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Lima, Lindy
No divã com a manicure / Lindy Lima. --
São Paulo : All Print Editora, 2015.
15-06059CDD-869.3
Editoração e impressão:
www.allprinteditora.com.br
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(11) 2478-3413
Agradecimentos
A bela da Paraíba................................... 15
A consumista.......................................... 24
A grande virada...................................... 34
A lei dos homens..................................... 46
Garota dourada...................................... 58
Nothura maculosa.................................. 68
O criador e as criaturas.......................... 76
O crime da juíza...................................... 85
Os ricos também choram........................ 95
Sobre bonecas......................................... 106
Tamanho é documento........................... 118
Uma atitude muda tudo!........................ 126
A contadora de histórias......................... 134
A bela da Paraíba
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salão. Era pra disfarçar, por receio de que o dela estivesse gram-
peado pela polícia – afinal, ele esteve pedido. “Pedido”, para os
leigos – como eu, na época –, é a pessoa que deve para a justiça.
“Ele tá pedido.” Era uma frase muito elementar entre as viúvas e
namoradas dos caras.
Inclusive, eu me solidarizei com a coitada. Era um amor
bandido. E daí? Qualquer um pode ter. Quem está livre de se
encontrar com um cavanhaque, uma perna a menos, um sota-
que forte, alguns verbos fora do tempo, e não cair de amores?
Quem está livre de se enroscar em uma corrente de ouro, de dar
umas voltinhas no final de semana, em uma penitenciária, para
levar um jambo a um amigo encarcerado, ou de levar umas bo-
fetadas no final de semana, num hotelzinho barato da Francisco
Morato?
As bofetadas não eram lá tão frequentes. Só aconteciam
quando ele, verdadeiramente, tinha a certeza de que fora passado
para trás. Quando não ficavam só nos avisos. “Com você, é um
passo pra frente e dois pra trás.” E dizia, arregalando os olhos,
com a voz falhando a cada sílaba. E logo tirava, ali, uns cem
gramas de ouro e lhe jogava nos peitos. Mais uma corrente para
a coleção de pulseiras que quase lhe cobriam metade de tíbio e
perônio.
Para seguir esse caminho, basta não ter amor próprio, se
desviar da igreja e gostar de tênis caros e muito ouro. A moça
tinha disposição para sair todas as noites para os lugares mais
variados. Assim como lhe faltava estilo para roupas e sapatos,
também não escolhia onde farrear. Desde o Largo de Pinheiros
até as baladas na Vila Olímpia.
E quando me refiro à falta de estilo, é simplesmente de
um estilo próprio. Mas as roupas eram sempre muito caras, tal-
vez para combinar com as pulseiras e gargantilhas, e cabelos
não menos dourados. O dinheiro de recepcionista de salão não
conseguia quitar metade dos gastos com vestimentas. Era aí que
entrava a mesada do amado.
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acredita, estava bom demais, bicho, consegui beijar três.” Não sei
por que essa conta não fecha. Ou tem homem contando vanta-
gem, ou mulher escondendo o jogo. Mas deixemos essa mate-
mática de lado. O fato é: certa vez, estávamos nós em uma dessas
desventuras noturnas pelo Largo de Pinheiros – leia-se Tropical
Dance. Guarde seu sorriso, ferina leitora: se nunca foi ali, atire a
primeira pedra. E se o desespero dos trinta já bateu, vá. Porque
lá ninguém fica parado.
Voltemos ao que interessa: logo veio ao encontro um more-
no de tirar o fôlego, dançando forró com um molejo de causar ur-
ticárias. Tirou-a para dançar. E dançaram muito. Durante toda a
noite, mais ninguém se privilegiou de seus inúmeros predicados.
Mas como crime prima por castigo, eis que, no último dos
rodopios, não sei se por força do destino ou por cansaço do par,
a moça escapou das mãos do bailarino em pleno ar, e a queda era
iminente. Não mais precipitada, teve a sorte ingrata de cair nos
braços de um cavalheiro muito gentil, tão gentil que fez questão
de cumprimentá-la com beijo e tudo e, chamando-a pelo nome,
sobrenome e apelido, de quebra, trazia-lhe lembranças do noivo.
O sangue, literalmente, fugiu do semblante da moça. E não
foi pela dor do tombo. Mas porque o herói da noite era, real-
mente, amigo – e mui amigo, por que não dizer? –, o melhor
amigo do noivo fora de um presídio. Aquele que, por ironia do
destino, tinha estado por seis meses encarcerado, e estava ali,
curtindo sua primeira noite de liberdade em Sampa. Em menos
de um minuto, tudo mudou. Senti o clima pesar. O rapaz ainda
fez questão de levantar-lhe a mão direita, na qual pousava uma
aliança – e não era uma aliança qualquer, era o que podíamos
chamar de uma coleira de dedo.
Depois desse golpe do destino, nem esperamos pelo táxi.
Saímos as duas em silêncio, atravessamos a Madalena já com
pouca gente e, de repente, aquela noite cálida não passava de
uma torrente de pensamentos frios que invadiam nossos nervos.
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A beleza veio, e veio com fé. Todo mundo olhava e admira-
va. E admirava muito mais quando ela estava em companhia do
namorado, que demorava, mas não faltava. Principalmente com
a mesada. Aquela que quitava as contas nas lojas de roupas, de
calçados e afins.
O consumismo ali fazia morada. Não havia tênis, por mais
caro que fosse, que seus pés não calçassem. O episódio do baile
não deu os frutos imaginados. É aquilo que aprendemos: menos
de dez porcento dos nossos temores chegam a acontecer. O res-
tante é queimar cérebro à toa.
Mas a coitada não aprendia essa conta, apesar das constan-
tes tempestades em copos d’água. A dor na consciência era sua
inimiga mais voraz. O medo de saberem do caso com o balconis-
ta da padaria. E aquela amiga, que se sentiu ultrajada, por tê-la
pego no flagra, beijando seu noivo, o bonitão da sinuca? Pior
ainda: e se o cara do táxi – que, por sinal, conhecia o noivo –, no
ímpeto de orgulho ferido pela centésima investida e as últimas
99 negativas, desse com a língua nos dentes?
E se sua mãe descobrisse que ela, há mais de três meses, não
dormia na minha casa? E se o irmão soubesse que ela frequen-
tou aquele bar na Lapa, na companhia do marido de sua melhor
amiga? Enfim, eram muitas as contas a prestar, para muitas ou-
tras pessoas.
Muitos medos permeavam a vida daquela moça. E esses
medos eram veementemente combatidos por compras e mais
compras, e quando não sabia o que fazer com as contas vencen-
do, apelava para o noivo, desafiava a justiça e ia lhe encontrar
onde quer que fosse. Geralmente no litoral. E, na terça seguinte,
lá vinha ela com olheiras, mas sorriso nos lábios, e mais uma
corrente de ouro e um saldo positivo no banco.
Por fim, o casamento foi marcado. Ao mesmo tempo, o
rapazinho do lado do salão – não o do banco, o do boteco –
chorava rua acima e abaixo, pedindo para todos os que a co-
nheciam para dissuadir-lhe da ideia do matrimônio e dar a ele
nem que fosse a última chance. Mal sabia o reles que, com ela,
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esperto. Tão esperto que até achou que a esposa estudava e tra-
balhava, enquanto ele vendia a produção.
Mas esse tal Telecurso começou a incomodar. No início,
eram apenas ligações esporádicas. Depois vieram as flores e, em
seguida, o filhinho de três anos o surpreendeu, avisando que ele
agora tinha dois papais. Foi o fim. A expulsão ocorreu às 3 horas
da manhã. A valência foi um taxista que passava, e ficou com dó
da jovem moça com duas crianças, tremendo de frio.
Aceitou a corrida até São Paulo, e a velha mãe pagou a con-
ta. A conta do táxi e todas que vieram daí por diante, e não foram
poucas. Ipod, notebooks, academias, Iphone e mais todas as rou-
pas da moda para os meninos. Além de se tornar a babá oficial.
Os programas recomeçaram, e agora não eram mais com os
empregados. Aprendeu a gostar de patrões. Embora o sorriso, o
sentar e o coração continuassem os mesmos.
Agora, volta e meia, desce ao litoral. Principalmente quan-
do recebe alguma cartinha do SPC. A praia nunca lhe deixava de
mãos abanando. E ele sabia que ela só havia escorregado aquela
única vez, mas não a perdoaria de jeito nenhum. Não por ele,
mas porque temia que os amigos soubessem daquele episódio,
que sabia ter sido único. Pois macho que é macho não perdoa
traição.
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que mais gostava: dinheiro e luxo. Apesar da voz, ela já passava
dos vinte, e ele, dos 40. O rapaz era um investidor da loja e irmão
do proprietário. Logo de cara, caiu de paixão pela moça loira,
de pernas longas e bumbum saliente. Não era o que podíamos
chamar de uma linda mulher, mas era uma daquelas que não
passavam despercebidas, principalmente porque não titubeava
em exigir o que tinha de melhor.
Um mês depois de empregada, já almoçava, na companhia
do amado, nos melhores restaurantes dos Jardins, e fazia questão
de levar a mãe junto. O amor que destinava àquela mãe, uma
mulher gordinha e de dentes encardidos, lembrava uma galinha
que perdera a ninhada, restando apenas um pintinho – no caso
dela, três filhotes, todos embaixo das asas. Como o dinheiro co-
meçou a correr solto, de imediato reformou a casa da mãe, em
Perdizes. Era uma casa simples, de rua, ao lado de uma praça,
mas tinha uma vista bacana. Reformou os quartos, derrubou os
antigos puxadinhos e os anexou à casa grande, e fez um closet
para si. Ah, o closet! Foi a primeira vez que entrei em um. Ainda
era lindo quando o conheci – depois foi se desvanecendo, se de-
teriorando e, por fim, acabou-se. Tudo vendido, feito um brechó.
No terceiro mês, ganhou, além da antipatia dos colegas, um
carro do ano. Foi apenas o primeiro de uma infinidade de mi-
mos que se seguiriam daí por diante. Depois vieram as joias, as
viagens, as festas, as baladas, as revistas. E muitas e muitas orgias.
E aí surgiu o que, depois de algum tempo, começou a re-
colher como parasitas. Os irmãos, que agora, em vez de depe-
nar o pai, tentavam arrancar dele o mais que pudessem antes
que a fonte secasse. E nunca vinham só. Eram amigos parasitas,
mulheres parasitas e empregados parasitas. Todos logisticamen-
te organizados, numa sequência organizacional para sugar sem
deixar marcas aparentes.
