como vimos, são lugares de santificação e culto. Isto
significa que, através dos gestos de Jesus, as pessoas faziam experiência de Deus, lhes
era oferecida a possibilidade de ter uma relação com Deus e, frequentemente,
transformavam a própria vida. Obviamente os gestos de Jesus de Nazaré não poderiam
nunca mais ser repropostos do mesmo modo que o Senhor fez. Por outro lado a
comunidade cristã sabe, tem consciência do mistério da qual é portadora; sabe que Cristo
Ressuscitado, já que etá fora do tempo e é vivo, ainda age eficazmente salvando as
pessoas, encontrando-as oferecendo-lhes uma vida nova. Forte dessa consciência e da
responsabilidade recebida, a Igreja começou a repropor às pessoas que ouviam o
anúncio ou que já pertenciam à comunidade dos batizados, alguns dos mesmos gestos
de Jesus, mesmo que em formas nem sempre claras e definidas. Por exemplo: demorou
bastante tempo antes que fosse claro o sacramento da Confissão (apenas 250-300 anos
depois de Jesus começou a ser definido) ou a própria Eucaristia 92 ... para não falar da
distinção entre Batismo e Crisma!

Enfim, os sacramentos não nasceram de um nada, nem de repente; tampouco


foram resultado de indicações detalhadas que Jesus deixou eque deveriam ser seguidas
ritualmente. Ao contrário, sabemos que foram o resultado de anos e anos de reflexão com
a qual as comunidades cristãs conseguiram:

 intuir o significado profundo dos gestos de Jesus,


 repropor esses mesmos gestos para manter viva a união com Ele Ressuscitado
 reviver como memorial o que Jesus viveu para manter viva a propria
identidade
 manter igual o conteúdo e o significado dos gestos salvificos de Jesus na
mudança de cultura e de modo a desvincular esses mesmos gestos salvíficos de
uma única cultura ( a dos Judeus) e de um tempo limitado (o tempo de vida de
Jesus de Nazaré) para poder alcançar todos os homens .

É por isso que ainda hoje podemos aplicar aos gestos que celebramos, as mesmas
propriedades dos gestos de Jesus: são atos de santificação (no sentido que fundem o
fiel com “aquele que é Santo” através de um caminho de fidelidade de confiança) e culto,
no sentido que são a oração que a comunidade inteira dirige a Deus reconhecendo-O
fonte da vida e meta do seu caminho.

92
Embora alguns elementos da Celebração da Eucaristia fossem definidos, como o pão e o vinho,
todavia encontramos em algumas celebrações também outros sinais, como coalhada, mel, peixe... ou
seja todos elementos que recordavam de algum modo o que Jesus fez depois da Ressurreição ou,
também, a Sua condição de Messias definitivo.

- 50 -
21. Qual é a proveniência da palavra “Sacramento”?

A origem não pode ser reconduzida diretamente à Escritura mas ao processo de


aculturação que houve quando a fé cristã começou a espalhar-se no ambiente grego e
latino. Sabemos que, com grande probabilidade, o cristianismo começou a difundir-se
entre os militares e os comerciantes, passando depois para outras categorias sociais.
Como tantos outros termos da nossa fé, também a palavra “sacramentum” (em latim) é de
origem militar. Era assim chamado o juramento que a recruta fazia diante de Deus. Se
tratava de um juramento de

 fidelidade à legião à qual pertencia e


 obediência ao centurião (podemos também usar a palavra “confiança”).

Ora, tanto a fidelidade, quanto a confiança são os elementos que constituem a fé.
Por isso o cristão que era introduzido ao caminho da fé, professava publicamente um
“sacramentum fidei” (sacramento da fé) ou seja, um juramento no qual se comprometia
diante de Deus, a entregar a sua vida a Ele, assim como o legionário o fazia à Legião e ao
seu Centurião, com fidelidade e confiança.

A palavra “sacramentum” era usada também em âmbito jurídico. Com esta


expressão se entendia aquilo que hoje chamamos “depósito em juízo”, ou seja, uma
riqueza que já possuímos mas da qual ainda não podemos usufruir plenamente até que
se realizem determinadas condições. Pois bem, os Sacramentos foram entendidos e
interpretados como a “antecipação dos bens futuros”. Bens que possuímos “já e não
ainda”. São como um “penhor” daquilo que o cristão será diante de Deus uma vez que
consiga percorrer fielmente o caminho com Jesus. Pro exemplo: todos nós sabemos que
o Batismo nos torna “filhos de Deus”. Sim, ma o que isso significa? Qual é a implicação na
nossa vida quotidiana? Como é possível fazer experiência de uma coisa dessas que
supera o nosso entendimento? O próprio autor da carta de São João confessa a condição
em que vivemos com estas palavras: «Caríssimos, vede que grande amor nos tem
concedido o Pai! A ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos
filhos de Deus... Queridos, desde agora somos filhos de Deus mas ainda não se
manifestou o que haveremos de ser» (1Jo. 1,1-3). Ora tal penhor era chamado
“depositum in sacro” (depósito naquilo que é sagrado); com uma tal expressão se
entendia que Deus, (ou os deuses) que é “sagrado” é o garante. Ele certifica que aquilo
que é antecipado nessa vida ligada ainda ao tempo, será recebido em plenitude na vida
como será eternamente.

