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Breve histórico N um depoim ento à revista José (n.i, Cabe lem brar, finalm ente, o conjunto de introduções
jul. 1976), Otto M aria C arp eau x e seus entrevistado aos nove volum es da Antologia do conto russo, pu b li
res calcularam que apenas dez po r cento dos artigos cada entre 19 6 1 e 1962, pela E d ito ra Lu x, do R io de
sobre tem as literários que ele produziu e publicou em Janeiro.
p erió d ico fo ram reu n idos em livros. Foram apenas No final de 1992, a editora N ova A lexan d ria ofereceu
seis coletâneas, e nenhum a passou da p rim eira ed i a coletânea de ensaios Sobre letras e artes, que reunia
ç ã o 1 D uas an to lo gias2 contendo alguns pou cos en quarenta e seis trabalhos originalm ente publicados no
saios inéditos foram ainda publicadas, m as apenas a Letras e Artes, dos quais quarenta e dois inéditos em
prim eira pôde ser revista po r C arpeaux. Falecido no livro. “Andersen e a literatura infantil” e “ Ulisses” apa
Carnaval de 1978, essa circunstância contribuiu para receram em Retratos e leituras (Rio de Janeiro: Simões,
sufocar a eventual repercussão de seu desaparecim en *953); “Antigone” e “ Os heterônim os de Fernando Pes
to. De 1978 é o volum e Alceu Amoroso Lim a, tam bém soa” pertencem a Presenças (Rio de Janeiro: in l , 1958).
póstum o. N em a biografia nem aquelas antologias fo H á m uito esgotados estes livros, foi m ais que com
ram reeditadas. preensível e oportuna a reedição.
A inda a literatura: sua enciclopédica História da lite Eis que sete anos depois, em 1999, anuncia-se, com um
ratura ocidental teve um a reedição, revista pelo Autor, prim eiro Ensaios reunidos, o projeto m onum ental de
mas surgida postumamente. Isso não impediu que saís um a publicação em dez volum es das obras de Otto
se mutilado o volum e sobre o Rom antism o: foram su M aria C arpeaux. Até este final de 2002, continuam os
prim idas nada menos que as trinta páginas finais, on aguardando a continuidade.
de C arpeaux analisa a herança ou os prolongam entos Não se com preende bem porque sua obra esteja hoje
daquele estilo. A literatura alemã que teve sua prim ei em dia praticamente fora do debate dos estudiosos de
ra edição em 1964 foi reeditada apenas em 1994. Sua literatura. Talvez a longa ausência nas livrarias e nos
Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira periódicos e suplem entos de cultura. Talvez o gosto
(1949) — obra de referência indispensável até hoje — pela novidade, a neofilia, que considera superado m es
teve a últim a atualização feita pelo Autor em 1967. Em m o o que não é conhecido. Superar, a palavra diz, é
1978 a Ediou ro prom oveu a reedição, atualizada por con struir sobre, criar conservando. O u, finalm ente,
Assis Brasil. Hoje, está desaparecida e faz falta. porque “ os hom ens não sabem ler”, com o escreve Car-
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vol. 1. Olavo de Carvalho (Org.) [Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks Editora, 1999]
peaux. Alain (Ém ile Chartier, 1868-1951) exprime idéia textos5. N ão vale a pena citar exem plos, num erosos,
sem elhante quando afirm a: “ O paradoxo hum ano é daqueles deslizes. Cabe apenas notar que, m ais que
que tudo está dito e nada com preendido” 3. nunca, o desleixo e talvez o pouco conhecim ento do
assunto não são incomuns entre os que supom os obri
A preparação dos textos A reedição dos seis vo lu gados ao m anejo da língua culta. Acredito que o edi
mes da obra de crítica literária de Otto M aria Car- tor de texto deva adotar a postura de in tervir nesses
peaux enriqueceu de traduções, em notas de rodapé, casos, com o revisor. N ão me parece fundam ental as
dos títulos e citações em língua estrangeira. Introdu sinalar com notas essas intervenções.
