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ENTRE FREIRE E MORIN: APROXIMAÇÕES DE UMA EDUCAÇÃO PARA A

VIDA

Jerry Adriano Raimundo1 - UFPR


Fabiana Neves Bertolin2 - UFPR

Eixo – Cultura, Currículo e Saberes


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

O presente artigo é um diálogo referente à educação para a vida, elaborado entre dois
pedagogos (do ensino fundamental) a fim de aproximar as dimensões teóricas educacionais
dos pensadores: EDGAR MORIN e PAULO FREIRE. Objetiva discutir conceitos utilizados
por esses dois pensadores que valorizam a educação humanística, a fim de traçar conexões
entre as suas obras por meio da abordagem qualitativa a partir da revisão bibliográfica dos
livros desses pensadores. O procedimento bibliográfico amplia a cobertura de conceitos na
dispersão de informações entre as obras dos autores, permitindo a sistematização destas
informações pelo objetivo oferecido. Assim, os conceitos foram elencados a partir de sua
similaridade semântica entre as obras dos dois pensadores, conjuminando uma inferência de
dez itens, a saber: consciência, inacabamento, humanização, autonomia, posicionamento,
dialogicidade, ética, política, curiosidade e ação. A partir da localização destes conceitos nas
obras de Paulo Freire e Edgar Morin, os autores do artigo tecem qualitativamente a descrição
de sentidos com a correlação entre suas obras. Da produção estes dois pensadores da
educação, extraímos fundamentos de uma ‘educação para a vida’, que considera a
pessoalidade do sujeito e sua expansão política num sistema autônomo de aprimoramento de
si, do outro e do mundo. O resultado é uma descrição rigorosa das relações entre os
pensadores que promovem a compreensão de que a sociedade se organiza de modo complexo
e implica a conscientização humana das suas possibilidades de ação para transformação e
humanização planetária. São ações que prezam pela generosidade, equidade, visão e ação
sistêmica em detrimento do individualismo intermitente.

1
Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Pedagogo especializado em Psicopedagogia
Institucional e Clínica e em Filosofia Contemporânea. Professor do Ensino Fundamental (PMC) e Orientador de
Estágio em Curso de Formação Docente (SEED). E-mail: prof_jerry@hotmail.com

2
Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Psicopedagogia Institucional e
Clínica e em Educação Especial com ênfase em Educação Inclusiva e Gestão Escolar. Atua como pedagoga na
SMEC, na área de Educação Especial com enfoque na Formação de Docentes. E-mail:
fabiana.educacao@gmail.com

ISSN 2176-1396
3169

Palavras chave: Complexidade. Educação. Humanização.

Introdução

Há décadas que se percebe a educação como um sistema mecânico, contribui Freire


(1996). O trabalho dos docentes é a realização de um programa que não consegue escapar de
seus eixos dominantes, de tal forma que devem garantir a realização de um aprendizado
formal, enquadrado em moldes técnicos a fim de reduzir a complexidade da heterogeneidade
dos sujeitos numa simplificada identificação de pessoas tolhidas pela hegemonia política.
Todavia, a educação não deve se valer de atitudes ingênuas, pois os fins da educação
são estritamente sociais; a sociedade forma os estudantes e estes aprendizes formam a
sociedade. Assim, a educação se mobiliza pelo constante questionamento sobre que ser
humano ela quer para o futuro de sua sociedade.
O mecanismo da educação tradicional desconsiderou o sujeito que aprende em
função de um ensino conteudista e científico-clássico, para lhes transmitir muita informação.
Atualmente há muitos dados, informações, veiculando pela sociedade e, portanto, a educação
se conscientiza que não basta um arsenal de conteúdos, senão é necessária a articulação de
sentidos entre os próprios conteúdos (dados e informações), para que estes sentidos sejam
articulados e significativos ao sujeito que o toma, contribui Morin (2000).
A partir desta perspectiva, a educação procura se desvencilhar da transmissão do
conteúdo e favorece uma relação de saberes entre sujeito, sociedade e conteúdo – numa
relação dialógica. A ação educacional deixa de focar na coisa que se aprende e passa a
valorizar e enfatizar uma nova educação: a educação para a vida.
‘Educação para a vida’ é um tema presente na pluralidade da obra de Paulo Freire e
Edgar Morin, necessário à complexidade da educação do século XXI, implicitamente dita a
todo o momento em que valoriza o sujeito e pensa a sua transformação num viés político da
ação educacional; é o elo entre as duas dimensões teóricas, que se dialogam sem
intencionalidade discursiva entre si, mas que conduz o leitor a estabelecer conexões entre
ambas, pelas aproximações humanísticas, das quais se valerá este artigo. Deste modo, não
traçamos um novo conceito, organizamos informações bibliográficas que promovem o sentido
comum entre os dois autores.
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Destarte, para este trabalho, os conceitos foram elencados a partir da similaridade


