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Michele Petit – Os Jovens e a Leitura – Uma nova Perspectiva – 2008

Prefácio à edição brasileira

p. 11: “Vivendo em bairros marginalizados, iam à biblioteca para fazer as lições de casa, encontrar
um local estruturante, um profissional pronto para aconselhá-los, formas de sociabilidade que os
protegessem das ruas. Mas também encontraram ali meios de passar a uma outra relação com o
conhecimento e com a cultura escrita, mais autônoma, em que a curiosidade pessoal tinha sua parte.
Uma outra relação com a leitura”.

p. 12: “Compartilhar histórias lidas ou contadas dá, às vezes, o sentimento de que os pertencimentos
podem ser mais flexíveis […] Na América Latina, muitos mediadores têm a esperança de que o
livro – que foi, e ainda é, um instrumento de poder, de discriminação – possa, hoje, dar lugar a
sociabilidades abertas, onde a oralidade e a escrita se reconciliem, e onde cada um possa
encontrar seu lugar, contribuindo com o que lhe foi transmitido, ou simplesmente escutando e
deixando correr sua imaginação”.

Primeiro encontro – AS DUAS VERTENTES DA LEITURA

p. 19: “Compreendemos que por meio da leitura, mesmo esporádica, podem estar mais preparados
para resistir aos processos de marginalização. Compreendemos que ela os ajuda a se construir, a
imaginar outras possibilidades, a sonhar. A encontrar um sentido. A encontrar mobilidade no
tabuleiro social. A encontrar a distância que dá sentido ao humor. E a pensar, nesses tempos em que
o pensamento se faz raro”.

Noção de duas vertentes de leitura parte duma pesquisa de Petit no meio rural francês. A partir da
pesquisa, Petit pontua que a “distinção entre a leitura coletiva, oral, edificante, e a leitura individual,
silenciosa, na qual, por vezes, encontramos palavras que nos permitem expressar o que há de mais
singular”, p. 22. Continua: “A leitura tem muitas faces e é marcada ao mesmo tempo pelo poder
absoluto que se atribui à palavra escrita, de um lado, e pela irredutível liberdade do leitor, do
outro”.

p. 25: “Manipular a escrita permite aumentar o prestígio junto a seus semelhantes. No início, o
aprendizado da leitura é, muitas vezes, um exercício que incute o medo, que submete o corpo e o
espírito, que incita cada um a ficar em seu lugar, a não se mover”.

p. 26: “Porém, não se pode jamais estar seguro de dominar os leitores, mesmo onde os diferentes
poderes dedicam-se a controlar o acesso aos textos. Na realidade, os leitores apropriam-se dos
textos, lhes dão outro significado, mudamo sentido, interpretam à sua maneira, introduzindo seus
desejos entre as linhas: é toda a alquimia da recepção. Não se pode jamais controlar o modo
como um texto será lido, compreendido e interpretado”.

p. 27-28: “E se a leitura desperta o espírito crítico, que é a chave de uma cidadania ativa, é porque
permite um distanciamento, uma descontextualização; mas também porque abre um espaço para
o devaneio, no qual outras possibilidades são cogitadas”.

O LEITOR “TRABALHADO” POR SUA LEITURA

Segunda vertente da literatura é o diálogo entre o leitor e o texto.

p. 28: “Eu lhes dizia que o leitor encontrava palavras, imagens, para as quais dava outros
significados, cujo sentido escapava, não somente ao autor do texto, mas ainda àqueles que se
esforçavam em impor uma única leitura autorizada. O leitor não é passivo, ele opera um trabalho
produtivo, ele reescreve. Altera o sentido, faz o que bem entende, distorce, reemprega, introduz
variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas ele também é transformado: encontra algo que não
esperava e não sabe aonde isso poderá levá-lo”.

p. 29: “Começo por citar o psicanalista Didier Anzieu: ‘Uma obra não trabalha o leitor – no sentido
psíquico, - se ela lhe dá somente o prazer do momento, se ele fala dela como de um feliz acaso,
agradável mas sem futuro. O leitor que começa a ser trabalhado pela obra estabelece uma espécie de
ligação. Mesmo durante as interrupções de sua leitura, ao se preparar para retomá-la, ele se entrega
a devaneios, tem sua fantasia estimulada e insere fragmentos dela entre as passagens do livro; sua
leitura é um misto, um híbrido, um enxerto de sua própria atividade de fantasmatização sobre
os produtos da ativade de fantasmatização do autor”.

