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I A ESTETICA DA RECEPGAO: COLOCAGOES GERAIS HANS ROBERT JAUSS Que significa a experiéncia estética, como ela tem se manifestado na his- téria da arte, que interesse pode ganhar para a teoria contemporinea da arte? Por muito tempo, a teoria estética ca hermenéutica literaria deram pouca aten- ‘do a estas questdes. Na reflexo teérica sobre a arte, quer a anterior, quer a pos- terior & constituicao da estética como ciéncia auténoma, tais perguntas perma- neciam ocultadas pelos problemas legados pela ontologia ¢ pela metafisica platdnica do belo. A polaridade entre a arte e a natureza, a correlacao do belo coma verdade 0 bem, a congruéncia da forma com o contetido, da forma com a significacao, a relagdo entre imitacdo ¢ criagZo cram as quest6es candnicas su- premas da reflexao filoséfica da arte. O legado platénico, muitas vezes nao ad- mitido, mostra-se ainda em curso na filosofia contemporinea da arte sempre que se concede 4 verdade, manifestada pela arte, a primazia sobre a experiéncia da arte, na qual se extetioriza a atividade estética como obra dos homens. Por isso a pergunta pela prixis estética, de importincia decisiva em toda arte mani- festada como atividade produtora, receptiva ¢ comunicativa, permanece, em grande parte, nio esclarecida e precisa ser hoje recolocada. Este estado de coisas jé é restemunhado por seu lugar na tradicao: fala-se sobre os efeitos da arte principalmente na retdrica, temporariamente na pole- mica dos doutores da Igreja contra a arte, ocasionalmente na doutrina dos afe- tos da filosofia moral, depois na psicologia do gosto, mais tarde na sociologia da arte €, em data recente, com mais freqiiéncia, no estudo dos mass media. A pottica aristotélica constitui, na Antigiiidade, a grande excecio ¢, na idade mo- demna, a Kritik der Unteillraft (Critica da faculdade de julgar) de Kant. Contu- 67 do, nem da continuagao da doutrina aristotélica da catarse, nem da explicagao transcendental de Kant, surgiti uma teoria abrangente ¢ capaz de formar uma tradigao acerca da experiéncia estética. O que, ao contrario, prevaleceu foi pro- clamado por Goethe, em seu famoso veredicto, que recusava a pergunta pelos efeitos como, em suma, estranha & arte; assim também sobre a estética de Kant recaiu a censura de subjetivismo e sua tentativa em prol de uma teoria da ex- periéncia estética, que fundava o belo no consenso do juizo de reflexo, per- deu-se, ao longo do século XIX, nas sombras de uma estética mais influente, a hegeliana, que definia 0 belo como o aparecimento sensfvel da idéia e, desta maneira, abria o caminho para as teorias histérico-filoséficas da arte. Desde entao, a estética se concentrava no papel de apresentacao da arte ¢ a histéria da arte se compreendia como histéria das obras e de seus autores. Das finng6es vitais (debensweltlich) da arte, passou-se a considerar apenas 0 lado pro- dutivo da experiéncia estética, raramente 0 receptivo ¢ quase nunca o comuni- cativo, Do historicismo até agora, a investigacao cientifica da arte tem-nos in- cansavelmente instruido sobre a tradigao das obras e de suas interpretagées, sobre sua génese objetiva ¢ subjetiva, de modo que hoje se pode reconstruir, com mais facilidade, o lugar de uma obra de arte em seu tempo, sua originali- dade em contraste com as fontes € os antecessores, mesmo até sua fungio ideo- Kégica, do que a experiéncia daqueles que, na atividade produtiva, receptiva ¢ comunicativa, desenvolveram int actu a praxis histérica ¢ social, da qual as his- trias da literatura e da arte sempre nos transmitem o produto jé objetivado. O programa do presente volume contém as perguntas sobre a praxis es- tética, sobre