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Teoria da Justiça de John Rawls

RICARDO PERLINGEIRO MENDES DA SILVA

SUMÁRIO

1. Igual liberdade para todos. 2. A distribuição.


3. Dever e obrigação. 4. As críticas de Michael Walzer
e Robert Nozick a John Raws. 5. A resposta de John
Raws. 6. Conclusão.

1. Igual liberdade para todos


A SEQÜÊNCIA DE QUATRO ETAPAS
O conteúdo dos princípios de justiça é ilus-
trado a partir da descrição da estrutura básica
de uma democracia constitucional. Os princípios
de justiça consistem numa aproximação razo-
ável e, numa extensão dos nossos juízos pon-
derados. É necessária a apresentação de uma
seqüência em quatro etapas, que explicite a apli-
cação dos princípios relativos às instituições
básicas.
Em regra, o cidadão deve possuir três tipos
de juízo: apreciar a justiça da legislação e da
política social; decidir sobre as soluções cons-
titucionais que, de um modo justo, podem con-
ciliar as opiniões contrárias quanto à justiça;
ser capaz de determinar os fundamentos e
limites do dever e da obrigação políticos. Dessa
maneira, uma teoria da justiça enfrenta pelo
menos três questões, sugerindo a aplicação dos
princípios de justiça em planos ou etapas
distintos.
A partir daí é desenvolvida a noção de posi-
ção original. Cada etapa representa uma posição
adequada para, sucessivamente, irem sendo
analisadas as questões de justiça. Com a apli-
cação dos princípios de justiça na posição origi-
nal, as partes realizam uma convenção consti-
tuinte, que decide sobre justiça das diversas
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva é Juiz formas políticas e escolhe uma constituição, que,
Federal/RJ e Professor/UFF. por sua vez, deve determinar um sistema que
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contenha a estrutura e funções do poder político cidos, respeitando as condições da igualdade
e dos direitos fundamentais, respeitado sempre eqüitativa de oportunidades e mantendo as
os princípios de justiça já adotados na posição liberdades iguais para todos. Aqui o conjunto
original. de fatos econômicos e sociais é relevante. A
A elaboração da Constituição pelos delega- última etapa é a da aplicação das regras consti-
dos eleitos na posição original não é absoluta- tuídas aos casos concretos, realizada pelos
mente neutra, de modo a desconsiderar as juízes e autoridades administrativas. Os funda-
condições culturais, políticas e econômicas da mentos e limites do dever e obrigação políticos
sociedade. Embora não se tenha ainda conheci- são aferidos a partir da posição original. Nessa
mento das pessoas concretas às quais são dire- fase de aplicação das regras constituídas, deve
cionadas, possuem os participantes da conven- prevalecer a teoria da obediência parcial, que é
ção conhecimento técnico e teórico do que será excepcionada pelos casos de desobediência civil
erigido como constituição, o que, de certa forma, e da objeção de consciência.
permite a obtenção de legislação que satisfaça
os princípios de justiça. CONCEITO DE LIBERDADE
Constituição justa é aquela que consiste num O debate em torno das liberdades positivas
processo justo, construído de modo a permitir e negativas na realidade é referente ao valor
um resultado justo, vale dizer, uma atividade relativo das diversas liberdades quando entram
política submetida à Constituição destinada a uma em conflito. Embora os tipos de liberdades este-
legislação adequada aos princípios de justiça. jam profundamente enraizados nas aspirações
Para que se tenha um processo político ideal, humanas, a liberdade de pensamento e de cons-
é indispensável que a Constituição garanta as ciência, a liberdade da pessoa e as liberdades
liberdades de consciência e de pensamento, as civis não devem ser sacrificadas à liberdade
liberdades pessoais e a igualdade de direitos política, à liberdade de participar de modo igual
políticos. Todo processo político pode causar na vida política. A questão é de filosofia política
resultados indesejáveis, elaborando normas e sujeita a uma teoria do justo e da justiça.
injustas. Não há sistema que obste a elaboração O conceito de liberdade pode ser explicado
de leis injustas. Entretanto, há sistemas que têm a partir de três elementos: quais os agentes que
uma tendência mais pronunciada à elaboração são livres, as restrições ou limitações das quais
de leis injustas. Portanto, é de igual importância eles estão livres e aquilo que eles são livres ou
saber escolher a melhor estrutura de processo não de fazer. O essencial é discutir a liberdade
político dentre as exeqüíveis. em ligação com as restrições constitucionais e
A justiça das leis e das medidas políticas é legais. Nesse sentido, a liberdade é uma deter-
analisada a partir de tal perspectiva. As leis minada estrutura institucional, um sistema de
devem respeitar os princípios de justiça e os regras públicas que definem direitos e deveres.
limites constitucionais. É por demais controver- Não só deve ser permitido aos sujeitos fazer ou
tido saber se determinada legislação é justa ou não algo, mas também o estado e as outras
injusta. No tocante à política econômica e social, pessoas têm o dever jurídico de não obstruir a
a apreciação da justiça da lei depende de sua ação.
doutrina político-econômica e das ciências O valor de cada liberdade depende da forma
sociais, o que, associado ao princípio da dife- pela qual as outras são especificadas. Entretanto,
rença, oculta a eventual injustiça. Porém, na é possível especificar tais liberdades de modo a
estrutura pública das instituições a injustiça da que os efeitos mais importantes de cada uma
lei é sempre evidente. possam ser simultaneamente garantidos, e os
O princípio da igual liberdade para todos interesses fundamentais protegidos. Por exem-
constitui o padrão primário para a convenção plo, as regras de ordem são necessárias para
constituinte. As exigências principais são que disciplinar a discussão; sem aceitação de pro-
as liberdades fundamentais da pessoa e da cessos razoáveis de investigação e debate, a
liberdade de consciência e de pensamento sejam liberdade de expressão perde o seu valor. Por
protegidas, e que o processo político, no seu outro lado, uma proibição de crença ou defesa
conjunto, constitua um processo justo. O de certos valores religiosos, morais ou políticos
segundo princípio, que intervém na etapa legis- é uma restrição da liberdade e como tal deve ser
lativa, obriga que as políticas econômicas e considerada.
sociais se orientem para a maximização das Importante a distinção entre regulamentação
expectativas a longo prazo dos menos favore- e restrição. A regulamentação da liberdade, no
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entanto, possui limites. A liberdade deve ser quaisquer sanções ou restrições como conse-
igual para todos, não privilegiando determinadas qüência de qualquer convicção religiosa ou de
classes de pessoas. Ademais, a liberdade só sua ausência. As associações são livres, desde
pode ser limitada se tal (limitação/regulamen- que respeitem o direito dos membros disporem
tação) beneficiar a própria liberdade. de uma escolha efetiva quanto à filiação.
A distinção entre liberdade e valor da liber- A aceitação de que a liberdade de consciên-
dade está assim disposta: a liberdade é repre- cia é limitada pelo interesse comum na ordem
sentada pelo sistema completo das liberdades pública e segurança não implica, por qualquer
que compõem a igualdade entre os cidadãos, forma, que os interesses públicos são superiores
enquanto o valor da liberdade para as pessoas aos interesses morais ou religiosos. O Estado
e para os grupos depende da sua capacidade não tem poder para declarar associações legíti-
para prosseguirem os seus fins dentro da estru- mas ou ilegítimas, como não o tem relativamente
tura definida pelo sistema. A liberdade é igual à arte e à ciência. É na própria posição original
para todos. O valor de liberdade não. Aqueles que as partes reconhecem a necessidade de
que possuem maior poder e riqueza dispõem de limitação da liberdade de consciência sempre
maiores meios para alcançar os seus fins. O que houver risco para a ordem pública e segu-
menor valor de liberdade é objeto de compensa- rança, partindo da premissa de que a ordem
ção, que não deve ser confundido com reparação pública é indispensável à liberdade comum, para
por uma liberdade desigual. que cada um alcance os seus fins, que podem ser
inclusive de natureza religiosa ou moral.
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA PARA TODOS Por outro lado, a negativa da liberdade de
As partes devem partir do princípio de que consciência não pode ser justificada com o ceti-
têm interesses morais, religiosos ou filosóficos cismo filosófico e a indiferença à religião, nem
que só podem pôr em risco se não houver outra com interesses sociais ou razões de Estado. A
alternativa. No tocante à liberdade de consciên- limitação da liberdade é justificada apenas
cia, as partes devem escolher princípios que quando necessária à própria liberdade, de modo
assegurem a integridade da sua liberdade reli- a evitar uma redução da liberdade, que seria
giosa e moral. Na posição original, em virtude ainda pior. Portanto, as partes, na convenção
do véu de ignorância, nada se sabe sobre posi- constituinte, devem, pois, escolher uma Consti-
ções religiosas ou morais, se são de doutrinas tuição que garanta uma igual liberdade de cons-
majoritárias ou minoritárias. O único princípio a ciência, regulamentada somente de acordo com
ser aceito pelas partes na posição original é o argumentos geralmente aceites e limitada apenas
da igualdade de liberdade de consciência. quando tais argumentos demonstrem um
O princípio da utilidade deve ser repelido, já conflito razoavelmente certo com as bases da
que a liberdade não pode estar sujeita ao cálculo própria ordem pública.
dos interesses sociais, que autorizariam a restri- Com base no princípio de que a limitação à
ção daquela, se tal levasse a um maior resultado liberdade de consciência deve existir somente
líquido de utilidade. A obtenção de maiores para garantir a própria liberdade, há diversos
benefícios não justifica a restrição a uma liber- fundamentos de intolerância, aceites em épocas
dade de consciência. Uma afirmação que merece anteriores, que estão errados. Por exemplo, Santo
relevo é a de que as liberdades contidas no Tomás de Aquino justifica a pena de morte para
princípio de igualdade entre cidadãos não estão os hereges com o fundamento de que é muito
seguras quando se baseiam em princípios mais grave corromper a fé, que é a vida da alma,
teleológicos, que são calcados em premissas do que falsificar moeda, que é o suporte da vida.
controversas e incertas. Dessa forma, se é justo condenar à morte os
falsários e outros criminosos, o mesmo deve a
A TOLERÂNCIA E O INTERESSE COMUM fortiori ser aplicado aos hereges. Entretanto, a
Na convenção constituinte, prevalece a idéia afirmação de que a fé é a vida da alma e de que a
do regime que garanta a liberdade moral, a liber- supressão da heresia é necessária para a segu-
dade de pensamento e a liberdade de convicção rança da alma são questões de dogma.
