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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

O monstro pornô: reflexões sobre o vampiro de True Blood1

Daniel Magalhães de Andrade LIMA2


Thiago Soares3
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

Resumo

Podemos observar, nos mais variados produtos de mídia, um processo de pornografização


que vai muito além das referências óbvias ao sexo, envolvendo variados processos de
prazer, gozo e desejo. Alguns produtos midiáticos, porém, parecem se enquadrar mais
num panorama que se relacione com o obsceno, trazendo questões de conflitos com a
moral e, assim, com os discursos hegemônicos. True Blood, série da HBO lançada em
2008, é uma dessas séries que traz, em sua narrativa, constantes cenas de sexo e de
conteúdo erótico em meio a uma Louisiana habitada por vampiros. Neste trabalho, à luz
de autores como Omar Calabrese, Sunsan Sontag e Georges Bataille, algumas reflexões
sobre a mitologia do vampiro na série são feitas, postas diante de discussões sobre
obscenidade e sexualidade.

Palavras-chave: Mídia; Monstro; Obscenidade; Vampiro.

Introdução
Os embates discursivos da mídia, que harmonizam discursos ideológicos,
dominantes, políticos e hegemônicos, fazem parte do dia-a-dia do cidadão comum,
direcionando, pautando e (re)produzindo suas identidades, ideologias e angústias.
Diversos teóricos, como Douglas Kellner (2001) e Roger Silverstone (2002) têm se
dedicado a estudar os dispositivos comunicacionais e os discursos midiáticos, numa busca
de entender as novas possibilidades da esfera pública.
Diante dos discursos presentes na cultura da mídia, harmonizados por interesses
privados e públicos que se confundem, as noções de moralidade sempre se mostram

1
Trabalho apresentado na Divisão Temática Comunicação Audiovisual, da Intercom Júnior – XII Jornada de
Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação
2
Recém-formado no curso de Comunicação Social - Jornalismo da UFPE, email: danlima_@hotmail.com
3
Orientador do trabalho. Professor do curso de Comunicação Social – Jornalismo da UFPE, email:
thikos@gmail.com
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atuantes. Cabe, assim, aos discursos midiáticos criarem espaços de fortalecimento ou


transgressão (e muitas vezes dos dois ao mesmo tempo) da moral, direcionando o que
pode ou não ser comentado, mostrado e discutido.
Como exemplo disso, a pornografia, que hoje se manifesta como uma indústria da
obscenidade4 dentro da cultura midiática, sempre esteve presente em diversas sociedades
como função transgressora da moral. Da mesma forma, a erotização da vida através de
objetos culturais não é de forma alguma recente. A cultura da mídia, porém, traz diversos
novos aspectos aos discursos obscenos, através de suas brechas, conflitos e censuras.
Entre os discursos (re)produzidos pela cultura da mídia que dialogam com
questões da moralidade e da discussão do corpo estão as obras que abordam a
monstruosidade e suas potências, já que colocam a existência humana frente a
animalidade e a deformidade, num misto de desejo e horror.
Douglas Kellner (2001), ao analisar filmes de terror da era Reagan e Bush,
estabeleceu considerações importantes sobre assombrações, monstros e ocultismo na
cultura da mídia. Segundo o autor, a cultura da mídia apresenta questões, como medo e
aspirações, de grupos sociais específicos através de alegorias sociais. “Portanto, a
descodificação dessas alegorias sociais possibilita um diagnóstico crítico, com boa visão
da situação de indivíduos pertencentes a várias classes e grupos sociais, como a
juventude”. (2001, p. 164).
Ao discutir filmes como Poltergeist e O massacre da serra-elétrica, por exemplo,
Kellner teoriza de que formas essas obras apresentam, por meio de um conjunto de
símbolos alegóricos, hostilidades, medos e anseios da sociedade da qual foram criados,
abordando de forma direta e indireta temas como o boom da Aids, o medo de ameaça
nuclear e as constantes transformações econômicas enfrentadas pelo Estados Unidos.
Dentre as figuras monstruosas mais exploradas pela cultura midiática, em especial no
cinema recente de Hollywood e na alta produção de séries de TV, está a figura do vampiro,

1. 4 De acordo com a perspectiva de Nuno Cesar Abreu em “O olhar pornô” (1996), a obscenidade vem à cena
através de diversos objetos culturais. Obras pornográficas ou eróticas, por exemplo, são abordadas como duas
vertentes das possibilidades obscenas. Assim, a indústria da obscenidade engloba a indústria pornô, obras
eróticas e/ou suas hibridações, dentre outras coisas.