A fonte durou exatamente 11 anos. Já havia burburinho nas
revistas de que a grife andava de pernas bambas e até foi vendi-
da para outra, estrangeira. Mas nada oficialmente reconhecido
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tirar-lhe os dois importados, e ela teve que se explicar diante
do juiz. O que fez para falir tantas empresas, as quais nem ela
mesma sabia que existiam. Todas elas assinadas e com firma loi-
ramente reconhecidas.
Foi para a cama, e ficou lá por mais de mês. Odiou o ex até
a décima geração, e se pudesse colocaria sal, como na lenda da
serpente. O fim da convivência de dez anos não pareceu lhe doer
tanto quanto a pobreza. Aguentar aquele solteirão, de corpo afe-
minado e hábitos pouco convencionais, não era tão fácil assim.
Só mesmo muito dinheiro para compensar, embora ele acredi-
tasse piamente que havia amor entre ambos.
O episódio não saiu na imprensa, mas se soube que ele foi
ter em Istambul, de onde eram seus familiares e sua segunda ci-
dadania. E foi sem ao menos se despedirem. Tudo ficou acabado
ali, diante do juiz, quando ele tentou, sem sucesso, explicar-lhe
sobre aquela derrocada social.
Agora, da época das vacas gordas, só restava a voz. Até mes-
mo a pele e os cabelos não dispunham mais do brilho de outrora.
Os trajes sobre tom agora se apresentavam cada vez com menos
cor. De uma palidez acinzentada, ela aparecia de vez em quando,
como quem se esconde do mundo, ou como quem foi atropelada
por nada menos do que milhares de toneladas.
Mas ainda restavam as joias; última luz no fundo do túnel.
Precisava agora cravar as unhas na parede e sair do fundo do
poço. Só não era o fundo porque este era, de certo, terreno do
tipo areia movediça, não parava de afundar, e ela chafurdando
junto. Passou a andar de posse do carrinho da mãe. Um Ford Ka
vermelho. Era tudo o que tinha além de seu closet de muitas joias.
Precisava deixar baixar a poeira e vendê-las. Era sua única tábua
de salvação. Sonhava.
E quando não tinha mais nada o que comemorar, a pro-
prietária lhe pediu o imóvel onde tinha a clínica de estética. Pois
o seu fiador e patrocinador estava, a essa altura, fora do país.
Não sabia que teria de pagar o aluguel de onde tinha a empresa,
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como manicure, se não pude discernir o equivalente à capacida-
de dos esquimós de distinguir cores, fiquei bem próxima. Só que,
em vez de branco, roxo.
De fato, eu já odiava roxo. Mas ver aquela criatura todos os
dias tal qual uma berinjela piorou muito o meu conceito sobre
essa tonalidade. Portanto, acabei não me interessando por nada.
Queria até ter podido ajudá-la naquele último instante. Retri-
buir a gratidão de poder ouvir aquela voz de criança mimada
todos os dias, nos últimos dois meses. Mas não dei conta, como
dizem os paulistas. As roupas eram muitas, e os sapatos também.
Embora fossem artigos de luxo, aquela venda de garagem – quer
dizer, de closet – a mim não apeteceu. Como diria meu marido,
talvez não tivesse um quê de menino nos sapatos, tampouco nas
roupas.
Sempre fui conhecida por esta minha peculiaridade: a de
me fantasiar de menino, mesmo quando uso vestido. Tenho a
impressão de que me olham e dizem: “Um homem de vestido,
que estranho!”. Essa sou eu. Mas, certamente, ela conseguiu o
aluguel daquele mês à custa de muita babação de ovos de minhas
colegas. Dizem que, em tempos de fartura, era muito boa com
os funcionários. Só dava presentes caros, sapatos, bolsas. Até as
empregadas da casa andavam de LV. Eu não peguei esse tempo.
Mas também sei reconhecer muito bem uma LV da 25 de Mar-
ço. O salão fechou três meses depois.
Nessa época, já estavam comprando comida do boteco
onde comíamos. O chamado “marmitex de prisioneiro”. Múscu-
lo, cebola e muito sazon. Quando por fim fechou as portas, todos
nós tivemos que procurar outros salões, e ela preferiu nos acom-
panhar agora como cliente. Quem já trabalhou como manicu-
re, sabe: às vezes uma cliente nos segue por anos. Anda de um
bairro a outro e não mede esforços para nos encontrar. Inclusive
aquelas que desejaríamos muito que nunca tivessem passado em
frente ao nosso local de trabalho. Digo isso porque tem clientes
que é melhor perder do que achar.
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doentia. Os olhos fundos, ornamentados por manchas escuras,
davam ideia de um panda. As linhas de expressão precipitavam
o aparecimento de um ousado bigode chinês. Em outros tempos
facilmente abatidos por cremes importados ou pequenas inci-
sões, esses sinais agora marcavam seu território.
As mãos enrugadas e um tremelicar nos olhos demonstra-
vam uma incipiente ansiedade. A voz de criança mimada agora
dera lugar à voz de uma criança aborrecida. Nós agora éramos
suas amigas. Ligava-nos no meio da noite para desabafar. Os
amigos que ele nunca se permitiu fazer, resumindo a amizade a
apenas duas faxineiras e uma velha costureira – com cara de índio,
unhas vermelhas e cigarro sempre aceso –, ampliaram com devo-
tado amor a mais de dez ex-funcionários da clínica de estética.
E certa de que muitas dessas amizades eram mantidas a tí-
tulo de não colocá-la na justiça, quando tivesse que nos despedir,
eu, como sou meio conhecedora da vida, pulei do barco ainda
navegando. Muitos deram com os botes na água, de modo que a
estratégia foi paliativa, pois de nada lhe adiantou quando a fúria
da mulherada se inflamou ao final de dois meses sem salários.
Os oficiais de justiça tiveram muito trabalho num curto es-
paço de tempo. Mas, como ela mesma começou a pensar, a misé-
ria era para ser compartilhada, e assim o fez. Eu, por ter pulado
andando, não sofri retaliações e não tinha nenhum motivo para
odiá-la. Por isso, as ligações e visitas continuaram ao longo de
algum tempo. Tempo suficiente para ouvir seu choro, sua tristeza
profunda, seu ódio e, por fim, seu sorriso brotar novamente.
O ódio do ex permeou todas as suas falas. Nem posso di-
zer nossas conversas, pois uma das características das pessoas
sem razão é falar automaticamente, sem deixar espaço para ar-
gumentações do seu interlocutor. Minha interação se resumia
em sonoras – “hum”, “rum”, “sei”, “pois”, e coisa do tipo e, volta
e meia, um “não acredito!” – parecendo incrédula mesmo. Isso é
ótimo para quem tem de ouvir o desfibrar de uma vida alheia em
30 minutos. Tempo mais que suficiente para uma boa manicure
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Todos os dias tomavam café no boteco vizinho. Ao meio-dia,
comia uma coisa qualquer e, no final da noite, comia pizza por
ali mesmo. Aos domingos, iam a Nossa Senhora da Pompeia,
por intimação do cara.
E a vida começou a tomar seu rumo. Soube que, cerca de
alguns meses atrás, sua mãe faleceu. Ela expulsou os irmãos pa-
rasitas de casa, esvaziou a piscina e fechou parte dos cômodos.
Formou mais três casas para aluguel e, com o dinheiro, abriu, em
sociedade com o amado, outra oficina. E, para o meu espanto,
tornou-se uma exemplar dona de casa. Retirou, por fim, a droga
que mantinha no braço para não engravidar. Eram exigências do
anterior. Não queria um filho “caju” (um filho de católico com
judeus). Ainda dá tempo. Espero que não esteja usando bobes no
cabelo. O resto tá valendo! Até ser mãe depois dos 40.
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O avô materno havia nascido no Marrocos, veio para o Bra-
sil durante a Segunda Guerra Mundial, a bordo de um navio,
meio que clandestino. Foi jogado em alguns países da América
do Sul. De lá, entrou no Brasil pela fronteira oeste, e acabou por
se instalar no Pará, onde já havia alguns conterrâneos seus. No
início da Segunda Guerra, foi convocado pelos aliados e fazia
o controle dos aviões americanos que entravam no Brasil em
direção à África.
Os aviões americanos faziam uma ponte aqui, cuja base
ficava no Rio Grande do Norte. Lá eles abasteciam, e se diri-
giam a Dakar, no Senegal. De lá partiam para outros pontos do
continente negro. Apenas rememorando, se a geografia não me
falha, o Rio Grande do Norte e o Senegal formam a parte mais
próxima entre esses dois continentes. Por isso, os americanos fir-
maram ali suas bases de abastecimento, fazendo a rota para a
África via Brasil.
Seu avô, depois da guerra, recebeu algumas condecorações
e um convite para trabalhar na nova capital federal, assim que as
principais obras de Niemeyer começaram a surgir. E seu pai, um
jovem recém-casado, também deixou a terra do açaí e do tacacá
e rumou para a capital federal, com ela ainda bebê. Na eferves-
cência cultural de Brasília, ela acabou por engravidar aos 16 anos,
e o casamento forçado não durou muito.
Dois anos depois, ela veio para São Paulo com sua filha nos
braços. Seu pai deu um ultimato. “Vá e vença”. Não vou criar
netos. Ela começou a trabalhar em uma empresa como secretá-
ria e, logo em seguida, conheceu uma pessoa no trabalho mes-
mo. Era um jovem advogado. Estava disposto a criar sua filha e
construírem uma vida juntos. Ele era de descendência italiana e
não chegaram a se casar. A sogra não permitiu. Apenas moraram
juntos em um pequeno apartamento no Bexiga, um andar acima
da casa da mãe dele.
Ela nunca ficava com a chave de casa. Sempre que chega-
va do trabalho, tinha que passar no apartamento de baixo para
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Finalmente, arranjou um apartamentinho na Lapa, próxi-
mo do trabalho, e lá se foi com sua filha. Viviam as duas, sim-
plesmente felizes. Até que apareceu o Roberto. Também era
advogado, mas muito bem-sucedido. Nos primeiros anos, deu-
-lhe uma vida de rainha. Como não precisava mais trabalhar, ele
a convenceu a ficar apenas em casa. E como a casa era realmente
uma mansão no Alto de Pinheiros, ela precisava se dedicar.
Os mimos eram frequentes. As flores, os jantares, os com-
promissos sociais, os vestidos de festas, os cuidados com a ente-
ada. Era um casamento muito bom. O amor, que no início lhe
faltava, transformou-se em agradecimentos e, por que não dizer,
em orgulho. Era muito bom voltar a Brasília de classe executiva.
Olhar para a cara de todos, inclusive os pais, a pensar: “Venci”.