e de prática religiosa, não obstante estas possam Na verdade, quando a recusa da liberdade é
ser regulamentadas (limitadas) em favor do justificada por uma invocação de ordem pública,
interesse do Estado em garantir a ordem pública demonstrada pelo senso comum, é sempre
e a segurança. O Estado não pode favorecer possível defender que os limites foram traçados
qualquer religião particular e tampouco aplicar incorretamente, que a experiência vivida não
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justifica, de fato, tal restrição. Porém, quando a protestar. Aliás, a limitação dos intolerantes, às
supressão da liberdade é baseada em princípios vezes, se torna desnecessária, já que a tendência
teleológicos ou em questões de fé, não há das seitas intolerantes, numa sociedade predo-
qualquer discussão possível. A primeira con- minantemente tolerante, é a dissolução. A limi-
cepção reconhece a prioridade dos princípios tação da liberdade dos intolerantes deve ser
que seriam escolhidos na posição original, justificada apenas quando os interesses dos
enquanto que a segunda não o faz. tolerantes estiverem seriamente ameaçados. Aí
será possível obrigar o intolerante a respeitar a
TOLERÂNCIA PARA COM OS INTOLERANTES liberdade dos outros, dado que se pode exigir a
No âmbito político há partidos que, em um sujeito determinado que respeite os direitos
democracia, defendem doutrinas que os levam estabelecidos pelos princípios com que ele con-
a suprimir as liberdades constitucionais quando cordaria na posição original.
obtêm o poder. A questão da tolerância para Portanto, embora uma seita intolerante não
com os intolerantes será focalizada na tolerân- tenha por si mesma legitimidade para protestar
cia religiosa, podendo a argumentação ser alar- contra a intolerância, a sua liberdade deve ser
gada a outras ramificações, desde que devida- limitada apenas quando os que praticam a tole-
mente adaptadas. Em primeiro lugar, temos a rância, sincera e fundamentadamente, acreditam
questão de se saber se uma seita intolerante que a sua própria segurança e a dos que defen-
tem qualquer fundamento para protestar no caso dem a liberdade estão em perigo. Os justos
de não ser tolerante; em segundo lugar, em que devem guiar-se pelos princípios de justiça e não
condições as seitas tolerantes têm o direito de pelo fato de que aqueles que são injustos não
não tolerar aquelas não tolerantes; por último, podem protestar.
nos casos em que tenham o direito de não as A liberdade de alguns não é suprimida ape-
tolerar, quais os fins para que deve ser exercido nas para tornar possível uma maior liberdade
este direito. para outros. A justiça proíbe que esse tipo de
De fato, uma seita intolerante não teria legi- raciocínio seja feito relativamente à liberdade,
timidade para protestar quando uma liberdade da mesma forma que o impede no que diz respeito
igual à dos outros lhe é negada. O direito de à soma de benefícios. Só a liberdade do intole-
alguém protestar é limitado às violações dos rante deve ser limitada, em nome da igual liber-
princípios que ele próprio reconhece. O protesto dade para todos, sob uma constituição justa
é uma observação dirigida a outrem, de boa-fé, cujos princípios os próprios intolerantes reco-
na qual se afirma a violação de um princípio que nheceriam na posição original.
ambas as partes aceitam. Entretanto, do ponto
de vista da posição original, não há qualquer A JUSTIÇA POLÍTICA E A CONSTITUIÇÃO
interpretação da verdade religiosa que possa Neste tópico é analisado o problema da Cons-
ser reconhecida como vinculativa para os cida- tituição justa, mediante esboço do significado
dãos em geral; como também não pode haver da igual liberdade para esta parte da estrutura
acordo quanto à existência de uma autoridade básica. A Constituição é um processo justo, que
que tenha o direito de resolver problemas de satisfaz as exigências da igual liberdade, deven-
doutrina teológica. do ser concebida por forma a ser, de todos os
Portanto, a justiça será violada se negado sistemas justos e aplicáveis, aquele que tenha
ao intolerante o direito de liberdade que é con- mais possibilidades de conduzir a um sistema
ferido a todos os demais, salvo se a liberdade de legislação justo e efetivo.
do intolerante for nociva à ordem pública e à O princípio da igual liberdade, quando apli-
segurança da Constituição e das garantias fun- cado ao processo político definido pela Consti-
damentais. A justiça não exige que os homens tuição, será referido como princípio da (igual)
assistam passivamente enquanto outros destróem participação, que exige que todos os cidadãos
a base da sua existência. É, pois, necessário para tenham um direito igual a tomar parte no pro-
a limitação de liberdade dos intolerantes que cesso constitucional que produz a legislação
estes representem um perigo imediato para a na qual todos devem obedecer e determinar o
igual liberdade dos outros. seu resultado. A fundamentação do princípio
A constituição de uma seita intolerante no da participação está consubstanciada na idéia
seio de uma sociedade, que adota os dois prin- de que, se o estado deve exercer uma autoridade
cípios de justiça, não deve ser suprimida, pois, final e coercitiva sobre um certo território e se,
dessa forma, os intolerantes sequer poderiam desta forma, afeta permanentemente as perspec-
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tivas de vida dos homens, então o processo sócio-econômicos mais beneficiados, as posi-
constitucional deve preservar a representação ções desses grupos acabarão por receber uma
igual presente na posição original, na medida importância excessiva. O sufrágio universal se
em que tal seja praticável. torna insuficiente para garantir o princípio da
O princípio da participação é compatível com participação sempre que os partidos políticos e
a possibilidade da Constituição circunscrever as eleições são financiados por contribuições
os poderes do Legislativo quanto a numerosos privadas.
aspectos, não obstante a maioria sólida do elei- O princípio da participação obriga as autori-
torado possa sempre atingir os seus objetivos, dades a responderem aos interesses do eleito-
até mesmo mediante alteração institucional. O rado. Numa sociedade bem ordenada, os depu-
princípio da participação pressupõe que todos tados devem representar os eleitores de modo
os adultos são de espírito, ressalvadas certas substantivo, devendo procurar, em primeiro
exceções, e, portanto, têm o direito de tomar lugar, adotar legislação justa e efetiva; eis o
decisões na vida política. Na medida do primeiro interesse que os cidadãos têm no
possível, é observada a regra um eleitor um governo; e, em segundo lugar, devem defender
voto. A falta de unanimidade nas deliberações os outros interesses daqueles que os elegeram,
políticas faz parte do contexto de aplicação da desde que estejam de acordo com a justiça.
justiça, de modo que a inexistência de oposição
sacrifica a democracia. AS LIMITAÇÕES AO PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO
São discutidas três questões sobre o princí- A limitação ao princípio da participação pode
pio da participação. No seu significado, a regra ocorrer de três maneiras. A Constituição pode
um eleitor um voto implica que cada voto tem definir uma liberdade de participação mais ou
aproximadamente o mesmo peso quanto à menos extensa; pode permitir que nas liberda-
determinação do resultado das eleições. O prin- des políticas haja desigualdades; e pode con-
cípio da participação significa, ainda, que todos sagrar percursos específicos para os cidadãos
os cidadãos devem gozar de um direito de acesso exercerem a representação.
igual, pelo menos em sentido formal, a cargos Como já salientado, a Constituição pode
públicos. Todos podem aderir a partidos políti- limitar a extensão do princípio da participação,
cos, candidatar-se a eleições e ocupar lugares alterando os mecanismos da maioria simples.
de responsabilidade, muito embora sejam Uma vez que os limites à extensão do princípio
admissíveis restrições relativas à idade, resi- da participação alcançam todos os cidadãos de
dência etc. maneira isonômica, é tal restrição facilmente justi-
O alcance do princípio da participação é ficável à luz dos princípios de justiça. Na reali-
delimitado pelas normas constitucionais que dade, a aplicação sem limitação da regra da
impõem limites à regra da maioria. Dessa manei- maioria simples, em alguns casos, pode compro-
ra, a liberdade política mais ampla é aquela es- meter a própria liberdade. Uma participação
tabelecida por uma Constituição que usa a es- menos extensa é suficientemente compensada
trita regra da maioria, segundo a qual uma mino- pela maior segurança e alcance das restantes
ria não pode dominar uma maioria, para toda e liberdades. Conseqüentemente, aqueles que atri-
qualquer deliberação política. Sempre que a buem um valor mais elevado ao princípio da
Constituição limita a autoridade e o âmbito das participação estarão mais preparados para correr
maiorias, quer exigindo uma maior pluralidade riscos maiores no que tange às liberdades indi-
para certo tipos de medidas, quer por meio de viduais.
uma declaração de direitos fundamentais que A regra da prioridade justifica a liberdade
restrinja o Poder Legislativo, a liberdade polí- política desigual, desde que seja capaz de
tica é menos extensa. demonstrar que a desigualdade de direitos será
A Constituição deve garantir a efetiva parti- aceita pelos menos favorecidos, em compensa-
cipação igualitária no processo político. A ção da maior proteção das suas outras liberda-
melhor forma para tanto é a formação de partidos des de que resultam desta restrição. Em deter-
políticos independentes dos interesses econô- minadas circunstâncias, deve a vontade da
micos privados, sendo-lhes atribuída uma parte minoria prevalecer em nome da própria liberdade.
suficiente do produto da arrecadação dos Uma das mais evidentes limitações ao prin-
impostos. Se a sociedade não suportar os custos cípio da participação seja a exceção à regra um
da organização e se os fundos partidários eleitor um voto. Até épocas recentes, o sufrágio
tiverem de ser obtidos junto dos interesses universal era rejeitado por vários autores. A
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justificação básica para tanto era que determi- O preceito pelo qual todo crime tem que estar
nadas pessoas detêm maior capacidade intelec- previsto em lei (nullum crimen sine lege) e as
tual para emitir opinião sobre questões políticas, exigências que ele implica decorrem também da
de modo que os seus votos deveriam ter um idéia de sistema jurídico. As leis devem ser pre-
valor superior aos dos demais. Nesses casos, a viamente conhecidas e objeto de interpretação
liberdade política é encarada como menos restrita, sob pena de haver normas para atingir
essencial do que as liberdades de consciência sujeitos concretos. Por último, o preceito que
ou individual. define a noção de justiça natural. Os juízes devem
ser independentes e imparciais, e ninguém pode
O PRINCÍPIO DO DOMÍNIO DA LEI (RULE OF LAW) ser juiz em causa própria. Os julgamentos devem
A análise do princípio do domínio da lei decorrer de forma eqüitativa e em público, mas
esclarece o sentido da prioridade da liberdade. não devem estar sujeitos à pressão da opinião
Constitui uma ação injusta o fato dos juízes não pública.
