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Apresentação

Temos finalmente o historiador Flávio Josefo publicado em Portugal.


Esta iniciativa é tanto mais digna de louvor quanto as obras originais dos
clássicos não abundam por aqui, preferindo-se os digests, as referências
generalistas e as sebentas académicas, pelo que, o que passa entre nós
sobre a Antiguidade (comparativamente com os outros meios europeus)
pode não ir além de um modesto saber liceal do séc. XIX. Contrariando
esta tendência portuguesa característica de uma civilização tradicional, a
Sílabo percorre esta via dos originais clássicos que, como nos noutros
países modernos, conduz o saber para muito longe da vulgaridade escolar.
A obra que o leitor tem entre as mãos é considerada pelos críticos
modernos como das mais fidedignas da Antiguidade, tanto mais que o
autor foi testemunha e interveniente dos factos. Vejamos a personalidade
do autor e a autenticidade da obra.
Flávio Josefo nasceu no ano 37 ou 38 d.C. Foi sacerdote judaico, des-
cendente de sacerdotes e da linhagem dos reis asmoneus. O seu verda-
deiro nome era Yoseppos filho de Matatias tendo adotado o nome Flávius
por gratidão aos imperadores Flávios. Aos 27 anos, a sua generosidade
para defender uns compatriotas deportados levou-o a Roma; ficou viva-
mente impressionado com a potência do Império tendo sido recebido pela
imperatriz Popeia que lhe deu presentes. Regressado à Judeia, deu-se com
a revolta dos compatriotas contra os romanos. Tendo ele apenas 30 anos
(Josefo gosta de frisar que os outros admiram a sua «juventude»), foi-lhe
confiada a defesa da cidade judaica de Jotapata. Suspeito para os romanos
e visto como colaboracionista pelos seus (como passou a ser depois), pro-
pôs-se como intermediário entre sitiantes e sitiados da sua cidade no sen-
tido da rendição. Sem sucesso: o ódio dos judeus por Roma pendia mais
para os suicídios coletivos do que para as conversações. Aqui começa a
brilhante carreira de um judeu muito pouco ortodoxo e nada patriótico, de
um advogado do Império e de um historiador fidedigno.
A presente obra foi escrita em aramaico em 76, imediatamente depois
da tomada do bastião de Massada pelos romanos (em 73), destinada aos
seus compatriotas; uma tradução em grego abriu-lhe as portas do mundo
romano. O autor fez-lhe seguir uma outra obra clássica sobre a história
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dos judeus – As Antiguidades Judaicas – que, até certa época, segue os


Livros Santos dos judeus (o Antigo Testamento) sendo entretanto mais
racional, mais historicista e mais etnográfica do que esses, o texto Contra
Apion e uma Autobiografia. Nesta gaba-se de ter recebido «muitas honra-
rias» de Vespasiano e de Tito seu filho. Domiciano, que sucedeu a Tito,
concedeu-lhe novas regalias e, diz ele,
até mandou cortar a cabeça a judeus que se haviam conluiado
contra mim, e a um escravo eunuco precetor do meu filho que era
desse número. Este príncipe acrescentou a tantos favores uma
marca de honra muito avantajada que é a de franquear todas as
terras que eu possuo na Judeia; e a imperatriz Domitia sempre
sentiu um prazer em me favorecer. Por esta autobiografia abre-
viada podereis julgar quem eu sou (...). Tito convidou-me a viajar
no seu barco. Vespasiano ofereceu-me morada no palácio que
habitava antes de ser imperador. Admitiu-me no número dos cida-
dãos romanos e deu-me uma pensão sem nunca me dispensar dos
seus benefícios, o que atraía muitos ciúmes por parte dos da minha
nação que me punham em grande risco. Um judeu chamado Jona-
tas que moveu uma sedição em Cireneia e recrutou contra mim
2.000 homens que foram todos severamente castigados, foi enviado
acorrentado de pés e mãos ao imperador por me ter acusado fal-
samente de lhe ter fornecido armas e dinheiro. Mas Vespasiano
não acreditou e mandou que lhe cortassem a cabeça. Deus livrou-
-me mais uma vez das falsas acusações dos meus inimigos e Vespa-
siano deu-me uma terra de grande extensão na Judeia.

Para além de ostentar uma notória vaidade, Josefo tomava-se por um


espírito profético e chegou a escrever que o espírito de Deus tomava
conta dele. Vespasiano é classificado de «admirável pai» e Tito «incom-
parável filho». Mas Josefo também traiu o Deus de Israel: «Deus assistiu»
aos romanos em Massada; «Vespasiano e Tito davam ordens ao Império
que Deus depôs nas suas mãos». Também se distancia abertamente da fé
bíblica e judaica: por exemplo, o deus Fortuna dos romanos dissimula-se
frequentemente sob as referências do Deus de Israel, um pode estar pelo
outro.
No entanto, estamos perante um historiador fidedigno. E também dos
mais controversos: muitos dos historiadores judeus antigos não o citam
enquanto os historiadores cristãos adularam-no ao ponto de o colocarem
em paralelo com os últimos Livros da Bíblia, os dois Livros dos Maca-
beus, a partir dos quais começa esta Guerra dos Judeus contra os Roma-
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nos. Eruditos cristãos há que até o consideram o «Quinto Evangelho»,


