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A inveja do pênis 1

Por que a noite tinha de fazer para mim um corpo de mãe – que mais não
fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente não entende?
João Guimarães Rosa

L aplanche e Pontalis (1967) em seu Vocabulário da Psicanálise, na


composição do verbete “inveja do pênis”, definiram-no como o elemen­
to fundamental da sexualidade feminina e a mola real de sua dialética
na obra de Freud. Enfatizaram o ponto de vista biologizante que atribui
seu aparecimento a descoberta da diferença anatômica entre os sexos:
a criança do sexo feminino sente-se lesada relativamente ao menino
e deseja possuir um pênis como ele (complexo de castração); depois,
essa inveja do pênis assume, no decorrer do Édipo, duas formas deri-
vadas: desejo de adquirir um pênis dentro de si (principalmente sob a
forma do desejo de ter um filho) e desejo de fruir do pênis no coito.
Sabemos, também, que a noção foi assumindo uma importância
cada vez maior na obra de Freud, à medida que ele era levado a espe-
cificar a sexualidade feminina, no início implicitamente considerada
simétrica a do menino.
Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), teoria cen-
trada na evolução da sexualidade masculina, não contém, como mos-
50 Chuster & Trachtenberg

tram os dois autores acima, na sua primeira edição, qualquer referên-


cia à inveja do pênis. A primeira alusão só aparece em 1908, no artigo
As Teorias Sexuais Infantis. Freud aponta, então, o interesse que a me-
nina tem pelo pênis do menino, interesse que é, de acordo com suas
próprias palavras, “orientado pela inveja” e, assim, quando a menina
exprime esse desejo, “gostaria mais de ser o menino”, sabemos qual é
a falta que esse desejo procura remediar.
A expressão “inveja do pênis” parece já aceita, em seu uso analíti-
co, quando Freud a menciona em 1914 para designar a manifestação
do complexo de castração na criança do sexo feminino.
Em Os Instintos e suas Vicissitudes (1915) e, especialmente, quan-
do aborda o erotismo anal (1917b), Freud já não designa apenas por
“inveja do pênis” o desejo feminino de ter um pênis como o rapaz;
aponta-lhe a principal metamorfose: desejo de ter um bebê segundo
a equivalência simbólica do pênis-bebê; desejo de ter um homem en-
quanto “apêndice do pênis”.
A concepção freudiana da sexualidade feminina confere um lugar
essencial à inveja do pênis na evolução psicossexual para a feminili-
dade, que supõe uma mudança de zona erógena (do clitóris para a
vagina) e uma mudança de objeto (o apego pré-genital à mãe dá lugar
ao amor edipiano pelo pai). Nessa mudança, são o Complexo de cas-
tração e a Inveja do pênis que desempenham, em diversos níveis, um
papel de transição:

a) Ressentimento para com a mãe, que não equipou a filha com


um pênis.
b) Depreciação da mãe, que aparece assim como castrada.
c) Renuncia à atividade fálica (masturbação clitoridiana), pois a
passividade assume preponderância.
d) Equivalência simbólica entre pênis e filho.

O desejo (Wunsch) com que a filha se volta para o pai é indubita-


velmente, na sua origem, o desejo do pênis que a mãe lhe recusou
e que ela espera obter do pai. Todavia, a situação feminina só se
estabelece quando o desejo do pênis é substituído pelo desejo do
filho, e o filho, segundo a velha equivalência simbólica, toma o
lugar do pênis (1932).
As sete invejas capitais 51
Por diversas vezes, Freud apontou o que podia permanecer da in-
veja do pênis no caráter (complexo de masculinidade) ou nos sintomas
neuróticos da mulher. De resto, o que é comum é que, quando se fala
de inveja do pênis, uma alusão é feita aos remanescentes no adulto
que são encontrados nas formas mais disfarçadas.
Por fim, Freud, que sempre sublinhou como a inveja do pênis,
debaixo das aparentes renúncias, persistia no inconsciente, indicou em
um de seus últimos escritos, Análise Terminável e Interminável (1937),
o que ela podia até oferecer de irredutível à análise:

... não podemos senão concordar que a paciente esteja certa...


