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No divã com a manicure

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lima, Lindy
No divã com a manicure / Lindy Lima. --
São Paulo : All Print Editora, 2015.

1. Contos brasileiros I. Título.

15-06059CDD-869.3

Índices para catálogo sistemático:


1. Contos : Literatura brasileira 869.3
Lindy Lima

No divã com a manicure


NO DIVÃ COM A MANICURE
Copyright © 2015 by Lindineia Lima dos Santos
O conteúdo desta obra é de responsabilidade
da autora, proprietária do Direito Autoral.
Proibida a venda e reprodução
parcial ou total sem autorização.

Ilustração de capa: Claudio De Marco


Fotografia da orelha: Maria Liberato

Editoração e impressão:

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info@allprinteditora.com.br
(11) 2478-3413
Agradecimentos

Quero agradecer toda a minha família, em especial minhas


irmãs: Nega, Nalva, Leia, Maria e meu irmão Lando. Todos os
cunhados, sobrinhos e primos, por aceitarem, sem maiores ob-
jeções, este misantropo ser que vos escreve.
Quero também agradecer as minhas clientes e amigas: Taís
Bassan, Maíra Centurion, Isabelle Bruni, Claudia Fernanda e,
especialmente, a Drª Lilian Vieira, não apenas por ter escrito o
prefácio deste livro, mas – como todas as demais – pelas diverti-
das e inspiradoras conversas que tivemos ao longo deste tempo
de parceria.
E à turma do cangaço, sem a qual este livro jamais teria
saído do papel: Valério Sobral e Paula Prado. Também quero
agradecer, imensamente, à minha amiga Cristiane Laurentina,
pelo seu olhar criterioso e pueril, ao mesmo tempo, sobre meus
textos!
E, como não poderia deixar de ser, aos meus pais. Seu Tatá
e Dona Raulinda. Sei que talvez não leiam este meu livro, pois
ambos, infelizmente, não têm instrução para tanto. Mas, cer-
tamente, ele repousará como um troféu, em páginas acima de
algum móvel da casa, onde meu pai, orgulhoso, dirá para seus
melhores amigos: “Isso é de minha filha”. Filha a quem um dia
ele, sabiamente, aconselhou a não ser escritora. Pois, segundo
ele, não era lá bom negócio tal ofício, já que não se via livros para
serem vendidos na feira semanal da nossa pequena Gavião, no
interior da Bahia. Nisso ele ainda tem razão. Os livros deveriam
ser tão populares quanto as bananas.
E, finalmente, ao meu companheiro de todas as horas,
Marcelo Souza, por jamais se opor aos meus devaneios.
Prefácio

Nós, seres humanos, vivemos numa busca constante por


respostas para nossas muitas angústias. Essa procura nos leva a
desabafarmos com aqueles que nos dedicam algum tempo. Em
especial, com aquelas pessoas que, pouco a pouco, vão conquis-
tando nossa confiança e demonstram gentilmente estarem dis-
poníveis e atentas a nós. 
Entre esses cordiais e pacientes ouvintes, encontramos as
manicures como algumas das pessoas para quem mais abrimos
nosso coração. Ousaria dizer, ainda, que elas são muito mais
procuradas que psicólogos, pois a sociedade não tem preconcei-
to com quem cuida semanalmente das unhas. 
As manicures, normalmente, não possuem os mesmos
conhecimentos técnicos que os psicólogos, mas são capazes de
muito ajudarem, por terem a experiência de suas vidas associada
aos aprendizados das muitas vivências de suas clientes.
Atendimento psicoterápico, advindo de conhecimento téc-
nico e embasado em conceituados pensadores, é essencial para
uma análise fundamentada e profunda. Mas uma boa conversa,
com alguém com quem podemos contar, é algo único e até mes-
mo essencial em nossa rotina.
Sigmund Freud, conhecido por muitos como o “pai da
Psicologia e da Psicanálise”,  foi o precursor da chamada “asso-
ciação livre ou cura pela fala”, que compreende permitir que o
paciente fale tudo o que acreditar necessário, sem preocupar-se
com o conteúdo.   Entendo que os incontáveis desabafos com
nossas fiéis ouvintes também são isso: auxiliam na “cura pela
fala”, pois, por meio de nossas catarses e dos sábios conselhos
que recebemos, temos forças para seguirmos nossas jornadas até
a semana seguinte.
Lilia Vieira
Psicóloga
Apresentação

