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A Bíblia

e seu
contexto
Módulo 04 – O Novo Testamento e seu
contexto sociohistórico político e religioso

Marcelo da Silva Carneiro


A Bíblia e seu contexto
MÓDULO INTRODUTÓRIO – ESPECIALIZAÇÃO EM EXEGESE BÍBLICA

MÓDULO 04
O NOVO TESTAMENTO, SEU CONTEXTO
SOCIOHISTÓRICO, POLÍTICO E RELIGIOSO.

Prof. Marcelo da Silva Carneiro

Neste módulo serão analisados alguns aspectos


importantes para compreender o contexto onde
nasceram os escritos do Novo Testamento.

Primeiramente o contexto maior do império


romano no século I EC em sua forma de estru-
turação política e econômica além do aspecto
religioso imperial.

Veremos como a dominação romana afetou a


região siro-palestinense e a relação dos judeus
com outros grupos na região.

Compreenderemos a pluralidade do judaísmo


neste período, tanto antes quanto depois da
destruição de Jerusalém no ano 70 EC e como
os diversos grupos vivenciaram o imperialismo
romano.

Por fim faremos um apanhado da vivência das


comunidades cristãs primitivas dentro do impé-
rio, tanto na região siro-palestinense quanto
nos outros lugares onde os judeus vivenciaram
a Diáspora.
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SUMÁRIO DO QUARTO MÓDULO

UNIDADE 1 - O IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO I EC

1.1 Introdução
1.2 Roma e os demais povos
1.3 Os amigos de Roma: a cidadania
1.4 O sistema romano de dominação: a pax romana
1.5 O sistema tributário
1.6 A religião no Império
1.7 Conclusão

UNIDADE 2 - A DOMINAÇÃO ROMANA NA PALESTINA SEC. I EC

2.1 Introdução
2.2 A situação da Galileia e da Judéia no século I EC
2.3 Os tributos na terra de Israel
2.4 A reação dos judeus à dominação
2.5 Instituições religiosas na terra de Israel
2.6 O imaginário popular
2.7 Movimentos religiosos
2.8 Movimentos políticos e de resistência
2.9 Conclusão

UNIDADE 3 - OS JUDAÍSMOS APÓS 70 EC

3.1 Tensão política e destruição do Templo


3.2 Depois da destruição: observância da Lei e formação do Canon
3.3. O conclave de Jâmnia

UNIDADE 4 - AS COMUNIDADES CRISTÃS NA PALESTINA

4.1 Visão Geral


4.2 Os primórdios: o seguimento de Jesus pelo discipulado
4.3 A comunidade de Jerusalém
4.4 A comunidade da Galileia
4.5 A comunidade de Antioquia

UNIDADE 5 - AS COMUNIDADES CRISTÃS NA DIÁSPORA

5.1 O cristianismo mediterrâneo


5.2 A biografia de Paulo
5.3 O cristianismo egípcio
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UNIDADE 1
O IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO I EC

1.1 Introdução

A ascensão de Roma como império ocorreu historicamente apenas no ano de 27


AEC, já no período do imperador Augusto, mas a expansão territorial da Repúbli-
ca Romana começa muito antes. Richard Horsley sintetiza esse complexo proces-
so, em que Roma, depois da vitória devastadora sobre Aníbal, em Cartago, deci-
de realizar um grande processo expansionista com Pompeu no oriente – special-
mente na Palestina– e Caius Julius (depois chamado Júlio César) na Gália e a
Europa ocidental. Segundo ele, “as campa-
nhas vitoriosas de Pompeu no Oriente foram
decisivas para a enorme expansão, não so-
mente dos territórios e dos povos controlados
por Roma, mas também de volume de merca-
dorias e riquezas enviadas a Roma”. (HORS-
LEY, Richard. Jesus e o Império, p.23-26)

O historiador Pierre Grimal faz uma importan-


te consideração sobre o Império Romano:
Muitos se têm interrogado sobre os
motivos que terão levado os roma-
nos a reunir assim, no seu imperium,
povos tão diferentes, cuja diversida-
de tornava difíceis de administrar e
que não podiam ser incluídos num
quadro jurídico único, aplicável a to-
dos. Vários motivos desempenha-
ram, com certeza, um papel, para
além do puro e simples instinto de dominação. (i) Em primeiro lugar, aquilo
a que podemos chamar um medo obsessivo. O Lácio, cantão de dimensões
restritas na Itália central, tinha de garantir a sua segurança frente a popu-
lações diversas, vindas dos Apeninos ou da Etrúria (...). Quanto já não se
trata mais da Itália, mas de um quadro mais vasto, permanece o mesmo
sentimento (...).
(ii) Tal sentimento justificava-se sempre que o inimigo fosse um “bárbaro”,
afastado, na maneira de viver, dos princípios e dos valores romanos (...).
Mas só poderia aplicar-se aos povos bárbaros, essencialmente das provín-
cias ocidentais e, no Oriente, a alguns que o helenismo não abrangera. Nos
países helenizados, pelo contrário, era Roma que podia fazer figura de bár-
bara (...).
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(iii) Os Romanos apresentaram-se muito cedo como “protetores” dos Gre-


gos, o que constitui um primeiro passo para a integração no imperium, a

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partir do momento em que a proteção se exprime pela conclusão de uma


aliança, pela assinatura de um tratado (GRIMAL, Pierre. O Império Roma-
no. 1999, p. 22-23).

1.2 Roma e os demais povos

Para os romanos todos os povos eram “primitivos”, inclusive os gregos, por isso
gostavam de listar os povos dominados como se fossem exemplares de culturas
inferiores a serem domesticadas e civilizadas. Dentre esses grupos considerados
estranhos estavam os judeus, tanto os da diáspora quanto os da Palestina. A
economia romana dependia do trabalho escravo para sua produção, por isso é
compreendida como uma sociedade escravista.

Culturalmente, os romanos fizeram uso da língua predominante, que era o grego


koiné – um grego simplificado, difundido pelo império de Alexandre Magno. Com
isso, a expansão do império foi facilitada. Economicamente também havia uma
certa “globalização”. As moedas correntes eram o (i) denário, a (ii) dracma e o
(iii) talento, em ordem de valor, que tinham a figura do César (palavra latina que

quer dizer “Imperador”) em um dos lados. Todos os países dominados podiam


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utilizar sua própria moeda e seu sistema religioso e cultural, desde que pagas-
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sem fielmente os tributos ao César.

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1.3 Os amigos de Roma: a cidadania

A cidadania romana era um conceito mais amplo do que em outras cidades. Ro-
ma era mais que uma cidade. Para os romanos, era o centro do mundo para on-
de convergiam todos os povos, e de onde irradiava a liberdade e a lei, segundo
seus conceitos e debaixo de seu domínio. Assim, ter a cidadania romana signifi-
cava ser parte da cidade, mesmo estando a milhares de quilômetros dela, em
qualquer parte do Império.

Esta cidadania era concedida a escravos libertos, mas que não tinham plenos
direitos políticos, como votar ou ser votados. Seus filhos, no entanto, tinham di-
reito total. Também era concedida a pessoas e povos aliados; muitos reis de ci-
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dades helenísticas procuravam este status, e para fortalecer esses laços recorri-
am inclusive a casamentos entre a nobreza romana e as elites locais. Esses eram
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os laços de amicitia (amizade) com as classes dirigentes de outras cidades, per-


mitindo o acesso de famílias à aristocracia senatorial. Também eram forjadas
alianças familiares com os grupos dirigentes de cada sociedade submetida.

Além disso, Roma fundava cidades-colônia em várias partes do Império, a princí-


pio com objetivos militares, mas que também se tornaram colônias de latinos
que recebiam lotes de terra, mas não direitos plenos. Na Palestina podemos citar
Cesareia e Decápolis como cidades-colônia. Em geral os dirigentes dessas cida-
des eram militares aposentados, que garantiam a ordem pública e a fidelidade ao
César.
1.4 O sistema romano de dominação: a pax romana

Segundo Horsley, a principal marca do imperialismo romano era a violência com


a qual eles tratavam os povos dominados. Com brutalidade e rigor, os romanos
usavam de violência para punir, vingar-se e aterrorizar, com o método conhecido
ironicamente de pax romana1.