22. Uma comunidade vive a nova Criação

A Ressurreição é o ponto de partida para podermos entender os gestos que


chamamos “sacramentos”. O Evangelho de São João testifica que Jesus ressuscitou «no
primeiro dia depois do sábado» (Jo. 20,1) 93. Obviamente não se trata aqui apenas de
uma questão cronológica, o intuito é outro, se trata de uma profunda verdade da nossa fé
que não é tão fácil administrar. É uma daquelas “verdades” que podemos

93
Outras traduções como “o primeiro dia da semana” não correspondem ao original e à intenção com a
qual o Evangelista João escreve de proposito que Jesus ressuscitou o “depois do sábado”.

- 51 -
admitir,entender, mas dificilmente “compreender” na sua extensão. Vamos tentar dar
alguns passos.
O Evangelista João imaginou o seu Evangelho estruturado como se fosse uma
“eterna semana”, em prática algo que se inspirava à narração de Gênese quando da
criação do mundo e do homem. Ali (obviamente através de uma linguagem simbólica) se
narra que o “homem” foi criado no “sexto dia” o que significa que ele é sem dúvida a mais
elevada de todas as criaturas, contudo ele não é autossuficiente, não se realiza em si
mesma (apenas o número “7” indica a plena realização) mas apenas quando estiver no
“sétimo dia” repousando com Deus 94. No sétimo dia Deus viu realizada a sua criação,
«viu que tudo era muito bom»; todavia permanece clara uma coisa: embora “boa”,
“muito boa” criação, ela se limita à dimensão espaçotemporal, ligada às regras da
natureza, às regras do “sexto dia”. Ela não é “perfeita em si mesma”, bem como diz o livro
da Sabedoria: «o homem foi feito para a imortalidade» (Sab. 2,23) logo, não
“imortal”! A criação é “perfectível”, ou seja pode alcançar a sua máxima realização.
Pois bem, o que isso tem a ver com o fato de a Ressurreição ter acontecido “no
primeiro dia depois do sábado”? A resposta nos vêm da convicção de toda a Igreja
primitiva: o “primeiro dia depois do sábado” inaugura uma nova criação à partir do
homem. Jesus é o «primogênito» dessa nova criação 95; é o homem novo 96. Assim
sendo, a Ressurreição não é um fato limitado apenas “a um Homem”, não é limitado
apenas “ao homem” mas a toda a criação 97 a qual é envolvida pelo mesmo Espírito que
modificou inclusive o Corpo de Jesus 98.

Veja com que ênfase Paulo tenta comunicar a mistérica realidade em que vivemos:
«...Portanto, se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são do alto,
onde Cristo está sentado à direita de Deus» (Col.3,1). Note-se o tempo do verbo: é
ao passado!!!

Embora toda a criação tenha sido envolvida pelo evento da Ressurreição, todavia a
transformação radical ocorrida, permanece em nível de "mistério" porque, por um lado
percebe-se como uma realidade verdadeira 99 que pode ser "tocada"; por outro lado não
pode ser alcançada em sua plenitude como também não consegue permanecer
constantemente viva na nossa percepção ou no nosso entendimento. Pode ser
alcançada, sim, mas apenas com elementos simbólicos, feitos de gestos e palavras que
remetem ao mistério.

Se é verdade que a Ressurreição operou uma modificação estrutural do homem é


verdade que, para ser percebida e vivida a nível de consciência individual e coletiva, esta
nova dimensão deve passar pelo filtro da história pessoal e comunitária que opera
tornando-a concreta e encarnada em cada um e na humanidade como um todo.
Analogamente ao enunciado de João: «e o Verbo se fez carne» este mesmo homem
novo gerado no evento pascal deve tornar-se "carne" em cada indivíduo e em todos os

94
Essa imagem é retomada pelo Autor da Carta aos Hebreus; cfr. Hebr. 4,1 ss
95
A reflexão sobre isso se tornará mais clara quando veremos os efeitos do Batismo.
96
Cfr. Ef. 4,24 «revesti-vos do novo homem, criado segundo Deus, »
97
Esse tema é amplamente desenvolvido por São Paulo no cap. 8 da Carta aos Romanos
98
«Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo
que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por
meio do seu Espírito, que em vós habita» (Rm. 8,11).
99
As aparições após a Páscoa evidenciam esta dúplice realidade: Jesus de um lado é experienciado
pelos discípulos superando as normais leis da física - é concreto, dá para ser tocado enquanto entra a
portas fechadas - de outro Ele se submete a estas mesmas leis, fazendo questão de dizer: "Não sou um
fantasma" e, em outro momento come peixe e mel.

- 52 -
homens, através da nova economia salvífica: é o tempo da Igreja.

Nesta nova economia, a maneira de estar de Jesus com o homem é diferente


porque os dois não se encontram mais no mesmo plano, mesmo que partilhem dum
denominador comum que eleva o homem à dimensão celeste em que o Senhor
ressuscitado vive.
Essa convicção é um patrimônio fundamental da nossa fé, desde os primeiros
tempos, como podemos perceber deste escrito de São Paulo: «Deus... nos Ressuscitou
com Ele e nos fez sentar nos céus com Cristo Jesus» (Ef. 2,6). Mais uma vez, note-
se o o tempo do verbo ao passado!!!