semântica na obra dos dois pensadores citados, conjuminando uma inferência de dez itens, a
saber: posicionamento, dialogicidade, consciência, autonomia, inacabamento, humanização,
ética, política, curiosidade e ação.
Assim, com a abordagem qualitativa, que segundo Gil (2008) caracteriza as
informações que foram apreendias pela investigação, dois pedagogos (os autores) dialogam
sobre as aproximações teóricas entre Paulo Freire e Edgar Morin, utilizando o procedimento
bibliográfico que, segundo Gil (2008) “permite ao investigador a cobertura de uma gama de
fenômeno muito mais ampla”, com a principal vantagem de organizar informações dispersas,
como é o caso do objetivo deste estudo que organiza informações entre a obra de dois autores.
Com este procedimento, captam-se as aproximações implícitas e de relação humanística, a
fim de caracterizar e descrever a essência teórica que ambos os pensadores teceram sobre a
‘educação para a vida’.

Desenvolvimento

Aferimos os conceitos que possuem semelhança semântica entre as obras de Paulo


Freire e Edgar Morin a fim de descrever a conjunção significativa da ‘educação para a vida’
entre estas obras. Deste modo, o quadro 1 apresenta os conceitos elencados a partir de suas
referências bibliográficas.

Quadro 1: Conceitos e referências elencados por proximidade semântica entre os teóricos Freire e Morin

Conceito Freire Morin

Ação Ação para libertação, relacionada à práxis Toda ação escapa à vontade de seu autor”,
transformadora: autêntica união da ação e assim alerta sobre a inter-retro-ação, pois a
da reflexão (FREIRE, 1979, p. 47). ação implica estratégia para não retornar
contra os seus autores (MORIN, 2000, p. 85).
Autonomia É com ela, a autonomia, penosamente Para manter sua autonomia, qualquer
construindo-se, que a liberdade vai organização necessita da abertura ao
preenchendo o “espaço” antes “habitado” ecossistema do qual se nutre e ao qual
por sua dependência. Sua autonomia que se transforma (MORIN, 2003, p. 36).
funda na responsabilidade que vai sendo
assumida (FREIRE, 1996, p. 37).
Consciência Superação da apreensão espontânea da [...] a consciência de habitar, com todos os
realidade por uma consciência crítica seres mortais, a mesma esfera viva (biosfera):
através do posicionamento epistemológico reconhecer nossa união consubstancial com a
(FREIRE, 1979). biosfera conduz ao abandono do sonho
prometeico do domínio do universo para nutrir
a aspiração de convivibilidade sobre a Terra
(MORIN, 2000, p. 73).
3171

