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I.

Exatidão e verdade

Jean-Claude Milner

Tradução de Lucas Mello Carvalho Ribeiro

§I

Nosso tempo forjou uma doutrina da verdade. Ela é bem diferente da doutrina
dita clássica. Segundo esta última, verdade e exatidão sem dúvida se distinguem, mas
uma proposição inexata – ou, pelo menos, inexata para além de um grau tolerável – não
poderia ser tomada como absolutamente verdadeira. Ao passo que, segundo a doutrina
mais recente, não é apenas possível que a verdade proceda da inexatidão, mas é preciso
sustentar que a inexatidão é a forma mesma da verdade.
Diversamente expressa, a proposição encontra-se em muitos discursos; o nome
da estrutura moebiana em que se enodam verdade e inexatidão pode variar. Alguns a
nomeiam dialética; outros, acaso objetivo; outros ainda, sintoma. Em um estudo
memorável, Carlo Ginzburg apontava para a função do indício: indícios dos enigmas
policiais ou da perícia técnica; ele iluminava, assim, uma das maneiras que a verdade
não-clássica possui para insinuar-se através de materiais incompletos, deformados,
dispersos, em uma palavra: inexatos1. Lacan parece ter sido, contudo, o primeiro a ter,
como ele o diz, pego o touro pelos cornos. Em “A coisa freudiana”, ele faz falar aos
homens a própria verdade: “eu, a verdade, serei contra vós a grande enganadora…”, “…
não é apenas pela falsidade que passam meus caminhos, mas pela falha estreita demais
de encontrar na ausência do fingimento e pela nuvem inacessível do sonho, pelo
fascínio imotivado do medíocre e pelo impasse sedutor do absurdo”, “quer fujais de
mim no embuste, quer penseis apanhar-me no erro, junto-me a vós no equívoco…”,
“vagabundeio pelo o que considerais como o menos verdadeiro em essência2…”.
Trata-se ali, bem entendido, da psicanálise, mas não pode-se ignorar que Lacan
refere-se igualmente à história próxima, senão ao cotidiano: “diversos casos observados

1
C. Ginzburg, Mythes Emblèmes Traces, Verdier/poche, 2010. O artigo fundador, intitulado « Traces »,
data de 1979.
2
“La chose freudienne”, Écrits, Seuil, “Points essais”, 1999, tome I, p. 406-408. A conferência inicial foi
pronunciada em Viena, no ano de 1955. O texto foi publicado em 1956.
[…] de súbitas transmutações de erros em verdades”3. Não apenas a história
acontecimental é chamada ao banco das testemunhas, mas também a filosofia. Hegel é
evocado enquanto descobridor da astúcia da razão, isto é, através dele todos os
dialéticos – Marx incluído –, e isso contra Descartes. “Serei a grande enganadora”, diz a
verdade, re-encontrando palavra por palavra o grande enganador, potente e astucioso, da
Primeira meditação. Não pode-se ignorar, enfim, que a doutrina da verdade determina
precisamente o ponto – o único no fim das contas – em que Lacan verdadeiramente
retoma Heidegger. Como se uma doutrina de uma verdade disjunta da exatidão fosse a
única própria a enodar a si mesma ao pensamento do século XX, distinguindo-se de
outros pensamentos, enodando-se ao mesmo tempo aos acontecimentos do século XX,
distinguindo-os de qualquer outro tempo que seja. Em sua grandeza e em seu horror, em
sua altivez e em sua baixeza. A verdade disjunta da exatidão tem algo a ver com cada
uma dessas dimensões.

§2

A doutrina clássica colocava como axioma que a verdade é apenas a versão


nominal do predicado “ser verdadeiro”. O axioma não é nada senão natural: quando
toda a filosofia se inscreve na forma predicativa, não deve surpreender que a verdade
receba dos filósofos uma definição predicativa. Admitido o axioma, é uma única e
mesma coisa definir a verdade e estabelecer as condições de uso do predicado “ser
verdadeiro”. A que pode-se reportá-lo? Seguindo qual critério escolher entre verdadeiro
e não-verdadeiro? Quem tiver respondido a essas duas questões terá, no mesmo golpe,
desenvolvido uma teoria da verdade.
Só pode-se dizer de algo que ele é verdadeiro ou não se ele próprio for da ordem
de um dizer possível: uma proposição dizível, um pensamento na medida em que
poderia ser dito, um estado de coisas na medida em que se o considera como
transmissível por um dito etc.
Corolário 1: posto que só um dito pode ser verdadeiro e posto que só há verdade
se se pode atribuir esse “ser verdadeiro” a um dito, a verdade é sempre “verdade-de”; a
verdade, enquanto não for verdade-de, não existe.
Corolário 2: posto não haver ser verdadeiro que não de um dito e posto que não
há verdade senão se se puder atribuir esse “ser verdadeiro” a um dito, só há verdade se
3
Ibid., p. 406.
houver uma metalinguagem. Em quais condições um dito possível pode ser dito
verdadeiro? Resposta: quando há encontro entre o dito e algo que não é esse dito
(adequação entre coisa e pensamento, entre realidade e proposição etc.), e quando,
ademais, esse encontro ou não-encontro pode ser dito.
Entre dito não-verdadeiro e dito verdadeiro, nenhuma diferença interna deixa-se
reconhecer. Esse dado brutal autoriza a gramática, na medida em que ela se distingue da
lógica: uma frase falsa pode ser correta, uma frase verdadeira pode ser incorreta. Mas a
própria lógica não basta: uma proposição logicamente bem formada pode ser falsa. A
respeito da verdade, a diferença entre os ditos advém de uma relação com aquilo que é
externo a esses ditos, e essa diferença deve poder ser dita. Definição predicativa da
verdade e doutrina da correspondência são copertencentes. Doutrina da correspondência
e metalinguagem são copertencentes.
Corolário 3: se, em compensação, não há metalinguagem, se é impossível que
um dito diga o que quer que seja de outro dito, então a verdade não se diz.