Quando os Evangelistas narram as manifestações de Jesus depois da


Ressurreição, não o fazem em sentido apologético e demonstrativo; a finalidade é aquela
de educar a primitiva comunidade a conviver com essa nova realidade.
Para que possamos perceber um pouco melhor o que sentia a comunidade primitiva a
respeito disso, creio que a leitura do episódio que envolve Maria Madalena e o episódio
dos discípulos À caminho de Emaús, sejam o reflexo mais evidente. Em ambos os casos
os personagens (que indicam todos os discípulos) convivem com uma realidade nova, a
mesma que estará presente na Igreja e que nós experimentamos, ou seja, a presença-
ausência do Senhor no meio de nós.

 Neste sentido Maria de Magdala (Jo 20) não pode mais "tocar = segurar" Jesus do
mesmo modo que o fazia durante sua vida. Não é mais o mesmo tipo de presença.
Ela e o Cristo Ressuscitado, juntos no "horto - jardim", na ótica do evangelista João
representam a imagem da nova criação, da nova dimensão em que se move e para
onde vai a história: Jesus o "Novo Adão" se encontra com sua "nova Eva", a
humanidade renovada pelo mistério Pascal. Aqui, nesta nova dimensão, feita de
presença e ausência, Maria (=humanidade) poderá encontrar-se com o seu
"esposo".

 O episódio de Emaús (Lc. 24) se coloca entre duas situações de não-fé...:

a) a incredulidade, a desconfiança relativa ao testemunho das mulheres

b) e os olhos "incapazes de reconhecê-lo" (v16) no início da narração, numa


atitude de desconcerto dos discípulos (v41).

...mas não obstante isso consegue manifestar e gerar fé; fé que reconduz à
unidade da comunidade.

A situação de não-fé é presa, vinculada à tentação de ver o corpo físico, por isso
é que será impossível a qualquer discípulo encontrar-se com Cristo enquanto estiver
preso à tentação de limitar-se a o que pode ver, tocar, sentir, avaliar etc. cfr. "não
encontraram o corpo do Senhor Jesus" (v3); "viu somente os panos de linho" (v12); "mas
Ele não o viram" (v24).

Até que permanece a exigência de fazer experiência do Ressuscitado vinculando


este encontro à condição e aos meios que o homem possui, esse mesmo encontro torna-
se impossível.

- 53 -
Surge então uma pergunta: como fazer para “tocar” Jesus ressuscitado? Como poder
manter viva a Sua presença perceptível e escondida? O contrário poderia aos poucos
transformar uma fé viva em ideologia, sentimentalismo privado, algo evanescente... nada
de concreto.

A imagem que nos deixa Lucas no episódio de Emaús pode nos ajudar. Para ele a
Igreja é o “sacramento” que re-lê a Escritura em função do Ressuscitado, tendo Ele como
chave hermenêutica. A Igreja (dois discípulos mais a presença de Cristo “imperceptível”
ao olhar comum) lê a Escritura, caminha, escuta, convida para ficar, senta à mesa,
reconhece os gestos... enfim, gera um processo no qual é possível ver Jesus vivo e
agindo. Não só, é na Igreja que se converte continuamente que o Senhor se faz conhecer
revivendo os seus mesmos gestos (partiu o pão) numa dimensão que supera o tempo
de Jesus de Nazaré; hoje é Cristo Ressuscitado que faz os mesmos gestos através da
Igreja. Veja como o Concílio resume tão bem o que nós vivemos: “está presente ... a
ponto que quando alguém batiza, é Cristo que batiza” (SC 1,7).

«Não sou mais eu quem vive,é Cristo que vive em mim!» (Gal. 2,20).

23. Uma comunidade vive os gestos de Jesus ressuscitado

Fazer os gestos de Jesus não era para a Igreja primitiva (e ainda para nós) apenas
um “repetir” o que foi feito no passado. Isso não teria algum sentido a não ser de simples
lembrança ritual. Quando as comunidades cristãs “re-viviam” os gestos de Jesus, não
apenas o faziam para lembrar o que Jesus fez, mas para atualizar, para tornar presente
no seu “hoje” a mesma ação salvadora que o Senhor havia realizado outrora. Cumprir
gestos “em seu nome” significava transferir em toda a duração do tempo da humanidade,
aquilo que foi feito apenas num pequeno território, num tempo limitado, numa cultura
específica. É a universalização e extensão dos gestos salvíficos de Jesus para que Ele
mesmo alcance todo e qualquer homem que deseje um encontro.