Curiosidade Chama de “curiosidade epistemológicas”, Este uso total pede o livre exercício da
é o estímulo da capacidade de se arriscar, curiosidade, a faculdade mais expandida e a
de aventurar-se; a força criadora do mais viva durante a infância e a adolescência,
aprender (FREIRE, 1996, p. 13). que com frequência a instrução extingue e que,
ao contrário, se trata de estimular ou, caso
esteja adormecida, de despertar (MORIN,
2000, p. 40).
Dialogicidade Não há inteligibilidade que não seja O princípio dialógico pode ser definido como
comunicação e intercomunicação e que não a associação complexa [...] de instâncias
se funde na dialogicidade. O pensar certo necessárias, conjuntamente necessárias à
por isso é dialógico e não polêmico existência, ao funcionamento e ao
(FREIRE, 1996, p. 17). desenvolvimento de um fenômeno organizado.
(MORIN, 2003, p. 37)
Ética Ética universal do ser humano, nos [...] a ética propriamente humana, ou seja, a
sentidos de justiça, esperança, franqueza, antropo-ética, deve ser considerada como a
moralidade, honestidade e luta (FREIRE, ética da cadeia de três termos indivíduo/
1996). sociedade/espécie, de onde emerge nossa
consciência e nosso espírito propriamente
humano (MORIN, 2000, p. 106).
Humanização [...] para assumir responsavelmente sua Se soubermos compreender antes de condenar,
missão de homem, há de aprender a dizer a estaremos no caminho da humanização das
sua palavra, pois, com ela, constitui a si relações humanas (MORIN, 2000, p. 100).
mesmo e a comunhão humana em que se
constitui; instaura o mundo em que
humaniza, humanizando-o (FREIRE,
1987, p. 7).
Inacabamento A educação crítica considera os homens O pensamento complexo está animado por
como seres em devir, como seres uma tensão permanente entre a aspiração a um
inacabados, incompletos em uma realidade saber não parcelado, não dividido, não
igualmente inacabada e juntamente com ela reducionista e o reconhecimento do
(FREIRE, 1979, p. 42). inacabado e incompleto de todo
conhecimento (MORIN, 2003, p. 54).
Política Se a direção racional de tal processo já é A política da complexidade não se limita ao
política, então conscientizar é politizar. E a “pensamento global, ação local”; expressa-se
cultura popular se traduz por política pelo duplo par: pensar global/agir local.
popular; não há cultura do Povo, sem (MORIN, 2003, p. 103).
política do Povo (FREIRE, 1987, p. 11).
Posicionamento O fato de me perceber no mundo, com o Interrogar a nossa condição humana implica
mundo e com os outros me põe numa questionar primeiro nossa posição no mundo
posição em face do mundo que não é de (MORIN, 2000, p. 47).
quem nada tem a ver com ele. Afinal,
minha presença no mundo não é a de quem
a ele se adapta mas a de quem nele se
insere (FREIRE, 1996, p. 23).
*grifos dos autores
Fonte: Elaborado pelos autores.

A partir do QUADRO 1, apresentamos a descrição de cinco conceitos


(posicionamento, dialogicidade, consciência, autonomia e inacabamento), separados em
subcapítulos, que, segundo os autores desse artigo, são disparadores para o início da discussão
desse artigo. Os demais conceitos (humanização, ética, política, curiosidade e ação) seguem
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na perspectiva de complementaridade, são citados e discutidos no corpo do texto dos


subcapítulos.

Consciência

Em Morin (2005), consciência exprime a autorreflexão intelectual e a dimensão


moral da mente, capaz de pensar a si próprio e suas relações dialógicas. Para Frerie (1979)
consciência é superar a apreensão espontânea da realidade por uma consciência crítica através
do posicionamento epistemológico.
A consciência é a possibilidade humana de pensar a sua própria existência, Morin
(2005) a descreve como uma aptidão autorreflexiva. No entanto, a consciência é dialógica;
por um lado, é inerente do organismo humano e, por outro lado, é um produto da relação
social; o processo de reconhecimento da “união consubstancial com a biosfera”, afirma Morin
(2000, p. 73).
Humanamente se pode ter consciência de si e pensar sobre a sua existência, contudo
isso pode ocorrer numa dimensão essencialmente individualista e ingênua, pois a
potencialidade de pensar a própria existência deve ser crítica e ética, ou seja, a consciência é
uma relação do indivíduo com o social que o interroga sobre ‘o que fazer’ no lugar em que ele
existe, preconizando os seu pares.
Nesse sentido, a ética, para Morin tem papel preponderante na constituição do
sujeito, no significado de sua existência e na sua representatividade perante o mundo social,
segundo Morin (2000, p. 16), a ética “não poderia ser ensinada por meio de lições de moral”,
para ele a ética é ao mesmo tempo individual e social que tem suas bases na consciência
humana, constituindo a relação de indivíduo-sociedade-espécie (MORIN, 2000, p. 106). Para
Freire (1996, p. 9), a ética tem um sentido similar ao de Morin (2000), pois “fala de uma ética
universal do ser humano”, traz para a ética o sentido de justiça, esperança, franqueza, moral,
honestidade e luta. Neste sentido, Freire (1996, p. 10) diz que para entender a ética “a melhor
maneira é vivê-la em nossa prática [...] como algo indispensável à convivência humana”. A
partir desta consciência humanizadora que a educação é formadora e, portanto, ética.
Freire (1996) faz uma crítica pontual ao ideário político neoliberal, dizendo que o
mesmo incorpora em sua essência o individualismo e a competitividade, impossibilitando a
construção de uma sociedade justa, igualitária e humanizadora. Traz uma reflexão sobre a
construção de um indivíduo autônomo, livre e consciente para assumir suas decisões.
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Em consonância aos pressupostos de Freire (1996), é preciso ouvir, pensar e


