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F O R T U N A C R Í T I C A 5

Ivan Teixeira

DESCONSTRUTIVISMO
Desenvolvida a partir das formulações do

Reprodução
filósofo francês Jacques Derrida,
a desconstrução atribui aos significados
a condição de construções culturais,
questionando a concepção metafísica
de centros unificadores do mundo O lingüista e filósofo Jacques Derrida

Série destaca as principais O movimento da desconstrução, filósofo francês, como é o caso, em


tendências da crítica literária representado sobretudo pelo filósofo diferentes graus, de Paul de Man, J. Hillis
francês Jacques Derrida, é apenas uma Miller, Geoffrey Hartman e Harold
“Fortuna Crítica” é uma série de seis das diversas tendências do pensamento Bloom.
artigos de Ivan Teixeira sobre as princi- crítico do chamado pós-estruturalismo, Derrida é ao mesmo tempo herdeiro
pais correntes da crítica literária. O pri-
dentre as quais se contam também as e crítico do estruturalismo. Começa por
meiro, publicado no número 12 da
CULT (julho), abordou a retórica de Aris- formulações de Michel Foucault e as do questionar a noção de centro no conceito
tóteles e Quintiliano; o segundo texto new historicism, proposto por Stephen de estrutura. Para o filósofo, centro é tudo
(agosto) foi sobre o formalismo russo; o Greemblatt no início dos anos oitenta. A o que preside a ordenação dos elementos
terceiro (setembro) estudou o new criti- desconstrução passou a tomar corpo de um sistema, mas que não participa da
cism; o quarto (outubro) apresentou o como movimento crítico depois da mobilidade das unidades que coordena.
estruturalismo. Na próxima edição, será
analisado o new historicism. Ivan Tei- célebre conferência proferida por Nesse sentido, o centro encontra-se ao
xeira é professor do Departamento de Derrida na Johns Hopkins University, mesmo tempo dentro e fora da estrutura.
Jornalismo e Editoração da ECA-USP, em 1966, quando o filósofo leu o ensaio Enquanto elemento interno, explica-se
co-autor do material didático do Anglo “A estrutura, o signo e o jogo no discurso por sua condição coordenadora; en-
Vestibulares de São Paulo (onde lecio- das ciências humanas”, que hoje integra quanto elemento externo, explica-se por
nou literatura brasileira durante mais de
20 anos) e autor de Apresentação de o volume A escritura e a diferença. Desde não participar do jogo e dos riscos do
Machado de Assis (Martins Fontes) e então, a desconstrução tem encontrado movimento inerente à idéia de estrutura.
Mecenato pombalino e poesia neo- muita ressonância nos Estados Unidos, Em rigor, o centro é uma entidade
clássica (a sair pela Edusp). Tem-se de- assumindo diferentes matizes conforme metafísica, pois possui valor absoluto e
dicado a edições comentadas de clás- o autor que se inspire nos fundamentos independe das contingências do todo.
sicos – entre eles, as Obras poéticas de
Basílio da Gama (Edusp) e Poesias de
de Derrida. Assim se explicam alguns Como toda verdade metafísica, a noção
Olavo Bilac (Martins Fontes) – e dirige trabalhos dos integrantes da Escola de de centro deve ser posta em questão, deve
a coleção “Clássicos para o vestibular”, Yale, preocupada em divulgar, comentar, ser desprezada na análise da estrutura de
da Ateliê Editorial. criticar e desenvolver os pressupostos do que participa. O centro não é uma

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realidade, mas uma construção do possível por contrastar com a idéia de cultura de referência por princípio. Foi a
pensamento ocidental. O analista deve planície ou de depressão. Como se vê, partir do homem europeu que se
desconstruir esse construto, escolhendo Derrida é responsável pelo esboço de formularam todas as conclusões universa-
um enfoque que aborde a estrutura por uma espécie de teoria geométrica do lizantes (metafísicas) sobre o que se
um ângulo até então secundário na ordem conhecimento, cuja tradição se origina, entende por cultura ocidental. Os estudos
geral das coisas. Toda a filosofia ocidental pela ruptura com os significados de Lévi-Strauss provocaram um deslo-
partilha da idéia de centro, essencial- universais, em Nietzsche, Freud e camento desse foco de atenção: o interesse
mente vinculada ao princípio de valor e Heidegger. Fala-se aqui em teoria das pesquisas desviou-se da Europa para
de significado absoluto, característica geométrica do conhecimento, porque já culturas consideradas primitivas, sobre-
básica do pensamento metafísico. A Luís Antônio Verney divulgava, na época tudo a partir da análise de mitos sul-
noção de centro preside o próprio americanos. Tal descentramento estabe-
conceito do ser, determinado pela idéia leceu uma crise na história da metafísica,
João Carlos Volatão/Folha Imagem

