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Trechos do Livro Vajra Heart – Tulku Urgyen Rinpoche

A INSTRUÇÃO DE
APONTAR
“A característica especial é apontar diretamente à consciência nua”.

Embora a tradição do Dzogchen tenha um sistema gradual de preliminares, a


característica especial do Dzogchen é que ele aponta diretamente a consciência nua, o
estado desperto autoexistente. Isto é para estudantes adequados, aqueles com faculdades
mentais afiadas. Em vez de passar por muitas preliminares, o mestre as apresenta
diretamente à sua essência da mente, à sua consciência auto-existente. Como mencionei
anteriormente, essa consciência é composta por três aspectos: essência, natureza e
capacidade.

Para verificar a essência da mente, perguntamos se ela é composta ou não-composta. O


que é composto deve ter substância material e o que é não-composto deve ser sem
substância. Sem substância significa que não há nada para que os olhos vejam, para os
ouvidos ouvirem e para as mãos segurarem. Esta ausência de substância é dito ser a
essência da mente vazia, o darmakaya. Assim, dizemos: "Na essência vazia, o
darmakaya".
Se essa vacuidade fosse um vácuo total, não haveria conversa sobre os budas
alcançando a iluminação e os seres sencientes vagando pelo samsara e os infernos. O
espaço não é assim. Sem ser um vácuo, a vacuidade é naturalmente cognoscível. "Na
natureza cognoscível, o sambogakaya" refere-se às hostes das deidades do
sambogakaya; a natureza do sambogakaya é a cognição. Sambogakaya significa algo
com abundância perfeita. Se algo é totalmente vazio, não pode ter abundância perfeita.
A própria vacuidade tem abundância perfeita; isso é chamado de sambogakaya.

"Na capacidade múltipla, o nirmanakaya". Capacidade aqui significa união; a unidade


de vacuidade e cognoscência é chamada de capacidade. O termo ‘capacidade múltipla’
significa que a capacidade é todo-abrangente e desobstruída, nem apenas de uma ou
duas maneiras, mas como o dharmata inconcebível. ‘Múltiplo’ significa que a auto-
exibição do estado desperto original desobstruído, manifesta uma variedade
compassiva. Não se refere a uma substância externa grosseira, mas à auto-exibição
desobstruída; a capacidade aqui é o aspecto desobstruído da vacuidade e da
cognoscência. Múltiplo significa todo-abrangente.’

É dito que o dzogchen possui grandes vantagens, mas também grandes perigos. Isso
ocorre porque todos os ensinamentos são finalmente e definitivamente resolvidos no
sistema do Dzogchen. Este ato de resolução pode ser de dois tipos: a resolução através
da compreensão intelectual e a resolução através da experiência pessoal.

Solucionar os ensinamentos através da experiência pessoal tem uma grande vantagem


ou benefício. Tendo sido apontado a consciência nua e tendo a reconhecido diretamente,
simplesmente se faz disto a parte principal da prática. Neste momento, o caminho para a
iluminação é muito rápido e direto, e os benefícios são inconcebivelmente grandes.

Por outro lado, existe um grande perigo quando alguém se apropria intelectualmente dos
ensinamentos, assumindo que: "No Dzogchen, não há nada para meditar. Não há nada
para ver. Não há nada a desempenhar como ação". Este niilismo conceitual é
completamente prejudicial ao progresso, porque o ponto final do ensinamento é não-
conceitual, está além do pensamento intelectual.

O maior erro ocorre quando alguém concebe intelectualmente o que o Dzogchen é e se


agarra a esse conceito firmemente. Portanto, é muito importante incorporar os
ensinamentos na experiência pessoal através das instruções orais do professor. Caso
contrário, ter a ideia de que "eu estou meditando no Dzogchen" é perder completamente
o ponto. O estado desperto autoexistente tem estado presente no fluxo mental de todos
os seres sencientes desde o tempo primordial. Esta presença é algo que não deve
permanecer como teoria, mas deve ser reconhecida através da experiência. Primeiro, a
reconheça, então treine e obtenha estabilidade nela. É quando o Dzogchen tem um
grande benefício. Na verdade, não há maior benefício do que isso.

Quando as palavras transmitem uma mera compreensão intelectual, então os conceitos


impedem a experiência e esses conceitos não possuem a qualidade não-conceitual.
Confiar na mente conceitual é simplesmente confiar no intelecto, enquanto que
permanecer na continuidade da consciência nua e se acostumar com isso, é o que é
verdadeiramente chamado de ‘experimentação’.
O princípio é o mesmo quer se fale de Madhyamika, Mahamudra ou Dzogchen. Como
Shantideva disse no Bodicharya Avatara: “Quando o intelecto de alguém não se agarra
ao conceito de concretude nem de incongretude, esse é o estado da não-
conceitualização”. Enquanto a mente de alguém não estiver livre de conceitos, a visão é
meramente entendida intelectualmente e não é mais do que teoria. Pode-se então pensar:
“O dzogchen é primordialmente vazio, não tem base, não há nada sobre o que meditar,
nem necessidade de fazer nada. Se eu meditar pela manhã, serei um buda pela manhã.
Quando eu reconheço à noite, sou um buda a noite. O destinado nem sequer precisa
meditar”.

Por incrível que possa parecer, a visão do Dzogchen pode purificar o obscurecimento
cognitivo mais sutil. Mas apenas presumir que assim é, no entanto, como muitas pessoas
fizeram no passado, assegurando-se que eles não precisavam nem meditar nem praticar,
é perder completamente o ponto.

Para se proteger contra isso, praticar de acordo com a Madhyamika ou Mahamudra,


onde se segue um passo a passo, alternando entre teoria e experiência dentro da
estrutura da teoria, experiência e realização, é muito mais benéfico. Procedendo
gradualmente, o que deve ser resolvido se torna cada vez mais claro e finalmente
captura o trono do darmakaya da não-meditação. Este sistema graduado fornece alguns
pontos de referência ao longo dos vários caminhos e níveis.

No Dzogchen, no entanto, o mestre, desde o início, aponta o estado não-conceitual,


instruindo o aluno a permanecer livre de conceitos. Se um aluno então pensa: "Estou
livre de conceitos, nunca me distraio!" Enquanto anda por ai com os olhos vagamente
atentos, ele se desviou para a compreensão intelectual.

Esse entendimento não nos ajudará quando tivermos morrendo. Tilopa disse a Naropa:
"A teoria é como um remendo, vai se desgastar e cair". Depois de morrer, passaremos
por várias experiências agradáveis e desagradáveis, pânico intenso, medo e terror. A
compreensão intelectual não será capaz de destruir esses medos; não poderá fazer a
confusão diminuir. Portanto, é inútil verificar se a essência de alguém é desprovida de
confusão. Esse retalho de pensamento é ineficaz ao lidar com a confusão de alguém no
momento da morte.

É preciso reconhecer e tomar consciência completamente da visão da própria essência.


Construí-la a partir de conceitos é inútil. Simplesmente ouvir que há uma refeição
deliciosa para ser comida, mas não comê-la, você não saberá qual o sabor da comida.
Deve-se, além disso, estar totalmente livre da menor centelha de dúvida sobre o estado
da consciência nua. No que diz respeito à estabilidade na consciência, Jigme Lingpa
disse: "Neste ponto, não há necessidade de 100 panditas e suas milhares de explicações.
Alguém saberá o que é suficiente. Mesmo quando questionados por esses estudiosos, a
dúvida não surgirá".

O ponto principal é se tornar estável na consciência prístina através da experiência, e


não através da compreensão intelectual. Quando um mestre qualificado encontra um
estudante digno, o ferro atinge a pederneira, criando fogo imediatamente. Quando duas
dessas pessoas se encontram, é possível estar livre de dúvidas. A prova de ter
reconhecido a essência da mente é que ninguém sente nenhuma dúvida, não importa o
quanto se possa tentar. Se for possível começar a duvidar, pensando "eu me pergunto
como é, o que devo fazer?", Essa compreensão é intelectual. Essa diferença entre teoria
e experiência é o que me referi dizendo que o Dzogchen tem um grande benefício e um
grande perigo.

Quando um praticante é apresentado à consciência nua, ele poderá atingir a iluminação


nesse mesmo corpo e vida. Isso ocorre porque, no momento de reconhecer a essência da
consciência, o obscurecimento cognitivo está ausente. Isso é chamado de tocar a
fruição. Nisto há três aspectos: tomar a base como caminho, tomar o caminho como
caminho, e tomar a fruição como caminho. Receber a instrução de apontar significa que
alguém toma a fruição como caminho. É por isso que é tão precioso. Portanto, não
permita que o reconhecimento se desvie para mera teoria.

A experiência é considerada o adorno da consciência. A consciência está presente em


todos os seres; quem tem mente tem consciência, pois a consciência prístina é a essência
da mente. A mente é como a sombra da mão e a consciência como a própria mão. Desta
forma, não existe um único ser senciente que não tenha consciência. Podemos ouvir
sobre a consciência e depois pensar: "Eu entendo, a consciência é tal e tal". Esta
construção mental é totalmente inútil – desde o início, a ausência de fabricação mental é
crucial. Como é dito: "Dentro do dharmadhatu desnudo e sem fabricação, o estado
desperto alvorece – espontaneamente presente". Introduzir a consciência prístina é
apontar a ausência de fabricação mental. Caso contrário, torna-se uma introdução ao
mero pensamento discursivo. (Risos)

“Na tradição do Dzogchen, a visão é apontada imediatamente.”

No Dzogchen, shamatha e vipashyana são praticadas como preliminares e são chamadas


de "descansar em naturalidade" e "manter a espontaneidade". Descansar em
naturalidade significa não-fabricação e manter a espontaneidade ou o frescor significa
não perder a continuidade da naturalidade. Embora tenha sido introduzido a essência do
Dzogchen, sem descansar em naturalidade, não se pode conseguir nada. Em Kham,
temos um ditado: "O mais íntimo pode ser visto de fora". Se a porta de uma sala de
santuários estiver aberta, mesmo que alguém fique lá fora, ainda pode ver a parte mais
íntima da sala com todas as imagens. Portanto, embora a prática da naturalidade seja
preliminar, não devemos abandoná-la e tentar obter algo mais profundo. A essência é
introduzida, uma vez que há um uso para ela no início. Alguém é introduzido à não-
fabricação, para a naturalidade e espontaneidade que em geral são conhecidas como
shamatha e vipashyana.

Na tradição do Dzogchen, a visão é apontada imediatamente. Às vezes, as preliminares


são mais profundas do que a prática principal. Ser apresentado à essência e reconhecê-la
é extraordinário.

Deixe-me falar sobre uma encarnação de Tsangsar Samten Gyatso. Em sua vida
anterior, ele se chamava Argey Samten. Ele foi reconhecido como um tulku quando era
uma criancinha e trazido para o mosteiro. Lá ele brincava e se divertia: com cerca de
oito anos, ele dançava e brincava com seus amigos. O gönla, um velho lama que
cuidava dos pujas para os protetores, um dia estava batendo o tambor e cantando,
enquanto as crianças estavam brincando ao seu redor. O gönla repreendeu Argey
Samten: "Você é uma encarnação de um lama, não aja desse modo. Se você é um tulku,
você deve ser uma encarnação nobre! Em vez disso, você é um pirralho completamente
mimado, sempre brincando. Por que você está fazendo isso? Ouça. Não vagueie! Não
vagueie!" Quando o velho lama disse isso, Argey Samten perguntou: "O que isso
significa? O que significa não vagar?" O gönla respondeu: "Não deixe sua mente vagar,
é o que isso significa!" O tulku perguntou: "Como a mente não pode vagar?" O lama
disse: "Olhe para si mesmo, olhe para sua própria mente!" Argey Samten reconheceu a
natureza da mente ali mesmo.

Não importa quais mestres ou grandes professores ele conhecesse posteriormente, ele
sempre soube que seu reconhecimento foi realizado como uma criança pequena. As
histórias de sua vida posterior mostram a extensão de sua realização. Como um adulto,
ele foi para Palpung, naquela época, a residência de Situ Padma Nyinche. Argey
Samten, conhecido por seu incrível e alto nível de prática, foi colocado como o mestre
do retiro após o seu segundo retiro. Durante o domínio de Argey Samten, Chokgyur
Lingpa chegou à Palpung pela primeira vez. Foi anunciado que alguém chamado
Chokgyur Lingpa, também conhecido como Kyasu Tertön de Nangchen, tinha chegado.
Situ Rinpoche chamou Argey Lama e disse-lhe: "Foi-me dito que você é um iogue
treinado cujos sonhos são muito claros devido à sua prática das seis doutrinas de
Naropa. Hoje, Kyasu Tertön está chegando. Ele afirma ser um revelador de tesouros e
um emissário de Guru Rinpoche. Ele é muito famoso e estamos organizando para
recebê-lo como dignitário, mas em geral não tenho fé nos tertöns. Ele afirma, no
entanto, ser um tertön realizado. Então, esta noite você deve observar os seus sonhos
para provar isso!"

Situ Padma Nyinche já havia dito de outro tertön: "Ele afirma ser um revelador de
tesouro, mas está realmente difamando Guru Rinpoche. Ele não é nada, seu objetivo é
apenas poder".

Quando Chokgyur Lingpa veio, no entanto, Situ Padma Nyinche teve alguma confiança
nele e se preparou para encontrá-lo, dizendo a Argey Lama, também chamado de
Ngagtrin lama, "Chokgyur Lingpa está chegando, por favor, examine suas
reivindicações em seus sonhos!" Tendo realizado muito em seu retiro, Ngagtrin Lama
era até então um praticante bastante incrível. Ele relatou todas as experiências e visões
de seus sonhos daquela noite para Situ Rinpoche. Ao ouvir o que a vida anterior de
Samten Gyatso, Ngagtrin Lama disse, Situ Rinpoche riu: "Ha! Ha! Ngagtrin Lama teve
uma grande profecia em seu sonho ontem à noite e, de acordo com o que ele diz,
Chokgyur Lingpa provavelmente é um verdadeiro tertön".

Quando Chokgyur Lingpa chegou, ele disse a Situ Rinpoche: "Há um comando de Guru
Rinpoche para que seja concedido a você o empoderamento de Sabdün Phurba para
proteção contra obstáculos à sua vida. Você é um emissário de Padmakara". Situ
respondeu: "Sim sim, você o pratica. Vou olhar para ver se há sinais especiais. Eu sou
muito velho para fazer as recitações, então você as faz. Para os sinais especiais, vou
olhar a mim mesmo".

Então ele colocou Chokling em retiro por um mês para praticar Sabdün Phurba. Depois
de concluir uma prática, a realização das bênçãos é tradicionalmente examinada. Os
criados de Situ Rinpoche estavam se preparando para trazer os artigos abençoados de
Chokgyur Lingpa.
No entanto, Situ disse: "Não, traga o próprio tertön! O próprio tertön deve vir e me dar o
empoderamento. Apenas enviar as coisas para colocar em minha cabeça não me ajudará.
Vajrayana não é apenas algo que você coloca na cabeça. Solicite o próprio Chokling!"

Dizem que depois de permanecer em retiro por um mês, Chokgyur Lingpa ofereceu o
empoderamento de Sabdün Phurba a Situ Rinpoche. Embora Situ Rinpoche fosse muito
obstinado e não acreditasse em qualquer tertön, ele aceitou como verdade os sinais reais
de reconhecimento de Ngagtrin lama, a vida passada de meu tio.

E, no entanto, é esse Ngagtrin lama que reconheceu a essência quando era jovem sem
qualquer mestre. Um velho monge simplesmente o repreendeu: "Oh, seu pequeno tulku
levado. Não brinque assim. Não vagueie, qual a utilidade de ser distraído?" Para a
pergunta do pequeno menino: "O que é não vagar?", O velho respondeu: "olhe para a
sua própria mente, é isso". Naquele momento, Ngagtrin lama reconheceu a essência.
Depois disso, ele disse que não havia nada além do que ele precisasse ser apresentado
ou apontado. Ele reconheceu a natureza da mente nesse momento, e mais tarde tornou-
se um grande mestre realizado. Há muitas outras histórias sobre o seu poder.

No inverno no Tibete a água da neve derretida às vezes congelava e fazia barreiras de


gelo sólido do tamanho de edifícios de três andares. Bloqueando os caminhos, este gelo
tornava a viagem impossível. No entanto, não importa quanta neve caísse a cada
inverno, na cobertura da cabana de retiro de Ngagtrin lama, a neve nunca se assentava.
Sua prática de tummo sempre a derretia.

Uma vez, quando um dos principais patrocinadores de Ngagtrin lama faleceu do outro
lado do desfiladeiro da montanha, Ngagtrin Lama foi chamado para vir e fazer phowa, a
ejeção da consciência. "Eu estou chegando!", Ele respondeu. O caminho, no entanto, foi
bloqueado por um rio que havia transbordado, fazendo grandes cortinas de gelo que se
elevavam a uma altura de dois ou três andares. Todos os seus criados tentaram
desencorajá-lo, dizendo: "Como você pode ir? Você quer morrer na água gelada? Viajar
ao redor demorará dois ou três dias. Não há como passar. Como você pode, um velho
lama, fazer isso? Esqueça isso."

Ngagtrin lama insistiu: "Não, eu devo ir. Ele foi um patrono muito amável. Se eu não
chegar, será uma violação de samaya. Amanhã de manhã, eu vou!" Os criados não
podiam fazer nada senão obedecer e pensavam que teriam que caminhar pelo longo
caminho, mas o lama disse: "Não, não precisamos fazer isso!" Na manhã seguinte, ele
disse: "Na noite passada eu abri o caminho!" Durante a prática de tummo, ele havia
derretido a cortina de gelo; todo o gelo em toda a passagem da montanha tinha virado
água e, na manhã seguinte, nem mesmo um floco de neve permaneceu. Ele havia
derretido por seus poderes milagrosos para que pudessem viajar livremente pela manhã.
Quando perguntado: "Como isso é possível?", O lama respondeu: "Na noite passada,
pratiquei um pouco de tummo. Derreti a neve em água.

Ele era um mestre poderoso, com grande realização na prática. A base para sua prática,
o modo como recebeu a introdução, foi estabelecida quando o velho gönla que fazia
pujas para os protetores do Darma disse: "Não vagueie!"

Ao ser apresentado à essência, se alguém tem o potencial cármico, o que acontece pode
ser extraordinário.
A sequencia tradicional nem sempre se aplica. Algumas pessoas são introduzidas
durante as preliminares gerais, ou durante a prática de descansar na naturalidade e
manter a espontaneidade ou frescor, que são realmente parte das preliminares do
Dzogchen.

Trecho de “Vajra Heart – Tulku Urgyen Rinpoche – Rangjung Yeshe Publications


(1994)” Adaptado ao português Kadag Lundrub.

SHAMATA E
VIPASHYANA
“As palavras são como cascas de arroz, uma pessoa gradualmente as lançará fora.”

Os alunos às vezes se perguntam se a prática de shamatha envolve o estado desperto, e,


se assim for, se é elaborado. A palavra shamatha significa permanecer pacificamente. Há
essencialmente alguma felicidade naquela paz ou calma, e a permanência significa que
há fixação. Shamatha é o mesmo que o deleite ou êxtase, e a permanência significa
agarramento ou fixação ao êxtase. Quando não há fixação, nenhum apego ao estado
desperto, isto não é shamatha; é a vipashyana nua, visão clara. Assim, o estado de
shamatha surge com um leve apego, com um leve fascínio nisso; essa é a definição de
shamatha. Ao passo que vipashyana, visão clara, é totalmente aberta e desperta.

Paltrül Rinpoche descreveu este estado de vipashyana como sendo desnudo, mas
totalmente aberto; essa vasta abertura é inexprimível, indescritível. Com essa vasta
abertura, você não pode simplesmente permanecer em paz, no estado de shamatha,
porque não há permanecedor e nenhum local de permanêcia. Se você diz ‘permanecer’,
significa permanecer no estado do vazio, que o vazio permanece em alguma coisa.
Claro, a mente é vazia, mas se você diz que essa vaziez permanece, então a vaziez se
refere a uma fixação na paz, na calma, no êxtase. A permanência significa que há uma
fixação sobre essa sensação de paz. Então, apenas se permanece, segurando esse êxtase,
pensando "Que meditação fantástica eu tenho!" Você nem sequer se atreve a mover seu
corpo minimamente por medo de que se eu mover o corpo, o estado entrará em colapso.
Quando você tem êxtase e apego ao sentimento de êxtase, há dualidade, e a semente ou
a causa do renascimento nos três reinos do samsara é ainda semeada em seu ser. É por
isso que os simples dotes na prática de shamatha não trazem liberação e iluminação. Se
há paz ou calma, há algum deleite ou êxtase, e então há permanência ou apego a isso. A
fixação acompanha este êxtase, neste caso ao sentimento "Tão confortável, tão
relaxado!" É como sentir que o seu corpo não está lá; e se você mover o corpo você
sente, "Agora, minha meditação desaparecerá". Você teme "Minha meditação irá
desvanecer, irá desaparer".

Em outras palavras, shamatha significa agarrar-se a paz, ao passo que vipashyana é a


nudez, totalmente aberta e indescritível. Este é o verdadeiro significado de vipashyana,
a vipashyana do darmakaya, a consciência do darmakaya, rigpa. Isto é o que se entende
por estado nu do darmakaya. "Pelo grande olhar do relâmpago" – a agoridade é como
um clarão do relâmpago que desce do céu. "Pelo grande olhar do relâmpago, tanto os
budas quanto os seres são liberados". ‘Budas’ aqui significa bons pensamentos, e "seres
sencientes" significa maus pensamentos. Em tal consciência, tanto os pensamentos bons
quanto os maus são liberados. Caso contrário, tais pensamentos bons como a devoção, o
respeito, a shamatha e etc. permaneceriam. A nudez de vipashyana é simplesmente o
livre frescor, sem budas e sem seres. Isso não significa budas e seres reais. A declaração
refere-se a bons pensamentos e maus pensamentos, que você deve se liberar tanto dos
estados de pensamento chamados positivos quanto dos negativos. Os bons pensamentos
são devoção, devoção relativa e compaixão relativa. O relativo aqui, significa que
algum conceito está envolvido. Todos devem ser destruídos, liberados. ‘Sem budas’
significa liberar os bons pensamentos; "sem seres sencientes" significa que a nossa
experiência deludida e o apego ao ego são igualmente liberados. Mais uma vez: "Pelo
grande olhar do relâmpago, tanto os budas como os seres são liberados". Ouça isso.
Reconheça como é nesse primeiro instante. Não há pensamentos bons, nem
pensamentos ruins. Esse é o significado de liberar tanto os budas como os seres.

Não se apegue, não fique fascinado pelo seu grau particular de estado desperto. O
estado desperto livre de pensamento é completamente claro, uma vez que a mente não
se aplica ou arranja qualquer conceito. É o primeiro instante em que nada é feito,
construído, cultivado ou fabricado; é o seu presente, o frescor intocado, não tratado.