aplicarem a norma adequada ou não a interpre- O princípio do domínio da lei garante as
tarem corretamente. Nesse ponto, o mais grave liberdades. A cada dever existe um direito. Cada
não é a violação grosseira, decorrente de cor- pessoa está obrigada a respeitar a liberdade
rupção ou perseguição, mas sim as sutis distor- alheia. A prevalecer uma lei vaga e imprecisa,
ções causadas pelo preconceito e pela parciali- pode-se dizer que os limites da liberdade passam
dade que introduzem discriminações efetivas a ser incertos. Da mesma maneira será compro-
contra certos grupos sociais. metida a liberdade dos cidadãos, se situações
O princípio do domínio da lei está intima- parecidas não forem tratadas de forma seme-
mente vinculado à liberdade. Um sistema jurídico lhante, se o processo judicial perder a integridade
é uma ordem coercitiva de regras públicas diri- essencial, ou se a impossibilidade de cumpri-
gidas a sujeitos racionais com o propósito de mento não for juridicamente reconhecida.
regular a sua conduta e construir uma estrutura A aplicação de sanções aos cidadãos que
para a cooperação social. Portanto, os princípios descumprem as leis é ato que garante a liberdade
de justiça devem estar contidos no sistema jurí- e também a prestigia. É a garantia de que os
dico. Se os desvios de noção de justiça regular- direitos serão respeitados. A prioridade da
mente forem muito disseminados, pode ser liberdade conduz à teoria da obediência parcial
indagado se existe um verdadeiro sistema jurí- das normas jurídicas. São desvios de conduta
dico, e não uma simples coleção de decisões de alguns que justificam a coerção do sistema
privadas, concebido para promover os interes- jurídico. Ao aplicar o princípio da legalidade,
ses de um ditador ou o ideal de um déspota devemos ter em mente a totalidade dos direitos
benévolo. e obrigações que definem as liberdades e ajus-
Todo dever implica um poder. Não deve o tar em conformidade as exigências respectivas.
sistema jurídico impor regras de condutas de
impossível realização. O legislador e o juiz devem A DEFINIÇÃO DA PRIORIDADE DA LIBERDADE
acreditar que é possível obedecer às leis, e Por prioridade da liberdade entende-se a pre-
devem partir do princípio de que quaisquer
ordens dadas podem ser cumpridas. Ademais, cedência do princípio da igual liberdade para
as autoridades devem agir de boa-fé e também todos sobre o segundo princípio da justiça. Os
devem ser reconhecidas dessa forma. A sanção dois princípios estão dispostos em ordem lexical,
pelo descumprimento de uma regra pré-estabe- pelo que as exigências da liberdade devem ser
lecida deve estar limitada a atos passíveis de satisfeitas em primeiro lugar. Até esse objetivo
realização, sob pena de grave ofensa ao direito ser atingido, nenhum outro princípio será invo-
de liberdade. cado.
O princípio do domínio da lei pressupõe que Se a liberdade é menos extensiva, o cidadão
situações semelhantes sejam tratadas de forma representativo deve achar que, feito o balanço,
semelhante. O critério para identificação de tal constitui um ganho para a sua liberdade; e se
situações semelhantes é dado por meio das pró- a liberdade é desigual; ela, para aqueles que a
prias regras jurídicas e dos princípios utilizados têm menos, deve ser melhor protegida. São
na respectiva interpretação. Como tal critério regras de prioridade para garantir liberdades
limita e impõe às autoridades administrativas e iguais para todos. Há, ainda, outras hipóteses
judiciárias a justificação das distinções das de restrição de liberdades: a restrição pode
situações, é tido como limitador da discriciona- decorrer dos acidentes e limitações naturais da
riedade daqueles. vida humana ou de contingências históricas e
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sociais; e nos casos em que a injustiça já existe, tal a opinão prevalente. A concepção de Kant
quer nas estruturas sociais, quer nas condutas sobre moral tem uma estrutura característica que
individuais. pode ser compreendida melhor quando esses
O primeiro princípio de justiça é articulado dualismos são alterados em vez de serem vistos
com a regra da prioridade e passa a ter a seguinte segundo o sentido que ele lhes dá, e quando o
redação: seu alcance moral é reformulado no âmbito de
“Primeiro princípio - Cada pessoa uma teoria empírica. Aquilo a que se chama de
deve ter um direito igual ao mais vasto interpretação kantiana mostra como é que esse
sistema total de liberdades básicas iguais objetivo pode ser realizado.
que seja compatível com um sistema
semelhante de liberdade para todos. 2. A distribuição
Regra de prioridade - Os princípios da
justiça devem ser hierarquizados em
ordem lexical e, portanto, a liberdade só O CONCEITO DE JUSTIÇA EM ECONOMIA POLÍTICA
pode ser restringida se tal for para o bem Os princípios de justiça podem servir como
da própria liberdade. Há duas possibili- parte de uma doutrina de economia política. Uma
dades de tal se verificar: a) uma liberdade doutrina da economia política tem de incluir uma
menos ampla deve reforçar o sistema total concepção do bem público que seja baseada
de liberdade partilhado por todos; e b) numa concepção da justiça. Na fase de conven-
uma liberdade que seja mais restrita do ção constitucional ou legislativa, qualquer opi-
que a liberdade igual para todos deve ser nião política é relativa ao aumento do bem da
aceitável para os cidadãos que dispõem entidade política como um todo e invoca um
da liberdade mais limitada”. critério para obter a justa divisão das vantagens
sociais.
A INTERPRETAÇÃO KANTIANA DA TEORIA O efeito da legislação econômica e social é o
DA JUSTIÇA COMO EQÜIDADE de especificar a estrutura básica. O sistema
É erro salientar o lugar que a generalidade e social modela os desejos e aspirações que os
a universalidade ocupam na ética de Kant. Difi- cidadãos vêm a ter. Orienta o tipo de pessoas
cilmente pode-se considerar uma novidade a afir- que eles desejam ser, bem como o tipo de pes-
mação de que os princípios morais são gerais e soas que efetivamente são. O sistema econômico
universais, mesmo porque estas condições não regula principalmente as necessidades do futuro.
nos levam muito longe. A filosofia moral torna- A teoria da justiça pressupõe uma teoria do
se um estudo da concepção e do resultado de bem, mas dentro de limites amplos. Tais limites
uma decisão racional adequadamente definida. não prejudicam a escolha do tipo de pessoas
Para Kant, a legislação moral deve ser objeto de que os sujeitos querem ser. Uma vez deduzidos
um acordo obtido em condições em que os os princípios de justiça, a teoria contratualista
homens participem como sujeitos racionais livres fixa limites à concepção do bem, que decorrem
e iguais. A descrição da posição original é da prioridade da justiça sobre a eficiência e da
justamente para interpretar essa concepção. prioridade da liberdade sobre os benefícios
O objetivo principal de Kant é aprofundar e sociais e econômicos.
justificar a idéia de Rousseau de que a liberdade A teoria da justiça não está à mercê dos
consiste em agir de acordo com a lei que fixa- interesses e necessidades existentes. O objetivo
mos para nós próprios. E isso leva não a uma de longo alcance da sociedade é decidido nas
moralidade de ordem austera, mas a uma ética suas linhas principais, independentemente dos
do respeito mútuo e da auto-estima. A interpre- desejos particulares e das necessidades dos
tação kantiana não pretende ser uma interpreta- seus membros atuais. A estabilidade da socie-
dade depende de um sistema justo que gere
ção da doutrina real de Kant, mas antes uma
apoio para si mesmo. Daí a necessidade de
interpretação da teoria da justiça como eqüidade. desencorajar desejos que colidam com os prin-
A concepção de Kant é caracterizada por cípios de justiça.
certos dualismos, em particular entre a necessi- O utilitarista sempre responde que, dadas
dade e a contingência, a forma e o conteúdo, a as condições sociais existentes e os interesses
razão e o desejo, os números e os fenômenos. efetivos dos sujeitos e tendo em conta a forma
Abandonar esses dualismos, tal como ele os como eles desenvolverão um ou outro esquema
entende, implica para muitos abandonar o que institucional alternativo, o fato de se encorajar
há de notável na sua construção. Não deve ser um padrão de necessidades em vez de outro
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levará provavelmente a um melhor resultado do bem em questão; mas, para que seja possível
líquido de satisfação. Dessa maneira, o utilita- desfrutar do bem em causa, todos têm de dispor
rista escolhe entre os ideais da pessoa. O perfec- de uma quantidade idêntica do mesmo. A quan-
cionismo estabelece, de modo independente, tidade produzida não pode ser dividida, como
uma concepção ideal da pessoa e da estrutura ocorre com os bens privados, que são adquiri-
básica, de modo que não só há algumas inclina- dos pelos sujeitos de acordo com as suas prefe-
ções e desejos que são necessariamente desen- rências, em quantidade maior ou menor. Admi-
corajados como o feito das circunstâncias ini- tindo que o bem público a todos beneficia e que
ciais acabará por desaparecer. todos concordam com a sua produção, o uso da
O ponto essencial é que, apesar das carac- coerção é perfeitamente racional do ponto de
terísticas individualistas da teoria da justiça vista de cada cidadão.
como eqüidade, os dois princípios da justiça A indivisibilidade e a natureza não exclusiva
não dependem de forma contingente dos dese- de certos bens essenciais e os efeitos externos
jos existentes ou das condições sociais presen- e tentações a que dão origem necessitam, evi-
tes. Todos possuem um sentido da justiça dentemente, de acordos públicos, organizados
semelhante e, sob este aspecto, uma sociedade e garantidos pelo Estado. A afirmação de que o
bem ordenada é homogênea. A discussão polí- poder político se baseia apenas na propensão
tica apela a esse consenso moral. dos homens para o interesse próprio e para a
Imagina-se que a unanimidade é peculiar da injustiça é superficial. Mesmo entre homens
filosofia política do idealismo. Do ponto de vista justos, quando há bens que são indivisíveis e
contratualista, nada há caracteristicamente idea- que afetam um largo número de sujeitos, as
lista na hipótese de unanimidade, que na posi- ações decididas de forma isolada não produzem
ção original representa um limite à argumentação. o bem geral. É indispensável a existência de uma
Outra semelhança da teoria da justiça com o ide- regulamentação coletiva, e todos exigem a
alismo é que a primeira reserva um lugar para o garantia de que ela será respeitada para que se
valor da comunidade e o modo de o fazer disponham a fazer a sua parte.