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que é comumente retratado como um ser sedutor que estabelece uma relação bastante
relevante com a morte e com o sexo, vide Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive,
2013), Garotos Perdidos (The Lost Boys, 1987) e a saga adolescente Crepúsculo (The
Twilight Saga, 2008 - 2012).
Em meio a produções vampirescas do universo pop mais recentes, True Blood
(2008-2014), da HBO, é uma série que ficou bastante popular por abordar o vampirismo
frente relações de violência e sexo extremas, bebendo de fontes como a indústria
pornográfica e filmes gore, ao mesmo tempo em que aborda a repressão sexual da moral
americana e seus grupos fundamentalistas.
Tendo isto em mente, podemos pensar que True Blood, por ser essencialmente
uma “série de vampiro”, surgiu a partir de um panorama midiático que possibilitou a
recriação da figura do monstro, que vem reaparecendo também em outras produções mais
recentes, trazendo, cada uma, um diferente universo que se conecta com a mitologia e
representação dos demais. Baseado nisso, este artigo traz algumas reflexões sobre os
aspectos morfológicos do vampiro de True Blood postos frente sua sexualidade, com o
intuito de criar relações que analisem o vampiro enquanto ser que ora transgride ora se
harmoniza com a moral ideológica.
Enquanto muitos trabalhos se dedicam a estudar a representação do corpo e o
contexto pornográfico da série, podemos pensar que um estudo mitológico da figura
monstruosa do vampiro no universo de True Blood, pode, também, ajudar a iluminar
algumas problematizações sobre a forte eroticidade presente não só no universo desta
narrativa seriada específica, mas também na figura do vampiro que, se atravessa gerações
enquanto um ser desejante e sedutor, é também reinventado regularmente sem, nunca,
perder o seu frisson.

A monstruosidade em True Blood


True Blood é uma série que nem sempre move seu enredo a partir do sexo, mas o
faz sempre a partir de uma busca que é, de uma forma ou de outra, essencialmente erótica.
Os monstros, por exemplo, em todas as variedades de seres que aparecem na série, se
diferenciam entre si por vários aspectos e remetem essencialmente a medos, desejos e

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angústias humanas, principalmente nas relações sexuais, que estabelecem entre si e com
humanos.
Primeiramente, é importante ressaltar que se True Blood, como um todo, se tornou
famosa também por abusar de referências da cultura midiática consideradas
ultrapassadas, como ocorre em filmes de horror antigos, o exagero da estética camp é
visivelmente explorado quando os monstros estão em cena.
Segundo Susan Sontag (1987), a essência do camp existe na predileção pelo
exagero e pelo artifíco; pelo inatural. É uma sensibilidade que não existe na natureza, já
que é “uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético”. (SONTAG, 1987, p.
320). Fenômeno estético este que coloca a imagem tão gritantemente em exagero
estilístico que, quando não ultrapassa o conteúdo, configura por si só um discurso paralelo
ao abordado, já que dá ênfase ao estilo.
Em True Blood, o camp aparece em vários âmbitos (à exemplo da estereotipia do
sul norte-americano e de algumas cenas em boates, a partir de ambientes gay), mas, na
monstruosidade, se dá pelo exagero na estética trash5, que referencia constantemente os
filmes antigos, em que os efeitos especiais não eram ainda digitalizados e, assim, as
produções se utilizam de truques para criar a realidade dos monstros no cinema, o que
muitas vezes expunha muito o dispositivo técnico adotado. Em filmes de lobisomens, por
exemplo, era bastante comum que a transformação de humano para a figura meio-homem-
meio-lobo fosse feita a partir de uma sobreposição de imagens, em que a cada nova
imagem sobreposta o ator aparecia cada vez mais maquiado e montado como o monstro
em questão. Se na época este tipo de recurso podia impressionar, com a passagem do
tempo é quase impossível que o espectador contemporâneo veja cenas do tipo sem
evidenciar os mecanismos técnicos que permitem a transformação, vivenciando a cena
com um certo distanciamento.