Se você tem o sentimento de "devo tornar meu estado de meditação um pouco mais
desperto", você deve perceber que esse sentimento nasce da compreensão intelectual.
Você deve estar livre disso. Se você é muito detalhista em sua abordagem, muito
preocupado com isto, então a meditação não será bem sucedida porque é apenas uma
mente conceitual que quer ser muito correta. Isso também deve ser abandonado. Caso
contrário, há algum conceito envolvido. Pensando "Agora eu sei. Eu sei que estou
consciente disso", há um aspecto conceitual para a experiência. O que está consciente é
realmente a sabedoria da consciência. Não precisamos tentar saber; por si só é desperta,
não-conceitual. A sabedoria da consciência não é algo que criamos conceitualmente, por
ou a partir de nosso intelecto. Se você pensa assim, você está errado, você se enganou.
Ou você pode pensar "Há algum conhecimento. Isto não está certo". Sem qualquer
conhecimento, sem cognição, estaríamos inconscientes. Essa inteligência ou
conhecimento, no entanto, é auto-existente, não é algo que fabricamos.
Este é o ponto crucial. A maioria das pessoas pensa que quando elas realmente
examinam este estado desperto da sabedoria auto-existente, é apenas uma mente
conceitual. Elas pensam que devem atingir algo superior a isso. Mas absolutamente
nada é superior; atinge-se a própria consciência nua.

Você pode ser exigente demais. Algumas pessoas pensam que "a sabedoria auto-
existente é sem um conhecedor". Elas pensam que não deve haver nenhum
conhecimento sequer. Particularizando-se demais dessa forma, você fica preso à
fixação. Mas rigpa, consciência desperta, tem uma presença de mente e atenção plena
auto-conhecedora. Ao pensar "Não é este senso de consciência apenas uma mente
conceitual? Provavelmente é apenas uma fabricação mental. Preciso de algo totalmente
não-fabricado. Isso não é suficiente!", você desenvolve uma espécie de suspeita ou
medo. É melhor permanecer totalmente solto nesse mesmo instante, como é, não o
piorando, não tentando elevá-lo ou melhorá-lo. Esta é a resolução que deves alcançar.
Não há nada além disso. Você não precisa pensar: "Deve haver algo melhor", porque
neste momento, a consciência é nuamente manifesta.

Acreditando que há algo melhor do que isso, algumas pessoas pensam, "Este estado não
é correto. Não é uma sabedoria auto-existente. Há algum envolvimento conceitual
aqui!" Mas você não criou sua consciência; é auto-existente, auto-ocorrente. Se fosse
fabricada mesmo um pouquinho, dependeria da mente conceitual. Mas não precisa ser
fabricada. Essa é a consciência genuína sem nenhum erro de qualquer tipo.

Qual é o estado natural, o estado real da consciência? É o primeiro instante. Não o


difame ou o elogie; não o exagere ou o denigra. No entanto, não temos culpa se
deslizamos para fabricar um pouco. Desde tempos sem principio, nós estamos
fabricando o não-fabricado. Quando dizemos "Deixe ir para a não-fabricação", não é
isso mesmo também não natural? O deixar ir também não é uma fabricação? Usamos
palavras porque não temos outra maneira de proceder, mas dizer: "Deixe ir, descanse
livremente!", não significa que haja algo que está sendo deixado ir e alguém que deixa
ir. O verdadeiro deixar ir é sem estes dois, além da dualidade.

Quando você finalmente alcançou a estabilidade em sua prática, confiar em palavras


como "Deixe ir, descanse livremente!" pode ser bastante prejudicial. Como as palavras
podem se comparar com a própria consciência nua e auto-existente? As palavras são
como cascas de arroz. Você gradualmente as abandonará à medida que a sua visão se
aprofundar, à medida que se tornar mais profunda. Quando a visão atinge a plenitude,
você realmente saberá o quanto as palavras causam dano. O praticante deve então
reconhecer quão submerso ou enredado em palavras ele se tornou. Mas você não pode
notar isso agora. A visão é livre daquele que vê e daquilo que é visto. Quando você se
acostumou a rigpa através de uma visão correta, então você entenderá que, "acabei de
me apegar às palavras. As palavras e o que elas significam são tão diferentes.

No estado verdadeiro do Dzogchen, é dito que você deveria "pastorear rigpa


primordialmente livre com atenção plena inata". Cultive-a como você pastorearia um
rebanho de gado. Inato significa ininterrupto. Então, depois disso, descanse livremente.
Os ensinamentos do Dzogchen usam muito as palavras ‘descansar livremente’. Então,
ao nutrir a rigpa primordialmente livre com atenção plena inata, sem ser distraído ou se
deixar levar, descanse livremente tal como é. Neste contexto, a não-distração que
permanece por si só, é chamada de atenção plena. Mas essa atenção plena é sem
dualidade. Quando a rigpa primordialmente livre é nutrida por uma atenção plena inata,
a rigpa está se nutrindo ou se sustentando, por observar a si mesma. O Mahamudra usa a
palavra vigilância ou manter a guarda, indicando um senso de observação. Para algumas
pessoas, sem alguma vigilância ou manutenção da guarda, sem alguma atenção plena,
não há permanência e a meditação é perdida. Sem esse apoio, eles não têm meditação.
Então, é dito "Pela mente fabricada, alguém é levado ao estado natural".

A fabricação leva você ao estado natural, à verdade genuína. Do estado de um


principiante para prosseguir sem a dualidade de um observador e de algo observado,
apenas descansando livremente, sem prática prévia nisso, a sua mente ficaria sem
qualquer suporte. O Mahamudra enfatiza definitivamente a atenção plena como a
principal parte da meditação. Na primeira fase do caminho do Mahamudra, em
unidirecionalidade, a atenção plena é misturada com shamatha. Alcançando a
simplicidade, a atenção plena é descartada. Então, em geral, você pode dizer que o
sistema do Mahamudra trata os iniciantes muito gentilmente. Dependendo do seu
carma, o seu interesse será no Dzogchen ou no Mahamudra.

Quando Tsewang Drakpa, filho de Chokgyur Lingpa, foi convidado a explicar os


ensinamentos gerais do Dzogchen, ele disse: "Não me peça por ensinamentos da mente.
Eu sou uma pessoa que chegou ao telhado da casa sem usar as escadas. Através de
minhas explicações, você não entenderá nada. Isto não lhe ajudará. Então não me peça
por ensinamentos da mente, pergunte a outro professor.” Ele era um daqueles que
tomaram a abordagem súbita e, portanto, disse: "Você não pode me pedir um
ensinamento da mente. Alguém que explique deve conhecer o caminho, deve lhe dizer
qual passo dar primeiro, que você deve ir lentamente até a escada de tal e tal maneira.
Eu não tenho nenhum conhecimento prático sequer. Se eu fosse explicar minha visão
para você, isto não lhe ajudaria.” O Mahamudra, por outro lado, leva alguém ao não-
esforço por meio da atenção plena deliberada.

No sistema do Dzogchen, no próprio momento de reconhecer sua distração, você


chegou a rigpa. Por exemplo, ao riscar um fósforo, a chama aparece simultaneamente,
no instante em que o fósforo é aceso. Da mesma forma, no momento de notar a
distração, você chega a rigpa. Se você não notar a distração, não há, naturalmente, nada.
Enquanto está distraído, enquanto vagando, você está inconsciente disso. Quando você
parar de vaguear e notar "Isso é ignorância!" sem rejeitá-la, isto por si só é o suficiente.
Você entende? Mas, como já mencionei, você deve entender quando há distração e
quando não há. Isto é muito importante. Não sabendo a diferença entre vaguear e não
vaguear, você pode pensar facilmente "Estou completamente sem distração". Muitas
pessoas se desviam da visão dessa maneira e essa atitude artificial não pode destruir a
delusão. Quando os pensamentos não são liberados ou destruídos, como você pode se
libertar do samsara? A raiz do samsara é o pensamento conceitual. Portanto, sem ser
dominado pelos pensamentos, basta descansar independente e autossuficiente, em
sabedoria não-conceitual. Essa é a visão. A visão não é algo a ser alcançado em outro
lugar.

Você deve reconhecer que a consciência desperta não é algo a ser artificialmente
prolongada. Nem você deve tentar encurtar a duração da consciência não-dual. Permita
que o momento de naturalidade ocorra, desde que dure por si só. Nem tente prolongar
nem encurtar, porque isso seria apenas um empreendimento com base em conceitos. Se
é longo, é longo; se é curto, é curto. Se a não-distração durar por um longo tempo, deixe
ser; um pensamento de não-distração é inútil. Portanto, não tenha não-distração onde
você pensa "Estou sem distração", mas uma naturalidade livre que permanece por si
mesma, que não é encurtada ou alongada pelas suas intenções.

Nesse momento de naturalidade, nenhum dos três venenos da agressão, paixão ou


delusão surgem.

O estado natural não contém nenhum dos três venenos e nenhum pensamento dos três
tempos. Se os pensamentos dos três tempos existem, então, como eles têm um lugar
para aderir e algo a seguir, a base para paixão, agressão e a delusão estará presente.
Quando passado, presente e futuro não existem, os três venenos não têm nada para
aderir ou seguir. Quando os três venenos não estão presentes, então nada crescerá, pois
são as raízes dos três reinos do samsara, as sementes do reino do desejo, da forma e dos
reinos sem forma. Nenhuma plantação cresce se não forem plantadas sementes. Nem
haverá nenhuma causa para se desviar para os três reinos do samsara.

Os pensamentos que surgem enquanto se descansa na naturalidade são auto-ocorrentes


e auto-liberados, a expressão de rigpa. Quando reconhecidos, esses pensamentos que
surgem de você são liberados, e liberados de volta em você. Eles se dissolvem de volta
no espaço de rigpa. Esta é a auto-liberação ininterrupta e auto-ocorrente. Sem ganhar
confiança nesta liberação de pensamentos, mesmo que tenha reconhecido sua essência,
você será incapaz de destruir a delusão. A delusão acompanha os pensamentos que
surgem como uma expressão de rigpa, a não ser que você tenha atingido o estado de
exaustão dos fenômenos além dos conceitos. Mas agora, pensando na base, caminho e
fruição, estamos no estágio do caminho e ainda não realizamos a visão da fruição.

Os pensamentos ocorrem de ti mesmo; eles não vieram de outro lugar. Eles são a
expressão de rigpa. Novamente um pensamento surge da expressão de rigpa, novamente
se dissolve no espaço de rigpa. Treinando nisto repetidas vezes como o caminho, você
se acostuma a isto, a força dos pensamentos diminui e rigpa se torna ininterrupta.
Finalmente, os fenômenos e os conceitos se exaurem; eles cessam. Ao chegar a este
nível, não há distração. Enquanto não-distraído, os pensamentos que costumavam
ocorrer de ti mesmo não surgiram. Quando a força dos pensamentos é liberada no
espaço primordialmente puro, diz-se que rigpa é autossuficiente, ocupando seu próprio
assento de poder. Aproveitar seu próprio assento de poder significa que os pensamentos
se dissolveram em rigpa.

De Vajra Heart – Tulku Urgyen Rinpoche – Rangjung Yeshe Publications. Adaptado ao


português por Kadag Lundrub.
EXPERIÊNCIAS
"Devemos concentrar nossas mentes na simplicidade, no estado da budeidade, na
sabedoria não-conceitual".

Devemos entender que o corpo é apenas uma casa de hóspedes, uma habitação
temporária. Algumas habitações são boas, algumas ruins – existem vários tipos. Quando
viajamos uma longa distância, os diferentes lugares em que ficamos não podem ser
todos bons. Uma vez que a mente é a mais importante – se a mente é independente e
pode funcionar por si mesma – por que a habitação é importante? Não se preocupe com
isso. O corpo é apenas uma casa de hóspedes que oferece vários prazeres e dores. Você
não deve ser governado por eles.

Durante a prática, este corpo físico é tanto uma ajuda como um obstáculo. Sem um
corpo, seríamos uma consciência do bardo, sem poder ou força independente. Através
da benção de ter um corpo, temos algum poder. Este corpo é realmente uma vantagem
imensa. E, no entanto, traz obstáculos.

Por exemplo, se viajarmos para Bodhgaya, a menos que voemos, passaremos por
montanhas e vales, altos e baixos, rios e gargantas. Há lugares confortáveis, lugares
íngremes, todos os diferentes tipos de lugares. Do mesmo modo, nosso corpo, feito de
agregados e elementos, possui dentro dele a sabedoria auto-existente que está atada por
ele. Devido à função dos cinco elementos, dos canais e dos ventos, às vezes nos
sentimos à vontade e às vezes perturbados. Às vezes, mesmo sem uma causa externa, a
mente pode ficar irritada. Podemos sofrer mesmo sem qualquer objeto externo doloroso.
Embora a própria essência iluminada não experiencie sofrimento ou dor, enquanto
estivermos atados aos padrões e elementos habituais momentâneos, nossa experiência
dentro do corpo varia. Mas, enquanto perseverarmos, independentemente de altos e
baixos, colinas e vales, se não pararmos em qualquer lugar, mais cedo ou mais tarde
chegaremos ao nosso destino, Bodhgaya.

Devemos focar nossas mentes na simplicidade, no estado da Budeidade, no estado


desperto não-conceitual. Aponte sua mente para isso. Embora você não chegue
imediatamente, se você mirar nessa direção como se pretendesse ir para Bodhgaya,
então, não importa o que aconteça no caminho, se você nunca desistir, você chegará.
Uma vez que dano ocorre na mente, quaisquer distúrbios que surjam neste corpo a partir
dos agregados, elementos e fatores sensoriais, basta deixar ir repetidas vezes para
naturalidade não-fabricada. Então você chegará ao seu destino.

Não atribua importância nem se preocupe com o que quer que aconteça,
independentemente do que experimente. Realmente esse corpo é uma grande vantagem.
Sem ele, você não poderia olhar para a essência da mente. Nos infernos, entre os
fantasmas famintos ou no reino animal, ninguém nunca reconhece a essência da mente.
É assim que é.

Enquanto tivermos um corpo de agregados, elementos e fatores sensoriais, várias


experiências podem ocorrer. Mas o seu alvo deve ser o estado desperto auto-existente. O
"alvo", literalmente, significa a maneira que você aponta seu nariz, seu lar. Então, vire o
nariz para casa, em direção ao que está à sua frente, à frente e não para trás. (Rinpoche
ri). Por exemplo, sempre que vou para o exterior, meu lar é o Nagi Gompa. Seu lar deve
ser o que é auto-existente, livre de conceitos, estado desperto primordial, yeshe. Yeshe
significa o estado desperto que é primordialmente livre de distração. Quando distraído,
não há estado desperto. O aspecto não distraído é yeshe, estado desperto – não
confundido e sem engano. Se confundido, o estado desperto se foi.

"O verdadeiro sinal da prática é que sua mente é sem fixação"

Quanto aos verdadeiros sinais da prática, se alguém meditou sobre uma deidade yidam,
deve-se receber a visão dela. Os sinais gerais do estágio de conclusão, como luzes,
fumaça, miragem e assim por diante também existem. Esses sinais de bênçãos que
realmente podemos perceber concretamente com nossos olhos.

Depois, há o que chamamos de "experiências", nyam, que não são nem reais nem sonho,
mas algo entre os dois. Podemos ter experiências de êxtase ou vaziez. Podemos pensar:
"Hoje, minha consciência está realmente incrível, nua e imutável, livre de fixação, livre
de apego às experiências de êxtase, clareza e não-pensamento. Que consciência incrível.
Hoje, minha meditação está realmente boa!" Tal sentimento é apenas uma experiência
passageira, compreenda isso; mas é, no entanto, um sinal da prática.

Às vezes, achamos impossível meditar, temos muita dificuldade em sentar; nos sentimos
deprimidos ou irritados. Essas são experiências desagradáveis. Esses dois tipos de
experiência, agradáveis e desagradáveis, são ambos sinais da prática. Nem todos os
sinais da prática são bons; alguns são bons e outros são ruins. Mas, não importa o que
aconteça, dentro do céu da pureza primordial, todas essas experiências são como
simples nuvens. Às vezes, o céu tem nuvens, às vezes está limpo. Quer chova, haja
tempestades e neve, quer o sol brilhe em um céu sem nuvens adornado com arco-íris,
todas estas coisas não são nada além de experiências agradáveis e desagradáveis.

Dentre os sinais da prática, existem duas etapas: experiência e realização. O verdadeiro


sinal da prática é que sua mente é sem fixação, naturalmente sem qualquer dificuldade.
Além disso, como o céu imbuído com o calor da luz do sol, sua mente é dotada de
devoção, fé e compaixão. Quando sua mente sente tal facilidade, essa é uma boa
experiência, um bom sinal e a maior realização. No entanto, a realização real permanece
ilesa pelas experiências de êxtase, clareza e não-pensamento, e também permanece livre
do embotamento e agitação, os obstáculos à meditação. Esses obstáculos são as duas
experiências que podem prejudicar temporariamente nossa prática. O embotamento é
dividido em três: sentindo-se entorpecido, sonolento ou obscurecido. A agitação também
é dividida em três: sentindo-se disperso, agitado ou distraído; portanto, existem seis
divisões ao todo.

Em suma, mesmo a menor fixação, o senso mais sutil de agarrar, pode prejudicar nossa
prática. Se não notamos que estamos obscurecidos e nos tornamos desatentos, ou se
ficamos excitados ou agitados, a mente não consegue ficar quieta e sentimos que não
podemos cortar os pensamentos. Mas o cortar deve ser automático. Com sonolência ou
embotamento, não sabendo realmente se a sua consciência é clara ou afiada, sua
consciência está obscurecida. Uma vez livre destes dois, embotamento e agitação,
dentro da consciência, não há obscurecimento para a visão. O quanto à consciência vai
durar depende da nossa habituação, o quanto estamos acostumados a isso.

O método perfeito para se acostumar rapidamente com o estado da consciência não-


fabricada é ter devoção "ascendente" aos seres iluminados e compaixão "descendente"
pelos seres sencientes não iluminados. Com estes dois, "No momento do amor a
natureza vazia alvorece nuamente.” A devoção ascendente e a compaixão descendente
são ambos o amor. O corpo, a fala e a mente podem se sentir oprimidos neste amor. Se
neste momento você puder olhar para dentro, é como um sol não obscurecido pelas
nuvens. É assim que os praticantes da Kagyu e Nyingma poderiam alcançar a
iluminação sem serem instruídos. Com pouca compreensão teórica foram capazes de
ganhar experiência, o grande adorno da consciência. Esta experiência deve ser sem
fixação, uma vez que a experiência com fixação não tem benefício.

A realização rápida da iluminação depende da fé e da devoção ascendente em direção às


Três Joias, e da compaixão descendente em direção as nossas mães; os seres sencientes.
Se temos estes, no momento do amor, a natureza vazia desponta nuamente; a natureza
da vaziez é nuamente manifesta. Este é o caminho supremo da unidade desprovido de
erros.

A qualidade especial do Budismo é essa unidade não corrompida pelos dois extremos do
eternalismo e do niilismo. Uma queda na visão do eternalismo ou na visão do niilismo é
uma limitação que impedirá o progresso no caminho correto. Considerando a unidade
do ser vazio e cognoscente, a cognição remove o extremo do niilismo e a vaziez remove
o extremo do eternalismo. Essa unidade é aquilo em que falamos como a unidade da
cognição vazia imbuída de consciência. Sem essa unidade, uma pessoa dirá que a mente
é eterna, outra dirá que é vazia. Perdendo-se nestes erros, as visões eternalistas e
niilistas criam a fixação dualista de um percebedor e um objeto percebido.

O método supremo é a devoção e a compaixão. No começo, você precisa de devoção


fabricada porque a devoção natural e não-fabricada ou a compaixão não-elaborada não
ocorre de imediato. Como elas ocorrem? À medida que você se tornar cada vez mais
estável na consciência, você sentirá: “Os seres sencientes não sabem dessa natureza
muito preciosa, que é como a budeidade na palma da mão!” Naturalmente, você sentirá
compaixão por todos os seres. É assim que será. A devoção ocorre assim: "Quão
fantástico poder cortar a própria base e a raiz da confusão. É incrível, essa perfeição de
todas as virtudes, o esgotamento de todas as falhas. Nada é superior a esta consciência!”
Assim, você ganha fé. A devoção e a compaixão que não requerem fabricação estão
presentes nesta consciência, em sua própria essência.

Para ter compaixão natural, você precisa primeiro do tipo fabricado. Nos ensinamentos
do Dzogchen, dizemos que externamente, apenas a compaixão e a devoção naturais não-
fabricadas são importantes. Mas se olharmos cuidadosamente para dentro, devemos
começar com fé e compaixão encenadas. Devoção e compaixão são as duas maiores
técnicas, os meios mais eminentes. Elas são 100 vezes melhores do que meditar em
deidades e recitar mantras.

Se soubermos como, simplesmente meditar na vaziez é completamente suficiente. Mas,


se não, então, a compaixão é extremamente eficaz. Esta é a qualidade especial do
Budismo. Para o melhor resultado, você precisa tanto da vaziez como da compaixão, o
que se chama "a vaziez imbuída de compaixão". Mas se você não reconheceu
verdadeiramente a vaziez correta, então somente através da compaixão você pode ser
guiado para a vaziez.

Ter verdadeira devoção e compaixão é como o calor do verão que derrete o gelo.
Olhando para a essência da devoção, você conhece diretamente a consciência nua. É por
isso que a devoção é tão preciosa e importante. Existem dois tipos de bodichita: uma é a
vaziez e a outra é a compaixão. "Conceda-me as bênçãos de que a vaziez imbuída de
compaixão possa nascer dentro do meu ser!"

A principal qualidade do Budismo é, na melhor das hipóteses, reconhecer a vaziez, a


essência da mente; mas se você não a reconheceu, então você certamente deve praticar a
compaixão. Como mencionei em outro lugar, imagine como você se sentiria se sua mãe
estivesse antes de você e alguém cortasse seus braços, pernas e cabeça. O sentimento
esmagador que surge é chamado de compaixão. Suponha que você esteja aleijado, ou
que você está amarrado por correntes e cordas com sua mãe
à sua frente, e o inimigo chega. Primeiro, eles arrancam os olhos dela, a estrangulam e
tiram seu coração. Então, como se sentiria? Você sentiria amor e compaixão. Essa
compaixão pode ser cultivada e, através das bênçãos ou virtudes dessa compaixão, o
insight sobre a vaziez nascerá dentro do seu ser.

A vaziez sem compaixão nunca é ensinada. A água sempre estará molhada. Com a
compreensão da vaziez em seu ser, você também terá compaixão. Por que isso? Sem
entender a vaziez, nem um único ser senciente alcançará a iluminação. Uma vez que
você realiza a vaziez, você pensará: "Se todos os seres sencientes pudessem realizar
isso, oh, quão maravilhoso seria!"

Trecho de Vajra Heart - Tulku Urgyen Rinpoche - Rangjung Yeshe Publications (1994).
Adaptado ao português por Kadag Lundrub.

SEM SESSÕES, SEM


INTERVALOS.
"De manhã até a noite, a não-distração é muito importante".

Você deve saber como praticar no decorrer de um dia. O Dzogchen, o sistema da


Grande Perfeição, ensina "clarifique a consciência ao amanhecer", depois "dê ao dia as
experiências da estrela natural". Isso significa permanecer na consciência em todas as
experiências. Andando ou sentando-se, permaneça sem distração, repetidamente, muitas
vezes. Praticar a não-distração dessa maneira é o verdadeiro caminho, sem divisão entre
sessões e intervalos.