Durante mais de vinte anos trabalhado como manicure,


adquiri conhecimento para boas teses de doutorado. Por vezes,
pensei em deixar a profissão, por não suportar tantas histórias
tamborilando em minha mente, por tempos a fio. Não só de
clientes, mas também de colegas de trabalho.
E como forma de me livrar delas, resolvi exteriorizá-las
colocando-as no papel. Mas como fazê-lo? Não sabia por onde
começar. Então, fui para a faculdade aprender a escrever. Ter-
rível engano e bendita hora. Enganei-me, porque não consigo
aprender absolutamente nada na teoria, e bendita hora, porque
os portões da faculdade me abriram grandes horizontes! Trans-
pus grandes muralhas dentro de mim mesma.
Passei a ser, além de manicure, estudante de jornalismo.
Isso me rendeu grande clientela. Porém, já as vendo pela pers-
pectiva de alguns teóricos, sua ignorância e seus preconceitos
tornaram-se ainda mais ferinos. Foram tempos de tormentas,
também. Embora houvesse, não raro, pessoas com enorme senso
de humanidade.
Muitas delas iam ao salão porque sabiam que eu precisava
pagar a faculdade; e outras, para perguntar sobre viagens e li-
vros. Outras me hostilizariam se soubessem que, além disso, eu
conhecia grande parte do mundo, e o Brasil de ponta a ponta;
falava inglês e mantinha um padrão de vida igual ou superior
ao de muitas delas. Passei a observá-las melhor e descobri que a
forma como viviam ou pensavam era reflexo de suas vidas ale-
gres e realizadas, ou tristes e frustradas. Que, no fundo, o salão
era o lugar onde poderiam desabafar sem culpa. A manicure
é, acima de tudo, terapeuta, a quem vomitam seus segredos e
suas dores; amores frustrados, paixões impossíveis e casamentos
malfadados.
Nada cientificamente provado, mas acabei por concatenar
que nenhum desses elementos foram tão nefastos à vida delas
quanto a infidelidade conjugal para a parte traída, causando-
-lhes, entre outras coisas, alto grau de depressão e ansiedade.
Muitas delas nem autoestima tinham – seria um equívoco  dizer
que era baixa.
Um salão de cabeleireiro é um celeiro de conhecimentos
– além de se encontrar diferentes pensamentos, mas não tão di-
ferentes assim. Como toda a gente do planeta, só queremos ser
felizes. E, para isso, seguimos uma cartilha. Estudamos, com-
pramos o carro, compramos a casa, nos casamos, temos filhos e,
depois, falamos mal do relacionamento. E quem estudou fora da
cartilha lamentava não ter tido a oportunidade dessa inserção.
Embora, reconheço, as solteiras em idade avançada necessitas-
sem de atenção especial e, às vezes, tenha me faltado tato.
Como ser uma boa manicure? Não existe uma receita. Ma-
nicure tem de ser boa gente. Prestativa, solícita e sempre pronta
a ouvir. E deixar a critério da cliente conduzir a conversa. Ela é
quem decide se quer ou não conversar. A melhor das manicures
é aquela que sabe dizer o que a cliente deseja ouvir. Se ela tem
um jeito, não tente mudá-lo. Apenas sugira a mudança. Se ela
passa, durante anos, um branquinho, não insista para que passe,
de repente, um vermelho.
Não se intrometa na vida delas, a menos que lhe roguem
por uma opinião, e jamais cometa sincericídio. A cliente não
pede opinião, mas uma confirmação daquilo  que ela pensa. En-
tão, não adianta dizer que aquele homem casado, o qual a enga-
na há mais de cinco anos, jamais largará a família para viver com
ela. Sempre diga que ele deve amá-la, do contrário, não levaria
um relacionamento por tanto tempo.
Nunca fui lá a mais iconoclasta das manicures. Sequer te-
nho curso. Aprendi sozinha, aos 12 anos de idade, e já era me-
ticulosa. Jamais corri atrás das tendências, e reconheço que já
dispus mais da habilidade de Jó. Nesse ofício, temos de saber
lidar com as diferenças, além de saber cobrar pelo trabalho. Isso
é se autovalorizar. É também primordial que saibamos nos abs-
ter das conversas fiadas; do contrário, terá de se tornar escritora.
Embora nesses dois últimos nunca fosse lá eu muito boa.
Por isso, anos depois, tomo coragem para tornar esses per-
sonagens reais. Troquei nomes e profissões, a fim de evitar cons-
trangimentos, mas será tempo perdido. Muitas e muitas outras
histórias continuarão a me perseguir.
Sumário

