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A NOÇÃO DE “OBSTÁCULO

EPISTEMOLÓGICO”
E A EDUCAÇAO MATEMÁTICA

Sonia Barbosa Camargo Igliori

A ciência não foifabricada para ser ensinada, ela


tem seus meandros próprios que são, como diz o add-
gia, de compreender o mundo e de o transformar
(Radford, 1997)

Ce qui est objet dknseignemcnz n'a que la force que


lui prête celuí qui est enseigné
(Francisco Sanches›l541)

Este texto tem por objetivo apresentar algumas


considerações sobre a noção de obstáculo epistemoló-
gico e suas relações com a didática da Matemática.
Foi elaborado recuperando, de forma sintética, alguns
dos enunciados apresentados por pesquisadores de
Educação Matemática. Com certeza, o assunto é por
demais profundo e polêmico, para que se atinjam as
diversas visões existentes. Procuramos destacar al-
guns pontos que julgamos essenciais para um primei-
j

ro contato. Assim, organizamos o texto em três partes:


numa primeira expomos mais geralmente as questões

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sobre o relacionamento entre Epistemologia c Didáti- A epistemologia e a didática
ca; numa segunda apresentamos a noção de obstáculo
epistemológico e suas influências na pesquisa em De uma maneira bastante simplificada podemos
Educação Matemática e numa terceira exploramos dizer que a Epistemologia é o ramo do saber que se
pontos de vista dos pesquisadores sobre o tema e al- interessa por questões tais como:
guns exemplos. O que é o conhecimento?
É importante ressaltarmos
que a Educação Ma- Como se processa o conhecimento?
temática que, praticamente, tem três décadas de exis- Qual a natureza dos objetos que compõem uma
tência está em fase de constituição e seus fundamen- determinada ciência (a Matemática, por exemplo)?
tos estão sendo constantemente revistos.” É neste con- Em que sentido a Matemática é, ao mesmo tem-
texto que se coloca a importância do relacionamento po, um conjunto de ferramentas e um conjunto dc ob-
Epistemologia e Didática da Matemática. Conhecer os jetos?
debates em tomo desta questão e tomar contato com Qual é a natureza e a função de um novo con-
as pesquisas recentes é fundamental para os pesquisa- ceito, um novo procedimento, um novo tipo de
ra-
dores da Educação Matemática e para todos os que se ciocínio, uma nova representação na história da Ma-
dedicam ao ensino da Matemática. temática?
É intuito deste texto despertar Qual deve ser o relacionamento entre novas
a atenção para
esse ponto essencial a ser conhecido e tornado como competências e concepções matemáticas e os proble-
parâmetro para o estudo dos problemas do ensino/ mas práticos ou teóricos de modo a toma-los úteis e
aprendizagem da Matemática. As dificuldades encon- significativos?
tradas no ato de ensinar Matemática e a necessidade A Epistemologia tem muitas facetas: pode
ser
social da busca de caminhos que possam diminui-las histórica, filosófica, social ou psicológica.
é um incentivo para o desenvolvimento da pesquisa Numa perspectiva gonsethiana, isto é, aquela em
em Educação Matemática. que a construção do conhecimento pode ser conside-
rada ou segundo uma estratégia de fundamentos ou
1. Os primeiros passos da educação científica foram dados segundo uma estratégia de engajamento, Bkouche
no início do século 19 com as reformas ocorridas nas Uni- (1997) distingue três aspectos da Epistemologia, que
versidades protestantes da Prússia. Dois grandes momen-
consideramos importante citar aqui. São eles:
tos marcam a história do ensino científico no século 20: o
A epistemologia dos fundamentos
ano de 1900, e os anos entre 1960-1970 nos quais acon-
tece renovação profunda no ensino da Matemática e da Fí- põe ao estudo das condições de legitimação - quedaseativi-
pro-

SICH. dade científica.