Tudo isso admitido, exatidão e verdade articulam-se tranquilamente. Pois a


exatidão, por sua vez, é predicativa: ela é apenas a versão nominal do predicado “ser
exato”. O conjunto daquilo de que o predicado exato se apropria parece coincidir com o
conjunto daquilo de que o predicado verdadeiro se apropria. Só há exatidão se se pode
dizer de uma frase, de um pensamento, de uma informação que são exatos. Enfim e
sobretudo, só se pode dizer que algo é exato se for possível reconduzi-lo a um encontro
bem sucedido.
Assim se passa com a medida exata, encontro bem sucedido do mensurante com
o mensurado. O mesmo se dá com a observação exata, encontro bem sucedido entre um
fragmento da língua e um perceptum. Com a tradução exata, encontro bem sucedido
entre um fragmento de língua e o fragmento de uma outra língua. Com a edição exata,
encontro bem sucedido entre um conjunto de caracteres escritos e um dado texto. Entre
encontros bem sucedidos, de onde nasce a exatidão, e correspondência adequada, de
onde nasce a verdade, opera uma superposição. Portanto, nada poderia ser verdadeiro se
fosse inexato. Quando muito, poder-se-ia admitir que há graus no interior da exatidão e
levar adiante uma teoria da aproximação; ao passo que a verdade não admite gradação.
Trata-se apenas de fazer corresponder um predicado a um número indeterminado de
valores – a exatidão – e um predicado a dois ou três valores – a verdade. Bê-á-bá da
filosofia, que não deixará de deduzir daí uma moral e uma política.
Suponhamos, em compensação, que a verdade passe pelo inexato. Para que o
inexato não seja apenas seu meio (astúcia da razão), mas sua substância e sua forma, é
preciso que a verdade seja disjunta do predicado verdadeiro. É preciso, com efeito, que
a verdade não seja um predicado. A prosopopeia lacaniana o mostra: a verdade não é
predicado, mas sujeito; ela pode dizer “eu” e, mais precisamente, “eu falo”, porque ela
não reside em um predicado que se atribui a um dito, mas no próprio dito na medida em
que ele é falado. No mesmo golpe, ela não é verdade-de, mas, em um emprego que os
gramáticos qualificariam de absoluto, ela é a verdade, desligada de todo dito exterior a
ela, ao qual ela poderia reportar-se. Ela é interior ao dito que ela atravessa, e esse dito,
que a efetua, é-lhe interior.
Se o indício fragmentário, o sintoma, o lapso, a inversão dialética podem dizer a
verdade na exata medida em que eles não se prestam às correspondências exatas, então
a verdade não é a correspondência de um dito a seu objeto. Ela não deve nada ao objeto
a respeito do qual alguma coisa é dita, ela insiste no interior do próprio dito. Um dito de
verdade é reconhecido como dito de verdade pelos efeitos que ele engendra: uma
desordem na doxa, um movimento violento no pensamento, um assentimento que
precipita dedução. Não devendo nada ao objeto, o dito não poderia tirar seus efeitos de
sua relação ao objeto; ele os tira de si próprio enquanto dito de verdade. Se a verdade
não é um predicado, ela é sujeito; mais exatamente, ela surge desde o instante em que o
sujeito insiste em um falar. Portanto, na medida em que ela não é predicado, ela é efeito
dessa insistência. Que o efeito opere naquele que fala ou naquele que escuta, pouco
importa. Uma vez disjunta da exatidão, a verdade torna-se efeito de verdade.
A se seguir esse fio, já se sabe que entramos em uma floresta obscura,
assombrada por figuras inquietantes e monstros. Lacan, sempre ele, as condensava em
uma nova trindade: “mercado mundial da mentira, comércio da guerra total e nova lei
da autocrítica”4. Ele se pronunciava em 1956, no auge da guerra fria; mas quem ousará,
hoje, sustentar diante da escalada dos negacionismos que o mercado mundial da mentira
pertence ao passado? O século XXI está em vias de inventar uma nova forma de guerra
total: não mais QGs concentrados, mas redes dificilmente situáveis; não mais estratégias
nítidas, mas a destruição indefinida – ruína de cantões por vezes distantes e sem
relações históricas diretas, aniquilamento de populações que se ignoram umas às outras
e que, amiúde, não conhecessem nada de seu inimigo, nem mesmo sua existência. O
4
Ibid., p. 407.
vocábulo terrorismo mascara a inovação real, que eu chamaria de guerra total dispersa.
A autocrítica desapareceu, substituída pelo arrependimento; a dinâmica, no entanto,
mudou? Na sexta-feira, 11 de setembro de 1998, tinha lugar, como em todos os anos,
uma manhã de oração na Casa Branca. Ali, o presidente Clinton confessou publicamente
suas faltas diante de uma centena de líderes religiosos – judeus, cristãos, muçulmanos,
budistas. Ele exprimiu um arrependimento cuja autenticidade importa pouco, e isso em
nome de crenças bastante indeterminadas. “I have sinned”, declarou; “Eu pequei”. Foi
algo tão diferente assim de Bukharin, acusando-se de erros e crimes que ele não havia
cometido, em nome de uma exigência do partido que ele havia interiorizado 5? De um
lado, uma falta efetiva e um arrependimento incerto; de outro, faltas incertas e uma
disciplina de partido efetiva. A soma algébrica parece ser igual. Muda apenas a natureza
do que está em jogo. Bill Clinton estava – nada mais, nada menos – sob o risco de
impeachment, do qual ele escapou. Bukharin enfrentava o risco de morte, que se
concretizou. Mas, quanto ao tratamento da verdade, a analogia se impõe sobre as
diferenças.
Lacan faz mais do que re-encontrar o Brecht do Livro das reviravoltas, ou o
Benjamin das Teses sobre a história. Ele não anuncia a suspensão da verdade, mas a
mudança de seu status. Ele afirma claramente que a verdade que fala no lapso, no
sonho, no sintoma, tem mais a ver com os acontecimentos modernos do que com a
doutrina clássica da adaequatio rei et intellectus. Reciprocamente, ele dá a entender que
esse acontecimentos engajam a verdade; longe de negá-la, como lamentavam as grandes
consciências, eles conclamam a sua redefinição. Entre a verdade que afirma de si
própria “eu falo” e a materialidade de certos episódios conhecidos de todos, há mais do
que contemporaneidade, há sincronicidade.
Sendo a verdade disjunta da exatidão, é preciso, portanto, concluir que ela
encontra como única alegoria fiel os crimes do século XX e do século XXI porvir?
