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O NASCIMENTO DE UM ESQUETE

Por: Jorge Raskolnikov

Personagens: Diretor, Zelador.


Cenário: O palco com apenas uma cadeira em cena.

ATO ÚNICO

Cena única.
(O Diretor entra em cena passando no meio do público. Chega para mais um dia de ensaio. Traz
alguns papéis sob o braço. Vai até o palco, senta-se na cadeira, pega os papéis e começa a folheá-
los. Depois de algum tempo fica impaciente. Retira um aparelho celular do bolso e olha as horas.)

DIRETOR: (Falando pra si mesmo) Todo mundo atrasado! Que merda! Engraçado é que todos deram
a certeza de que não se atrasariam pro ensaio hoje... (Espera durante um bom tempo) Não agüento
mais... Pra mim foi a gota d’água! (Fica de pé) Não dá mais, tô cansado de trabalhar com amador!
Um chega pra mim e diz: (Imitando alguém) “Pode deixar, diretor vou atuar como se minha vida
dependesse disso!” A outra com cara de puta que ta a fim de fazer freguesia diz: (Imitando voz
feminina) “Ah, meu sonho sempre foi ser atriz, amanhã eu estou aqui pra dar tudo de mim!” Dar?!
Eu sei o que ela... (Mudando de tom) Teve outro que falou que tava deixando tudo pela arte teatral!
Um cara que não sabe nem lê direito e sonha em trabalhar na novela das oito! Nem sabe o que é
teatro! Mas isso é comum, basta falar em ser ator e quase todo mundo pensa em novela ou pior
ainda, em malhação... (Em outro tom) Gente, a coisa mais difícil de entender, apreciar nesse país é o
teatro! Fazer então e quase impossível! (Defensivo) Vocês podem achar que eu estou exagerando,
mas não, não é exagero nenhum. Quando vocês virem uma peça de teatro por aí, assistirem de fato
um espetáculo podem sair dizendo que viram um milagre. Uma coisa que não deveria existir. Uma
verdadeira excrescência! É isso mesmo! Pessoal, é necessária tanta coisa pra se fazer uma peça de
teatro que se torna quase impossível montar uma! É... (Sacode os papéis como se tencionasse se
abanar) E você pode me dizer: “Você ta falando isso, mas quase todo dia na cidade temos
espetáculos em cartaz”. (Sorrindo com ironia) Gente, isso é um acidente! Sim, isso mesmo, um
acidente! Essas peças que tão aí é o que sobrou de milhões de tentativas! É... Geralmente o que é
visto aí é o que sobrou. Alguém teve a idéia de montar um texto, reuniu uns dez aspirantes a atores,
distribuiu papeis, começou a ensaiar. Nesse meio tempo os tais atores foram saindo. Um
simplesmente sumiu, o outro arranjou um emprego, alguém descobriu que tinha outros ambientes
onde podia assumir a homossexualidade, fulano foi ameaçado de ser deserdado se ainda se
metesse com esse negócio de teatro; sicrano achou virar melhor fazer concurso pra guarda
municipal; fulana descobriu que tava grávida e por aí vai... Deve ter sobrado dois ou três que
queriam impressionar alguém, adaptaram um texto famoso, cortaram em três pedaços, sortearam
uma dessas partes e resolveram encenar aquilo no formato Brecht-Stanislawisk-Artaud-caralho-de-
asa-pós-dramático! E aí apresentaram um (Fazendo com os dedos indicadores e médios o sinal de
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aspas) “esquete” pra um público que não entendeu nada do que viu... Também pudera o troço não
tem sentido nenhum mesmo! E tem gente se orgulhando do teatro que anda fazendo. Não
conseguem nem fazer o povo ir ao teatro sem bilheteria e reclamam que ninguém gosta de teatro,
valoriza a cultura! (Em outro tom) Eu já tô de saco cheio! Um diretor de verdade, um artista como
eu não merecia tá numa situação como essa! Não sei o que eu ainda faço nessa cidade! Como vou
ensaiar, construir uma cena no palco com gente tão limitada, sem visão artística! O ensaio é pra
começar as sete, o primeiro ator que vem chega às sete e meia, vem outro oito, outro oito e
quarenta e mais outro nove... Dez horas o elenco todo tá reunido, mas o que chegou sete e meia
precisa ir embora. Tem como? (Pausa, folheia os papéis nervosamente) Mas acho que o culpado de
tudo sou eu... Sim, eu que ainda fico dando uma chance a essa gente ingrata! Eu um cara com um
currículo artístico que só pode ser apreciado e compreendido num lugar onde as pessoas tenham
um mínimo de conhecimento. Não nesse lugar onde teatro é somente (Repete o gesto indicando