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A epistemologia do funcionamento que se pro- futuro matemático ou ainda o de formar um cidadão
-
põe à análise dos procedimentos, baseando-se menos para o qual a Matemática é um instrumento.
Um outro aspecto para o qual é interessante cha-
nos fundamentos de um conhecimento que em seus
significados, quer sejam num plano técnico ou num mar a atenção nesta apresentação é o processo de am-
pliação que sofre a Epistemologia. Para isto aprovei-
plano conceitual.
A epistemologia das problemáticas que se pro- tamos algumas reflexões feitas por Gascón (1993).
-
põe a analisar como os problemas, que têm conduzido
Depois do esgotamento do empirismo clássico,
surgiram duas escolas de pensamento: o empirismo
o homem a produzir o conhecimento científico, mo- lógico de Carnap, que afronta essencialmente o pro-
delaram as teorias inventadas para resolver estes pro-
blema dos fundamentos do conhecimento, com o que
blemas. constitui a lógica da justificação (ou avaliação formal
No que se refere à epistemologia da Matemática, de teorias); o racionalismo crítico de Popper que
citamos as abordagens de Vergnaud (1990) em: afronta o problema do conhecimento científico, com o
- o estudo do conhecimento matemático a partir problema do método: a lógica da descoberta.
das reflexões espontâneas dos próprios matemáticos Com a “Lógica da investigação científica”, a
sobre a natureza de seu conhecimento e dos processos epistemologia clássica sofre primeira ampliação e isto
de invenção e de descoberta; se dá ao mostrar a interconexão, ou dependência mú~
- a perspectiva histórica, para entender os am- tua, entre o problema do método e o problema do de-
bientes sociais e científicos em que novos conceitos e senvolvimento do conhecimento científico. (Lakatos,
técnicas da Matemática emergiram e se desenvolve- 1977)
ram; A epistemologia clássica, centrada em análises
- aincorporação do embate matemático-filosófi- dos fundamentos do conhecimento científico, pressu-
co sobre os fundamentos da Matemática, que incluem punha e propugnava implicitamente um modelo trivi-
o logicismo, o intuicionismo, o formalismo, o cons- al (“tosco" e “enganoso” como dizia Popper) do des~
trutivismo entre outros. envolvimento do conhecimento científico e da própria
A epistemologia da Educação Matemática, por atividade científica, interpretando a Ciência como
sua vez, desenvolve-se em consonância com campos uma acumulação linear e contínua das descobertas
distintos, tais como a própria Matemática, a Psicolo- mais ou menos individuais.
gia e outros, pois a Educação Matemática se dá em Em contraposição a este modelo ingênuo, as in-
vestigações histórico-epistemológicas contemporâneas
uma determinada sociedade, em uma determinada ins-
tituição, em uma determinada sala de aula, e com ob- têm defendido modelos diversos do mecanismo do
desenvolvimento do conhecimento científico, propug-
jetivos diversos como, por exemplo, o de educar um