5
Estética que se refere a filmes, geralmente de terror, de baixo orçamento em que, sem recursos para investir
em bons efeitos especiais, acaba assumindo uma estética vista como mal acabada. Desta forma, as obras
deste tipo acabam colocando em evidência as condições de produção do filme, o que passou a constituir
uma espécie de subgênero do horror: o trash. Hoje, muitos filmes referenciam este tipo de estética de forma
estilística e, às vezes, são acompanhados também por um roteiro non-sense¸ assumidamente mal amarrado
e com pegada cômica.

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True Blood, apesar de ter recursos para criar efeitos digitalizados e no padrão de
grandes produções da TV americana, faz constante referência a este tipo de
transformação, utilizando sobreposição de imagens e brincando com o inusitado, já que
não se espera que este tipo de efeito seja implementado nos dias atuais, à exemplo dos
dentes de vampiro, que não só se transformam em presas por meio da técnica acima
citada, mas aparecem com um som de clique e por meio de próteses colocadas nos dentes
laterais dos atores e não nos caninos, como seria habitual.
Para Sontag, existem dois tipos de camp, o que o pretende ser e o que o é por
ingenuidade. O primeiro é aquele que faz referências a estéticas e obras reconhecidamente
camps, normalmente de outra geração, como é o caso de cineastas como Quentin
Tarantino, que, com sua ultraviolência retrô, referencia filmes de gênero bem específicos
e que não são comumente mais produzidos tecnicamente como eram, a não ser pelas
escolhas específicas do diretor em questão. O segundo tipo é constituído por obras que
são feitas sem que o realizador tenha consciência de que elas podem ser lidas por uma
sensibilidade camp, como é o caso das óperas do período bel cantista, que, em excessos
de dramas, tinham uma clara predileção pela estética, com grandiosidade e riqueza de
detalhes em composições densas que contavam com grandes explosões de agudos a cada
música da partitura.
No que diz respeito aos monstros, True Blood é uma série que escolhe o exagero
e o estilo démodé como formas de reforçar à referência ao cinema de horror antigo, o que
dá um caráter conscientemente jocoso ao seriado, numa pretensão de atingir uma
sensibilidade camp. Uma vez acostumado e ambientado com o universo, conhecidas as
regras da brincadeira, é possível, entretanto, perceber muita seriedade mesmo em aspectos
que antes pareceriam ridículos. O camp, de certa forma, confronta a regra de que o bom
gosto é composto unicamente pelo elitista e requintado, pois traz em si uma sensibilidade
naquilo que, pela inteligenza, seria lido como too much.
Uma vez situado estilisticamente o lugar midiático em que estes monstros estão -
no camp, entre o horror, o erótico e o cômico - podemos refletir mais sobre a
monstruosidade em si.

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Omar Calabrese, em A idade neo-barroca (1988), escreveu um capítulo sobre


instabilidade e metamorfose, em que levanta questões sobre como analisar e classificar
monstros na mídia. De acordo com o autor, o monstro serve, desde a baixa idade média,
para referenciar não só o oculto e sobrenatural, mas o “maravilhoso”, “que depende da
raridade e casualidade da sua génese na natureza e da oculta e misteriosa teleologia da
sua forma”. (CALABRESE, 1988, p. 106)
Em sua teratologia, Calabrese se mostra fascinado pela origem da palavra “monstro” da
qual se encontram dois significados de fundo:
“Primeiro: a espectacularidade, proveniente do facto de que o monstro se
mostra para além de uma norma (<<monstrum>>). Segundo: o mistério, causado
pelo facto de a sua existência nos fazer pensar numa advertência oculta da
natureza e que poderemos adivinhar (<<monitum>>). ” (CALABRESE, 1988, p.
106)