Geralmente, durante as sessões, você se senta, depois de sentar-se por um longo tempo,
você se levanta e anda por aí e esse é o período do intervalo ou o pós-meditação. De
acordo com o sistema do Sutra, a meditação formal é como o espaço, e o pós-meditação
é como uma ilusão. Então, ao se envolver nas atividades do cotidiano, você age como
uma pessoa ilusória que realiza atividades ilusórias, pensando que tudo é uma ilusão
sem essência concreta, que não existem fenômenos samsáricos reais.

No entanto, o sistema do Dzogchen não distingue entre sessões e intervalos. Isso


significa que, de manhã até a noite, a não-distração é o mais importante, não meditando
e não se distraindo. A melhor diligência nunca deve se separar da prática. Você deve agir
assim sem desistir, como quando se levanta da meditação. "Levantar" aqui significa
deixar a meditação formal para entrar no estado do pós-meditação, as atividades da vida
diária. Prossiga não alternando entre meditação formal e pós-meditação. Não faça
distinção ou divisão entre sessões e intervalos.

Quer você esteja sentado em uma sessão ou caminhando, quer você esteja comendo,
sentado ou conversando com pessoas, permaneça na consciência. Ao praticar dessa
forma, você alcançará rapidamente a estabilidade e a iluminação. Enquanto você
alternar entre a meditação formal e o pós-meditação, você permanecerá na consciência
no momento da meditação formal. Mas no que diz respeito ao pós-meditação, você
perderá a continuidade. Todo pensamento é a mente conceitual, assim o Dzogchen
ensina a ausência de divisão entre sessões e intervalos. Tudo é sessão. Às vezes, você se
distrairá, mas então, repetidamente, tente permanecer na não-distração. É assim que
você deve prosseguir para realmente praticar o Dzogchen.

Durante o sono, sua mente não é livre, então, ao acordar, aplique à diligência tanto
quanto possível. Às vezes, como você se acostumou com os padrões habituais desde o
tempo sem principio, a prática escapará. Repetidas vezes, somos levados depois de um
curto momento, porque não nos tornamos livres da armadilha dos dois tipos de
ignorância. Não alcançamos a liberação.

"Sem divisão entre sessões e intervalos" significa que, praticando Trekchö, não há um
tempo em que você deve olhar para a essência da mente e algum outro tempo em que
você não deve. O ponto principal é praticar em períodos curtos, mas repetido muitas
vezes. Caso contrário, como Jigmey Lingpa disse: "Se o momento curto for estendido,
torna-se conceitual". Para um iniciante é impossível permanecer em uma naturalidade
não-fabricada por um longo tempo, então o momento será apenas breve. Repita estes
curtos períodos com a maior frequência possível, muitas vezes. Caso contrário, se o
momento de naturalidade dura muito tempo, você está apenas pensando que isso é
assim. Não é possível durar muito agora. Embora muitas pessoas digam "Por uma hora
inteira, eu não me distraio", se fossemos contar, provavelmente, constataríamos que eles
se distraem cem ou mil vezes durante uma hora sem notar. No entanto, eles ainda
pensam que "eu não me distraio". O fato é que estamos habituados a nos distrair, e, na
realidade, o período de verdadeira não-meditação com a não-distração, nunca durará
mais do que apenas um breve momento. O que dura muito tempo é a mente conceitual
que se diz está no estado de meditação.

A visão verdadeira, não equivocada e não pervertida é livre de concepções. Não


pervertida significa livre da mente conceitual. A verdadeira visão não é pervertida, é o
que é. No presente, "o ser como é" não pode durar um longo período de tempo. Você
apenas pensa que é duradouro. Uma longa duração do estado desperto não-fabricado
pode acontecer depois de muitos anos de prática. Para poder dizer "eu não tenho
distração", depois de um ou dois anos é bastante improvável. Uma criança nascida hoje
não tem o poder imediato de vinte e cinco anos de idade. Lentamente, lentamente
crescerá. Depois de reconhecer, você deve treinar e atingir a estabilidade.

Como mencionei antes, quando viajo para Bodhgaya, a estrada não é reta. Mas não
importa como a estrada é, você não deve se desanimar. Da mesma forma, não perca a
coragem ao enfrentar experiências difíceis, mas repetidas vezes relaxe livremente na
consciência. Agindo assim, chegaremos a Bodhgaya um dia; nós alcançaremos a
iluminação. No entanto, sem estabelecer a estrada, como vamos chegar? Se você pensa
"Eu não posso ir, não consigo ir", então em cem anos você nunca chegará lá. Mas se
você não parar no caminho e não desistir, você chegará. Portanto, a prática de olhar para
a sua essência nunca deve ser abandonada, quer você se sente ou ande, seja lá o que
fizer. Uma vez que você está em um corpo físico, ocorrerão diferentes experiências.
Então, deixe o que quer que aconteça, acontecer. Não dê muita importância; fique
despreocupado em relação a isso.

"É sabedoria inconcebível, não sabedoria concebível".

Embora seu corpo possa estar confortavelmente na cama, quando você sonha, sua mente
passa por experiências deludidas e é governada por elas. A que aderem essas
experiências? No bardo é o mesmo.

Sonhando à noite, sua mente experimenta emoções como alegria e tristeza sem ligação
entre o mundo e a mente, mas ao acordar, seu corpo, mente e os objetos sensoriais estão
ligados entre si de várias maneiras. Durante a noite, enquanto seu corpo reside
confortavelmente na cama, sua mente está completamente deludida, vagando por aí
aterrorizada ou fascinada, envolvida por diferentes tipos de medos e delusões. Agora,
durante o estado de vigília, você está diretamente ligado ao mundo, mas no estado do
sonho, enquanto o seu corpo está adormecido, nenhuma ligação direta existe.

Os padrões habituais que influenciam a mente não têm substância material de maneira
alguma. Se tivessem substância material, também haveria um corpo físico no estado do
bardo, no qual o corpo morreu e foi deixado para trás. As experiências no bardo são as
mesmas que durante os sonhos. Agora temos um corpo físico, depois da morte, não o
teremos mais. Enquanto sonhamos, temos um corpo; encontra-se na cama. Mas, apesar
de o corpo ser cremado após a morte, padrões habituais que ainda existem dentro da
mente, nos fazem sentir que temos um corpo. Isso é chamado de corpo mental. Já não
temos o chamado corpo ilusório feito de agregados e elementos. O corpo no estado do
bardo não é de carne e osso; é um corpo mental.

Quando alcançamos o estado de iluminação, todos os carmas, padrões habituais e más


ações foram renunciados, então não precisamos seguir o carma; não somos governados
pelo carma. Agora, forçados pelo carma e padrões habituais, temos muitos problemas,
como sofrer experiências deludidas nos sonhos. No estado do bardo depois de morrer,
envolvidos em terror e medo, teremos que enfrentar os sons, as cores e as luzes. Vamos
sentir que temos um corpo, embora, na verdade não tenhamos. Sendo sem corpo, não
deveríamos sentir sede ou fome, mas nossos padrões habituais não dissolvidos nos
forçarão a sofrer dor e miséria. Neste momento, é nos dito que "Reconheça a essência
da mente, reconheça a essência da mente!" Uma vez que você estiver familiarizado com
essa essência, conquistará todos os carmas, padrões habituais e experiências deludidas.
Isso por si só é o suficiente.

Por exemplo, quando você se sente com raiva, se você olhar para a essência da raiva,
naquele momento de olhar para a essência a raiva se dissolve. Assim como a raiva não
persiste dentro do seu reconhecimento da essência da mente, os padrões habituais e as
experiências deludidas do estado do pós-morte tampouco.

Agora, nosso corpo sente frio, fome e sede. Se não tivéssemos um corpo, a mente não
deveria sentir isso. Mas, devido aos nossos padrões habituais, a falta de um corpo não
parece ajudar. (Rinpoche ri). Isso nos dá muitos problemas. Caso contrário, uma vez
tendo abandonado o corpo, não precisamos comer nada. Quando sentimos frio, o corpo
congela, não a mente. O corpo sente calor e frio. Se nos imaginarmos presos num
edifício em chamas, é a mente que queima? Se submergidos em água gelada, é a mente
que treme?

Todas essas experiências resultam de padrões habituais. Os padrões habituais e a


experiência deludida são, na verdade, os principais culpados. A menos que possamos
destruí-los agora mesmo, depois da morte, será impossível. Os carmas e as emoções
perturbadoras nesse momento são muito fortes. Como estar assustado com sua própria
cauda, o falecido está aterrorizado com suas próprias deidades inatas no bardo. A pessoa
morta entra em pânico quando vê as deidades de seu próprio corpo e pensa que estas
vão matá-lo. Elas gritam "HUNG HUNG! PHAT PHAT!" e assim por diante, e o
falecido pensa: "O Senhor da Morte chegou".

O trovão ressoa como se a mente se dividisse em pedaços; é tão terrível. Quando o


falecido foge das deidades de seu próprio corpo. Não é diferente de uma pessoa que
imagina um animal selvagem, e pensando que será comido por ele, foge. Um provérbio
tibetano diz: "O burro foge do susurro do capim". Um burro em um campo relvado fica
assustado e corre quando uma rajada de vento perturba o capim, pensando que algo do
lado de fora chegou. Na verdade, esse mesmo capim é apenas algo para comer.

As deidades de seu corpo são a expressão da pureza primordial, as manifestações


espontaneamente presentes de sua natureza búdica. Elas surgem de você e aparecem
para você. Vendo-as no bardo e pensando que são mensageiros do Senhor da Morte,
você fica aterrorizado e tenta fugir, sentindo que seu coração está se partindo. Na
verdade, os objetos desses medos são apenas imaginados como tais e não possuem
existência verdadeira.

Tudo pode ser agrupado em relativo e absoluto, em condicionado e incondicionado. O


condicionado é o relativo; o incondicionado, o absoluto. Ao falar sobre esses dois
grupos, o condicionado é o que é concebível, o que pode ser falado e explicado. O
incondicionado é inconcebível. Através da explicação, podemos abordar uma ideia
aproximada sobre a natureza inconcebível da mente. Mas o que pode ser entendido,
teoricamente concebido como uma ideia, ou tecnicamente aplicado, é apenas o
condicionado. O que a mente pode conceber é sempre o condicionado. O
‘inconcebível’, no entanto, refere-se ao que não se pode pensar com conceitos, o que é
impossível de compreender intelectualmente. A mente vazia, a natureza da vaziez é
inconcebível.

Lentamente, lentamente, progredindo ainda mais e tendo alcançado a estabilidade ao


reconhecer a natureza de sua mente, você pode resolver tudo com segurança. Mas até lá,
é como a diferença entre estar no topo da montanha e olhar para o topo de baixo. Do
mesmo modo, o inconcebível pode ser apenas parcial ou ligeiramente sugerido com
palavras. As palavras só podem indicar; o inconcebível deve ser experimentado através
da prática. Quando você percebe a natureza das coisas, então, como Longchen Rabjam,
você dominou o inconcebível.

Cientistas ocidentais dominaram o concebível. Dominar o condicionado pode beneficiar


sua situação atual. Mas quando você chega no bardo e os agregados e os elementos
desmoronam, nada além de sua familiaridade com o incondicionado será benéfico.
Enquanto a ligação entre corpo, fala e mente persistir, sua condição é condicionada.
Mas quando esta ligação é rompida, os confortos condicionados não ajudam muito.
Enquanto os padrões habituais condicionados obscurecerem e cobrirem o
incondicionado, não conseguiremos experimentar o inconcebível. Precisamos nos
acostumar com o reconhecimento da natureza da mente agora. Não há outro caminho. É
sabedoria inconcebível, não sabedoria concebível.

Trecho do livro Vajra Heart - Tulku Urgyen Rinpoche - Rangjung Yeshe Publications.
Adaptado para o português por Kadag Lundrub. Que todos os seres possam se
beneficiar!

ESTABILIDADE
"Então, o que realmente se resume é a visão".

Ter confiança e estar sem medo, mesmo no momento da morte, é a medida ou sinal de
sucesso na prática. Contudo, ter uma verdadeira confiança em si mesmo é muito difícil.
Se você pode dizer "Agora eu tenho total confiança em mim mesmo, o que quer que
aconteça eu não irei para os infernos", você alcançou estabilidade em dharmata, na
essência de sua mente. O que chamamos de inferno não é mais do que um dharma
condicionado, um fenômeno; não é dharmata, o inato. O renascimento no inferno requer
duas coisas: o lugar e aquele que toma o renascimento. Quando a fixação dualista foi
destruída e a dualidade tornou-se unicidade, como pode haver um lugar para nascer? Os
infernos foram então esvaziados. Enquanto tivermos a noção dualista de "eu e aquilo", o
inferno, não há liberação.

Os sutras mencionam a dupla ausência do ego. Ao resolver a ausência do ego, você deve
resolver a natureza do agarramento e da fixação. A falta de uma auto-entidade nos
objetos externos agarrados é a ausência de ego dos fenômenos. A falta de uma auto-
entidade na mente interna localizada é chamada a ausência de ego da pessoa. Para
resolver esse agarramento e fixação, perceber que objeto e sujeito não têm auto-
natureza, é a dupla ausência do ego. Não há, então, nenhum inferno para renascer
porque um inferno precisa de um lugar e de uma pessoa. ‘Aquele’ que assume o
renascimento é a sua mente e o ‘lugar’ onde se renasce é o inferno. Com a realização da
ausência do ego, como pode haver renascimento no inferno? Na consciência, rigpa, a
base para o inferno foi destruída. Naquele momento, então, você terá confiança em você
mesmo. Você vai olhar para si mesmo e dizer: "Eu alcancei agora a ausência do ego, não
tenho agarramento e fixação, não tenho chance de renascer no inferno". Você pode
pensar assim. (Rinpoche ri)

A menos que naquele momento você tenha certeza de que realmente destruiu o
agarramento e a fixação, então apenas dizer "Agora não há infernos!" é completamente
inútil. Na boca, as palavras são como a pretensão de dizer: "Não tenho fixação
dualista!" Esta é apenas uma compreensão intelectual e, em última instância, é inútil.
Em Kham, costumávamos colocar remendos, pedaços extras de tecido, sobre as roupas.
Eles não eram a própria roupa. A compreensão intelectual difere da visão na medida em
que não destrói a fixação dualista. A tradição Kagyü ensina que a compreensão
intelectual é como um remendo; ele desaparecerá, se desfará.

Tendo adquirido experiência, quando a ausência do ego da pessoa foi realizada e o


pensamento do "eu" destruído, como se pode ir para os infernos? As duas entidades
surgem do pensamento "eu": o inferno a nascer e o eu que nascerá lá. Quando o
agarramento e a fixação forem destruídas, você terá autoconfiança. Caso contrário, você
pensará: "Apesar de toda essa prática do Dharma que eu fiz, o que acontecerá mais tarde
no bardo? Como será? Será que minha prática será bem sucedida? Será que a prática da
deidade yidam tem sido útil? O bardo está cheio de grandes medos e sons esmagadores,
cores e raios de luz, dificuldades incríveis nos infernos quentes e frios. Quando eu
chegar lá, o que acontecerá? " Sem ter resolvido a visão, você terá esse tipo de dúvida.
(Rinpoche ri). Ter a real autoconfiança é a verdadeira medida, o teste.

Pense sobre a natureza condicionada da vida. Como pode o que é depende de outras
coisas ser permanente e duradouro? "A vida é condicionada, não tem permanência". Se
nossas vidas fossem incondicionais para começar, poderíamos fazer o que quiséssemos.
Mas onde nesta vida há permanência? "Os objetos são percepções, não têm existência
verdadeira". Todos os objetos são formas irreais e naturais da vacuidade. As percepções
ou as próprias aparências não têm existência concreta. Somente quando nossa fixação
sobre as aparências for destruída, as aparências ou percepções estarão além do beneficio
ou dano.
O que chamamos de inferno é uma mera percepção, uma experiência. Tudo o que
experimentamos agora é apenas percepção. "Os objetos são percepções, não têm
existência verdadeira". Eles não possuem a menor existência concreta. Pense sobre isso.
Os objetos são apenas experiências; eles realmente e verdadeiramente não existem.

Além disso, é dito que "o caminho é confusão, não tem realidade". Quando você falha
em reconhecer sua própria essência, que é a pureza primordial, você se desviou para o
‘caminho’ onde você experimenta os seis reinos dos seres sencientes. Esse é o aspecto
do caminho. O caminho é confusão; não é real.

Diz-se: "A essência da mente é o estado natural; não tem concretude". Isso significa
que é sem causa e condições. O estado natural é sinônimo para a vaziez profunda. A
essência não-surgida é a mesma que a pureza primordial. Os ensinamentos Dzogchen
dizem que a essência é primordialmente pura; o Mahamudra que a essência é não-
surgida, além da originação. Os Kagyupas reconhecem a essência não-surgida, a
essência além da originação. Isto é, de fato, o mesmo que a pureza primordial, aqui há
apenas uma escolha diferente de terminologia. Sua essência da mente é o estado natural;
não tem concretude.

Finalmente, é dito: "A mente é pensamento conceitual; é livre de base e raiz". O que
chamamos de mente é apenas o pensamento conceitual, os conceitos que se movem para
os cinco objetos, conceitualizando os cinco objetos. É meramente um pensamento que
se move após o outro. Sem um objeto, um pensamento não tem possibilidade de se
mover. Os objetos são as formas visíveis para os olhos, os sons para os ouvidos, o gosto
para a língua, o toque para o corpo e a alegria e a tristeza são os objetos mentais. Se não
experimentarmos esses objetos, um pensamento não pode se mover. O movimento do
pensamento depende dos objetos, os pensamentos estão ligados aos objetos.

O interior é a mente, no meio estão os cinco órgãos dos sentidos e suas cinco portas, e
externamente estão os cinco objetos sensoriais. Esses três componentes estão
continuamente ligados entre si. Uma vez que realizamos a ausência do ego, a ligação é
rompida; enquanto não forem cortados, estamos conectados ao samsara.

Como você pode realmente confiar em si mesmo? A menos que você realize a visão
correta, é muito difícil ter autoconfiança. Não importa o quanto você pretenda ter
autoconfiança, sem realização é apenas compreensão intelectual. Você pode pensar:
"Agora está tudo bem, agora está tudo certo, eu não vou para os infernos". Isso é
simplesmente a fabricação do pensamento. Na verdade, o inferno não existe em nenhum
lugar além de você mesmo. Uma vez que você realizou a vaziez, o inferno não tem
existência separada, porque os infernos são experiências deludidas, criadas por uma
mente não-virtuosa

Pense no que chamamos de inferno. Deve ter uma localização e deve provir de algum
lugar. Os trabalhadores que torturam os seres sencientes nos reinos do inferno devem ter
pais e mães. Todo esse fogo precisa ser feito; o ferro fundido deve ser aquecido. A
árvore shamal deve ser cultivada por alguém. Nas quatro direções estão as florestas de
árvores com folhas de espadas, o pântano de cadáveres apodrecidos, o grande poço
ardente das brasas e assim por diante. Tudo isso é criado apenas pelos padrões habituais
da experiência deludida, fabricado por uma mente não-virtuosa. Eles realmente não
existem.

Uma vez que você realiza a ausência do ego, está tudo bem. Sem ter realizado a
ausência do ego, não se pode fazer as coisas direiro. É ensinado: "Se a compreensão da
vaziez estiver correta, tudo está bem. Se a compreensão da vaziez não estiver correta,
nada estará bem". Uma vez que você se acostumou com a vaziez, uma vaziez que não é
apenas uma mera compreensão intelectual, então saiba que tudo ficará bem. Nada será
incorreto, desagradável ou mal sucedido. Quando a compreensão da vaziez não está
tudo bem, significa que você não realizou a vaziez correta, o verdadeiro samadhi. Tudo
será uma mera compreensão intelectual. Você simplesmente manterá e perpetuará uma
idéia intelectual.

Como mencionei antes, mesmo se alguém reconheceu a natureza da mente, se não


atingir a familiaridade com isso, então, os pensamentos surgirão como inimigos e você
será como um bebê em um campo de batalha. Como os pensamentos são inerentes, eles
surgirão e criarão inimigos. Quando os seres dos seis reinos falecem, são levados pelos
pensamentos, dominados pelo seu pensamento conceitual. Tendo alcançado a
estabilidade no estado desperto original não-conceitual, no entanto, não haverá lugar
para ir e ninguém que vá, mesmo que você seja lançado no inferno vajra mais inferior.
Há um ditado: "Mesmo que o universo multiplicado por três mil vezes seja virado de
cabeça para baixo e o monstro do senhor da morte abra a sua boca e o abismo dos
infernos seja aberto, nem um cabelo do seu corpo se moverá". Alcançar a estabilidade
na verdade de dharmata é assim. Então, o que realmente se resume é a visão.

Quando você tiver realizado a visão, você terá confiança e convicção. Isto é o que
significa autoconfiança: você deve agir de tal forma que você não se envergonha de si
mesmo, nunca pensando "Eu não sou bom". Quando você tem a certeza "Estou bem, eu
sou de primeira classe", isso é autoconfiança e não desprezar a si mesmo. "Não tenho
distração, não tenho confusão, não tenho fixação, tenho alcançado a estabilidade na
consciência, não há ninguém como eu". Isso não deve ser uma mera compreensão
intelectual. Deve ser conhecido sem nenhum orgulho, arrogância ou presunção. Este é o
orgulho da autoconfiança. Você pensará "Quem é superior a mim?" (Rinpoche ri). Eu
estou apenas brincando. Quando Milarepa olhou para os seres sencientes, ele pensou
que eles estavam loucos. Quando os seres sencientes olharam para Milarepa, eles
achavam que ele estava louco.

"A iluminação é como despertar do sono".

Os fenômenos samsáricos são impuros. Tradicionalmente, no que diz respeito aos


fenômenos samsáricos: "Primeiro a inexistência é ensinada, e a essência vazia é
explicada, a próxima existência é ensinada e a natureza cognitiva é explicada.
Finalmente, a unidade da existência e da inexistência é ensinada". Isso significa que a
essência e a natureza, a pureza primordial e a presença espontânea são uma unidade
dentro de rigpa, consciência desperta. Portanto, diz-se que os fenômenos samsáricos
aparecem enquanto não existem. Em relação à sua essência, eles são inexistentes;
quanto à sua natureza, eles são manifestos. O aspecto vazio e aparente dos fenômenos
impuros não pode ser separado. Os fenômenos puros são a unidade da pureza primordial
e presença espontânea. Eles transcendem os objetos de fixação e apego, como um arco-
íris que aparece no céu. São visíveis, mas carecem de natureza própria, não há nada a
agarrar e nada a manter. Este é o exemplo dos fenômenos puros. Os fenômenos como
percebidos pelos seres sencientes se tornaram cada vez mais grosseiros.

Os fenômenos começaram primeiro com o mundo chamado Nem Presença Nem


Ausência de Concepção. Daí, fomos iludidos nos três reinos do samsara, onde vagamos
devido à fixação no aspecto aparente. Primeiro, aparecem às quatro percepções
ilimitadas do Reino Sem Forma, então os dezessete mundos do Reino da Forma. Em
seguida, vêm os seis mundos dos deuses no Reino do Desejo e, finalmente, o resto dos
seis tipos de seres.