depende da interpretação kantiana. O mercado para fornecimento de bens de
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE SISTEMAS ECONÔMICOS consumo produzidos é utilizado tanto pelo
Muito embora o tema seja teoria da justiça e regime privado quanto pelo socialista. Apenas
não economia, é do nosso interesse os proble- nos regimes coercitivos é que tal liberdade sofre
mas morais da economia política. A economia limitações. No entanto, no regime socialista, os
política concede grande importância ao setor meios de produção e recursos naturais são pro-
público e à forma que devem ter as instituições priedade pública, e a função distributiva é gran-
de enquadramento que regulam a atividade eco- demente restringida. No sistema de propriedade
nômica e que incluem, entre outros, o sistema privada, o preço é que é utilizado para obter tais
tributário, os direitos patrimoniais e a estrutura objetivos. É de difícil aferição saber qual dos
dos mercados. Um sistema econômico determina dois regimes que melhor atende as exigências
a escolha dos objetos a produzir e dos meios de justiça. O fato de existir um sistema ideal com
empregues para tal, de quem recebe esses obje- um regime de propriedade privada que poderia
tos e em troca de que prestações, bem como a ser justo não implica que as suas formas histó-
importância dos recursos consagrados à pou- ricas sejam justas, ou sequer toleráveis, e,
pança e à produção de bens públicos. evidentemente, o mesmo é válido no que respeita
Vale estabelecer a distinção entre a econo- ao socialismo.
mia privada e economia socialista. A primeira
diferença é que na economia socialista o tama- AS INSTITUIÇÕES DE ENQUADRAMENTO
nho do setor público, medido pelo número de RELATIVAS À JUSTIÇA DISTRIBUTIVA
empresas públicas, é maior do que no regime O sistema social deve ser concebido por
privado. Outro aspecto é a concentração de bens forma a que o resultado seja justo, aconteça o
públicos no regime socialista, ao contrário do que acontecer. Para atingir este objetivo, é
regime privado. necessário que o processo econômico e social
A concepção de bem público decorre basi- seja enquadrado por instituições políticas e
camente das suas duas características: a indivi- jurídicas adequadas. Ao estabelecer estas ins-
sibilidade e a natureza não exclusiva. Isto é, há tituições de enquadramento, o Estado pode ser
um número elevado de sujeitos, um público, por visto como estando dividido em quatro setores
assim dizer, que deseja quantidades diferentes relativos a outras tantas funções.
200 Revista de Informação Legislativa
A função de afetação de recursos deve O PROBLEMA DA JUSTIÇA ENTRE GERAÇÕES
manter o sistema de preços em condições de Saber se o sistema social como um todo, vale
permitir uma concorrência eficaz e impedir a dizer, se uma economia baseada na concorrên-
formação de um poder de mercados desrazoável. cia rodeada pelo conjunto adequado das insti-
Cabe, de igual forma, a identificação e correção, tuições de enquadramento pode satisfazer os
por meio de impostos e subsídios adequados e princípios de justiça depende do nível a que
de modificação do sistema dos direitos reais, deve ser fixado o mínimo social. Por sua vez, a
dos desvios da regra da eficiência que são cau- fixação do mínimo social depende da questão
sados pela incapacidade dos preços em medirem de saber até que ponto a geração atual está vin-
os benefícios sociais e os custos. culada a respeitar as exigências das gerações
A função de estabilização tenta manter, de seguintes.
forma razoável, o pleno emprego, entendido Uma vez aceito o princípio da diferença, dele
como a possibilidade de aqueles que desejam decorre que o mínimo deve ser fixado no ponto
trabalhar encontrarem trabalho e, como existên- que, tendo em conta o nível salarial, maximiza as
cia de uma procura efetiva que permite a liber- expectativas do grupo menos favorecido. Ao
dade de escolha da ocupação e a aplicação dos aplicar o princípio da diferença, a expectativa da
recursos financeiros. Em conjunto com a função qual se deve partir é a de que as perspectivas a
de afetação de recursos, deve manter as longo prazo dos menos desfavorecidos se
condições gerais de eficiência da economia de estendam às gerações futuras. Cada geração
mercado. deve reservar quantidade adequada de capital.
Compete à função das transferências a fixa- Tal poupança pode assumir diversas formas,
ção de um mínimo social. Os mercados ponde- desde meios de produção ao investimento no
ram as regras convencionais ligadas aos salários saber e na educação. A partir de um princípio de
e aos ganhos, enquanto a função das transfe- poupança justa que nos indique qual a dimen-
rências garante um certo nível de bem estar e são do investimento a fazer, o nível do mínimo
satisfaz as exigências decorrentes das carências social pode ser determinado.
existentes. A função de distribuição visa manter A justiça não exige que as gerações ante-
uma situação relativamente justa no que respeita riores poupem apenas para que as seguintes
sejam mais ricas. A poupança é exigida como
à distribuição, por meio da tributação e dos condição para a realização plena de instituições
necessários ajustamentos dos direitos reais. justas e das iguais liberdades para todos. É erro
A função de distribuição pode ser assim acreditar que uma sociedade boa e justa tem de
diferenciada. Inicialmente, tal função aplica ir a par com um elevado nível de vida material. O
impostos sobre herança e as doações e estabe- que os homens buscam é um trabalho que tenha
lece restrições aos legados que são permitidos. um sentido, em livre associação com outros,
A tributação não tem por objetivo angariar sendo que estas associações regulam as rela-
recursos financeiros, mas sim deve, gradual e ções que, entre si, estabelecem uma estrutura
continuamente, corrigir a distribuição da riqueza de instituições básicas justas. A poupança
e, ainda, prevenir as concentrações de poder obtém-se aceitando como uma decisão política
que se façam em detrimento do justo valor da as medidas destinadas a melhorar o padrão de
liberdade política e da igualdade eqüitativa de vida das gerações posteriores menos benefi-
oportunidades. A desigualdade na transmissão ciadas, abdicando-se, pois, dos ganhos ime-
da riqueza por herança não é mais inerentemente diatos que são possíveis.
injusta do que a desigualdade na transmissão
da inteligência. A transmissão por herança é PREFERÊNCIA TEMPORAL
admissível desde que sejam compatíveis com a O princípio social da poupança justa não
liberdade e a igualdade eqüitativa de oportuni- pode ser afetado por uma pura preferência tem-
dades. A concentração de riquezas põem em poral, dado que a posição temporal diferente
risco tais princípios. das pessoas pertencentes a gerações diferentes
A segunda parte da função de distribuição não justifica, por si só, que sejam tratadas de
consiste na canalização dos recursos auferidos modo diferente. A distinção entre períodos
pelos tributos de modo a fornecer bens públi- próximos e afastados ocasionará valoração de
cos e efetuar transferências necessárias à satis- situações futuras ou remotas e mais ou menos
fação do princípio da diferença. O encargo da importantes. A situação é simétrica, e uma
tributação deve ser repartido de forma justa e escolha será tão arbitrária como outra. Os sujei-
tem por objetivo estabelecer situações justas. tos, na posição original, não têm qualquer
Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 201
preferência temporal, e isso serve apenas para oportunidades deve melhorar as daqueles
mitigar os efeitos do utilitarismo no princípio da que dispõem de menos oportunidades;
poupança, o qual, por sua vez, pode levar a b) uma taxa excessiva de poupança deve,
sacrifícios extremos da sociedade atual para quanto ao resultado final, melhorar a
garantir as gerações futuras. situação daqueles que a suportam.”
OUTROS CASOS DE PRIORIDADE OS PRECEITOS DA JUSTIÇA
O princípio da poupança justa age como Uma vez identificada a taxa de poupança
limite à taxa de acumulação. A prioridade da jus- justa, ou especificado o conjunto de taxas ade-
tiça é sobre a eficiência e a obtenção de uma quado, temos um critério para ajustar o nível do
grande soma de benefícios. Sempre que, em mínimo social. A soma das transferências e
matéria de poupança, os limites da justiça forem benefícios, sob a forma de bens públicos
violados, é necessário demonstrar que as essenciais, deve agora ser organizada por forma
circunstâncias são tais que a não violação dos a aumentar as expectativas dos menos favore-
referidos limites levaria a um prejuízo ainda maior cidos, de modo a que sejam compatíveis com o
às vítimas dessa violação. Outra prioridade é a nível de poupança exigido e com a manutenção
da igualdade eqüitativa de oportunidades sobre das liberdades iguais para todos.
o princípio da diferença. A característica principal da concepção de
Neste tópico é apresentada a formulação justiça distributiva é a de que a mesma possui
final dos dois princípios de justiça. um grande elemento de justiça processual pura.
“Primeiro princípio: Cada pessoa deve Não há qualquer tentativa para definir justiça a
ter um direito igual ao mais amplo sistema partir de preferências de sujeitos concretos. Para
total de liberdades básicas iguais que seja que a noção de justiça seja útil, é necessário
compatível com um sistema semelhante que, como ficou dito, se estabeleça e administre
de liberdades para todos; segundo prin- com imparcialidade um sistema justo de institui-
cípio: as desigualdades econômicas e ções de apoio. A confiança na pura justiça pro-
sociais devem ser distribuídas por forma cessual pressupõe que a estrutura básica satis-
a que, simultaneamente: a) redundem nos faça os dois princípios de justiça.
maiores benefícios possíveis para os A análise da distribuição de justiça é um
menos beneficiados, de uma forma que simples desenvolvimento da idéia corrente de
seja compatível com o princípio da pou- que o rendimento e os salários são justos
pança justa, e b) sejam a conseqüência quando um sistema de preços de concorrência
do exercício de cargos e funções abertos efetiva é devidamente organizado, tendo por
a todos em circunstâncias de igualdade fundamento uma estrutura básica justa. A
eqüitativa de oportunidades; primeira distribuição daí decorrente é justa. No entanto,
regra de prioridade (prioridade da liber- necessário se faz saber se tal concepção coincide
dade): os princípios da justiça devem ser com as nossas idéias intuitivas sobre o que é
ordenados lexicalmente e, portanto, as justo ou injusto, vale dizer, saber se ela se arti-
liberdades básicas podem ser restringidas cula com os preceitos de senso comum sobre a
apenas em benefício da própria liberdade. justiça.
Há duas situações: a) uma restrição da Na realidade, enquanto estivermos em nível
liberdade deve fortalecer o sistema total dos preceitos de senso comum, não será possí-
de liberdade partilhado por todos; b) as vel reconciliar as máximas da justiça. Por exem-
desigualdades no que respeita à liberda- plo, o preceito “a cada um de acordo com o seu
de devem ser aceitáveis para aqueles a esforço” e “a cada um de acordo com a sua
quem é atribuída a liberdade menor; contribuição” são em si mesmos injunções de
segunda regra de prioridade (prioridade sentido contrário. Tais preceitos (de senso
da justiça sobre a eficiência e o bem estar): comum) não expressam qualquer teoria determi-
o segundo princípio da justiça goza de nada sobre o que sejam os salários justos ou
prioridade lexical face aos princípios da eqüitativos. No exemplo dos salários, numa
eficiência e da maximização da soma de sociedade concorrida, o seu valor dependerá
benefícios; e o princípio da igualdade não só do esforço ou da contribuição, mas prin-
eqüitativa de oportunidades tem priori- cipalmente de como o mercado absorverá tal ati-
dade sobre o princípio da diferença. Há vidade. As normas de bom senso ocupam um
dois casos; a) qualquer desigualdade de lugar subordinado na teoria da justiça.