ziu, ao final, um “ índice onom ástico”. N orm alizou os O ensaio “ Poesia e ideologia”, divulgado originalm en
critérios de citação. Trouxe um a icon ografia de boa te no Correio da manhã, dia 27 de setembro de 1942 in
qualidade. São conquistas sem dú vida im portantes. tegrou Origens efins, mas um a linha saiu em pastela-
No entanto, um critério u niversitário m ais exigente da, com o já tive ocasião de m encionar. Reproduzo
esperaria mais. Alinho alguns problem as remanescen parte do parágrafo correspondente e, entre colchetes,
tes para futuras reedições: a linha reconstituída com base no jornal. (C om pare-
Quem lê os dois prim eiros livros de Carpeaux, Cinzas se com a solução supressiva, não assinalada, da edição
do Purgatório (1942) e Origens efin s (1943), ignora que de que estamos tratando, p. 278.)
foram redigidos quase totalmente em francês e tradu
zidos por Carlos Gilberto Lim a Cavalcanti.4 Toda poesia é difícil. Tem sempre algo de acadêmico-aris-
M esm o na ausência dos originais, pelo contexto p o tocrático para uma elite, ou algo de voz clamante de pro
dem-se notar algum as imprecisões do tradutor: no en feta no deserto, ou algo de hermético [quase de ciência
saio sobre Weber m enciona-se um a discussão teológi oculta. E mesmo a imitação do tom] popular pelos poe
ca sobre os “ interesses do capital” tradução literal, que tas cultos é um artifício. São atitudes; e o primeiro mal
deveria ser corrigida para “juros do capital” entendido da poesia é a confusão entre atitude e inten
Em bora escrevendo extraordin ariam en te bem , C a r ção. Todas as atitudes poéticas, a parnasiana, a romântica,
peaux com etia deslizes na sintaxe de regência. Em al a suprarrealista não passam de atitudes. A verdadeira in
guns m om entos apenas pôde contar com a colabora tenção de toda verdadeira poesia é a expressão duma ver
ção de A urélio Buarque de H olanda, para rever seus dade pessoal, humana; e contra todas as atitudes artifi-
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ciais surge, como instância suprema, a figura do mais to em que a consciência do mundo venera e exalta o
completo, porque mais humano, dos poetas: François Vil- exemplo da sua vida. Uma das expressões usadas —
lon. A poesia de Villon, os poemas mais bem construídos ”Morto, ainda não nos deixa em paz” — não deveria ser
em língua francesa, é realmente uma lição sobre a essên pronunciada senão por aqueles inimigos da vida, tão
cia da poesia: o poeta com a vida mais desordenada che bem compreendidos no famoso grito de Millán de As-
ga a ser o construtor de supremas ordens verbais; supe tray: “Abajo la inteligência! Viva la muerte!”6
rior à atitude é a intenção, e a intenção da poesia é: impor
uma ordem ao caos das palavras desordenadas. até polêm ica envolvendo num erosos intelectuais, en
tre eles Bernanos, então no Brasil. C arp eau x respon-
Por uma biografia intelectual de Carpeaux Mais deu-lhe na revista de O Jornal (16.4.1944), com o arti
do que antes seria im portante elaborar um a biografia go “ Discussão e terrorismo”
intelectual do ensaísta, baseado em docum entação e Naquele m esm o ano de 1944, dia 27 de agosto, pu bli
não em conjeturas indemonstráveis, como a do ensaio caria “As opiniões de Sw ift” e um a nota, talvez reflexo
do organizador, sr. Olavo de Carvalho. da polêm ica recente:
A carreira de C arpeau x teve m om entos tensos. Lem
bro alguns episódios. Em dezembro de 1943, a propó Fora o meu mais vivo desejo exprimir a minha profun
sito de um boato que circulou a respeito da m orte de da emoção pela libertação de Paris, sinal da libertação
Rom ain Rolland, Carpeaux publicou na Revista do Bra do mundo, e ressurreição da cidade à qual me ligam as
sil pequeno artigo, que foi lido pela esquerda, especial recordações mais caras. Deste modo, pretendi associar-
mente pelo Partido Com unista, com o ofensiva ao ro me às vozes de tantos intelectuais, colaboradores de O
m ancista e combatente dem ocrático francês. Isso deu Jornal, publicado na edição de 24 de agosto. Foi isso in
origem a um a série de manifestações, desde o desagra felizmente impossível, porque as pessoas responsáveis
vo na revista Leitura (fev. de 1944), assinada pelo re pela publicação daquelas vozes me ignoram sistemati
dator, b . m . (Barbosa Mello): camente o nome. Deixo aqui o meu veemente protesto.
