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Exatidão e verdade
Jean-Claude Milner
§I
Nosso tempo forjou uma doutrina da verdade. Ela é bem diferente da doutrina
dita clássica. Segundo esta última, verdade e exatidão sem dúvida se distinguem, mas
uma proposição inexata – ou, pelo menos, inexata para além de um grau tolerável – não
poderia ser tomada como absolutamente verdadeira. Ao passo que, segundo a doutrina
mais recente, não é apenas possível que a verdade proceda da inexatidão, mas é preciso
sustentar que a inexatidão é a forma mesma da verdade.
Diversamente expressa, a proposição encontra-se em muitos discursos; o nome
da estrutura moebiana em que se enodam verdade e inexatidão pode variar. Alguns a
nomeiam dialética; outros, acaso objetivo; outros ainda, sintoma. Em um estudo
memorável, Carlo Ginzburg apontava para a função do indício: indícios dos enigmas
policiais ou da perícia técnica; ele iluminava, assim, uma das maneiras que a verdade
não-clássica possui para insinuar-se através de materiais incompletos, deformados,
dispersos, em uma palavra: inexatos1. Lacan parece ter sido, contudo, o primeiro a ter,
como ele o diz, pego o touro pelos cornos. Em “A coisa freudiana”, ele faz falar aos
homens a própria verdade: “eu, a verdade, serei contra vós a grande enganadora…”, “…
não é apenas pela falsidade que passam meus caminhos, mas pela falha estreita demais
de encontrar na ausência do fingimento e pela nuvem inacessível do sonho, pelo
fascínio imotivado do medíocre e pelo impasse sedutor do absurdo”, “quer fujais de
mim no embuste, quer penseis apanhar-me no erro, junto-me a vós no equívoco…”,
“vagabundeio pelo o que considerais como o menos verdadeiro em essência2…”.
Trata-se ali, bem entendido, da psicanálise, mas não pode-se ignorar que Lacan
refere-se igualmente à história próxima, senão ao cotidiano: “diversos casos observados
1
C. Ginzburg, Mythes Emblèmes Traces, Verdier/poche, 2010. O artigo fundador, intitulado « Traces »,
data de 1979.
2
“La chose freudienne”, Écrits, Seuil, “Points essais”, 1999, tome I, p. 406-408. A conferência inicial foi
pronunciada em Viena, no ano de 1955. O texto foi publicado em 1956.
[…] de súbitas transmutações de erros em verdades”3. Não apenas a história
acontecimental é chamada ao banco das testemunhas, mas também a filosofia. Hegel é
evocado enquanto descobridor da astúcia da razão, isto é, através dele todos os
dialéticos – Marx incluído –, e isso contra Descartes. “Serei a grande enganadora”, diz a
verdade, re-encontrando palavra por palavra o grande enganador, potente e astucioso, da
Primeira meditação. Não pode-se ignorar, enfim, que a doutrina da verdade determina
precisamente o ponto – o único no fim das contas – em que Lacan verdadeiramente
retoma Heidegger. Como se uma doutrina de uma verdade disjunta da exatidão fosse a
única própria a enodar a si mesma ao pensamento do século XX, distinguindo-se de
outros pensamentos, enodando-se ao mesmo tempo aos acontecimentos do século XX,
distinguindo-os de qualquer outro tempo que seja. Em sua grandeza e em seu horror, em
sua altivez e em sua baixeza. A verdade disjunta da exatidão tem algo a ver com cada
uma dessas dimensões.
§2
8
“A coisa freudiana”, op. cit., p. 407.
9
Ibid., p. 400. Lacan relata uma conversa que ele teve com Jung. Após o exame comparativo de diversos
testemunhos, Élisabeth Roudinesco levanta uma dúvida; ver Jacques Lacan, Esquisses d’une vie, histoire
d’um système de pensée, Fayard, 1993, p. 349. A dúvida não diz respeito a Lacan, mas a Jung; parece que
lhe aprazia inventar anedotas. Quase todos os ditos históricos são manchados por erros; não obstante, eles
dizem a verdade.
10
Ibid., p. 400.