A partir daí, podemos pensar que o monstruoso se configura como aquilo que foge
aos padrões normativos sociais, à um ponto tão essencial que passa pela sua constituição
natural-biológica enquanto ser. Esta condição afeta, de alguma forma, a maneira como o
monstro se comporta socialmente e a identidade que cria perante a sociedade.
Calabrese escolheu quatro dentre as categorias de valor da sociedade para ajudar
a localizar monstros a partir de algumas de suas características; são elas: ética, estética,
morfológica e tímica. Segundo o autor, as categorias de valor são facilmente homologadas
no senso comum entre si, isto é, se um ser possui uma ou duas delas negativamente, ou
seja, fugindo da normatividade, é comum que se associe que as outras também sejam
negativas. Se um monstro é morfologicamente disforme, por exemplo, no senso comum
é provável que ele seja lido como esteticamente feio. A interseção e as formas como as
homologações e combinações se dão é o que, na análise de Calabrese, ajuda a criar
ferramentas para refletir sobre a criação de monstros na mídia. Portanto, trago aqui a
tabela desenvolvida por ele para que possamos refletir melhor sobre os vampiros de True
Blood, utilizando algumas de suas ferramentas nas análises que desenvolveremos neste
artigo.

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Tabela 1 Fonte: CALABRESE, 1988, p.107

CATEGORIA JUÍZO SOBRE VALOR VALOR


POSITIVO NEGATIVO
Morfológica Forma Conforme Disforme
Ética Moral Bom Mau
Estética Gosto Belo Feio
Tímica Paixão Eufórico Disfórico

Vampiros e a sublimação da estrutura desejante


O vampiro é um ser que habita simultaneamente vários lugares: o clássico e o
moderno, a morte e a vida, o humano e o monstro, o domínio do sangue e o domínio do
sexo. Isto se dá, em grande parte, porque o vampirismo é essencialmente dialético;
eterniza a vida descontínua dos seres individuais ao mesmo tempo em que os mata e os
arranca da vida descontínua a que conheciam antes; ou seja, o humano morre mas
permanece vivo enquanto monstro.
Historicamente, antes do advento dos métodos contraceptivos, o vampiro estava
associado à cisão entre o sexo reprodutivo e o ato sexual pelo puro prazer, já que
tradicionalmente ele não gera filhos através do sexo e a reprodução para sua espécie se
dá por meio de contaminação, de um processo sanguíneo de vida e morte. Este fato ajudou
a potencializar a existência transgressora do vampiro, que além de transgredir o interdito
da morte (pois mata dando vida) também superou o interdito da reprodução, já que se
reproduz de forma diferente da sexuada.
Se fôssemos pensar a partir de Georges Bataille6 (2013), poderíamos pensar que
a reprodução vampiresca se dá, na realidade, mais como uma transformação de um estado
a outro do que uma reprodução propriamente dita, já que o vampiro recém-nascido já
tinha sido gerado, enquanto humano, por uma reprodução através do sexo. Em True

6Em “O erotismo”, Bataille (2013) dialoga sobre a relação da energia erótica com a transcendência, pontuando que o
ser humano existe por meio da individualidade, sendo limitado por aspectos subjetivos e materiais, como o seu próprio
corpo e mente. Assim, tendemos a buscar a transgressão desses limites, através dos quais deixaríamos de ser seres
descontínuos para nos tornarmos seres contínuos, inteiramente conectados com o universo e dissolutos fisicamente.
Para o autor, a reprodução sexuada traz uma sensação de continuidade no novo ser individual e descontínuo gerado.