Como vimos anteriormente, nos Evangelhos são narrados muitos encontros


salvíficos, isto é, encontros que modificaram completamente a vida de algumas pessoas
devolvendo-lhes a dignidade, a coragem de viver, o entusiasmo para mudar de vida...
Na verdade, o que salvava as pessoas não era uma cura, mas sim a relação
gerada com Jesus e que podia nascer, por exemplo, através de uma cura, de uma
palavra etc. O caso mais evidente é dos 10 leprosos: nove foram curados, mas apenas
um foi salvo, aquele que voltou e, agradecido, entregou a sua vida a Jesus (Lc. 17,12-19).
Trata-se aqui de um gesto de Jesus que se tornou “graça” para a vida do leproso, pois
ele modificou totalmente a sua razão de existir não por causa daquilo que Jesus fez, mas
por causa daquilo que Jesus fez e da leitura, da resposta que brotou do coração do
leproso. Pois bem, a necessidade de levar a salvação de Jesus a todas as pessoas fez
com que a comunidade cristã amadurecesse a necessidade de realizar gestos análogos
aos gestos de Jesus ainda mais tendo a convicção de que a Igreja é o lugar onde Cristo
se faz presente, se faz encontrar, ainda salva...

Não foi fácil chegar ao número de “sete sacramentos”, foi apenas 600 anos atrás
que isso foi definitivamente estabelecido pela Igreja, mas demorou tempo para poder
esclarecer quais eram os gestos eficazes que Jesus cumpriu ou que faziam reviver a Sua

- 54 -
presença. Apenas para a nossa curiosidade, São Bernardo e os seguidores da sua linha
de pensamento consideravam que houvesse dez sacramentos; São Pier Damiani
considerava doze sacramentos; o primeiro a fazer a lista de sete sacramentos foi Pedro
Lombardo, bispo de Paris (1160 ca.).

Vimos anteriormente 100 que fatos importantes eram marcados com sinais que
fizessem memória perene do acontecido. Pois bem, isso aconteceu também na Igreja a
qual buscou com atenção e anos de reflexão quais gestos exceliam e deveriam ser
considerados gestos sagrados. Os principais critérios usados foram os seguintes:

1. deveriam ser gestos que gerassem dentro dos fiéis a memória viva do Senhor;

2. deveriam ser gestos que uniam momentos fortes da vida de um homem com
situações fortes da vida de Jesus (como o nascimento –Batismo-, a decisão de
unir-se a alguém –Matrimônio-, o sofrimento –Unção- , a escolha de dedicar a
própria vida ao Reino –Crisma e Ordem-; o desejo de restabelecer relações
autênticas –Reconciliação-; celebrar o mistério na sua plenitude do Corpo de Cristo
–Eucaristia.);

3. deveriam ser gestos que comunicavam e geravam um novo modo de existir (esse
efeito foi chamado posteriormente de “graça santificante”) diante de Deus e das
pessoas.

Ora, a esse respeito é importante considerar um aspecto fundamental da vida


cristã. Embora a Igreja realize, cumpra e se alimente dos sete sacramentos, não podemos
esquecer que esse são “apenas” atos. São atos que Cristo cumpre através da Igreja e
para a Igreja. Mas a comunhão com Jesus não é e não se identifica com a “participação
aos seus gestos”. A comunhão com Jesus se realiza com a participação à Sua vida da
qual fazem parte também os atos litúrgicos e celebrativos. Ou seja, não é a
sacramentalização que faz o cristão mas a participação à vida de Cristo vivo na
comunidade onde Ele escolheu se fazer encontrar de modo privilegiado. Antes ou depois
os “gestos” sacramentais são destinados a terminar, mas não a relação estabelecida com
Jesus; essa é eterna! Quantas vezes pudemos perceber uma certa mentalidade pela qual
um cristão “legítimo” é um que foi batizado, crismado, vai à Missa o domingo etc.! Ou
seja, têm todas as cartas em regra. Claro que isso não significa ser cristão. Significa
apenas participar ou ter participado de alguns gestos. Analogamente a isso vemos nos
Evangelhos que nem sempre receber um gesto de Jesus é o mesmo que conhecer Ele,
ter uma relação com Ele, estabelecer uma vida com Ele... Não foi assim com os dez
leprosos? Quantas pessoas entraram em contato com Jesus através dos seus gestos
mas não entraram em comunhão com Ele?
101
O que salva é a comunhão; ... e a comunhão “com Jesus” !

A vida da Igreja não é a vida de momentos sacramentais, mas de uma convivência


sempre mais íntima com Jesus que se explicita e manifesta na vivência dos fiéis; nessa
vida de comunhão Ele se revela como mistério e se comunica com toda a Sua
presença. É de grande significado o fato que o Concílio Vaticano II não possui nenhum

100
Capítulo III Parágrafo 6
101
O Concílio se exprime nestes termos: “… Porém não se salva, mesmo que seja incorporado à Igreja,
aquele que não perseverando na caridade, permanece sim no seio da Igreja, mas apenas com o
‘corpo’ e não com o ‘coração’” (LG. II, 14).

- 55 -
documento específico sobre os sacramentos, não trata deles nenhum de modo exclusivo.
Não existe nenhum “tratado” que explique um a um os sacramentos! A ideia que está por
detrás disso é realmente uma profunda inspiração do Espírito: os “sacramentos” são as
manifestações, os gestos salvíficos de um único “sacramento” que é Cristo vivo na
Igreja, O qual alcança todos e cada um dos homens ainda hoje! O Concílio fala dos
sacramentos sempre dentro do contexto de uma comunidade que

a) se coloca diante do mundo e de si mesma confrontando-se com Cristo


b) buscando uma fusão sempre maior com Ele.