repensar, estar dispostos a rever conceitos e refletir sobre os mesmos, lutando contra a
alienação, a acomodação e a mesmice. Lutar pela ética é experimentá-la e isso é desafiador e,
ao mesmo tempo, transformador.
A crítica de Freire (1996) frente à malvadeza neoliberal, ao cinismo de sua ideologia
fatalista, a recusa inflexível do sonho e à utopia, é uma crítica ao palco de negociações
capitalistas visando o benefício da minoria. O sistema faz com que se mantenha a crença de
que são eles (a minoria) que ditam as regras, colocando ataduras de passividade e
conformismo nas mentes, impedindo a projeção de sonhos e a construção de algo novo.
A ‘educação para a vida’ encontra, na descrição de Morin (2000, p. 14), a perda
humana de sua própria identidade, “que deve compreender o desenvolvimento conjunto das
autonomias individuais, das participações comunitárias e da consciência de pertencer à
espécie humana”.
Assim, a consciência humana não deve ser fragmentada, que perceba apenas as
demandas de partes sociais, a consciência deve ser totalitária, abrangente de toda a
humanidade. Desta forma, a consciência totalitária é política e atende a todas as partes, ou
seja, todo indivíduo; que por sua vez, sendo parte do todo, compreende a totalidade de ser
individualmente consciente.
Dessa forma, o aceite que uma parte de si é completa e a outra exala incompletude,
nos leva para a discussão de um outro tópico relevante dentro do tema ‘Educação para a
Vida”, a ideia de inacabamento.