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nando que, ao largo de tal desenvolvimento, se produ- bém a necessidade de uma ampliação radical da
pro-
zem mudanças muito importantes e inesperadas no blemática didática que inclua,
como objeto de estudo,
campo dos_ problemas, das técnicas pertinentes para as transformações que sofrem os conhecimentos ma~
estuda-los, das teorias (que interpretam os problemas, temáticos a serem ensinados e os modelos mais
ou
justificam as técnicas e integram uns e outros em um menos explícitos do saber matemático que são cons-
modelo mais compreensivo) e das próprias regras do truídos inevitavelmente antes de serem incluídos
jogo científico. em
um processo didático e que continuam evoluindo ao
No caso específico da Matemátilca, um dos pri- largo deste processo.
meiros trabalhos de Lakatos consistiu em esboçar um Brousseau (1983) acredita que
modelo de desenvolvimento da matemática informal
uma boa teoria
epistemológica acompanhada de
uma boa “engenharia
que põe em destaque a unidade intrínseca entre a "lo- didática" são indispensáveis para responder muitas
gica da descoberta” e a “lógica da justificação” ini~ das questões que têm sido colocadas
ciando no caso a ampliação da epistemologia propug- para a pesquisa
em didática da Matemática. :Questões como: os sabe»
nada por Pepper. res advindos de disciplinas .fundamentais permitem,
A conseqüência mais importante desta amplia~ *sem modificações e independentemente
uns dos ou-
ção consiste em esboçar a dependência mútua entre a tros, explicar os fenômenos do ensino? E
estes sabe-
epistemologia e a história da ciência, sem negar para res produzem de maneira controlada as modificações
ela sua autonomia relativa. que se desejam realizar neste ensino? Ou, ao contrá~
Gascón (1993), na perspectiva de Lakatos, con- rio, é preciso criar conceitos
novos, um campo de co-
sidera que a epistemologia da Matemática expõe os nhecimentos e métodos adequado
para estudar as si»
modelos do desenvolvimento do conhecimento mate- tuações didáticas? Existe uma “variante didática” dos
mático corn a ajuda do qual o historiador da Matemá- conceitos de sentido, de estrutura, de decimal,
tica reconstrói a “história interna" e constitui, deste desconhecida na Lingüística,
cte,
na Psicologia, na Mate»
modo, uma explicação racional do desenvolvimento mática?
do conhecimento matemático. Por sua vez, os mode- Ele considera também que a análise epistemoló-
los epistemológicos podem ser avaliados com ajuda gica permite a um pesquisador da Educação Matemá»
dos dados históricos. Por fim, toda reconstrução raci- tica a identificação de obstáculos, entre
as dificulda~
onal necessita ser completada com uma “história ex- des detectadas no
processo da aprendizagem.
terna" (sociopsicológica). Para Artigue (1995), a análise epistemológica
Gascón (1993) defende em seu artigo a necessi- ajuda um didata a manter, à distância e sob controle,
dade de uma nova ampliação da epistemologia da as “representações epistemológicas" da Matemática,
Matemática, Do lado da Didática ele propugna tam- (representações que são forjadas neste domínio do C0--
nhecimento por um indivíduo através de sua própria_ zação de novos conhecimentos, em sua prática docen-
vivência matemática), induzidas pelo ensino: ajudan- te. Diz ele: “No cruzamento entre a militância e a ci-
do-o a contextualizar historicamente os conceitos ma- entificidade, um entusiasmo justificado leva a um cer-
temáticos que o ensino usual tende a apresentar como to estado de espírito de proselitismo, de proselitismo
objetos universais, às vezes no tempo e no espaço; necessário na medida em que permite aos professores
ajudando-o a dar historicidade às noções da metama- interessar-se pelos aspectos históricos' das disciplinas
temática como é o caso do rigor, uma vez que este que eles ensinam, ou seja, a maneira pela qual ela foi
mesmo ensino cultiva a ficção de um rigor eterno e construída e como se desenvolveu até o estado atual.
perfeito da Matemática. Proselitismo perigoso, porém, desde que ele leve a
Para ela, a análise epistemológica coloca em evi- procurar, na história da Matemática e na reflexão
dência a evolução ao longo do tempo da noção de ri- epistemológica que a acompanha, as condições que
gor, sua dependência dos domínios matemáticos con- deverão permitir, enfim, o sucesso do ensino da Ma-
cernentes e do nível de elaboração que ele manipula. temática".
Permite igualmente, ao didata, medir as disparidades-
âiistggtes entre o “Lsabçr sábio" e o “sabenasercenshm A noção de obstáculo epistemológico
na
Educação Matemática
A concepção de Bachelard (1938), de que o de-
senvolvimento do pensamento científico se processa E principalmente na noção de obstáculo que se
introdução da noção
na superação dos obstáculos, e a ..__..c..._.i___

pode perceber a interdependência entre Epistemologia


de obstáculo epistemológico contribuíram para desen-
e Didática.
volver um relacionamento maior entre a Epistemolo- A noção de obstáculo epistemológico tem sido
gia e a Didática. utilizada principalmente pelos didatas franceses em
As considerações feitas até agora podem dar ao
suas investigações em Educação Matemática.
leitor uma idéia da ordem de complexidade das ques- Esta noção, de obstáculo epistemológico, foi in-
tões que envolvem a relação Epistemologia e Didática troduzida na Didática da Matemática por Brousseau
da Matemática. É preciso que se analise com cautela
de conheci- em 1976 e foi inspirada nas idéias do filósofo francês
a interdependência destes dois campos
Bachelard apresentadas em 1938.
mento.
Um obstáculo de origem epistemológica é ver-
Algumas reflexões de Bkouche (1997) a propó-
sito da corrente que defende uma perspectiva histórica dadeiramente constitutivo do conhecimento, é aquele
de alerta para a do qual não se pode escapar e que se pode em princí-
para o ensino da Matemática servem
atitude a ser tomada pelos professores diante da utili- pio encontrar na história do conceito.