Difícil não reconhecer na “futura empresa”, de 1956, uma empresa que se tornou
muito presente no século XXI. Com uma restrição: entre os principais “gestores de
almas”, não se dispõe mais de psicanalistas; esse período encerrou-se. Advertidos por
Lacan, os melhores resistiram à tentação, os outros conhecem o destino das utilidades
que sobrevivem à sua utilidade. Eles se contentam com êxitos medíocres. Para compor a
nova lista dos hábeis, preferir-se-á os vários técnicos da opinião: os spin doctors11
rivalizam com os produtores de jargões; os economistas, profetas de catástrofes12,
disputam a precedência com os dignitários da universidade mundial. No âmago dessas
hordas [cohortes13], a verdade articula-se como técnica de embrutecimento; o efeito da
verdade é medido segundo sua eficácia e a eficácia segundo sua capacidade de gerar
sujeição.
Limito-me a descrever o que o jornal não cessa de propor cotidianamente. Mas
não deveríamos recuperar as inflexões de Dostoievski? Se a verdade é disjunta do
conteúdo verdadeiro, ela é disjunta da exatidão. E, se a verdade é disjunta da exatidão,
tudo é permitido. Tudo, quer dizer, também o pior.
§3
11
N. do T. Os spin doctors são profissionais de relações públicas e marketing político, que ganharam essa
alcunha por sua habilidade de reverter (spin around) situações desfavoráveis, de forjar reviravoltas
narrativas em casos prejudiciais a seus clientes.
12
N. do T. No original lê-se: “diseurs de mauvaise aventure”. Em francês, o dito “diseurs de bonne
aventure” designa todos aqueles que se propõem a prever o futuro de alguma maneira: médiuns,
cartomantes, astrólogos… Enfim, videntes de toda sorte. Milner, substituindo o adjetivo da expressão
idiomática (bonne → mauvaise) e embaralhando os sentidos literal e figurado da mesma, sugere que
muitos economistas contemporâneos, alçados ao patamar de porta-vozes da verdade, se lançam amiúde
em previsões tão infundadas quanto aquelas dos demais futurólogos, com a diferença de que as profecias
econômicas são invariavelmente pessimistas, catastróficas: “mauvaises”.
13
N. do T. Cohortes traduz-se literalmente por coortes, subdivisões da força militar da Roma imperial
derivadas das legiões. Mais especificamente, a coorte, formada por centuriões, correspondia à décima
parte de uma legião. Optamos aqui, por razões óbvias, pelo sentido figurado do vocábulo: multidão,
horda, bando, magote.
e estabelecem seu reino. Eles buscam convencer cada um a limitar-se, em qualquer
domínio que seja, à estrita exatidão das deduções contábeis. Uma vez que a Verdade –
insinua-se – é o Crime, prefiramos a ele a franqueza brutal das cifras; sacrifiquemos a
verdade no altar da exatidão, como Agamêmnon sacrificou sua filha mais amada para
triunfar sobre Troia.
Mas colocar a exatidão como única medida não é nada além de um preconceito.
A ciência nascente ainda o sabia: afastando-se dos agrimensores e dos relojoeiros,
Galileu Galilei encontrava seus modelos nos humanistas, editores minuciosos de textos
gregos e latinos. Desde então, é verdade, a exatidão empobreceu. Esqueceu-se que ela
havia sido literal antes de ser assujeitada às cifras. Quanto às próprias cifras, elas se
transformaram em medíocres ferramentas a serviço de uma demanda social. Ora, a se
examinar bem, essa demanda social remete ao mercado mundial da mentira evocado por
Lacan. É necessário mencionar os diversos usos da estatística e destacar, entre eles, as
infames sondagens? O círculo volta a se fechar. A verdade é abandonada em prol da
exatidão, mas a exatidão que sai vencedora é uma exatidão servil; o serviço que ela
presta, ela o presta à mentira.
É que saltamos uma etapa. Admitamos que a verdade seja disjunta da exatidão.
Isso torna necessário uma nova doutrina da verdade. Mas isso torna necessário, em igual
medida, uma nova doutrina da exatidão.