Apesar de financeiramente resolvida, nunca teria sido seu
sonho de consumo. Seu sonho era poder ver a filha feliz. Ten-
tou ter filhos nesse terceiro relacionamento, mas não foi possí-
vel. Mas, como não havia cobranças por parte do marido, isso se
tornou uma tentativa de lhe dar um presente. Durante dez anos
seguidos, pouco se falou sobre isso, a julgar que não era impor-
tante para ele.
O importante era sua presença, de mulher séria e bem cui-
dada. Para que pensassem que não basta ser a mulher da pessoa
mais importante da empresa que ele havia criado seis meses an-
tes de sair da faculdade do Largo de São Francisco. Era como
se não bastasse ser uma mulher fina e digna dele. Tinha que
parecer, para os amigos, digna dele.
E quem o via assim não imaginava que fora aquele meni-
ninho do pau de arara do início dos anos 1970, da debandada
geral, do Nordeste para São Paulo, dos homens das malocas, da
construção civil, filho do homem que havia construído o prédio
vizinho, da Pio XI.
Não gostava muito de se lembrar desse passado, só quan-
do ela se eximia de reconhecer algumas de suas façanhas finan-
ceiras. Um homem que toda mulher desejava: bom, atencioso,
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de frutas e leguminosas do país, e foi então que se reencontra-
ram, anos depois.
E, à medida que suas diferenças sociais se acentuavam, as
lembranças da infância vinham à tona. Daí por diante, nunca
mais se separaram. Mas aquela mulher não lhe servia de tudo,
apenas para algumas coisas. Tentou sufocar esse amor por muito
tempo, até se casou com outra que lhe parecia ter todos os requi-
sitos necessários para um homem com suas pretensões. Mas, ao
cabo de alguns meses de casado, percebeu que era inútil.
Ela aceitou a desfeita de ele ter se casado com outra, que lhe
acompanhasse nas convenções sociais, desde que ele reconheces-
se no papel, além do filho, as duas meninas frutos do casamento
com o anterior. Negócio fechado. Assim, a vida dupla não foi
difícil de manejar. Ela ia para o Ceasa de segunda a sábado. An-
tes de ir para o trabalho, ele fazia questão de levá-la, inclusive as
crianças para a escola. E, assim, seguiram esses anos de vida du-
pla. A do Ceasa chorava, lamentava, desejava mais sua atenção.
Mas acabava por aceitar os finais de tarde, os inícios de manhã
e o pagamento da escola dos filhos – inclusive dos dois que não
lhe eram legítimos.
Mas ele não pôde deixar de ficar perplexo quando elas,
mesmo diante de toda explicação, rumaram porta afora com suas
respectivas dignidades. Leia-se: as roupas que podiam carregar.
Foram para a casa de uma amiga. Até que a névoa nos olhos
e o amargor da boca passassem, é fato que durou cerca de dois
anos. Foi duro, mas, um belo dia, o gosto de fel estava findo.
Apenas um pequeno arrependimento ficara, de ter sido mais or-
gulhosa do que prudente, não aceitando um conto sequer dos
dez anos em que servira de demonstrativo requintado.
Porém, o passado certamente é um rio, cujas águas correm
para adiante. E assim foi. Por essa época, elas já moravam em
um pequeno apartamento na Avenida Pompeia. Não conseguiu
retomar a carreira de jornalista, então aceitou de bom grado ser
gerente de uma loja de bolsas de luxo, em um grande shopping
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Os poucos amigos apareceram na primeira semana, depois fo-
ram-se indo. Ao cabo de um ano, estava só com suas lembranças,
sua incontrolável dor, muitos pertences e recordações e um alu-
guel atrasado.
Não tinha a quem recorrer. O pai havia falecido antes e a
mãe tinha uma pensão miserável. Lembrou-se, então, de cobrar
o ex-marido pelos anos de aluguel, como ela mesma afirmou.
Ele, de imediato, pagou-lhe os aluguéis atrasados, e deu o di-
nheiro que pudesse lhe assegurar mais dois meses sem trabalho.
Foi quando surgiu uma proposta de freelance, para uma dessas
revistas de fofoca. O desespero foi maior do que a dignidade. Era
para cobrir o Festival de Gramado.
Então, lá foi ela. Completamente destreinada, jornalisti-
camente falando. Mas escrever um lead é como andar de bike:
nunca se esquece, embora fosse aquele um texto diferente. De
início, achou que seria uma fria, ainda maior do que o frio que
lhe aguardava – algo em torno de zero grau, ou algo parecido.
Mas foi uma noite encantadora. A cidade linda. O tapete verme-
lho e os cafés eram maravilhosos. Em alguns meses, parecia ser a
primeira vez que conseguia respirar sem dificuldade. Parecia que,
ali, o ar não era tão rarefeito aos seus pulmões.
Ali ela respirou, comeu, tomou chocolate e andou nas ruas
sem destino. Na época, já existia e-mail, mas não tinha internet
móvel. Era difícil achar internet para enviar a matéria. Ligou
para a editora e ditou a reportagem, linha a linha. E permaneceu
lá por mais uns dias. Quando voltou a São Paulo, o ar novamente
fazia-se ausente. Em compensação, a cidade de Gramado lhe era
como música de ninar.
Era diferente daqui, onde em tudo o que fazia, lá estava sua
filha, nas ruas, nos restaurantes, nas alamedas, nos bancos, nas
ladeiras da Pompeia. Em tudo o quanto havia de vida e sem vida.
Lá estava vivamente ela.
O dinheirinho do ex já era findo, só lhe restava o carro.
Foi a uma concessionária e o vendeu. Passou na imobiliária e
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em ordem em dois tempos. Não só colocou a casa, como a vida
dele também.
Joaquim tinha 50 anos e nunca havia sido casado. Viveu
com os pais até o fim da vida deles, e já morava sozinho há pou-
co mais de 10 anos. Tinha um irmão gêmeo, médico, que vivia
em Porto Alegre, e outra irmã, mais nova, corretora de imóveis,
também na capital. O companheiro se encantou pela organiza-
ção e liberdade dela, e ela pela casmurrice e – por que não dizer?
– bagunça do rapaz. Olhei e não vi nenhum resquício de olhos
de ressaca ou de cigana oblíqua. Como poderia ter se encantado
por aquele Bentinho de meia idade? Mas, como dizem, o amor é
cego. Onde bate, apregoa. Vamos lá. Ao final da história.
Se é que alguém pode gostar de casmurrice, ela foi a prova
mais elementar de que casmurrice nenhuma sobrevive aos cuida-
dos do amor. Haja vista que Bentinho só ficara casmurro porque
Capitu não lhe atribuiu todo o amor merecido. Ou será que o
fez, e Bentinho é que, mordido de ciúmes, nunca o percebeu?
Bem, não discutamos o que se passa na cabeça do homem da
Rua dos Matacavalos. Até mesmo porque, o da bombacha estava
a cada dia mais garboso e cheio dos encantos. Ou seja, Capitu
faltou comparecer.
Não demorou muito e estavam se atropelando pelo meio
da casa. Tudo misturado: vida, dinheiro, dificuldade e Joaquim,
um virgem de casamentos, feliz como pinto no lixo. Toda a vi-
zinhança gabava a nova situação do antigo solteirão do bairro.
Que não era mais coitado, agora era homem casado e, por que
não dizer, cobiçado. Sabe como é. Aquela história. Lembro-me
de que, quando adolescente, namorei o menino mais feio da
escola. Tudo bem que eram apenas quatro, numa turma de 25
meninas. Mas ela era o mais feio. Tinha até piolhos. Depois de
seis meses, me tomaram ele. Como que em um passe de mágica,
o cara ficou bonito. Eu diria mais: maravilhoso, principalmente
quando usava as calças baggy do irmão mais velho, que havia
chegado de São Paulo.
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falava com eles sem parar. Enquanto isso, os bichos ficavam cada
vez mais ao Deus dará.
Um belo dia, Seu Tião resolveu morar na cidade, pois dese-
java conhecer gente das novelas. Ela começou, então, a se dedicar
integralmente à instância e fazer as vezes do caseiro, mas isso
ficou muito cansativo. Até que apareceu uma família necessitada
de trabalho e moradia. Aí a coisa começou a se organizar melhor.
A marcenaria começou a prosperar de tal forma que as en-
comendas não paravam de surgir. O marido, trabalhando cada
vez mais, só vinha aos finais de semana, mas estava tudo certo.
Reconheceu, porém, que ele necessitava de uma mãozinha para
viabilizar a logística. Contratou mais gente, abriu firma, e ela
administrava o dinheiro. Vinha duas vezes por semana para a
cidade. O restante, fazia de casa. Era da internet.
Ao final, descobriu ser uma exímia administradora. Conse-
guiram, além de reformar a casa e a instância, montar um grande
depósito onde os móveis eram armazenados.
Enfim, a vida lhe sorria. Mas ainda não estava tudo com-
pleto. Joaquim descobriu que não queria passar por esta vida sem
perpetuar seu belíssimo sobrenome alemão. E foi este, justamen-
te, o motivo que os fez abalarem-se de Gramado a São Paulo. A
possibilidade de uma gravidez, aos 42 anos. Mas, como Deus fez
a Jó, no final haveria de lhe restituir tudo em dobro.
46 L Lindy Lima
não poderia deixar de ser. Família clamando por vingança, o fa-
latório na cidade, a mãe internada em clínica psiquiátrica – sob
alegação de que estava em choque – e ela e o irmão na casa de
um e de outro.
Ainda sob custódia médica, a esposa foi obrigada a assi-
nar documentos e mais documentos – entre os quais, algumas
procurações. Quando, enfim, a saúde foi restabelecida, depois de
três meses, já não tinham onde morar. A casa não lhes pertencia
mais. Nem mesmo os empregados estavam lá, foram dispensa-
dos. Aquela propriedade agora pertencia a outra pessoa, um tio
que não pôde recebê-las durante várias e várias tentativas. Tive-
ram que ir para a casa da avó paterna que, por mais que quisesse
ajudá-las, não impedia que houvesse um clima estranho no ar.
Uma força as repelia daquele local.
Por carta, fora informada de que não podia mais reclamar
sua parte na casa ou nos negócios, sob alegação de que tinham
gastado tudo na clínica. Realmente, os diretores da clínica foram
muito bem pagos, não por ela, mas para mantê-la longe de suas
faculdades mentais. Não restado mais nada, recolheram o pouco
de dignidade que sobrara, junto com a roupa do corpo, literal-
mente. Rumaram para a capital, com a ajuda de uma conhecida
que morava na Vila Maria. Estabeleceram-se no mesmo bairro,
em uma edícula, nos fundos da casa de uma bondosa senhora de
idade. O aluguel nem sempre era cobrado, mas, quando sobrava
algum da insípida pensão por viuvez, conseguida através de uma
sindicalista amiga da própria dona da casa, o aluguel lhe era pago
com muito prazer.