Em termos gerais a pax romana caracterizava-se por uma série de ações que
levassem uma nação a considerar o César como senhor absoluto. No II século EC
o Império Romano estava alcançando seu maior limite, e tanto a Ásia, quanto o
Oriente Médio
e a Germânia
estavam sob
seus domínios.
A “paz” que
Roma trazia
aos territórios
conquistados
na verdade era
um método de
pacificação ex-
tremamente
violento: qual-
quer resistên-
cia era respon-
dida com bru-

1
De acordo com LAWRENCE, Paul. Atlas histórico e geográfico da Bíblia. Barueri: SBB, 2008, p.
150: “Quando Jesus nasceu, em 5 AEC, quase toda a costa do Mediterrâneo estava sob o domí-
nio de Roma, desfrutando prosperidade e paz sem precedentes: a Pax Romana (paz Romana).
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O comércio se desenvolveu e as viagens se tornaram mais fáceis”. Semelhante a Lawrence e di-


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ferente de Horsley, diversos pesquisadores não assumem o locus hermenêutico do oprimido pe-
lo Império, o que faz o posicionamento de Horsley parecer exagerado frente outras leituras so-
bre a Pax Romana.
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talidade e a morte dos sublevados, muitos por crucificação. O exército romano


praticava carnificinas sistemáticas e escravidão em massa. “Nem a idade nem o
sexo inspiravam piedade” (HORSLEY, Jesus e o Império 2004, p.35).

As populações tinham que receber as legiões romanas com passividade, e estas


tinham o direito de tomar o que necessitassem para seu sustento, além do que
estupros e roubos eram cometidos regularmente. Depois que as principais cida-
des eram conquistadas, um procurador romano era determinado como Governa-
dor local, de forma que o domínio romano era garantido. Os países dominados
passavam a ser chamados de “Províncias”, como parte indexada do Império
Romano.

Era realizada em várias etapas, da seguinte forma: primeiro, o exército invadia


violentamente o território a ser conquistado, e garantia a segurança das tropas
que viessem depois, reprimindo com veemência qualquer resistência. No segun-
do momento, chegavam novas tropas com o governador para discutir os termos
da rendição, inclusive a permanência do rei local, que de acordo com sua lógica,
diminuía a resistência e garantia apoio local das autoridades. Depois da imple-
mentação do governo, era a hora dos arquitetos e artistas. Cidades eram cons-
truídas segundo o modelo greco-romano. Foi o caso de Decápolis, dez cidades
erguidas neste período, inclusive Gadara, onde Jesus libertou um endemoninha-
do. O modo de vida romano era difundido com roupas, monumentos e estradas
construídas para caracterizar a presença romana na região. Não foi diferente na
Judéia e na Galileia.
1.5 O sistema tributário

Diante do domínio romano na região, os judeus foram colocados num regime de


vassalagem, como já acontecera em outras épocas (por exemplo, no período
pré-hasmoneu). Cícero afirmava que esse tributo, cobrado por Roma, tinha o
caráter principalmente de despojo pela vitória e multa pela guerra. Nesse con-
texto chegaram à terra da Palestina, por exemplo, grandes arrendatários roma-
nos de impostos (publicani) que depois foram substituídos por cobradores nati-
vos (os publicanos citados no NT).

Embora os romanos tivessem então a responsabilidade direta, ao que tudo indi-


ca, também na província da Judéia, eles não voltaram a permitir o arrendamento
por parte dos publicanos nem recolheram os tributos de outra forma diretamente
através de arrecadadores de impostos romanos. Antes, delegaram essa tarefa a
terceiros.
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Na Palestina, como em outras re-


giões, os romanos sustentavam
“sua superioridade humilhando os
inimigos, especialmente os que
estavam mais distantes e eram
exóticos e estranhos” (HORSLEY,
Richard. Jesus e o Império,
p.36.). A crucificação era ampla-
mente utilizada como forma abso-
luta de humilhar o povo domina-
do, pois expunha os corpos para
as aves de rapina, ao invés de
permitir a sepultura deles. O tri-
buto era cobrado com violência, e
nem mesmo uma moeda poderia
deixar de ser dada.

Além disso, para o horror dos ju-


deus, os romanos exigiam a acei-
tação e adoração dos seus estan-
dartes. Essa prática levou Pôncio Pilatos a colocar efígies do César às escondidas
dentro de Jerusalém, o que provocou intensa revolta por parte dos judeus, espe-
cialmente dos fariseus, conforme o relato de Flavio Josefo na Guerra dos Judeus.
(Livro II, 169-177).
1.6 A religião no Império

As divindades romanas não eram organizadas em um panteão, o que dificulta


catalogar o número e a hierarquia dos deuses. O grupo de deuses reconhecida-
mente importante era Júpiter, Juno, Marte, Vênus e Minerva, mas a lista de no-
mes de deuses romanos conhecidos é imensa e variável. Ao dominar sobre ou-
tros povos, Roma incentivava a adoração aos seus deuses, com criação de san-
tuários próprios, mas, como estratégia de domínio, permitia que a religião local
fosse praticada, inclusive delegando aos sacerdotes liberdade para resolver ques-
tões religiosas.

Isso seria um controle indireto, com os reis e os homens fortes nativos, mesmo
que tivessem que manter forças militares para o caso de revoltas. É por isso que
o Sumo Sacerdote de Jerusalém continuou com status e poder, apesar da domi-
nação
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estrangeira. Mas não havia nenhuma autonomia política e econômica.

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Em muitas cidades helenísticas, no entanto, em especial na Ásia Menor, muito


cedo se propagou o culto ao Imperador, considerado como Divinus desde Augus-
to César. Em algumas delas o culto imperial tornou-se mais importante que o
próprio culto do deus local. Nesse caso deve-se levar em conta as vantagens de
uma cidade em estar próxima de Roma. Isso aliviava no peso dos impostos e
trazia prestígio para a elite governante, que tornava-se grupo de influência entre
outras cidades.

O mais importante é perceber que as divindades romanas estavam presentes no


cotidiano, não somente em estátuas em seus templos, mas nas ruas, nos jogos,
nas ocasiões públicas, nos eventos especiais. Os deuses romanos eram cidadãos
pertencentes à cidade, participando de seus triunfos e derrotas e de seus rituais.

1.7 Conclusão

O império romano é um complexo de sistemas que envolviam tanto a diplomacia


quanto a guerra. Com seu domínio, as elites locais enriqueciam, enquanto os
pobres eram espremidos, especialmente agricultores campesinos, trabalhadores
braçais livres e pessoas vinculadas a culturas minoritárias, com os judeus, que
não participavam de diversas atividades do Império, como por exemplo, o exér-
cito, conforme iremos ver nas próximas unidades.

Algumas contradições marcam esse Império: (i) tinha uma diplomacia em con-
traste à violência na dominação; (ii) admitia a cidadania aos povos dominados,
apesar de desconfiar dos “bárbaros” (os diferentes); (iii) preconizava a tolerância
religiosa em geral, mas perseguiu a judeus e cristãos; (iv) respeitava os costu-
mes locais dos povos dominados, mas impunha o culto ao Imperador.
Nesse domínio, cujo controle central está na cidade de Roma e na figura emble-
mática (simbólica, diferenciada) do César e Kyrios (Senhor), é que os judeus
estão presentes, e de onde emergem os cristãos com sua nova mensagem. Um
cenário explosivo e irrequieto para todos.
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UNIDADE 2
A DOMINAÇÃO ROMANA NA PALESTINA NO SÉCULO I EC

2.1 Introdução

O domínio de Roma sobre Israel a partir de 63 AEC iniciou um grande período de


opressão, violência, revolta e grande morticínio de judeus na Palestina. Herodes
Magno foi colocado no poder por designação direta do senado romano. Militar, e
com o apoio do exército romano, Herodes levou três anos para chegar efetiva-
mente no poder, em 37 AEC. Daí em diante governou com mão de ferro e se
tornou o rei dependente favorito de César Augusto (Imperador entre 27 AEC e
14 EC). Herodes manteve a estrutura sacerdotal e o próprio Sumo-sacerdote ju-
deu como parte do seu regime. Construiu um palácio-modelo que se tornou pon-
to turístico para romanos e lugar de peregrinação para os judeus da diáspora de
cidades helênicas. Até o fim de seu reinado, em 4 AEC, ele realizou grandes
obras e inclusive deixou o Templo com nova estrutura, mais rica (obra que conti-
nuaria por longo período, mesmo após sua morte) e em estilo helenístico.