Lacan fez falar a verdade, sem deixar-se afetar pela exatidão. Crer-se-ia
facilmente que Foucault não cessou de refletir sobre a exatidão, ao custo de calar-se
sobre a verdade. A bem dizer, ele levou a exatidão até seu ponto de viragem. Até o
ponto em que ela produz um efeito tão forte e violento que ele se torna indistinguível de
um efeito de verdade. Lembrar-se-á do questionário-intolerância que Foucault elaborou
a propósito das prisões. Ele pretendia reunir dados empíricos cujo conhecimento faria o
cidadão honesto recuar horrorizado diante daquilo que havia sido decidido em seu nome
por sucessivos governos14. Há realidades, supõe-se, as quais basta dizer o que elas são
para que elas deixem de ser toleráveis. Os sujeitos se descobrem, assim, capturados por
uma paixão que se assemelha a um efeito de verdade, quando, no entanto, a verdade foi
posta de lado. Agindo em todos os aspectos como se a verdade não existisse e, ao
14
O termo – questionário-intolerância – aparece em 15 de março de 1971 na apresentação feita por
Foucault sobre o G.I.P. (Grupo de Informação sobre as Prisões) para o jornal J’accuse. Eu estava presente
quando Foucault propôs o nome G.I.P. e fazia parte da equipe de redatores do J’accuse. Ver M. Foucault,
Dits et écrits, Gallimard, “Quarto”, 2001, tomo I, p. 1044. Para um resumo do que representava o G.I.P.,
consultar a mesma obra, p. 1042.
mesmo tempo, preservando-se de afirmar que ela não existe, o entrevistador exato a
imitou ao desprezá-la. A exatidão só tem efeito porque ela vem no lugar da verdade, que
esteve ausente.
§4
Ora, é tempo de sublinhá-lo, a escolha não tem nada de anódina. Bem entendido,
é preciso que uma certa norma do tolerável seja admitida. Foucault a estabeleceu, ao
que parece, em referência ao corpo. Mas há mais: é preciso que os parâmetros sejam
presentificados e já fixados, que eles permitam determinar o que merece o nome de
questionário. É preciso que permitam reconhecer como exato um dado questionário, que
permitam reconhecer como tal um objeto possível para o questionário: colocá-lo como
existente e nomeá-lo. Quem o decide e como? Essa escolha determina a exatidão;
portanto, ela excede a exatidão.
A historiografia do século XIX reconheceu-se em uma injunção, da autoria de
Leopold Von Ranke: “bloss zu zeigen wie es eigentlich gewesen”, “apenas mostrar como
isso aconteceu”15. Poder-se-ia extrair dela a inspiração para formular a divisa da
exatidão: “dizer o que aconteceu e mostrar como se deu o que aconteceu”. Salvo que, no
regime da exatidão parametrada, tudo deve ser explicitamente determinado. O que é
dizer? O que é mostrar? O que é esse “como” aparentemente tão evidente? O que é ‘ter
acontecido’? O “ter acontecido”, o “como”, o “dizer” e o “mostrar” variam, cada um à
sua maneira, com toda independência, do que decorre uma combinatória cujas
potencialidades tendem ao infinito. É preciso, portanto, decidir-se, sob pena de
condenar-se ao silêncio.
Antes de Foucault, as prisões estavam por toda parte na França, mas, em sentido
próprio, elas não haviam acontecido. De resto, parece que, novamente, elas cessaram de
acontecer. Fala-se delas a todo instante, mas esse murmúrio incessante encoraja a tratá-
15
A frase é citada com frequência. Ela remonta ao ano de 1824.
las como tão pouco dignas de reflexão quanto a chuva ou um dia ensolarado, os quais,
no entanto, alimentam conversas sem fim, sabe-se. Antes de Shoah, o filme de
Lanzmann de 1985, os campos de extermínio nazistas não haviam acontecido para mim.
Sabia tudo sobre sua existência e particularidades; mais ainda, conhecia de perto
sobreviventes desde minha tenra infância. Havia combatido frontalmente o
negacionismo, sob o risco de ofender Noam Chomsky. Entretanto, minhas
representações, determinadas por alguns grandes livros e alguns grandes filmes,
detinham-se nos campos de trabalho. Acreditando pensar em Auschwitz e nas câmeras
de gás, pensava em Buchenwald. Em sentido próprio, não sabia o que dizia. O filme de
Lanzmann permitiu-me compreender-me a mim mesmo. Se voltarmos a Ranke, a
descoberta foi relativa ao wie, ao “como era”; o meio da descoberta foi a aliança,
sempre perto de ser rompida e sempre restabelecida em Shoah, entre o dizer e o mostrar.