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Blood, a transformação de um vampiro é estabelecida a partir de um rito potente em


simbolismos, o qual nos é revelado ao fim da primeira temporada, quando Bill, o
protagonista vampiro da série, para ser punido por ter matado um outro vampiro, é
condenado a transformar um humano como forma de compensação. O vampiro
protagonista, que luta para retornar à sua consciência e valores humanos, reluta, mas
transforma a humana oferecida a ele em vampira, sendo ela a sua primeira e única cria.
No rito, ele precisa mordê-la e beber quase todo o sangue para, em seguida,
alimentá-la com o seu próprio sangue, que agora é uma mistura entre os dois sangues. O
sangue7, por si só, é figurativamente muito interessante, pois é facilmente misturável e
efêmero, que cria laços facilmente contamináveis e ainda assim profundos. Na
transformação vampiresca isto se dá a partir de uma hipérbole simbólica da matéria e se
estabelece de forma mais concreta: um vampiro é sempre uma combinação da sua
humanidade com a relação sanguínea que estabelece com o vampiro que o criou. Se antes
o sangue de Jessica, a cria de Bill, era fruto de uma gestação criada a partir da reprodução
humana dos seus pais, a vida vampírica surge quando seu sangue se esvai e se mistura
com o do seu criador. A partir daí, o sangue de Jessica alimentou Bill, passando a
constituir a biologia e o sangue inumanos que o compõem, sendo este último devolvido
para ela já misturado, de tal forma que a composição deles passa a ser quase uma. O rito
só se finaliza quando ela, morta, é deitada com ele em um caixão, no qual dormem juntos
e acordam, os dois, como vampiros; ela recém-criada e ele, antes independente, agora
criador. Podemos perceber, aí, além da forte referência ao sexo nas trocas de secreções,
um rito de sacrifício em que a morte não representa a dissolução do ser descontínuo e
individual, já que Jessica permanece com sua individualidade mesmo após passar pela

7 À luz de Michel Foucault, o autor Diego Paleólogo (2011), refletiu sobre a passagem da sociedade sanguínea para
uma sociedade do sexo. Entendendo dispositivo como uma noção que “engloba uma série de elementos heterogêneos
que se entrecruzam” em que “o dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos” (PALEÓLOGO,
2011, p. 13), Paleólogo aborda o reconhecimento do dispositivo sanguíneo, que dialoga com todas as metáforas,
símbolos, materiais, usos e práticas possíveis na conexão com o sangue. O sangue, até o final de 1800, era um elemento
essencial para a relação que o poder exercia na sociedade, tanto pela forma como influenciou a valoração de
determinadas famílias, e assim dividia sanguineamente a sociedade europeia, como pela força que exerce na realidade
simbólica; pelo poder representativo com que se relaciona com a guerra, com os suplícios, pela facilidade com a qual
se mistura e, assim, cria novas possibilidades.

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transformação. Há, porém, uma certa noção de continuidade na troca de sangues e na


relação que os dois personagens passam a estabelecer com esta troca, conseguindo sentir
as emoções do outro mesmo à distância, quase como se vivessem a utopia de um erotismo
da paixão, em que dois corpos se transgridem na busca da aniquilação do EU; o
dispositivo sanguíneo é realmente essencial para o vampirismo.
Esta forma de ser gerido enquanto monstro é bastante simbólica para pensarmos
o vampiro de True Blood que, se transita entre o monstruoso e o humano, em estéticas
camp, é em vários aspectos um ultra-humano, que contém em várias de suas
características os anseios e desejos da vida humana potencializados a um extremo, por
isso, é importante que reflitamos um pouco sobre a formação do desejo na vida humana.
“A figura do vampiro constitui uma crise, uma cisão: quase sempre
associada ao demônio, é ele quem oferece ao homem outro modo de existência,
de libertação, de relação com o corpo; é através do vampiro que realizamos as
fantasias de imortalidade, libertação, dos desejos e pulsões. Constitui-se também
um novo olhar sobre o corpo, uma nova afecção.” (PALEÓLOGO, 2011, p. 4-5)