202 Revista de Informação Legislativa
EXPECTATIVAS LEGÍTIMAS E MÉRITO MORAL pode-se tentar substituir o princípio da diferen-
É tendência de senso comum supor que o ça pelo critério da maximização da utilidade média
rendimento e a riqueza, e em geral as coisas boas deduzida de uma fração do desvio-padrão da
da vida, devem ser distribuídas em função do distribuição.
mérito moral. A justiça seria a felicidade em acor- A dificuldade com as concepções mistas é
do com a virtude. É uma concepção de justiça que as mesmas podem recorrer a juízos de valor
distributiva, muito embora a teoria da justiça demasiadamente cedo, não sendo viável a defi-
como eqüidade a rejeite, pois seria de impos- nição de uma alternativa clara ao princípio da
sível aplicação da posição original. diferença. Vista na perspectiva da posição ori-
Uma estrutura justa responde àquilo a que ginal, as concepções mistas não fazem parte da
os homens têm direito; ela satisfaz as suas concepção efetiva da justiça social. Os dois prin-
expectativas legítimas, que se baseiam nas insti- cípios da justiça são preferíveis e de aplicação
tuições sociais. Porém, aquilo a que têm direito muito mais simples. Daí não ser o princípio da
não é proporcional ao seu valor intrínseco, nem utilidade o de melhor aceitação, ainda que limi-
dele depende. Os princípios de justiça que tado a uma concepção mista.
regulam a estrutura básica e especificam os
O PRINCÍPIO DA PERFEIÇÃO
deveres e obrigações dos sujeitos não mencio-
nam o mérito moral; e a distribuição não tem O princípio da perfeição conhece duas vari-
qualquer tendência para lhe corresponder. antes. A primeira como constitutiva do único
Nenhum dos preceitos de justiça visa recom- princípio de uma teoria teleológica que orienta a
pensar a virtude. O preceito que mais se aproxima sociedade na elaboração da constituição e na
da recompensa do mérito moral é a distribuição definição dos deveres e obrigações dos indiví-
segundo o esforço consciente, embora seja duos, por forma a maximizar as realizações hu-
claro que o esforço que uma pessoa está manas na arte e na cultura. Chega a afirmar que
disposta a realizar é fruto de suas capacidades, a humanidade deve lutar continuamente para
talentos naturais e alternativas que lhe foram produzir grandes homens, sendo nossas vidas
oferecidas. valorizadas na medida em que trabalhamos para
o bem dos espécimes superiores.
Dessa maneira, o conceito de valor moral é
A segunda variante do princípio da perfei-
secundário face os conceitos de justo e de jus- ção é aceite como sendo um padrão da teoria
tiça e não desempenha qualquer papel na defi- intuicionista. A medida do perfeccionismo
nição da distribuição. Na expressão tradicional, dessa concepção depende do peso atribuído às
um sistema justo dá a cada pessoa aquilo que exigências da excelência e da cultura. Por exem-
lhe é devido: isto é, atribui-lhe aquilo a que ela plo, as realizações dos gregos nos campos da
tem direito de acordo com o próprio sistema. Os filosofia, da ciência e da arte justificavam a velha
princípios de justiça relativos às instituições e prática da escravatura (partindo do princípio de
aos indivíduos mostram que, ao agir assim, se que esta era necessária para que fossem alcan-
respeita a eqüidade. çadas tais realizações). Aqui, as exigências da
COMPARAÇÕES COM AS CONCEPÇÕES MISTAS perfeição afastam as importantes exigências da
liberdade.
As concepções mistas se definem pelo fato Ao contrário do perfeccionismo, os princí-
de substituírem o segundo princípio da justiça pios da justiça sequer mencionam o montante
pelo padrão da utilidade e por outros critérios. dos rendimentos ou a sua distribuição, referin-
Como todas essas concepções aceitam o pri- do-se apenas à distribuição de liberdade e dos
meiro princípio da justiça, o das iguais liberda- outros bens primários. O único compromisso
des, nenhuma delas é utilitarista, pois a concep- que as partes possuem na posição original é o
ção de utilidade será sempre subordinada. de que todos devem ter maior liberdade pos-
Os dois exemplos de concepções mistas sível, que seja compatível com uma liberdade
podem ser assim definidos: uma que decorra da idêntica para os outros. Os princípios da justiça
substituição do princípio da diferença pelo prin- não podem pôr a sua liberdade em risco, ao
cípio da utilidade média limitado para um certo autorizar que seja um padrão a definir aquilo
mínimo social, mantendo inalteradas as restan- que deve ser maximizado por um princípio teleo-
tes conclusões; e outra que limite o princípio da lógico da justiça.
utilidade média estabelecendo uma condição Para atingir a ética do perfeccionismo, tería-
relativa à distribuição, quer por si só, quer em mos de atribuir às partes a aceitação prévia de
ligação com um mínimo adequado. Nessa última, alguns deveres naturais, como o de desenvolver
Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 203
formas de personalidade de um certo estilo e A aceitação das instituições justas deve ser,
qualidade estética e o de fomentar a busca do no possível, voluntária. Do contrário seria
conhecimento e o cultivo das artes, o que altera necessário um maior recurso aos poderes coer-
drasticamente a interpretação da posição origi- citivos do legislador a fim de atingir a estabili-
nal. Para a justiça como eqüidade, a perfeição dade. Porém, não há razão para tal risco, já que
humana deve ser prosseguida dentro dos limites na posição original as partes reconhecem o
do princípio da livre associação. dever natural da justiça. São dois os deveres
Os homens têm igual dignidade, o que sig- naturais que se destacam. O dever de respeito
nifica simplesmente que todos satisfazem as mútuo e o dever de auxílio mútuo.
condições da personalidade moral expressas Dever de respeito mútuo é o dever de mani-
pela interpretação da situação contratual inici- festar a alguém o respeito que lhe é devido
al. Dessa forma, sendo iguais quanto a esse enquanto ser moral, isto é, enquanto ser que
aspecto, devem ser tratados conforme é exigido possui o sentido da justiça e uma concepção do
pelos princípios da justiça. Porém nada disso bem. O respeito mútuo é demonstrado de diver-
implica que suas atividades e realizações sejam sos modos: pela nossa prontidão em ver a situa-
de qualidade idêntica. O contrário é confundir a ção dos outros do seu ponto de vista, na
noção de personalidade moral com as diversas perspectiva da sua concepção de bem, e pelo
formas de perfeição que cabem no conceito de fato de estarmos dispostos a justificar as nossas
valor. ações sempre que os interesses dos outros
sejam afetados de modo relevante.
A razão para a aceitação do dever de respeito
3. Dever e obrigação mútuo é que, embora as partes na posição origi-
O S ARGUMENTOS EM FAVOR
nal não tenham qualquer interesse nos interes-
ses dos outros, elas sabem que, em sociedade,
DOS PRINCÍPIOS DO DEVER NATURAL
precisam da garantia da estima dos restantes
O dever natural mais importante para a teo- dos membros. O seu respeito próprio e a sua
ria da justiça é o de apoiar e promover as insti- confiança no valor do seu sistema de objetivos
tuições justas. Esse dever é composto por duas não suportam a indiferença, nem muito menos o
partes. Em primeiro lugar, quando estas institui- desprezo, dos outros.
ções existem, e somos por elas abrangidas, O dever de mútuo auxílio é o de que pode
devemos obedecer-lhes e prestar-lhes a nossa haver situações em que iremos necessitar da
contribuição. Em segundo lugar, devemos parti- ajuda de outros, pelo que o não reconhecimento
cipar na criação de instituições justas, no caso deste princípio equivaleria a privar-nos do seu
de elas não existirem, pelo menos quando tal apoio. A razão maior para a adoção desse dever
possa ser feito com custos pouco elevados. Se é o seu efeito geral sobre a vida quotidiana. A
a estrutura básica da sociedade for justa, todos consciência pública de que vivemos numa socie-
têm o dever natural de fazer aquilo que lhes é dade na qual podemos confiar uns nos outros,
exigido. Aliás, as partes têm todas as razões para para que nos auxiliem em circunstâncias difí-
garantir a estabilidade das instituições justas e ceis, é em si mesmo de grande valor. O valor
a forma mais fácil e objetiva de o fazer, é aceitar primário não é medido pela ajuda em si, mas sim
a necessidade de lhes dar apoio e obediência pelo sentido de confiança nas boas intenções
independentemente dos atos voluntários de dos outros e na consideração de que, se preci-
cada um. sarmos, eles estarão disponíveis.
Há duas tendências que levam à instabili-
dade das instituições justas. De modo egoísta, OS ARGUMENTOS PARA O PRINCÍPIO DA EQÜIDADE
cada sujeito é tentado a evitar os encargos que Embora haja vários princípios do dever
lhe cabem, muito embora seja sempre beneficiado natural, todas as obrigações decorrem do prin-
pelos bens públicos. Por outro lado, a aceitação cípio da eqüidade. O termo obrigação é reser-
pelos sujeitos das exigências de um empreendi- vado para as exigências morais que derivam do
mento de natureza cooperativa assenta na con- princípio da eqüidade, sendo as outras exigên-
vicção de que os outros farão a sua parte. A cias denominadas deveres naturais. O princí-
falta de contribuição de uns pode levar à sus- pio da eqüidade afirma que alguém tem a obri-
peita de outros, pois não se cumpre aquilo que gação de fazer aquilo que lhe cabe, consoante o
não é cumprido pelos demais. É outra causa de especificado pelas regras de uma instituição,
instabilidade. sempre que tenha aceito voluntariamente
204 Revista de Informação Legislativa
benefícios da mesma, ou tenha beneficiado das princípios que favorecem interesses limitados
oportunidades que ela oferece para prosseguir de certa classe, podemos não ter outro recurso
os seus interesses, desde que esta instituição que não seja a oposição à concepção prevalente
seja justa ou eqüitativa. e às instituições que por ela são justificadas,
O princípio da eqüidade tem duas partes. pelas formas capazes de obter algum sucesso.
Uma que indica como é que contraímos obriga- São poucos os doutrinadores que acredi-
ções, vale dizer, praticando voluntariamente tam que qualquer desvio de justiça, por menor
certos atos. A outra que estabelece a condição que seja, suprime o dever de cumprir as regras
de que a instituição em causa deve ser justa, existentes. O objetivo das partes na convenção
senão de modo perfeito, pelo menos tão justa constituinte é o de encontrar, entre as constitui-
quanto é razoável esperar face às circunstânci- ções justas, aquela que melhor conduzirá a uma
as concretas. Em regra, é concebido que as pro- legislação justa e efetiva. A Constituição é con-
messas obtidas por extorsão são nulas ab initio. siderada um processo justo, embora imperfeito.