Conforme expressado pelos mestres da Kagyu: "A essência da mente co-emergente é


Darmakaya; a aparência co-emergente é a luz do Darmakaya". Aqui a aparência refere-
se a fenômenos puros. Os fenômenos impuros tornaram-se cada vez mais grosseiros. Os
quatro reinos da percepção infinita são sem forma; a forma nos 17 reinos dos deuses é
uma forma de luz. Tornando-se mais grosseiro, as formas corpóreas são desprovidas de
carne e sangue nos seis mundos do reino do desejo.

Os fenômenos impuros externos são os quatro principais elementos da terra, da água, do


fogo e do vento. No meio, temos a carne e o sangue, ossos, calor corporal, respiração,
agregados e fatores sensoriais. Todos os fenômenos, desde o início, carecem de
existência concreta. No sonho da noite passada, experimentamos alegria e tristeza,
países e lugares, casas e castelos e assim por diante. Podemos sonhar com todas essas
coisas, mas ao acordar, o que foi sonhado deixou de existir. Neste momento, todos os
fenômenos definitivamente só existem devido ao poder da confusão. Mas quando não
somos confundimos, tendo alcançado a estabilidade em rigpa, então, como um sinal da
inexistência primordial de todos os fenômenos, podemos atravessar livremente através
deles. Se todos os fenômenos existissem primordialmente, os budas precisariam
aniquilá-los para atravessá-los. Mas eles não são. Os fenômenos não possuem nem um
átomo de existência concreta, mas, devido à mente não-virtuosa, sentimos que eles
assim são. Está em um inferno com pensamentos conceituais, por exemplo, o inferno
parecerá ter uma existência material. Quando livre de pensamentos conceituais, não
existe um inferno real.

Em algum estágio futuro, possuiremos todas as qualidades e teremos purificado todos os


obscurecimentos. Assim, teremos alcançado o estado da insuperável iluminação. Antes
disso, no entanto, os seres sencientes não experimentam o domínio da plena iluminação.
Se os seres sencientes comuns pudessem experimentar isso, seria muito bom. Quando
você atinge a iluminação, nada é impuro, nem paisagens nem sons, nem estados da
mente, nem mesmo um grão de poeira. Um iogue realizado percebe tudo como a
continuidade da sabedoria pura; todo o mundo externo é um palácio celestial e os
habitantes, os seres sencientes, têm a natureza de dakas e dakinis.

Nossa percepção imediata simplesmente não é pura. Quando se torna pura, tudo é visto
como pureza dentro da própria experiência pessoal. Outros não perceberão dessa
maneira, uma vez que, sendo seres sencientes, não podem perceber a pureza. Mas,
tornando-se um puro iogue você mesmo, você vê a pureza. Esta é a diferença entre
percepção pessoal e percepção dos outros. Você pode ver outros seres como puros
porque eles já são puros; mas, devido a seus obscurecimentos, eles mesmos não
percebem essa pureza. Para um iogue puro, tudo dentro e fora, é a pureza simples do
corpo, fala, mente, qualidades e atividades. A chamada grande igualdade de samsara e
nirvana, aparece como tal porque é assim. Quando todos os obscurecimentos e padrões
habituais são purificados, você vê tudo como puro, mesmo que possa não parecer assim
aos outros.

A iluminação é como o despertar do sono. O pensamento conceitual cria todas as


percepções e fenômenos da vida cotidiana e tudo o que você experimenta à noite é
criado pelo sono. Despertando do sono, o sonho desaparece. Quando as percepções,
experiências e confusões do pensamento conceitual forem completamente purificadas,
nada restará desta presente confusão. A manifestação de todos os fenômenos, é
meramente a exibição da luz de arco-íris. Quando não há manifestação, há apenas o
espaço da pureza primordial.

A experiência mundana dos fenômenos é chamada de percepção impura, a percepção


confusa dos seres sencientes. Na experiência de alguém que tem percepção pura, uma
casa será um palácio celestial. No palácio celestial não há experiência de terra, água,
fogo ou vento. Tudo é luz de arco-íris. Quão maravilhoso! As casas são casas de luz de
arco-íris. Você não pode dizer que elas não existem porque têm qualidades manifestas.
Você não pode dizer que existe porque não há a sensação concreta de terra, fogo, água
ou vento. Isso revela sua inexistência primordial.

A consciência deve retornar ao espaço interior. Rigpa foi inicialmente perdido por um
distanciamento progressivo em direção ao samsara; na ordem inversa deve retornar à
pureza primordial. Todos os fenômenos de aparência e existência, agarramento e
fixação, não possuem nem uma ponta de cabelo de existência concreta. A pureza
primordial não tem concretude. Todos os fenômenos do samsara e do nirvana se
manifestam do espaço da pureza primordial. Os vários fenômenos do estado de vigília
são todos percebidos dentro do contexto do pensamento conceitual. Quando você está
estabelecido na sabedoria da consciência livre de conceitos, é como um filme que se
desmoronou. Você pode criar a Terceira Guerra Mundial em um filme, mas se o filme
parar, o mesmo acontece com a guerra; desse modo, o colapso da confusão.

Milarepa poderia atravessar livremente através de rochas e montanhas, porque ele tinha
alcançado a estabilidade na pureza primordial, em seu próprio estado desperto
autoexistente. Ele não precisava usar a força para perfurar a matéria sólida com seu
corpo. O colapso da confusão é bastante espantoso! (Rinpoche ri)

Extraído do livro Vajra Heart - Tulku Urgyen Rinpoche - Rangjung Yeshe Publications
(1994)’. Adaptado ao português Kadag Lundrub
Trechos do Livro As It Is vol. 1 e 2 – Tulku Urgyen Rinpoche

A Base: A Natureza Búdica

A PRINCIPAL IMAGEM DO DHARMADHATU É A DO ESPAÇO – “o espaço de


todas as coisas”, dentro do qual todos os fenômenos se manifestam, desaparecem e se
dissolvem de volta. Isso é semelhante ao espaço físico, que é como um recipiente dentro
do qual os quatro elementos restantes aparecem, permanecem e desaparecem. Estes
quatro elementos não saem de nenhuma outra fonte; eles emergem do próprio espaço.
Eles não ficam em nenhum outro lugar além do espaço; nem eles vão a qualquer lugar
fora do espaço. Da mesma forma, o dharmadhatu é o ambiente básico de todos os
fenômenos, quer eles pertençam ao samsara ou ao nirvana. Abrange o que aparece e
existe, incluindo os mundos e todos os seres. Tudo ocorre dentro e se dissolve de volta
no estado do dharmadhatu. O dharmadhatu engloba todo o samsara e o nirvana – não
inclui apenas o nirvana e exclui o samsara; não é assim, os fenômenos externos
aparecem dentro do espaço, permanecem no espaço e desaparecem no espaço
novamente. Existe algum lugar onde a terra, água, fogo e vento possam sair do espaço?
Não permanecem sempre dentro do espaço? Quando se desintegram, não é dentro do
espaço que eles se dissolvem? Existe algum lugar para ir para o qual é além ou fora do
espaço, que está em algum lugar além do espaço? Por favor, compreenda muito bem
essa semelhança simbólica entre o dharmadhatu e o espaço físico.
A relação entre dharmadhatu, darmakaya e a sabedoria do dharmadhatu é como a
relação entre um lugar, uma pessoa e a mente da pessoa. Se não existe um lugar, não há
ambiente para a pessoa existir nele; e não há ninguém, a menos que essa pessoa também
tenha uma mente habitando no corpo. Do mesmo modo, o campo ou domínio principal
chamado dharmadhatu tem a natureza do darmakaya. O darmakaya tem a qualidade da
sabedoria do dharmadhatu, que é como o aspecto mental.

Também precisamos entender claramente o que se entende pelos os termos 'samsara' e


'nirvana'. Nirvana significa a natureza de Buda plenamente realizada que consiste em
aspectos de Corpo, Fala e Mente. O Corpo é a essência que simplesmente é. A Fala é a
sua natureza, a qualidade cognitiva que está vividamente presente. E a Mente é a
capacidade, que é radiante. Esses três aspectos compreendem a presença básica de todos
os budas. Eles não são outra coisa que não a sua essência, natureza e capacidade. Todos
os sugatas possuem a mesma identidade. Da mesma forma, o samsara é o corpo, a fala e
a mente de todos os seres sencientes, que são as expressões deludidas de sua essência,
natureza e capacidade. Desta forma, o dharmadhatu engloba todo o samsara e o nirvana.

O dharmadhatu é adornado com o darmakaya, que é dotado da sabedoria do


dharmadhatu. Esta é uma declaração breve mas muito profunda, porque "dharmadhatu"
também se refere a natureza do sugata-garbha ou natureza de buda. A natureza de buda é
todo-abrangente: isso significa que é presente e serve de base para todos os estados,
independentemente de pertencerem ao samsara ou ao nirvana. Lembre-se, 'nirvana'
refere-se ao Corpo, Fala e Mente de todos os seres despertos. O Corpo é a essência
permanente, a Fala é a natureza vividamente presente, e a Mente é a capacidade
radiante. Estes três, o corpo, a fala e a mente de todos os budas, também são conhecidos
como os três vajras.

Esta natureza de buda está presente assim como o sol brilhante está presente no céu. É
indivisível dos três vajras do estado desperto, que não perecem ou mudam. O Corpo
vajra é a qualidade imutável, A Fala vajra é a qualidade incessante e a Mente vajra é a
qualidade não-deludida e sem enganos. Então, a natureza de Buda ou dharmadhatu são
os três vajras; ao mesmo tempo, sua expressão se manifesta como o corpo, a fala e a
mente deludida de todos os seres.

No sentido normal da palavra, "corpo" refere-se a algo perecível composto de carne e


sangue. 'Fala' refere-se a expressões intermitentes que vêm e vão e, eventualmente,
perecem. E a "mente" refere-se a estados de pensamento e emoções que vêm e vão sob
o poder da atitude dualista, como contas em um rosário. Esses estados mentais também
são transitórios. Todos concordam que o corpo, a fala e a mente dos seres vivos estão
constantemente mudando, continuamente indo e vindo. Ainda assim, a base do nosso
corpo, fala e mente comuns é a natureza de Buda, o dharmadhatu que engloba todo o
samsara e o nirvana. Não existe um único ser para o qual não seja assim.

Olhando por um ângulo puro, então, esta natureza de Buda está presente em todo ser, a
expressão dos vitoriosos, assim como os raios de luz estão presentes no sol. A luz é
emitida pelo sol, não é? Se não fosse pelo sol, não haveria luz. Da mesma forma, a
origem do corpo, fala e mente dos seres é a expressão da natureza de Buda que permeia
o samsara e o nirvana.
È dito que todos os seres sencientes são budas, mas são cobertos por seus
obscurecimentos temporários. Esses "obscurecimentos temporários" são os nossos
próprios pensamentos. O dharmadhatu engloba todo o samsara e o nirvana – não apenas
o estado desperto do nirvana, mas tudo, cada coisa. O corpo, a fala e a mente comuns
dos seres sencientes surgiram temporariamente da expressão das qualidades do corpo,
da fala e da mente iluminada. À medida que o espaço permeia, tão somente a
consciência permeia. Se isso não fosse assim, então o espaço seria permeado, mas rigpa
não. Assim como o espaço, rigpa é todo-abrangente: nada se encontra fora dele. Assim
como os conteúdos e os seres são todos permeados pelo espaço, rigpa permeia as
mentes dos seres. O dharmadhatu permeia todo o samsara e o nirvana.

É essencial começar com uma compreensão básica da profundidade do que se entende


aqui para poder praticar autenticamente o ensino da Grande Perfeição. A menos que
possamos saber o que é o que, pelo menos intelectualmente, pode nos parecer como se
os seres sencientes fossem desconectados, entidades alienígenas, não tendo ideia de
onde eles vieram,de onde eles pertencem ou o que eles realmente são. Eles não estão
desconectados. A diferença entre budas e seres sencientes reside na estreita afinidade de
alcance e atitude destes últimos. Os seres sencientes confinam a si mesmos a sua
pequena e limitada área do samsara por sua própria atitude e pensamento.

Dizem que a diferença entre budas e seres sencientes é como a diferença entre a
estreiteza e a abertura do espaço. Os seres sencientes são como o espaço mantido dentro
de um punho bem fechado, enquanto os budas estão totalmente abertos e todo-
abrangentes. O espaço básico e a consciência são inatamente todo-abrangentes. O
espaço básico é a ausência de construções mentais, enquanto a consciência é o
conhecimento desta ausência de construções, reconhecendo a vaziez completa da
essência da mente. O espaço e a consciência desperta são inerentemente indivisíveis. É
dito: "Quando a mãe, o espaço básico do dharmadhatu, não se afasta de seu filho a
consciência desperta, não tenha dúvidas de que eles são para sempre indivisíveis".

O Dharma ultimo é a realização da indivisibilidade do espaço básico e da consciência


desperta. Esse é o ponto de partida, e é isso que é apontado para começar. É essencial
entender isso; caso contrário, podemos ter a sensação de que Samantabhadra e sua
consorte são um velho homem azul e uma mulher que viveram há aeons atrás. Não é
nada disso! Samantabhadra e sua consorte são a unidade indivisível do espaço e da
consciência desperta.

Como você sabe, os nove veículos graduais e as quatro escolas de filosofia –


Vaibhashika, Sautrantika, Mente Apenas e Caminho do Meio – são projetados para
atender às várias capacidades mentais de diferentes pessoas. O termo Grande Perfeição,
por outro lado, implica que tudo está incluído no Dzogchen; que tudo está completo.
Diz-se que o dzogchen é incomparável, o que significa que não há nada maior que ele.
Por que isso? É por saber o que realmente é ser como é – o estado último desnudo do
darmakaya. Não é verdadeiramente o melhor? Por favor, com cuidado, entenda isso.

A Grande Perfeição está totalmente além de qualquer tipo de compartimento sejam eles
quais forem. É totalmente aberta, além de categorias, restrições e limites de
pressupostos e crenças. Todas as outras formas de descrever as coisas são limitadas por
categorias e limitações. O destino ultimo para chegar no Dzogchen é a visão dos kayas e
sabedorias. Ouça esta citação: "Embora tudo esteja vazio, a qualidade especial do
Buddhadharma é não estar vazio dos kayas e da sabedoria". Todos os outros sistemas
explicam que todas as coisas estão vazias, mas verdadeiramente, a intenção do Buda é
usar a palavra "vacuidade" ao invés de "vazio". Este é um ponto muito importante.

Por exemplo, nas escrituras Prajnaparamita você encontra as declarações, "As coisas
externas são a vacuidade, as coisas internas são a vacuidade, a vacuidade é vacuidade, o
vasto é a vacuidade, o ultimo é a vacuidade, o condicionado é a vacuidade, o
incondicionado é a vacuidade..." A "vacuidade" aqui deve ser entendida como
"conhecimento vazio". Por favor, entenda isso. O sufixo '-dade' implica a qualidade
cognitiva. Precisamos entender esta palavra em sua conotação correta.

Caso contrário, parece muito niilista simplesmente dizer que as coisas externas são
vazias. Se entendemos a "vacuidade" como um vazio ou um vácuo, em vez de
"conhecimento vazio" estamos nos inclinando demais para o niilismo, a idéia de que
tudo é um grande vazio em branco. Este é um desvio sério.

O Buda inicialmente ensinou que todas as coisas são vazias. Isso foi inevitável; na
verdade, era justificável, porque precisamos desmantelar nossa fixação sobre a
permanência do que experimentamos. Uma pessoa normal se apega ao conteúdo de suas
experiências como algo sólido, como sendo "isso" – não apenas como mera
"experiência", mas como algo que tem solidez, que é real, que é concreto e permanente.
Mas se olharmos honestamente e de perto para o que acontece, a experiência é
simplesmente experiência e não é feita de absolutamente nada. Não tem forma, nem
som, nem cor, nem gosto e nem textura; é simplesmente experiência – um conhecimento
vazio.

A exibição vívida nas múltiplas cores que você vê com os olhos abertos não é a mente,
mas sim "matéria iluminada". Da mesma forma, quando você fecha os olhos e vê algo
escuro, não é a mente, mas sim "matéria escura". Em ambos os casos, a questão é
meramente uma presença, uma experiência de algo. É a mente que experimenta os
elementos externos e tudo o mais.

Uma aparência só pode existir se houver uma mente que a veja. A "visão" dessa
aparência não é outra coisa que não a experiência; isso é o que realmente ocorre. Se não
for percebida, como uma aparência pode ser uma aparência? Não existiria em qualquer
lugar. As percepções são experimentadas pela mente; elas não são experimentadas pela
água ou pela terra. Todos os elementos são vividamente distinguidos, desde que a mente
não se fixe neles. No entanto, eles não são nada mais que uma mera presença, uma
aparência. É a mente que apreende esta mera presença. Quando essa mente não
apreende, agarra ou se fixa no que é experimentado – em outras palavras, quando o
verdadeiro e autêntico samadhi da talidade alvorece dentro do seu fluxo de ser – a
"realidade" perde sua qualidade sólida e obstrutiva. É por isso que os iogues realizados
não podem ser queimados, afogados ou prejudicados pelo vento. Na sua experiência,
todas as aparências são uma mera presença, uma vez que a fixação foi desintegrada no
interior. A mente é aquela que experimenta, aquela dentro da qual a experiência se
desenrola. O que mais há para experimentar? Mente significa experiência individual.
Toda experiência é individual, pessoal.

Pois, o fato de que a ilusão de um yogue se dissolve não significa que a ilusão de todos
os outros se desvanece também. Quando alguém se torna iluminado, essa pessoa se
torna iluminada, não todos os outros. Quando um yogue transcende a fixação, apenas a
experiência individual deludida dessa pessoa se dissolve. Por favor, pense nisso. Há, no
entanto, outro aspecto chamado "experiência do outro" ou "experiência geral" de seres
sencientes.

Em toda esta realidade aparentemente sólida [Rinpoche bate na madeira de sua cama],
não há uma única coisa que seja indestrutível. O que quer que seja material neste mundo
será destruído no fogo no final deste kalpa; não há exceção. Este fogo desaparece por si
mesmo [Rinpoche ri.]

Tente passar algum tempo no treinamento do Nangjang,1 e você descobrirá que toda a
realidade é insubstancial e irreal. Através do treino em Nangjang, descobrimos que toda
experiência é experiência pessoal e que toda experiência pessoal é vista como irreal e
insubstancial quando não fixada. Neste mundo inteiro, não há aparência criada que
permaneça em definitivo. As formas visuais aparentemente externas não permanecem
em lugar nenhum. Essas meras percepções são experiências cármicas dependentes. Toda
a realidade relativa é, por definição, dependente de outra coisa, de causas e condições,
não é? Ao explicar os fenômenos relativos, você deve mencionar suas causas e
condições; não há maneira de contornar isso. No final, percebemos que sua natureza é,
em última análise, além das causas e condições. O que é "definitivo" não pode ser
produzido por causas e condições.
1
O treinamento em Nangjang – literalmente 'treinamento na experiência do refinamento' – é o
processo pessoal de resolver a natureza da realidade e da experiência por meio dos ensinamentos
profundos da Grande Perfeição. Um exemplo extraordinário deste método de prática é encontrado no
Estado Búdico Sem Meditação de Dudjom Lingpa. Padma Publishing, 1994.

Somente o estado autêntico de samadhi pode purificar ou esclarecer essa confusão


autocriada. Mais aparências e fixação adicional não vão destruir isso. Este estado
profundo está presente em cada indivíduo, se ao menos eles o conhecessem! A natureza
última já está totalmente presente. Ela recebe nomes como darmakaya, sambogakaya e
nirmanakaya. Nosso estado deludido esconde isso de nós, mas é realmente isso que
destrói a ilusão. Isso não é realmente incrível! [Rinpoche ri.]

Uma vez que alcancemos a estabilidade no samadhi, a ilusão é destruída, já que o


samadhi desmantela todo o drama da ilusão. Em outras palavras, essa mente
basicamente criou a delusão, mas ao reconhecer a natureza dessa mente, esclarecemos
as nossa delusões, uma vez que nesse momento não pode ser re-criada nenhuma
delusão. Se todos pudessem entender isso! Isso é incrível! [Rinpoche ri.] É a própria
mente que cria toda essa ilusão, mas é também a própria mente que pode deixar toda a
ilusão entrar em colapso. [Rinpoche ri novamente.) Além da natureza de Buda, o que
mais há para ser livre de delusão? A natureza de Buda é a própria base para a delusão. É
também o que dissolve a delusão. Por favor, tente cuidadosamente entender isso! Isso é
algo que você pode entender!

A delusão parece separar todos os seres sencientes de sua natureza de buda. Porém é
precisamente esta natureza de buda que aclara a ilusão. É basicamente uma questão de
reconhecê-la ou não. Nós falamos daqueles que nunca foram iludidos: os budas e as
centenas de famílias sublimes de sugatas pacíficos e irados, incluindo Buda
Samantabhadra: Ao falhar em reconhecer, é-se iludido. A delusão se dissolve no preciso
momento em que se reconhece a identidade daquilo que é iludido.
A delusão é como tornar-se possuído por um espírito durante uma sessão, quando
alguém começa a saltar repentinamente e fazer todo tipo de coisas loucas. Isso é
exatamente o que aconteceu com todos nós. Os seres sencientes são possuídos pelo
"espírito" da ignorância e as 84.000 emoções perturbadoras, e todos estão dançando por
aí fazendo coisas inacreditáveis. Eles vêm sendo submetidos a todos os diferentes tipos
de dor e miséria por tanto tempo, eras após eras. Mas é uma possessão auto-criada. Não
é realmente algo de fora. A natureza de Buda perdeu a noção de si mesma e criou o
samsara, mas também é igualmente a natureza de Buda reconhecendo a si mesma, é o
que clarifica a delusão da existência samsárica. O momento do reconhecimento é como
se o espírito fosse embora. De repente, a possessão desaparece. Não podemos dizer para
onde foi. Isso é chamado de "colapso da confusão".

Nós sofremos tanta miséria – oh céus! Girando na roda do samsara, sofremos tantas
dificuldades! Perambulando e divagando entre as seis classes de seres, é claro, nós
sofremos! [Rinpoche ri] Um yogue é como uma pessoa anteriormente possuída, a quem
o espírito a deixou. Enquanto "possuída", essa mente pensa e age na delusão, mas no
preciso momento em que você reconhece a natureza dessa mente – rigpa – a possessão
desaparece imediatamente. [Rinpoche ri.]

Trecho do livro As It Is, Vol. 1, Tulku Urgyen Rinpoche (Boudhanath:


Rangjung Yeshe Publications, 1999) Adaptação para o português
Kadag Lundrub.

SHAMATHA E VIPASHYANA

A frase tradicional é: cultivar shamatha e treinar em vipashyana. O budismo nunca diz


que shamatha e vipashyana são supérfluos e devem ser ignorados ou deixados de lado.
Nem eu jamais ensinaria isso. Mas há momentos em que eu aparentemente colocaria a
shamata um pouco a baixo. Há uma razão para isso, e essa razão é encontrada somente
em um contexto particular.