A bela da Paraíba................................... 15
A consumista.......................................... 24
A grande virada...................................... 34
A lei dos homens..................................... 46
Garota dourada...................................... 58
Nothura maculosa.................................. 68
O criador e as criaturas.......................... 76
O crime da juíza...................................... 85
Os ricos também choram........................ 95
Sobre bonecas......................................... 106
Tamanho é documento........................... 118
Uma atitude muda tudo!........................ 126
A contadora de histórias......................... 134
A bela da Paraíba

A bela da Paraíba era uma cliente que virou funcionária e,


consequentemente, minha grande amiga. Ela era linda, e ainda
o é. Quando a conheci, tinha apenas 19 anos. Noiva de um qua-
se marginal. Ou, melhor dizendo, camelô aspirante a ladrão de
bancos. Ele vendia redes em toda a região do litoral norte pau-
lista. Mas, ao contrário dela, a beleza não era o seu ponto forte.
Algumas pessoas diziam que o temor os unia. Outros, o
dinheiro fácil. Mas, para mim, era algo sobrenatural aquele en-
contro, uma combinação nada ortodoxa aos parâmetros terrenos.
Ela passava, desfilando sua beleza pelas ladeiras da Pompeia, en-
quanto ele fugia da polícia ou do rapa, a depender da situação,
nos mais recônditos cantos do País.
Para os amigos e conhecidos, fingia que ele era corretor. E
ele, que ela lhe era fiel. Eram tão descombinados que, certa vez,
ao encontrarem uma cliente dela no metrô, fingiu não conhecê-
-la. Por pura vergonha de apresentar o amado.
O rapaz é o que podemos chamar de um homem sem jeito,
ou “malacabado”, como se diz na minha terra. Feio por maestria.
De estatura baixa, raquítica, cavanhaque ralo e proeminentes ta-
tuagens com figuras femininas, por todo dorso braçal. Só não
eram mais proeminentes que a alva dentadura, de estilo perereca,
que mal lhe cabia na boca, e cujos dentes eram intermeados por
fios de ouro, para dar um acabamento mais a caráter. As grossas
correntes de ouro no pescoço eram vistas de longe, através dos
vidros escuros dos carros brancos, que variavam sempre de mo-
delo, mas nunca de cor.
Era hábil em adquirir armas de fogo e planejar assaltos a
banco no interior do Nordeste. Seu estilo desconfiado lhe fazia
perito em reconhecer empreitadas furadas. Sábio conselheiro e
único sobrevivente de uma equipe de nove amigos que cresce-
ram juntos no interior da Paraíba e foram empurrados para os