Outrora, o tipo daquilo que havia acontecido era a Revolução francesa. Um
testemunho disso entre vários, é o debate entre Lévi-Strauss e Sartre em O Pensamento
selvagem. Ele compreende justamente o que é ter acontecido e as definições propostas
pelos dois interlocutores a esse respeito. Elas são incompatíveis 16. Mas ninguém
contesta que a Revolução francesa tenha acontecido. Posteriormente, passou-se a um
sistema inverso, em que a Revolução francesa é o tipo mesmo daquilo que não
aconteceu. Alguns historiadores implementaram o enquadramento interpretativo
apropriado; sua audiência ultrapassou as fronteiras do mundo acadêmico, suas teses
tornaram-se opinião espontânea. Em todo caso, elas gozam de evidência suficiente para
terem inspirado a República; alguns ainda se lembram das celebrações oficiais do
bicentenário de 1989. Encomendadas a um especialista em imagem, elas anunciavam a
um público incitado à indiferença que 1789 tinha se passado como um desfile de
carruagens floridas.
Ter acontecido, não ter acontecido, os dois sistemas são hoje copresentes em
qualquer evento e, por vezes, no mesmo indivíduo. Entre as duas opções, como ele
escolherá em termos de exatidão, uma vez que a própria exatidão depende dessa
escolha?
No fim do século XIX, Mallarmé dava a entender que nada havia acontecido no
século XIX: nem 1815, nem 1830, nem junho de 1848, nem Napoleão III, nem a
Comuna. No início do século XXI, afirmar que o século XX se resume a uma estatística
de mortes e a uma tipologia dos campos equivale a afirmar que ele aconteceu tanto
16
C. Lévi-Strauss, La pensée sauvage, “Histoire et dialectique”, Plon, 1962.
quanto uma autoestrada. Se nada aconteceu senão mortes, nada aconteceu; portanto,
nem mortes, nem campos de morte. Face a esse negacionismo sofisticado, mais eficaz
do que o negacionismo vulgar, a exatidão parametrada é suficientemente potente por si
só?
A observação prova que não. Que a argumentação lógica não pode provar que
qualquer coisa que seja tenha acontecido, sabia-se há tempos. Assim, o tipo daquilo que
aconteceu foi dado por aquilo que desafia as leis da razão: somente a absurdidade da
morte de Sócrates prova a Platão que Sócrates foi o mais sábio dos homens, somente a
impossibilidade física da ressurreição prova aos cristãos que Jesus foi crucificado.
Sejam quais forem as deduções às quais empenham-se os historiadores, elas dependem
de uma ou mais afirmações de fé; a cada um, seu Credo quia absurdum. Não acontece
senão aquilo que, conforme à verossimilhança ou à coerência, não deveria ter
acontecido. Isso é verdadeiro tanto para o raciocínio quanto para o documento:
nenhuma forma de exatidão documental pode estabelecer, para além de toda dúvida
possível, que algo tenha acontecido. Mesmo no registro da exatidão, faz-se imperativo
esse instante de suspense em que o sujeito decide. Não mais que as longas cadeias de
razões, a adição de provas de fato e seu tratamento cada vez mais exato não bastam para
nada, ao menos enquanto um sujeito não decide que alguma coisa, que ele nomeará,
aconteceu.
§5
Avançaria, inicialmente, que a exatidão só extrai seu efeito, quando ela tem
algum, de uma decisão. Avançaria, em seguida, que a instância da decisão não é senão a
própria verdade. Assim, esta retorna no coração da exatidão. A disjunção revela,
retroativamente, ter sido o primeiro tempo de um enodamento.
Retomemos.