Não podemos compreender o motivo do ataque ao es Dênis de Morais, em O imaginário vigiado (Rio de Janei-
critor vitimado pelo nazismo, precisamente no momen ro:José Olympio, 1994, p. 156), narra episódio de 1951:
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Egídio SquefF se insurgiu contra um artigo no qual Ot- valor da minha história não está em atender as pessoas
to Maria Carpeaux apontava divergências entre o pen com minhas opiniões, mas em ser uma boa história e
samento de Antonio Gramsci e a direção do Partido Co por isso ser aceita.
munista Italiano a respeito das ciências naturais e da
técnica. “ Quer agora o sr. Carpeaux enlamear a memó No Brasil, a ditadura militar puniu severamente os in
ria de um homem que é patrimônio da cultura da na telectuais de oposição, entre eles Otto M aria Carpeaux:
ção italiana e o filho mais querido de sua gloriosa classe ficou praticam ente proibido de publicar seus ensaios.
operária.” Squeff arrematou: “ Poucas vezes temos visto Nos anos 1970, chegou a tentar voltar para a Europa.
um arrivista intelectual tão desonestamente inescrupu- Nos últimos tempos, conseguiu sua subsistência entre
loso como esse tatibitate da decadência. ...Ora, o sr. Car nós redigindo verbetes para a Enciclopédia britânica
peaux é uma besta.” (Para todos, n.9, abril de 1951). do B rasil D. Helena Carpeaux, que tive o privilégio de
entrevistar, narrou a guerra de nervos m ovida pelos
Para abreviar esse histórico, valeria apenas m encionar agentes da repressão política. V isitavam o casal pela
a polêm ica que se travou em torno do artigo de C a r m adrugada, interrom piam -lhes o repouso, e o b riga
peaux, na Revista da Civilização Brasileira (n.14, de jul. vam C arpeau x a com parecer para in terrogatórios,
1967),” 0 estruturalism o é o ópio dos literatos” m esm o sob protesto da esposa. Argum entava em vão
A posição de esquerda nunca assegurou dividendos a que C arpeau x não estava foragido e, convocado, p o
nenhum intelectual nem dentro nem fora dos países deria com parecer em outro horário. Sua m orte aos 78
do antigo bloco socialista. Eric H obsbawn, por exem anos foi, segundo ela, antecipada pela necessidade de
plo, em entrevista a Sylvia Colom bo (Folha de São Pau utilizar tranqüilizantes.
lo, 15.2.2001, p. e i ), declarou:
Notas sobre o discurso indireto livre Para bem
Sempre tentei escrever história inspirado pelo marxis com preender Otto M aria C arpeau x seria preciso es
mo, mas o valor dessa história não depende de meus tudar com cuidado um dos seus recursos expositivos
pontos de vista. As pessoas sabem que minhas idéias são m ais freqüentes: a utilização do discurso indireto li
de esquerda, e, em alguns momentos, isso fez com que vre com o form a de glosar o pensam ento dos autores
eu fosse mais popular. Em outros momentos, menos. O de que tratou.