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subúrbios paulistanos pelas dificuldades da terra natal. Nunca
conseguiu ficar com nenhuma quantia de dinheiro. Seu melhor
ganho era conseguir desviar os amigos de empreitadas fadadas
ao fracasso.
Além dele, havia dois outros que sobreviveram, mas estava
presos – se não me engano, em Ilhéus, na Bahia –, e ele precisava
vender cada vez mais redes e CDs piratas para ajudar no susten-
to das mulheres cujos maridos estavam presos ou que ficaram
viúvas. Era um santo homem. Nomenclatura que irritava demais
a bonitona da Pompeia, e lhe fazia tomar algumas resoluções
nada comuns, como recorrer à traição.
A moça não apenas era atraente, como também fogosa e
carente por natureza. O tipo de mulher que não se permitia pas-
sar despercebida. Menos ainda quando estava na companhia dele.
Ninguém acreditava na visão. Olha que nem era um bandido com
excelência. Era apenas um cara que não sabia dizer não aos ami-
gos e que, no fundo, não tinhas grandes inclinações para o crime.
Já não aparecia havia mais de quatro meses. Estava com
medo da polícia, devido a um assalto malfadado no interior de
Mato Grosso do Sul. Alguém deixou vazar que a arma pertencia
a ele. Depois disso, era o único que estava fora da cadeia. Che-
gou a ser pedido pela polícia, mas logo seu nome foi extinto do
cadastro negro da justiça.
Mas ele procurou se recolher o melhor que pôde, sem dei-
xar vestígios. Não deu notícias nem para a noiva, que continuava
a ostentar um anel de noivado que mal lhe cabia entre a primeira
e a segunda junta do anelar. Mas eis que, um dia, ela recebeu
pelo correio não apenas notícia, mas um celular tipo “bondinho”
(daqueles que proporcionavam ligações diretas sem custo algum,
a não ser para o dono do aparelho clonado). Embora o bondinho
também desse cadeia, o risco era baixo – o artifício era bastante
comum em meados dos anos da década passada.
Isso foi bom, inclusive para mim, pois ela ficava o tempo
inteiro grudada no meu fone e no de muitas outras pessoas do

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salão. Era pra disfarçar, por receio de que o dela estivesse gram-
peado pela polícia – afinal, ele esteve pedido. “Pedido”, para os
leigos – como eu, na época –, é a pessoa que deve para a justiça.
“Ele tá pedido.” Era uma frase muito elementar entre as viúvas e
namoradas dos caras.
Inclusive, eu me solidarizei com a coitada. Era um amor
bandido. E daí? Qualquer um pode ter. Quem está livre de se
encontrar com um cavanhaque, uma perna a menos, um sota-
que forte, alguns verbos fora do tempo, e não cair de amores?
Quem está livre de se enroscar em uma corrente de ouro, de dar
umas voltinhas no final de semana, em uma penitenciária, para
levar um jambo a um amigo encarcerado, ou de levar umas bo-
fetadas no final de semana, num hotelzinho barato da Francisco
Morato?
As bofetadas não eram lá tão frequentes. Só aconteciam
quando ele, verdadeiramente, tinha a certeza de que fora passado
para trás. Quando não ficavam só nos avisos. “Com você, é um
passo pra frente e dois pra trás.” E dizia, arregalando os olhos,
com a voz falhando a cada sílaba. E logo tirava, ali, uns cem
gramas de ouro e lhe jogava nos peitos. Mais uma corrente para
a coleção de pulseiras que quase lhe cobriam metade de tíbio e
perônio.
Para seguir esse caminho, basta não ter amor próprio, se
desviar da igreja e gostar de tênis caros e muito ouro. A moça
tinha disposição para sair todas as noites para os lugares mais
variados. Assim como lhe faltava estilo para roupas e sapatos,
também não escolhia onde farrear. Desde o Largo de Pinheiros
até as baladas na Vila Olímpia.
E quando me refiro à falta de estilo, é simplesmente de
um estilo próprio. Mas as roupas eram sempre muito caras, tal-
vez para combinar com as pulseiras e gargantilhas, e cabelos
não menos dourados. O dinheiro de recepcionista de salão não
conseguia quitar metade dos gastos com vestimentas. Era aí que
entrava a mesada do amado.