Da mesma maneira, as estruturas sociais injustas Não há qualquer procedimento político que pro-
constituem, elas próprias, uma espécie de duza um resultado sempre perfeito (legislação
extorsão e de violência, sendo, nesses casos, o justa). No sistema de votação, típico de várias
consentimento eventualmente prestado não constituições, prevalece a vontade da maioria,
vinculativo. que cometerá necessariamente erros, se não por
falta de conhecimentos e capacidade de julga-
O DEVER DE OBEDECER A UMA LEI INJUSTA mento, pelo menos como resultado de visões
A injustiça da lei não é uma razão suficiente parciais e orientadas para o interesse próprio.
para não aderir a ela; tal como a validade formal Porém, o nosso dever natural de apoiar ins-
da legislação (definida pela Constituição tituições justas obriga-nos a respeitar as leis e
vigente), não é razão suficiente para a aceitar. políticas injustas, ou pelo menos proíbe-nos de
Sempre que a estrutura básica da sociedade for nos opormos a elas por meios ilegais, desde que
justa, devemos reconhecer as leis injustas como as mesmas não excedam certos limites de injus-
vinculativas, desde que não excedam certos tiça. Uma vez apoiada uma Constituição justa,
limites de injustiça. A fixação desses limites devemos aceitar um dos seus princípios essen-
depende do conflito de princípios. Alguns prin- ciais, o da regra de obediência a leis injustas, em
cípios aconselham o respeito à lei, enquanto virtude do dever de apoiar a Constituição justa.
outros nos indicam o contrário. Na fase constituinte, as partes empenhadas
A injustiça pode surgir de duas formas: as nos princípios da justiça, devem fazer conces-
estruturas existentes podem afastar-se, de diver- sões às outras para que o regime constitucional
sos modos, dos padrões publicamente admiti- funcione. Nesse momento será inevitável que
dos, que são mais ou menos justos; ou então as suas opiniões sobre a justiça entrem em con-
estas estruturas podem estar de acordo com a flito. A regra da maioria, compatível com os dois
concepção de justiça da sociedade, ou com a princípios da justiça, gera sempre imperfeições
concepção da classe dominante, mas esta no resultado da elaboração de leis.
concepção pode em si mesma ser desfavorável Não obstante, existem limites ao dever de
e, em muitos casos, claramente injusta. cumprimento da lei injusta. Na fase constituinte,
Quando as leis e as políticas se afastam de as partes convencionam suportar leis injustas
padrões publicamente reconhecidos, podemos até determinado limite. As liberdades fundamen-
presumir que um apelo ao sentido de justiça da tais jamais poderão ser ofendidas, já que são
sociedade é, até certo ponto, possível (o que alicerce do princípio de justiça. A conclusão é
aliás é um dos pressupostos da desobediência de que o dever de cumprimento da lei injusta
civil). No entanto, se a concepção dominante existe desde que esta não exceda certo limite de
da justiça não for violada, a situação será muito injustiça. Tal conclusão não é muito mais
diferente. A ação a seguir depende largamente impressiva do que a afirmação de que temos o
da razoabilidade da doutrina aceita e dos meios dever de aceitar leis justas.
existentes para a modificar. Podemos viver com
uma variedade de concepções mistas e intuicio- O ESTATUTO DO PRINCÍPIO DO GOVERNO PELA MAIORIA
nistas, bem como com posições utilitaristas que O princípio do governo pela maioria é justi-
não sejam interpretadas de forma demasiada- ficado como sendo a melhor maneira de assegu-
mente rigorosa. Em outros casos, contudo, como rar a adoção de legislação justa e eficaz. É esta a
sucede quando uma sociedade é regida por regra compatível com uma igual liberdade para
Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 205
todos. Na realidade, se o governo pela minoria desobediência, a minoria força a maioria a deci-
fosse autorizado, não haveria qualquer critério dir se quer que os seus atos sejam assim inter-
para selecionar quem é que decidiria. A ofensa à pretados ou se, tendo em vista o senso comum
regra da igualdade seria flagrantemente violada. da justiça, deseja reconhecer as exigências legí-
Uma Constituição justa é definida como timas da minoria.
aquela que seria aceita por delegados presen- A desobediência civil é distinta da ação
tes na convenção constituinte, que sejam racio- militante e das ações de obstrução; e está muito
nais e se orientem pelos dois princípios da afastada da resistência organizada que recorre
justiça. As leis e medidas políticas justas são à força. O militante opõe-se ao sistema político
aquelas que seriam adotadas por legisladores existente como um todo, buscando por meio da
racionais na fase legislativa, os quais respeitam perturbação e de resistência atacar a visão da
os limites impostos por uma Constituição justa justiça prevalecente ou forçar um movimento
e tendem conscientemente a guiar-se pelos prin- na direção desejada. Na desobediência, o con-
cípios da justiça, tomando-os como padrão. testador assume o risco e conseqüências do
A discussão legislativa deve ser concebida descumprimento da lei, enquanto que na ação
não como uma disputa de interesses, mas como militante não. É a ação militante uma oposição
uma tentativa para encontrar qual a melhor polí- mais profunda à ordem jurídica.
tica, em conformidade com os princípios da jus-
tiça. O único desejo de um legislador imparcial DEFINIÇÃO DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA
deve ser o de alcançar decisões corretas a esse A objeção de consciência é o não-cumpri-
respeito, de acordo com os fatos gerais de que mento de uma injunção legal ou de uma ordem
tem conhecimento. Deve votar apenas em fun- administrativa mais ou menos direta. Trata-se
ção com o juízo que faz. O resultado da votação de uma recusa, visto que a ordem em questão nos
é indicativo daquilo que está mais de acordo é dirigida e que, dada a natureza da situação, as
com a concepção da justiça. autoridades sabem se a cumprimos ou não.
A objeção de consciência não é um apelo da
A DEFINIÇÃO DE DESOBEDIÊNCIA CIVIL justiça da maioria e, portanto, não se baseia
A teoria da desobediência civil é concebida necessariamente em princípios políticos. É
apenas para o caso especial de uma sociedade fundamentada em princípios religiosos ou outros
quase justa, que, no essencial, seja bem orde- que não estejam de acordo com a ordem consti-
nada, mas na qual, não obstante, ocorram sérias tucional.
violações da justiça. A desobediência civil é um Numa sociedade livre, ninguém pode ser
ato político, não violento, decidido com o obje- obrigado, como os primitivos cristãos, a realizar
tivo de provocar uma mudança nas leis ou na atos religiosos que violem a igual liberdade, tal
política seguida pelo governo. Trata-se de ape- como um soldado não é obrigado a cumprir
lação de que os princípios da cooperação social ordens que se apresentem intrinsecamente
entre homens livres e iguais não estão a ser perversas enquanto aguarda a resposta ao apelo
respeitados. feito a uma autoridade mais elevada.
A desobediência civil não requer, necessa- A JUSTIFICAÇÃO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL
riamente, que o ato de desobediência viole a lei
que é objeto de contestação. Admite-se a deso- Os atos de desobediência civil são restrin-
bediência direta ou indireta. Por exemplo, leis gidos às infrações sérias ao primeiro princípio
relativas à política externa não podem ser da justiça, ao princípio da igualdade e às viola-
cumpridas ou descumpridas pelos dissidentes ções evidentes da segunda parte do segundo
princípio, o da igualdade eqüitativa de oportu-
nacionais. Nesse caso, o descumprimento deve
nidades. Tais princípios quase sempre implicam
ser de outra lei.
garantias fundamentais, o que evidencia o des-
A desobediência civil não é justificada por cumprimento por parte do legislador. As viola-
princípios da personalidade moral ou doutrinas ções do princípio da diferença é de difícil
religiosas. É fundamentada apenas na concep- consideração, porquanto tal princípio se aplica
ção de justiça comumente partilhada que subjaz mais às instituições e políticas econômicas e
à ordem política. A violação persistente e deli- sociais. Daí a afirmação de que a violação do
berada dos princípios básicos da concepção de princípio da igual liberdade é a mais adequada
justiça durante um período de tempo extenso, para justificar a desobediência civil. Se preser-
em especial a lesão das liberdades fundamen- vado o princípio da igual liberdade, as demais
tais, convida à submissão ou à resistência. Na injustiças são suportadas.
206 Revista de Informação Legislativa
A desobediência civil deve ser precedida de enfraquecimento destas liberdades. A desobe-
apelos normais à maioria política. Devem haver diência civil é uma forma de introdução, dentro
prévias tentativas para fazer com que a lei seja dos limites da fidelidade ao direito, de um meca-
revogada. Apenas após a desconsideração dos nismo de último recurso que mantenha a estabi-
protestos e demonstrações legalmente permitidos lidade de uma constituição justa. Embora ilegal,
é que se deve invocar a desobediência civil. é altamente moral.
Sempre que houver mais de uma minoria dis- O perigo de anarquia não existe desde que
sidente, haverá o risco de que a desobediência haja uma concordância funcional bastante entre
civil cause uma ruptura no sistema constitucio- as concepções que os cidadãos têm da justiça e
nal com conseqüências negativas para todos. desde que as condições para o recurso à deso-
Tal ocorre porquanto dificilmente duas minorias bediência civil sejam respeitadas. Está implícito
lutarão pelas mesmas concepções de justiça. A na forma política de democracia que os homens
solução ideal é a exigência de uma aliança polí- podem atingir aquele entendimento e respeitar
tica entre tais minorias, para cooperar com o aqueles limites desde que as liberdades políticas
controle do nível geral do protesto. básicas sejam mantidas.