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Esse tipo de discurso, estudado por Bakhtin (M arxis crim e, viu-se na contingência de com eter um segun
mo e filosofia da linguagem, 3- parte) e objeto de insti- do, involuntário. “ Tinha preparado e calculado tudo,
gante ensaio de Pier Paolo P asolini7 pode ser sinteti m inuciosamente, menos esse efeito terrível do seu cri
camente definido pela fórm ula deste último: me: o segundo crim e”. E argumenta:
forma gramatical que serve para falar através do locu Pois o homem não é capaz de calcular todos os efeitos
tor — e sofrer ou aceitar a modificação psicológica e so dos seus atos. A relação entre causa e efeito, na vida, é
ciológica deste decorrente. muito complexa; e nenhuma inteligência ou sabedoria
humana chega a saber, de antemão, tudo. Por quê? Por
No cam po da literatura de ficção, as análises desse m o que nossa experiência é limitada.
do de articular o pensam ento do outro têm rendido Temos de submeter-nos a uma experiência maior, que
excelentes resultados. No entanto, seu uso na exposi observa há séculos, há milênios a vida humana, pré-sa-
ção teórica, obrigada a citar, resumir e interpretar dis bendo muito; ou antes, pré-sabendo tudo. É Deus que
cursos ainda não cham ou a atenção dos analistas. proíbe matar. É por isso que a história de Raskolnikov
C arpeau x se vale am iúde do procedim ento, desn or termina com sua conversão ao Evangelho. A continua
teando por vezes os leitores, que não chegam a discer ção será Os irmãos Karamazov.
nir onde term ina a glosa do pensam ento alheio e o n
de começa ou continua o discurso do crítico. Isso leva A eficiência e a beleza desses parágrafos derivam da
a atribuir a ele concepções que podem não ser as suas. am bigüidade do discurso indireto livre, am bigüidade
A cautela com que me exprim i, “ podem não ser”, é uma que só se esclarece nas duas frases finais: a lógica que
ressalva para casos realmente fronteiriços. se articula não pertence ao ensaísta, m as é a lógica da
Apenas um exemplo. D iscutindo as interpretações da ficção de D ostoiévski, a da “ história de R askolnikov”,
obra de D ostoiévski (Antologia do conto russo, vol. 11, lógica que se prolongará em Os irmãos Karamazov.
p. 25-7), C arpeau x detém -se no problem a que consi Pasolini ensina: “ O certo é que sempre que encontra
dera fundam ental: “ é lícito m atar gente?” (por razões m os o discurso indireto livre, isso im plica um a cons
pessoais ou políticas?). ciência sociológica, clara ou não, por parte do au tor”
Raskolnikov, em Crim e e castigo, com etido o prim eiro [grifo meu]
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Consciência da diferente posição existencial e de clas Manhã, onde muitos dos ensaios daqueles livros foram originalmen
se dos sujeitos que se exprimem no mesmo discurso te estampados,fornece os dados precisos.
misto. Consciência sociológica, em suas dimensões fi 5 No arquivo Graciliano Ramos, do Instituto de Estudos Brasileiros, te
Permita-se uma últim a citação de O tto M aria C ar se documenta esta colaboração.
peaux, de um artigo da revista Argumento (jan. de 1974), 6 Leitura, p. 34-5,fev. de 1944. Seguem-se artigos de Gorki e de Aníbal
A palavra grega idiótes significa, como todos sabem, um de Miguel Serras Pereira), Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.
tica. Por extensão, também teria sido idiota um homem dade de São Paulo e autor de Augusto dos Anjos: poesia e prosa
que não se quer ocupar com política, ou, então, um ho [Ática, 1977] e da tese de doutorado A antífona assimétrica: Augus
mem que é considerado tão idiota que não tem o direi to dos Anjos [usp].
senças, Rio de Janeiro: inl, 1958; Livros na mesa. Rio de Janeiro: Livraria
São José, 1960.
velmente 1978).
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