Inacabamento

Em Freire (1979), inacabamento é a autoconsciência de que o homem jamais está


“terminado” e tem total possibilidade de se construir e reconstruir. Para Morin (2003, p. 54),
tem o sentido de impossibilidade de haver o pensamento completo, desta maneira o ser
humano não é completo pela possibilidade de conhecer e saber mais.
Em relação aos saberes necessários à prática educativa, Freire (1996) salienta a ideia
do inacabamento, dando a entender que nenhum processo humano é repetido, pois o ser
humano está em constante desenvolvimento.
Articulando essa discussão para o viés educacional, Freire (1987) sugere que a
transformação do sistema educacional se dará mediante a tomada de ação da classe popular -
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dos oprimidos - movidos por coragem de externar seus pensamentos, almejando o resgate da
dignidade.
Freire (1987) provoca a reflexão sobre os avanços de humanização, que podem ser
desenvolvidos e construídos pelos oprimidos. A eles é disponibilizado o exercício da reflexão
sobre a sua existência; a partir da opressão o oprimido é impulsionado a buscar sua dignidade,
resgatar seu valor como pessoa e de lutar pelos seus direitos, caso contrário, sempre será
preso e fadado à marginalização. Nesta perspectiva, tem-se um impasse, é preciso resgatar o
sentido de humanidade conduzindo em direção à construção de civilização, cuidando para não
cair numa ação hostil, culminando na barbárie.
A humanização é “a vocação ontológica do ser humano” de ser mais. Segundo Freire
(1992, p. 51), o homem não está determinado, há na essência humana o devir, o projeto. Neste
sentido, Morin (2000, p. 14) utiliza o conceito de condição humana, que segundo ele
encontra-se “desintegrada na educação por meio de disciplinas, tendo-se tornado impossível
aprender o que significa ser humano”. A educação encontra a demanda de restaurar o
ligamento dos indivíduos com a sua “identidade comum a todos os outros humanos”.
Isso nos remete ao papel de empoderamento exercido pela linguagem. Por meio da
fala expressamos nossas ideias, nos socializamos e nos humanizamos; no entanto, um saber
para ter credibilidade precisa de registros escritos, pesquisa, embasamento teórico, logo se o
povo não sabe escrever, redigir textos formais e nem interpretar, tais documentos serão
elaborados por quem detém este conhecimento e os manipula, em benefício próprio. Neste
sentido educacional, a ética está intrinsicamente ligada ao processo de humanização do
sujeito.
O conhecimento simplificado, diz Morin (2005), determinista e opressor é mutilante,
capaz de deformar o homem e a consciência de pertencimento a sua própria espécie. Este
conhecimento dado como “completo” é o desafio da complexidade dita por Morin (2005), que
se empenha em desmistificar este conhecimento em prol do pensamento complexo. O saber
da incompletude do conhecimento é o mesmo da incompletude do homem, que não estagna o
seu desenvolvimento, pelo contrário, afirma a possibilidade de ser mais, de potencialidade da
ampliação da própria existência e cultura.
Assim, o homem está inserido num contexto complexo, que havendo diversas
influências criadas pelo próprio homem, se constrói a partir desta cultura, sem mesmo ter
consciência disso. A ‘educação para a vida’ pensa a ação a fim de inverter este quadro
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complexo e distorcido, de maneira que organize o homem em sua liberdade em que,


existentes no mundo, saiba de sua participação neste e seja consciente de suas ações,
ampliando a sua dimensão autônoma de agir e pensar.

Autonomia

Encontra-se o conceito de autonomia em Morin (2003), descreve que o indivíduo é


capaz de suprir as suas próprias demandas, porém sempre apresentará a dependência de algum
sistema. Em Freire (1996), tem-se a autonomia como condição ética e responsável de se
posicionar no mundo para compreendê-lo e transformá-lo.
Ao correlacionar existência com consciência se tem um indivíduo interpelador do
mundo, que mesmo estando em sociedade encontra na sua existência a sua identidade, que o
distingue do outro. A dimensão de sua identidade equacionada com ‘o que fazer’ no mundo é
o que lhe demanda autonomia, que é o agir particular se sabendo parte do todo.
A educação contemporânea carrega consigo a responsabilidade de harmonizar o
conhecimento humano sobre si mesmo, sobre sua própria identidade terrena e humana, haja
vista que a sociedade a subtrai perante os avanços científicos. A tarefa da educação, diz Morin
(2000), é resgatar a consciência humana de pertencer à espécie humana.
Esta consciência de pertencer à espécie humana é um fragmento da totalidade em que
o homem é ‘auto’, indivíduo único de decisões e ‘eco’, convivente e interativo com outros
seres vivos. Portanto o homem é auto-eco-organizacional, pois para Morin (2003, p. 32), não
há possibilidade de autonomia sem múltiplas dependências, com as quais deve se organizar.
A dimensão organizacional humana se dá pela dependência ecológica que, não
apenas biológica é, também, interseccionada por uma perspectiva cultural. A sua organização
é individual e ao mesmo tempo, influi toda a ecologia em que está inserido, pois jamais a
humanidade subsistiria individualmente, ou seja, sem a ecologia em que está inserido. De
igual forma, seres de interação, a humanidade depende da cultura que ela mesma criou, pois
não há humanidade sem cultura. Esta demanda cultural implica organizações que a estrutura e
a modifica, portanto a dependência terrena humana implica política.
Para Freire (1979), a política deve libertar o homem com sua ação de elucidar e
libertar cada indivíduo e os outros; assim, a política dialetiza a história, projeta-se na
edificação do mundo e provoca esforços de superação da consciência humana – a fim de
libertação. Para Morin (2003, p. 103), as ações da política são complexas, ultrapassam o local
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e o individual, têm dimensões planetária sendo “simultaneamente singular”, cósmico e