O contexto dos ensinamentos gerais é de conversar com um ser sensível que está
experimentando perplexidade ininterrupta – um pensamento ou emoção após o outro
como a superfície do oceano em tumulto, sem qualquer reconhecimento da essência da
mente. Essa confusão é contínua, com praticamente nenhuma pausa, vida após vida.
Dizer a tal pessoa que shamatha é desnecessário não é definitivamente a maneira correta
de ensinar, porque a mente dessa pessoa é como um elefante bêbado ou um macaco
louco; ela simplesmente não vai ficar quieta. Tal mente tem se acostumado com o hábito
de seguir o que se pensa, desprovida de qualquer insight que seja. Shamatha é um meio
hábil para lidar com este estado. Uma vez que os pensamentos confusos tenham
diminuído em certa medida, é mais fácil reconhecer a visão clara da vacuidade.
Portanto, nunca é ensinado que shamatha e vipashyana são desnecessários.

Os estilos de ensino são adaptados aos dois tipos básicos de mentalidade: um orientado
para objetos percebidos, o outro para a mente conhecedora. A primeira mentalidade
persegue visões, sons, cheiros, gostos, texturas e objetos mentais e é instável na
natureza búdica. Esta é a situação com a tríplice perplexidade – a perplexidade do
objeto, da faculdade sensorial e da percepção sensorial, que provoca o renascimento em
um corpo comum. Devido a este hábito profundo de ficar preso em um pensamento
após o outro, perambulamos através do samsara sem fim. Para estabilizar tal mente, os
primeiros ensinamentos precisam mostrar a essa pessoa como se acalmar, como
alcançar ou resolver-se sobre alguma qualidade estável dentro da turbulência. É como o
exemplo da água barrenta: a menos que e até que a água esteja clara, você não pode ver
o reflexo de seu rosto. Da mesma forma, instruções sobre shamatha são essenciais para
o indivíduo que se deixa levar por pensamentos.

Os pensamentos aparecem do nosso conhecimento vazio. Eles não vêm apenas da


qualidade vazia. O espaço não tem pensamentos, nem os quatro elementos. Paisagens,
sons e outras sensações não pensam. As cinco portas dos sentidos não pensam. Os
pensamentos estão na mente, e esta mente, como eu mencionei tantas vezes, é a unidade
do ser vazio e cognoscente. Se estivesse apenas vazia, não haveria possibilidade de os
pensamentos surgirem. Os pensamentos proveem unicamente do conhecimento vazio.

Os veículos gerais sustentam que o método de shamatha é necessário para permanecer


pacificamente. Para neutralizar nossa tendência de fabricar constantemente, os budas
nos ensinam a como confiar em um suporte. Ao nos acostumarmos a esse suporte, nossa
atenção se estabiliza, permanece estável. Neste ponto, é muito mais fácil apontar que a
natureza da atenção é conhecimento vazio. Mas por favor, lembrem-se de que a mera
permanência, simplesmente por descansar na estabilidade da prática de shamatha, não
garante o reconhecimento da nudez do estado desperto auto-existente.

De um modo geral, a mente tem muitas características diferentes – algumas boas,


algumas ruins, algumas calmas, outras indomáveis. Algumas pessoas se agarram ao
desejo, outras são mais agressivas; há tantos tipos diferentes de atitudes mundanas. Se
você quiser que sua mente fique quieta e silenciosa, ficará quieta e silenciosa, desde que
você treine o tempo suficiente. Isso é certo – mas isso ainda não é um estado de
liberação.

O processo de ficar quieto é como uma pessoa que aprende a sentar-se em vez de vagar
por todos os lados de forma desnorteada e confusa. Ainda assim, olhando-o de longe
enquanto ele se senta não dá necessariamente qualquer indicação de seu verdadeiro
caráter. E, como você sabe, as pessoas têm personalidades diferentes. Uma pessoa pode
ser muito gentil, disciplinada e amável – mas enquanto ela estiver sentada lá, você não
vai saber disso. Outro pode ser muito grosseiro, de temperamento curto e violento, mas
você não vai saber disso também. Essas características só se mostram uma vez que os
pensamentos de uma pessoa começam a se mover novamente. Quando os pensamentos
se movem, normalmente nos tornamos atraídos pela ilusão. Ao mesmo tempo, nossa
natureza está primordialmente livre do obscurecimento de emoções e pensamentos.
Pensamentos e emoções são apenas temporários. O verdadeiro caráter da mente é um
estado desperto auto-existente, o estado realizado por todos os budas.

As instruções do Dzogchen, Mahamudra e o Caminho do Meio todos explicam que não


importa qual pensamento surja ele é livre da forma, do som, do gosto, do toque, e assim
por diante. Todo movimento é vazio, movimento vazio. Embora uma emoção seja vazia,
ela ainda parece surgir. Dado que a nossa natureza é conhecimento vazio, o movimento
do pensamento pode ocorrer. Se deixar levar por um pensamento é o estado de um ser
senciente. Em vez disso, reconheça seu estado básico como sendo a essência, a natureza
e a capacidade que são os três kayas dos budas. Permaneça na naturalidade não-
elaborada por momentos curtos, repetidos muitas vezes. Você pode se acostumar com
isso. O curto momento pode ser alongado. Em um instante de permanência na
naturalidade não-fabricada, um kalpa de carma negativo é purificado. Um instante de
naturalidade transforma um kalpa de carma negativo.

Você precisa simplesmente permitir o momento de naturalidade não-elaborada. Em vez


de meditar sobre ela, o sentido é focalizá-la, simplesmente permitir que ela seja
naturalmente. À medida que você treina assim – e as palavras para treinar e meditar
soam o mesmo em tibetano, então para jogar com essa palavra – é mais uma questão de
familiarização do que de meditação. Quanto mais você se familiarizar com a essência da
mente, e quanto menos você deliberadamente meditar sobre ela, mais fácil se torna
reconhecer e mais simples de sustentar.

O vislumbre de reconhecer a essência da mente que no começo durou apenas alguns


segundos gradualmente se transforma em meio minuto, depois em um minuto, depois
em meia hora, depois em horas, até que eventualmente é ininterrupto durante todo o dia.
Você precisa desse tipo de treinamento. Menciono isso porque, se o objetivo do
treinamento principal é construir um estado em que os pensamentos tenham diminuído e
que se sinta muito claro e quieto, isso ainda é um treinamento no qual um estado
particular é deliberadamente mantido. Tal estado é o resultado de um esforço mental,
uma busca. Portanto, não é nem o estado natural ultimo nem o original.

A essência nua da mente não é conhecida em shamatha, porque a mente está ocupada
com a permanência na quietude; assim, ela permanece invisível. Tudo o que se está
fazendo é simplesmente não seguir o movimento do pensamento. Mas ser iludido pelo
movimento do pensamento não é a única ilusão; também é possível se iludir
permanecendo em quietude. A preocupação com a calma bloqueia o reconhecimento da
estado desperto auto-existente e também bloqueia o conhecimento dos três kayas do
estado desperto. Esta calma é simplesmente uma ausência de pensamento, da atenção
permanecendo em si enquanto ainda não se conhece.

A raiz do samsara é o pensamento. O “dono” do samsara é o pensamento. No entanto, a


própria essência do pensamento é o dharmakaya, não é? Precisamos treinar para
reconhecer essa essência do pensamento – as ‘quatro partes sem os três’. Treinar nisto
não é um ato de meditar em algo, mas um ‘acostumar-se à’. No entanto, não é como
memorizar, como em aprender versos de cor.

Meditação geralmente significa prestar atenção. Mas, neste caso, precisamos treinar
para ser livre do observador e do que é observado. Em shamatha há um observador e um
objeto observado. Então, honestamente, shamatha é também um treinamento em
bloquear a vacuidade. Shamatha torna a mente habituada e ocupada quieta e imóvel.
Algo sempre é mantido. Esse tipo de estado é um produto de uma técnica. Alguém
aplica demasiado esforço para fabricar um determinado estado mental fabricado. E
qualquer estado que é um produto de treinamento não é liberação. É Simplesmente ser
capaz de permanecer quieto e não causar confusão.

O oceano poderá parecer totalmente imóvel se você pudesse de alguma forma forçar as
ondas a diminuir, mas dentro da água, todos os tipos de sedimentos ainda estão
flutuando ao redor. A água pode estar livre de ondas, mas não está livre de detritos. Da
mesma forma, durante um estado sustentado de quietude, as tendências habituais para os
oitenta estados de pensamento inatos, os cinquenta e um eventos mentais e todas as
emoções virtuosas e não virtuosas estão presente de forma latente. Elas podem não ser
óbvias; elas podem não estar ativas; mas ainda assim, elas não foram liberadas.

O que estou criticando aqui é a ideia de que a quietude da mente livre de pensamento é,
em última instância, preferível ou uma meta em si mesma. No ensinamento do Buda não
o é; a quietude em si mesma não é liberação. Ao persegui-la, pode-se atingir longos e
prolongados períodos de completa tranquilidade, mas isso não é o mesmo que a
verdadeira libertação.

O estado desperto de rigpa, por outro lado, é completamente aberto. Nada é fixado
sobre, como o oceano em que nenhum sedimento permanece. Quando você mistura terra
em água, torna a água suja. Da mesma forma, você não alcança a iluminação por meio
de shamatha apenas. Você precisa de vipashyana, a qualidade da visão clara, que é
inerente a vacuidade além da mente conceitual.

Em todos os níveis da prática budista, estes dois têm de ir juntos: a quietude e o insight,
shamatha e vipashyana. No início da prática de shamatha, pode-se usar um seixo ou a
respiração como objeto de atenção, mas neste caso há sempre dualidade: a divisão entre
o objeto de atenção e a atenção atenta em si – o que mantém um olho sobre o que não se
deve distrair. No Dzogchen, por outro lado, alguém é introduzido ao estado nu do
dharmakaya desde o início. No contexto do Dzogchen, às vezes se diz que a quietude
não é absolutamente necessária. Isso é apenas para pessoas de maior capacidade; não é
para todos. Não é um ensinamento geral do Dzogchen dispensar shamatha, de modo
algum. No Dzogchen, Mahamudra e o Caminho do Meio, nunca se ensina que você não
precisa de shamatha; é apenas o defeito acima mencionado de shamatha que precisa ser
evitado.

Então, você começa com shamatha e continua até que você seja capaz de permanecer
adequadamente estável. Neste ponto é muito mais fácil ver sua essência nua. É como
querer ver seu rosto refletido em uma piscina de água – não ajuda se a superfície da
água for continuamente agitada. Em vez disso, você precisa permitir que ela se torne
imóvel e plácida. A fim de ganhar a percepção de vipashyana, é primeiro necessário
permitir que a mente se estabeleça para que sua essência possa ser vista claramente. No
sistema geral do budismo, isso é indispensável.

Conforme você progride mais através dos veículos, você descobre mais profundidade
para os significados de shamatha e vipashyana. Há, por exemplo, shamatha ordinária e
extraordinária e vipashyana. Em última análise, diz-se que a mente de buda é a unidade
de shamatha e vipashyana, mas esse tipo de shamatha e vipashyana não é o tipo comum
e conceitual de quietude induzida seguido por um insight alcançado. O nome usado
naquele ponto é a shamatha e vipashyana que delicia os tathagatas. Em outras palavras,
eles estão satisfeitos com esse tipo porque é impecável. Palavras semelhantes,
significados diferentes: o shamatha ordinário e extraordinário e vipashyana são tão
diferentes como o céu e terra.

Mais uma vez, não pense que shamatha e vipashyana são desnecessárias. Em rigpa, a
estabilidade intrínseca é shamatha e a qualidade desperta é vipashyana. A estabilidade
livre do pensamento é a shamatha suprema. Estar livre do pensamento ao reconhecer
sua essência é a unidade indivisível de shamatha e vipashyana que deleita os tathagatas.

O dzogchen também usa as palavras shamatha e vipashyana, mas nesse ponto elas não
se referem a um resultado da prática. O Tesouro do Dharmadhatu por Longchenpa diz:

A natureza original, totalmente livre de todos os pensamentos, é a


shamatha ultima.

A cognição natural, espontaneamente presente como o brilho do sol,


É a vipashyana que é totalmente não-elaborada e naturalmente presente.

A partir desta perspectiva do Dzogchen, shamatha é a qualidade imutável da


estabilidade inata, enquanto o sentido natural de estar desperto é o aspecto vipashyana.
Nenhum destes é produzido ou fabricado de qualquer maneira. Dizer que shamatha não
é necessária refere-se à quietude da fabricação feita pela mente. Quando eu lhe disse
antes para não meditar, era para não meditar no sentido da meditação produzida pela
mente. Foi esse tipo de shamatha que eu disse para você parar.

Visão clara, vipashyana, é a sua cognição vazia, sua consciência nua além de aumento e
diminuição. Esta frase tem um significado incrível. No Dzogchen refere-se ao
verdadeiro reconhecimento de rigpa, enquanto no Mahamudra é chamado de talidade
inata. Isto é quando o real é reconhecido. Ele pode ser chamado de muitas coisas, mas
em resumo é a visão da essência da mente simultaneamente com o ver. "Visto no
momento em que você olha. Livre no momento em que foi visto.” Não há um único
pensamento que possa se manter nesse estado. No entanto, depois de algum tempo você
descobre que você está novamente olhando para algo visto. Isso é quando o pensamento
acabou de chegar. Então você precisa aplicar a "plena lembrança", e mais uma vez,
imediatamente, o observador é abandonado. Relaxe na naturalidade não-elaborada!

(Rinpoche permanece em rigpa como uma transmissão direta, e então continua


a falar.)

Quando permanecendo sem fazer absolutamente nada, há um total deixar ir. No mesmo
momento há também uma sensação de estar bem desperto; há uma qualidade desperta
que é não-produzida.

Simultaneamente ao desaparecimento do pensamento, há uma qualidade desperta que é


como a chama radiante de uma vela, que existe por si só. Essa qualidade desperta não
precisa ser apoiada através da meditação, porque não é algo que é cultivado. Uma vez
que seu reconhecimento dura apenas um curto período de tempo, é necessário lembrar-
se novamente. Mas, honestamente, quão distante é para chegar a esse momento?
Quando você coloca o dedo no ar para tocar no espaço, até que ponto você precisa
mover a mão para frente antes de se conectar com o espaço? Da mesma forma, no
momento em que você reconhece a essência da mente, ela é vista no momento em que
você olha. Não é que em algum ponto posterior você irá vê-la ou que você tenha que
continuamente olhar, olhar e olhar para ela. Não há duas coisas diferentes acontecendo
aqui.

O reconhecimento da vacuidade é realizado no momento em que você olha. “Não ver


nada é a visão suprema.” Ao ver a vacuidade, você não precisa fazer absolutamente
nada com ela. A palavra-chave aqui é não-elaborada, o que significa que você não
precisa alterá-la de qualquer maneira; apenas deixe-a como é naturalmente. Naquele
momento, você está totalmente fora de serviço; não há nada que você precise fazer com
ela. Em outras palavras, nenhum ato de meditação é necessário neste momento. Isso é o
que eu quis dizer com “Não medite”. Porque nesse momento tudo o que você faz para
tentar manter ou prolongar o estado natural só o envolve em mais atividade e
complexidade, o que não é realmente o que precisamos. Nós temos feito isso sem parar
de muitas maneiras, por inúmeras vidas.

O dharmakaya perfeito é quando permitimos o pensamento diminuir. Os seres


ordinários caíram sob a influência do pensamento. É uma questão de reconhecer ou não.
No Dzogchen, a essência é vista no momento em que você olha. No entanto, o dharmata
não é uma coisa para ser visto. Se fosse, seria um produto da mente.

(Mais uma vez Rinpoche dá o apontamento direto pelo exemplo de permanecer


em rigpa.)

Os seres sencientes agarraram-se a este momento. No momento presente, o passado


cessou e o futuro ainda não chegou. Seja livre dos três tempos; então não há nada exceto
ser vazio e lúcido. Trekchö é como cortar uma corda; não há pensamento
conceitualizando o passado, o futuro ou o presente. Livre dos pensamentos dos três
tempos, seu estado desperto atual e fresco é rigpa.

A shamatha de que eu lhe disse para estar livre, no sentido de não meditar, é paz mental
fabricada. É extremamente bom que você a tenha descartado. A paz produzida pela
mente não é o caminho perfeito para a liberação. Existência e paz, samsara e nirvana –
precisamos estar livres de ambos. Esse é o perfeito estado de iluminação.

O estado natural da consciência totalmente nua tem a qualidade de ser desimpedido;


essa é a verdadeira liberdade. Reconhecer o momento da consciência totalmente aberta
e livre de obstáculos, que não se sustenta nem habita em absolutamente nada. Esta não é
a mera ausência de atividade do pensamento, como na serenidade induzida. Essa é uma
grande diferença. Essa também é a principal razão pela qual a shamatha não é por si só
o verdadeiro caminho da liberação; ela precisa ser unida com a visão clara de
vipashyana em todos os níveis e em todo o caminho para completar a iluminação.

A realização final através da prática de shamatha, com a visão parcial, mas não
completamente clara de vipashyana, que é o reconhecimento da essência da mente, é
alcançar o nirvana de um arhat, mas não a iluminação verdadeira e completa de um
buda. Devemos sempre aspirar à iluminação completa que não habita nem no samsara,
nem no nirvana.
Também é possível ter um estado meditativo de serenidade sustentada e ainda não ser
liberado. Aqui está uma história acerca disso. Uma vez eu estava com meu pai na casa
de um benfeitor. O homem que trouxe o chá era um meditador. Enquanto carregava o
chá pela porta, de repente ele congelou e a chaleira se elevou no ar. Um dos meninos
queria chamá-lo, mas meu pai disse: “Não, deixe-o em paz – se ele derrubar o pote de
chá fervente vai fazer uma bagunça; simplesmente deixe-o ser.” Ele ficou lá de pé por
horas, e como o sol estava prestes a se pôr, meu pai gentilmente chamou seu nome em
seu ouvido. Recuperou lentamente seus sentidos. Alguém disse: “O que aconteceu?” Ele
respondeu, “O que você quer dizer com o que aconteceu? Eu estou trazendo o chá.”
Eles disseram, “Isso foi esta manhã. Agora é tarde.” Ele disse, “Não, não, é agora, eu
apenas entrei com ele.” Ele foi um pouco mais interrogado sobre o que tinha
experimentado, e ele disse, “Eu não experimentei nada – estava totalmente vazio, sem
nada para expressar ou explicar, apenas totalmente quieto.” Quando lhe disseram que
passaram tantas horas, ele ficou bastante surpreso, porque para ele não parecia que
algum tempo tivesse passado.

O ponto-chave nesse contexto é não meditar. Isso não significa que você tenha que
expressar desagrado acerca de todos os anos de treinamento que você colocou em
meditação. Esse treinamento foi benéfico de modo que há muito menos pensamentos.
Entretanto, não é benéfico buscar continuamente um estado mental especial, livre de
pensamento. Em vez disso, simplesmente permita-se estar na naturalidade livre de
qualquer fabricação. Esta naturalidade não-elaborada é seu próprio remédio para
pensamentos ou emoções.

A mente é algo incrível. Diz-se que é como um tesouro que realiza os desejos, um baú
do tesouro de qualquer coisa possível. Independente de onde você coloque a mente; ela
pode produzir isso. A verdadeira maneira de ir além da quietude é, sempre que você
experimentar a quietude de uma ausência de pensamentos e emoções, reconheça a
experiência – o que é que sente a quietude, o que é que permanece. Naquele momento
torna-se transparente; em outras palavras, a fixação na quietude se desintegra.

Quando a shamatha é destruída ou desintegra-se, então há uma verdadeira vacuidade,


uma vacuidade não-cultivada, uma vacuidade natural. Esta vacuidade primordial é o
dharmakaya indivisível do sambhogakaya e nirmanakaya. É a natureza dos três kayas –
um instante da essência da mente. A shamatha corrompe os três kayas com o labor. Os
três kayas em si são totalmente sem esforço.

Nossa aspiração deve ser: “Não confundidos com a existência samsárica, nem residindo
na paz inativa do nirvana, que possamos libertar todos os seres.” Por meio do
reconhecimento da essência da mente, estamos naturalmente livres das emoções
perturbadoras que criam mais samsara. Mas alcançar a paz sem emoções perturbadoras
não é suficiente para estar além do nirvana. Portanto, formem a determinação de ir além
de ambos.

Há uma maneira de ter 100% de certeza de que sua prática espiritual vai na direção
certa, e isso é simplesmente as três excelências. Lembre-se sempre, não importa o nível
de prática que você esteja fazendo, comece com refúgio e bodhichitta. Não importa o
quanto você é capaz de praticar enquanto está totalmente livre de conceitos; apenas
treine com o máximo de sua capacidade para a parte principal da sessão. Sempre
complete dedicando o mérito a todos os seres sencientes e fazendo aspirações puras.
Abraçar sua prática espiritual com estes três garante que você está prosseguindo na
direção certa.

Caso contrário, pode-se facilmente “meditar” de um modo que não leve


necessariamente à libertação verdadeira. Existem certos estados dentro do samsara
chamados reinos sem forma. Muitas pessoas consideram as causas dos reinos sem forma
como sendo a verdadeira prática de meditação. Cultivar estes, entretanto, conduzirá a
nada mais que uma visita prolongada a tal estado. Sempre que algo é deliberadamente
mantido em mente, torna-se mais fácil com o tempo pela razão de que a mente assume o
hábito de fazê-lo. Eventualmente, chega-se a acreditar que é totalmente sem esforço.

Poderíamos exercer um esforço sustentado em nos abrigar na ideia de vacuidade, ou


apenas permanecer sobre o sentimento claro e quieto. Alguém então “atinge” tal estado,
mas porque este estado é um produto, eventualmente desaparece. Desaparecendo de um
reino dos deuses sem forma, você acorda depois de uma longa e bela permanência nesse
reino de meditação e descobre que seu corpo morreu em algum ponto, no passado.
Agora você percebe: “Estou morto, não estou liberado apesar de tudo, e toda essa
meditação foi por nada.” Naquele momento, o ressentimento que você sente devido à
futilidade de seus esforços se torna uma causa direta para o renascimento em um dos
reinos inferiores. Portanto, faz uma tremenda diferença o que você atualmente identifica
como sendo o estado de meditação e com qual motivação você pratica.

Para muitas pessoas, shamatha pode ser uma maneira de se preparar para os reinos sem
forma. Ela também pode simplesmente acalmar a mente ou imaginar um estado de
vacuidade. Algum deles repetidamente tenta acalmar a mente, acalmar e manter a idéia
de vacuidade de forma sustentada, sem o conhecimento real do que é sustentando. O
que precisamos é combinar a shamatha com a visão clara da essência da mente em si.
Neste contexto tal visão é chamada vipashyana, e está totalmente além de qualquer
coisa que habita e qualquer coisa a ser habitada. Esse é o momento em que shamatha e
vipashyana são uma unidade. Entender esse ponto é extremamente importante.

O próprio Buda descreveu o caminho como uma progressão através dos estágios da
prática da meditação:

Assim como os degraus de uma escada,


Você deve treinar passo a passo
E esforçar-se em meus ensinamentos profundos.
Sem saltar sobre quaisquer etapas, vá gradualmente até o fim.

