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TRABALHO DISSERTATIVO PARA A DISCIPLINA “HISTÓRIA DA FILOSOFIA

CONTEMPORÂNEA: O SÉCULO XX” – Prof. Dr. Carlos Eduardo

A ALIENAÇÃO DA REALIDADE E IMPUTABILIDADE PENAL

Pedro Guimarães Marchi; RA: 21012615

Um dos temas de grande debate no meio psiquiátrico e jurídico é a questão da imputabilidade


penal para os doentes psiquiátricos. Tal debate vem se prolongado, principalmente, desde o final do
século XX e perdura - com considerável força, aliás – até os dias de hoje. A relação entre o poder
psiquiátrico e o poder jurídico é que da peso à esse debate que reside, em especial, na questão da
alienação da realidade que certos transtornos mentais podem trazer ao indivíduo. Nesse sentido, as
análises de Foucault em “O poder psiquiátrico”, particularmente na aula do dia 12 de Dezembro de
1973, podem nos trazer luz para o assunto e suscitar um ponto de partida para uma proveitosa
reflexão.

Dentre as doenças mentais que mais se enquadram na discussão, a esquizofrenia é a principal


delas. Em linhas gerais, a esquizofrenia pode ser definida como uma doença endógena, caracterizada
por um amplo quadro de desorganização cerebral no qual o senso de realidade é fortemente afetado,
fazendo com que a o doente perca totalmente o contato com a realidade (LIMA et al; 2014).
Foucault, inclusive, tem uma definição para o quadro esquizofrênico em seu livro “Doença Mental e
Psicologia”:

“e deu ao conjunto o nome de esquizofrenia, caracterizada, de um modo geral, por


uma perturbação na coerência normal das associações — como um fracionamento do
fluxo do pensamento — e por outro lado, por uma ruptura do contato afetivo com o
meio ambiente, por uma impossibilidade de entrar em comunicação espontânea com a
vida afetiva do outro” (FOUCAULT; 1975; p.8)

A esquizofrenia é um caso curioso e muito relacionado ao conceito de poder psiquiátrico em


Foucault devido ao fato de não existir um exame laboratorial para determinar causas
anatomopatológicas para a doença, sendo seu diagnóstico e classificação praticamente
completamente nosológicos:

A esquizofrenia é um dos mais comuns dos transtornos mentais graves, mas sua
natureza essencial ainda não foi esclarecida; portanto, às vezes, ela é referida como
uma síndrome, como o grupo de esquizofrenias ou, como na quinta edição do Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), o espectro da esquizofrenia.
Os médicos devem entender que o diagnóstico de esquizofrenia tem base inteiramente
na história psiquiátrica e no exame do estado mental. Não existe um exame
laboratorial para esse transtorno. (SADOCK et al.; 2016; p.300).

Além da relação dialética conflitante entre as questões nosológicas e anatomopatológicas no


diagnóstico da doença, a sintomática da esquizofrenia é bastante curiosa. Basicamente, a
esquizofrenia é caratcterizada pela distorção da realidade. Essa distorção se manifesta, em seu ponto
mais elevado, por meio de delírios e alucinações, que, por definição, são caracterizados por visão
distorcida da realidade. O delírio mais comum em pessoas diagnosticadas com esquizofrenia é o
“delírio persecutório”, no qual o doente acredita que está sendo constantemente observado e
perseguido por pessoas que querem o seu mal. (SADOCK et at.; 2016).

Foucault, em “O Poder Psiquiátrico”, na aula de 12 de dezembro de 1973, traz casos de


“loucos” (não necessariamente esquizofrênicos: o que o texto não afirma claramente) que sofriam
com delírios e que foram curados de forma um tanto quanto interessantes. Um deles, que é um caso
de delírio persecutório é de um “doente de Pinel, que se imaginava perseguido pelos revolucionários,
prestes a ser levado aos tribunais e, por conseguinte, ameaçado de pena de morte”. A cura veio de
um processo não menos curioso: “Pinel curou-o organizando em torno dele um pseudoprocesso, com
pseudo juízes, no qual foi absolvido” e, “graças a isso, ele se curou” (FOUCAULT; 2016; p. 160).

Diante de casos como o supracitado, Foucault, a partir dos métodos clássicos de “cura” de
Pinel e Maison Cox, que a pressuposição básica da loucura é “uma falsa crença, uma ilusão ou um
erro”, portanto, “bastará reduzir esse erro para que a doença desapareça”. No entanto, “o erro de um
louco não é o erro de um qualquer”. Então o que é o erro de um louco? O que o diferencia de um
“não louco”? Certamente, para Foucault essa diferença não reside fundamentalmente na
extravagância da ideia. O que determina precisamente o erro de um louco é, entretanto, a maneira
como se pode superar ou reduzir esse erro: “O louco é aquele cujo erro não pode ser reduzido por
uma demonstração; é alguém para qual a demonstração não produz a verdade”. Desse modo, para
reduzir o erro de um louco não adianta demonstrar que o pensamento dele não condiz com a
realidade, mas, por outro lado, deixar-se “valer como verdadeiro esse juízo que é falso e, em
contrapartida, transforma-se a realidade de maneira que ela venha se ajustar ao juízo louco, ao juízo
errôneo”. (FOUCAULT; 2016; p. 161-2).