2.2 A situação da Galileia e da Judéia no século I EC

A morte de Herodes em 4 AEC não representou o fim do domínio romano na re-


gião, pelo contrário indicou as condições necessárias para a continuidade do do-
mínio. Na Judeia foi designado o governador Pôncio Pilatos, que logo se aproxi-
mou do Sumo Sacerdote, Caifás, inserido pelos romanos na condição de Sumo
Sacerdote, e devem ter tido um estreito relacionamento. Além disso, os romanos
permitiam o reinado de Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, na Galileia e
Pereia. Outro governador foi colocado em Samaria, para não haver lacuna de
poder na região.

No norte da Palestina, na região da Galileia, on-


de Jesus foi criado, encontramos uma área rica,
mas com muitas desigualdades, onde a maioria
da população trabalha para os ricos e nobres.
Ali, o povo simples é chamado de “am há’aretz”
(um termo que provém da literatura rabínica e
designa camponeses ignorantes, relapsos e
maus seguidores da Lei de Moisés), ou o povo da
terra, que eram os excluídos da religião oficial,
representada pelo Templo de Jerusalém, e mes-
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mo eram considerados pecadores pelos religio-


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sos mais radicais, como os fariseus. Mas de fato eles se mantinham fiéis à Torá2.
Ao sistema econômico, devemos também somar os saques dos exércitos roma-
nos, permitidos pelas autoridades. Caso uma tropa estivesse passando em um
local com plantações ou animais, tinha o direito de requerer a produção para
alimentar os soldados. Em geral nada deixavam para os agricultores e fazendei-
ros, que se vendo sem meio de subsistência, abandonavam o campo para tentar
sobreviver nas cidades maiores. Só em Jerusalém, o contingente de pessoas nas
ruas era bastante grande. Além disso, não era raro que os soldados praticassem
estupros em mulheres vivendo no campo, situação que causava vergonha e ódio
por parte dos judeus.

Horsley aponta que no caso dos camponeses judeus e galileus. Eles viviam em
pequenas comunidades semi-independentes, e eram a base econômica produtiva
do Templo de Jerusalém e seu sacerdócio. Eles representavam também a base
das cidades-capitais herodianas de Séforis e Tiberíades, na Galileia. Nestes luga-
res, o papel dos camponeses era entregar o produto em dízimos, impostos e tri-
butos para o sustento dos governantes: “Além disso, camponeses judeus e gali-
leus praticavam e desenvolviam a sua versão popular da tradição israelita que,
muito mais, do que a versão aceita em Jerusalém destacava histórias de liberta-
ção de dominações opressoras, de líderes populares como Elias e de ideais de
justiça da aliança” (HORSLEY, Richard. Jesus e o Império, p.45).

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Segundo Jurgen Roloff, “Em torno da virada do século II para o I foi promovida a rejudaização
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sistemática mediante a imigração de judeus fiéis à Lei. O objetivo era recuperar o território ori-
ginal da terra de Israel para o povo de Israel”. ROLOFF, Jurgen. A Igreja no Novo Testamento,
p.19.
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2.3 Os tributos na terra de Israel

Os tributos e impostos pagos a Roma eram


pesados e cobrados através de pessoas arre-
gimentadas da população local. No caso dos
judeus, os publicanos faziam essa tarefa, e
eram odiados exatamente porque eram ju-
deus, considerados colaboracionistas. Mas
também ficavam ricos com a coleta de impos-
tos, pois cobravam ágio das pessoas que devi-
am muito. O principal era o (i) tributum capi-
tis, cobrado sobre homens e mulheres de 12 a
65 anos. Mas não era só esse tributo que os
judeus pagavam; dois outros se impunham
sobre a população: o (ii) imposto do Templo,
para garantir sua reconstrução e o sustento da
família sacerdotal (fora o Dízimo e o Imposto
das Primícias, para manter o culto), e o (iii)
imposto do Rei, para manter a nobreza jerusa-
lemitana. E outros (iv) impostos menores afli-
giam a população da Síria e Palestina, dentre os quais estão o imposto do sal, da
propriedade, os pedágios e a corveia (trabalho forçado).

2.4 A reação dos judeus à dominação

Tanto os judeus da Galileia quanto os da Judéia sentiam a opressão com muita


revolta e desejo de mudar a situação. Movimentos de rebelião e insurreição eram
comuns, mas todos abafados com muita violência pelos romanos, o que tornava
o povo temeroso e muitas vezes retraído. A história registra uma violenta revolta
comandada por Judas, o Galileu, em 4 AEC. Os anos seguintes testemunharam
uma Galileia relativamente calma, pelo menos até 66 EC, no período da Guerra
Judaica, uma das maiores resistências dos judeus contra Roma, que terminou na
destruição de Jerusalém em 70 EC, pelo general Tito.

Nesse ambiente, a população, muitas vezes impedida até de trabalhar, tinha


quatro opções: (i) sair do país e engrossar o número de judeus na Diáspora; (ii)
optar pela mendicância, pois eram protegidos pela Torá; (iii) tornarem-se ladrões
e sequestradores, com risco de serem crucificados, caso fossem pegos; e (iv)
retirarem-se para o deserto, se juntando aos grupos que seguiam líderes caris-
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máticos e que aguardavam a chegada do Messias num nível mais político do que
religioso.
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2.5 Instituições religiosas na terra de Israel

O principal sinal da religiosidade judaica era expresso pelo monoteísmo, cuja


tradição pode ser datada do exílio babilônico. Alguns autores falam de “judaís-
mos”, pois as diferentes vertentes da religião oficial coexistiam nesse período.
Três pilares de expressão religiosa podiam ser notados:

O Templo: não era apenas o lugar determinado para o culto sacrificial, mas era
considerado na época o centro vital do povo em todos os âmbitos da vida, tanto
no âmbito político-habitacional como do religioso-social. Apenas para ilustrar, na
festa da Páscoa a população da cidade se multiplicava de 30.000 para 180.000,
por conta dos peregrinos que afluíam de toda a Palestina e da Diáspora. É im-
possível pensar a religiosidade judaica antes do ano 70 EC sem associá-la ao
Templo. Mas outras instituições concorriam paralelas:

As sinagogas: com evidências arqueológi-


cas datadas da segunda metade do século
III AEC, são denominados em hebraico
como knesset, termo traduzido em grego
por synagogé, que significa “reunião” ou
“comunidade”, sendo então o prédio para
tal atividade. Os judeus da Diáspora usa-
vam o termo proseuché (lugar de oração)
para designar esse local (na Bíblia aparece
em At 16.16).

Em Israel, as reuniões nas sinagogas ti-


nham a função da leitura em voz alta da
Torá e do ensino dos mandamentos, inclu-
sive para meninos, mas também serviam
para hospedar estrangeiros, judeus pere-
grinos. Reuniões de cunho jurídico-
administrativo também podiam acontecer
ali. A estrutura da reunião devia ser a
mesma que acontece até hoje: a leitura de
um trecho da Torá, seguido da leitura de um haftarah (um trecho dos profetas) e
um comentário rabínico, segundo a tradição da Torá Oral.

Casa/família: a família tinha um papel primordial para a manutenção da religiosi-


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dade judaica. Em especial a forma como organizava o tempo, as orações diárias,


o estudo da Torá e, em especial, as prescrições de pureza e alimentação e as
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estratégias endogâmicas de casamento. Os salmos 1, 19 e 119 expressam essa


piedade familiar, que remete a antigas tradições de Israel.

2.6 O imaginário popular

Considerando a situação sócio-política, as condições precárias de vida para a


maior parte da população e o fundo religioso da Palestina do primeiro século, fica
evidente que, no surgimento de grupos de cunho político e religioso no imaginá-
rio judaico popular, dois as-
pectos se destacavam: a pu-
reza ritual e o apocalipsismo.

A pureza ritual servia como


filtro que abrangia todos os
aspectos da sociedade em
termos de preservação da
identidade (devido à presença
de não-judeus na região por
força da dominação estran-
geira com suas estruturas
pagãs e semipagãs). Estas
pressionavam a estabilidade
religiosa afetando aspectos
da alimentação e da sexuali-
dade. Os grupos que mais
levavam a sério a questão
eram os fariseus e essênios.