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Pegava o primeiro táxi e lá ia onde alguém pudesse lhe
proporcionar um pouco de afeto e alguns elogios. Porventura,
eu, dez anos mais velha e com atributos corporais bem menos
atrativos, fui sua companheira em algumas dessas empreitadas.
Muito poucas mulheres em sua companhia não se achariam em
total desvantagem, a menos que ela abrisse a boca de imediato.
O sorriso acordava até os mortos, como dizia minha vó. Os
passos eram largos e o sentar de pernas abertas lhe conferia um
status pouco lisonjeiro. Mas quem está preocupado em levar uma
lady para o motel, depois de alguns goles a mais?
Logo se disparatava para um canto qualquer, com um outro,
e mais quantos lhe concedessem um elogio qualquer ou mesmo
um olhar regateador. Numa dessas vezes, a misantropa que vos
escreve resolveu se libertar das amarras dos trinta, e deu uma
saída, como quem não deseja perder o último fio que lhe torna
conectada com o mundo. E foi aí que percebi que não era páreo.
Aliás, nem eu, nem ninguém que não soubesse mostrar os
peitos com maestria. Era do tipo que, quando eu ia com o queijo,
já lá vinha com o rato. Eu olhava um cara e, enquanto pensava
em suas qualidades, averiguava as possibilidades. Ela parecia ler
meus pensamentos e os do alvo também, e não titubeava em
partir para o ataque.
Minutos depois, o atracamento era iminente. Eu só não
era mais ultrajada por falta de investimento em novas presas.
Embora ache que, num risca-faca, aos trinta, não se deve ser lá
muito criteriosa, do contrário acabará no canto da parede. E as
paredes, diga-se de passagem, ainda eram mais convidativas do
que o eleitorado presente.
Eu gostava de ficar observando o desespero das mulheres
para serem notadas. Como quem gritasse: “Ei, estou aqui! Será
que estou passando da idade?”. As roupas, cada uma mais brilho-
sa que as outras, quase beiravam o desespero.
Ou ver a ansiedade dos moleques, como pavões, exibin-
do sua jovem penugem a qualquer uma. “Porra, velho, tu não

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acredita, estava bom demais, bicho, consegui beijar três.” Não sei
por que essa conta não fecha. Ou tem homem contando vanta-
gem, ou mulher escondendo o jogo. Mas deixemos essa mate-
mática de lado. O fato é: certa vez, estávamos nós em uma dessas
desventuras noturnas pelo Largo de Pinheiros – leia-se Tropical
Dance. Guarde seu sorriso, ferina leitora: se nunca foi ali, atire a
primeira pedra. E se o desespero dos trinta já bateu, vá. Porque
lá ninguém fica parado.
Voltemos ao que interessa: logo veio ao encontro um more-
no de tirar o fôlego, dançando forró com um molejo de causar ur-
ticárias. Tirou-a para dançar. E dançaram muito. Durante toda a
noite, mais ninguém se privilegiou de seus inúmeros predicados.
Mas como crime prima por castigo, eis que, no último dos
rodopios, não sei se por força do destino ou por cansaço do par,
a moça escapou das mãos do bailarino em pleno ar, e a queda era
iminente. Não mais precipitada, teve a sorte ingrata de cair nos
braços de um cavalheiro muito gentil, tão gentil que fez questão
de cumprimentá-la com beijo e tudo e, chamando-a pelo nome,
sobrenome e apelido, de quebra, trazia-lhe lembranças do noivo.
O sangue, literalmente, fugiu do semblante da moça. E não
foi pela dor do tombo. Mas porque o herói da noite era, real-
mente, amigo – e mui amigo, por que não dizer? –, o melhor
amigo do noivo fora de um presídio. Aquele que, por ironia do
destino, tinha estado por seis meses encarcerado, e estava ali,
curtindo sua primeira noite de liberdade em Sampa. Em menos
de um minuto, tudo mudou. Senti o clima pesar. O rapaz ainda
fez questão de levantar-lhe a mão direita, na qual pousava uma
aliança – e não era uma aliança qualquer, era o que podíamos
chamar de uma coleira de dedo.
Depois desse golpe do destino, nem esperamos pelo táxi.
Saímos as duas em silêncio, atravessamos a Madalena já com
pouca gente e, de repente, aquela noite cálida não passava de
uma torrente de pensamentos frios que invadiam nossos nervos.