de presença, de essência, de origem, de por questionar a noção de totalidade do


finalidade. A história do Ocidente seria humano, concebida exclusivamente com
uma sucessão de centros inquestionáveis, base no etnocentrismo europeu. Além
como Deus, homem, consciência, disso, ao desconstruir a noção de etno-
transcendência, eu, verdade – noções centrismo, Lévi-Strauss estaria, segundo
responsáveis pela idéia de centro Derrida, realçando a necessidade de uma
unificador do mundo. A esse pensamento linguagem crítica no discurso das
essencialista e transcendental Derrida ciências humanas. Antes disso, as
chama de “logocentrismo”. verdades do etnocentrismo apresen-
Derrida coloca-se contra a concepção tavam-se como dados da natureza, e não
logocêntrica do pensamento metafísico. como construtos de ordem cultural. Na
Para ele, o valor do centro é sempre prática, isso contribuía para a hegemonia
afirmado pelo não-valor de seu oposto: do pensamento metafísico, responsável
Deus/diabo, homem/mulher, natureza/ pela noção da superioridade da Europa
cultura, fala/escrita, espírito/corpo, sobre os demais continentes.
inteligível/sensível etc. O pensamento Harold Bloom, um dos Outra desconstrução importante
metafísico atribui valor intrínseco aos maiores críticos literários dos operada pelo pensamento de Derrida
elementos que compõem essas duali- Estados Unidos, país em que consiste no questionamento da ascen-
dades, em que se fundamenta quase toda a desconstrução encontra dência da fala sobre a escrita. O filósofo
a filosofia européia. Todavia, Derrida não ressonância assumindo denomina essa hierarquia de “fonocen-
reconhece significado essencial nos diferentes matizes conforme trismo”, entendendo-a como um aspecto
elementos desses pares. Nega qualquer o autor que se inspire em do logocentrismo. O pensamento meta-
verdade transcendental. Aplica a todos os seus fundamentos
físico sempre considerou a fala como
significados a condição de construções elemento mais importante desse par, não
culturais, entendendo-as a partir do só por pressupor a presença do falante,
relativismo da função distintiva do da Ilustração portuguesa, o princípio de como também por ser considerada a
conceito saussuriano de fonema. Isto é, que o conhecimento das formas cor- matriz da escrita, que foi interpretada
assim como o significante vaca se torna póreas depende da percepção da super- desde sempre como mera reprodução
perceptível apenas por contrastar com fície das coisas, de que trata a geometria. artificiosa do ato natural da fala. Assim, a
faca, o filósofo julga que só se conhece Derrida privilegia a etnologia na oposição fala/escrita gera outra dualidade
Deus por se tratar de um construto formação do discurso das ciências supostamente verdadeira: presença/
diferente de diabo. Da mesma forma, a humanas. Observa que, antes de Lévi- ausência, que acaba por implicar a su-
natureza só é percebida por se distinguir Strauss, essa ciência tomava exclusi- perioridade do presente sobre o passado,
da cultura, e assim por diante. Por essa vamente a Europa como origem para da natureza sobre a cultura. Eis o que
perspectiva, pode-se supor também que qualquer generalização acerca do Derrida chama a “metafísica da pre-
a percepção de uma montanha só se torna homem. A Europa era tomada como sença”, que o filósofo pretende descons-