terrestre. Por isso “precisa do pensamento complexo para enfrentar problemas que implicam
incertezas e imprevisibilidades, interdependências e interretroações de extensão planetária”.
O que Freire (1979) e Morin (2003) enfatizam é um desenvolvimento humano que o
sujeito se reconheça em sua própria condição existencial, um fenômeno que não é dado
naturalmente e que não pode acontecer mecanicamente. Desenvolver-se para autonomia
requer educação para compreender a ciência do mundo e para compreender a si como ser
social.
A equação da autonomia rege que cada indivíduo em ação proporciona uma
comunidade de atitude. A ação comunitária é política para a liberdade, pois na auto-eco-
organização a dependência mútua é reconhecida para propor dialogicidade a fim de
transformação. Por isso, a ‘educação para a vida’ não é apenas pessoal, ela é coletiva para ser
pessoal, ela parte do todo para valorizar as partes desta organização que demanda autonomia.
Para Morin (2003, p. 58), “o principal objetivo da educação na era planetária é educar para o
despertar de uma sociedade-mundo”.
Portanto, a autonomia é um conceito social, além de individual, a ação das partes
depende do todo e retroagem no todo. Implica a compreensão existencial que propõe ação
coletiva para governabilidade de uma sociedade-mundo, e sobretudo exige um
posicionamento do sujeito enquanto protagonista de sua história.

Posicionamento

O conceito de posicionamento pode ser encontrado em Freire (1996, p. 23) com o


sentido da existência do sujeito no mundo, sendo esta uma escolha epistemológica, imbricada
em crenças, culturas e valores. Para Morin (2000, p. 47), posicionamento está relacionado
com a educação planetária, que desperta a sociedade para o mundo e resgata a relação do
homem com o universo; parte do questionamento humano de sua própria posição no mundo.
O homem sofreu evoluções biológicas e sociais ao longo do tempo para que esta
configuração que se conhece hoje fosse assumida. Entre a vida e a luta pela sobrevivência, a
humanidade transformou a natureza para melhor viver e o trabalho de elaborar a natureza se
ramificou progressivamente na técnica, cultura, sociedade e ciência.
A existência não significa apenas ser uma coisa na condição de existir ocupando um
lugar no mundo. Segundo Freire (1996, p. 10) o ser humano é presença no mundo, que
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reconhece a si mesmo; é presença que se pensa e intervém no mundo, que fala, faz e que se
posiciona.
As dimensões tecnológicas, culturais, sociais e científicas estão mais complexas no
século XXI. O avanço da eletrônica, a ampliação do conhecimento, a interconectividade
mundial pela internet e a manutenção da vida pela ciência são alguns dos sinais que apontam
para um homem que se posiciona duma maneira jamais vista no mundo.
Sobre esta nova postura humana, Morin (2000) aponta a necessidade de reforma do
pensamento. Afirma que enquanto sujeitos da própria história e corresponsáveis da condição
planetária é preciso considerar as incertezas, no sentido que o mundo por sua dinamicidade
oferece conhecimentos possíveis de transformação e reconceituação, o que somente é possível
devido ao poder de reflexão, ação, interpretação e modificação do mundo, inerentes ao ser
humano.
Neste aspecto, Morin (2014, p. 21) explica que o significado de uma “cabeça bem-
feita” está associado não a uma cabeça onde o saber é acumulado/depositado, mas sim a uma
capacidade intrinsecamente humana de organizar informações, conectá-las e resolver
problemas, a ponto de significar e ressignificar as aprendizagens vividas. Dessa forma a
educação formal necessita propiciar espaços para o diálogo, a crítica, a dúvida e a curiosidade
em resolver os problemas fundamentais de nossa condição humana.
A curiosidade, para Freire (1996, p. 13), é o estímulo da capacidade de se arriscar, de
aventurar-se. “É a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a
constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos
negativos do falso ensinar”, por isso a chama de “curiosidade epistemológica”. Morin (2000,
p. 40) atribui no sentido similar, enfatizando que a curiosidade é “a faculdade mais expandida
e mais viva durante a infância e a adolescência, que com frequência a instrução extingue”,
como Freire (1996) afirma que deve ser estimulada e despertada.
O sujeito se faz nas relações com o outro, se constrói a partir das tessituras que
estabelece entre os saberes, reflete as suas ações e experiências possibilitando assim a
mobilização frente ao processo ensino-aprendizagem. De acordo com Freire (1967, p. 51), ser
dominado por mitos e pela publicidade organizada é a grande tragédia do homem moderno,
que faz o homem renunciar cada vez mais a sua capacidade de decidir por si.
Freire (1996) e Morin (2000) implicaram uma educação que esteja além da
informação para valorizar a humanização. Por meio da reforma do pensamento o ser humano
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deve ocupar sua posição transformadora no mundo, para tecer sentido na complexidade de sua
constituição.
Portanto, o ser que reconhece a sua história de transformação é aquele capaz de
perceber a complexidade da vida, que ao refletir sobre sua própria existência interroga sobre o
lugar que ocupa e ‘no que fazer’, nesta posição. O homem no espaço e tempo se encontra e se
faz sujeito da ação, capaz de pensar as relações complexas desta existência e, portanto, não
lhe serve a detenção da informação, mais que isso, o homem necessita da sua ‘cabeça bem
feita’ que percebendo o mundo o interpreta para uma nova ação – com fins de transformação
e protagonismo, a partir de uma atitude dialógica.