Objetar-se-á que, a se reler a prosopopeia, múltiplos ecos fazem-se escutar, e que alguns
remetem à Antiguidade. Vem à mente, em particular, o discurso de Diotima sobre Eros:
“Por um lado, ele é sempre pobre, não é delicado e belo como a maioria das pessoas o
imagina, mas magro, desfigurado, descalço, sem lar, sem outra cama que a terra, sem
lençol, dormindo ao relento, ao pé das portas e nas ruas; enfim, enquanto digno filho de
5
O discurso de Bill Clinton está reproduzido no site historyplace.com, na seção “Great speeches”. Ele
merece ser lido de perto. Bukharin pronunciou sua “confissão” em sua compilação O processo de
Moscou, Julliard, 1964. Uma versão em inglês está acessível no site marxists.org. Mais notável ainda, é a
última carta que Bukharin endereçou a Stalin, datada de 10 de dezembro de 1937; ela permaneceu
desconhecida até 1993. Ela está acessível, em tradução francesa, no mesmo site.
sua mãe, é sempre miserável. Por outro, seguindo a natureza de seu pai, ele sempre está
no rastro daquilo que é belo e bom; ele é corajoso, atrevido e enérgico, caçador hábil,
sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, passando toda a
vida a filosofar, terrível mago, feiticeiro, sofista”6. Uma simples mudança de gênero
gramatical e tem-se uma narrativa sobre a verdade moderna: ela é sempre pobre, magra,
desfigurada, sem domicílio, mas também atrevida, robusta, caçadora hábil. Está tudo aí:
a vagabundagem, o casal parental, o próprio divã – uma cama sem lençol –, tudo exceto
o nome da verdade, tudo exceto as dramaturgias em ato. Na prosopopeia, estes últimos
não podem vir senão do universo recente, do teatro em que ele foi fabricado sob o nome
de história, dos atores que ele coloca em movimento sob a máscara das multidões.
Platão fazia uso de mitos para tornar sensível sua doutrina do Amor. A nova
verdade substituiria, em uma função análoga, as narrativas inquietantes? No mesmo
movimento em que se diz que a verdade fala, diz-se que ela se manifesta no inexato.
Isso equivale a admitir, no entanto, que ela se manifesta na transformação indistinta do
verídico em mentiroso e do mentiroso em verídico? Paralelamente a Eros, filho de
Pobreza e de Recurso, a verdade seria hoje, em igual medida, filha de um pai que seria a
mentira e de uma mãe que seria a veracidade? É preciso pensar na evidência falseada,
que permite, pelo fato de ser falsa, condenar alguém que realmente é culpado? Orson
Welles, em A marca da maldade (Touch of evil), conta essa aventura. No lugar de
Diotima, é preciso falar da propaganda? No lugar do Banquete, é preciso reler não
apenas Bukharin, mas todas as falsas confissões de todos os acusados de Moscou?
Brecht enunciou a lei dessas confissões em termos arrepiantes: “Mais eles são
inocentes, mais eles merecem ser fuzilados”7. A ser entendido: “se eles são inocentes,
eles são ainda mais culpados”.
Atento ao que a verdade fala de si mesma, Lacan escuta aí os harmônicos de
uma doutrina completa. Ele advertiu imediatamente, a respeito dessa doutrina, que seria
preciso não deixá-la nas mãos de canalhas. Ele descreve o perigo de eles se apoderarem
dela. É preciso aqui citá-lo na íntegra, uma vez que ele não se limita a enumerar a
trindade sombria, ele a remete a seus autores e constata que a verdade, ainda que se a
6
Platão, Banquete, 203c-d.
7
Brecht pronunciou essas palavras em 1935, nos Estados Unidos, na casa de Sydney Hook, figura
emblemática da esquerda americana. Estamos no começo de grandes expurgos: os processos de Moscou
ainda não aconteceram, mas a maquinaria dos processos e das falsas confissões já foi montada. Hook
publicou seu testemunho em 1960 e o retomou em suas memórias; Out of step, Harper & Row, 1987.
Brecht exprimiu-se em alemão: “Je mehr unshuldig, desto mehr verdienen sie ershossen zu werden”.
Hannah Arendt cita e comenta essas palavras em seu ensaio de 1966, “Bertolt Brecht, 1898-1956” (Vies
politiques, Gallimard, “Tel”, 1974, p. 216-217).
tenha, não lhes é estranha: “deixai os peritos basearem na garantia de minha futura
empresa o mercado mundial da mentira, o comércio da guerra total e a nova lei da
autocrítica”8. Essa empresa que a verdade oferece como sua não é outra senão a própria
psicanálise quando ela se abandona. Em 1956, Lacan visava especialmente a psicanálise
americana; ele chega a zombar de Freud discretamente. Este último teria dito a Jung, em
1909, que eles levavam a peste aos Estados Unidos 9. Lacan sustenta que ele se enganou
sobre suas próprias forças. A peste nunca desembarcou efetivamente, tampouco Freud.
A sociedade americana dará certamente uma boa acolhida ao discurso freudiano, mas
tardiamente e ao preço de uma mutação descrita por Lacan. Após a ascensão de Hitler e
a eclosão da guerra na Europa, os psicanalistas passam a ser imigrantes e enfrentam
dificuldades para serem assimilados. A fim de superá-las, eles se candidatarão ao posto
de “gestores de almas”10. E, nisso, eles irão se mostrar muito hábeis. É-se tentado a
retornar à palavra de Freud: a peste não estava no navio, mas no rio. Vários freudianos
sucumbiram a ela.
Sabe-se que o tempo passou. A psicanálise freudiana, em geral, e Freud, em
particular, não têm mais a mesma influência hoje, nem na sociedade norte-americana
nem nas sociedades que dela derivam. Mas isso descreve apenas a face mais visível de
uma degradação mais grave: mutilados de sua língua materna, postos na condição de
dejetos humanos por seus países natais, os freudianos da primeira geração se viram
abandonados por todos. Acolhidos por uma democracia que se via pelas lentes de
Tocqueville, eles foram astuciosos ao lidar com suas exigências. Eles dominaram-nas
com talento, mas esse talento acabou por dominá-los. Sobrecarregados por suas
astúcias, eles foram levados pelo fluxo da demanda social. Sob o aguilhão da
necessidade, eles ofereceram seus serviços à dominação das almas. Eles renovaram esse
mercado tão profundamente, o sucesso foi tão completo, que o nome de Freud pôde,
dali em diante, ser jogado aos cachorros, como se joga os ossos após ter esvaziado o
prato. Alguns psicanalistas estiveram entre os primeiros a transformar a verdade em
empresa. Agora que a empresa prospera, toda a psicanálise pode enfim cobrar seu
salário: o crachá.