Embora num estado de quase justiça seja Se a desobediência civil injustificada amea-
pouco provável que haja repressão à contesta- çar a paz civil, a responsabilidade não será
ção legítima, é prudente que a minoria avalie daqueles que protestam, mas daqueles cujo
sempre a razoabilidade de ser exercido tal direito. abuso do poder e da autoridade justifica essa
É importante que ela seja compreendida, já que oposição. A utilização do aparelho coercitivo
se trata de um apelo público. do Estado para conservar instituições manifes-
tamente injustas é em si mesma uma forma ilegí-
A JUSTIFICAÇÃO DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA tima do emprego da força, à qual se terá, a partir
O caso mais típico de objeção de consciên- de certo momento, o direito de resistir.
cia é o do serviço militar negado pelos pacifis-
tas. Sendo o serviço militar uma violação drástica
das liberdades básicas dos cidadãos, ele só 4. As críticas de Michael Walzer e
poderá ser justificado por exigências como as Robert Nozick a John Rawls
de segurança nacional. O serviço militar obriga-
tório só é admissível se for em defesa da própria AS ESFERAS DA JUSTIÇA. UMA DEFESA
liberdade, não apenas dos cidadãos da socie- DO PLURALISMO E DA IGUALDADE
dade em causa, mas também dos cidadãos das Na opinião de Michael Walzer, opositor de
restantes sociedades. A guerra só se justifica Hawls, o Estado nunca conseguiu controlar os
quando destina à paz. Portanto, o cidadão laços de família, mercado negro, religiões ou
poderá se recusar a prestar o serviço militar caso etnias. Não há um critério único de distribuição
a lei moral da guerra seja violada (guerra desti- de justiça. Ao contrário dos filósofos, sempre
nada a vantagens econômicas). em busca da unidade de pensamento, Walzer
sustenta que a justiça é uma construção huma-
O PAPEL DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL na, e é duvidoso que possa ser feita de um único
A sociedade quase justa, necessariamente modo. Sua tese é de que os próprios princípios
aquela que possui um regime democrático, está de justiça são pluralísticos na sua forma, de
sujeita a injustiças. Aqueles que são vítimas de maneira que diferentes bens sociais devem ser
sérias injustiças não estão obrigados à submis- distribuídos por diferentes razões, de acordo
são. Na realidade, a desobediência civil é um com diferentes procedimentos, por agentes
dos mecanismos estabilizadores de um sistema diferentes, e todas essas diferenças derivam das
constitucional, embora por definição seja um diferentes compressões dos próprios bens
mecanismo ilegal. Ao lado de eleições livre e sociais.
regulares e um poder judiciário independente, Para Walzer, a teoria de Rawls é uma antiga e
competente para interpretar a constituição, a profunda convicção dos filósofos que escreve-
desobediência civil, quando utilizada de forma ram sobre justiça desde Platão: a de que há um,
moderada e ponderada, ajuda a manter e a forta- e só um, sistema distributivo, e que a filosofia o
lecer as instituições justas. pode abranger e determinar.
O fato dos cidadãos responderem à viola- Da sua tese se extrai a teoria dos bens sociais
ção das liberdades fundamentais por meio da que são objeto das distribuições. A justiça está
desobediência civil, significa o reforço e não sempre preocupada com a distribuição dos bens
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sociais, que na realidade são todos os bens dis- efetiva distribuição dos bens, respeitada cada
poníveis aos indivíduos. A justiça e injustiça uma das esferas, restando ao Estado a sua
estão intimamente ligadas às compressões e fiscalização.
interpretações comunitárias de distribuição de Na concepção de Ubiratan Macedo, a teoria
bens sociais. A normalidade social depende da de Michael Walzer é a mais razoável nos dias de
observância dos critérios internos de distribui- hoje. É o que se está debatendo no mundo, em
ção de justiça de cada esfera da sociedade. O torno da idéia de justiça. Na crítica comunitária
mérito, na educação; a necessidade, na saúde; ao liberalismo de Rawls, parte das idéias de
e o consentimento, na política. A injustiça modernidade e não de filosofia. A sua grande
decorre da aplicação errônea de critérios de preocupação é entender como se pode fazer
distribuição típicos de uma esfera à outra. crítica moral às instituições de uma comunida-
Walzer está bem próximo da moralidade universal de, a partir de um ponto de vista universal, sem
e da justiça do direito natural. renunciar a tese da comunalidade da conceitua-
Inexiste um conjunto de bens primários ou ção da justiça, nem à sua universalidade ética.
básicos, quer no mundo material, ou no moral,
ao arrepio da teoria de Rawls. Segundo Walzer, ANARQUIA, ESTADO E UTOPIA
até mesmo o conceito de alimento varia de Walzer enfrentou com a teoria de Rawls ao
acordo com cada comunidade, citando como ministrar um curso em Harvard com Robert
exemplo o gado que é alimento para o ocidente, Nozick quando da publicação da Teoria da
embora seja para o oriente ente sagrado. O con- Justiça. Nozick representava uma defesa do
ceito de alimento dependerá da necessidade da capitalismo e Walzer do socialismo. O curso de
sua distribuição. Significados e interpretações Nozick se transformou no livro Anarquia,
distintos criam distribuições autônomas. O Estado e Utopia, crítica à Rawls e defesa do
dinheiro é inadequado na esfera dos cargos ecle- Estado mínimo.
siásticos como a piedade é inócua no mercado. Nozick nega a existência de uma distribui-
É formulada a distinção entre a igualdade ção central de bens. Adverte que a expressão
simples e complexa. A igualdade simples ocorre justiça distributiva não é neutra.
sempre que o bem é distribuído igualmente por “Não há distribuição central, nenhuma
todos (por exemplo, quando todos têm a mesma pessoa ou grupo que tenha o direito de
quantidade de dinheiro), o que leva à desigual- controlar os recursos, decidindo em
dade final, já que o mercado providencia as conjunto como devem ser repartidos. O
diferenças. Na igualdade complexa não há um que cada pessoa ganha, recebe de outros,
bem que possa ser convertido em outros bens, que o dão em troca de alguma coisa ou
já que todos eles estão distribuídos em esferas como presente. Na sociedade livre, pes-
diferentes, o que impede o que se denomina de soas diferentes podem controlar recursos
tirania. Tal concepção significa que nenhum diferentes, e novos títulos de propriedade
cidadão situado numa esfera ou com referência surgem das trocas e ações voluntárias de
a um determinado bem social pode ser prejudi- pessoas. Não há essa de distribuir (ou de
cado em outra esfera com relação a outro bem. distribuição de parcelas do que há para
Por exemplo, a utilização do poder político pelo distribuir) os companheiros em uma socie-
governante para fins particulares é agir de forma dade na qual as pessoas escolhem (livre-
tirânica, uma vez que está auferindo bens por mente) com quem querem casar. O resul-
meio de esfera imprópria. tado total é produto de muitas decisões
Dessa maneira, tirania é monopolizar ou individuais que os diferentes indivíduos
tentar transferir um critério de uma esfera para envolvidos têm o direito de tomar”1
outra ou estabelecer critério único para todas Nozick chega a apresentar uma dupla distin-
as esferas. Lealdade política é um critério de dis- ção: a) princípios históricos e princípios de
tribuição de cargos políticos. Na igualdade sim- resultado. Os primeiros afirmam se uma distri-
ples, o papel do Estado é grande, isso porque a buição é justa ou não, dependendo de como
ele compete controlar os monopólios e reprimir ocorreu no passado. Os segundos consideram
as formas de dominação. No regime de igual- uma distribuição justa, de acordo com o
dade complexa, é diminuída a importância do presente, de acordo com a forma na qual é julga-
estado, ao qual compete apenas manter as esfe- da a distribuição existente por um princípio
ras de justiça, evitando a tirania. Aqui o cidadão 1
Ubiratam Borges de Macedo. Liberalismo e
é um político em potencial, pois a ele compete a Justiça Social. Ibrasa. São Paulo, 1995.
208 Revista de Informação Legislativa
estrutural; b) princípios padronizados e não- vem a ser exteriorizada por meio de órgãos legi-
padronizados. Para Nozick há distinção entre timados para tanto pela constituição do Estado.
distribuição que obedece um padrão, “uma Nesse contexto, a norma injusta deve ser cum-
dimensão natural”, e a que não obedece um prida, muito embora esteja sujeita a todos os
padrão definido. métodos de hermenêutica jurídica, inclusive à
Anarquia, Estado e utopia partem da idéia luz da Constituição vigente, que é presumivel-
de que não é necessário criar uma sociedade mente justa.
(posição original de Rawls), pois a sociedade já A justiça como eqüidade é pensada para apli-
existe e está funcionando, e que nela há uma cação ao que se chama de estrutura básica de
repartição social. É esse o ponto de partida. A uma democracia constitucional moderna. A
teoria de Rawls é uma teoria padronizada inca- estrutura básica designa as principais institui-
paz de fundar uma concepção distributiva ções políticas, sociais e econômicas dessa
histórica ou segundo a teoria do título válido. sociedade, e o modo pelo qual elas se combinam
Rawls não parte de um argumento dedutivo num sistema de cooperação social. O fundamen-
direto, e sim de uma posição e de um processo tal é que, do ponto de vista político, nenhuma
sustentando que qualquer princípio emergente concepção moral geral pode fornecer uma base
daquela posição e daquele processo constitui publicamente reconhecida para uma concepção
princípio de justiça. de justiça num estado democrático moderno. A
Segundo Nozick, é imperfeita uma teoria da concepção política de justiça dá espaço a uma
justiça que se aplica unicamente à estrutura diversidade de doutrinas e à pluralidade de con-
básica da sociedade e não considera os micro- cepções conflitantes e, na verdade, incomensu-
cosmos sociais, podendo conduzir a que a jus- ráveis, do bem tal como adotados pelos membros
tiça geral seja conseguida às custas de uma das sociedades democráticas existentes.
multiplicidade de injustiças particulares. Não é Não há uniformidade no estabelecimento
explicado por Rawls como, na posição originá- das instituições básicas de uma democracia
ria, as pessoas escolheriam princípios que se constitucional que especifiquem e assegurem
referem a grupos e não a indivíduos. Não é tam- os direitos e garantias fundamentais dos cida-
bém explicado por qual motivo os princípios
fundamentais se limitam às estruturas básicas dãos e atendam às demandas de igualdade
da sociedade. democrática quando considerados pessoas
Os princípios de Nozick podem ser assim livres e iguais. É de interpretação controvertida
elencados: 1) justa aquisição inicial, isto é, sem a fixação de valores de liberdade e igualdade
fraude ou uso da força; 2) justa transferência, como integrantes da estrutura básica da socie-
isto é, sem fraude ou recurso à força; 3) nin- dade, isso em conseqüência à liberdade de
guém tem direito a uma propriedade, exceto por pensamento e de consciência.
aplicações repetidas dos itens 1 e 2; 4) princípio A justiça como eqüidade tem como funda-
da retificação, ou reparação pelo qual a autori- mento básico, primeiramente, a observância de
dade, provocada, restabelecerá a titularidade dois princípios, o da liberdade e o da igualdade.
justa. No segundo plano, que tais princípios são
A crítica maior à teoria de Nozick é a de que superiores a todos os demais aplicáveis aos
a mesma centra a justiça social na propriedade e cidadãos, enquanto pessoas livres e iguais.