A doutrina da verdade disjunta da exatidão preconiza que a verdade não é um
predicado. Dito de outro modo: a verdade é um sujeito. Daí a prosopopeia lacaniana,
dissemos. Mas a prosopopeia é um jogo, que é preciso compreender. Para além do jogo,
uma implicação se desdobra; partindo do fato de que a verdade fala em primeira pessoa,
conclui-se que um dito de verdade é sempre dito em primeira pessoa. Seja em estilo
pessoal ou impessoal, seja no passado ou no futuro, seja no optativo ou no constatativo,
o dito de verdade é a declaração em primeira pessoa de um sujeito que se dirige, à la
cantonade17, a algum sujeito de quem ele nada sabe, mas que, por seu turno, poderia a
qualquer momento dizer eu. Só há verdade quando um sujeito se declara, fora da
predicação, para algum sujeito que, em dado momento, irá se declarar. Toda declaração
de verdade desloca violentamente as disposições daquele que a profere, assim como ela
desloca as disposições daqueles que por acaso a escutam.
Ora, aqui os caminhos se bifurcam. A verdade vagabundeia no inexato. Que seja.
Mas é ao sujeito que cabe decidir se ele quer permanecer lá e jamais advir em primeira
pessoa. Nesse caso, ele escolhe fazer-se instrumento do inexato – pelo slogan que imita
o Witz, pela zombaria que imita o cômico, pelo oportunismo que imita o acaso. No
limite, sob o efeito de uma subversão diabólica, o sujeito só se reconhece em primeira
pessoa naquilo que ele próprio, com conhecimento de causa, considera como inexato.
Inscrever a divisa do inexato em seus brasões, essa escolha tem um nome: canalhice.
Quando a verdade é disjunta da exatidão, essa é sem dúvida a escolha mais fácil.
Mas uma outra escolha é possível: decidir que só nos reaveremos, em primeira pessoa,
usando as armas da exatidão; considerar que a inexatidão de primeira pessoa é sempre
inútil; que os sonhos, os trocadilhos idiotas, os gaguejos da história, os lapsos da
sociedade só valem no campo da verdade através da interpretação, que os mergulha no
espaço da exatidão.
Se, por acaso, a exatidão é múltipla, nenhuma de suas variantes é negligenciável
de antemão. Não é certo que as exigências dessas variantes não sejam contraditórias.
Por pouco que eles desejem deferir todas elas, os sujeitos leais correm o risco, a cada
instante, de se desencaminharem. Confrontados com a complexidade da rede, mais vale
que eles se atenham a uma regra simples: jamais autorizar-se a tomar a inexatidão como
meio da verdade. A isso daria o nome de lealdade.
Precisamente porque a verdade é disjunta da exatidão, a regra de lealdade não se
impõe como uma necessidade mecânica ou lógica. Ela advém daquilo que alguns
chamam de ética. Estará, assim, barrada a movimentada passagem que transforma a
vagabundagem aos lugares inexatos em manipulação generalizada. Nem as fraturas do
17
N. do T. Trata-se de uma expressão idiomática oriunda do meio teatral, utilizada para descrever a
situação em que determinado personagem se dirige a um interlocutor que não está presente na cena: “Il
parle à la cantonade”. Por extensão, refere-se a qualquer fala que não se endereça a um interlocutor
preciso.
discurso, nem as reviravoltas, nem as surpresas da fortuna, nem as mais irredutíveis
contingências deverão ser ignoradas. Mas elas não podem servir de pretexto. Mais vale
agarrá-las em pleno voo, para aí desenredar o exato do inexato. No instante em que o
exato se separa, talvez resplandecerá, como uma explosão de ouro nascente, o efeito de
verdade. Além do mais, o dito de verdade extrairá algum benefício de sua máxima leal,
pois vivemos em um universo onde a virtude é sempre recompensada. Ele conseguirá
que aqueles que não têm nenhuma relação com a verdade – mas viram que a exatidão
pode, em algumas circunstâncias, revelar-se útil – lhe prestem um mínimo de atenção.
Penso aqui, especialmente, nos Estados e nos aparelhos de poder. Quanto a eles,
é preciso ser pragmático e praticar a astúcia da verdade; aliás, mais legítima do que a
astúcia da razão: disfarçar os efeitos de verdade em efeitos de exatidão; denunciar o
disfarce inverso da inexatidão em efeito de verdade, levado adiante pelos canalhas;
entre as variantes da exatidão, isolar aquelas que se tornaram meios de servidão e opô-
las a outras variantes, habilmente escolhidas. O sucesso não é garantido, mas o fracasso
tampouco.