sua manifestagao histérica nas wés funces basicas de Posesis, Ais- thesis ¢ Katharsis (como denomino, numa retrospectiva da tradicao poetolégi- ca, as atividades produtiva, receptiva e comunicativa), sobre o prazer estético como a orientagao fundamentadora, caracteristica das trés fungdes, ¢ sobre a relagdo de vizinhanga da experiéncia estética com as outras dreas de significa ‘sao da realidade cotidiana. Apresenta-se aqui a versio refundida das tentati- vas primeiro formuladas na minha Kleine Apologie der dsthetischen Erfabrung (Pequena apologia da experiéncia estética) (1972) e que, de forma ampliada, le- vei a discussio no VI Coléquio de Poetit und Hermeneutik.' A este tomo, de- ' Negativinde und Idenrifikation — Versuch zur Theorie der achetschen Exfabrang (Negatividade e identificagdo — estudo para a teoria da experitmcia estérica) (1972, publicado em 1975). 68 verd seguir um outro, que procuraré mostrar a tarefa de uma hermenéutica li- teréria, ndo tanto em mais uma teoria da compreensao e da explicago, quan- to na aplicagio, isto é, na mediagéo da experiéncia contemporinea e passada da arte. Permanecerd neste contexto 0 problema central de como se pode rea- lizar, de forma metodicamente controlavel, o realce e a fusio dos horizontes da experiencia estética contemporinea e passada. Ser, ademais, colocada a re- lagio entre pergunta ¢ resposta como instrumento hermenéutico, que tam- bém poderd ser mostrada como relacdo consecutiva entre problemas e solu- gdes nos processos literdrios. Os ensaios aqui apresentados no campo da experiéncia estética encon- tram sua limitagao necessdria na competéncia do especialista em literatura. Ainda quando estes ensaios incluam testemunhos da histéria de outras artes se apdiem nos resultados da histéria da filosofia ¢ da histéria dos conceitos (Be- griffgeschichte), de modo algum desmentem que © autor adquiriu sua expe- riéncia, principalmente pelas pesquisas sobre a literatura medieval e sobre as li- teraturas francesa c alemi dos tiltimos trés séculos, assim como que sua reflexéo hermenéutica se formou na prixis da interpretacao literdria. Nao obstante, a jungao, formulada pelo titulo, entre experiéncia estética e hermenéutica literdria, também declara minha convicgio de que a experiéncia relacionada com a arte no pode ser privilégio dos especialistas e que a reflexio sobre as condighes des- ta experiéncia tampouco hd de ser um tema exclusivo da hermenéutica filosé- fica ou teoldgica. Essa declaracio talvez me possa poupar as desculpas usuais de diletantismo, pela inevitével ultrapassagem dos limites académicos. A bipartigao do livro ademais se justifica por um fiundarmentum in re: adi- ferenciacZo fenomenolégica entre compreensio ¢ discernimento, entre a expe- rigncia priméria ¢ 0 ato da reflexdo, com que a consciéncia se volta para a signi- ficagio e para a constituicio de sua experiéncia, retoma, pela recepcéo dos textos ¢ dos objetos estéticos, como diferenciagdo entre o ato de recep ¢ o de inrer- pretacio. A experiéncia estética nfo se inicia pela compreensio ¢ interpretacdo do significado de uma obra; menos ainda, pela reconstrugio da intengio de seu autor, A experiéncia primdria de uma obra de arte realiza-se na sintonia com (Ennstellung auf ) seu efeizo estético, isto é, na compreensio fruidora e na frui- Go compreensiva. Uma interpretagio que ignorasse esta experiéncia estética pri- meira seria propria da presuncdo do fildlogo que cultivasse o engano de supor que 0 texto fora feito, nao para o leitor, mas sim, especialmente, para ser inter- pretado. Disso resulta a dupla tarefa da hermenéutica literdria: diferengar meto- 69

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