O Apocalipsismo surgiu no
século II AEC como fenômeno
de dissidência, como salvação
que acontece além da história, por causa da impotência dos oprimidos diante de
uma situação de crise social, daí eles projetarem para o futuro (num sentido es-
catológico) a salvação plena, enquanto no presente acontecem terríveis catástro-
fes. Fala-se então de uma mudança radical das coisas.

De forma resumida, foi esse imaginário que possibilitou a forte resistência dos
judeus e dos galileus contra os romanos e os colaboracionistas, até porque esta-
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va entranhado na tradição israelita.


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2.7 Movimentos religiosos


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Algumas teses apontam que, antes do século I EC determinados grupos tenham


se originado de um movimento apocalíptico denominado “hassideus”, mas não
há dados comprobatórios. Alguns desses grupos são mencionados na Bíblia, co-
mo os fariseus, e são conceituados por Stegemann como grupos de desviância
segundo a teoria que “descreve o processo da formação de desviância em cone-
xão com situações fundamentais de crise nas sociedades, bem como a formação
de grupos como parte de uma “carreira de desviância” em que a exclusão inicial
como divergente é neutralizada.” Isso significa que esses grupos se destacaram
da massa da religiosidade judaica pré-70 EC, que tinha fortes elementos helenís-
ticos (STEGEMANN, Wolfgange, Ekkehard. História social do protocristianismo,
p.179).

a. Os fariseus: movimento leigo originado da resistência contra o esvaziamento


dos ideais religiosos tradicionais do judaísmo por parte da realeza sacerdotal se-
cularizada; esse movimento era composto por gente de todos os círculos e ca-
madas da população, mas predominantemente por comerciantes e artesãos, e
apenas seus líderes eram escribas. Seu nome deriva do hebraico “paroshim”, que
pode significar os separados, no sentido daqueles que buscam a pureza para
servir a YHWH.

Em termos de doutrinas, acreditavam numa “sinergia” entre Deus e os homens;


na ressurreição dos justos e na punição dos maus; acrescentavam Tradição Oral
(Haggadah e Hallakah) à Torá mosaica; estavam próximos do povo simples e
tinham seu respeito; honravam os antigos e buscavam ter comunhão entre si.

b. Os essênios: Grupo sobre o qual se conheceu mais a partir da descoberta dos


Manuscritos do Mar Morto, com a comunidade de Qumran, os essênios foram
mais radicais que os fariseus. Tudo indica que era um grupo muito sectário, fe-
chado, descendente de famílias sacerdotais –e por isso separada dos leigos-
descontentes com o rumo das coisas em Jerusalém, e que teria se retirado para
o deserto ainda no
século 2 AEC.

A comunidade de
Qumran entende-se
como completamente
separada no mundo,
“os filhos da Luz”, que
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foram colocados por


Deus para lutar contra
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“os filhos das Trevas”,

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lançando as bases para a luta contra o Império Romano. Para eles a salvação se
dava mediante a filiação ao grupo, aos banhos batismais semanais, e ao segui-
mento do Mestre da Justiça, o líder do grupo.

Sua doutrina era influenciada por elementos judaicos e helênicos: declaravam


que tudo é determinado por Deus; que a alma é imortal; possuíam livros secre-
tos, gastando tempo com a literatura dos antigos; era uma comunidade separa-
da, e seu ensino era secreto; e o ideal da comunidade era a divisão de bens e
até vida celibatária.

c. Os saduceus: ao contrário dos grupos anteriores, os saduceus não são exata-


mente um grupo de contestação, tendo em vista sua origem histórica. Os sadu-
ceus surgiram de círculos sacerdotais favoráveis às linhas de governo dos sumos
sacerdotes hasmoneus, e que tinham o Templo como centro da religião israeli-
ta, pois viam nessa estrutura seus ideais nacionalistas-particularistas, que asse-
gurava seu status e poder. Seu nome se deve ao sacerdote Sadoque, pois o gru-
po se considerava seus sucessores.

Por isso mesmo logo se mostraram inimigos dos fariseus e porque não dizer dos
essênios, apesar de pouco sabermos deles teologicamente. A informação sobre
eles é de fonte indireta e por isso mesmo marcada por preconceito e um olhar
“de fora”. No entanto, é notório que era um grupo conservador e ortodoxo em
suas crenças e posturas. Acreditavam acima de tudo na unidade de culto, nação,
terra e história.

Sua doutrina baseava-se na crença de que o ser humano faz o seu destino; a
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negação do além, bem como da ressurreição dos mortos e prêmio após morte;
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atentavam apenas para a Torá escrita, rejeitando toda a Torá Oral; estavam li-

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gados às classe superiores; e tinham uma cultura do conflito, questionando seus


mestres e sendo rudes uns com os outros.

2.8 Movimentos políticos e de resistência

Ao mesmo tempo que os muitos movimentos religiosos, alguns obscuros, outros


mais famosos cresciam em Israel, crescia também o número de movimentos or-
ganizados que não tinham uma real preocupação religiosa, mas acima de tudo
política, dentro do imaginário religioso dos judeus do primeiro século.

a. Os sicários: provavelmente surgiram em Jerusalém por volta do ano 50 EC.


Seu nome era derivado da lâmina curva que usavam, os sicarii. Com essas lâmi-
nas promoviam atos revolucionários com uso de violência que lhes deram a fama
de “homens do punhal”. Os sicários se colocaram contra toda a dominação ro-
mana e a subserviência das elites, usando de assassinatos e sequestros furtivos.
Alguns consideram que eram, na verdade, atos reacionários contra os romanos.
O principal alvo desse grupo era a camada superior dos sacerdotes e por isso sua
atuação se dava mais nos arredores de Jerusalém.

Outros grupos de bandidos sociais, não reconhecidos como sicários, atuavam


mais nos campos e longe das cidades, atacando as caravanas romanas que
transportavam dinheiro oriundo dos tributos a César, bem como caravanas de
ricos que exploravam a mão de obra local, mas que se deu a partir de 44 EC.

b. O grupo dos zelotes: Eles são mencionados pela primeira vez no ano de 66 EC
como escolta armada do sicário Menaquém, quando este retornava de forma
triunfal para Jerusalém reinvidicando sua realeza. Seu nome se deve ao fato de
se considerarem zelosos da lei de Deus, como também da revolta dos macabeus.
Mas não se pode afirmar seguramente se eles existiam como grupo antes de 66
EC.
Eram considerados a parte mais radical da revolta judaica, pois lutavam aberta-
mente com os romanos, e foram decisivos na guerra judaica de 66-70 EC, pois
se aquartelaram no Templo e lá ficaram muito tempo protegidos dos soldados. A
única indicação de zelote anterior a 66 EC é o nome do discípulo de Jesus: Simão
Zelote (Lc 6.15; At 1.13), que viajou da Galileia com o mestre. Possivelmente
isso indicaria a pré-história dos zelotes na Galileia.

2.9 Conclusão
18

A dominação romana na região da Síria e Palestina, onde está hoje Israel e seus
vizinhos, foi marcada pela exploração, conflitos e desigualdades sociais. Dentro
Página

desse contexto a mensagem de um messias libertador era amplamente divulga-

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da, e os seguidores de pessoas com esse perfil eram numerosos e capazes de


atos de resistência, inclusive pela violência. Essa situação explodiu na guerra ju-
daico-romana, que mudou completamente o modo de vida judaico nesta região,
como veremos na próxima unidade.

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UNIDADE 3
OS JUDAÍSMOS APÓS 70 EC

3.1 Tensão política e destruição do Templo

Segundo diversos pesquisadores, não se pode falar em um judaísmo único no


século I EC ou o que se chamaria de um judaísmo normativo. De fato, alguns
elementos eram agregadores, como visto na unidade 2, mas não havia uma ofi-
cialização que tornasse a prática judaica uniforme. A própria existência de diver-
sos grupos, testemunhados pelo Novo Testamento e por escritores extra-bíblicos
como Flavio Josefo, confirmam isso. E a destruição do Templo, como resultado
de Guerra Judaica de 66-70 EC, trouxe uma série de mudanças significativas pa-
ra os piedosos palestinenses (afetando não apenas os judeus, mas igualmente os
cristãos). Agora, os grupos não apenas convivem, mas disputam a hegemonia
diante da queda da religião sacerdotal.