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A noção de obstáculo pode ser utilizada tanto C3 Pcmañecô. para o historiador,
um fato. Para o epis-
para analisar a gênese histórica de um conhecimento temómãm .é um ObSÍÉCUÍO, um contra-pensamento”.
como o ensino ou a evolução espontânea do aluno. O epistemologo deve triar
os documentos reco-
Pode-se portanto pesquisar os obstáculos epistemolóv lhidos pelo historiador e Julgá-los do ponto de
_

vista da
gicos a partir de uma análise histórica ou a partir de razao evoluída; é somente nos nossos dias que pode-
dificuldades resistentes entre os alunos procurando mos plenamente julgar os erros do passado espiritual.
confronta-las. Questionar quais são as funções reservadas
ao
A noção de obstáculo como constituinte do pen- didatae possibilitar a caracterização do status episte-
samento científico apareceu, pela primeira vez, mologico do saber escolar.
em 1938 com o epistemólogo francês Gaston de A História da Matemática tem sido
utilizada
Bachelard, em seu livro: “A formação do espírito ci- nuãn cgntexto de ensino, já desde o fim do século
entífico". Neste livro, o autor se propõe a mostrar o pas-
sa o. o entanto a ideia de analisar o conhecimento
destino grandioso do pensamento científico abstrato. matemático numa perspectiva histórica
Ele propugna ai' que é em termos de obstáculos que se para obter a1_
gumas luzes de como se dá o processo de construção
assenta o conhecimento científico, que é no ato mes- do conhecimento pelos estudantes só
tomou força nos
mo de conhecer que aparecem, por uma espécie de “mm” Vmte 31108, muito em função dos estudos de
necessidade funcional, as perturbações e as lentidões, Bachelard.
nas quais se mostram as causas de estagnação e de BUm dos pioneiros no tratamento dessa questão
inércia do pensamento, as quais ele denomina obstá- foi rousseau. Em 1976, ele expõe pela primeira
_

culos epistemológicos. Um obstáculo epistemológico vez,


numa conferência no XXVIII encontro do Cieaem'
se incrusta no conhecimento não questionado. Os obstáculos epistemológicos
e os problemas em
Para Bachelard, a noção de obstáculo epistemo- Matematica”, conferência essa que resuha
em seu
lógico pode ser estudada no desenvolvimento históri- W180 com mesmo titulo publicado
em 1983. Ele in-
co do pensamento científico e na prática da educação, ;mfílzg “este mOmCDIO, a noção de obstáculo
episte-
não sendo este estudo cômodo em nenhum dos dois tAO ogicdo como sendo aquele obstáculo ligado à resís~

casos, pois a história é »por princípio hostil a todo jul- emma e um Saber maLadaPÍadQ no sentido de
gamento normativo. Bachõlâfd, e o vê como um meio de interpretar alguns
Bachelard distingue bem as funções do historia- dos erros recorrentes e não aleatórios
cometidos pe-
dor das ciências e o epistemólogo, dizendo que o pri- 105 estudantes,
quando lhes são ensinados alguns tópi~
meiro toma as idéias como fatos e o segundo deve to- ãosga Matemática. concepção dessa noção, segun-
mar os fatos como idéias inserindo-os num sistema de ° TOUSSÉaU» permite mesmo mudar o estatuto do
pensamento. "Um fato mal interpretado por uma épo- em) Comeüm P610 aprendiz, pois evidencia que