Assim como uma criança pequena


Gradualmente desenvolve seu corpo e força,
Meus ensinamentos também são assim –
Desde os primeiros passos da entrada
Até a completa perfeição.

Alguns professores têm explicado que a frase perfeição completa aqui significa a
Grande Perfeição, os ensinamentos Dzogchen. Esta citação também significa que os
ensinamentos são dependentes dos recipientes. Porque as pessoas são de diferentes tipos
e podem ser de aguçada, mediana, ou menor capacidade, um Buda que quer beneficiá-
los tem que ensinar de acordo com seu próprio nível. Um professor pode querer ensinar
o Dzogchen a todos, mas isso só é possível se cada pessoa for de maior capacidade. Isso
seria maravilhoso, mas não é realista. Mesmo um buda inteiramente iluminado não pode
evitar ter que ensinar nove veículos graduais. Não ajuda a dar os ensinamentos em um
nível que as pessoas não estão realmente. Da mesma forma, você não dá ensinamentos
inferiores a alguém de maior capacidade. É por isso que é indispensável ter nove
diferentes níveis de veículos.

Espantoso: este estado desperto não-fabricado e presente


É o verdadeiro Samantabhadra
Do qual você nunca esteve separado por um instante.
Ao reconhecê-lo deixe-o ser em naturalidade.

Este é um versículo muito importante, e eu vou discutir isso linha por linha. Começa
com a exclamação ema, que significa “espantoso”. A primeira linha é: “Este estado
desperto não-fabricado e presente.” A palavra para estado desperto (shepa) aqui é a
mesma que a palavra para consciência ou mente; é simplesmente o que experiências
agora mesmo. (Rinpoche estala os dedos.) Você ouve esse som, certo? Não há dúvida
sobre isso. Há uma audição de som. Isso é porque há estado desperto presente nesses
corpos. Há uma mente no corpo agora, e é por isso que é possível ouvir através de
nossos ouvidos. Quando a mente, a qualidade de estar desperta, deixa seu corpo – em
outras palavras, quando se torna um cadáver – eu posso estalar meus dedos cem vezes
na frente de seus ouvidos, mas ainda não haverá qualquer audição. Não há consciência
que ouça, nem cognição de som, porque a mente se foi. O que experimenta não é o
corpo, é o que está no corpo agora, que é neste momento, agora mesmo – não no
passado e não no futuro, mas apenas neste momento presente.

Quando alguém estala os dedos como eu acabei de fazer, um imediatismo de audição


prontamente ocorre. Isso só é possível por causa do estado desperto presente. Nada mais
pode ouvir o som. As orelhas por si só não podem ouvir, como no caso de um cadáver.
Os cinco elementos e assim por diante não ouvem, os órgãos dos sentidos por si
mesmos não ouvem, é só a mente que ouve. Esse estado desperto não-fabricado e
presente – significado natural não-fabricado – deve ser deixado como é naturalmente.

Tenho às vezes – talvez demasiadas vezes! – dado uma analogia muito simples para a
naturalidade. Quando a madeira cresce como uma árvore na montanha, é natural, mas se
for cortada e moldada em uma mesa, não é mais a forma natural da madeira. A palavra
não-fabricada aqui significa que você deve deixar seu estado desperto do momento
presente exatamente como é, sem fazer nada com ele. Não há nada a adotar ou evitar,
nada a ser mantido, aceito ou rejeitado, nada a ser examinado. Sem qualquer esperança
ou medo, basta permitir que o estado desperto presente seja como é. Essa é a primeira
linha: “Este estado desperto não-fabricado e presente.”

A segunda linha é: “É o Samantabhadra verdadeiro.” Samantabhadra é o domínio


completo da natureza que está presente em todos os estados samsáricos e nirvânicos; é
sua natureza búdica, que é todo-abrangente e plenamente realizada. O Samantabhadra
verdadeiro é a realização de seu próprio estado desperto presente.

A terceira linha é: “Do qual você nunca esteve separado nem por um instante.” Em
nenhum ponto do tempo, nunca, sua natureza foi perdida. A mente e sua essência nunca
são separadas, como o exemplo do sol e de seus raios que nunca se separam. Isso é
chamado rangjung yeshe, estado desperto auto-existente. A natureza búdica é como o
sol; os raios de luz são como os pensamentos da mente dos seres sencientes.

A mente e sua essência não são separados, assim como o sol e seus raios não são
separados. A sabedoria co-emergente e a ignorância co-emergente são tão inseparáveis
quanto o fogo e a fumaça. Nós nunca estivemos separados desta essência nem por um
momento. Nossa verdadeira natureza é Samantabhadra – a natureza que permeia o
nirvana e o samsara. Mesmo que esteja sempre presente, isso somente não ajuda, porque
ainda não foi reconhecido. Precisamos reconhecê-lo.

A quarta linha é: “Ao reconhecê-lo, deixe-o ser em naturalidade.” Você precisa ir além
da inteligência dualista. Ir além do observador e do que é observado; ir além da
dualidade. Agora, nossa inteligência é um ato de pensar em alguma coisa. Este momento
de estado desperto original e auto-existente é livre de pensamento. Precisamos
reconhecer isso, treinar nisso e alcançar a estabilidade no reconhecimento. Reconhecer é
como o exemplo de uma criança que se torna um homem de vinte e cinco anos de idade.
Desde a infância, o treinamento é reconhecer e continuar reconhecendo até o pleno
domínio.

Quer você seja o Buda Samantabhadra ou um inseto minúsculo, não há nenhuma


diferença na qualidade ou no tamanho da natureza de buda em si. Eis o que faz a
diferença: no caso de um ser sensível não há conhecimento de si mesmo, e, portanto, a
qualidade cognoscente agarra o que é experimentado. Em outras palavras, por
ignorância surge uma confusão que se repete incessantemente.

Os caminhos e níveis em direção à iluminação descrevem graus de estabilidade no


reconhecimento. Precisamos reconhecer a cognição vazia – o que realmente é esse
momento de estado desperto não-fabricado. Permitir que seja simplesmente como é;
deixe-o ser em naturalidade. Isso é todo o ensino em poucas palavras. Tendo
reconhecido isso, treine nele através da naturalidade não-elaborada. Finalmente, alcance
a estabilidade. Para repetir estas quatro linhas:

Espantoso: este estado desperto não-fabricado e presente


É o verdadeiro Samantabhadra
Do qual você nunca esteve separado por um instante.
Ao reconhecê-lo deixe-o ser em naturalidade.

Todo ser senciente é consciente. A consciência é incessante, tal como a nossa natureza.
É a natureza da mente conhecer. O estado desperto está sempre presente, a qualquer
momento. Se o momento presente do estado desperto é deixado sem ser alterado, isto é
a própria essência da mente nua. O passado cessou, o futuro ainda não chegou, e o
presente não é conceituado de modo algum. O momento presente do estado desperto
não-produzido é visto no instante em que olhamos. Às vezes é chamado mente presente,
mente comum, mente nua. A mente comum significa que ela não é nem piorada nem
melhorada. Comum significa que o estado desperto incessante está presente em todos os
seres desde Samantabhadra até o inseto mais ínfimo. Essa estado desperto incessante é o
verdadeiro Samantabhadra.
Habitualmente, projetamos nosso estado desperto presente através da esperança e do
medo, aceitando e rejeitando. Neste momento, depois de ter reconhecido sua natureza,
no entanto, você não precisa fazer nada mais com ela. Não é algo que deva ser mantido
ou sustentado de qualquer maneira, pela razão de que é naturalmente assim por si
mesma. Se simplesmente a deixarmos como é, sem fazer nada a ela, está além da
melhoria ou da ruína.

Honestamente, não é como se houvesse uma natureza de buda boa em Samantabhadra e


uma má em um inseto. A mente de cada um de nós possui a mesma qualidade da
natureza búdica. Está tão próxima e simples que não acreditamos nisso. Está tão
próxima e tão simples que a maioria das pessoas acham impossível confiar que
simplesmente deixar ser é suficiente! Mas a diferença entre samsara e nirvana é
simplesmente uma questão de reconhecer ou não reconhecer. No momento em que você
reconhece, não há nada mais simples do que isso. No momento de ver a essência da
mente, ela já é reconhecida; não há nada mais que precisa ser feito. Naquele exato
momento, não é necessário meditar nem sequer uma partícula. Shamatha precisa ser
meditada e cultivada. Esta vacuidade não possui um átomo de qualquer coisa para
meditar.

Depois de reconhecermos, é claro, perdemos a continuidade. Ficamos distraídos. Perder


a continuidade, tornar-se distraído, é em si o estado de delusão. Meditar sobre a
natureza búdica como se fosse um objeto é o trabalho da mente conceitual. Essa mente
conceitual é exatamente o que nos mantém girando através do samsara.

“O imediatismo do seu estado desperto presente” significa não pensar mais no passado e
não planejar o futuro. O pensamento passado se foi, e o pensamento futuro ainda não
chegou. Embora uma lacuna possa aparecer no presente, os seres sencientes a fecham
continuamente; nos reconectamos aos pensamentos, em vez de permitir uma lacuna
livre de conceitos. Em vez de se apressar para fazer isso, simplesmente permita ser este
estado desperto presente. A mente comum nua, o que naturalmente é, está presente.
Você não tem que fazer nada para trazê-la à tona. Ir além dos pensamentos dos três
tempos é o significado essencial dos três portões da emancipação mencionados nos
Sutras.

Não há necessidade de fazer nada com seu estado desperto presente neste momento; já é
como é. Esse é o verdadeiro significado da mente comum nua, tamal kyi shepa, um
termo famoso em tibetano. A mente comum não significa adulterada. Não há nada lá
que precise ser aceito ou rejeitado; é simplesmente como é. O termo mente comum é o
modo mais próximo e imediato de descrever como a natureza da mente é. Não importa
qual terminologia esteja sendo utilizada dentro do Caminho do Meio, Mahamudra, ou
Dzogchen, mente comum nua é o termo mais simples. É a maneira mais imediata de
descrever como a nossa natureza realmente é. Isso significa que nada precisa ser aceito
ou rejeitado; ela já é perfeita como é.

Não projete externamente, não se retire internamente, e não coloque seu estado desperto
em qualquer lugar entre os dois. Se a atenção é dirigida para fora ou para dentro, não é
necessário colocá-la em um estado de calma forçada. Precisamos estar livres dos
pensamentos dos três tempos. Não há nada mais fácil do que isso. É como o exemplo
anterior de tocar no espaço: quanto você precisa fazer antes de tocar no espaço? É
assim. Esse é o momento em que não é necessário fazer nada. A essência da mente é
originalmente vazia e sem raiz. Saber isso é suficiente em si mesmo. Claro que você
pode conhecer sua própria mente!

Cultivar shamatha e treinar em vipashyana é como aprender o alfabeto. Se não o


aprendemos, nunca seremos capazes de ler ou escrever. Uma vez que a meditação se
dissolveu na extensão de sua natureza básica, então é mais fácil de ver e mais fácil de
manter. Mais fácil de ver significa que reconhecer é simples. Mais fácil de manter
significa ser proficiente em naturalidade. Sem projetar, sem focalizar, sem pensar,
acostuma-se à continuidade.

Para torná-lo extremamente curto: “Nunca medite, porém nunca se afaste disto.” Não é
um ato de meditar como shamatha. Mas se você esquecer e se distrair, você cairá
novamente na confusão. Nunca medite e nunca se distraia. Quando você esquecer,
aplique a atenção plena. Sem esse estado desperto, o velho padrão assume novamente.
O velho hábito de não ver a essência da mente e de ser continuamente apanhado no
pensamento é chamado de difusão negra. Sem o estado desperto, não há nada que nos
lembre de reconhecer a essência da mente.

De Tulku Urgyen Rinpoche, As It Is, Vol. 2 (Boudhanath: Rangjung Yeshe Publications,


2000). Adaptado para o português por Kadag Lundrub.

ESPAÇO

Dois princípios básicos nos ensinamentos mais internos do Dzogchen são o espaço e a
consciência, no tibetano ying e rigpa. Ying é definido como o espaço não-construído
desprovido de conceitos, enquanto rigpa significa a capacidade de conhecer desse
espaço básico.

No contexto da prática tríplice do céu, o ying externo é definido como um céu claro
livre dos três defeitos das nuvens, névoa e neblina. Este céu externo é uma analogia para
o ying interno real e é usado como um suporte para reconhecer este estado. O ying
interno é a natureza da mente, um estado que já é vazio. E o ying mais interno, ou
espaço básico, é o reconhecimento da natureza de Buda. O ying mais interno é
realmente rigpa, a consciência não-dual em si.

Utilizamos o espaço externo sem nuvens como exemplo da analogia porque é sem apoio
– nele, não há nada para a mente fixar ou agarrar. É desprovido de base, ao contrário de
todos os outros elementos. Um céu claro e puro é ideal para esta prática. Porque é vasto
e aberto, é sem qualquer apoio para os pensamentos. No entanto, diz-se que o oceano ou
um grande lago pode ser usado, se a sua superfície é quieta e calma. Um enorme corpo
de água também pode servir como objeto sem apoio.

A razão pela qual o céu deve ser claro é que não deve haver lugar ou coisa sobre a qual
se focar. É um pouco diferente quando o céu está nublado, mas realmente não faz
qualquer diferença, porque é apenas um exemplo. O espaço ou céu na frente de alguém,
mesmo se ele está confinado em uma pequena sala, não tem apoio. O espaço é
essencialmente aberto e livre. Uma vez que o céu e o lago são exemplos, sua forma
particular não importa realmente, contanto que o significado seja reconhecido.

Para reiterar, o espaço externo é o céu claro. O espaço interno é a pureza primordial da
essência da mente vazia. O espaço mais interno é o conhecimento disso, que é a própria
consciência não-dual. Ao treinar com o espaço, não permaneça em pensamentos:
permaneça na consciência desperta.

Ying também implica sem surgimento, sem permanência, e sem cessação. Em última
análise, todos os fenômenos, quaisquer aparências que percebamos, estão além do
surgimento, permanência e cessação. A mente que percebe também é chamada de ying,
no sentido de que a mente é, por si só, vazia. Está além de surgir, permanecer e cessar.
Não vem de nenhum lugar; não permanece em lugar algum; e não vai a lugar nenhum.
Isso descreve o ying interno.

Tudo que é percebido como um objeto é, em última análise, ying, espaço básico.
Desnecessário será dizer que a maioria das coisas não aparecem assim para nós.
Portanto, os outros quatro elementos, terra, água, fogo e vento, não são usados como um
exemplo; apenas o elemento do espaço em si é facilmente compreendido como sendo
vazio. Ainda assim, os outros quatro elementos são inerentemente vazios. Se
investigarmos de onde a terra, a água, o fogo e o vento vêm, não encontraremos uma
fonte. Olhe muito de perto: existe um lugar de onde a terra vem? De onde vem à água?
De onde vêm inicialmente vento e fogo? Neste momento, existe um lugar final onde os
quatro elementos principais estão localizados? Tente encontrar isso. Existe um certo
local em que os quatro elementos desaparecem? Podemos dizer: "Eles desapareceram
em tal e tal lugar"? Eles estão realmente além do surgimento, da permanência e da
cessação. Isso descreve o ying externo, o espaço básico de tudo o que é percebido.
Quando descobrimos que todos os objetos externos compostos pelos quatro elementos
não surgem de nenhum lugar, não permanecem em lugar algum e não cessam em lugar
nenhum – que tudo está totalmente além do surgimento, permanência e cessação – que é
chamado descobrir o espaço básico dos fenômenos externos.

Da mesma forma, quando olhamos para a mente, o pensador, de onde ele vem? Onde
ele habita? Onde ele desaparece? Desta forma, descobriremos o espaço interno que está
totalmente além de surgimento, permanência e cessação. Então, se o espaço externo está
além do surgimento, permanência e cessação e o espaço interno está além do
surgimento, permanência e cessação, como podemos fazer qualquer distinção entre os
dois? Qualquer separação é apenas uma questão de dois nomes diferentes.

Tudo que percebemos é feito de formas visuais, sons, cheiros, gostos e texturas. Olhe
para estes e investigue: De onde eles surgem? Onde eles habitam? Para onde eles vão?
Quando realmente examinamos isso, descobrimos que não existe tal coisa como chegar
a existir, permanecer em qualquer lugar, ou desaparecer. Em um nível grosseiro, os
quatro elementos principais de terra, água, fogo e vento e, em um nível perceptivo mais
sutil, todos os objetos percebidos de forma, som, cheiro, sabor e textura são todos
descobertos por natureza além do surgimento, permanência e cessação. Quando ambos
os objetos percebidos e o sujeito que percebe são encontrados além do surgimento,
permanência e cessação – completamente vazios – tudo é então apenas o espaço básico.
Isto é o que é referido como ying. Em sânscrito, a palavra é dhatu.
Ying e yeshe, espaço básico e estado desperto, são primordialmente indivisíveis, porque
nosso estado básico é a unidade do vazio e do conhecimento. Isso é chamado de a
unidade do espaço e estado desperto. A qualidade cognitiva nessa unidade é chamada de
rigpa – consciência desperta.

Este estado básico, a unidade do ser vazio e cognoscente, está no coração de todos os
seres sencientes. Ela é inerente ao pensamento que ocorre em todos os seres sencientes a
qualquer momento. Todos os seres possuem esta natureza que é a unidade do espaço e
estado desperto, mas se eles não sabem isso, não ajuda. Ao invés de serem permeados
pela consciência que conhece a si mesma, os seres sencientes se enredam na
conceitualização do sujeito e do objeto, criando, assim, constantemente e sem cessar
outros estados do samsara. Tudo isso ocorre porque eles não conhecem sua própria
natureza.

Essa unidade de espaço e estado desperto é às vezes chamada de Samantabhadra, o


Protetor Primordial. Algumas pessoas pensam que este espaço básico está totalmente
vazio e que a consciência é algo separado disso. Mas isso não é verdade. O espaço
básico e o estado desperto são primordialmente uma unidade indivisível. O espaço
básico é como a água e o estado desperto é como a umidade da água. Quem pode
separar a umidade da água? Se o espaço fosse uma chama, então o estado desperto seria
seu calor. Quem pode separar o calor de uma chama? Da mesma forma, o espaço básico
é sempre acompanhado de estado desperto básico. O estado desperto é sempre
acompanhado pelo espaço. Você não pode ter um sem o outro; pensar assim seria um
mal-entendido. Para reiterar, se o espaço fosse a açúcar, então o estado desperto seria
sua doçura. Eles são para sempre inseparáveis. Este dhatu, ou espaço básico, é a unidade
do ser vazio e cognoscente. Da mesma forma, rigpa é a unidade de vacuidade e do
conhecimento [transcendente].

O conhecimento dessa natureza que jaz além da complexidade ou construções é


chamado rigpa. Os Budas são conhecimento vazio permeado pela consciência desperta,
ao passo que a qualidade de conhecimento do estado da mente dos seres sencientes é
conhecimento vazio permeado pela ignorância e desconhecimento. Não podemos dizer
que exista qualquer ser senciente cuja mente não seja, no seu núcleo, a unidade de
vacuidade e do conhecimento. Mas, ao não conhecer essa unidade, suas mentes se
tornam um estado de conhecimento vazio permeado pela ignorância.

Voltemos à prática tríplice do céu. Em primeiro lugar, o espaço vazio externo é


simplesmente a abertura à sua frente. O espaço interno da mente vazia é simplesmente a
qualidade vazia de sua mente. O espaço mais interno de rigpa vazio, consciência
desperta não-dual, é o momento tradicionalmente referido como as “quatro partes sem
os três”. Este último é o que é apontado pelo guru. Tentar praticar isso sem ter recebido
a instrução de apontamento e reconhecido rigpa é misturar apenas dois, e não três tipos
de espaço. Há apenas dois espaços porque, quer você o reconheça ou não, o espaço
externo está sempre vazio. O espaço da mente é constantemente e para sempre vazio.
Não há dúvida sobre isso. O espaço externo é composto de alguma coisa? Sua mente é
composta de alguma coisa concreta? O que é sem concretude é chamado vazio. Treinar
nisto sem ter reconhecido rigpa é meramente uma mistura dos dois, não é o espaço
triplo. Isto é o que acontece sempre que uma pessoa comum relaxa e olha para o céu.
Mas aqui, a prática é chamada de misturar o espaço triplo, não o espaço duplo. Uma vez
que você reconhece rigpa, é possível misturar o espaço externo, interno e o mais
interno. Caso contrário, torna-se um exercício intelectual em pensar, “Há o céu vazio
externo. Agora, aqui está o céu vazio interno. Agora, preciso do espaço de rigpa; então,
eu vou misturar os três juntos ao mesmo tempo.” Não é assim. Treinar dessa maneira
seria misturar três conceitos. Há um conceito de um céu externo, um segundo conceito
de uma mente interna, e um terceiro conceito que rigpa vazio de alguma forma deve
aparecer. Mas na verdade, é assim: você não precisa assumir o controle do espaço
externo. Você não precisa ficar no comando do espaço interno. Simplesmente e
totalmente se renuncia a todos os três espaços de rigpa – externo, interno e o mais
interno. Não é que eles precisem ser deliberadamente misturados; eles já estão
misturados.

Seus olhos precisam se conectar com o espaço, então não olhe para o chão mas os dirija
para cima em direção ao espaço. É certo que a mente é inerentemente vazia, por isso
deixe essa mente vazia dentro de rigpa. Isso é considerado já tendo misturado o espaço
triplo. Neste estado, é possível estar livre da fixação, mas qualquer tentativa deliberada
de misturar os três espaços é sempre fixação – pensando no espaço externo, pensando
no espaço interno, e depois pensando: “Eu deveria misturar esses dois e, em seguida,
adicionar rigpa.” Não devemos chamar isso de misturar o espaço triplo, mas misturar os
três conceitos. E se compararmos os três conceitos com o estado de rigpa, faz com que
os conceitos pareçam mais importantes do que a consciência não-conceitual, rigpa.

Por que devemos nos envolver nessa prática do céu triplo? O espaço, por si só, é
totalmente ilimitado. Não há centro nem borda em nenhuma direção. Dirigir o olhar
para o meio do espaço vazio é um auxílio para permitir-se experimentar o estado de
rigpa, igualmente desimpedido e todo-penetrante.

O espaço externo transcende o surgimento, a permanência e a cessação. Este é o


exemplo da consciência que é omnipresente e vazia, que, como o espaço, não tem fim.
Portanto, misturam-se meios e sabedoria. Basta deixar o estado de mente que você
reconheceu suspenso dentro do espaço externo irrestrito. Os meios é o espaço, o céu; a
sabedoria é a consciência que tem sido apontada pelo mestre. Quando suspenso assim,
você não precisa tentar misturar espaço e consciência desperta – eles já estão
misturados, pré-misturados.

No sentido último, espaço e consciência são uma unidade. Colocar a consciência não-
fixada no espaço sem apoio serve como um aprimoramento para a visão. É por isso que
se diz que se deve praticar ao ar livre. É melhor ir a um alto de uma montanha de modo
que quando você olha para fora você possa ver o céu mesmo abaixo onde você está
sentado. Uma vasta e ampla vista aberta é de grande benefício para entender a visão. O
grande mestre da Drukpa Kagyü, Lorepa, passou treze anos vivendo em uma ilha em
um dos quatro grandes lagos do Tibete. Ele disse que usar a superfície da água como um
suporte livre de ponto focal lhe trouxe grande benefício.