sua sucessão, chocando-se com o problema das Entretanto, o ponto nodal é saber o que significa
externalidades. conceber os cidadãos como pessoas livres e
iguais. Em síntese, a realização dos valores de
liberdade e igualdade na estrutura básica da socie-
5. A resposta de John Rawls dade incide sempre que os cidadãos são conside-
rados pessoas detentoras das necessárias capa-
JUSTIÇA COMO EQÜIDADE. UMA CONCEPÇÃO cidades de personalidade que as habilitam a
POLÍTICA, NÃO METAFÍSICA participar da sociedade vista como um sistema de
A justiça não detém um conceito metafísico cooperação justa para o benefício mútuo.
ou ontológico, mas sim político, resultante de A filosofia, a moral ou a religião não têm
acordo político das diferenças sociais, culturais, como estabelecer as formas institucionais mais
religiosas e econômicas, comumente existentes apropriadas à liberdade e à igualdade. Apenas
numa sociedade de estrutura democrática. A uma base pública de acordo político o seria
concepção particular de justiça é submissa aos capaz, dado as diferenças e fortes convicções
anseios de justiça da sociedade em geral, que setoriais. O acordo político, do qual resulta a
Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 209
concepção de justiça, nem sempre é livre de de justiça que caracteriza os termos eqüitativos
coercibilidade, embora compatível à concepção da cooperação social. A capacidade de concep-
de que pessoas são livres e iguais. A concep- ção do bem é a capacidade da pessoa de formar,
ção política de justiça é apresentada não como de revisar e racionalmente perseguir uma con-
uma concepção da justiça verdadeira, mas como cepção da vantagem racional, ou do bem. Nos
uma concepção que pode servir de base a um negócios particulares ou na vida privada de as-
acordo político informado e voluntário entre sociações, os cidadãos freqüentemente têm con-
cidadãos, vistos como pessoas livres e iguais. cepções distintas da concepção política de jus-
Do ponto de vista filosófico, religioso ou tiça. São afeições, devoções e lealdades das
moral, o acordo político sobre a justiça como quais dificilmente os cidadãos se separam para
eqüidade não pode ser alcançado sem o desres- avaliá-las do ponto de vista racional. A concep-
peito estatal das liberdades básicas. A filosofia ção de pessoas como seres dotados dessas
como busca da verdade independente não tem duas capacidades morais é inerente à cultura
como oferecer uma concepção de justiça numa pública de uma sociedade democrática.
sociedade democrática. É imperativo que seja A questão da posição originária diz respeito
aplicável à própria filosofia o princípio da tole- à especificidade dos princípios mais apropria-
rância. Por meio do acordo político, as diferen- dos à realização da igualdade e liberdade de
ças existentes entre visões políticas concorren- sociedade na qual impera o sistema de coopera-
tes passam a ser moderadas, senão inteiramente ção entre pessoas livres e iguais. É assim a
removidas, de tal maneira que a cooperação melhor maneira para elaborar um concepção
social com base no respeito mútuo possa ser política de justiça para a estrutura básica da
mantida. sociedade. Inicialmente, os cidadãos são livres
A idéia global fundamental de justiça políti- ao conceber-se, e uns aos outros, como deten-
ca é a idéia da sociedade como um sistema eqüi- tores da capacidade moral de ter uma concep-
tativo de cooperação entre pessoas livres e ção do bem. Em um segundo plano, os cidadãos
iguais. Não raramente, os cidadãos não vêem a percebem-se livres sempre que consideram-se
ordem social como uma ordem natural fixa, ou como fontes auto-suscitantes de reivindicações
como uma hierarquia institucional, sob o funda- válidas. Por último, os cidadãos são tidos como
mento de valores religiosos ou aristocráticos. livres quando capazes de assumir a responsabi-
A moralidade pessoal, ou dos membros de uma lidade por seus fins, e isso afeta a maneira pela
associação, ou da doutrina religiosa ou filosófica qual suas várias reivindicações são avaliadas.
adotada por uma pessoa, nem sempre coincidem Na posição originária são dois os princípios
com a ordem social. Porém, no contexto político, fundamentais. O primeiro princípio é que “cada
tais diversidades individuais devem ser afastadas. pessoa tem de ter um igual direito ao mais exten-
São três os elementos de cooperação social. sivo sistema total de básicas liberdades iguais,
A cooperação é guiada por normas e procedi- compatíveis com um similar sistema de liberdade
mentos publicamente reconhecidos, que são para todos”. O segundo princípio dispõe que
aceitos pelos que cooperam como normas e “as desigualdades sociais e econômicas têm de
procedimentos que regulam apropriadamente ser ajustadas de maneira que sejam tanto: (a)
suas condutas. A eqüidade da cooperação para o maior benefício dos menos privilegiados,
social parte da idéia de reciprocidade ou mutua- consistente com o princípio justo de poupança;
lidade, de maneira que os benefícios produzidos como (b) ligadas a cargos e posições abertos a
pelos esforços de todos sejam eqüitativamente todos, sob condições de eqüitativa igualdade
adquiridos e divididos de uma geração para a de oportunidade”.
subseqüente. A idéia de cooperação social Os princípios auxiliares estão assim delimi-
requer a idéia da vantagem racional, ou bem, de tados. A primeira prioridade é a da liberdade, da
cada participante. qual os princípios de justiça têm de ser ordena-
As pessoas, como participantes da coope- dos em seqüência léxica e, portanto, a liberdade
ração social, são aquelas consideradas cidadãs. só pode ser restringida por conta da própria
Além de possuírem duas capacidades morais, liberdade e nos seguintes casos: (a) uma liber-
as capacidades de senso de justiça e de con- dade menos extensa deve fortalecer o total sis-
cepção do bem, as pessoas também têm uma tema de liberdade, compartilhado por todos; (b)
concepção particular do bem que tentam obter. uma liberdade menos que igual, deve ser aceitá-
O senso de justiça é a capacidade de entender, vel àqueles como a liberdade menor. A segunda
de aplicar e de agir a partir da concepção pública prioridade é a da justiça sobre a eficiência e o
210 Revista de Informação Legislativa
bem estar: (a) uma desigualdade de oportuni- a justiça, tendo provocado uma reorientação no
dade deve realçar as oportunidades daqueles pensamento filosófico americano, até então
com menor oportunidade; (b) uma excessiva interessado em questões epistemológicas e
taxa de poupança deve, em equilíbrio, mitigar o lingüísticas para os problemas ético-sociais, e
fardo daqueles que estão suportando esse também propiciado um novo tipo de igualitaris-
encargo. mo teórico, um igualitarismo não mais de opor-
A concepção política de justiça, como já con- tunidades, mas de resultados.
signado, embora moral, não é um ideal de moral Toda discussão entre o comunitarismo e o
para a condução da vida, mas tão-somente a ser liberalismo se faz à sombra da Teoria da Justiça
aplicada à estrutura básica da sociedade. É a de John Rawls. Na realidade, as críticas à Rawls
única doutrina compatível com o liberalismo do são críticas do comunitarismo ao liberalismo.
estado democrático, no qual existem concep- A principal resistência à Rawls é quanto à
ções conflitantes. Daí, a possibilidade e, talvez, impossibilidade de ser estabelecido um critério
necessidade de impor restrições a indivíduos e único de justiça para regular diversas classes
associações, contudo sempre em prol da justiça da sociedade. Em defesa, Rawls alega que jamais
política. A autonomia e a individualidade abso- pretendeu um conceito metafísico da justiça, mas
luta não são apropriadas para uma concepção sim político, derivado de um consenso político
política de justiça. A sustentação das insti- resultante de pluralidade de concepções de
tuições democráticas é incompatível com o libe- justiça.
ralismo (individualidade e autonomia) irrestrito. De fato, é inconcebível a existência de uma
Dessa maneira, a justiça como eqüidade é similar unidade a respeito de justiça. Ao contrário do
à doutrina de Kant e Mill, porém em oposição a que se imagina, Rawls reconhece tal impossibi-
elas. lidade, ao sustentar a necessidade de um con-
Na justiça como eqüidade, a unidade social senso sobre justiça. A justiça terá sempre um
e a lealdade dos cidadãos com respeito a suas conceito relativo, devendo prevalecer o enten-
instituições comuns não estão calcadas na idéia dimento da maioria daqueles que com ela convi-
de que todas as pessoas sustentam a mesma vem.
concepção do bem, mas em que aceitam publi- Na área jurídica, os capítulos que mais
camente um concepção política de justiça para denotam interesse são aqueles sobre o dever
regular a estrutura básica da sociedade. O con- de cumprimento da lei injusta, desobediência
ceito de justiça é independente do conceito de civil e objeção de consciência, porquanto dire-
bem, e anterior a ele. A interface consensual é o cionados diretamente ao aplicador do direito.
consenso no qual doutrinas diferentes e mesmo Do seu texto se extrai a idéia de que não é
conflitantes sustentam a base publicamente qualquer alegação de injustiça que inviabilizará
partilhada dos arranjos políticos. a aplicação do direito. É necessário que haja
Platão e Aristóteles, bem como a tradição grave e evidente ofensa aos princípios da justi-
cristã tal como representada por Agostinho e ça, contidos na estrutura básica da sociedade,
Tomás de Aquino, estão entre os que reconhe- para que seja possível a resistência à norma
cem apenas um bem racional. Tais perspectivas injusta.
teleológicas tendem a afirmar que as institui- Os princípios da justiça idealizados por
ções são justas na medida em que efetivamente Rawls são as liberdades públicas ou direitos
promovem aquele determinado bem. Aliás, a fundamentais, que a melhor doutrina jurídica
filosofia moral, a teologia e a metafísica perse- sobrepõe a todo e qualquer direito ou dever, até
guem uma concepção racional de justiça. O mesmo de natureza constitucional, já que são
liberalismo, ao contrário, supõe que há muitas alicerce do próprio Estado de Direito. Nesse
concepções conflitantes e incomensuráveis do sentido, é possível a afirmação de que toda lei
bem, sendo cada uma compatível com a plena injusta é substancialmente inconstitucional.
racionalidade das pessoas, desde que observa- Quando Rawls sustenta a possibilidade da
dos os princípios apropriados de justiça. É o desobediência civil, sempre que houver descum-
liberalismo uma cultura democrática livre. primento de tais liberdades, na realidade, signi-
fica que a governabilidade corre sérios riscos,
caso o sentimento de justiça da sociedade não
6.Conclusão coincida com o ordenamento jurídico. Muito
A Teoria da Justiça de John Rawls tem o embora a lei injusta possa ser vinculativa nos
mérito de ser a primeira grande teoria geral sobre casos de inocorrência de inconstitucionalidade,
Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998 211
a mesma cairá no desuso e, portanto, a sua RAWLS, John. Justiça como eqüidade : uma concep-
aplicação ocasionará o descrédito das institui- ção política, não metafísica. Lua Nova, v. 25.
__________
ções. . Uma teoria da justiça. Lisboa : Presença,
1993.
SILVA, Roberto de Abreu e. A teoria da justiça. In:
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