Rose Marie Muraro (2002), ao se utilizar da teoria freudiana para refletir sobre o
processo de formação sexual no indivíduo, explica que o desejo representa uma estrutura
mais básica do que o próprio pensamento, já que pulsões básicas e primitivas (como
comer e beber) surgem a partir de uma carga biologicista. Desde cedo, porém, o ser
humano lida com a frustração da materialidade que não cumpre seus desejos; querer e
realizar são coisas, mesmo na natureza, bastante distantes. Estes corpos, que desde a
infantilidade entram em contato com o mundo social, são esmagados através de diversas
instâncias pelas quais os indivíduos precisam harmonizar e desarmonizar suas pulsões.
Questões como o Eros e o Instinto de morte, que em muito se assemelham com a visão
de Bataille sobre o desejo por continuidade, figuram entre as principais delas.
A criança, que a princípio ainda tenta assimilar a cultura, desenvolve em si uma
espécie de sexualidade polimorfa, em que não diferencia os prazeres entre sexuais e não-
sexuais, tendo um corpo integrado. Para uma criança recém-nascida, comer, beber e
defecar, por exemplo, não passam por um processo de culpa nem de obediência ao mundo
do trabalho, e, assim, evocam um prazer que se direciona para todos os âmbitos de sua
vida. Pouco a pouco, enquanto desenvolve-se e cresce, apreendendo e tendo seu corpo

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reprimido na sociedade e principalmente pelo que absorve no âmbito familiar, começa a


criar bloqueios que direcionam esta sexualidade polimorfa para compreender
determinados prazeres como meramente sexuais. A partir daí, a criança passa a sublimar
vários dos seus desejos e processos que não são aliviados pela cultura, carregando com
forte carga de frustração sexual vários símbolos da sua materialidade. No sistema
patriarcal, por exemplo, os corpos que nascem com pênis, e assim são lidos socialmente
e arbitrariamente como meninos, tendem a ser influenciados a concentrar toda sua
sexualidade no falo que se torna uma espécie de símbolo de poder, já que guarda em si
grande parte do processo de sublimação deste indivíduo. Claramente, o processo de
individuação é confuso e único para cada indivíduo e os corpos que por algum motivo
não se identificam com a identidade a eles impostas, passam por processos diferenciados,
mas, ainda assim, sempre associados à ideologia normativa, mesmo que pela negação
dela.
A sublimação funciona como uma espécie de opressão que o desejo sofre no mais
íntimo do ser humano, se direcionando para algumas áreas físicas e simbólicas, que são
revestidas do desejo eterno e nunca concretizado. Por meio da fabricação do poder, esta
sublimação age de formas diferentes no indivíduo, reforçando o poder por meio da cultura
em uns corpos e não em outros.
O afastamento que o indivíduo cria entre espírito (mente, ego) e corpo (estrutura
desejante) gera vários conflitos e buscas que permeiam toda a jornada do ser humano na
cultura, principalmente nos símbolos que transformamos em sexuais. Ao nos afastarmos
da sexualidade polimorfa, que evoca uma espécie de continuidade, já que é plena e
transita por todos os prazeres, desejos e medos da criança, nos boicotamos à fetichização
e à hiperssexualização dos órgãos genitais.
Retornando ao vampiro de True Blood, podemos pensar como ele se associa com um ser
humano, já que sexualmente está muito distante da sexualidade polimorfa e busca a
transcendência pela transgressão de diversos interditos, transcendendo pela quebra de
construções culturais, mas não por meio de um retorno primitivista à plenitude (senão
pela morte, a que chamam de True Death).