8
“A coisa freudiana”, op. cit., p. 407.
9
Ibid., p. 400. Lacan relata uma conversa que ele teve com Jung. Após o exame comparativo de diversos
testemunhos, Élisabeth Roudinesco levanta uma dúvida; ver Jacques Lacan, Esquisses d’une vie, histoire
d’um système de pensée, Fayard, 1993, p. 349. A dúvida não diz respeito a Lacan, mas a Jung; parece que
lhe aprazia inventar anedotas. Quase todos os ditos históricos são manchados por erros; não obstante, eles
dizem a verdade.
10
Ibid., p. 400.
Difícil não reconhecer na “futura empresa”, de 1956, uma empresa que se tornou
muito presente no século XXI. Com uma restrição: entre os principais “gestores de
almas”, não se dispõe mais de psicanalistas; esse período encerrou-se. Advertidos por
Lacan, os melhores resistiram à tentação, os outros conhecem o destino das utilidades
que sobrevivem à sua utilidade. Eles se contentam com êxitos medíocres. Para compor a
nova lista dos hábeis, preferir-se-á os vários técnicos da opinião: os spin doctors11
rivalizam com os produtores de jargões; os economistas, profetas de catástrofes12,
disputam a precedência com os dignitários da universidade mundial. No âmago dessas
hordas [cohortes13], a verdade articula-se como técnica de embrutecimento; o efeito da
verdade é medido segundo sua eficácia e a eficácia segundo sua capacidade de gerar
sujeição.
Limito-me a descrever o que o jornal não cessa de propor cotidianamente. Mas
não deveríamos recuperar as inflexões de Dostoievski? Se a verdade é disjunta do
conteúdo verdadeiro, ela é disjunta da exatidão. E, se a verdade é disjunta da exatidão,
tudo é permitido. Tudo, quer dizer, também o pior.