aspas) “esquete”! (Pausa) E ainda vem um ou outro que me aconselha a dirigir um monólogo!
(Indignado) Eu odeio monólogo! Não suporto! Não gosto nem que falem disso perto de mim! Isso é
o fim do teatro, a decadência, a morte dessa arte! (Possesso, gritando) Eu tenho ódio, um
verdadeiro ódio de monólogo e de esquete!
(O Zelador entra interrompendo o discurso do Diretor)
ZELADOR: (Entrando) Senhor Diretor?
DIRETOR: Sim... (Olhando espantado, tentando reconhecer o outro)
ZELADOR: Senhor Diretor, eu...
DIRETOR: Espera, rapaz, antes de tudo me deixe lhe dar um abraço...
(O Diretor abraça o Zelador com bastante ânimo. O outro parece constrangido)
ZELADOR: (Constrangido) Obrigado, Senhor, mas...
DIRETOR: Não diga nada ainda meu rapaz, me deixe olhar pra você. (Observa o outro sem tirar a
mão de seu ombro) Eis um jovem com algum compromisso artístico ainda!
ZELADOR: (Cada vez mais constrangido) Obrigado, obrigado, Senhor...
DIRETOR: Saiba que o futuro da arte teatral repousa sobre seus ombros meu jovem. (Conduz o
Zelador com a mão no seu ombro até o centro do palco)
ZELADOR: Hã?!
DIRETOR: Olha, deixe eu te dizer uma coisa... Uma coisa boa! Vou lhe dar o melhor papel nessa
peça, aliás, vou lhe dar os melhores papéis nesse grupo. Você merece, rapaz, você é muito
responsável. (Se afasta do Zelador) E olha... (Em tom profético) A maior qualidade de um ator é a
disciplina! (Silêncio incômodo) Entendeu?
ZELADOR: (Depois de um tempo. Confuso) Acho que sim...
DIRETOR: (Orgulhoso) Gostou? Essa fui eu mesmo que criei...
ZELADOR: Hum hum...
DIRETOR: (Aproximando-se do Zelador) Mas me diga, rapaz, que papel você tem na peça? Não, não,
nem precisa dizer... Que papel você deseja ter nessa peça? (Entrega as folhas para o Zelador)
ZELADOR: (Recebendo as folhas) Eu?
DIRETOR: (Empolgado) Sim. Você!
ZELADOR: Aí é que está, eu não sou ator!
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DIRETOR: (Para o público) E ainda por cima é humilde! (Voltando-se para o Zelador) Mas você será
um dia, meu rapaz...
ZELADOR: Não, acho que o senhor não entendeu...
DIRETOR: (Interrompendo o outro) Entendi sim, você quer dizer que está começando e por isso não
se considera um verdadeiro ator ainda.
ZELADOR: Não...
DIRETOR: Mas não se preocupe, rapaz... Nas minhas mãos você será um grande ator!
ZELADOR: (Irritado) Mas eu não sou ator!
DIRETOR: Já entendi, jovem...
ZELADOR: (Indignado) Não! O senhor não entendeu coisa nenhuma... (Quase gritando) Eu não sou
e nem quero ser ator! (Gritando) Eu sou o zelador e só vim aqui pra varrer o palco!
(O Diretor fica paralisado por alguns segundos)
DIRETOR: (Sem esboçar reação) Zelador?
ZELADOR: (Mais calmo) Sim... Um simples zelador! (Aproxima-se do outro e lhe entrega os papéis
DIRETOR: Então... (Olha em volta) Nenhum dos meus atores vieram!?
ZELADOR: Não...
(O Zelador vai até a coxia rapidamente e pega uma vassoura)
DIRETOR: Tudo bem, talvez estejam só atrasados aqueles canastrões...
ZELADOR: (Começando a varrer o palco) Acho que não, viu... Ouvi uma conversa ontem quando eles
saiam daqui...
DIRETOR: (Aproximando-se do Zelador) Mesmo? O quê?
ZELADOR: (Pára de varrer) Bem, eu ouvi claramente quando um deles disse: “Esse retardado se
acha diretor só porque montou dois esquetes no ensino médio! Que mais ele fez? Nada! Eu que não
venho mais”
DIRETOR: Puta que pariu! Todo mundo já sabe dos esquetes... (Caindo em si ao perceber o que
acabou de falar) Bando de ingratos sem talento!
ZELADOR: (Tom jocoso) Dois esquetes, é?
DIRETOR: (Indignado) Muito mais que dois esquetes... Foram três esquetes e um quase espetáculo!
ZELADOR: (Sorrindo com malicia) E o que seria quase um espetáculo?
DIRETOR: (Nervoso) Quase um espetáculo é o, o... A peça que, que... Como posso dizer? É...
ZELADOR: Um esquete com um ou dois minutos a mais?
DIRETOR: (Sem dar conta do que está falando) Exato, um esquete com um ou dois minutos mais...
(Caindo em si) Não! (Se recompondo) Não era quase um espetáculo, era um espetáculo de curta
duração!
ZELADOR: Então... Um esquete?
(O Diretor vai com tudo pra cima do Zelador)
DIRETOR: (Gritando, quase aos prantos) Sim, foram só esquetes, nada mais que isso! Umas