A Guerra Judaico-romana ou Judaica foi resultado de um período de tensão entre


os judeus e os dominadores romanos. No fim da década de 30 EC, o governo de
toda a região foi transferido para Agripa I, neto de Herodes Magno (provavel-
mente porque facilitava o controle romano sobre a Palestina), que se mostrou
habilidoso na diplomacia com os césares, ao mesmo tempo em que tinha sensibi-
lidade para com as necessidades da população judaica. Sua morte em 44, po-
rém, fez com que a Palestina vol-
tasse para o governo dos procura-
dores romanos.

De 44 a 60 EC, houve um aumento


substancial na exploração econômi-
ca, a tensão religiosa-cultural entre
judeus e helenistas nas cidades
maiores, violação de direitos religi-
osos judaicos, a agressividade das
autoridades romanas, além do forte
crescimento dos movimentos de
libertação judaicos. Tudo isso so-
mado foi como um estopim num
barril de pólvora, que realmente
explodiu, com a guerra. O general
aposentado Vespasiano foi chama-
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do por Nero para conter a rebelião,


e começando da Galileia, que ele
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arrasou, chegou a Jerusalém para

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um cerco que durou dois anos. Durante esse tempo, ele foi chamado a Roma,
onde tornou-se Imperador, e deixou seu filho Tito comandando as tropas de cer-
co. Ao fim de um período de grande morticínio e desespero, acabou por entrar na
cidade, e destruiu o templo completamente, como demonstração de força.

3.2 Depois da destruição: observância da Lei e formação do Canon

Do ponto de vista político, a partir daí a vida para os judeus na Palestina tornou-
se pior do que para os que viviam na Diáspora. Foram exigidos impostos novos e
mais severos, e com a 10ª Legião estabelecida em Jerusalém, mais recursos
eram necessários. Tanto as classes superiores quanto as inferiores foram afeta-
das, o que aproximou os grupos sociais, mantendo, no entanto, as diferenças
ideológicas e de crenças.

Dentre as mudanças ocorridas pelo fim do Templo, destacam-se o fim do sacrifí-


cio cultual, bem assim os deveres e práticas religiosas vinculadas ao mesmo
Templo de Jerusalém. Mais importante ainda, o ministério sacerdotal perdeu sua
função, tornando-se obsoleto. Os saduceus, por exemplo, pouco a pouco foram
deixando de existir. Abria-se as-
sim um vácuo de poder e autori-
dade religiosa no ambiente pa-
lestinense.

Essa quebra exigiu novas respos-


tas, que culminaram na forma-
ção de um judaísmo mais voltado
para observância da Lei como
princípio de vida, e menos de-
pendente de preceitos rituais li-
gados ao Templo. Importante
para isso foi o papel dos sábios e
dos mestres da lei, grupo que
passou a se destacar a partir daí.
Esse período é conhecido como o
nascedouro do “judaísmo rabíni-
co” ou “judaísmo clássico”. Ou no
dizer de alguns, o “judaísmo
formativo”; Andrew Overman
chega a afirmar que há uma
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substancial diferença entre dois:


“a evolução do judaísmo formati-
Página

vo para o rabínico foi um proces-

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so histórico prolongado e complexo que ocorreu ao longo de um período de vá-


rias centenas de anos.” (OVERMAN, Andrew. O Evangelho de Mateus e o Judaís-
mo Formativo, p.14)

Alguns grupos se destacaram a partir de 70, em especial os fariseus e os escri-


bas. Estes tornaram-se, em última análise, os coletores da tradição oral e res-
ponsáveis pelo registro escrito da Torá Oral, que seria depois denominado
Mishná. Ela continha a halaká, a explicação sobre a Lei, e a haggadá, a interpre-
tação das narrativas dos patriarcas e do povo de Israel, presentes na Torá, e
bem assim dos Nebîim (profetas). Esse foi o período em que os sábios também
decidiram fechar o cânon judaico: até ali eles só tinham fechado a Torá e os Ne-
bîim.

Motivados pela crise perpretada pelos romanos e o mundo helênico, por um lado,
e pelo conflito com os cristãos, por outro, os sábios judeus reuniram-se no norte
da Palestina, na cidade de Jâmnia (alguns falam em Jabne) e concluíram o câ-
non, pelos idos dos anos 90 EC. O critério fundamental estabelecido por eles foi:
língua sagrada, terra sagrada, doutrina sagrada.

(i) O primeiro critério estabeleceu


que apenas textos em hebraico
seriam considerados inspirados. O
aramaico, língua trazida pelos per-
sas no período do exílio e pós-
exílio, também foi aceito, com isso
o livro de Daniel foi admitido como
inspirado. Assim, os textos em
grego, do período helenístico, fo-
ram rejeitados. (ii) O segundo cri-
tério toma por base que apenas
textos originalmente escritos em
Israel poderiam ser considerados
inspirados. Temia-se a contamina-
ção com o pensamento helenista.
Isso explica porque muitos textos
encontrados em Nag Hammadi
(ver Módulo 5 – unidade 3) fica-
ram de fora do cânon judaico. (iii)
Finalmente, os sábios definiram
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que a doutrina dos textos teria que


condizer com a Torá, bem como os
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profetas; qualquer assunto que contrariasse abertamente os textos já canoniza-


dos foi rejeitado como apócrifo.

Assim nasceu, no fim do século I EC, o cânon judaico que persiste até hoje, e
que depois foi adotado pelos protestantes a partir da proposta de Lutero, com
algumas diferenças na organização. Essa definição por parte dos sábios judeus
consolidou o processo de diferenciação entre eles e os cristãos, principalmente, a
ponto de decidirem excluir os
cristãos de sua convivência,
através da bênção do Birkat
ha-minim, que faz parte da
Oração das Dezoito Bênçãos,
sendo esta a 12ª.

3.3. O conclave de Jâmnia

Os pesquisadores Ekkehard e
Wolfgang Stegemann mostram
que essa oração, associada ao
grupo de Jâmnia pelos anos 90
EC, foram uma forma de sele-
ção dentre os frequentadores
das sinagogas. Ela não foi ne-
cessariamente dirigida para os
cristãos como tais, mas para
praticantes judaicos que agiam
de forma considerada indevida
(dentre eles os seguidores de Jesus). O Talmude Babilônico tem a seguinte ver-
são:

Para os caluniadores não haja esperança, e todos os que agem perversa-


mente sejam destruídos num piscar de olhos, que em breve sejam todos
exterminados. Os insolentes, arranca-os logo pela raiz, esmaga-os, faz
com que caiam e os humilha já em nossos dias. Louvado sejas tu, Senhor,
que despedaças os inimigos e humilhas os insolentes.

A versão palestina tem algumas diferenças importantes:

Para os caluniadores, porém, não haja esperança, e o governo perverso se-


ja logo eliminado em nossos dias, e [os nozrim (nazarenos) e] os minim
23

(hereges) sejam destruídos num piscar de olhos, apagados do livro da vida


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e não sejam relacionados juntamente com os justos. Louvado sejas tu, Se-
nhor, que humilhas os insolentes.

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O texto evidencia que os judeus nesse período queriam a pureza, ou pelo menos,
uma definição de grupo mais homogênea. Essa oração forçava as pessoas que
pensavam diferente a se autoexcluir da sinagoga. Diversos segmentos, dentre
eles os cristãos, devem ter deixado de frequentar os cultos sinagogais (o número
de sinagogas na Palestina cresceu muito depois da destruição do templo e aca-
bou se tornando o locus primordial da ação cúltica). Concretamente, ela impedia
que os “hereges” atuassem como liturgos na sinagoga, mas não impedia nin-
guém de ser judeu, até porque a identidade judaica dependia de outros fatores,
definidos pela halaká (STEGEMANN e EKKEHARD. História social do protocristia-
nismo, p.267-269).

Com esse conclave de Jâmnia surgiu o que se chamou de “academia rabínica”,


nos moldes das escolas farisaicas, mas sem identificarem-se como tais. No sécu-
lo II, esses líderes foram para a Galileia onde se firmaram como centro da espiri-
tualidade judaica. Provavelmente é com grupos desse tipo que algumas comuni-
dades cristãs tiveram embates, conforme veremos na próxima unidade.