Para reiterar, as percepções ou aparências são vazias; o percebedor, a mente, também é


vazia. Consequentemente, ying e rigpa são uma unidade. No presente, no entanto,
dividimos ying e rigpa em dois, isto aqui e isso ali, e não temos essa unidade. Não nos
parece que as aparências e a mente são duas coisas diferentes? Tudo parece no momento
ser dualista - objetos percebidos e a mente que percebe – e essa percepção perdura
enquanto tivermos pensamento conceitual. É por isso que há tantas referências no
budismo tibetano a respeito da unidade do espaço e da consciência desperta.

Devemos entender o ying no sentido do espaço externo e interno. Os quatro elementos


principais são desprovidos de surgimento, permanência e cessação. A mente ou
consciência também está desprovida de surgimento, permanência e cessação. Uma vez
que ambos estão livres de surgimento, permanência e cessação, são uma unidade. Como
podemos entender isso? Pense no exemplo do espaço dentro e fora de um vaso; então
imagine o que acontece quando o vaso é quebrado. Há um significado muito importante
contido na oração "Que possamos perceber a unidade do espaço e da consciência
desperta!”

Qualquer coisa com substância concreta é chamado de forma, e todas as formas são a
unidade da aparência e da vacuidade: é o que se entende pelo corpo vajra. Todos os sons
são retumbantes e ainda sim vazios: este é o discurso vajra. Quando reconhecemos a
consciência desperta, percebemos que ela está livre de surgimento, permanência e
cessação. Essa é a mente vajra. Tudo o que é desprovido de surgimento, permanência e
cessação é vazio. Isso é exatamente o que se entende pela declaração famosa no
Chöying Dzö: “Tudo o que é visto, ouvido ou pensado é o adorno do espaço e aparece
como a continuidade do Corpo, da Fala e da Mente”. Em suma, tudo, sem exceção, até
mesmo uma única partícula de pó, é da natureza dos três vajras.

Tome meu mala como um exemplo. Parece que tem forma física; ele pode ser jogado
contra a mesa. Da mesma forma, terra, água, fogo e vento parecem possuir forma física,
mas “forma é vacuidade”, como o Buda disse. Mesmo que pareça que as formas
existem, elas não possuem existência verdadeira; elas são vazias. O fato básico é que
todas elas podem ser destruídas. Tudo será destruído no final, o mundo inteiro e todos
os seus diferentes elementos. Todos estes foram formados em algum ponto, eles
permanecem por algum tempo, e, eventualmente, eles se desintegrarão, a seguir por um
período de completa vacuidade. Estes quatro períodos de formação, permanência,
desintegração e vacuidade são iguais em duração.

Mesmo agora, ao considerar o que nos parece ser a forma, a prova de que ela já é uma
forma vazia é o fato de que ela se desintegrará. “Forma é vacuidade” significa que tudo
o que percebemos agora, o que quer que pareça ser forma sólida, é meramente forma
vazia, forma vazia de qualquer ser inerente. A próxima coisa que o Buda disse foi: “A
vacuidade também é forma”, significando que, embora todas as coisas estejam vazias,
elas ainda aparecem como forma. Isso pode não parecer credível para nós. Parece
completamente contraditório com o que percebemos e não é muito fácil de entender.
Mas todas as coisas já são vazias. No sentido último, elas não vêm à existência, não
permanecem em parte alguma e, portanto, não cessam – isto é, todas as coisas estão
além de surgimento, permanência e cessação.

Outra afirmação usada é: “Objetos sensoriais são mera percepção e, portanto, não têm
existência concreta.” Essa é uma declaração muito importante a ser lembrada. Todos os
objetos sensoriais são meras percepções e, portanto, não existem. Tudo o que aparece
devido a causas e condições é, em ultima análise, nada mais que um momento de mera
percepção. A percepção nunca realmente surge ou vem a ser, ela nunca permanece e,
portanto, ela nunca deixa de existir. Portanto, tudo é ying, espaço básico além do
surgimento, permanência e cessação. Todos os objetos externos percebidos são, na
verdade, o espaço que não surge, nem permanece, nem cessa. Ao mesmo tempo, a
mente percebedora está além do surgimento, permanência e cessação igualmente. Não é
algo que vem a ser, permanece ou cessa. Desta maneira, não é apenas a mente que está
vazia enquanto os objetos são reais e concretos. Se isso fosse verdade, não poderia
haver qualquer mistura de espaço e consciência. Tanto o externo como o interno, tanto
os objetos percebidos quanto o sujeito que os percebe, já estão além do surgimento, da
permanência e da cessação. Portanto, é possível treinar em mesclar espaço e consciência
desperta.

Adaptado de Tulku Urgyen Rinpoche, As It Is, Vol. 1 (Boudhanath:


Rangjung Yeshe Publications, 1999). Adaptado para o português por
Kadag Lundrub.

Capture a Força Vital de Todas as Deidades

AS DIFERENTES ESCOLAS DO BUDISMO TIBETANO variam em como eles


consideram as práticas da deidade yidam. Nas Novas Escolas, as escolas Sarma, em
particular a Sakya, é preciso manter a ligação ativa com o yidam através da recitação
diária do mantra. Embora a ligação seja obtida através do empoderamento, você deve
mantê-la mantendo a prática diária de samaya; caso contrário, a ligação desaparecerá.
Embora nunca tenha dito que alguém que perca a prática diária vá para o inferno, a
tradição Sakya insiste na prática diária, a fim de manter a ligação com a deidade yidam.
É por isso que alguns lamas Sakya têm um livro volumoso de práticas diárias. Não é o
mesmo no sistema Kagyu e Nyingma, onde a ênfase é colocada em ‘condensar tudo em
um’. Nesta abordagem, se você praticar uma deidade, todas as outras são
automaticamente incluídas dentro disso. Se você realiza um buda, você realiza
automaticamente todos os outros budas ao mesmo tempo.

A afirmação, "realize um buda e você realiza todos eles", significa que todos os budas
são Um dentro da extensão do estado desperto original. É como a imensidão do espaço,
a extensão do céu: não podemos dizer que há um céu para uma parte do mundo e outro
céu para outra. Toda a extensão é o mesmo espaço. Da mesma forma, a mente iluminada
como o espaço de todos os budas é idêntica, embora se mostrem em formas diferentes.
Ainda assim, a essência do que eles realmente são não consiste em entidades diferentes.

O fato de que todos os budas são um na expansão do estado desperto original não é
apenas minha invenção. Isso é ensinado pelos próprios budas. Se você pode se sentir
confiante nisso, você também entenderá que todas as diferentes formas dos budas não
são como pessoas diferentes com as quais você deve manter um contato estreito. Não é
como se houvesse trinta pessoas e você tivesse que manter uma boa amizade com todos
e cada um deles. Seres de sabedoria, como budas, não têm nenhum pensamento, e eles
não discriminam se alguém gosta deles ou não. Eles não são como pessoas normais.
Todas as muitas formas dos budas têm a mesma identidade. Ao praticar um deles, você
mantém automaticamente a ligação com todos eles. Sinta-se confiante de que é assim.

Embora todos os budas sejam, na essência, os mesmos, eles se mostram de várias


maneiras diferentes. A este respeito, é o mesmo conosco; em essência, todos nós temos
a natureza de buda. Com relação à nossa natureza de buda, não há diferença entre nós;
somos basicamente a unidade do conhecimento vazio. Mas há definitivamente
diferenças entre nós em como esta natureza de buda se expressa como pensamentos.
Enquanto eu estou feliz, outra pessoa pode se sentir triste; não sentimos o mesmo. Ainda
assim, em essência, somos o mesmo.

As deidades não têm pensamentos, não discriminam e, em termos de identidade, são


como a única extensão do espaço. Imagine o espaço dentro de cada sala em todas as
casas no Nepal. Embora essas casas estejam separadas uma das outras, ainda assim o
espaço em si não é diferente de uma casa para outra. Em termos de essência básica,
todos os budas são idênticos. Portanto, se você realiza um você automaticamente realiza
todos eles.

Sempre que você visualiza uma deidade no estágio de desenvolvimento, por favor,
entenda que a base disso é a fase de conclusão. Se você pode visualizar depois de
reconhecer a essência da mente, simplesmente permita que a forma da deidade se
manifeste, ocorra dentro desse estado. Então, basicamente, não há diferença entre a
deidade que você pratica, porque você simplesmente está permitindo que a forma da
deidade seja exibida enquanto você ainda está na essência da mente. Se não praticar
assim – se alguém praticar com o pensamento dualista comum – então todas as deidades
são definitivamente diferentes: o pensamento de uma exclui automaticamente o
pensamento de outra.

Quando se trata de realizar um certo yidam, os pontos mais importantes são: reconhecer
a vacuidade, fazer a prática por compaixão à todos os seres sencientes e ficar livre da
esperança e do medo. Se você praticar dessa maneira, você certamente realizará a
deidade; não há dúvida sobre isso. Mas se você fizer a prática com uma motivação
materialista, que "eu gostaria de poder obter tal e tal", essa expectativa adia a realização.
Você nunca realizará a deidade através da esperança e do medo. Antes de tudo,
reconheça a natureza da mente; em seguida, gere compaixão por todos os seres; então,
desista da esperança e do medo. Ao treinar dessa maneira, você definitivamente
realizará a deidade.

Você pode começar a visualizar uma deidade olhando para uma tangka. Isso lhe dará
uma impressão visual, uma forma visível, mas a deidade real não é exatamente assim,
porque uma tangka é tangível; você pode segurá-la com sua mão. A forma da deidade
que você imagina é visível, mas não tangível. É vazia e ainda assim você pode vê-la. É
como o reflexo no espelho, na medida em que você pode vê-lo, mas não pode segurá-lo.

Existem quatro grandes escolas de Budismo Tibetano: Kagyu, Sakya, Nyingma e Geluk.
Em todas as quatro dessas tradições, quando praticamos o estágio de desenvolvimento,
precisamos começar com o samadi da talidade. Talidade significa a natureza inata de
sua própria mente. Não é outra talidade de algum outro lugar. Essa talidade é
simplesmente a fase de conclusão. A completude na conclusão significa o que está
inteiramente presente como sua própria natureza, que é a natureza da mente, o
darmakaya. Reconhecer isso é chamado de estágio de conclusão. Ao reconhecer a
essência da mente, ao mesmo tempo em que permanece no samadi da talidade, permita
que as visualizações da fase de desenvolvimento ocorram sem deixar o estado natural
para trás. De toda a extensão dos três kayas, a prática de sadana ocorre em benefício dos
seres. Ambos, samsara e nirvana, sempre se manifestam da extensão dos três kayas.

O primeiro dos três samadis, o samadi da talidade, significa a vaziez primordial. Na


verdade, é a essência dos kayas de todos os budas. A essência vazia é a qualidade do
corpo iluminado. A natureza cognitiva é a qualidade da fala iluminada. A capacidade
incondicional da consciência é a qualidade da mente iluminada. O corpo, a fala e a
mente de todos os budas também são expressos da seguinte maneira: a qualidade
imutável é o corpo, a qualidade incessante é a fala e a qualidade inconfundível é a
mente. No estado deludido do ser, uma manifestação dessas três qualidades se torna o
corpo, a voz e a mente dos seres sencientes.

Assim, nestas três qualidades você tem ambos, samsara e nirvana, o corpo, fala e mente
de todos os budas, e o corpo, fala e mente dos seres sencientes. Desta forma, a natureza
dos três kayas permeia ambos, o samsara e o nirvana. Pode parecer que existem três
coisas separadas, como uma é o darmakaya, a outra é o sambogakaya e a terceira é o
nirmanakaya, mas na verdade é uma identidade indivisível. Esse é o svabhavikakaya, o
corpo da essência, que não é senão a natureza da sua própria mente. Isso permeia ou
está presente em todos os estados samsáricos e nirvânicos.

O corpo, a fala e a mente de todos os seres sencientes não são senão a expressão ou
manifestação do corpo, da fala e da mente de todos os budas. Eles não vêm de nenhum
outro lugar. Se reconhecermos plenamente a identidade disso, nos tornamos totalmente
estáveis. Isso é chamado de ‘despertar para a iluminação do corpo, fala e mente de todos
os budas’. Mas se falhamos em reconhecer nossa própria natureza, ficamos perplexos e
seguimos vagando pela existência samsárica, assim como estamos fazendo agora.

Para repetir o tantra: ‘Todos os seres sencientes são budas, mas estão cobertos por
obscurecimentos temporários. Quando estes são removidos, são verdadeiramente budas
iluminados’. Embora a própria identidade de todos os budas e seres sejam a mesma,
quando não a reconhecemos, continuamos no samsara. É um caso de ‘uma identidade
com dois aspectos’. Podemos ser iluminados e capazes de alcançar o estado búdico
porque já temos a própria essência da iluminação – natureza de Buda. Sem isso, não há
como conseguirmos qualquer iluminação.

Entre o estágio de conclusão e o estágio de desenvolvimento, o estágio de conclusão é o


mais importante. É como a própria força vital na medida em que já a possuímos; os três
kayas inatos são a natureza de nossa mente. O estágio de conclusão é os três kayas do
estado desperto. Embora já tenhamos estes e não precisamos trabalhar para criá-los,
podemos desenvolver a sua qualidade manifesta. O estágio de desenvolvimento é o que
imaginamos, o que permitimos desempenhar no campo da nossa mente.

Há a mente e a essência da mente. A mente é diferente da essência. O que pensa e


imagina é a mente dualista, enquanto na essência não há nada pensado ou imaginado.
Os três kayas estão naturalmente presentes na essência, e de uma maneira tornam-se
manifestos em forma através do ato da visualização. Fazemos isso para obter as
realizações e purificar os obscurecimentos. A principal maneira de fazer isso é permitir
que todos os diferentes aspectos do estágio de desenvolvimento ocorram ao reconhecer
a essência da mente. Isso é excelente, a melhor maneira. No entanto, mesmo que não se
conheça a natureza da mente e as práticas do estágio do desenvolvimento,
desenvolvimento e conclusão ainda são uma unidade, uma vez que a essência da mente
é um conhecimento vazio não-confinado. É essencial compreender os princípios básicos
da prática do yidam em relação a esses pontos.

A fim de manifestar externamente as qualidades dos três kayas – o corpo, a fala e a


mente do yidam – passamos por uma variedade de passos diferentes durante a prática de
sadana: fazemos oferendas, recitamos o mantra, imaginamos que os raios de luz são
irradiados e absorvidos de volta, fazemos louvores e pedidos de desculpas, pedimos
para girar a roda do Darma, rezamos para que os budas não passem para o nirvana e
dedicamos o mérito. Todas estas etapas são maneiras diferentes de remover as nuvens
no céu. Juntas, elas constituem o que tradicionalmente se denomina purificação dos
obscurecimentos, a reunião das acumulações de mérito e sabedoria. Eles são os meios
hábeis e compassivos dos budas e, como expressão de sabedoria, são incrivelmente
eficazes. Nunca considere o estágio de desenvolvimento como sem sentido, inútil ou
sem importância.

O ponto mais importante no estágio de desenvolvimento é descrito como ‘capturar a


força vital de todos os budas’. Em outras palavras, se você realizar o estágio de
conclusão, não há como evitar a realização de todos os budas e yidams. Sem a fase de
conclusão, todos os budas e yidams são apenas algo que imaginamos. Quando você
reconhece bem que a essência da mente está além da obtenção, a deidade é realizada
automaticamente. Na verdade, não há técnica mais profunda do que isso para realizar a
deidade.

O objetivo final da prática do yidam é reconhecer a natureza dos três kayas como
indivisíveis de sua própria mente. Os aspectos visíveis que podem se manifestar são
realizados automaticamente no reconhecimento da essência de nossa mente. Embora
eles se manifestem externamente, internamente não se está criando absolutamente nada.

O estágio de conclusão é como ter uma lâmpada elétrica no centro do seu coração,
enquanto o estágio de desenvolvimento é como pintar uma imagem de uma lâmpada
elétrica na parede. A luz pintada nunca pode ser realmente acessa, mas irá lembrá-lo de
que realmente existe uma luz real, e você pode, assim, reconhecê-la com mais
facilidade. Esta é a diferença entre os dois.

Precisamos de ambos, do estágio de desenvolvimento e de conclusão. Enquanto ainda


não estamos estáveis no samadi, no estágio de conclusão, os aspectos visíveis da etapa
de desenvolvimento nos ajudam a purificar os obscurecimentos e a reunir as
acumulações de mérito e sabedoria. Isso tem um significado grande e profundo na
medida em que eles removem os obscurecimentos. Nunca pense que o estágio de
desenvolvimento é desnecessário. Muitas vezes, a frase ‘identifique a deidade a ser
realizada’ é mencionada. Isso significa que devemos identificar que a deidade última é
realmente a fase de conclusão, a própria natureza de nossa mente. Isso é o que devemos
reconhecer como a deidade a ser realizada.
Os budas nunca ensinam que podemos alcançar a iluminação somente por meio do
estágio de desenvolvimento. Alguém atinge a iluminação pela unidade de
desenvolvimento e conclusão. Mas a força real e vital na obtenção da iluminação é a
fase de conclusão. É possível atingir a iluminação somente através do estágio de
conclusão, mas não somente através da fase de desenvolvimento. Ainda assim, a
maneira mais rápida de alcançar a iluminação é unificando meios e sabedoria.

Os meios são o estágio de desenvolvimento e a sabedoria é o estagio de conclusão. Você


pode ter sabedoria sob a forma de uma pessoa que pode montar um avião inteiro, mas se
você não tem os meios, que são todas as partes, você pode ficar com essa pessoa o
tempo que quiser, mas você nunca terá um avião. Por outro lado, você pode ter todas as
partes de um avião, todos os meios, mas, se não houver a sabedoria de uma pessoa que
pode montá-los, não há como essas peças voarem por si mesmas. É somente quando
você coloca a sabedoria em conjunto com os meios que é possível ter um avião que
realmente pode voar.

A razão pela qual o Mantra Secreto, o Vajrayana, é dito ser um caminho rápido para a
iluminação é simplesmente através dos meios unificadores e da sabedoria, o estágio de
desenvolvimento e o estágio de conclusão. A prática do Vajrayana envolve a
combinação da visualização de uma deidade com o reconhecimento da essência da
mente; é por isso que é um caminho veloz.

Aqui está outro exemplo para ‘realizando uma deidade, você realiza todas elas’.
Digamos que você tenha mil lâmpadas elétricas. Você as junta, mas você não ligou a
eletricidade. Para que servem essas mil lâmpadas que vão fazer em termos de
iluminação qualquer coisa? Mas se você ligar a chave elétrica, as mil lâmpadas irão
acender ao mesmo tempo. Embora sejam individuais e distintas, a luz que brilha através
delas é a mesma em identidade. Em essência, é a mesma luz. Não importa onde no
mundo você tenha luz elétrica, essa luz brilha e ilumina exatamente da mesma maneira,
embora possa variar de acordo com a condição da lâmpada. A força principal, como a
eletricidade que acende as lâmpadas, é o que chamamos de estado desperto original,
yeshe. E essa é a coisa mais importante. Se você percebe isso, você percebe a luz em
cada uma das lâmpadas, não apenas uma delas.

Ou talvez as lâmpadas sejam de cores diferentes, de modo que quando a luz brilha
através delas, uma lâmpada é amarela, as outras azul, verde ou vermelha. Este é um
exemplo para as luzes das cinco sabedorias. Embora as cores ou as qualidades
específicas de cada emanação possam diferir, a luz que brilha através delas é o mesmo
estado desperto original. Por favor, entenda isso.

Se não fosse assim, poderíamos argumentar que tanto o estágio de desenvolvimento


quanto o de conclusão são o melhor. Seria como se o estagio de desenvolvimento e o
estágio de conclusão entrassem numa luta. Por favor, entenda que os meios é o estágio
de desenvolvimento e a sabedoria é fase de conclusão e que ambos são importantes. É a
união dos dois que é mais vital.

Não pense que não existem deidades reais; que não são senão a nossa imaginação.
Existem deidades intrínsecas à nossa natureza de buda, que são deidades de sabedoria.
Da mesma forma, independentemente da cor da lâmpada, seja azul, vermelha, branca ou
verde, a luz que brilha é exatamente a mesma. Você pode ter dez mil ou cem mil
lâmpadas, mas sem eletricidade para iluminar através delas, elas são inúteis. Do mesmo
modo, precisamos do estágio de conclusão, juntamente com o estágio de
desenvolvimento.

Você pode conseguir visualizar dez mil ou mesmo cem mil diferentes yidams de forma
clara e distinta como se estivessem presentes pessoalmente; mas a sua prática ainda
precisa ser combinada com o estágio de conclusão. Caso contrário, é como ter todas as
partes de um avião, mas sem o conhecimento de como montá-las.

Sem conhecer a essência da mente, alguém é forçado a praticar o Vajrayana como uma
imitação de como é realmente. Essa é uma fase de desenvolvimento de segunda
categoria. É preciso dizer um mantra, como OM SVABHAVA SHUDDHO SARVA
DHARMA SVABHAVA SHUDDHOH HANG, e imaginar que tudo se torna vacuidade.
Fora desse estado de vacuidade criada, as sílabas-sementes para o espaço, o ar, a terra, a
água, o fogo e o palácio celestial aparecem gradualmente, seguidas pela deidade, e
assim por diante. Todas essas coisas são imaginadas. Honestamente, dizer que o mantra
faz tudo se tornar vacuidade não é realmente verdade, porque todas as coisas já eram
vacuidade. Não é que de repente se tornam vacuidade porque você pensa. Se alguém
ainda não reconheceu a essência da mente, não se vê. O pensamento de uma coisa após
a outra se torna uma imitação do verdadeiro estágio de desenvolvimento por não
conhecer realmente o estágio de conclusão.

Por outro lado, você pode ter sido introduzido na natureza da mente e reconheceu o
samadi da talidade. A talidade significa como realmente é, não apenas como se imagina
que seja. Apesar de não se afastar desse estado de talidade – ao reconhecer a essência da
mente – pode-se permitir que os diferentes aspectos do estágio de desenvolvimento
sejam desenrolados ou exibidos, sem deixar o estado de talidade para trás. Essa é a
verdadeira unidade de desenvolvimento e conclusão. Existe um caminho real e um
caminho simulado, e sem reconhecer a essência da mente, não há chance de que se
possa praticar o caminho real.

A maneira real de praticar a unidade de desenvolvimento e conclusão significa que você


foi introduzido à visão de Trekchö – cortando através – o verdadeiro samadi da talidade.
É como o exemplo que dei de um espelho em branco. Qualquer coisa pode ser refletida
e, quando refletida, o reflexo não tem substância ou materialidade alguma. E, no
entanto, é claramente visível.