turminhas de teatro amador, nada mais! Eu nunca dirigi um espetáculo de verdade, nem conheci
atores profissionais! Eu sou um amador também! Pronto! Tá satisfeito? (Joga as folhas pra cima e
coloca a mão no rosto, choraminga) Eu não passo de um ator frustrado e de um diretor pior ainda...
ZELADOR: Então os atores tinham razão! Fazer o quê? (Varre o palco)
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DIRETOR: (Arrasado, em tom de confissão) É... Isso mesmo... Mas Deus sabe que eu tentei, que
sempre fui o ultimo a abandonar o projeto... Nunca montei um espetáculo porque não tive atores
que fossem até o fim... Só montei esquetes...
ZELADOR: (Parando de varrer) Por que não monta um monólogo?
DIRETOR: (Indignado, procurando se conter) Eu odeio monólogo!
ZELADOR: Ah, é verdade!
DIRETOR: (Um tanto mais contido) Gostaria era de montar um espetáculo com um elenco enorme,
mas o pior é que sei que comigo as coisas não vão pra frente. Não vou além de esquetes e
monólogos!
ZELADOR: Eu sei como é essas coisas... Já presenciei muitas montagens aqui ao longo desses anos.
Cada coisa que começa e não vai até o fim ou termina em catástrofe no palco!
DIRETOR: Mesmo sendo um simples zelador você já viu como a coisa é difícil...
ZELADOR: Verdade... (Voltando a varrer o palco) A gente ouve tanto falar em peça, texto,
interpretação, montagem, adaptação, clássico, pós dramático, Brecht isso, Stanislawski aquilo,
encenação, proposta cênica; vê tanta coisa dos bastidores, assiste... A dificuldade, a dedicação que
essa atividade exige! O negócio não é fácil não... Alguém disse uma vez que a arte é uma amante
ciumenta!
DIRETOR: Isso mesmo!
ZELADOR: Pois é... Se eu entendesse alguma coisa de teatro, eu gostaria de ser um diretor ou quem
sabe um ator talentosíssimo capaz de entreter o público e fazer todo mundo sentir, refletir... (Pensa
um pouco) Representar uma peça com um enredo simples, (Dramático) mas capaz de suscitar toda
uma gama de sentimentos inerentes ao estado complexo do ser humano em seu vasto palco real,
esse mundo (Sorri triste) e a total falta de perspectiva a não ser o simples improviso diante da vida,
esse fardo tão leve e ao mesmo tempo pesado, detentor de um sentido maior que nos foge...
DIRETOR: (Batendo palmas, entusiasmado) Bravo, bravo, bravíssimo... Você é perfeito, rapaz!
ZELADOR: (Orgulhoso) Gostou? (Sorri) Isso foi puro improviso!
DIRETOR: Já sei o que nós vamos fazer!
ZELADOR: Nós?
(O Diretor junta os papéis espalhados pelo chão)
DIRETOR: Sim... (Aproxima-se do Zelador e coloca a mão no ombro dele) Você vai ser o ator da
minha peça, do meu grande sucesso!
(O Zelador dá um ou dois passos em direção ao proscênio e olha para o vazio com ar sonhador)
ZELADOR: Sério?
DIRETOR: Sim! Um maravilhoso monólogo sobre um diretor teatral refletindo sobre o seu ofício, as
dificuldades do trabalho, a efemeridade do teatro e a falta de compreensão que o cercam!
ZELADOR: (Confuso) Mas você não detestava monólogo?
DIRETOR: É o futuro do teatro, que é que eu vou fazer? Um grande diretor tem que seguir as novas
tendências.
ZELADOR: É isso aí... (Pensa um pouco) Que tal fazermos meio monólogo, tipo assim, o diretor faz o
seu desabafo logo na primeira cena e depois surge um jovem zelador que acaba se revelando um

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talento não reconhecido! Depois os dois se descobrem como parceiros para um novo trabalho
genial e desafiador!
DIRETOR: (Pensativo) Hum... Meio batido, mas podemos melhorar a idéia...
ZELADOR: Sei...
DIRETOR: Vou escrever o texto... Curtinho. Uma cena só.
ZELADOR: Um esquete?
DIRETOR: Sim pra começar tá bom... Depois a gente cria algo maior, mais complexo, com maior
duração!
ZELADOR: Acha melhor?
(O Diretor volta a colocar a mão no ombro do Zelador)
DIRETOR: Pode ter certeza... Vai por mim, eu tenho experiência nisso!
ZELADOR: Beleza!
(Os dois vão saindo)
DIRETOR: Você faz o diretor e eu o jovem talento ainda não descoberto... Que tal?
ZELADOR: Que tal se você fizer o diretor e eu o jovem?
DIRETOR: Você acha melhor?
ZELADOR: Acho que seria perfeito!
DIRETOR: Pois pra mim tá ótimo!
(Os dois saem)

Cai o pano.

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