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O primeiro aspecto que devemos prestar atenção ao falar do vampiro de True


Blood é aquele que mais claramente o torna cognoscível enquanto monstro: as suas
presas. No universo da série, como já dito, elas aparecem nos dentes laterais, e não nos
caninos, e surgem com um som de clique sempre que vão ser utilizadas. As presas, fálicas
e penetrantes, remetem quase que diretamente ao pênis, principalmente pela forma como
aparecem; os vampiros, ao se excitarem, têm elas instintivamente colocadas para fora,
como uma ereção. Jessica, a cria de Bill, inclusive, ao passar pela primeira vez por uma
excitação enquanto vampira, pergunta irritadamente para seu criador o porquê de isto
acontecer, numa cena que em muito remete a uma criança que descobre sua sexualidade
e seu corpo dentro dos processos sociais de repressão.
As presas também são objeto de orgulho e poder entre vampiros, sendo que os
mais velhos ou hierarquicamente mais altos exibem presas enormes; se o poder é
fabricado através da sublimação e na sociedade falocêntrica e patriarcal está intimamente
ligada ao pênis (quanto maior, melhor e mais viril), em True Blood as presas e seus
tamanhos recebem grande parte do desejo vampiresco sublimado, como uma espécie de
órgão hiperssexualizado que responde não apenas ao sexo, mas ao sangue. É quase como
se as sublimações do desejo da vida humana se continuassem para a vida vampírica,
tomando novas proporções e potências.
Podemos pensar também que se a estrutura desejante do vampiro é sublimada de
diversas formas, pois se concentra não só no ato sexual, mas na relação que mantém com
suas presas, o monomorfismo desta sexualidade é bem diferente do monomorfismo do
humano adulto. A alimentação, o sexo, a transformação e todos os aspectos ligados ao
vampirismo passam pela presa pois passam, em última instância, pelo sangue, pelo sexo
e pela violência. Desta forma, o desejo de se alimentar, de transar, de violentar e de
intimidar, no vampiro, evocam o mesmo lugar corporal: as suas duas presas. Assim, se a
sexualidade vampírica é baseada numa obsessão com seus dentes e com o sangue, todos
os grandes desejos que os movem são, na verdade, várias instâncias de um só, dando uma
certa integração na sua sexualidade, mesmo que sublimada para as presas. Ao se
alimentar, ao transar e ao violentar o vampiro abana um mesmo desejo: o do sangue, da
violência e do sexo, que nele são um só. Poderíamos propor, então, que se as presas são

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um segundo órgão sexual do vampiro, o sangue seria o seu segundo gozo. Não à toa, no
universo da série, o sangue de vampiro tem propriedades de drogas quando ingerido por
humanos: altamente afrodisíaco e excitante, é alucinógeno, viciante e transcendental,
quase como se permitisse ao humano uma vivência tão intensa da sexualidade vampírica
que desejar, gozar e fazer sexo viram um só êxtase.
É bastante comum no seriado que as cenas de sexo entre humanos e vampiros,
principalmente quando o universo ainda estava sendo apresentado ao público, fossem
montadas de forma a dar grande valorização ao momento em que, durante o sexo, o
parceiro humano é mordido. Em diversas cenas, uma vez que o clima já está ambientado
e ambos os personagens aparecem sem roupas, é recorrente que se mostre em plano-
detalhe as presas surgindo na boca do vampiro, sempre antes da penetração. Este tipo de
recurso, que mostra um símbolo fálico crescendo, como uma ereção, remete muito aos
shots de genitália do pornográfico hardcore, em que o pênis é filmado em close logo antes
de dar início à penetração.
Após a penetração peniana, nas cenas da série, o momento da penetração das
presas no corpo do parceiro ou da parceira também surge em extrema ênfase, indicada
pela música que cresce, pelos gemidos que aumentam, pelo enquadramento que fecha.
Nuno Cesar Abreu (1996), ao discutir a estética do pornô hardcore, chama atenção para
o som que, com adição de trilha sonora e gemidos inseridos na pós-produção, ajuda a
potencializar a experiência pornográfica, pois “diferentemente da imagem, o som não
possui enquadramento, irradiando-se por toda a sala, ele envolve o espectador” (ABREU,
2002, p. 99), o que gera uma satisfação auditiva bem particular. Em True Blood, o
crescimento do som com o simbolismo da mordida do vampiro ajuda a criar a sensação
de penetração, aludindo aos shots pornográficos em que o pênis adentra algum orifício.
O sangue que logo em seguida escorre pelo corpo alude, quase imediatamente, às
secreções sexuais e ao gozo.