Apenas seis meses depois, conseguiram uma vaga numa es-
cola pública e uma creche para o irmão menor. Lá, ele contraiu
uma meningite viral que, confundida com gripe, acabou negli-
genciada, levando o garoto a óbito meses depois – levando con-
sigo os últimos fiapos de interesse pela vida que restavam à mãe.
O terninho cinza e o caixão branco com alças douradas fo-
ram pagos pela senhora idosa e algumas amigas do carteado de
48 L Lindy Lima
Foi promovida a gerente, depois da faculdade, mas o salário
ainda era ínfimo. Mal dava pra pagar o aluguel do quitinete na
Lapa, dividido com uma amiga. A mãe agora alternava tempora-
das na clínica a outras com elas. Quando a mãe vinha, ela dormia
na cozinha, com o bebê. Não cabiam três adultos num quarto.
Mas, quanto se tornava um musgo no canto do sofá, era hora de
voltar para a clínica.
Por inúmeras vezes foi para a faculdade sem jantar. Como
dizia, bebia água para matar a fome afogada, e se alimentava de
orações. Pelo menos meia hora por dia era dedicada a conversar
com Deus. Sem isso, não conseguia manter-se de pé, afirmava.
Conforme o final do curso se aproximava, as dificuldades au-
mentavam. A amiga com quem morava casou-se, e não conse-
guia mais ninguém para dividir as contas. Por isso, o diploma
foi postergado por alguns anos. Entre DPs e trancamento de
matrícula, concluiu o curso ao cabo de intermináveis nove anos.
Era a mesma idade do filho, que agora já era seu compa-
nheiro. Já ficava sozinho em casa, enquanto ela trabalhava. Certa
vez, uma vizinha a denunciou às autoridades por abandono de
incapaz. Mas ela fez a assistente social chorar quando discor-
reu sobre sua situação e, de quebra, ainda conseguiu uma cesta
básica.
Com diplomas em mãos, bateu de porta em porta. Mas fal-
tava o principal. O exame da Ordem. Não foi tão fácil quanto
imaginou. Sem estágio e OAB, emprego na área estava com-
pletamente fora de cogitação. Até que veio um e-mail, de um
antigo professor, que, para sua grata surpresa, lembrava-se dela.
Perguntou-lhe até do filho, além de outras amenidades. Este lhe
conseguiu uma entrevista num renomado escritório de advoca-
cia, para o qual prestava consultoria diariamente, especializado
em casos empresariais, nacionais e internacionais também.
Mas, sem a famosa carteirinha vermelha, o máximo que
conseguiu foi uma vaga na recepção. Salário menor do que de
gerente de loja, mas não trabalhava aos finais de semana. Em
50 L Lindy Lima
No dia seguinte, a copeira faltou. Ela mesma levou o café, e
teria estado tudo bem, se ela não tivesse tropeçado no americano
e lhe lavado a camisa de café. A cozinha não era seu forte. O café
era meramente morno. Menos mal. Ainda assim, o desespero
lhe turvou as vistas. “Pai, tenha misericórdia de mim”, suplicou
mentalmente. Seus pensamentos recorreram a lugares ilógicos.
Sua cabeça quase se afundou no desespero.
Esperou os piores agravos, mas o que recebeu foi uma sarai-
vada de risos. O americano achava engraçado o jeito atrapalhado
com que os brasileiros executavam as coisas – e que, ao final, dava
tudo certo. Gracejou! Os risos inundaram a sala, assim como o
café no carpete. Todos se prontificaram a ajudá-la. Mas lá esta-
va ela, de quatro, enxugando o carpete, a fim de evitar maiores
acidentes. Por fim, ordenaram que chamasse a entrevistada. Ela
se ergueu como quem bate continências diante de um batalhão
convocado à guerra, e se fez pronta para a carnificina.
Houve, de antemão, entreolhares de espanto. Mas quem lhe
pediu que se sentasse foi justamente o americano que, a essa
altura, já tinha ido ao banheiro tirar metade do café da camisa.
Mas a mancha marrom ainda reluzia solenemente, como uma
tatuagem que se seguiria por toda uma triste existência. Pesou.
Nem mesmo o professor estaria lá para segurar a sua mão
em condolências, na saída. A essa altura, estava em outro estado,
Tomando posse de um novo emprego. Estava definitivamente
entregue aos leões! E, em vez de Daniel, lembrou-se da passa-
gem de Joel. “A ti, Senhor, eu clamo” ( Joel 1-19). Jamais pode-
ríamos compará-la a uma pregadora reacionária, mas era uma
grande iconoclasta da palavra divina. Jamais perdia a chance de
nos brindar com uma palavra de fé e esperança, fosse qual fosse
a situação. E, por isso, jamais permitiu que seu próprio coração
endurecesse, mesmo em momentos nos quais sua vida parecia
um pesado fardo fora de controle.
De início viu muitas caras feias. Ninguém acreditou. Che-
garam a lhe perguntar com quem ela estava dormindo para
52 L Lindy Lima
O seu filho agora ganhara a primeira bicicleta. Daniel era
o seu nome. Uma referência àquele outro, jogado na cova junto
a leões. Assim como o profeta, eles também sobreviveram. Além
do pessoal da igreja, tinha o professor, que, apesar de longe, ja-
mais deixou de dar notícias. E, da última vez, informou que esta-
va de volta, pois não havia se adaptado ao clima desértico de uma
das capitais do Nordeste, a qual não me recordo.
Marcaram de se ver. Ele agora estava mais grisalho, embora
parecesse cinco anos mais jovem do que quando deixou o escri-
tório. Talvez fosse o bronzeado aparente. Ficou chocada quando
ele lhe revelou que não houve emprego algum fora de Sampa.
O moço tinha tirado um ano sabático, e andou perambulando
por vários cantos do Brasil. Praias, montanhas, desertos, serrados,
caatingas, florestas, enfim. Estava de volta. E continuava sofren-
do por amor. Não adiantou fugir, reconheceu. A pessoa de quem
gostava não lhe dava a mínima. Levava tudo na mais deliciosa
brincadeira, e ele se cansou. E, agora que estava de volta, ia investir
pesado. E, sem titubear, antes de uma possível invertida, ele sacou
um anel de compromisso e lhe atarraxou no anelar direito.
Apesar de perplexa, não sentiu asco por aquela inusitada
cena. Eu a encorajei a se conhecerem melhor, mas ela deixou
claro que não haveria nada de sexo. Ele era 15 anos mais velho,
e tinha um filho adolescente. Era um pouco sem paciência para
essas atitudes quase pueris, mas no fundo achou genial, de modo
que se adaptou rápido ao celibato da moça. Certamente estava
cansado de promiscuidades. De mulheres vendendo facilidades
sexuais, em troca de uma carona em carro de luxo ou uma vi-
sitinha ao seu apê no Morro do Careca, aos finais de semana.
Afinal de contas, era um homem um tanto atraente, não só fi-
nanceiramente, como fisicamente. Porte atlético. Corria, andava
de bicicleta e frequentava academia todos os dias.
Faziam programas de casal de namorados, mas sempre
acompanhados dos filhos. Isso inibia muita coisa, dizia, rindo.
Ao final de três meses, quebraram o jejum. E a coisa engrenou
54 L Lindy Lima
o número de todos os amigos em comum, para não correr o risco
de, num momento de desespero, recorrer a algum deles com as
mais vis e descaradas desculpas – aquelas que nem mesmo os
drogados, em seus piores momentos de abstinência, são capazes
de dar, para saciar seus vícios, mas os apaixonados, sim, a pedir-
-lhes um refrigério urgente. E, ao cabo de seis meses, o rapaz
jogou a toalha e pediu para marcarem a data do casamento.
A essa altura, o noivo já estava trabalhando na área jurídica
de uma grande multinacional, e tratou de comprar um aparta-
mento digno da família que iria se formar dali por diante. Pre-
cisavam acoplar, além dos filhos do casal, a mãe dela, que agora
estava em melhor fase, embora não tivesse comparecido ao casa-
mento. Eu também não fui. Não fui porque era sábado. Precisava
trabalhar – e, também, porque não gosto de tal evento, verdade
seja dita.
Mas a ajudei a escolher o vestido. Penosa contribuição.
Acho que ficou regularmente feia, pois a convenci pela opção de
um vestido bolo de noivas. Se for para enfiar o pé a jaca, vamos
com gosto. Mas ela se excedeu. O vestido quase não coube nas
fotos, veja lá na simples cerimônia de cartório, já que o noivo era
divorciado. Foi aí que percebi, definitivamente, o quanto não sou
indicada para personal stylist casamenteira.
Certa vez, perdi uma amiga por causa disso. Quer dizer, não
era tão amiga assim – do contrário, não teria ficado brava por tão
pouco. Falei que não iria ao casamento dela porque não gostava
do evento. Ela chocou-se.
“Mas todo mundo gosta de festa de casamento”, argumentou.
“Não sou todo mundo, como diria minha mãe”, retruquei.
Também deixei claro que não gostei da simplicidade do
chique vestido de manga única. Parecia uma tripa, apesar da seda.
“Primeiro: manga única não cai bem pra ninguém, a meu
ver. A não ser que só disponha de um único braço. Assim, tal-
vez!”. E continuei: “Vestido de noiva é igual a festa junina: tem
de ter uma beleza brejeira, é coisa pra rir. Como se fosse cultura
56 L Lindy Lima
A senhora estava mais feliz, pois ajudava a cuidar dos ne-
tos, dos cachorros e do jardim, ocupando assim o tempo que,
em outros momentos, usava para divagar sobre o passado. Não
estava de todo boa. Mas, com fé em Deus, iria ficar, era o que
afirmava-me sempre.
Um dia, numa terça-feira, ela me apareceu muito abatida.
Fiquei feliz em vê-la, mas não pude deixar de questionar o mo-
tivo de tamanhas olheiras. Então me contou que, no domingo
anterior, havia recebido uma ínfima mensagem via Orkut que
lhe fez revirar as entranhas. Era uma enfermeira, solicitando sua
presença urgente à cidadezinha onde havia nascido, pois preci-
savam de sua assinatura para retirar o corpo de um homem do
hospital. Quer dizer, meio corpo: o câncer o havia dilacerado
pela metade. Caso contrário, seria enterrado como indigente.
Era seu único tio. O mesmo que ficara com a sua antiga casa.