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truir, invertendo a hierarquia desses pares a natureza da consciência humana, que de um trocadilho grafo-sonoro, porque
antitéticos. Esclarece que, tanto quanto a se confunde com a noção de linguagem. essas palavras possuem grafias distintas e
escrita, a fala obedece a um código Essa perspectiva não admite um centro uma só pronúncia. O neologismo do
preestabelecido, que ele denomina exterior responsável pela geração dos filósofo deriva de différer, que tanto pode
“arquiescritura”. Trata-se de um código significados a serem captados pelo significar diferenciar quanto adiar. Dife-
matricial abstrato, do qual nascem as espírito humano e “depois” veiculados renciar pressupõe a geometria dos corpos,
diferenças geradoras do sentido, tanto na pela linguagem. Ao contrário, ao criar espacialidade, pois o signo se explica pela
língua falada quanto na escrita. A maior configuração de seu contrário; adiar
conseqüência dessa desconstrução é a implica temporalidade, pois o signo
Milton Michida/AE
ratificação de uma idéia consagrada pela também retarda continuamente a idéia de
lingüística estrutural, segundo a qual não presença. Observem-se os fonemas /b/ e
existe origem absoluta para o significado. /p/: ambos são bilabiais explosivos. A
Este decorre de relações, e não de essên- diferença essencial entre eles é que o
cias isoladas: é sintagmático, jamais para- primeiro se caracteriza por uma
digmático. propriedade positiva: é sonoro; ao passo
O princípio de que o significado que o segundo, por uma propriedade
decorre de relações possibilita ao teórico negativa: é surdo. Por causa de sua
a formulação da idéia de suplemen- condição positiva, a lingüística tradi-
taridade, que consiste no pressuposto de cional tende a atribuir ao fonema /b/ o
que os termos dos pares do pensamento privilégio do centro. Derrida considera
metafísico se complementam mutua- essa conclusão uma construção meta-
mente. Esse princípio não só implica a física, afirmando que a propriedade
inversão dos elementos que constituem positiva do primeiro decorre da condição
as relações binárias, mas também negativa do segundo, assim como o
permite conceber esses elementos numa Há uma nova espécie de sentido de Deus depende da noção de
dimensão de antítese inclusiva, e não desconstrução em diabo. O vocábulo différance foi inventado
exclusiva. Nesse sentido, o conceito de andamento no ensaísmo para caracterizar esse processo de geração
verdade, por depender do de mentira, brasileiro, representada
do sentido, em que um significado
contém necessariamente um pouco de continuamente se refere a outro signi-
pelos textos de João Adolfo
seu oposto. Observe-se a idéia do bem. ficado e a toda a rede de significados da
Hansen (acima), que
Sabe-se que decorre de Deus, a origem língua, processo também designado de
utiliza fundamentos
total do ser. A noção do mal vem em suplementaridade do signo.
do historicismo de
segundo lugar e completa a plenitude As práticas de Derrida orientaram-se
de Deus, ao mesmo tempo que suple- Michel Foucault sobretudo para sistemas de interpretação,
menta e contamina a idéia de bem: pois, e não propriamente para obras literárias.
caso não houvesse o princípio da Queda, os significados e o respectivo sistema de Fundam-se principalmente em análises
seria impensável o conceito de bem. Vem signos, o homem estaria forjando a de pensadores como Platão, Rousseau,
daí que as antíteses conceituais do própria consciência, também constituída Nietzsche, Husserl, Freud, Marx e Lévi-
pensamento metafísico não passam de por elementos contrastivos. Strauss. Evidentemente, o filósofo de-
construtos culturais. Pertencem à ordem Como se vê, a linha de força do pen- teve-se também em textos ou concepções
dos signos, e não ao domínio das enti- samento derridiano consiste na teoria da artísticas, como é o caso de seus estudos
dades naturais. Mas qual a vantagem diferença, resultante de uma interpretação sobre Antonin Artaud e Mallarmé. A
desse tipo de desconstrução para a radical da lingüística de Saussure. partir daí, os sistematizadores da nova
filosofia da linguagem? Pela perspectiva Desenvolvendo criticamente a teoria do teoria estabeleceram alguns passos para
de Derrida, não só representaria um signo saussuriano, Derrida criou o a abordagem desconstrucionista do texto
estágio agudo do exercício crítico no vocábulo différance. Não só para se literário, como a seguinte, elaborada a
discurso das ciências humanas, como contrapor ao termo francês différence como partir de sugestões de Charles E. Bressler
também – e principalmente – revelaria também para complementá-lo. Trata-se e Jonathan Culler: (1) descobrir as