Dialogicidade

Para Freire (1996, p. 17), “não há inteligibilidade que não seja comunicação e
intercomunicação e que não se funde na dialogicidade”. O autor descreve várias formas de
diálogo como: diálogo na dimensão igualitária, cultural, transformadora, instrumental,
solidária, significativa e equânime; estes compõem a dialogicidade mencionada. Em Morin
(2003, p. 37), dialógico tem o sentido de associação complexa que promove o sentido do
funcionamento do fenômeno.
Para Freire (1967, p. 7), o fundamental é que os homens se reconheçam a si próprios
como criadores de cultura. Os homens particulares e concretos percebem uns aos outros não
apenas pelo contato objetivo da realidade, senão como relação. Relação objetiva enquanto
contato com a realidade e relação de consciência social enquanto ato de linguagem que
comunica a intencionalidade subjetiva existencial. Assim, a relação humana produz a
sociedade e descobre na dialogicidade a sua capacidade de transformar o mundo, contribui
Freire (1967). A linguagem, alega Freire (1996), é uma criação humana que surgiu com a
possibilidade do homem inteligir o mundo.
Nesse aspecto, a linguagem é recursiva. Morin (2005) explica que a recursividade
são efeitos que se tornam causas. Assim, a linguagem que historicamente é uma criação do
homem para transformar a natureza (efeito), se torna, também, uma criação que transforma
(causa) o próprio homem.
Dialógico não significa conversar somente, senão, dialógico está para a capacidade
do homem compreender o mundo e comunicá-lo com fins de transformação. Portanto,
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dialógico é o processo em que a humanidade sana os antagonismos que surtem na realidade