E lá foi ela, com seu espírito de mansidão. Aquele que lhe
havia tirado quase tudo agora estava morto, sem parentes para
reconhecê-lo na gelidez da pedra sepulcral. A mulher tinha ido
embora com a filha, pois não suportara mais a devassidão do ma-
rido. O dinheiro não lhe servira para outra coisa senão às iniqui-
dades da vida. Até adquirir um câncer de fígado, que lhe ceifou a
vida, com pouco mais de 50 anos, pelo que calculou.
A única filha foi embora para os Estados Unidos e levou
junto a mãe. A enfermeira que lhe contatou deixou escapar que
as duas não vieram nem tanto pelo dinheiro, já que trabalhavam
como empregadas domésticas, mas porque viviam ilegalmente
na terra do Tio Sam, e temiam não conseguir entrar de volta
naquele país. Por isso, deram sua indicação como membro da
família. Até gostaria que fizesse companhia ao pai, caso soubesse
onde fora também enterrado. Mas tratou de fazer um funeral
digno, para salvaguardar a imagem daquele homem que havia
lhe arrancado quase tudo, exceto a mania de ter fé na vida.
58 L Lindy Lima
pele dourada, parecia sempre ter saído de uma câmara de bron-
zeamento artificial. Tinha um senso de humor aguçado, embora
não dominasse sequer o verbo ser. E, por mais que isso fosse
recorrente, para ela, era pouco. Precisava se exibir cada vez mais
para o sexo oposto.
Desempregada e sem dinheiro, vivendo numa pensão no
Largo da Batata, não conseguia mais emprego porque ninguém
lhe cedia uma carta de recomendação. Parecia estar tudo perdi-
do. Sem dinheiro, sem namorado sério, e o último aborto tinha
lhe deixado graves sequelas.
E a vingança? Não podia jogar a toalha, apesar das dificul-
dades. Então, foi fazer as unhas, para ver se melhorava a auto-
estima. E foi como sua manicure que percebi o quão doce era, e
o quanto seguia as trilhas erradas em prol da vingança maldita.
Sabendo que precisava de moradia, ofereci para que dividisse o
aluguel comigo. E foi aí que começou nossa engraçada e turbu-
lenta amizade.
Ensinei-lhe a fazer unhas. Nas primeiras duas semanas,
arrancou as unhas de toda a vizinhança. Eram só lamentos de
“ais”, quando a mulherada colocava os sapatos. Confesso que não
levei muita fé. Mas, cerca de um mês depois, estava emprega-
da no mesmo salão que eu. No começo era péssima manicure,
mas depois acabou por ganhar a simpatia da clientela. Seu senso
de humor compensava a falta de técnica, principalmente, para a
parcela mais exigente: as garotas de programa. Ouvia com aten-
ção os dilemas da clientela e, ao cabo de um ano, figurava entre
as que mais trabalhavam no salão.
Ao contrário de mim, gostava de fazer as unhas das garo-
tas de programa e ouvir suas histórias. Eu andava cansada de-
las. Mas minha amiga adorava saber, principalmente, sobre os
seus polpudos contracheques. Eram sempre as mesmas coisas:
depressão, drogas, amores frustrados e a incompreensão dos fa-
miliares. Poucas delas gostavam do ofício. Mas o dinheiro rápido
as corrompia. Outras apenas para sustentar o vício das drogas,
60 L Lindy Lima
do salão começamos a nos preocupar. Até as antigas colegas de
profissão já não tinham mais notícias dela com frequência.
Às vezes, me mandava uns recados, dando conta de que
estava trabalhando muito, mas que passaria para tomarmos um
café, ou coisas do tipo, mas nunca aparecia de fato. Até que, um
dia, nos encontramos no mercado. Era de madrugada. Meu na-
morado trabalhava até tarde e, por isso, sempre passamos no
mercado naquele horário. E, para minha surpresa, lá estava ela,
no estacionamento, acompanhada de um cara muito bonito, com
um carro espetacular.
Confessou-me que ele era casado, mas era seu fixo. “Fixo”
é como elas chamam um cliente que banca suas contas, mas que
mantém um relacionamento sem compromisso. Este, inclusive,
lhe pagava cursos de inglês e informática, e mais 500 reais por
mês. Fiz as contas e, obviamente, ela estava ganhando num mês
o que ganhávamos por semana no salão. Então pensei: deve ser
paixão.
Cadê a liberdade financeira, que propagara, e a exata divisão
entre sexo, namoro e dinheiro? Tinha ido tudo por água abaixo.
Cadê o bom casamento por interesse, que jurava que iria fazer?
Enfim, minha amiga estava fazendo um péssimo negócio, pois
pior do que ser amante é ser escrava sexual. Mas ela achava que
valia a pena. A maioria delas batalhava pelo fixo, enquanto o
príncipe não chegava.
Também tinha o curso de inglês. Que, tantas vezes, eu ten-
tei ensinar-lhe, mas nunca se interessou. Quer dizer, eu também
não tinha muita paciência, já que seu português era precário.
Quando ela vinha com o “a gente fomos” e o verbo “ponhar”, eu
me retirava e a deixava falando sozinha. Ponhar é uma estranha
junção entre os verbos pôr e colocar. Ainda difundido, em alguns
cantos do Brasil.
No entanto, continuava resignada a viver trancafiada em
uma quitinete, assistindo a um boyzinho se drogar e exigir todas
as impertinências sexuais, ao custo de um salário de fome, só
62 L Lindy Lima
Fomos atendidas por um jovem e gentil médico, que não
nos fez pergunta alguma, além do que poderia necessitar para
lhe passar os medicamentos e curativos. Isso me fez supor que
um hospital daquele porte transforma tudo em rotina. Pergun-
tou por quanto tempo estava machucada, e se foi com material
de ferro, aço ou outro elemento parecido, e só.
Ela tentou responder, balbuciando e escondendo a maio-
ria das verdades. Não sei se porque já estivesse melhorando, ou
se porque estava sendo atendida por um jovem bonito, mas seu
rosto já ganhara outros contornos. O médico a mandou para a
enfermaria, fez-lhe uns curativos e, depois de cinco horas de ob-
servação, fomos embora. Na saída, o encontramos novamente.
Ele me chamou e sugeriu, sutilmente, que denunciássemos o
agressor. “Não é porque vocês fazem o que fazem que devem se
submeter a este tipo de situação”, nos alertou ele. Fiquei a me-
ditar: “Como sabia que era prostituta?”. Até eu estava no barco.
Até fiquei lisonjeada, por saber que tinha atributos aceitáveis ao
ofício.
Voltamos as duas mudas, dentro do táxi. Faltavam-me pa-
lavras, e lhe faltava voz. Ela, estava usando um xale sobre meta-
de do rosto, para evitar comentários. Mas, volta e meia, o olhar
curioso do taxista pelo retrovisor tentava adivinhar o que poderia
ter sido aquilo. Foi só quando chegamos em casa que percebi que
ela ainda usava a cinta-liga vermelha e preta, com delicados bol-
sinhos para camisinha. Por isso não foi difícil o médico chegar
àquela conclusão.
Cuidei dela durante os três dias seguintes. Eu vinha para o
trabalho e, depois que voltava da faculdade, ia direto para a casa
dela. E foi nesse revezamento que a vi melhorar, sarar, e começar
a reclamar a falta do amado. Só depois de um mês ela me pediu
dinheiro emprestado, para pagar o aluguel, pois nunca mais o
cara apareceu por lá. A mísera fonte secou.
Mas nunca me falara nada. Além disso, eu também não lhe
perguntei. Até que, uns dois meses depois, ela resolveu deixar o
64 L Lindy Lima
que nunca combinou com ele. Só ia ali para comprar droga ba-
rata. Ademais, tinha horror daquela gente pobre. Até dos pais,
que insistiam em convidá-lo para as festas de aniversário dos so-
brinhos. “Aquela puta acabou com minha vida”, disse, enquanto
dava sinal para um táxi, na avenida. Então pensei: “E você? Com
quantas vidas já acabou?”.
Passaram-se mais de dois anos. Um dia eu estava fazendo
reportagem sobre moda, num shopping da capital, e eis que ela
me aparece, cheia de sacolas por todos os lados. Minha amiga, a
mais louca que já conheci, me agarrou, me beijou, me suspendeu
no ar. Tinha uma aparência ótima, de quem estava realmente
feliz. Perguntei sobre sua vida, mas não teve tempo de responder,
porque apareceu um homem de mais ou menos uns dois metros
de altura. Um negro daqueles que chamamos na Bahia de preto
retinto, bonito e elegante, a quem ela me apresentou como seu
marido.
Parecia estar um pouco apressado, mas nos permitiu tomar
um café juntas, enquanto ele fazia umas ligações. Ele falou qual-
quer coisa em inglês, com um sotaque estranho que a princípio
não identifiquei. Mas mostrou-se com um sorriso cordial, de
quem não queria contrariar a mulher, apesar da pressa. “E aí?
Gostou do que você me arranjou?”, perguntou-me, sorrindo.
Foi quando ela começou a contar sua nova trajetória.
Quando ela chegou à rodoviária do Recife, indo embora – por-
que, depois da visitinha em minha porta, a procurei e exigi que
fosse –, ela conheceu o nigeriano, com o nome de Konon. Eles
se trombaram na rodoviária, e ele lhe pediu alguma informação.
Lembram-se daquele curso de inglês, que a mocinha morria de
orgulho em fazer? Pois sim, ela parece ter ido além do verbo
“to be”. Não é que conseguiu se comunicar com o moço e até
ajudá-lo na compra de duas passagens para São Paulo, além
de dois pernoites em um hotel, ali mesmo, nas imediações dos
Guararapes?
66 L Lindy Lima
E, ao final, me lembrou: “Não te falei que não morreria
com sobrenome Santos da Silva?”.
Recentemente, enquanto fazia minha mudança, achei o te-
lefone de uma parenta dela e resolvi ligar para saber notícias. A
moça me disse, sem muitos rodeios, que estavam agora cuidando
do bebezinho, pois a irmã tinha ido se encontrar com o marido
na terra dele, mas alguma coisa tinha dado errado em uma co-
nexão na Espanha. Parece que passou muito mal do estômago, e
as autoridades não a deixaram embarcar. Por fim, a companhia
aérea trouxe o bebê de volta e o entregou à família, no Reci-
fe. Isso havia acontecido há uns seis meses, e do marido não
se tinha notícias há muito. Foi o que ressaltou a moça, de voz
desesperançosa.
Uma das coisas com as quais o ser humano ainda não con-
segue lidar é com a traição. Todo mundo tem receio do beijo do
Judas. Ficamos à espreita, aguardando o beijo fatídico e, quando
o recebemos, o levamos conosco para o túmulo. Se for por parte
de colegas de trabalho ou amigos, ainda é passível de remendos.