§3

Alguns, de fato, concluíram pela inevitabilidade do pior. Nesse caso, há somente


duas possibilidades: ou retornar à conjunção clássica entre verdade e exatidão, sem
mesmo necessariamente acreditar nela; ou renunciar à verdade para ater-se à exatidão.
No primeiro caso, faz-se da doutrina clássica um ideal vazio, destinada mais a salvar os
bons costumes do que a esclarecer o pensamento. Os partidários dessa escolha são
numerosos, mas têm pouca influência sobre as decisões efetivas. Os partidários da
segunda escolha têm bem mais influência. Inegavelmente, eles reinam sobre a expertise

11
N. do T. Os spin doctors são profissionais de relações públicas e marketing político, que ganharam essa
alcunha por sua habilidade de reverter (spin around) situações desfavoráveis, de forjar reviravoltas
narrativas em casos prejudiciais a seus clientes.
12
N. do T. No original lê-se: “diseurs de mauvaise aventure”. Em francês, o dito “diseurs de bonne
aventure” designa todos aqueles que se propõem a prever o futuro de alguma maneira: médiuns,
cartomantes, astrólogos… Enfim, videntes de toda sorte. Milner, substituindo o adjetivo da expressão
idiomática (bonne → mauvaise) e embaralhando os sentidos literal e figurado da mesma, sugere que
muitos economistas contemporâneos, alçados ao patamar de porta-vozes da verdade, se lançam amiúde
em previsões tão infundadas quanto aquelas dos demais futurólogos, com a diferença de que as profecias
econômicas são invariavelmente pessimistas, catastróficas: “mauvaises”.
13
N. do T. Cohortes traduz-se literalmente por coortes, subdivisões da força militar da Roma imperial
derivadas das legiões. Mais especificamente, a coorte, formada por centuriões, correspondia à décima
parte de uma legião. Optamos aqui, por razões óbvias, pelo sentido figurado do vocábulo: multidão,
horda, bando, magote.
e estabelecem seu reino. Eles buscam convencer cada um a limitar-se, em qualquer
domínio que seja, à estrita exatidão das deduções contábeis. Uma vez que a Verdade –
insinua-se – é o Crime, prefiramos a ele a franqueza brutal das cifras; sacrifiquemos a
verdade no altar da exatidão, como Agamêmnon sacrificou sua filha mais amada para
triunfar sobre Troia.
Mas colocar a exatidão como única medida não é nada além de um preconceito.
A ciência nascente ainda o sabia: afastando-se dos agrimensores e dos relojoeiros,
Galileu Galilei encontrava seus modelos nos humanistas, editores minuciosos de textos
gregos e latinos. Desde então, é verdade, a exatidão empobreceu. Esqueceu-se que ela
havia sido literal antes de ser assujeitada às cifras. Quanto às próprias cifras, elas se
transformaram em medíocres ferramentas a serviço de uma demanda social. Ora, a se
examinar bem, essa demanda social remete ao mercado mundial da mentira evocado por
Lacan. É necessário mencionar os diversos usos da estatística e destacar, entre eles, as
infames sondagens? O círculo volta a se fechar. A verdade é abandonada em prol da
exatidão, mas a exatidão que sai vencedora é uma exatidão servil; o serviço que ela
presta, ela o presta à mentira.