Essas reflexões suscitam importantes pontos de discussão. Retomando a questão da


imputabilidade penal e entendendo que, em casos de esquizofrenia, por exemplo, a pessoa tem uma
dificuldade em processar a realidade e, por vezes, perde completamente a noção dela, como deve,
então, serem enquadradas no âmbito do direito penal?

No contexto brasileiro, a imputabilidade se dá a partir dos 18 anos e “representa a capacidade


que o agente tem de ser responsabilizado criminalmente pelos seus atos, uma vez que o homem
possui a vontade como norte de suas condutas”. Ao direito cabe, portanto, “saber se no momento do
crime, o sujeito tinha plena condições de entender o caráter ilícito dos seus atos, para que depois
possa ser apontado como autor do crime”. Ou seja, a imputabilidade tem dois aspectos fundamentais:
o aspecto intelectivo, que consiste na capacidade de entender, e o aspecto volitivo, que se refere à
capacidade de controlar a própria vontade. Se o autor em questão não detiver ambas as capacidades,
não poderá ser responsabilizado por seus atos. (LIMA et al; 2014) O Código Penal brasileiro, no
artigo 26, que data de dezembro de 1940, explicita essa situação:

“Art. 26: É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardo era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento”.

Além do caso de inimputabilidade total, a lei também abrange a semi-inimputabilidade, que


é aplicada quando o detrator é parcialmente incapaz de se controlar e resulta em redução da pena
e\ou substituição por internação. No caso do esquizofrênico, a semi-imputabilidade é,
normalmente, aplicada nos casos em que o doente sabe da sua situação e deliberadamente não
toma as devidas precauções para evitar que ele represente um perigo à sociedade.

A dificuldade da questão, no entanto, reside, em grande parte, na capacidade de diagnóstico


da perícia psicológica. Como vimos anteriormente, a esquizofrenia tem caráter fundamentalmente
nosológico, baseada na história da psiquiatria e sem análise laboratorial conclusiva. Desse modo, o
diagnóstico pode ficar exposto a falhas.

Um caso icônico que aconteceu a não muito tempo e suscitou dúvidas ao procedimento
penal de imputabilidade foi o caso Carlos Sundfeld, o “Cadu”, famoso por assassinar o cartunista
Glauco e seu filho em 2010. Sundfeld disparou contra Glauco e seu filho numa tentativa de
sequestro em que afirmava ser Jesus Cristo, sendo os motivos ainda não esclarecidos. Depois de
detido, foi considerado inimputável por possuir esquizofrenia. Foi compulsoriamente internado
numa clínica psiquiátrica até 2013, quando a Justiça de Goiás decidiu que ele poderia voltar a viver
em sociedade. Um ano depois, Cadu foi preso novamente; dessa vez por dois latrocínios e porte
ilegal de arma de fogo. No entanto, dessa vez, após novos exames que concluíram que ele poderia
responder judicialmente por seus, foi condenado a 61 anos de reclusão em regime fechado. A
conclusão dos psiquiatras nesse último caso foi que não houve indícios de doença mental que
provocasse alienação da realidade.

A ironia e a confusão da Justiça nesse caso corroboram com a tese do poder psiquiátrico ser
um resquício de um antigo modelo de poder soberano pré-moderno. A fragilidade da justiça em
determinar a imputabilidade ou inimputabilidade do sujeito no caso é semelhante e coaduna com a
fraqueza objetiva da psiquiatria, moldada principalmente por um modelo discursivo de poder. Desse
modo, a questão da imputabilidade penal e sua relação com a alienação da realidade e o delírio
esquizofrênico não pode ser tão facilmente resolvida, mas nos proporciona importantes insights para
uma rica discussão a respeito do poder e dos métodos diagnósticos da psiquiatria. Aliás, seria a
afirmação ou negação da realidade apenas um discurso, um dispositivo de poder? A depender da
resposta a essa indagação, os parâmetros pelos quais se julgam a imputabilidade deverão ser
completamente revistos.

Bibliografia
FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006
LIMA, Ethiene G; TANAJURA Higor R; FREITAS, Hugo H. L; SOUZA Marcos V. B; A
esquizofrenia e discussão sobre inimputabilidade e semi-imputabilidade; disponível em
<https://hugohlf.jusbrasil.com.br/artigos/129735831/a-esquizofrenia-e-discussao-sobre-
inimputabilidade-e-semi-imputabilidade>; acessado em 30 de abril de 2019.
SADOCK, Benjamin J.; SADOCK, Virginia A.; RUIZ, Pedro. Compêndio de Psiquiatria-: Ciência
do Comportamento e Psiquiatria Clínica. Artmed Editora, 2016.

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