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UNIDADE 4
AS COMUNIDADES CRISTÃS NA PALESTINA

4.1 Visão Geral

As comunidades cristãs da Palestina foram, de fato, formadas a partir dos pri-


meiros grupos de seguidores de Jesus. As igrejas que surgiram a partir da morte
e ressurreição de Jesus nasceram desses grupos, e em sua maioria eram forma-
dos de judeus que enxergaram na pregação e na pessoa de Jesus de Nazaré o
Messias que restauraria o reino a Israel (cf. At 1.6). Por outro lado, havia discí-
pulos ligados a João Batista que acabaram seguindo a Jesus, como aparece no
relato de Jo 1.35ss. Assim, em maior ou menor grau entende-se que o cristia-
nismo palestinense é marcado pela sua ligação com o judaísmo, daí os conflitos
sobre o sábado e outras prescrições da Lei. Por isso alguns o denominam como
cristianismo judaico. As matizes dependem da localização e época, e de algum
modo é possível perceber isso nos textos dos Evangelhos e Atos dos Apóstolos.

Considerando a topografia e a divisão política do período romano, temos três


grupos interagindo com o judaísmo, bem como com as autoridades romanas: na
Judeia, (i) a comunidade de Jerusalém, liderada por Tiago, irmão de Jesus (cf. Gl
1.19), e a comunidade joanina na Transjordânia; (ii) na Galileia, as comunidades
remanescentes da pregação de Jesus de Nazaré; e (iii) na Síria, a comunidade de
Antioquia, que desde cedo tornou-se uma igreja com forte apelo missionário.

4.2 Os primórdios: o seguimento de Jesus pelo discipulado

A maneira como Jesus reuniu seu grupo de seguidores foi uma novidade em re-
lação aos outros mestres de seu tempo. (i) O chamado foi uma iniciativa de
Jesus para com os discípulos, sendo ele quem tomava a iniciativa, enquanto os
rabinos agiam de forma oposta: os discípulos escolhiam seu mestre. Ele mesmo
saiu conclamando pessoas para o seguirem, o que explica a reação de Jesus
àquelas pessoas que desejam segui-lo, colocando uma série de obstáculos ao
seguimento (Lc 9, 57-62). A tradição evangélica exemplifica alguns desses cha-
mados, mas certamente não o esgota. Acredita-se que os primeiros discípulos de
Jesus tenham saído do círculo de João Batista, aos quais com o tempo outros
foram se integrando. Na verdade o círculo de discípulos de Jesus foi bastante
grande, reunindo homens, mulheres e crianças (Lc 8.1).
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Por que Jesus chamou pessoas para o seguirem? A tradição dos evangelhos
aponta para o desejo de formar o novo povo de Deus, que iria continuar e ampli-
ar o projeto de Israel. Stegemann comenta: “fica claro que se trata aí da incum-
bência da participação na atuação de Jesus em favor do reinado iminente de
Deus e, assim, do ingresso numa comunhão de vida e de destino com Jesus,
marcada pelo reinado de Deus.” Em termos negativos, esse chamamento exigia
o abandono das famílias – em eventualmente, o abandono temporário também
das esposas – e a renúncia total aos vínculos socioeconômicos (Mc 1.16-20,
10.25, Lc 9.57-62, Mt 8.19-22, Lc 14.26, Mt 10.37). Positivamente, significava o
próprio chamado a fazer parte do círculo dos doze, ao “seguimento”, pela eleição
para “estar com” Jesus e também pela participação na sua forma de vida “vaga-
bundante”. Com isso, participavam também da missão de Jesus, podendo inclu-
sive serem enviados para cumprir missões ainda durante o ministério de Jesus
na Galileia e arredores (Mc 6,7-13). (STEGEMANN e EKKEHARD. História social
do protocristianismo, p.228).

Importante e inovador no movimento de Jesus é (ii) a situação da mulher.


Esse fenômeno indica um claro substrato histórico a respeito do assunto, pelo
fato de que na sociedade do tempo de Jesus as mulheres, especialmente dos
grupos mais pobres, não tinham espaço público efetivo, e mesmo quando exerci-
am liderança, na maioria absoluta dos casos o faziam nos bastidores, a partir de
sua casa. A tradição evangélica acabou por incorporar uma linguagem patriarcal,
em que os doze são homens, e dificulta em muito a visão de mulheres influenci-
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ando e liderando na comunidade cristã inicial.


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Emblematicamente, no entanto, os evangelhos estão repletos de relatos onde as


mulheres aparecem em papéis não típicos, o que pode apontar para a novidade
do relacionamento de Jesus com elas. Ele foi ungido por uma mulher (Mc 14.3-
9), ensinou-as diretamente, como algo normal (Lc 10.38-42), além de intervir
numa provável execução sumária por apedrejamento (Jo 8.1-113). Além disso,
Jesus utilizou o universo feminino para ilustrar seu ensino, numa cultura an-
drocêntrica (relativo à centralidade e superioridade do masculino sobre o femini-
no). Com isso, Jesus inovou a questão da mulher na sociedade, pois cada refe-
rência explícita faz com que as mulheres sejam visíveis e dessa forma tematiza
obrigatoriamente o seu valor, contra todos os dogmas básicos da cultura patriar-
cal.

Mas a principal marca da presença feminina no movimento de Jesus é a tradição


de todos os evangelhos (inclusive João) de mostrar Jesus se manifestando pri-
meiro para as mulheres, após a ressurreição, e só depois para os discípulos ho-
mens. Com isso, a tradição deixou transparecer a importância das mulheres no
movimento de Jesus.

Do grupo maior foram selecionados doze para estar mais próximo deles, que ao
serem enviados, passaram a ser conhecidos como (iii) apóstolos (por causa do
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3
Esse texto não faz parte dos manuscritos mais antigos do evangelho de João, mas muito cedo foi
considerado coerente com a tradição oral a respeito de Jesus, por isso foi incorporado à redação
final do evangelho.
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verbo apostellein, que quer dizer “enviados”, e depois se tornou um substanti-


vo). De fato esse círculo deve ter sido organizado pela igreja posterior, e não
pelo Jesus histórico, tendo em vista que ele na verdade pregou a igualdade e o
serviço, tanto dele mesmo quanto dos discípulos (Mc 10.35-45). Na verdade isso
faz parte do processo normal da institucionalização do carisma, em que a auto-
compreensão da comunidade determina a forma como ela vai se organizar. Nes-
se sentido, os doze apóstolos irão substituir as doze tribos de Israel, e formar um
novo centro de comunhão em relação a Israel.

A definição do batismo e da ceia do Senhor como elementos vinculadores da co-


munidade faz parte desse processo, no sentido simbólico-espiritual. (iv) O ba-
tismo tem primordialmente uma função identificadora, pois nele os novos con-
vertidos serão integrados na comunidade, e “são declarados como propriedade
dele e colocados sob seu poder”. (STEGEMANN, 2004, p.250) Em síntese, o ba-
tismo tem três sentidos: (i) apontava para o arrependimento para a remissão de
pecados; (ii) realizava a ligação do batizando com Jesus, pois ali ele era invoca-
do; (iii) e colocava o batizando na promessa do Espírito Santo, de acordo com a
síntese de At 2.38. O acesso ao grupo pelo batismo, aliás, deve ter sido um ele-
mento que denotou, aos olhos dos demais judeus, de que o grupo seguidor de
Jesus Cristo estava iniciando uma hairesis (seita), por se assemelhar ao grupo de
João Batista e à comunidade de Qumran.

28

(v) A ceia está vinculada aos primeiros discípulos de Jesus e era a marca de seu
Página

encontro com as pessoas em suas casas. Provavelmente Jesus observava o ritual


judaico da berakha (bênção) sobre o alimento, seguido de um momento de kid-
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dush (ações de graças, gr. eucharistía) sobre o último cálice, de modo ritual e
piedoso. Desse modo, o que a comunidade cristã faz é dar uma ressignificação
aos costumes religiosos judaicos praticados nas refeições, e não criar um novo
culto. Posteriormente, a igreja passou a assinalar este momento como um marco
de fé, especialmente a partir da última ceia e de seu significado teológico. Uma
expectativa escatológica passou a ser incorporada a ela (cf. Lc 22.14-23) e a
igreja confirma essa expectativa até aos dias de hoje (e em acordo com a tradi-
ção paulina de 1 Co 11).