É que saltamos uma etapa. Admitamos que a verdade seja disjunta da exatidão.
Isso torna necessário uma nova doutrina da verdade. Mas isso torna necessário, em igual
medida, uma nova doutrina da exatidão.
Lacan fez falar a verdade, sem deixar-se afetar pela exatidão. Crer-se-ia
facilmente que Foucault não cessou de refletir sobre a exatidão, ao custo de calar-se
sobre a verdade. A bem dizer, ele levou a exatidão até seu ponto de viragem. Até o
ponto em que ela produz um efeito tão forte e violento que ele se torna indistinguível de
um efeito de verdade. Lembrar-se-á do questionário-intolerância que Foucault elaborou
a propósito das prisões. Ele pretendia reunir dados empíricos cujo conhecimento faria o
cidadão honesto recuar horrorizado diante daquilo que havia sido decidido em seu nome
por sucessivos governos14. Há realidades, supõe-se, as quais basta dizer o que elas são
para que elas deixem de ser toleráveis. Os sujeitos se descobrem, assim, capturados por
uma paixão que se assemelha a um efeito de verdade, quando, no entanto, a verdade foi
posta de lado. Agindo em todos os aspectos como se a verdade não existisse e, ao
14
O termo – questionário-intolerância – aparece em 15 de março de 1971 na apresentação feita por
Foucault sobre o G.I.P. (Grupo de Informação sobre as Prisões) para o jornal J’accuse. Eu estava presente
quando Foucault propôs o nome G.I.P. e fazia parte da equipe de redatores do J’accuse. Ver M. Foucault,
Dits et écrits, Gallimard, “Quarto”, 2001, tomo I, p. 1044. Para um resumo do que representava o G.I.P.,
consultar a mesma obra, p. 1042.
mesmo tempo, preservando-se de afirmar que ela não existe, o entrevistador exato a
imitou ao desprezá-la. A exatidão só tem efeito porque ela vem no lugar da verdade, que
esteve ausente.

Alguns objetarão que o questionário-intolerância durou pouco tempo. Foucault


desviou-se das prisões depois que o esquerdismo arrefeceu. Certo, mas ele não
interrompeu sua reflexão sobre a exatidão. Reenviada a seu núcleo mais duro, sua
doutrina resume-se assim: a exatidão não é única nem idêntica a si própria. Que ela não
se reduz à medida, Galileu o sabia; que seria preciso definir uma exatidão textual, não
menos exigente e potente do que a exatidão calculante, a filologia o reconheceu. Mas é
preciso ir mais longe.
Einstein havia estabelecido que cada sistema físico define sua própria oposição
entre simultâneo e não-simultâneo. Não deve-se buscar um Tempo absoluto que permita
definir essa oposição de maneira válida para todos os sistemas físicos possíveis de uma
só vez. Ora, a exatidão mensurante funda-se sobre a simultaneidade de dois
acontecimentos físicos: um que é medido, outro que mede; se a simultaneidade é
relativa a cada sistema, então a exatidão também o é. Sem referência direta a Einstein,
mas ao mesmo período, a linguística havia afirmado que cada sistema fonológico
define, pelo jogo de suas oposições, seu próprio leque de pertinência. Portanto, é vão
definir as qualidades fônicas que seriam válidas, ao mesmo tempo, para todos os
sistemas fonológicos. Disso decorre que a exatidão da descrição é relativa a cada
sistema.
Foucault inscreve-se nesse paradigma. Imaginemos um especialista em discursos
que afirmasse em alto e bom tom que cada um deles é compósito, desarmônico, feito de
peças e pedaços infinitamente heterogêneos e incompatíveis, que cada pedaço de cada
um deles está submetido às regras de sua exatidão própria. Esse especialista quer
prosseguir, articulando o sistema dessa multiplicidade. Ele teria de estabelecer que a
diferença dessas regras se deixa calcular por um parâmetro comum. Foucault foi esse
especialista, com a ressalva de que os discursos por ele tratados são examinados
unicamente do ponto de vista daquilo que eles possibilitam saber. Donde o nome que ele
atribui a eles: saberes. Menos saberes constituídos do que máquinas de produzir saber.
Nasce então uma nova exatidão literal; ela é polimorfa, mas não abundante,
posto ser parametrada. Decerto, não há um tipo único de exatidão, mas essa diversidade
se deixa distribuir sobre uma superfície que Foucault, após muitas hesitações, acabará
por chamar de história. Cada máquina de saber é um sistema de exatidão, quer dizer,
um sistema que define sua própria noção de exatidão em função de parâmetros cujo
valor pode variar, de modo que aquilo que é exato para um não é necessariamente exato
para o outro, mas, também, de modo que se possa calcular essa diferença. Cada
configuração discursiva, agrupando diversos saberes, define um conjunto de regras que
permite obter com um único cálculo os parâmetros diferenciados desses saberes.
Polimorfa e parametrada, eis a exatidão que pode dar lugar aos efeitos do questionário-
intolerância; com a condição de que um dado questionário escolha com justeza o tipo de
exatidão literal mais própria a engendrar efeitos de intolerância.