p. 29: “Existe algo na leitura, como diz Anzieu, que é da ordem do trabalho psíquico, no sentido em
que os psicanalistas falam de trabalho do sonho, trabalho do luto, trabalho de criação. É uma
dimensão que me parece essencial e que muitos leitores experimentam, mesmo aqueles
provenientes de meios mais modestos; ainda que, naturalmente, não empreguem essas palavras para
falar dela. No entanto, curiosamente, essa experiência corriqueira é, muitas vezes, silenciada
ou desconhecida. Não é da ordem da ‘educação’ nem do ‘prazer’, e as divisões habituais que
opõem ‘leituras úteis’ a ‘leituras de distração’ não permitem que se perceba isso”.

p. 32: “Vejam que Daoud, como Ridha, associa o fato de construir-se a si mesmo com a alteração
produzida pelo encontro com um texto, até mesmo com uma simples linha. É a partir dessas
palavras escritas por um outro, que as imagens e as palavras lhe vêm e que elabora seu próprio
filme, como ele diz […] Lembram-nos que é sempre na intersubjetividade que os seres
humanos se constituem; que o leitor não é uma página em branco onde se imprime o texto: desliza
sua fantasia entre as linhas, a entremeia com a do autor. As palavras do autor fazem surgir
suas próprias palavras, seu próprio texto”.

p. 36-37: “Mas, de um modo mais abrangente, mesmo que a leitura não faça de nós escritores, ela
pode, por um mecanismo parecido, nos tornar mais aptos a enunciar nossas próprias palavras, nosso
próprio texto, e a ser mais autores de nossas vidas. Nessa leitura, o escritor e o leitor constroem-se
um ao outro; o leitor desloca a obra do escritor, e o escritor desloca o leitor, às vezes revelando nele
um outro, diferente do que acreditava ser. Disse ‘o escritor’ e não ‘o autor’. E agora há pouco, para
falar do leitor trabalhado por seu encontro com um texto, passamos da leitura em geral para essa
experiência particular que é a leitura de uma obra literária. Efetivamente, na literatura, o escritor faz
justamente, um trabalho de alteração da língua”; da realidade; de si próprio.

p. 38: “Por exemplo: ler permite ao leitor, às vezes, decifrar sua própria experiência. É o texto que
‘lê’ o leitor, de certo modo é ele que o revela; é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele
que ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto constituem o leitor, lhe dão um lugar”.

p. 38-39: “Os escritores nos ajudam a nomear os estados pelos quais passamos, a distingui-los,
a acalmá-los, a conhecê-los melhor, a compartilhá-los. Graças a suas histórias, escrevemos a
nossa, por entre as linhas. E porque tocam o mais profundo da experiência humana – a perda,
o amor, o desespero da separação, a busca de sentido – não há razão para que os escritores
não toquem em cada um de nós. E é exatamente nesse ponto que jovens leitores vindos de meios
desfavorecidos podem, muitas veze, se encontram com eles. Com frequência esses jovens relatam
como certos textos, nobres ou humildes – mas também filmes ou canções –, lhes ajudaram a viver, a
pensar em si mesmos, a mudar um pouco seu destino. E não somente na adolescência”.
p. 39-40: “Esse mundo (advindo/construído a partir da leitura) tem a ver com o segredo. De um lado,
ele protege da repressão, que atinge tudo o que diz respeito ao íntimo, protege da intrusão de seus
pais ou de educadores indiscretos. Mas há ainda outra coisa: a ideia de que toda palavra
verdadeira tem uma dimensão oculta. Muitos escritores afirmaram isso, que a leitura tem a ver
com o segredo, com a noite, com o amor e com a dissolução da identidade”.

p. 40: Salman Rushdie: “O significado é um edifício que construímos com fragmentos, dogmas,
feridas de infância, artigos de jornais, observações feitas ao acaso, velhos filmes, pequenas
vitórias, pessoas que odiamos, pessoas que amamos”. (!)

p. 41: “Às vezes, a leitura nos dá o apoio de uma definição. De uma forma, de uma ordenação.
Sentimos que existe, em alguns textos escritos por escritores, um pouco mais de verdade que em
outras formas de expressão linguística. Porque o escritor quebra os estereótipos, renova a linguagem,
caça os clichês – o bom escritor, ao menos (vish). E é um dos raros que fala das contradições e
das ambivalências das quais somos feitos. Inclusive, é sobre essas contradições, essa parte
obscura do coração humano, que ele, com mais frequência, trabalha”

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