Assim sendo, precisamos nos fazer uma pergunta essencial: será ainda suficiente
uma catequese, uma pastoral que aponte como centro os gestos sacramentais? Ou não
seria mais oportuno conduzir as pessoas que estão bem dispostas a um encontro com
Cristo na comunidade chamada Igreja? Como é possível compreender “gestos” de uma
Pessoa se não se conhece a Pessoa? Um “sinal” que não significa, que não evoca, não
faz reviver no coração a inteira pessoa amada, será ainda um sinal eficaz? Afinal, que
sentido tem ser batizado, por exemplo, se o batismo se reduz a um ato que foi feito num
passado distante, um dia que sequer lembramos, quando nem sequer eramos
conscientes do que estava acontecendo?

...Ou temos que pressupor que é outra a lógica dos gestos sacramentais?

Um encontro com Cristo acontece quando alguém se envolve de fato com Ele, ou
melhor, com tudo Dele! Não apenas alguns momentos parciais como as celebrações.
Alguém que acha o seu lugar na Igreja, se descobre dentro de uma comunidade que é
portadora do Mistério. Já o simples fato de podermos aproximar uma pessoa à Igreja, é
uma oferta real de comunhão com Cristo que lhe é oferecida; uma comunhão que por si
própria é salvífica. Quando um cristão se faz presente em qualquer ambiente, não
apenas em nome próprio, mas em nome da Igreja, (por quanto o ambiente for estranho
à fé) é Cristo vivo que entra naquele ambiente; é o “sacerdócio de Cristo” que abre a porta
às pessoas através do discípulo, do batizado.

A longa tradição da reflexão cristã sobre o seu Mistério é sintetizada em poucos


conceitos que devem estar sempre claros na nossa vida de fé:

Na Igreja Cristo está presente realmente.

a) Está presente na mesma relação que existe entre um “Corpo” e a sua


cabeça 102;

b) Cristo está presente com a Sua Palavra, porque a Igreja nasceu pela
Palavra, se alimenta continuamente com a palavra do Senhor, anuncia a Sua
palavra e, com essa mesma Palavra de Jesus, a Igreja continuamente gera filhos
a Deus 103;
102
«Ele é a cabeça do corpo, da igreja» (Col. 1,18). Não é fundamentada a tradução que às vezes
encontramos: “chefe” no lugar de “cabeça” e, portanto não pode ser aceita.
103
«Eu lhes comuniquei tua palavra e o mundo ficou com ódio deles, porque não são do
mundo, como eu também não sou do mundo. Não te peço que os tires do mundo, mas que
os guardes do Maligno. Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Consagra-os
na verdade: Tua palavra é a verdade. Como me enviaste ao mundo, assim eu os envio ao
mundo. E por eles consagro a mim mesmo, para que eles também sejam consagrados na
verdade. Não rogo somente por eles, mas também por todos aqueles que hão de crer em

- 56 -
c) Cristo está presente realmente com os seus Gestos pois através deles
comunica a si mesmo oferecendo uma participação sempre mais intensa ao
Mistério;

d) Está presente na caridade vivida e exercida, a qual, por si própria é


manifestação, da própria caridade de Jesus para com as pessoas necessitadas,
do mesmo modo que era durante a Sua vida na Palestina

e) Está presente na comunhão de vida, a qual comunhão remete à comunhão


existente entre o Pai, o Filho e o Espírito. Quanto mais intensos forem os laços de
comunhão, tanto mais esses são sinais eficazes que comunicam a graça e
conduzem a Deus Trindade. Viver a comunhão é antecipar e significar a vida
.como será eternamente 104.

A catequese, assim como todas as atividades da Igreja, têm como objetivo principal
educar e conduzir os fieis à mais estrita e intensa vida de comunhão com Cristo
vivo na vida da Igreja. Não é tão determinante um modo ou outro, um caminho ou
outro com o qual isso aconteça; o importante é conduzir as pessoas a Cristo, a uma
vida de unidade com Ele e com a Igreja. Existem pessoas que não são sensíveis aos
ritos, outras que não se sentem imediatamente atraídas pelas celebrações dos
sacramentos mas, por outro lado são atraídas pelos gestos de caridade que os
cristãos fazem, ou pelo estilo de vida que conduzem... Jesus não escolheu o mesmo
caminho para todos obrigando-os a sujeitar-se as suas determinações; agiu sempre
de modo inverso. Não pediu a Zaqueu que primeiro se convertesse para depois
recebê-lo em casa 105 ... Não teve receio de ficar a sós com uma mulher estrangeira
que ia buscar água num poço 106... Não pediu aos pecadores de fazer um ato público
de penitência para depois serem aceitos, Jesus fez exatamente o contrário como bem
sabemos. Do mesmo modo que Jesus, é a Igreja que precisa encontrar os caminhos
diante dos quais as pessoas são mais sensíveis e, trilhando esses mesmos caminhos
(e não impondo outros) conduzir as pessoas à maior intimidade possível com Jesus.

Esse processo é sintetizado com uma expressão antiga e sempre nova:

INICIAÇÃO À VIDA DE FÉ.