§4

Ora, é tempo de sublinhá-lo, a escolha não tem nada de anódina. Bem entendido,
é preciso que uma certa norma do tolerável seja admitida. Foucault a estabeleceu, ao
que parece, em referência ao corpo. Mas há mais: é preciso que os parâmetros sejam
presentificados e já fixados, que eles permitam determinar o que merece o nome de
questionário. É preciso que permitam reconhecer como exato um dado questionário, que
permitam reconhecer como tal um objeto possível para o questionário: colocá-lo como
existente e nomeá-lo. Quem o decide e como? Essa escolha determina a exatidão;
portanto, ela excede a exatidão.
A historiografia do século XIX reconheceu-se em uma injunção, da autoria de
Leopold Von Ranke: “bloss zu zeigen wie es eigentlich gewesen”, “apenas mostrar como
isso aconteceu”15. Poder-se-ia extrair dela a inspiração para formular a divisa da
exatidão: “dizer o que aconteceu e mostrar como se deu o que aconteceu”. Salvo que, no
regime da exatidão parametrada, tudo deve ser explicitamente determinado. O que é
dizer? O que é mostrar? O que é esse “como” aparentemente tão evidente? O que é ‘ter
acontecido’? O “ter acontecido”, o “como”, o “dizer” e o “mostrar” variam, cada um à
sua maneira, com toda independência, do que decorre uma combinatória cujas
potencialidades tendem ao infinito. É preciso, portanto, decidir-se, sob pena de
condenar-se ao silêncio.
Antes de Foucault, as prisões estavam por toda parte na França, mas, em sentido
próprio, elas não haviam acontecido. De resto, parece que, novamente, elas cessaram de
acontecer. Fala-se delas a todo instante, mas esse murmúrio incessante encoraja a tratá-
15
A frase é citada com frequência. Ela remonta ao ano de 1824.
las como tão pouco dignas de reflexão quanto a chuva ou um dia ensolarado, os quais,
no entanto, alimentam conversas sem fim, sabe-se. Antes de Shoah, o filme de
Lanzmann de 1985, os campos de extermínio nazistas não haviam acontecido para mim.
Sabia tudo sobre sua existência e particularidades; mais ainda, conhecia de perto
sobreviventes desde minha tenra infância. Havia combatido frontalmente o
negacionismo, sob o risco de ofender Noam Chomsky. Entretanto, minhas
representações, determinadas por alguns grandes livros e alguns grandes filmes,
detinham-se nos campos de trabalho. Acreditando pensar em Auschwitz e nas câmeras
de gás, pensava em Buchenwald. Em sentido próprio, não sabia o que dizia. O filme de
Lanzmann permitiu-me compreender-me a mim mesmo. Se voltarmos a Ranke, a
descoberta foi relativa ao wie, ao “como era”; o meio da descoberta foi a aliança,
sempre perto de ser rompida e sempre restabelecida em Shoah, entre o dizer e o mostrar.
Outrora, o tipo daquilo que havia acontecido era a Revolução francesa. Um
testemunho disso entre vários, é o debate entre Lévi-Strauss e Sartre em O Pensamento
selvagem. Ele compreende justamente o que é ter acontecido e as definições propostas
pelos dois interlocutores a esse respeito. Elas são incompatíveis 16. Mas ninguém
contesta que a Revolução francesa tenha acontecido. Posteriormente, passou-se a um
sistema inverso, em que a Revolução francesa é o tipo mesmo daquilo que não
aconteceu. Alguns historiadores implementaram o enquadramento interpretativo
apropriado; sua audiência ultrapassou as fronteiras do mundo acadêmico, suas teses
tornaram-se opinião espontânea. Em todo caso, elas gozam de evidência suficiente para
terem inspirado a República; alguns ainda se lembram das celebrações oficiais do
bicentenário de 1989. Encomendadas a um especialista em imagem, elas anunciavam a
um público incitado à indiferença que 1789 tinha se passado como um desfile de
carruagens floridas.
Ter acontecido, não ter acontecido, os dois sistemas são hoje copresentes em
qualquer evento e, por vezes, no mesmo indivíduo. Entre as duas opções, como ele
escolherá em termos de exatidão, uma vez que a própria exatidão depende dessa
escolha?
No fim do século XIX, Mallarmé dava a entender que nada havia acontecido no
século XIX: nem 1815, nem 1830, nem junho de 1848, nem Napoleão III, nem a
Comuna. No início do século XXI, afirmar que o século XX se resume a uma estatística
de mortes e a uma tipologia dos campos equivale a afirmar que ele aconteceu tanto
16
C. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, “Histoire et dialectique”, Plon, 1962.
quanto uma autoestrada. Se nada aconteceu senão mortes, nada aconteceu; portanto,
nem mortes, nem campos de morte. Face a esse negacionismo sofisticado, mais eficaz
do que o negacionismo vulgar, a exatidão parametrada é suficientemente potente por si
só?
A observação prova que não. Que a argumentação lógica não pode provar que
qualquer coisa que seja tenha acontecido, sabia-se há tempos. Assim, o tipo daquilo que
aconteceu foi dado por aquilo que desafia as leis da razão: somente a absurdidade da
morte de Sócrates prova a Platão que Sócrates foi o mais sábio dos homens, somente a
impossibilidade física da ressurreição prova aos cristãos que Jesus foi crucificado.
Sejam quais forem as deduções às quais empenham-se os historiadores, elas dependem
de uma ou mais afirmações de fé; a cada um, seu Credo quia absurdum. Não acontece
senão aquilo que, conforme à verossimilhança ou à coerência, não deveria ter
acontecido. Isso é verdadeiro tanto para o raciocínio quanto para o documento:
nenhuma forma de exatidão documental pode estabelecer, para além de toda dúvida
possível, que algo tenha acontecido. Mesmo no registro da exatidão, faz-se imperativo
esse instante de suspense em que o sujeito decide. Não mais que as longas cadeias de
razões, a adição de provas de fato e seu tratamento cada vez mais exato não bastam para
nada, ao menos enquanto um sujeito não decide que alguma coisa, que ele nomeará,
aconteceu.