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Seus olhos claros agora eram de um vermelho absurdo. As
mãos tamborilavam sobre a pequena bolsa de strass, enquanto
as nossas mentes – principalmente a minha – alcançavam pen-
samentos que nunca imaginei ter. Cogitei se deveria ou não
acompanhar o cortejo e, caso sim, que roupa usaria. Aquele era
o cheiro da morte!
Naquela noite dormiu no meu quartinho, e no resto da se-
mana também. As constantes ligações cessaram. Triste presságio.
Não conseguiu trabalhar, à espera de uma delas. Mas a única
coisa que ouviu foram os ruídos da própria consciência. As lem-
branças de ameaças eram rememoradas, hora a hora.
As clientes começaram a perceber suas olheiras, sua angús-
tia, sua falta de paciência. Sua pobre mãe percebeu a angústia
da filha. Chamou-a para a igreja, onde fora criada, mas de onde
depois se desviou.
Desviou-se depois do segundo baseado que um vizinho lhe
ofereceu. Tinha 15 anos. Justamente quando esse amado havia
lhe abandonado pela primeira vez. Era dez anos mais jovem do
que ele e não se conformou com a separação. Então preferiu as
drogas em vez das orações da Assembleia de Deus.
Foram três anos de cara enfiada nas drogas. Chegou a dor-
mir nas calçadas, mas, como dispunha de uma mãe zelosa, era
carregada nos braços até a igreja. Lá o pastor orava, dava-lhe
orientações, até que um dia o vício foi exorcizado. Mas isso de-
pois que a casa da família já não tinha sequer um único talher.
Tudo revertido em moeda de troca.
Os traficantes da Pompeia cozinhavam agora com panelas
bem ariadas, de origem paraibana. Quando entrou nas drogas,
já era bonita. Durante a peregrinação, ficou irreconhecível. Mas
a beleza lhe fora restituída com maior precisão depois da crise.
Como que em um milagre, um ano depois ninguém acreditava
que aquela exuberância, um dia, teria sido aquele trapo das la-
deiras do bairro.

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A beleza veio, e veio com fé. Todo mundo olhava e admira-
va. E admirava muito mais quando ela estava em companhia do
namorado, que demorava, mas não faltava. Principalmente com
a mesada. Aquela que quitava as contas nas lojas de roupas, de
calçados e afins.
O consumismo ali fazia morada. Não havia tênis, por mais
caro que fosse, que seus pés não calçassem. O episódio do baile
não deu os frutos imaginados. É aquilo que aprendemos: menos
de dez porcento dos nossos temores chegam a acontecer. O res-
tante é queimar cérebro à toa.
Mas a coitada não aprendia essa conta, apesar das constan-
tes tempestades em copos d’água. A dor na consciência era sua
inimiga mais voraz. O medo de saberem do caso com o balconis-
ta da padaria. E aquela amiga, que se sentiu ultrajada, por tê-la
pego no flagra, beijando seu noivo, o bonitão da sinuca? Pior
ainda: e se o cara do táxi – que, por sinal, conhecia o noivo –, no
ímpeto de orgulho ferido pela centésima investida e as últimas
99 negativas, desse com a língua nos dentes?
E se sua mãe descobrisse que ela, há mais de três meses, não
dormia na minha casa? E se o irmão soubesse que ela frequen-
tou aquele bar na Lapa, na companhia do marido de sua melhor
amiga? Enfim, eram muitas as contas a prestar, para muitas ou-
tras pessoas.
Muitos medos permeavam a vida daquela moça. E esses
medos eram veementemente combatidos por compras e mais
compras, e quando não sabia o que fazer com as contas vencen-
do, apelava para o noivo, desafiava a justiça e ia lhe encontrar
onde quer que fosse. Geralmente no litoral. E, na terça seguinte,
lá vinha ela com olheiras, mas sorriso nos lábios, e mais uma
corrente de ouro e um saldo positivo no banco.
Por fim, o casamento foi marcado. Ao mesmo tempo, o
rapazinho do lado do salão – não o do banco, o do boteco –
chorava rua acima e abaixo, pedindo para todos os que a co-
nheciam para dissuadir-lhe da ideia do matrimônio e dar a ele
nem que fosse a última chance. Mal sabia o reles que, com ela,