Significa todo o processo pelo qual a Igreja, através dos seus membros que são
qualificados e capacitados pelo próprio Sacramento do Batismo (o qual lhes confere a
participação ao Sacerdócio de Cristo), conduzem e introduzem sempre mais uma
pessoa que vive a vida profana à vida sagrada, a vida de comunhão com o
MISTÉRIO DE CRISTO VIVO.

Enfim, viver a Igreja, conduzir as pessoas à Igreja, não é impor um modo ou outro
de agir, uma doutrina, uma moral, mas é conduzir as pessoas que Deus coloca em

mim pela sua palavra. Que todos sejam um! Meu Pai, que eles estejam em nós, assim
como tu estás em mim e eu em ti. Que sejam um, para que o mundo creia que tu me
enviaste.» (cfr. Jo. 17,14-21)
104
Essa doutrina está na base de dois documentos importantes do Concílio: a “Lumen Gentium” e a
“Perfectæ Caritatis”.
105
Lc. 19,2-9
106
Jo. 4,5ss

- 57 -
nosso caminho, sempre mais adentro do mistério da Sua pessoa humano-divina que
vive e age no tempo (pelo Igreja) e fora do tempo (pelo Espírito). Trata-se aqui de
uma admirável dinâmica de atração e resposta, de movimento do Espírito de Deus e
movimento do coração do homem; magistralmente, o Concílio se expressa nestes
termo sem relação às pessoas que se sentem atraídas na Igreja:

“Os catecúmenos que, por impulso do Espírito, desejam e expressamente


querem ser incorporados na Igreja, são conjuntos a Ela por esse mesmo desejo e, a
mãe Igreja os envolve como já seus, os envolve como seu amor e com os seus
cuidados” (LG II,14).

24. Como agem em nós os Sacramentos?

Olhando para os gestos de Jesus que são descritos nos Evangelhos como gestos
“significativos”, que comunicavam e geravam uma nova relação entre Jesus e a pessoa
que era envolvida, podemos reconstruir os elementos essenciais que se tornaram base
dos sacramentos. Esses também deveriam possuir as mesmas características dos gestos
de Jesus, afinal era Ele mesmo, agora Cristo Ressuscitado, que continuaria agindo pela
Igreja e na Igreja.
Vimos que 107 a grande parte dos encontros salvíficos, isto é, o encontros que
mudavam a vida das pessoas fazendo-as encontrar com o Senhor, eram caracterizados
por alguns elementos que formavam como que um denominador comum:

a) Aconteciam em circunstâncias comuns, do dia a dia. Jesus não buscava a


situação, não pretendia que as pessoas se aproximassem Dele; o Senhor
aproveitava daquilo que acontecia. Sabia ver em todos os momentos a
possibilidade de transformar o que via num evento salvifico. Jesus sabia usar
uma situação comum (diríamos “profana”) para transformá-la em situação
sagrada.
b) As ocasiões eram as mais diversas. Ou seja não existia um protótipo, uma
norma, um padrão que determinasse a possibilidade ou não do encontro 108;
Jesus oferecia a todos a mesma possibilidade, sem exclusão prévia;
c) A grande parte dos encontros tinha um momento central composto de uma
palavra e um gesto significativo. A palavra e o gesto, juntos, conduziam a
pessoa a operar um salto qualitativo, a superar a própria condição para
escolher se entrar na condição nova que Jesus oferecia;
d) A pessoa fazia a sua escolha.
e) A esse ponto, a palavra e o gesto com os quais Jesus envolvia a pessoa se
tornavam eficazes ou ineficazes. A sua eficacio ou ineficácia não dependia da
oferta de Jesus 109, não dependia daquilo que Jesus fazia, mas sim da resposta
que a pessoa dava. Como não lembrar a tristeza coma qual Jesus disse: «A

107
Título VI parágrafo 16: “Estrutura dos gestos de Jesus”
108
Jesus não estabelece normas prévias, não limita a possibilidade de encontro, não impõe condições... o
que, infelizmente às vezes vemos acontecer dentro de algumas comunidades, algumas seitas e, até em
algumas celebrações...
109
Aqui se funda a doutrina que foi definida durante o Concílio de Trento com estas palavras: “ex opere
operato” (Can 8, Sess VII ) que esclarece definitivamente que aquilo que Deus oferece ao homem em
Jesus é eficaz para todos, a Sua oferta produz sempre o resultado que contém. Todavia, a salvação é
essencialmente uma relação e toda relação implica numa responsabilidade e liberdade que se manifesta
em escolhas. Ora o “encontro” se dá apenas quando as duas liberdades coincidem numa única meta.

- 58 -
quem hei de comparar esta geração? É semelhante a meninos que,
sentados nas praças, gritam aos companheiros: “Tocamos flauta, e
não dançastes; entoamos lamentações, e não chorastes...» (Mt.11,16-
17)

f) Se a resposta for de adesão, então nasce ou cresce a fé da pessoa e começa


uma relação nova com Jesus.

Podemos encontrar um exemplo bem detalhado desse processo, no episódio da


cura do cego de nascença, narrado em Jo. 9.