de modo coletivo, é o princípio da transformação social.
A dialogicidade implica na condição humana de igualdade, ao que um pode ouvir e
falar com o outro, na relação que supera o antagonismo da compreensão do mundo para uma
nova organização. De outro modo, o antidiálogo é uma relação imposta de poder desamoroso,
não gera criticidade e é arrogante, disse Freire (1967): “o antidiálogo é opressor”.
Neste sentido a dialogicidade é ação, para Freire (1979, p. 47) é ação de libertação,
relacionando ação à práxis transformadora; pois “não se pode chegar à conscientização crítica
apenas pelo esforço intelectual, mas também pela práxis: pela autêntica união da ação e da
reflexão [...] não se pode impedir aos homens uma tal ação reflexiva”, afirmou Freire (1979,
p. 47). Morin (2000, p. 85) propõe uma ecologia da ação, aponta que “toda ação escapa à
vontade de seu autor”, assim alerta sobre as inter-retro-ações, pois a ação implica estratégia
para não retornar contra os seus atores.
A ‘educação para vida’ demanda dos estudantes a elaboração da sua dialogicidade,
que procura compreender o mundo dada a sua realidade como tal e progride em transformá-lo.
Esta ação não é solitária, senão pelo coletivo social que se dá na escola ao ampliar o modo
como se relaciona com o mundo. Ou seja, a transformação da sociedade se dá pela relação
que os sujeitos têm entre si, que só pode se organizar e acontecer pelo diálogo de
compreensão ao invés de ordenação.

Sem a pretensão de finalizar

O presente texto descreve um diálogo entre dois pedagogos sobre a teoria de Edgar
Morin e Paulo Freire, que dão sentido a valorização humanística que neste texto é chamada de
‘educação para a vida’. A investigação buscou traçar as principais conexões da obra destes
autores, para isso foram elencados dez conceitos pelo critério de similaridade semântica, a
saber: posicionamento, dialogicidade, consciência, autonomia, inacabamento, humanização,
ética, política, curiosidade e ação.
‘Educação para a vida’, em uma abordagem inicial, extrapola os muros de onde o
sujeito mora, dos grupos sociais que frequenta e da escola que participa. Trata-se de olhar o
sujeito na sua incompletude, no seu sentido de existência e valorar o seu desenvolvimento
biopsicossocial. É um olhar preciso, que vê mais do que o óbvio, o externo, e que
redimensiona o sujeito para trazer à tona a sua humanidade. Educação para a vida está na
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atitude coletiva para além da sobrevivência; e, aqui, destaca-se a generosidade, a comunicação


autêntica, a liberdade e respeito às expressões do ser e no conviver.
Freire e Morin, em suas obras, valorizam o sujeito em sua dimensão humana e
pensam em possibilidades de constante transformação para o mesmo. O primeiro num viés
político da ação educativa e o segundo numa perspectiva complexa de relações dialógicas.
Com este enfoque, a proposta da reflexão propôs um diálogo que identificou neles, e por meio
deles, aproximações humanísticas.
A ‘Educação para a Vida” empenha-se em mostrar à sociedade as possibilidades e
potencialidades de cada um reconhecer a sua existência, sendo seres únicos e sociais. Enfoca
as possibilidades de transformação a partir da autonomia que implica a auto-eco-organização
humana que se expressa nas condições políticas.
Reconhecer sua condição existencial é uma questão ética que requer transformações
por também se reconhecer inacabado, bem como a ciência. Assim, o inacabamento não
estagna, pelo contrário, conscientiza das potencialidades de ser mais e ir além no/do
desenvolvimento social.
As questões levantadas e discutidas resultam na compreensão que a sociedade se
organiza de forma complexa e uma ‘cabeça bem feita’ implica em romper com as
simplificações do mundo para conquistar e agir com liberdade, compreendendo a
complexidade da própria vida.
Longe do fim, este texto é uma tomada de posição de educadores que reconhecendo
o seu inacabamento, sua autonomia, sua responsabilidade ética e sua complexidade
existencial, se aplicam em educar para a humanização dos sujeitos, em que se concebe,
percebe e promove a organização do mundo a partir de si e do outro com posição na
sociedade-natureza-mundo, abrindo janelas para estudantes compreenderem a sua posição
planetária e por consequência, humana.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Conscientização. 3.ed. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 23. ed. Rio de Janeiro: Editora: Paz e Terra, 1987.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de


Janeiro: Editora: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz
e Terra, 1996.

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. ed. 6. São Paulo: Atlas, 2008.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília,
DF: UNESCO, 2000.

MORIN, Edgar. Educar na era planetária. São Paulo: Cortez, 2003.

MORIN, Edgar. Ciência e consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio
Dória. Rio de Janeiro: Bertrand, 2005.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução: Eloá
Jacobina, 21. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

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