Mas se a dita ocorre dentro do perímetro familiar, mais precisa-
mente entre quatro paredes, um ódio mortífero inebria as vísce-
ras, causando-nos os mais diversos males da alma.
Conheci uma senhora com quem tive contato por mais de
cinco anos, e a quem apelidamos de codorna –, por andar sempre
rápido e cabisbaixa, apressada, como se tivesse a escapar de um
feroz predador – no caso dela, a própria vida. Era, de fato, igual
a uma codorna.
Mas, como se julgava demasiadamente chique, nós a cha-
mávamos, também, pelo último nome científico da ave: Maculo-
sa, de Nothura maculosa, que lhe caía como uma luva.
A codorna, ou maculosa, tinha um coração como poucos,
mas era melindrada demais. Não conseguia perdoar a traição do
marido. Saltava-lhe aos olhos como uma doença, dilacerando as
vísceras. Foi preterida em favor da secretária, por um marido a
quem tinha dedicado 30 anos de sua triste vida. Isso sem men-
cionar o fato de a moça ter sido uma de suas poucas grandes
amigas. Pelo menos foi o que pensou, durante muito tempo.
A secretária era uma mulher muito feia e austera. Tinha,
inclusive, uma deficiência em uma das pernas. Até ajudou-a, por
muito tempo e com extrema eficiência, a cuidar das finanças do
patrão desorganizado, e das minúcias das filhas mimadas.
Esses ressentimentos amorosos a codorna costumava afo-
gar em comida ou em receitas de bolo. A cada dez assuntos, nove
eram sobre receitas ou indicação de como não engordar. Além
dessa forma de imputar a dor, falava mal das ações do então
68 L Lindy Lima
presidente do Brasil, e dos nordestinos em geral, mesmo saben-
do que eu era um deles. Olhando por esse prisma, o presidente
seria odiado por pelo menos três plausíveis critérios: homem,
político e nordestino.
Discorria muito bem sobre os costumes italianos de seus
ancestrais, de quem tinha muito orgulho de descender. Lembra-
va a infância mediana, em uma cidadela do interior do Paraná,
e as agruras de um pai político e mulherengo. Um dia, se con-
fessou temerosa de que os filhos de qualquer um do bem estão
sujeitos a se casarem com o “povo de lá”. Lá pra depois do norte
de Minas, eu supus. Nem questionei o “lá”. Abstive-me da loca-
lização do advérbio, para evitarmos um embate racista.
Naquele momento, ela sequer cogitou que eu portava uma
arma branca. Um afiado alicate de unha, e inúmeras pontiagu-
das espátulas. Mas, como me contive, impassível ao assunto, ela
emendou: “Chega um momento em que temos de deixar os nos-
sos filhos casarem-se com qualquer um”. E emendou: “Me res-
ponda: quem está livre de ter um filho casado com um povo de
lá? Mesmo nós, descendentes de italianos, não estamos imunes
a isso”.
Eu, resignadamente, concordei. Ela era a cliente; eu, a fun-
cionária. Embora minha vontade fosse de lhe lembrar um fato
que muitos esquecem, ou sequer sabem: a esmagadora maioria
dos pobres italianos que migraram para o Brasil nada mais era
do que escravos brancos. Com poucas exceções, foram ampa-
rados em terras tupiniquins com regalias que os escravos e ex-
-cativos não tiveram. Regalias em nossas terras de gente burra
e analfabeta, como pensavam – e pensam, ainda hoje – algumas
nações sobre nossa gente.
Lembro-me de que ela e uma cabeleireira japonesa, com
quem trabalhei por muito tempo, tinham os mesmos pensa-
mentos partidários sobre determinados assuntos de nossa gente.
Afirmações racistas, as quais não cabe aqui replicar. Eram ba-
seadas em reportagem torpes e conceitos ultrapassados, na base
70 L Lindy Lima
Como gostava muito de conversar, o papo fluiu com natu-
ralidade, e lá pro final da sobremesa já tinham trocado telefones
e ele já sabia todo o seu passado, nos mínimos detalhes. Não
poderia ser diferente: as pessoas infelizes têm mania de falar da
vida particular para qualquer um que se disponha a ouvi-las.Tal-
vez seja por isso que a vida se torna um fardo muito difícil de
carregar. É o peso das diversas opiniões. E, depois, se queixam,
ficam contrariadas porque todos dão pitacos em suas vidas.
O senhor era dez anos mais moço, porém muito românti-
co. Parecia até muito interessado na coitada retraída. Ela, como
sempre, veio me perguntar sobre o que fazer. Só que, desta vez,
não foi para me pedir opinião se deveria ou não permitir que as
filhas viajassem e ela ficasse em casa, ou nas casas delas, cuidando
dos netos. Desta vez pensava nela, única e exclusivamente nela.
A princípio, pensei estar ouvindo vozes do além, através do
corpo de outra pessoa. Mas, quando retomei os meus sentidos e
percebi que ali, diante de mim, havia uma mudança viva, quedei-
-me de consternação. Uma nova mulher. Uma mulher apaixona-
da. Um dia, convidou-me para conhecer o rapaz, e lá fomos nós,
a um restaurante por quilo próximo da Cotoxó, na Pompeia. Ele
era realmente um senhor muito bonito, mas não aparentava ser
tão mais jovem que a codorna. A vida também lhe fora um tanto
perversa, apesar de ele não dar muita atenção para o passado.
Fato este que a codorna nunca compreendia. Queria ele lembran-
do sempre do passado, refletindo sobre os erros, remoendo-se
com a ingratidão da família, ou coisas do gênero. Ele, no entanto,
queria e desejava o presente, e parece que agora o tinha.
O jeito rude e desleixado de se vestir indicava, de fato, um
homem muito maltratado pela vida, embora fosse aparente sua
nata falta de requinte. Tinha conseguido alguma ascensão finan-
ceira ao longo dos anos, mas naquele momento estava comple-
tamente decaído. Os filhos do primeiro casamento haviam lhe
arrancado tudo. Fato que o abalara bastante.
Era um cidadão rude na maneira de falar. Mas, no trato com
sua senhora, era puro cavalheirismo, e chegava a ser grosseiro
72 L Lindy Lima
educação.” E, de fato, era. Era um cara que ousava atrapalhar as
sessões de cuidados com os netos malcriados para perguntar se
ela estava bem, ou se precisava de alguma coisa.
Por fim, chegou à conclusão de que eles eram muito di-
ferentes. A genética também não lhe foi favorável: embora sua
aparência fosse de um europeu nato, seus modos de falar e gesti-
cular faziam dele um nordestino por excelência, como por vezes
mencionou a infeliz, contrariedade.
Meses depois, perdeu o brilho no olhar, e recomeçou a falar
mal do presidente. Andava cada vez mais rápido, chorava por
tudo e, volta e meia, tornava a falar sobre a fatídica traição ma-
trimonial que havia levado a sucumbir parte da vontade de viver.
Todo o seu íntimo vinha à tona, lembrando como fora maltrata-
da por ele e toda a sua família italiana.
Lembrava-se do fatídico episódio que expôs a traição. Foi
no dia em que a mãe da secretária morreu, e ela foi acordada no
meio da madrugada pelo marido, informando-a de que precisa-
ria sair em auxílio à sua secretária. Como ela sofreu em vê-los
juntos no mesmo velório, e como desejou ser enterrada junto
com a defunta, a ter de suportar aquela humilhação. Não se deu
ao trabalho de conversar com o marido. Chamou os três filhos,
os prendeu no quarto junto com o pai, e o fez confessar que
estava tendo um caso extraconjugal. Daí por diante, a vida desta
família foi banhada de dissabores.
Ela pediu a separação. Ele saiu de casa, mas voltou em se-
guida, alegando que se aproximava o casamento da primeira fi-
lha e ele gostaria de estar em casa quando isso acontecesse. Ela
de pronto o aceitou. Mas esperava que ele se separasse da outra
e, com isso, colocariam um ponto final na história, o que não
ocorreu.
Ele continuou dando suas escapadinhas, e estava ainda mais
exigente com os afazeres domésticos e os cuidados com seus per-
tences. Ela, depois de mais de dois anos de sofrimento, pediu a
separação definitiva, mas ele não acreditava. Saía e voltava quan-
do bem queria, pois continuavam morando na mesma casa.
74 L Lindy Lima
frente, jamais deixou de segurar a mão da mulher, fato que ca-
racterizou, segunda ela, profundo desrespeito por aquela que era
a mãe dos filhos deles e, ainda por cima, havia lavado suas cuecas
por mais de 30 aos. Fez questão de relembrar isso.
Depois disso, vieram outras reclamações: os jovens vizinhos
faziam muito barulho na hora do sexo. O metrô estava sem-
pre lotado de nordestinos. Os gatos dos vizinhos faziam xixi no
corredor. E os porteiros falavam errado. Um deles tinha até os
trejeitos do então presidente da República. E assim por diante.
Nesta última sessão, também percebi que o cabelo perdera
o brilho. Ela andava cada vez mais rápido e de cabeça baixa. Os
olhos de peixe estavam mais protuberantes e parcialmente ma-
rejados. Não havia mais nada daquela criatura que lembrasse a
mulher que, há poucos meses, tinha renovado o guarda-roupas,
feito plástica na barriga e diminuído os fartos seios, com os quais
a lei da gravidade não havia sido indulgente. Tinha viajado à
Itália, visto seus antigos familiares, trazido lembrancinhas para
todos, inclusive para mim.
Não se interessava mais por cinema, nem queria mais sair
para dançar. Estava novamente focada nas doenças imaginárias
da filha mimada e do neto malcriado. E continuava a falar hor-
rores do presidente. Da última vez que liguei para saber quando
teria alta do hospital, ela lamentou que o ex-marido tinha aca-
bado de voltar de lua de mel, e temia que a então ministra de
Minas e Energia fosse a sucessora para a Presidência.
76 L Lindy Lima
principalmente, da unha da pessoa do lado, que era sempre mais
bonita que a dela. Tudo coisa da cabeça. Era uma pessoa muito
culta. Conhecia de política, sociologia, filosofia e história. Em-
bora deixasse que o senso comum da televisão lhe deteriorasse os
sentidos. Carregava um preconceito que só vi em pouquíssimas
pessoas.
Nunca viajou pelo Brasil porque, segundo ela, onde quer
que fosse tinha “mulatos nordestinos”, e não confiava nesse povo.