4.3 A comunidade de Jerusalém

Há uma tendência de quem lê Atos dos Apóstolos em achar que a Igreja de Jeru-
salém era uma estrutura bem organizada, em que tudo funcionava perfeitamente
e que só teve alguns problemas que conseguiu solucioná-los. Isso se deve, em
especial, pelo texto de At 2.42-47, um dos mais populares em estudos bíblicos
quando se pretende tratar da essência da Igreja. Problemas exegéticos à parte, o
fato é que a memória registrada por Lucas em Atos foi escrita anos depois do fim
dessa comunidade, que deixou de existir durante a guerra judaico-romana.

Certamente a comunidade de Jerusalém contou com um colégio de líderes, den-


tre os quais Tiago, Pedro e João destacavam-se como “colunas”. O concílio que
se realizou ali, segundo Atos 15, pode não ter tido efeito prático sobre as comu-
nidades cristãs na diáspora, mas demonstra a importância que a comunidade
teve como espaço para refletir sobre o papel do Evangelho no mundo. Não se
pode falar, no entanto, que as comunidades conviviam sem conflito; pelo contrá-
rio, a Epístola aos Gálatas demonstra uma tensão bastante forte entre Jerusalém
e Antioquia.

Mas não se deve


falar ainda numa
consciência de ser
Igreja nesta co-
munidade; era um
grupo de judeus
piedosos, crentes
em Jesus, o Cristo,
que anunciavam a
ressurreição e a
proximidade da
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chegada do reino
de Deus e do juí-
Página

zo. Não muito

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mais que isso. Do ponto de vista da tradição, a comunidade de Jerusalém reafir-


mou a importância do círculo dos Doze, ao qual Jesus teria se manifestado após
a ressurreição, continuando a missão que lhes dera anos antes, quando os sepa-
rou para seguirem-no desde a Galileia.

As evidências nos evangelhos apontam que João também era líder por lá, mas
que aos poucos ele deslocou-se com seus discípulos para a transjordânia, num
projeto de comunidade mais específico. Dessa comunidade nasceu o Evangelho
de João, e que se deslocou para o norte por força da situação na guerra judaico-
romana, até chegar a Éfeso, já no fim do século I EC.

4.4 A comunidade da Galileia

A Galileia, cenário do ministério de Jesus durante um bom tempo, certamente


não deixou de ter discípulos após Jesus ir para Jerusalém, quando foi executado.
De fato, os evangelhos de Marcos e Mateus demonstram que a liderança retor-
nou para lá após a aparição do ressuscitado. Tudo indica que nem todos os após-
tolos voltaram, pois um núcleo permaneceu em Jerusalém para liderar a comuni-
dade que nasceu lá.

Essa comunidade, ou comunidades, que se


mantiveram na Galileia, devem ter sido res-
ponsáveis por três grandes legados dos ensinos
e feitos de Jesus: o material de Q, Marcos e
Mateus. As pesquisas que foram realizadas com
relação a Q demonstram que por trás deste
material deve ter havido uma comunidade que
preservou a tradição dos ditos de Jesus. Com
exceção de uma narrativa de cura, a fonte Q só
tem ensinos. Para os crentes galileus das pri-
meiras décadas depois da ressurreição, impor-
tante era recordar o que ele ensinou, porque
sua vida ainda era bem lembrada. A comunida-
de de Marcos viveu o terror da Guerra Judaica,
e o Evangelho reflete essa crise. E a comunida-
de de Mateus representa um grupo que sobre-
viveu à guerra, mas estava diante do impasse
do judaísmo pós-70. O que significa agora ser parte de Israel? Essas questões
serão aprofundadas no próximo módulo.
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4.5 A comunidade de Antioquia

A cidade de Antioquia era uma das grandes cidades do Império Romano, só per-
dendo em tamanho para Roma e Alexandria, e capital da província da Síria. Pon-
to de convergência para várias rotas comerciais, sua localização privilegiada for-
talecia sua importância. A população girava em torno de 150 a 200 mil pessoas,
mas a área da cidade era de apenas 3km2, o que fazia que a densidade popula-
cional fosse muito alta (205 pessoas por acre. Bombaim tem 183 e Calcutá 122).
Essa falta de espaço levava as pessoas a conflitos regularmente, pois o melhor
espaço (no centro) era da elite, junto dos muitos edifícios públicos que caracteri-
zavam uma cidade romana, como biblioteca, anfiteatro, banhos, circo, e vários
templos. Socialmente a cidade era dividida entre a elite, que correspondia a 5 a
10% da população, e a não-elite, e era dirigida por um legado romano.

A comunidade cristã de Antioquia era mista - composta de judeus e gentios - e


marcada pelas fronteiras ocidente-oriente / judeu-grego / urbano-rural. Além
disso, aparenta ter uma importância para as lideranças apostólicas, tendo sido
palco de um confronto entre Pedro e Paulo (Gl 2).

Sua origem é modesta, fruto de uma expansão do cristianismo nascente por toda
a Síria, Fenícia e Chipre (At 11.19). Aliás, o relato de Atos dos Apóstolos aponta
para uma grande importância missionária da comunidade cristã desta cidade. Os
indícios do livro apontam para Antioquia como sede missionária das viagens de
Paulo e Barnabé (At 13), e pode ser inclusive a sede da comunidade que originou
a obra Lucas-Atos.

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UNIDADE 5
AS COMUNIDADES CRISTÃS NA DIÁSPORA

5.1 O cristianismo mediterrâneo

Quando falamos no cristianismo mediterrâneo, não há como ignorar a influência


e importância do apóstolo Paulo para essa região. Por isso, alguns o denominam
de cristianismo paulino. Esse tipo de cristianismo se caracteriza por quatro fato-
res fundamentais:

a) Expansão rápida pelas rotas comerciais: o fato dos romanos dominarem todo
o Mediterrâneo e as nações ao seu redor foi um aliado para o rápido e constante
crescimento e divulgação do cristianismo. Os militares combatiam tanto os salte-
adores de estrada quanto os piratas marítimos, e a administração romana era
responsável por cuidar das estradas, facilitando o deslocamento de pessoas e
grupos.

b) O Projeto Missionário de Envio: segundo o relato de Atos 13.1ss, que parece


remontar a uma prática constante das comunidades cristãs fora da Palestina. Ao
contrário da Igreja Judaica, que permanecia em si mesma, mantendo as tradi-
ções, a Igreja Paulina tem por meta alcançar as nações fora de Israel, anuncian-
do Jesus Cristo como salvador de todas as pessoas.

c) Experiência do trânsito religioso (Cristianismo gentílico): a facilidade de circu-


lação de pessoas gerava também a circulação de ideias e de elementos religio-
sos, como crenças, deuses e ícones. Na cidade de Éfeso, por exemplo, funciona-
va um culto muito difundido da deusa Diana Efésia, que provocava uma intensa
peregrinação e consequentemente um comércio na cidade. Nesse contexto, a
difusão do cristianismo foi apenas mais um tipo de religião dentre tantas outras.
Nas primeiras décadas, e durante o ministério de Paulo, a única questão em tor-
no dele que o tornava perigoso para o Império era o atrito com judeus locais.
Somente no fim do século I EC é que outras acusações graves foram efetivadas
contra os cristãos. O episódio da perseguição de Nero, por volta do ano 60 EC,
deve ser visto como ato isolado, pois só atingiu os cristãos da cidade de Roma, e
não do império como um todo.

d) Conflito com Jerusalém: o cristianismo defendido por Paulo foi muito combati-
do pelos cristãos palestinenses, especialmente aqueles sediados em Jerusalém.
Os principais pontos de contenda parecem ser aqueles que envolviam a obser-
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vância restrita da Lei, como a pureza dietética, a circuncisão e a separação dos


não judeus. Paulo combateu essas posturas. Curioso é que não há nada relacio-
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nado ao sábado nos embates, provavelmente porque o próprio Paulo o observa-


va.
Paulo é considerado por muitos o “inventor do cristianismo”, seja por sua ativi-
dade missionária, seja pela influência de seus escritos, o que é muito discutido
hoje. Isso se deve principalmente porque o movimento querigmático da igreja
foi bastante fragmentário, enquanto que