O samadi semente, o terceiro dos três samadis, é como o reflexo que aparece, ao passo
que a luminosidade e o espelho em si são como os dois primeiros samadis, que são a
vacuidade e a cognição. O Samadi da talidade é a vacuidade e o samadi da iluminação é
a qualidade cognitiva ou luminosa. Estes dois são indivisíveis, e desta unidade
indivisível de vacuidade e cognição, também chamado de vacuidade e compaixão,
qualquer reflexo pode ocorrer; qualquer forma de estágio de desenvolvimento pode
ocorrer livremente. Tudo o que se desenrola como o estagio de desenvolvimento
indivisível do estágio de conclusão é experimentado, mas não tem nenhuma natureza
material. Isso é apenas por causa do reconhecimento do estágio de conclusão. Sem isso,
o estágio de desenvolvimento é como o trabalho de construção que está acontecendo
fora do meu quarto. Torna-se trabalho de construção, o que significa que algo é visível,
mas também tangível.

Digamos que você recebeu todos os empoderamentos para o Rinchen Terdzo, o Tesouro
de Termas Preciosos, um ciclo de ensinamentos com muitas e muitas deidades. Demora
quatro meses para receber todas as capacitações. Se o seu estilo de prática é de acordo
com as Escolas Novas, você teria uma enorme pilha de práticas diárias, todas as quais
você tem que cantar. Seria preciso cantar continuamente de manhã até o anoitecer a fim
de passar por estas e dizer os mantras. No final, você pensaria: "Ufa, hoje eu fiz isso, eu
consegui por isso, eu ainda tenho o vínculo sagrado com todas as deidades, elas não me
deixaram". Então talvez um dia você se esqueça de uma delas ou você não consiga fazer
a prática. Você pensa: "Oh, não! Agora eu rompi a ligação sagrada com este yidam, eu
quebrei meu samaya, e com certeza eu irei para o inferno". Então você está realmente
com problemas. O problema vem porque existem tantas formas diferentes de yidams
que se torna muito difícil manter o vínculo com cada um deles individualmente.

Você também pode adotar a abordagem de que todo yidam e todo buda são idênticos na
extensão do estado desperto original. Então você pode manter a ligação com todos eles,
simplesmente, por exemplo, cantando as três sílabas para o corpo, fala e mente de todos
os budas, OM, AH, HUNG. O OM é a essência de Vairochana, o Manifestador das
Formas, o corpo iluminado de todos os budas. AH é a essência de Amitaba,
Luz Infinita, que é o discurso de todos os budas. HUNG é a essência de Akshobia, o
Inabalável, que é a natureza da mente livre de pensamento conceitual. A sílaba HUNG é
a essência da mente de todos os budas. Na verdade, seria perfeitamente bom cantar OM,
AH, HUNG ... OM, AH, HUNG enquanto reconhece a essência da mente. Você está
mantendo o samaya com todos os aspectos possíveis dos yidams e budas, porque todos
eles estão incluídos no corpo, fala e mente iluminados.

Agora pense em todos os ensinamentos dados pelos budas. Neste mundo, o Tripitaka, o
Kangyur e Tengyur – as Palavras do Buda e os tratados que são os comentários sobre
eles – enchem centenas e centenas de volumes com detalhes incríveis. Depois, existem
todos os tantras. No entanto, a essência de todos esses ensinamentos é o estágio de
desenvolvimento e conclusão. Ao procurar a compreensão perfeita, você pode entrar em
grande detalhe, mas quando se trata de aplicar essa compreensão à sua experiência, você
deve condensar tudo e simplificá-lo. Em outras palavras, essas três sílabas, OM, AH,
HUNG, contêm o corpo, a fala e a mente de todos os budas, todos os ensinamentos e
todos os samadis.

Da mesma forma, o corpo, a fala e a mente dos vitoriosos estão contidos num único
instante de reconhecimento da essência da mente. OM é a essência de Vairochana, que
significa "manifesto em forma". A forma da deidade é algo visível, algo manifesto em
forma. Por exemplo, no estado do bardo, encontramos os sons, as cores e as luzes, as
grandes e menores esferas de luz, as deidades pacíficas e iradas, e assim por diante.
Tudo o que encontramos aqui é algo perceptível, que é manifesto em forma, e esse é o
aspecto corporal de todos os budas. Em seguida é o AH para a fala. A fala é Amitaba,
luz ilimitada, que são todos os infinitos ensinamentos todos contidos dentro de uma
sílaba. O HUNG para a mente é Akshobia, o que significa imperturbável ou inabalável –
o estado de consciência não-dual, sem qualquer pensamento conceitual. Deste modo, as
três sílabas OM, AH, HUNG personificam ou incluem o corpo, a fala e a mente de
qualquer forma de Buda seja de que maneira for. Você pode entrar em grande detalhe
sobre tudo isso ao tentar compreender, mas ao aplicá-lo em sua própria experiência,
condense tudo no essencial.

A essência do corpo, fala e mente de todos os budas é chamada deidade, mantra e


samadi. A maneira de condensar isso no essencial é que a deidade é algo que você
visualiza, em vez de algo que você faz à mão. Não é uma grande construção. É a
lembrança de que "eu sou tal e tal deidade". Naquele momento, você imaginou a si
mesmo como sendo uma certa deidade, então isso é muito simples. Com a sua fala, que
é o mantra, diga OM, AH, HUNG. Com sua mente, que é o aspecto do samadi,
reconheça a essência da mente. Tudo está incluído nesta abordagem simples.

A menos que treinemos nos três princípios da deidade, mantra e samadi, como seres
sencientes, nossas mentes são sempre carregadas pelos três ou cinco venenos. Por
exemplo, olhe para este copo. Você pensa que este é um bom copo – bem, isso é desejo.
Quando você olha para um lenço usado, você não gosta disso. Isso é raiva ou aversão.
Este palito de dentes não utilizado não é nem bom nem ruim, certo? Quando você olha
para aquilo que você não se sente atraído, você não se irrita com isso, você se sente
neutro. Qualquer pensamento que pensemos é como um desses três. Não há nenhum
estado da mente dualista que não seja misturado com os três venenos. Quando vemos
algo legal, nós gostamos disso. Se vemos algo feio, não gostamos. Algo intermediário,
nos sentimos indiferentes, certo? Além disso, quando ouvimos algo agradável, quando
cheiramos algo suave, quando provamos uma comida deliciosa, nós gostamos. Se o
gosto é desagradável, não gostamos disso. Todos nós temos os três venenos. Quando
algo aparece em nossa mente o que é agradável, nós gostamos disso; se é doloroso, não
gostamos. Temos prazer e dor, não é? Mas qualquer coisa entre nós que não nos
interessa muito, descartamos. Tudo o que aparece aos nossos seis sentidos, sempre
reagimos com os três venenos.

O estágio de desenvolvimento é simplesmente mudar este padrão em pensamentos


brancos, imaginando o palácio celestial, a forma da deidade e as oferendas. Quando
imaginamos o Mt. Sumeru após as cinco sílabas, o palácio celestial em cima do vajra
em cruz, a deidade e as oferendas, tudo isso purifica o nosso pensamento habitual. Nós
cantamos a invocação, e as deidades de sabedoria aparecem no céu e se dissolvem em
nós mesmos. "Eu mesmo sou uma deidade; eu emano raios de luz se transformando em
oferendas às deusas que se voltam e apresentam oferendas ilimitadas e louvores para
mim mesmo como uma deidade". Tudo isso é algo que imaginamos, e muda nosso
padrão de pensamento para pensamentos brancos. Isso diz respeito à deidade, para o
aspecto do corpo.

Em seguida, imaginamos os três sattvas: samaya sattva, jnana sattva, samadi sattva, que
são os seres triplos chamados de ser samaya, ser sabedoria e ser samadi. O ser samadi é
uma sílaba-semente no centro do nosso coração cercada pela guirlanda de mantra, que
gira e emana raios de luz. Há muitas atividades e funções relacionadas à recitação de
mantra que pertencem ao aspecto da fala. Quando se trata do aspecto do samadi ou
mental, você simplesmente reconhece o que é isto que imagina tudo isso. Experimente o
estado indivisível de cognição vazia.

Os estágios de desenvolvimento e conclusão são ensinados pelos budas com meios


hábeis e grande compaixão. Esses ensinamentos são extremamente preciosos e eficazes.
Todo o propósito da fase de desenvolvimento é, em primeiro lugar, transformar os
pensamentos negros em pensamentos brancos. O propósito do estágio de conclusão é
deixar que os pensamentos brancos se dissolvam sem deixar vestígios. Quando você
reconhece a essência da mente e vê o estado indivisível de cognição vazia, isso dissolve
até mesmo o mais branco dos pensamentos, de modo que nenhum traço é deixado para
trás.

As pessoas às vezes dizem: "Quero ter uma visão da deidade". Eles esperam que depois
de recitar um certo número de mantras, a deidade aparecerá em frente a eles e eles irão
vê-la. Na verdade, essa atitude externaliza a deidade. A deidade real é a unidade de
vacuidade e cognição, a natureza de sua própria mente. Em vez de tocar o sino e bater o
tambor, esperando que a deidade apareça lá no céu antes de você, você deveria
simplesmente reconhecer o que é isto que imagina isso tudo. Naquele momento você vê
o estado em que a vacuidade e a cognição são indivisíveis. Isso é está cara a cara com a
deidade real. Não é muito mais fácil do que esperar que uma deidade apareça de fora? A
visão real da deidade é reconhecer a natureza de sua mente.

Mesmo se você procurar por um bilhão de anos na natureza de sua mente, você nunca
verá que é qualquer "coisa" concreta além de ser vazia. Essa é a deidade darmakaya, e
quando você olha, você a vê. Não importa como você investigue, analise e examine essa
natureza da mente, você nunca encontrará qualquer tipo de substância concreta e
material. É por isso que se chama vacuidade não-construída ou incomposta. Reconhecer
isso é estar cara a cara com ou ter uma visão do darmakaya buda. O que vê que a mente
é vazia? Há uma qualidade cognitiva e consciente que pode ver que é vazia. Isso é
diferente do espaço; o espaço não vê a si mesmo. A mente, por outro lado, é
conhecedora assim como vazia. A qualidade vazia é darmakaya, a qualidade
cognoscível é sambogakaya, e sua unidade é nirmanakaya.

Esta é a maneira mais fácil de ter uma visão da deidade, bem como a maneira real. A
maneira superficial é esperar que uma deidade apareça como vindo de fora, depois de
tocar o sino e bater o tambor. No entanto, a maneira mais fácil é ter uma visão da
deidade como o estagio de conclusão. Essa também é a verdadeira maneira. Se você
apenas praticar o estágio de desenvolvimento com o sentimento: "Eu queria que a
deidade viesse, eu queria que a deidade viesse", isso é treinamento em esperança e
medo. Somente afasta a verdadeira deidade para mais longe.

Reconhecer a essência da mente captura a força vital de milhares de budas. Quando


você se apodera da força vital, eles não podem escapar de você. Através do poder do
estado genuíno do samadi, você captura a força vital de todas as deidades, sem ter que
evocá-las como estando em algum lugar distante.

Há também outra maneira, no qual se tenta agradar a uma deidade de maneira sólida e
rígida, pensando que a deidade realmente existe em algum lugar. Este tipo de atitude
pensa: "Eu devo fazer oferendas, caso contrário, ela se irritará. Se eu fizer boas
oferendas, ela ficará satisfeita. Se eu canto o mantra, eu a faço feliz e, se eu esquecer,
ela ficará chateada. Se eu romper o vínculo com ela, isso fará com que ela se sinta muito
mal”. Essa atitude também é chamada de treinamento em esperança e medo, e não é a
maneira genuína.

É muito mais simples praticar assim: primeiro, lembre-se com o pensamento de ser a
deidade, por exemplo, "Eu sou Vajra Kilaya". Então, recite o mantra, OM BENZA KILI
KILAYA, ou simplesmente OM, AH, HUNG. Em seguida, reconheça o que é que
imagina a deidade e o que canta o mantra como sendo nada além de sua própria mente.

Sem essa mente, não haveria visualização da forma da deidade. Sem mente, não haveria
cantar o mantra. Quando você olha o que é que imagina ou recita, reconhecendo sua
própria mente, você vê que é uma cognição vazia indivisível, e não alguma forma
estranha. Por exemplo, se você quiser tocar o espaço com o dedo, até onde você precisa
mover o dedo para tocar o espaço? Não o toca no momento em que você estende o
dedo? Da mesma forma, no momento em que você reconhece, você entra em contato
com o estágio de conclusão – a natureza vazia e conhecedora da mente. É reconhecida
imediatamente. Assim, enquanto vê a natureza da mente, você pode portá-la e cantar o
mantra.

Ao iniciar sua sessão de prática, não descuide de imaginar a forma da deidade. Sem
olhar no espelho, o rosto não é visto. Visualizar a deidade significa que o espelho da
mente pode pensar: "Eu sou Vajra Kilaya". É correto lembrar-se de que você é a
deidade, porque seus cinco agregados e cinco elementos desde o início são a mandala
dos budas.

Desta forma, usando o pensamento único, "Eu sou a deidade", a visualização não leva
mais do que um instante. Esta lembrança instantânea, trazendo a deidade vividamente
para a mente em um instante, é a mais alta e melhor forma de visualização. Com sua
voz, cante o mantra e, com sua mente, reconheça. Se você pode decidir que esse tipo de
prática é suficiente e todo-abrangente, isto é perfeitamente correto. Não é como se
tivéssemos de agradar a deidade de sabedoria, na qual não tem pensamentos de qualquer
maneira. As deidades de sabedoria não ficam satisfeitas ou descontentes, por isso é
realmente mais uma questão de resolver sua própria mente e praticar dessa maneira
simples e todo-abrangente. Esta é a minha opinião. Talvez eu esteja sendo muito simples
aqui. Por outro lado, talvez seja verdade.

A deidade de sabedoria representa o que se chama rangjung yeshe em Tibetano, ou


swayambhu jnana em Sânscrito: estado desperto auto-existente. Desta forma, a deidade
de sabedoria é indivisível da natureza de nossa própria mente. A deidade de sabedoria
não tem pensamentos e, portanto, não discrimina e não fica satisfeita ou descontente por
nossas ações. No entanto, um texto cita: "Embora a deidade de sabedoria não possua
pensamentos, ainda assim, seu séquito atado por juramento vê as falhas das pessoas".
Enquanto que a própria deidade de sabedoria não é feita feliz por oferendas ou não fica
descontente se alguém esquecer. Sua realização total age como um ímã para atrair todos
os tipos de espíritos mundanos. Esses espíritos mundanos têm deficiências, eles têm
pensamentos, e eles veem as falhas das pessoas. Eles podem afetar ou prejudicar. O
séquito das deidades de sabedoria inclui os mamos, o tsen, o dü e todos os diferentes
deuses da terra, do fogo e da água. Quer você faça oferendas ou não, isso faz diferença
para eles. Mas para as próprias deidades de sabedoria, não faz diferença, porque elas
não têm pensamentos.

Para reiterar, execute qualquer prática de yidam em que você esteja envolvido enquanto
a pratica dentro da estrutura dos três samadis e ao mesmo tempo em que reconhece a
essência da mente. Se você praticar assim, posso garantir que, nessa mesma vida, você
pode realizar ambos os sidis comuns e o supremo sidi da iluminação completa.
Deixe-me contar uma história para ilustrar isso. Sakya Pandita não era apenas um
mestre extremamente erudito, mas era igualmente realizado. Ele havia desenvolvido a
clarividência com base no som. Viajando por um lugar ao longo da fronteira com o
Tibete, ele ouviu um riacho correndo pela montanha. Através da água, ele ouviu o
mantra de Vajra Kilaya mal pronunciado OM BENZA CHILI CHILAYA SARVA
BIGHANAN BAM HUNG PHAT. Ele pensou: "Alguém deve estar recitando o mantra
errado nas montanhas; é melhor eu subir e corrigi-lo". Ele subiu lá e encontrou uma
pequena cabana de meditação insignificante com um lama sentado dentro. Sakya
Pandita perguntou seu nome e o que ele estava fazendo, e o lama respondeu: "Meu
yidam é Vajra Kilaya e é isso que estou fazendo". Sakya Pandita perguntou: "Qual
mantra você está usando?" E o lama disse "OM BENZA CHILI CHILAYA SARVA
BIGHANAN BAM HUNG PHAT". Sakya Pandita disse: “Oh, não! Esse é o mantra
errado, supõe-se que comece com OM BENZA KILl KILAYA. É aí que o verdadeiro
significado reside, nas palavras: 'Vajra Kilaya com sua consorte, os Dez Filhos e todos
os Comedores e Matadores.' Eles estão contidos nos sons do mantra.” O meditador
respondeu: “Não, não, as palavras não são tão importantes quanto o estado mental. A
mente pura é mais importante do que o som puro. Eu disse CHILI CHILAYA no
passado e é isso que vou continuar a dizer no futuro. Não há dúvida acerca disso! Você,
por outro lado, precisará de minha phurba.” E o meditador deu a Sakya Pandita sua
adaga de kilaya, dizendo: “Leve isso com você”. Assim ele fez.

Algum tempo depois, em Kyirong, que está na fronteira entre o Tibete e o Nepal, Sakya
Pandita se encontrou com Shangkara, um mestre Hindu que queria converter os
tibetanos. Os dois tiveram um grande debate, com o vencedor de cada rodada obtendo
um guarda-sol ou guarda-chuva como símbolo de sua vitória. Cada um ganhou nove, e
havia restado um. Naquele momento, Shangkara voou para o céu, como uma exibição
mágica de seus sidis. Enquanto ele levitava, Sakya Pandita pegou sua adaga e cantou
"OM BENZA CHILA CHILAYA ..." Shangkara caiu direto ao chão, e Sakya Pandita
ganhou o décimo guarda-sol. Dizem que o Budismo no Tibete sobreviveu por causa
disso.

Um velho ditado diz que "os Tibetanos arruínam a si mesmos por terem muitas
deidades". Eles pensam que têm que praticar uma, então eles têm que praticar outra,
depois uma terceira e uma quarta. Continuam e continuam, e eles acabam não
realizando nada, enquanto na Índia um meditador praticaria uma única deidade para
toda a vida e alcançaria a suprema realização. Seria bom que tomássemos essa atitude.
Se praticarmos Vajrasattva, é completamente perfeito simplesmente praticar esse único
yidam. Não é preciso mudar constantemente para deidades diferentes, com medo de
perder alguma coisa, porque não há absolutamente nada faltando na única prática do
yidam.

Uma linha de um tantra diz: "Peço desculpas por aceitar e rejeitar a deidade yidam". Às
vezes, alguém se sente cansado com uma prática particular, como "Já é o suficiente
praticar esse yidam!” Então você abandona aquele e tenta praticar outro, então depois de
um tempo, outro. Tente não fazer isso.

Como eu disse anteriormente, se você realizar um buda, então você realiza todos os
budas. Se você atingir a realização de um yidam, automaticamente você alcançará a
realização de todos os yidams ao mesmo tempo. Claro, não há nada de errado em
praticar mais do que um. O objetivo é não saltar entre eles.
Pratique qualquer yidam que você mais goste. Você naturalmente se sentirá mais
inclinado a um yidam do que outro, e esse sentimento é uma boa indicação de qual você
está conectado. A orientação básica é escolher aquele na qual você se sinta mais
inspirado. Depois de escolher um, pratique-o continuamente.

Não existem diferenças essenciais entre os yidams. Você não pode dizer que existem
"yidams" bons ou maus, na medida em que todas as formas de yidam estão incluídas nas
cinco famílias de Buda. Não é que uma família de Buda é melhor ou pior do que
qualquer outra – de modo algum.

Os sentimentos individuais das pessoas fazem a diferença, na medida em que algumas


pessoas querem praticar Padmasambava como seu yidam, enquanto algumas querem
praticar Avalokiteshvara, Buda Shakyamuni ou Tara. A preferência varia de pessoa para
pessoa devido à inclinação cármica. Não é que exista qualquer distinção de qualidade
entre os yidams. Se você tomar as cem deidades pacíficas e iradas como seu yidam,
todas estarão incluídas.

Uma vez que você alcança a realização, você realiza simultaneamente todas as
qualidades iluminadas, independentemente de qual yidam você pratique. Não faz
qualquer diferença. Por exemplo, quando o sol nasce, seu calor e luz estão
simultaneamente presentes. Se você realiza uma forma de buda, você realiza
simultaneamente todas as formas de buda. A razão é que todos os yidams são
essencialmente os mesmos; eles diferem apenas na forma, não na essência. A razão
fundamental pela qual se alcança a realização é por reconhecer a essência da mente
enquanto faz a prática do yidam. A prática real é reconhecer rigpa, e você usa o yidam
como a forma externa da prática. Embora todo yidam manifeste vários aspectos de
qualidades diferentes, em essência são todos iguais.

Você pode descrever o nascer do sol de diferentes maneiras: algumas pessoas dirão que
quando o sol nasce o frio vai embora, ou que não há mais escuridão, ou que fica claro e
você pode ver. É o mesmo que descrever as diferentes qualidades do estado iluminado,
em que todas as qualidades como sabedoria, compaixão e capacidade estão
espontaneamente presentes.

Tente ver a prática do yidam como um presente que os budas nos deram porque a
solicitamos. Quando tomamos refugio, estamos pedindo proteção, para sermos
salvaguardados, e a proteção real reside nos ensinamentos sobre como remover os
obscurecimentos e como atingir a realização. A proteção real é a prática do yidam.
Através dela, podemos remover o que precisa ser removido e realizar o que precisa ser
realizado e, assim, alcançar a consumação.

Embora tenhamos essa essência iluminada, é como uma lâmpada de manteiga que ainda
não está acesa, ainda não iluminada. Precisamos nos conectar, tocar em uma lâmpada de
manteiga acesa para iluminar a nós mesmos. Imagine duas lâmpadas de manteiga juntas
aqui: uma não está acesa, a outra já está iluminada. Aquela que ainda está apagada tem
que se curvar para a outra, a fim de obter a luz.

Do mesmo modo, já temos a natureza de buda, mas ainda não conseguimos capturar
isso. Nós ainda não a reconhecemos nem treinamos nela e alcançamos a estabilidade.
Existe um grande benefício na conexão com essas outras "lâmpadas" porque já
reconheceram sua natureza de buda, treinaram nela e obtiveram estabilidade. Nossa
lâmpada de manteiga está pronta para ser acesa, para pegar o fogo, mas ainda não
reconheceu a si mesma, não se treinou e ainda não alcançou estabilidade.

Existe um benefício na prática de yidam. Mipham Rinpoche teve uma visão de


Manjushri, sua deidade suprema, e através disso se tornou uma grande pandita, um
estudioso extremamente erudito. Muitos dos mahasidas indianos praticaram a sadana de
Tara. Eles combinaram o reconhecimento da essência da mente com a prática do yidam
e alcançaram a realização. Todas as histórias de vida daqueles que se tornaram grandes
mestres falam sobre a prática de yidam. Você nunca ouviu falar de ninguém dizendo:
"Eu alcancei a realização e não usei nenhuma deidade. Não precisei dizer nenhum
mantra". A prática da deidade yidam é como adicionar o óleo ao fogo da prática; ele
brilha ainda mais alto e mais quente.

Extraído de As It Is Vol. 1 – Tulku Urgyen Rinpoche – Adaptado ao português por


Kadag Lundrub.

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