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o erro nao é somente o efeito da ignorância, da incerteza, do
acaso, como se crê nas teorias empíricas ou behavioristas da
deve) adaptar-se localmente, modificar-se, otimizar-se
aprendizagem, mas o efeito de um conhecimento anterior, num campo reduzido, seguindo um processo de aco-
que tinha seu interesse, seus sucessos, mas que agora se re- modação bem conhecido.
vela falso, ou simplesmente mal adaptado.
Brousseau distingue três tipos de obstáculos que
se apresentam no sistema didático: os de origem on-
Os conhecimentos sobre as relações entre
os nú- togênica, que são aqueles que se processam a partir de
meros naturais constituem, por exemplo, obstáculos limitações de ordem do tipo neurofisiológicas entre
para 0 conhecimento dos números decimais. A afir- outras, do sujeito, no momento de seu desenvolvi-
mação “o quadrado de um número é
sempre maior mento; os de ordem didática que dependem somente
que ele” pode ser considerada como máxima pelos das escolhas realizadas para um sistema educativo; e
alunos.
os de ordem epistemológica, que são aqueles dos
O que é característico deste tipo de
erro é que quais não se pode nem se deve escapar, pois são cons-
ele está~ligado a uma maneira de conhecer,
a uma titutivos do conhecimento visado.
concepçao característica, coerente e mesmo correta, Analisando a epistemologia dos números negati-
a um conhecimento antigo que teve sucesso
em todo vos, por exemplo, Glaeser (1981) utilizou os termos
um domínio de ação. Estes erros não são forçosamen- obstáculo, dificuldade, barreira e sintoma, de maneira
te explicitáveis, e' preciso uma ação consciente dos di-
ingênua, por estar convencido de que era prematuro
datas para que eles venham à tona,
fechar estes conceitos em formulações muito rígidas.
Dizia que um dos objetivos mais importantes da didá-
Algumas visões sobre a noção tica da Matemática é o de determinar os obstáculos
de obstáculo e exemplos
que se opõem à compreensão e à aprendizagem desta
ciência. Dizia ainda que apesar de muitos mate-
A utilização da noção de obstáculo epistemoló- máticos, como ele próprio, terem feito tentativas de
gico tem criado controvérsias entre os pesquisadores
cercar, de precisar e de dar nuanças em Matemática à
de Educação Matemática, considerando-se a dificul- noção de obstáculo epistemológico introduzida por
dade apresentada no reconhecimento de tal obstáculo Bachelard, acreditava no entanto que, só após o des-
e, em conseqüência, as diferentes conceituações que envolvimento de numerosos trabalhos, é que se seria
se pode a ela atribuir.
capaz de analisar as diferentes concepções de obstácu-
Para Brousseau o obstáculo e' constituído como lo e de julgar as distinções pertinentes e úteis para o
um conhecimento, com os objetos, as relações, os mé- desenvolvimento da didática da Matemática.
todos_ de apreensão,
com as evidências, as ramifica- Para Duroux (1982), um obstáculo é um conhe-
ções imprevistas. Ele vai resistir, ele tentará (como se cimento, uma concepção, não uma dificuldade ou fal-

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o que fundamenta, de alguma maneira,
ta de conhecimentos. Este conhecimento produz res- o obstáculo episte-
mológico é mais a aparição e a resistência
postas adaptadas num certo context.o freqüentemente na história de cer-
tos conceitos, bem como a observação de
concepções aná-
reencontrado. Mas ele engendra respostas falsas fora logas entre os alunos, do que
a constatação da resistência u
deste contexto. Como, por exemplo, o problema de SC estes conceitos entre os estudantes da atualidade.