Um dia, soltou a seguinte pérola: “A nossa desgraça foi a escravi-
dão”. Sim, também acho. Mas nossas opiniões não foram conver-
gentes além daí. E prosseguiu: “Somos uma sociedade violenta,
pois o negro é originalmente violento”. “Basta olhar os morros
do Rio de Janeiro. Vemos como se mata e se morre naquele lu-
gar”. Enquanto ela “subia o morro”, eu tive vontade de descer das
tamancas, como se diz. Não o fiz, primeiro porque o cliente tem
sempre razão, embora não seja necessário concordar – mas calar
já ajuda bastante. E também porque a cabeleireira dona do salão
já me olhava com cara de incredulidade. Ela não só era negra
como nordestina. Mas, nesse caso, a cliente esqueceu-se disso.
Isso porque ela era empresária, e as pessoas reconhecem a nossa
cor pelo dinheiro que temos. Um preto com dinheiro pode ser
razoavelmente branco.
Certa vez eu conversava com uma moça, em Salvador. Di-
vidíamos um táxi. Ela morava em São Paulo e os pais em um
condomínio, num bairro do qual não me recordo o nome, mas
sei que era nobre. Falamos sobre várias coisas, e chegamos ao
preconceito. Foi quando ela soltou: “Aqui neste bairro há uma
visível separação entre negros e brancos. Não há negros. Eles
moram do outro lado. Nós, do lado de cá”. Ou seja, no condomí-
nio. Mas o que me chamou a atenção é que ela era muito negra.
Mas, como tinha conseguido uma ascensão social, se conside-
rava branca. Pensei comigo: “Território perigoso. Calar-me-ei”.
Despedimos-no sem muitos rapapés, e jamais me esqueci dessa
fala. Mas, não raro, vemos pessoas que pensam assim. E era este
o sentimento dela para com minha patroa.
78 L Lindy Lima
parte do tempo desempregado e em busca do emprego dos so-
nhos, digno de seu incomparável talento.
O cara nunca estava satisfeito com nada, e sempre achava
que os trabalhos ou a posição ocupada estavam aquém de suas
capacidades. Então, começou a sonhar com o negócio próprio.
Queria ser o seu próprio patrão, e investiu, além de todas as ex-
pectativas, a poupança da mulher nesse ideal. Por mais que ela
reclamasse da sobrecarga familiar, ele sempre argumentava que
ela era sem esperanças, tinha hábitos de pobre e, por isso, atrapa-
lhava o desempenho financeiro da família. E, além do mais, ele
não deveria submeter-se a certos tipos de ocupação, pois perde-
ria credibilidade junto aos amigos do clube e afins. Amigos esses
que, depois de verem o resultado dos seus investimentos, obvia-
mente iriam lhe ajudar, incluindo-o em melhores rodas.
Fazer parte de um rol de amizades que estava muito além
de suas possibilidades era motivo de desavenças constantes entre
os dois. Já que, para isso acontecer, ela precisava economizar nas
despesas domésticas e ajudá-lo a pagar a mensalidade do clube,
bem como a compra de roupas e sapatos finos. Inclusive, os pró-
prios filhos, em Dia dos Pais, teriam de presentear-lhe com mi-
mos que custariam mais do que os salários de todo o mês. Caso
contrário, mostrava-se ofendido.
Finalmente ele conseguiu, através de um empréstimo e de
algum dinheiro guardado da esposa, montar seu primeiro negó-
cio. Um quiosque de café em um grande shopping da capital. A
família não pôde trabalhar, para não dar a impressão de uma em-
presinha familiar. Ele desejava, em breve, constituir uma extensa
rede de cafés. Mesmo assim, o negócio começou a prosperar. Em
dois anos, ele tinha montado mais três lojas e todas estavam fa-
turando razoavelmente bem.
Já no terceiro para o quarto ano, ele comprou um belíssimo
apartamento nos Jardins e, finalmente, saíram do aluguel. Mas as
prestações continuavam sendo pagas pela mulher e os dois pri-
meiros filhos, que a essa altura já faziam faculdade e conseguiam
80 L Lindy Lima
com o autorretrato na parede do quarto de um dos filhos, onde
aparecia ornamentado por carros de luxo e de terno bem cortado.
No casamento do filho mais velho, uma figura esquelética
e envergonhada, em mangas de camisa, apresentou-se no altar
como pai do noivo. Um convidado ofereceu um terno, e tudo
acabou numa bebedeira só – ele contando aos convivas sobre suas
últimas aventuras pela Europa. Alguns chegaram até a acreditar
nas peripécias, mas um convidado jurava que o tinha visto catan-
do papel em uma movimentada avenida de Higienópolis.
Num dia de sexta chuvoso, após vender seu papelão, próxi-
mo à Avenida São João, e tomar seu porre costumeiro, ele passou
mal. Mas, como já estava tarde, o dono do bar o chutou para a
calçada e fechou o estabelecimento. Outros moradores de rua
tentaram levá-lo para suas acomodações, embaixo do Minhocão,
mas ele já se encontrava teso. Acionaram as autoridades respon-
sáveis. No bolso de um Armani puído, repousava um passaporte,
com vários carimbos e, no interior, um número de telefone. À
meia-noite, sua filha caçula atendera ao telefonema sobre a finda
vida daquele que, um dia, sonhara ter o mundo aos seus pés.
Meses depois, a filha adentrou o salão, muito triste. Disse-
-nos que fora falar com alguns amigos de rua do pai, a fim de sa-
ber mais detalhes sobre sua morte, e ficou surpresa. O pai nunca
havia falado que tinha filhos no Brasil. Um deles foi mais longe.
Afirmou que o velho dizia ter familiares apenas na Europa. Ex-
ceto mulher – esta havia morrido há muitos anos. E lá viviam
em suntuosos castelos, e não gostavam do Brasil, e que, por ter
se cansado de uma vida supérflua, deixou o Velho Continente
sem eles.
Sendo assim, antes de vir ao Brasil, passou uma longa tem-
porada na Índia, visitando templos e gurus. Foi um desses que
lhe sugeriu abdicar de todos os bens materiais, para o cresci-
mento da alma. Por isso, vivia daquele jeito. Por livre e espontâ-
nea vontade. Inclusive o dinheiro arrecadado, com a venda dos
materiais catados, ele dividia com todos ali. Só a dormida é que
ninguém sabia onde ficava.
82 L Lindy Lima
Como a mãe gostava muito de ler, a filha lhe deu de presen-
te uma biblioteca em um dos quantos vagos. Nas prateleiras, era
possível perceber leituras leves como Sidney Sheldon, Agatha
Christie, Tom Clancy e Rosamunde Pilcher, além da última sen-
sação: Marian Keyes. Inclusive chegou a emprestar-me algumas
obras desta última, embora eu não tenha conseguido lê-las. Mas
o quadro muito bem pintado, com traços de grafite em cinza,
representando a família, com a seguinte descrição: O criador e as
criaturas, em nada ornava com aquela sala clara e sem mobília
– a não ser por uma cadeira branca e laranja. Não me contive,
e perguntei de quem era. “Não o joguei fora porque é a única
herança que o pai dos meus filhos deixou pra eles”, respondeu-
-me solenemente. “Como não posso reparti-lo em três, ficará
comigo”, salientou.
Agora, em vez de preconceito, trazia para mim livros com
narrativas suaves. Saía pra almoçar ou jantar com algumas vizi-
nhas do prédio. Um indício de que voltara a acreditar em amiza-
des. Como ela mesma proferia antes: “Ter amigos é engolir sapo.
Não estou disposta”. Mas, se dispôs. Iam a restaurantes japoneses.
Depois de 50 anos, começou a dirigir, e comprou seu primeiro
carro, um Fiat Uno quadrado. Às vezes, quando a sua filha caçu-
la estava viajando, ela me convidava para lhe fazer companhia e
dormir lá. O meu espanto não poderia ser maior. Nunca aceitei,
não como represália, mas porque abomino dormir fora de casa,
por mais que tivesse lá uma recheada biblioteca ao meu dispor.
Mas foi um “tratado de psicologia” perceber a mudança da-
quela figura, depois de vingada. Como dizem as escrituras sa-
gradas, a soma do pecado é a morte. A soma da felicidade é uma
viuvez desejada. Até as profundas linhas de expressão bateram
em retirada. Certa vez, dei-lhe de presente um livro de que gosto
muito, e penso que toda mulher liberada e emancipada deva ler.
É bobageira, mas edificante para o ego. Solstícios de Inverno, da
própria Rosamunde Pilcher.
Este livro a inspirou bastante. Bom pra mim. Ganhei, além
de uma excelente amiga, para falarmos de política, uma pessoa
84 L Lindy Lima
O crime da juíza
86 L Lindy Lima
em Direito, aos 23 anos. A mãe não deixou que ela parasse por
aí: “Ser advogado neste país de merda não quer dizer nada. Bom
é ser juiz, porque você é a máxima autoridade no seu ambiente
de trabalho”, conclamava a matriarca.
E a menina tomou estas palavras como verdade absoluta, e
assim o fez. Se pôs a estudar dia e noite, se esquivou dos poucos
amigos, e se enclausurou até sangrar diariamente pelas narinas,
de tanto nervoso. Aos 27 anos, ela era juíza do trabalho, e come-
çou a trabalhar no famoso prédio do Lalau, na Barra Funda, o
edifício conhecido que levou o juiz Nicolau dos Santos Neto e
outro montante de políticos para a prisão, graças ao escândalo de
superfaturamento da construção, no final dos anos 1990.
Mas o fato é que quando ela chegou lá, era tudo comple-
tamente diferente do que sua mãe havia lhe sentenciado a vida
inteira. Foi chocante descobrir que não há quem não seja subor-
dinado. E ela era apenas uma juíza substituta. Era escrava do seu
próprio status. Vivia desesperada, por medo de errar suas sen-
tenças. Trabalhava oito horas por dia, sem tempo para respeitar.
Era um lugar hostil. Sempre que tinha festas com os grandes,
no final do ano, ela passava mal. Odiava o mundo dos juízes e a
maneira como se comportavam diante dos demais mortais, o que
ela chamava de “juizite”.
Juizite era, mais ou menos, achar que se podia tudo, que se
mandava em tudo. Mas quando cada um colocava sua cabeça
no travesseiro, via que eram os mais frágeis seres do universo,
podiam menos do que qualquer um, e seriam sentenciados por
muito menos do que os outros. Ela nunca perdoara a mãe pela
glamorização da profissão que a tornara escrava. O palco do Su-
premo Tribunal do Trabalho era muito diferente daquele que
imaginou, com aplausos e demonstrações de afeto.
Lembro-me de que, quando entrei na faculdade, ela me
abraçou com lágrimas nos olhos, desejou-me felicidade e dis-
se ter muita inveja de mim, naquele momento, pois eu poderia
ser uma jornalista e cobrir a vida das celebridades. “Acho que se
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cuidava de sua casa e do filho de dois anos. Mas, aí, foi quando
ela começou a olhar de um lado para o outro, para ver se nin-
guém nos escutava, quando percebi que se tratava, realmente, de
algo abrasador.