embora Flávio desconhecesse em absoluto o cristianismo nascente (pelo
menos neste texto que vai até aos anos 70, enquanto o único parágrafo
das Antiguidades onde é referido Jesus Cristo é considerado uma extra-
polação posterior e apócrifa). São Jerónimo (séc. IV, tradutor da Bíblia
para o latim) faz-lhes rasgados elogios, apesar de Josefo nunca se referir a
Jesus Cristo nem aos cristãos. Mas não admira: o cristianismo nascente
chegava a confundir-se, simplesmente, com anti-judaísmo.
Flávio Josefo fascina tanto pela precisão dos relatos e pela exata des-
crição do heroísmo dos resistentes e sitiados como pela tendência em
negar o direito ao território destes últimos que classifica como bando de
rufiões, bandidos, loucos, sicários (mercenários) e nunca revolucionários,
resistentes, nacionalistas, patriotas, etc., que é o que esses eram.
O autor apresenta-se como um relator-historiador e, simultaneamente –
com toda a abertura de espírito e naturalidade – como um vendido ao
inimigo. As qualidades do historiador são comparáveis com o descara-
mento da traição; não só se passou para o lado do inimigo como se revela,
em muitos dos seus comentários, como um propagandista de Roma (devia
ter havido algures muitos outros indígenas obcecados pelo brilho de
Roma).
Para abarcar a personagem do historiador fidedigno e do traidor, o lei-
tor poderá começar pelo Livro III, Cap. VIII: Josefo, governador da
cidade de Jotapata que não se rendeu e foi ocupada pelos romanos, refu-
giou-se numa gruta com os últimos resistentes, «40 pessoas de distinção»,
à espera de se entregar pessoalmente:
Sendo [eu, Josefo] intérprete de sonhos e hábil em adivinhar as
ambíguas sentenças da Divindade, sendo sacerdote e descendente
de sacerdotes, não ignorava as profecias dos livros sagrados.
Proferi esta oração a Deus: “Dado que vos agrada, a Vós que
haveis criado a nação judaica, destruir a Vossa obra – pois toda a
fortuna passou para os Romanos – e dado que haveis escolhido o
meu espírito para anunciar o que está para acontecer, render-me-
-ei de bom grado aos Romanos e consentirei viver. Mas tomo-Vos
como testemunha de que não me entrego como traidor e sim como
Vosso ministro”.
E preparou-se para se entregar aos delegados que Vespasiano enviara
para o levarem como «prisioneiro ilustre». Mas os companheiros que com
ele estavam lembraram-lhe todos os seus discursos em que apregoava a
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morte pela liberdade («Como te esqueceste depressa a ti próprio!») e,


com as espadas apontadas à garganta do chefe, propuseram-lhe ou o sui-
cídio honroso ou a morte às suas mãos como traidor. E, depois de um
longo discurso para dissuadir os companheiros de se suicidarem e de
matarem o chefe como traidor, «...Nem naquele momento o meu engenho
me abandonou. Confiando na proteção de Deus» [propôs-lhes]: «Já que
estamos decididos a morrer, que a sorte decida a ordem pela qual nos
mataremos: para evitar o suicídio (que seria contrário à vontade de Deus)
aquele a quem a sorte tocar primeiro cairá às mãos do seguinte, e o
último, então, suicidar-se-á». Ele próprio tirou as sortes: o primeiro ofere-
ceu a sua garganta ao segundo, este ao terceiro, o terceiro ao quarto... até
que (pela Fortuna dos romanos ou pela providência do Deus de Josefo?)
Josefo ficou em penúltimo e persuadiu o último a poupá-lo e a não se sui-
cidar.
O homem a quem não faltava «engenho» e que organizou a tiragem fez
bem as contas, diríamos nós. E assim sobreviveu à guerra contra os
Romanos e à vingança dos seus compatriotas, aliás, frequentemente divi-
didos (diz ele noutro momento «o que é bom, porque é bom que os maus
se destruam reciprocamente»). Depois deste embuste cobarde (tendo-se
os companheiros suicidado) foi levado a Vespasiano a quem convenceu
de que era um profeta («havia previsto a queda da cidade de Jotapata de
que era governador, ao fim de 47 dias de cerco, e que ele próprio seria
capturado vivo pelos romanos). Vespasiano passou a honrá-lo com corte-
sias, bondades, e trajes de distinção. Foi o princípio de uma longa carreira
de civis romanus.
Este relato do traidor abona em favor do historiador. O método da tira-
gem à sorte foi idêntico ao do suicídio coletivo na fortaleza de Massada,
perto do Mar Morto, pelos últimos resistentes (960 homens, mulheres e
crianças) com que acaba a Guerra dos Judeus contra os Romanos. Mas,
neste caso, sem traições. Este suicídio final foi autenticado pelos arqueó-
logos modernos que encontraram os vestígios do incêndio lançado pelo
último da lista, e onze cacos com os nomes dos chefes militares – entre os
quais o de Eleazar ben Yair, o comandante – e que parecem ter servido
para a tiragem à sorte da ordem dos suicidas.
Esta Guerra representa a última mecha de esperança da soberania do
povo judeu sobre o seu território. Os romanos fizeram grande brado da
sua vitória. E ficou testemunhada num baixo-relevo do Arco de Tito, em
Roma, que mostra a entrada triunfal dos despojos – o tesouro do templo
de Jerusalém que incluía o gigantesco candelabro de ouro puro (emblema
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do povo judeu), as trombetas de ouro, a Mesa dos Pães da Proposição