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B I B L I O G R A F I A

operações binárias que estruturam o episteme o padrão que unifica a diver-


texto; (2) comentar os valores, os con- sidade de discursos de uma época. A
ceitos e as idéias que subjazem a essas partir daí, a produção de um autor passou • A escritura e a diferença, de Jacques
operações; (3) subverter as operações a ser entendida como a apropriação
Derrida. Tradução de Maria Beatriz
binárias existentes no texto; (4) descons- singular dos discursos coletivos de seu
truir as concepções implícitas no texto; tempo. Em função disso, reinaugura-se Marques Nizza da Silva. São Paulo,
(5) a partir das novas relações binárias, o esforço pela reconstrução das formas Perspectiva, 1971.
admitir a hipótese de uma terceira saída mentais do passado: redesenha-se o
• Gramatologia, de Jacques Derrida.
e de outros níveis de significação; e (6) espaço da arqueologia, que conduz ao
deixar em aberto a interpretação do texto, abandono de certas generalizações que Tradução de Miriam Schnaiderman e
supondo-se o princípio de que o sig- procuram unificar a diversidade da Renato Janine Ribeiro. São Paulo,
nificado é sempre móvel, múltiplo e história a partir de categorias do presente.
ilimitado. É o que se observa, por exemplo, com o Perspectiva, 1973.
No Brasil, Derrida foi muito bem- conceito de escola literária. Boa parte dos • Glossário de Derrida, supervisão de
recebido a partir dos anos 70, como deixa chamados estilos de época não passam Silviano Santiago. Rio de Janeiro,
ver, por exemplo, o útil Glossário de de discursos atuais voltados para a
Derrida, elaborado por alunos da PUC- anulação da diversidade de práticas do Francisco Alves, 1976.
RJ, sob a supervisão de Silviano San- passado. Paralelamente, recusa-se a • Critical theory & practice: A
tiago. Haroldo de Campos aplicou prin- leitura sincrônica das formas literárias, coursebook, de Keith Green e Jill
cípios do filósofo francês em seu O em franco progresso em outros setores
seqüestro do barroco na literatura brasileira: da produção cultural brasileira. Uma Lebihan. London, 1997.
O caso Gregório de Matos, com o propósito possível alternativa contra essas supostas • Fifty key contemporary thinkers: From
de rever alguns aspectos da teoria formu- formas anacrônicas de leitura tem sido o
structuralism to postmodernity, de John
lada por Antonio Candido na Formação estudo das poéticas, que faculta a
da literatura brasileira. apreensão da diversidade sem descon- Lechte. London/New York,
Registre-se, por fim, que há uma nova siderar a unidade específica de cada Routledge, 1996.
espécie de desconstrução em andamento período. Tal estudo pressupõe o conceito
no ensaísmo brasileiro, representada de história literária como a contínua • Literary criticism: An introduction to
sobretudo pelos textos de João Adolfo reapropriação dos diversos discursos do theory and practice, de Charles E.
Hansen. Desta vez, os fundamentos já homem. Nesse sentido, o passado não Bressler. Englewood Cliffs, New
não decorrem de Derrida, mas do histo- atua sobre o presente; o presente é que se
ricismo de Michel Foucault, para quem apropria do passado como forma de Jersey, Prentice Hall, 1994.
cada época possui uma episteme específica legitimação do ponto de vista segundo o • On deconstruction: theory and criticism
e intransferível. Foucault entende por qual se emitem os juízos. after structuralism, de Jonathan Culler.
Ithaca, New York, Cornell University
Luciana Whitaker/Folha Imagem
Press, 1992.
Nota-se que as idéias
de Derrida foram • Literary theory: a very short
bem-recebidas no Brasil introduction, de Jonathan Culler.
pelo aparecimento do
Oxford/New York, Oxford University
Glossário de Derrida,
organizado por Silviano Press, 1997.
Santiago (ao lado), e pela • A reader’s guide to contemporary literary
aplicação de princípios theory, de Raman Selden e Peter
desconstrutivistas por
Haroldo de Campos Widdowson. New York/London,
Harvester Wheatsheaf, 1993.

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