atrelar os números decimais às medidas leva os estu-


Ela se posiciona para além da identificação dos
dantes a pensar neles como uma simples mudança de
obstáculos na história ou na aprendizagem de tal
unidades. Por exemplo a unidade 3,25 m é pensado ou
tal noção, mas antes
numa busca de identificação de
como 325 cm expresso em metros. processos produtores de obstáculos em Matemática,
Numa pesquisa diagnóstica, que realizamos 00m Ela cita como exemplo destes processos: ,generali-
alunos do terceiro grau (Igliori e Silva, 1998), pude- a
zação abusiva, a regularização formal abusiva; fi-
mos encontrar alguns dos aspectos apontados por xação sobre uma contextualização
a
ou uma modelizci-
Brousseau e reforçados por Duroux como, por exem- ção familiares; a aderência exclusiva um
a ponto de
plo, a incapacidade de encontrar um número decimal vista.
entre 3,25 e 3,26. O estudante diz nessa pesquisa que Analisando o exemplo apresentado
por Brousseau
o “sucessor” de 3,14 é 3,15, numa nítida transposição de que o conjunto dos naturais é obstáculo
para a
do conceito de sucessor, conceito esse existente no aprendizagem do conjunto dos números decimais diz
contexto dos números naturais e transposto para os Artigue: na realidade o que parece plausível atribuir
números decimais. Outro obstáculo cujas característi- a N (conjunto dos naturais) o estatuto de obstáculo
epistemológico em relação a D (conjunto dos deci-
cas se encaixam nas apresentadas por Duroux é o da mais), porque se apercebe, no funcionamento destc
“concepçãd” de que "multiplicar sempre aumenta e
obstáculo, a manifestação de um
dividir sempre diminui”. processo que tem se
revelado historicamente gerador de obstáculo:
Um ponto de vista que vale a pena ressaltar aqui a gene-
ralização abusiva.
e'
o de Artigue (1990), que faz o seguinte questiona- Como exemplos de resultante do
mento: para se conferir o estatuto de obstáculo episte- processo da re-
gularização formal abusiva, ela a resenta erros do
mológico em didática é essencial fornecer a ele o (a+b)2
atestado histórico das dificuldades zmálogas?
tipo: :a2 +192 ou sla+b ZJÍÉ+JE.
Um momento de exposição das controvérsias
Analisando um trabalho sobre a epistemologia sobre a noção de obstáculo epistemológico
está regis-
da noção de limite, Artigue (1990) de uma certa for- trado num debate entre Brousseau Glaeser
(1984).
e
ma responde essa questão por ela mesma colocada A noção de obstáculo está
em fase de se consti-
quando expõe sua impressão: tuir e de se diversificar na Educação Matemática. Por-

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tanto, não é fácil dizer generalidades pertinentes a res- goritmos maravilhosamente simples que permitiam
peito dessa noção. É melhor analisar casos. Muitas vulgarizar totalmente a contabilidade comercial.
das contribuições dos pesquisadores foram nessa dire- A concepção dos racionais e dos decimais como
ção, na análise de casos. Por isto, achamos oportuno razões, ou ainda como operadores lineares sobre Q
apresentar ainda o exame de outros exemplos encon- (conjunto dos racionais), constituem-se na história em
trados na literatura, para situar melhor o leitor. um grande obstáculo epistemológico para a conceitu-
As noções de números, de função, de limites são ação dos números. Havia uma atrelagem dos números
noções que causaram obstáculos persistentes no pro- decimais às medidas de grandezas.
cesso de construção e continuam a causar no processo Outro exemplo exposto na literatura é o obstácu-
de aprendizagem, e por esta razão têm sido analisadas lo gerado pelo algoritmo euclidíano da divisão entre
por diversos pesquisadores. os inteiros, veiculando a idéia de que o dividendo
A noção de número, por exemplo, foi sendo ela- deve ser maior que o divisor.
borada num processo de enfrentamento de obstáculos. Glaeser (1981) se propõe analisar os obstáculos
É o caso, por exemplo, da conceituação dos números existentes no estudo dos números relativos. Diz ele
negativos, da introdução do número zero, da cons- que a construção dos números negativos foi de uma
cientização da existência de um número irracional, do lentidão surpreendente (1500 anos, de Diofante a nos-
número imaginário. sos dias), mas que este fenômeno parece ter escapado
Brousseau (1983), num retrospecto histórico do da análise de muitos historiadores. Destaca ele que,
ensino dos decimais na França, diz que a “vulgariza- em geral, também os didatas davam pouca atenção
ção” dos decimais se tornou um problema e que fo- para as dificuldades existentes na aprendizagem da re-
ram necessários dois séculos para se dar o primeiro gra de sinais. Como por exemplo, o trabalho de Hans
Freudental, que examina as dificuldades ligadas à
passo.
Ele destaca alguns dos aspectos da dissemina- aprendizagem dos números, dá pouco destaque as re-
ção, através do ensino, do conceito de decimal, os lacionadas à regra dos sinais. Segundo ele estas regras
são geradoras de muitas dificuldades na aprendiza-
quais expõem de que maneira foram sendo forjadas
muitas das dificuldades encontradas até os nossos gem.
dias. Numa edição de 1784, escrita pelo abade Bossut, Em seu artigo Glaeser seleciona, através do es-
tudo do trabalho de dez autores (Diofante, Stevin,
os decimais são apresentados como sendo um inteiro
Descartes, Mac Laurin, Euler, d'Alembert, Camot,
com vírgulas, servindo para representar as medidas.
Nesta edição, o aspecto fração decimal é relegado a Laplace, Cauchy e Hankel), seis obstáculos que apa-
um apêndice. Uma fratura se anuncia aí entre as fra- receram na constituição dos números relativos: inap-
ções decimais e os “decimais populares” aqueles al- tidão para manipular as quantidades negativas isola-