 Tudo nasce de um questionamento dos discípulos em relação ao mal que


aflige um homem, é a mesma pergunta de sempre: “o que ele fez de
errado?”;
 Jesus não dá uma resposta a esses tipos de questionamentos porque não é
esse o caminho para se aproximar de Deus.
 Fez um gesto muito estranho para nós, mas bem compreensível para os
discípulos e pediu ao cego de fazer o que Ele pedia.
 O cego poderia agir conforme Jesus lhe pediu ou não. Afinal a doença dele
não tinha cura... ele não conhecia Jesus nem a sua fama... Enfim, tudo era
favorável a que ele não desse atenção a Jesus;
 Mesmo asim o cego deu um crédito
 A esse ponto o gesto de Jesus encontrou a sua realização eficaz
produzindo no cego exatamente aquilo que o gesto significava 110.

Esse mesmo processo é o que acontece em nós ao viver a dimensão sacamental da


nossa vida: Jesus nos transforma em pessoas novas onde perfeitamente são
aequilibradas a dimensão humana e divina que Ele nos oferece gratuitamente.

Ação de Deus e resposta do homem

Todo esse percurso é o mesmo dos nossos sacramentos e se encontra análogo


naquilo que a Igreja faz, já que os sacramentos atualizam no tempo da Igreja aquilo que
Jesus fez no tempo da sua vida na Palestina. O processo é o mesmo... afinal é o mesmo
Jesus Cristo quem age!

Vamos fazer um exemplo. Deus deseja nos oferecer uma relação nova com Ele
através de Jesus; o sinal que também nós estamos dispostos a acolher essa oferta e
desejamos unir a nossa vida à vida de Jesus é o Batismo. Nesse momento Deus abre
definitivamente uma porta que dá acesso livre ao “Céu”, isto é, à dimensão em que Ele
está. Tal decisão de Deus é irreversível, não volta atrás, não pode ser desfeita porque a
decisão de Deus está fora do tempo, logo, é eterna.
A questão é outra, é relativa à eficácia do Batismo sobre a nossa vida,m sobre o
que vivemos “durante o tempo” da nossa existência. Sim, porque uma coisa é viver desde

110
Saliva e barro eram elementos carregados de grande significado simbolico. A saliva é um líquido e,
até o XVII – XVIII século da nossa era si tinha a convicção de que a vida estivesse conentrada nos
líquidos presentes no homem (daqui, por exemplo, a expressão “mal humor” = de umidade). O barro é o
elemento no qual a vida se concretiza, o barro é o lugar onde a vida se manifesta produzindo aquele ser
chamado “homem”. Enfim, misturar saliva e barro era o simbolismode uma nova vida recebida de Jesus
e da natureza humana.

- 59 -
já a vida de Filho de Deus, sentir a presença de Deus, o Seu amparo, a Sua providência...
viver sentindo Deus como um “Pai”. Outra coisa é viver a própria vida sem sentir alguma
ligação com Ele, viver a vida “sozinho”; questionando-se continuamente sobre o sentido
do existir e de como existir, sobre o amanhã, sobre o significado da morte, de uma
doença, de um acidente...
O Batismo é o que é, é a porta aberta que une definitivamente tudo o que é de
Jesus com tudo o que nós somos; porém, o que pode acontecer é viver de um modo ou
de outro a nossa vida, usufruir ou não 111 da relação que o Pai nos oferece gratuitamente
com o Batismo! Enfim tornar a escolha de Deus em nosso favor algo que nos envolve ou
não.
Assim sendo, a maturidade de um sacramento, a plenitude da graça santificante
que ele dá, acontece quando um sacramento gera e realiza uma relação com Deus
através de Cristo que age na Igreja.

Lembra a parábola do Tesouro? Pois bem, a nossa fé é exatamente assim, cresce


e se descobre assim como se faz através de um mapa do tesouro. Será possível
encontrá-lo se faltar uma parte do mapa?

Ação de Deus Resposta


do homem

Ação simbólica realizada com um gesto e


uma palavra que unem o humano e o divino

Podemos imaginar que uma parte do mapa seja a ação de Deus, a outra parte a
resposta do homem. Pois bem, o tesouro, é a graça que nos une ao Mistério a Cristo. É
a graça que nos “santifica” fundindo a nossa vida com a vida do Senhor. Essa graça
santificante alcança a sua realização plena quando as duas metades do “mapa” se
encontram. Os sacramentos são como mapa do tesouro o qual indica sim, mostra, revela
o tesouro, mas precisa ser estudado, analisado, conhecido para que nos conduza ao
Tesouro. A Ação Sacramental, isto é, o rito celebrado, é como o “colante” das duas
metades, um “colante” feito de palavras e gestos que fazem reviver as palavras e gestos
de Jesus. Essa imagem do “colante” é o conceito que está por detrás da expressão que
aplicamos aos sacramentos: são “símbolos da fé”. Obviamente a palavra “símbolo” não é
sinônimo de “fantasia”. Ao contrário! O símbolo é algo bem concreto, visível, tangível que
contemporaneamente remete a uma realidade superior e também une duas realidades.

Analogamente, qualquer sacramento não é uma mágica que acontece num


momento, é o ponto alto de todo um processo de revelação e encontro com o Mistério
111
Esse conceito é também expresso pela Igreja com um título que indica a “resposta” de quem recebe:
“opus operantis”, para ser distinguido com a outra expressão “opus operato” que indica o ato de Deus.