Frequentemente temos a impressão de que ao atingirmos o desejo
de possuir um pênis e o protesto masculino, teríamos penetrado
todos os estratos psicológicos e que chegamos à rocha básica e
que, portanto, nossas atividades chegaram ao fim.

Em uma síntese final, Laplanche e Pontalis consideram que a ex-


pressão “inveja do pênis” apresenta uma ambiguidade e assinalam que
Ernest Jones tentou dissipá-la distinguindo três sentidos:

a) O desejo de adquirir um pênis, normalmente engolindo-o, e de


conservá-lo no interior do corpo, muitas vezes transformando-o
em um filho.
b) O desejo de possuir um pênis na região clitórica.
c) O desejo adulto de fruir de um pênis no coito.

Essa distinção, por muito útil que seja, nem por isso nos deve
levar a considerar estranhas umas às outras essas três modalidades da
inveja do pênis. Pois a concepção psicanalítica da sexualidade femini-
na tende precisamente a descrever quais as vias e equivalentes que as
ligam entre si.
Em termos práticos, podemos dizer que a inveja do pênis aparece
em três possibilidades interpretativas:

a) Uma expectativa da mulher de obter do homem, não apenas um


pênis, mas também um substituto do amor dos pais, por meio
de um bebê que sustente a continuidade da família.
52 Chuster & Trachtenberg

b) O desejo de ser amada pela mãe ao possuir um pênis como o


pai que é o amado da mãe. Nesse sentido, ela seria igualada ao
pai.
c) Poupar da angústia de morte provocada pelo desejo de ter um
pênis, que é, de certa forma, uma reivindicação que se situa na
ordem do conflito de separação de um todo, para se contentar
com uma parte que representa esse todo.

A primeira hipótese (a), implica uma análise das frustrações da ex-


pectativa de uma total ausência de insatisfação de qualquer espé­cie­e da
duração infinita do existir. Trata-se do desejo de felicidade suprema, do
bem-estar completo, independente das condições do mundo empírico,
desejo por um estado que não pode realizar-se nessa vida e nesse mun-
do, mas apenas na vida futura e em um mundo moral supra-sensível. Em
(b) implica uma análise de que se tornar digna de felicidade depende da
obediência à lei moral, que pode ser cega ou por escolha própria, isto é,
há um confronto heteronomia versus autonomia­ social. A promessa de
seguir a lei moral consola, ao mesmo tempo, os dois tipos principais de
infelicidade: a da insatisfação material e a da transitoriedade da vida. A
hipótese (c) implica uma análise da falsa premissa que permite à mulher
considerar-se um ser definitivamente elevado (superioridade moral ou
amorosa) acima da natureza frágil, e que a colocaria no caminho da
satisfação sem sombras, mas também da salvação sem ameaças. Estado
máximo de benevolência que anseia por um duplo triunfo: sobre a fini-
tude do prazer e sobre a finitude do existir.
Como podemos observar, a noção de inveja do pênis tem o sig-
nificado de um desejo feminino, estruturante, de possuir algo signifi-
cativo que só um outro possui e não pelo fato, em si, de que outro o
possua. Por outro lado, a inveja aqui considerada será determinante da
possibilidade de uma visão fálica ou falicista das relações humanas (se-
xuais, sociais, políticas, econômicas, científicas, religiosas, etc.). Nesse
caso, possuir ou não possuir será o vértice pelo qual observaremos
nossas diferenças com seu significado de superioridade/inferioridade.
Ironicamente, a própria inveja pode ser objeto dessa mesma visão fá-
lica e, assim, dividir-nos entre os que a possuem e aqueles que não a
possuem. “Eu tenho ou eu não tenho inveja”, “eu sou ou eu não sou
invejoso”, são expressões conhecidas que nos indicam a presença do
vértice mencionado.

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