(para os sacrifícios), a cópia escrita da lei judaica, levados para o templo
romano de Júpiter Capitolino; ao cortejo seguiu-se a execução em público
de um general capturado. Atrás das insígnias capturadas seguia Vespa-
siano e Tito e, ao seu lado, Domiciano «magnificamente trajado e mon-
tado num cavalo que era digno de se ver», diz o historiador (e traidor)
Josefo. Vespasiano, para celebrar esta vitória, até cunhou uma moeda
(ano 71 d.C.) que mostra um legionário a guardar uma mulher sentada
sob uma palmeira com a legenda Judea Capta (judeia capturada). Tudo
isto para dizer que Roma-a-Grande considerou retumbante a sua vitória
sobre a minúscula Judeia. O judaísmo já era um símbolo.
Os relatos do historiador são verdadeiros, os juízos de valor é que não
o serão. Os longos discursos que ele transcreve serão, literalmente, sus-
peitos mas, em contrapartida (e será essa a sua função), servem para defi-
nir a ideologia e as motivações daqueles a quem são atribuídos.
O historiador Josefo só errará quanto às motivações dos resistentes.
Mas é como um ajuste de contas com o judaísmo, tanto mais estranho
quanto ele também escreveu as apologéticas Antiguidades Judaicas, sem-
pre gozou dos favores dos seus correligionários até ao momento da trai-
ção e de quem foi um líder. A vaidade e o fascínio das luzes de Roma é
que perderam o cidadão judeu.
Esta Guerra dos Judeus Contra os Romanos não é apenas um livro
sobre massacres de aldeias e cidades resistentes. Perpassa por estes rela-
tos o desespero de um povo que ia perder definitivamente o poder sobre o
seu território («liberdade ou morte!»). No entanto, estas cruas descrições
também aqui estão para o autor poder justificar a sua traição (se se ren-
dessem como ele nada disso aconteceria). Também perscrutamos aqui a
desorientação cultural do povo da Palestina, os movimentos vários que o
atravessavam; a conceção de um Templo de Jerusalém a servir de polo de
atividade política, militar e económica (tesouro público, etc.); vemos
rastos de alguma xenofobia por parte dos judeus e, sobretudo, as afirma-
ções de um messianismo face à Besta do Apocalipse, que era o Império (o
livro do Apocalipse foi escrito por volta do ano 95). O cristianismo foi
um produto deste desespero e deste messianismo. Sentimos sobretudo o
ódio anti-judaico com progroms no Líbano e na Síria, e tendências de
genocídio no Egito – neste momento em que emergia o cristianismo na
Síria e na Palestina. Não tenhamos dúvidas (embora isto não seja muito
dito): este feroz anti-judaísmo oriental, mediterrânico e romano contri-
buiu para o triunfo do cristianismo – até ao fim da Idade-Média.
20 A Guerra dos Judeus

Note-se, finalmente, o discurso de Eleazar, defensor de Massada, para


encorajar o suicídio coletivo dos resistentes que marca o fim desta Guerra
dos Judeus Contra os Romanos: o recurso à crença na imortalidade da
alma. Essa crença não é judaica; não aflora no Antigo Testamento (só
eventualmente nos Livros dos Macabeus que são tardios mas não inte-
gram o Cânon Judaico). O judeu Eleazar não apelou à Bíblia – que não o
podia ajudar neste caso – mas à «filosofia dos indianos» (até pergunta:
«Não nos envergonha sermos inferiores aos indianos»?). Podia ter dito
hindo-budistas. De facto, a crença na imortalidade da alma (e a melhoria
existencial que a morte inaugura como sugere Eleazar) começou a des-
pontar pouco antes desta época entre os judeus heterodoxos, mas fora dos
cânones teológicos do Antigo Testamento. Também aqui se revê o cris-
tianismo nascente que, comparado com as antigas religiões, só tem
semelhança com o indo-budismo; segundo alguns, até tem origem nesse
sistema. Foi esta crença na imortalidade da alma – uma novidade da
época – que fez despoletar as longas listas de mártires cristãos (alguns,
quase suicidas, provocadores) que se seguiram desde este século.
Este livro de Flávio Josefo pode ser lido sob múltiplos ângulos.

Moisés Espírito Santo


Professor Catedrático de Sociologia
Universidade Nova de Lisboa

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