“A missão paulina é a única sobre a qual dispomos de algumas informações


diretas; mas a formação de outros grupos, com frequência (sic) também
muito diferentes, não pode ser posta em dúvida, mesmo que possa ser re-
construída apenas por meio da análise crítica de materiais posteriores e de
informações em geral fragmentárias”. (KOESTER, Helmut. Introdução ao
Novo Testamento 2, p.110)

Uma síntese da formação de Paulo é feita por ele mesmo em Fp 3.5-6 (e reafir-
mado em 2 Co 11.22; Gl 1.14; 2.15). De acordo com essas fontes, Paulo era
descendente de uma família israelita da tribo de Benjamim, foi circuncidado ao
oitavo dia, teve uma rigorosa educação judaica, sendo depois membro do grupo
dos fariseus. Nesse caso, fica evidente que recebeu larga instrução na Torá e nas
Escrituras hebraicas. Mas como cresceu na diáspora, também se conclui que ele
tinha fluência no grego, e até deve ter tomado conhecimento das escolas filosófi-
cas e religiosas vigentes no seu tempo. Atos dos Apóstolos contém outras infor-
mações a respeito de Paulo, mas que dificilmente tem cunho histórico preciso,
sendo mais uma construção lendária da imagem e do perfil do apóstolo Paulo
pelo autor do livro.

A experiência de Paulo na estrada de Damasco deve ser entendida como voca-


ção, e não conversão, até porque Paulo não se considerava pecador no sentido
amplo do termo, mas cumpridor da Lei (Fp 3.5-6). O que acontece com Paulo é a
convicção de que ele não precisava mais buscar a justiça pela Lei, pois agora ti-
nha sido iniciada a era da fé em Jesus, a partir da ressurreição, que é o cerne da
experiência de Damasco. O batismo dele, por exemplo, não foi realizado como
meio de purificação ou arrependimento, mas em primeiro lugar de inclusão na
comunidade dos batizados, crentes em Cristo, e assim partilhar do mesmo Espíri-
to do restante da comunidade (1 Co 12.12-13; Rm 6.1-4).
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A partir disso, ele se sente moti-


vado e mesmo vocacionado a
pregar essa nova mensagem a
todas as pessoas, especialmente
aos gentios, pois agora eles estão
incluídos na nova Lei de Cristo, a
Lei do Espírito e da vida (Rm
8.2). Quanto aos judeus, que
ainda estão presos na antiga
forma de viver a Lei, que Paulo
chama de “judaizantes”, ele tem
com eles severas discussões. Es-
sa vai ser a principal causa de
sua ida a Jerusalém quando da
assembleia que reuniu diversas lideranças da igreja, e de discussões com Pedro
(Gl 2.11-14). Como diz KOESTER, “o que o chamado a tornar-se apóstolo dos
gentios significara para Paulo pessoalmente resulta, assim, numa visão eclesioló-
gica da comunidade dos novos tempos estabelecida pelas ações de Deus em
Cristo, para a qual a liberdade com relação à lei é um componente indispensá-
vel”. (KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento 2, p.117)

5.2 A biografia de Paulo

A biografia de Paulo é complexa: aparentemente sua ficha biográfica transcrita


em Fp 3, 5-6 (como também em 2Co 11.22; Gl 1.14; 2.15) parece nos dar al-
gumas informações importantes:

• “Circuncidado ao terceiro ao oitavo dia, da linhagem de Israel” (v.5


a,b): Paulo nasceu num lar judeu, que observava a prática ortodoxa
da circuncisão.
• “da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus” (v.5 c,d): Foi educado
rigorosamente no conhecimento das tradições de Israel e se orgulha
de saber a qual tribo pertencia. Além disso, evoca para si a declara-
ção de que é hebreu, e como tal está ligado às antigas tradições
mosaicas.
• “quanto à lei, fariseu”: Paulo se declara fariseu. Sem dúvida isso foi
motivo de controvérsia no processo do apostolado dele.
• “quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na
lei, irrepreensível”. Por outro lado, Paulo mesmo afirma que perse-
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guiu a igreja. Atos 9.13,14 registra a preocupação de Ananias em ir


até Paulo para batizá-lo, tendo em vista a fama deste. Resta saber
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onde e em que nível ele o fez.

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Além disso, as cartas de Paulo demonstram que ele tinha formação na cultura
helenística, não só por escrever fluentemente em grego (ainda que de forma li-
mitada), como por demonstrar conhecimento de estruturas filosóficas e certa
habilidade retórica, especialmente na diatribe estóico-cínica.

5.3 O cristianismo egípcio

O desenvolvimento do cristianismo no Egito tem a ver com a própria diáspora


judaica. A colônia judaica em Alexandria era uma das mais importantes fora de
Israel, até porque a cidade era a segunda maior do Império Romano, perdendo
apenas para Roma em termos de riqueza, produção cultural e número de pesso-
as.

Considerando esses aspectos, não é de se estranhar que a evangelização cristã


tenha chegado com certa rapidez a essa região. De acordo com os relatos da
tradição, como em Eusebio de Cesareia, a comunidade cristã no Egito deve ter
sido formada por filósofos ascetas, que foi marcado pelo surgimento de escritos
que depois foram considerados apócrifos. Esses grupos se isolaram no deserto e
passaram a ser denominados anacoretas.

É esse paradoxo em relação ao cristianismo mediterrâneo que marca o cristia-


nismo egípcio. Enquanto o primeiro se tornou muito cedo parâmetro para as
ideias que tornariam o cristianismo como ele é, os escritos advindos do Egito
mostraram-se mais como uma forma
heterodoxa da fé cristã. Sabemos que
isso não foi caso isolado no cristianis-
mo, pois mesmo a Igreja em Roma e
em outras partes enfrentou posições
heterodoxas.

Do que se pode chamar de ortodoxo no


Egito temos a carta de Barnabé e uma
carta anônima atribuída a Diogneto. Do
cânon, sem que se possa efetivamente
provar, temos a Epístola aos Hebreus,
que será analisada posteriormente. Já a
heterodoxia é amplamente representa-
da atualmente pelos códices descober-
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tos na Biblioteca de Nag Hammadi, escritos na língua copta, que datam do


século IV EC. Trata-se de uma coletânea de 52 escritos traduzidos do grego, que
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representam a principal faceta oposta ao cristianismo ortodoxo: o movimento


gnóstico.

Nessa biblioteca destacam-se o Evangelho de Tomé, que nasceu na Síria, além


de outros apócrifos como Hipóstase dos Arcontes e Apocryphon de João. O gnos-
ticismo cristão é herdeiro de uma filosofia gnóstica judaica, anterior ao cristia-
nismo, que junta mitologia e filosofias gnósticas pagãs. A principal característica
é a linguagem hermética e simbólica desses escritos, e a ideia geral de que a
alma é superior ao corpo, influência do neoplatonismo. Percebe-se nos textos
ataques às ideias cristãs ortodoxas, como o batismo e a ceia. A própria ressurrei-
ção é alvo de contestação, pois os gnósticos defendiam que Cristo ressuscitou
apenas em espírito. Essa ideia é combatida veementemente pelo Evangelho de
João, que transparece no relato da ressurreição uma posição antignóstica (Tomé,
um líder gnóstico4, foi convidado a tocar no corpo do ressuscitado).
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4
Conferir a associação do discípulo Tomé com sua proeminência no ambiente gnóstico. Verifique
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DI BERARDINO, Angelo. Dicionário Patrístico de Antiguidades Cristãs. Petrópolis/São Paulo: Vo-


zes/Paulus, 2002, p. 1373 e ALTANER, Bethold; STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina
dos padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1972, p. 136-137.
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR DESTE MÓDULO

ALTANER, Bethold; STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina dos pa-
dres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1972.

DI BERARDINO, Angelo. Dicionário Patrístico de Antiguidades Cristãs. Petrópo-


lis/São Paulo: Vozes/Paulus, 2002.

HORSLEY, Richard. Jesus e o Império: O Reino de Deus e a nova desordem


mundial. São Paulo: Paulus, 2004.

LAWRENCE, Paul. Atlas histórico e geográfico da Bíblia. Barueri: SBB, 2008.


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