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Figura 1 Sookie e Bill se beijam enquanto transam e deixam o sangue escorrer pelo corpo da protagonista

Crédito: Divulgação

A morte do vampiro também evoca uma estética fortemente pornográfica, já que,


quando penetrados por estacas, os vampiros explodem numa espécie de ejaculação de
sangues e vísceras, não exibindo cadáver. É frequente em True Blood, então, que os
personagens levem uma rajada de sangue no rosto sempre que matem um vampiro,
ficando encobertos pela secreção, o que em muito se assemelha ao Money shot do pornô,
quando o ator/atriz penetrado recebe uma rajada de esperma no rosto, para que a
ejaculação possa ser mostrada e fetichizada para a câmera.
Figura 2 Sookie leva uma ejaculação de sangue após a morte de um vampiro

Crédito: Divulgação

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Considerações Finais
A morfologia do vampiro, assim, está extremamente associada às suas presas, que
em True Blood são retráteis. Desta forma, a deformidade que apresentam enquanto
monstros é bimodal, além de pequena e extremamente atrativa ao desejo humano (por ser
um símbolo de poder). Logo, podemos pensar que a morfologia bimodal do vampiro
transita entre duas fases facilmente distinguíveis: a que denuncia sua monstruosidade e
evoca toda sua relação com o dispositivo sanguíneo e a que o faz passar por humano; a
que o prepara para o sexo, para a alimentação, para a violência (ou seja, para um estado
erótico) e a que o permite viver um estado social.
Em relação às características tímicas e estéticas, os vampiros do seriado são
retratados sem muitas diferenciações dos humanos. Em relação a ética, porém, podemos
pensar que por terem em sua natureza o desejo por sangue, o que evoca uma relação
própria com o interdito da morte, os vampiros seguem padrões próprios do que é ser bom
ou mau. Isto os leva a criarem códigos sociais únicos, configurando-se em outros tipos de
relacionamento, sexualidade e condutas; como já dito, passeiam facilmente por
comportamentos que, se existem (e muito) na vida humana, são vistas com olhos
julgadores na ideologia da moral.
O vampiro de True Blood se configura como um monstro que leva a humanidade
ao limite, com superforça, supervelocidade, instintos aguçados e uma superestrutura
desejante, sublimada numa hiperssexualização do seu desejo insaciável por sangue. A
bimolidade da sua morfologia e seus padrões éticos próprios deixam claro a relação
dialética que estabelecem entre a monstruosidade e a humanidade, pois se já foram
humanos, agora não o são e, ainda assim, carregam em si a formação de toda uma vida
humana, com seus processos e recalques.
Por ser um fenômeno da cultura da mídia, True Blood e seus vampiros apresentam
um forte apontamento para a afirmação de diversos discursos hegemônicos, como o uso
do símbolo fálico como objeto de poder, da estética patriarcal da pornografia e a
fetichização extrema da sexualidade e dos corpos midiáticos. Mas também,
simultaneamente, expõe este campo de redução do indivíduo ao sexo, problematizando,

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

por diversos aspectos, a sexualidade enquanto produto, numa relação dialética que é típica
de produtos midiáticos, atravessados por valores industriais e discursos diversos.
Assim, temos que ressaltar que o vampirismo de True Blood apela para uma
fetichização da fantasia, carregando nos corpos dos personagens vampiros uma potência
sexual que em muito se assemelha a um devaneio erótico em que aquilo que não
conseguimos fazer enquanto humanos se realiza, pois, ao fim de tudo, os vampiros fazem
algo que a individuação humana não permite: concentrar quase todos os seus desejos e
obsessões em um só objeto; o sangue.

Referências Bibliográficas

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moderno e o pós-moderno. São Paulo: EDUSC, 2001.

PALEÓLOGO, Diego. A produção de um vampiro contemporâneo: identidade, diferença e


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SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. In: SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto
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