Dessa serviçal ela jamais havia falado absolutamente nada.
Eu sabia que trabalhava com ela havia muito tempo, pois eu
mesma sempre a via esmerando-se na limpeza da sacada, to-
dos os dias, ou mimando o filho dela, de dois anos, no carrinho,
quando ia levá-lo ou buscá-lo na escola. Ela uma mulher morena
e forte. Com ar austero, traços másculos e cara de poucos amigos.
Dava sempre a impressão de que estava pronta para a batalha.
Cabelo amarrado em rabo de cavalo e bermuda justa, deixando o
seu corpo, bem definido, à mostra. E tênis baixo.
Então, nesse dia, a empregada chegou um pouco descon-
fiada e apreensiva, dizendo que precisava falar algo de muito
importante com ela. Porém, não poderia ser naquele momento,
porque o filho dela estava junto, e preferia também que fosse
quando o marido não estivesse.
A Juíza foi para o trabalho imaginando mil coisas. Um pe-
dido abusivo de aumento salarial, uma demissão instantânea, ou
alguma ação na justiça, contra ela. Não suportando mais a ansie-
dade, pediu licença, a primeira em mais de dois anos, e foi para
casa. A empregada, então, começou sua sentença. Confessou,
sem rodeios, que era lésbica e que tinha um desejo insaciável de
transar com a patroa, pois há muito sentia um tesão incontrolá-
vel por ela.
Motivo pelo qual trabalhava tanto tempo por uma remu-
neração tão insignificante, emendou. Confessou, também, que
nunca havia sido faxineira antes: era professora de ginástica, mas,
depois que tinha conhecido a patroa em uma academia, havia
se apaixonado por ela. Por isso veio trabalhar, com referências
falsas, na tentativa de uma aproximação. A moça morava no
mesmo bairro e, como já a conhecia de vista, arquitetou o plano
90 L Lindy Lima
vontade alguma nem disposição de despedir a moça. E, de que-
bra, não dividiu esses contratempos com o marido, temendo que
ele, de imediato, despedisse a mulher.
O marido dela era um cara bacana, muito atualizado nas
coisas do mercado econômico. Era 15 anos mais velho, de uma
tradicional família nordestina. Tinha estudado economia e era
pós-graduado numa das melhores instituições americanas. Tra-
balhava para uma multinacional. Era para terem uma vida mais
confortável, mas tudo o que o marido ganhava, guardavam, espe-
rando por tempos piores. Por isso, moravam em um apartamento
de menos de 100 metros quadrados.
Ele cuidava dela e do dinheiro também. Não acreditava
em seu potencial econômico, já que gostava tanto das coisas do
mundo artístico. Em outras palavras, ela era tão somente uma
fútil. Por isso, ele se achava no direito de cuidar do patrimônio
deles. Guardando o seu salário e pagando as contas com o dela.
E, assim, ela se sentia em parte protegida, e ele cumpria o seu pa-
pel de protetor, que há muito havia prometido à sogra que teria.
Mas nunca, em hipótese alguma, a acompanhava em seus
devaneios – que incluíam um teatro ou aulas de dança, seu maior
desejo. Ela poderia ir só, se quisesse. Quando muito, um cinema,
para assistirem a filmes de tiros ou pancadaria. Os filmes infantis
também faziam parte do cardápio dos domingos, além da casa
da sogra.
Na outra semana, quando ligou para marcar, ela me disse:
“Tenho novidades que você não vai acreditar!”. Pensei em várias
coisas. Todas elas referentes a processos, dispensa por justa causa
ou coisas do tipo. Errei! E feio.
Mas ocorreu que ela ficou muito tensa com a situação e,
depois de uma semana pensando no que fazer, resolveu colocar
o filho na escola em período integral e dispensar a mulher, por
telefone. Seria mais fácil. Mas não foi. Ouviu argumentos bem
elaborados do outro lado da linha. Como que “não era uma vira-
-latas, para ser dispensada de tal forma”. Como juíza do trabalho,
ela deferiu o argumento!
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de semana, lá estava ela, para auxiliá-los no que fosse possível, e
o melhor: sem cobrar nada a mais por isso. Com a faz-tudo, sua
vida foi facilitada. Iam ao shopping, ao cinema, ao teatro. Este
último lhe dava arrepios. Como a esposa não gostava de dirigir,
a empregada fazia as vezes de motorista, e o eximia dessas coisas
tão chatas. E a vida seguia em passos lentos e agradáveis. Até
cair na malha fina da moral e dos bons costumes da matriarca
familiar.
Não precisou de muito para ela, a mãe, tentar expulsar
aquela intrusa do maravilhoso mundo que projetou para a filha.
Profissão, marido e filho.
Mas ela deu com a cara na porta. Achou finalmente uma
inimiga à sua altura. A mãe adentrou o apartamento, gritando
impropérios para que a empregada sumisse dali com o rabo en-
tre as pernas, caso contrário, ela daria um jeito de colocá-la na
cadeia e coisa e tal. A moça já dispunha de mil e um argumentos,
argumentos esses respaldados firmemente por um peito impreg-
nado de paixão.
“Suma daqui, sua velha intrusa. Caso contrário, eu acabo
com seu castelo de areia. Falo pro seu genro querido, que mal
olha na sua cara, que ela deseja a separação.” A velha se enfezou e
correu para cima da empregada como uma fera à espreita de uma
carne fresca. A filha, do canto, precipitou-se para cima da mãe, e
tomou-lhe a frente e as rédeas da discussão.
Desferiu-lhe algumas palavras, como lembrando-a de quem
era aquela casa. E mais: falou da profissão que não escolhera, e
da vida medíocre que a mãe achava ser a oitava maravilha do
mundo. Estava cansada da “juizite”, das saias cafonas, dos sapa-
tos de bico fino. Cansada do medo de errar, de não ser feliz, de
viver uma vida que não escolheu. Cansada do marido, por fim. E,
conforme disse a amante, ia pedir a separação.
A velha quedou-se de joelhos, rogando por misericórdia.
Pediu que, por todos os santos do mundo, e pelos que ainda hão
de ser canonizados, que não o fizesse. Temia o julgamento das
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Os ricos também choram
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Lembrava-se, também, das caras amarradas das babás dos
visitantes, certamente desejosas de que metade dos pirralhos se
afogassem na cristalina água da piscina para, quem sabe, o final
de semana acabar ali. E, então, voltariam para seus minúsculos
quartos, nos fundos de alguma casa ou apartamento.
Era o 48º aniversário do homem mais fabuloso que ela co-
nhecera: seu pai. Nos aniversários, ele costumava beber cerveja,
além das bebidas quentes costumeiras. Naquele dia, a mãe estava
mais radiante do que nunca. Ela gostava de se mostrar alegre e
altiva para os visitantes, por mais que fosse cansativa aquela ma-
ratona de 48 horas de comilanças e olhares de inveja e desdém.
Em meio aos fingimentos de amizades, ela procurava sempre
estar bela e romântica. Relembrava isso com pesar.
“Volta e meia, abraçava e beijava meu pai”, lembrou. “Fazia-
-lhe um elogio qualquer, para que ele se sentisse o homem mais
amado do mundo. E repetia, para mim, a frase que mais ouviu
durante sua infância: ‘Sabem quem é o homem mais amado do
mundo?’. ‘Eu’, ele respondia, automaticamente. Era uma per-
gunta frequente, mas sempre cativante”.
E continuou: “A maioria dos amigos nutria uma certa in-
veja da felicidade deles. Alguns elogiavam o jeito romântico de
minha mãe; outros a invejavam, como mulher. Ela era realmente
poderosa, como dizia o tio Marcos. Principalmente quando
aparecia usando aquele vestido branco, descompromissado. Os
‘descompromissados’, como ela gostava de falar, tratava-se de
um estilo de roupas único. Quando entrávamos em uma loja, a
primeira coisa que ela perguntava pras vendedoras era ‘não tem
alguma coisa soltinha, mais descompromissada?’”, lembrou ela,
em meio a um sorriso triste.
“Eu não entendia este gosto dela por roupas largas, também
só vim a descobrir depois de muito tempo.” E continuou: “Mi-
nha mãe acreditava que as coisas nunca poderiam ser explícitas.
Exceto as boas ideias. Ela tinha sido professora, antes de conhe-
cer meu pai. Uma simples professora primária, do subúrbio de
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vestidos descompromissados. Aquele de que ele mais gostava. E
foi a última vez em que a vi usando um deles.”
“Naquele dia, o cortejo dentro do Cemitério da Consolação
me causou enjoo. Alguém, de quem não me recordo, me pegou
no colo e me levou para dentro da pequena capela, onde todos
os amigos choravam copiosamente a morte de papai. A famí-
lia dele, apática como sempre, prostrou-se num canto, com as
maquiagens de mais de quilo na cara das mulheres. Elas apenas
olhavam para mamãe e gesticulavam entre si.”
“Talvez estivessem realmente felizes por ele ter se livrado
de minha mãe, finalmente. O túmulo dele era o mais imponente
da alameda, e minha avó cuidava para que as coroas de flores que
chegavam fossem expostas gradativamente, por cores, das mais
escuras para as mais claras. Tudo na vida dela era assim. Tudo era
combinado, orquestrado, ensaiado, para que nada desse errado. E
não dava. Inclusive o seu último e grande anseio estava, naquele
momento, sendo concretizado: a separação de meus pais. A eter-
na separação carnal de meus pais.”
“Depois, dali, fomos para casa, e ela ainda se parecia maior
do que nunca. Era tudo triste. Eu, com dez anos, e Marcia, mi-
nha irmã mais nova, com oito, não precisamos tomar banho, nem
jantar, nem ir para a escola no outro dia. Os telefones tocavam
incansavelmente, e minha mãe deu ordens para a Maria, nossa
empregada mais antiga, desligá-los todos da tomada. E assim se
passou mais de um mês quando a diretora da escola veio pesso-
almente à nossa casa, exigindo que voltássemos às aulas.”
“Era uma segunda pela manhã quando ela desceu as escadas.
Estava pálida, magra e sem vida. Não tinha mais as bochechas
rosadas, a raiz negra do cabelo parecia estar no meio da cabeça.
As unhas das mãos roídas, e as dos pés com o esmalte roxo pela
metade. Minha mãe assemelhava-se a uma velha cigana que cos-
tumava a ler a mão das pessoas, em um calçada da praia. A única
diferença é que trajava roupas estupidamente justas, embora, vi-
sivelmente, estivesse cerca de 10 quilos mais magra.”
ISBN 978-85-411-0924-6
9 7 8 8 54 1 1 0 9 24 6