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das; dificuldade de dar um sentido às quantidades ne- que os números positivos colocam no aparecimento
gativas isoladas; dificuldade de homogeneização da dos números negativos não é
um problema intrínseco
reta numérica; a ambigüidade dos dois zeros zero do conhecimento, depende de
absoluto e zero origem; a estagnação no estágio - das características locais
idéias culturais sobre ciência, matemática,
seus obje-
operações concretas (por oposição ao estágio das tos e métodos.
operações formais), ou seja, a dificuldade de se afas- Um outro exemplo estudado
por vários pesqui-
tar de um sentido “concreto" atribuido aos entes nu› sadores é o conceito de limite.
méritos; desejo de um modelo unificante: isto e', por O conceito matemático de
limite é uma noção
exemplo, 0 desejo de fazer funcionar um “bom " mo› particularmente difícil e tem
delo aditivo (da perda e do ganho), uma posição central ein
para o domínio todo estudo da Análise e Matemática,
como funda
multiplicativo. mento da teoria da aproximação, da continuidade do
Glaeser faz notar que o modelo comercial, que e
Cálculo Diferencial e Integral. As dificuldades
facilita a compreensão da adição dos relativos, é um na
aprendizagem deste conceito têm sido objeto de
obstáculo para a multiplicação, di-
As análises epistemológicas das dificuldades en« versos trabalhos da Educacão Matemática.
O de Cornu (1981) e' um deles. Em
centradas na institucionalização dos números negativ seu trabalho,
a noção de limite foi historicamente introduzida
vos no decorrer dos tempos c das encontradas por para
resolver principalmente: problemas
nossos alunos nos dias de hoje no processo de apren- geométricas
(como por exemplo os relacionados
dizagem poderiam indicar que tais dificuldades são ao cálculo de áre-
as); problemas de
constitutivas do conhecimento e assim são os núme- soma e raio de convergência de seí
ries; problemas de diferenciação.
ros positivos um obstáculo epistemológico para o apa-
A partir dai' Cornu destaca
recimento dos números negativos.. o que segundo ele são
Radford (1997) avalia que as dificuldades apre- os quatro grandes obstáculos cpistemológicos
na his-
sentadas na aprendizagem dos negativos é mais um toria do conceito de limite: l) a impossibilidade de
problema cultural que constitutivo do próprio conhe- estabelecer ligação entre o geométrico
e o numérico'
2)
cimento. Como defesa de seu argumento ele destaca a a noção de infinitamente grande e infinitamente
cultura chinesa na qual os matemáticos utilizam uma pequeno; 3) o aspecto metafísica da noção de limite;
maneira inteligente de trabalhar com as quantidades 4) o questionamento
se um limite é atingido ou não.
negativas a partir da utilização de bastões coloridos, O aspecto metafísica da noção de
limite foi um
utilização essa que tem evitado dificuldades na apren~ entrave para a sua introdução na matemática
c se
dizagem dos alunos chineses a exemplo das dificulda- apresenta também hoje como um dos principais obs›
des para os ocidentais. Para Radford, a dificuldade taculos para a aprendizagem. Os estudantes
têm relu›
106 107
tância em aceitar a noção de infinito por acharem “algébricd”, qual seja: utilizar métodos da álgebra,
“não rigorosa", “que não existe", "muito abstrata”. próprios para as grandezas finitas, para as grandezas
Este obstáculo, acrescido do fato de que os cál- infinitas. A transferência das propriedades dos termos
culos que envolvem limites não são os familiares da de uma seqüência para seu limite e ainda o obstáculo
aritmética e da álgebra, torna a compreensão do con- de não atribuir “a passagem ao limite” o estatuto de
ceito de limite extremamente difícil.
O questionamento indicado em 4) perpassou a uma operação matemática.
Um outro candidato a obstáculo epistemológico
história deste conceito. Uns, como Robins (1697«
foi estudado por Scheneider (1991). Ela se propõe a
1751) diziam que um limite nunca pode ser atingido,
caracterizar o obstáculo do que denomina a “hetero-
a exemplo da seqüência de polígonos regulares com
lados cada vez maiores, inscritos num círculo. Eles geneidade das dimensões”, à luz das características
através das quais Brousseau e Sierpinska especificam
nunca serão iguais ao círculo.
Comu (1981) apresenta o debate entre os estu- obstáculo epistemológico.
dantes dos dias de hoje, relatado abaixo, como uma Partindo do pressuposto de que uma certa per-
indicação de que a questão 4) persiste: cepção de grandezas se imiscui nos cálculos de áreas
e volumes, grandezas de dimensões distintas são mis-
Diálogo:
- quanto mais n aumenta, mais 1/n se aproxima de zero.
turadas no seio desta percepção (sólidos com superfí-
cies ou superfícies com linhas). Ela indica como ma-
tanto quanto se gostauia?
' aproxima-se senão
- não, porque um dia eles se encontrarão. nifestação do obstáculo da “heterogeneidade das di-
mensões” as conclusões abusivas de que duas grande~
Em Sierpinska (1985) podemos encontrar um
zas estão entre elas assim como seus indivisíveis, pois
outro estudo sobre os obstáculos epistemológicos li-
elas são subdivididas por estes últimos; o emprestar
gados à noção de limite.
Este trabalho apresenta uma abordagem diferen- aos comprimentos de segmentos uma propriedade ve-
rificada pelas áreas das superfícies das quais eles são
te da de Cornu. A autora analisa os entraves na cons-
trução da noção de limite agrupando-os da seguinte os resíduos.
maneira: os advindos do horror ao infinito; os ligados Alguns pesquisadores em Educação Matemática
à noção de função; os obstáculos "geométricos“; os se interrogam sobre a necessidade da referência histó-
obstáculos “lógicos”; e ainda o obstáculo do símbolo. rica para determinar os obstáculos. Eles relacionam
E cada um destes tipos ela ainda divide em subtipos. talvez mais os obstáculos a um contexto cultural de
Vale a pena destacar alguns deles como o denominado uma época, do que constitutivos do conhecimento.