§5

Avançaria, inicialmente, que a exatidão só extrai seu efeito, quando ela tem
algum, de uma decisão. Avançaria, em seguida, que a instância da decisão não é senão a
própria verdade. Assim, esta retorna no coração da exatidão. A disjunção revela,
retroativamente, ter sido o primeiro tempo de um enodamento.
Retomemos.
A doutrina da verdade disjunta da exatidão preconiza que a verdade não é um
predicado. Dito de outro modo: a verdade é um sujeito. Daí a prosopopeia lacaniana,
dissemos. Mas a prosopopeia é um jogo, que é preciso compreender. Para além do jogo,
uma implicação se desdobra; partindo do fato de que a verdade fala em primeira pessoa,
conclui-se que um dito de verdade é sempre dito em primeira pessoa. Seja em estilo
pessoal ou impessoal, seja no passado ou no futuro, seja no optativo ou no constatativo,
o dito de verdade é a declaração em primeira pessoa de um sujeito que se dirige, à la
cantonade17, a algum sujeito de quem ele nada sabe, mas que, por seu turno, poderia a
qualquer momento dizer eu. Só há verdade quando um sujeito se declara, fora da
predicação, para algum sujeito que, em dado momento, irá se declarar. Toda declaração
de verdade desloca violentamente as disposições daquele que a profere, assim como ela
desloca as disposições daqueles que por acaso a escutam.
Ora, aqui os caminhos se bifurcam. A verdade vagabundeia no inexato. Que seja.
Mas é ao sujeito que cabe decidir se ele quer permanecer lá e jamais advir em primeira
pessoa. Nesse caso, ele escolhe fazer-se instrumento do inexato – pelo slogan que imita
o Witz, pela zombaria que imita o cômico, pelo oportunismo que imita o acaso. No
limite, sob o efeito de uma subversão diabólica, o sujeito só se reconhece em primeira
pessoa naquilo que ele próprio, com conhecimento de causa, considera como inexato.
Inscrever a divisa do inexato em seus brasões, essa escolha tem um nome: canalhice.
Quando a verdade é disjunta da exatidão, essa é sem dúvida a escolha mais fácil.
Mas uma outra escolha é possível: decidir que só nos reaveremos, em primeira pessoa,
usando as armas da exatidão; considerar que a inexatidão de primeira pessoa é sempre
inútil; que os sonhos, os trocadilhos idiotas, os gaguejos da história, os lapsos da
sociedade só valem no campo da verdade através da interpretação, que os mergulha no
espaço da exatidão.
Se, por acaso, a exatidão é múltipla, nenhuma de suas variantes é negligenciável
de antemão. Não é certo que as exigências dessas variantes não sejam contraditórias.
Por pouco que eles desejem deferir todas elas, os sujeitos leais correm o risco, a cada
instante, de se desencaminharem. Confrontados com a complexidade da rede, mais vale
que eles se atenham a uma regra simples: jamais autorizar-se a tomar a inexatidão como
meio da verdade. A isso daria o nome de lealdade.
Precisamente porque a verdade é disjunta da exatidão, a regra de lealdade não se
impõe como uma necessidade mecânica ou lógica. Ela advém daquilo que alguns
chamam de ética. Estará, assim, barrada a movimentada passagem que transforma a
vagabundagem aos lugares inexatos em manipulação generalizada. Nem as fraturas do

17
N. do T. Trata-se de uma expressão idiomática oriunda do meio teatral, utilizada para descrever a
situação em que determinado personagem se dirige a um interlocutor que não está presente na cena: “Il
parle à la cantonade”. Por extensão, refere-se a qualquer fala que não se endereça a um interlocutor
preciso.
discurso, nem as reviravoltas, nem as surpresas da fortuna, nem as mais irredutíveis
contingências deverão ser ignoradas. Mas elas não podem servir de pretexto. Mais vale
agarrá-las em pleno voo, para aí desenredar o exato do inexato. No instante em que o
exato se separa, talvez resplandecerá, como uma explosão de ouro nascente, o efeito de
verdade. Além do mais, o dito de verdade extrairá algum benefício de sua máxima leal,
pois vivemos em um universo onde a virtude é sempre recompensada. Ele conseguirá
que aqueles que não têm nenhuma relação com a verdade – mas viram que a exatidão
pode, em algumas circunstâncias, revelar-se útil – lhe prestem um mínimo de atenção.
Penso aqui, especialmente, nos Estados e nos aparelhos de poder. Quanto a eles,
é preciso ser pragmático e praticar a astúcia da verdade; aliás, mais legítima do que a
astúcia da razão: disfarçar os efeitos de verdade em efeitos de exatidão; denunciar o
disfarce inverso da inexatidão em efeito de verdade, levado adiante pelos canalhas;
entre as variantes da exatidão, isolar aquelas que se tornaram meios de servidão e opô-
las a outras variantes, habilmente escolhidas. O sucesso não é garantido, mas o fracasso
tampouco.

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