- 60 -
da presença de Cristo. É um caminho a ser percorrido com o tempo, a oração, o
aprofundamento dos ensinamentos de Jesus, a vida de caridade da Igreja, as inúmeras
dimensões da vida em comunidade etc.

Ação do homem e resposta de Deus

Precisamos ainda de um outro conceito fundamental que nos servirá para


compreender melhor toda a dimensão sacramentária da nossa vida e não apenas de
momentos rituais vividos durante uma cerimônia.

Até agora falamos de um encontro realizado em duas dimensões: a ação de Deus


e a resposta do homem. Por outro lado, para que seja respeitado o grande valor expresso
no livro de Gênese pelo qual o homem é colaborador e não subordinado de Deus, é
necessário também inverter as posições. Podemos perfeitamente falar de ação do
homem e resposta de Deus. Nessa ótica muda completamente o ponto de vista, dessa
vez é o homem que apresenta a Deus o fruto da sua vida, as suas conquistas e
dificuldades, os momentos fortes da sua existência... os entrega a Deus para que Deus
leve a cumprimento e santifique o que o homem começou com as suas forças, a sua
inteligência as suas capacidades.
Façamos o exemplo do matrimônio. O matrimônio é um “direito natural”, ou seja,
não necessariamente é preciso ser cristão para que haja um matrimônio. O que é
suficiente é o desejo estável e público de duas pessoas que decidam partilhar uma vida
de modo pleno. Também o amor é natural; não precisa ser cristão para amar e saber
amar. Digamos que na escolha de duas pessoas que decidam partilhar a vida se torna
presente todo o esforço possível para poder viver juntos no amor. Isso já é um valor por si
próprio, contudo é um valor natural.

Todos nós sabemos que também o amor natural é uma dimensão de vida que nos
supera e é tão desconhecida que nos arrasta, nos revolve, nos conduz por caminhos que
sequer poderíamos imaginar; por outro lado ele pode de repente desaparecer, evanescer,
não ter mais o suporte suficiente... Nessa situação toda as pessoas podem escolher entre
perseguir um projeto que leve em consideração a Deus ou não. É uma escolha. O casal
que decide realizar o próprio projeto de vida acreditando no amor apesar de tudo, é
consciente da própria limitação mas não se fecha presunçosamente na hipótese de
conseguir sozinho gerir o amor. Assim sendo esse casal decide levar em consideração
Deus como fonte e força do amor; entrega o amor “natural” a Ele de modo que Ele o
transforme em amor sobre-natural. Enfim, o casal que conta consigo mesmo ama
apenas como um homem sabe amar, o casal que entrega o matrimônio a Deus se dispõe
a aprender como Deus sabe amar. Nesse ato de entrega, Deus assume para si a
disposição das pessoas e se torna “corresponsável” do projeto, enriquecendo-o da força
necessária, da graça oportuna, da representatividade que demonstra como Deus sabe
amar. O casal se torna assim o espelho do amor de Deus que é estável e comunitário.

Assim como o caso citado, é o mesmo quando nasce um filho, quando sofremos, quando
desejamos expressar a força da vida comunitária, a necessidade de dar e receber o
perdão... entregamos tudo a Deus e Ele o assume para si e o enriquece com aquilo
que Deus possui: o Amor de Santidade.

- 61 -
INDICE

I. Um olhar retrospectivo..................................................................................................2
II. “Como o Pai me enviou eu também vos envio”............................................................4
1. “Como” Jesus compreendeu a sua missão?............................................................5
2. Anunciar e Proclamar................................................................................................7
3. Jesus é testemunha do Pai.......................................................................................9
4. O Pai e o Espírito são testemunhas de Jesus........................................................11
5. Sereis minhas testemunhas....................................................................................12
III. Lugar da memória.......................................................................................................14
6. Sinal da memória....................................................................................................15
7. A Arca da Aliança....................................................................................................16
IV. Um lugar de encontro..................................................................................................18
8. Céu e terra..............................................................................................................19
9. Um lugar sagrado....................................................................................................20
10. Jesus é a porta........................................................................................................22
11. Os ritos de introdução, o altar a purificação...........................................................24
V. Jesus Cristo, lugar de encontro..................................................................................25
12. Jesus revelação viva do Mistério............................................................................27
13. Os gestos de Jesus como "sinais"..........................................................................29
14. Gestos de Jesus: lugar de santificação e culto......................................................30
15. Fé e gestos de Jesus..............................................................................................33
16. Estrutura dos gestos de Jesus................................................................................36
VI. Viver o Mistério............................................................................................................36
17. Uma comunidade vive Jesus Ressuscitado...........................................................39
18. “Eis o mistério da fé”...............................................................................................41
19. A comunidade cristã é lugar de manifestação e descoberta do Mistério..............43
20. Iniciação ao Mistério da fé......................................................................................44
VII. Como nasceram os Sacramentos?........................................................................48
21. Qual é a proveniência da palavra “Sacramento”?..................................................49
22. Uma comunidade vive a nova Criação...................................................................50
23. Uma comunidade vive os gestos de Jesus ressuscitado.......................................52
24. Como agem em nós os Sacramentos?..................................................................56

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