108 109
Vale ainda ressaltar o ponto de vista de
H
Referências bibliográficas
Serpinska que numa releitura de Bachelard identifica
para a análise dos obstáculos quatro pontos que a ela ARTIGUE, Michele. Episthemologie
et didactique.
parecem transferíveis ao conhecimento matemático: RDM, vol.10/2.3, pp. 241-286. Grenoble, 1990.
- um conhecimento funciona como obstáculo se The role of epistemology in the analysis of'
se começa a assim o crer, se ele se torna um precon-- ___.teaching/learning
relastionishipsmathematics
ceito, se ele não é mais questionado, se ele não exige education. Proceedings of the 1995
mais ser validado;
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oportunas para conclusão: et les problemes en mathématíques. RDM, Vol.4,
- as concepções que ocasionam obstáculos no n° 2, pp. 165-198. Grenoble, 1983,
ensino da matemática são raramente espontâneas, mas BKOUCHE Rudolf. Epistémologie, histoire
et
advindas do ensino e das aprendizagens anteriores; enseignement des mathématiques.
For the
- os mecanismos produtores de obstáculos são learning of mathematics. An International
também produtores de conhecimentos novos e fatores Journal of Mathematics Education, volll7,
de progresso; number l, pp. 3442. Canada, FLM Publishing
- o obstáculo está relacionado a um nó de resis- Association Vancouver, B.C., 1997.
tência mais ou menos forte segundo os alunos, o en- CORNU, Bernard. Apprentissage de la
notion de
sino recebido, pois o obstáculo epistemológico se des- limite: modeles spontanés et modeles
propes. In:
membra freqüentemente em obstáculos de outras ori- COMIT, C. e VERGNAUD, G. (cds).
Procee-
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