No divã com a manicure L 21


suas chances seriam mínimas. Era o que poderíamos chamar de
mulher-bomba. Ao seu lado, nada estava assegurado.
No casamento ninguém compareceu, a não ser a irmã mais
velha. Seu vestido era vermelho. Nem fui convidada – ou, se fui,
não me recordo. Penso que ainda estava em fase de esconderijo.
E, se o tivesse sido, não haveria de ter comparecido. Eu estava
namorando sério, e esse meu parceiro me proibiu, à primeira vis-
ta, de lhe fazer companhia. Isso aconteceu depois da terceira vez
em que ele me visitou com um funcionário diferente, e ela fez a
corte a todos. “A corte” deve ser o vocábulo melhor empregado,
acredito.
Nossa amizade ficou estremecida nessa época. E, como ti-
nha muitos predicados e o principal deles era um coração bene-
volente ao extremo, questionava muito o meu afastamento. Eu
sempre alegava uma situação diferente para não mais desfrutar
de sua companhia e, como o raciocínio lógico não era seu ponto
forte, continuou me amando.
Anos depois, tiveram dois filhinhos e a casa nova era linda.
Ele continuava a vender redes na praia, apesar dos lucros com o
aparelho que copiava CDs. Este ela tomava de conta (sic). Dei-
xou até de trabalhar no salão chique do litoral. Estavam sempre
grudados, juntinhos. Só saíam juntos e todo mundo se admirava
da idoneidade da atual senhora.
E ele, agora, era um homem aceito pela família da mulher.
Na casa não faltava nada: de cortina a sofá, era tudo do bom e
do melhor. E dizia-se que era uma dona de casa de mão cheia.
Viajavam para vários cantos do país, vendendo rede – até mes-
mo porque ele não era mais procurado. Mas aí surgiu a Internet.
Ganhou um computador e, com ele, as mil e uma possibilidades
virtuais.
A Internet era para a esposa concluir o segundo grau, pelo
Telecurso, sem precisar sair de casa. E também para saber quais
filmes entravam em cartaz e quais os mais vistos. Golpe de mes-
tre. Assim, a concorrência ficaria pra trás. Era, enfim, um homem

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esperto. Tão esperto que até achou que a esposa estudava e tra-
balhava, enquanto ele vendia a produção.
Mas esse tal Telecurso começou a incomodar. No início,
eram apenas ligações esporádicas. Depois vieram as flores e, em
seguida, o filhinho de três anos o surpreendeu, avisando que ele
agora tinha dois papais. Foi o fim. A expulsão ocorreu às 3 horas
da manhã. A valência foi um taxista que passava, e ficou com dó
da jovem moça com duas crianças, tremendo de frio.
Aceitou a corrida até São Paulo, e a velha mãe pagou a con-
ta. A conta do táxi e todas que vieram daí por diante, e não foram
poucas. Ipod, notebooks, academias, Iphone e mais todas as rou-
pas da moda para os meninos. Além de se tornar a babá oficial.
Os programas recomeçaram, e agora não eram mais com os
empregados. Aprendeu a gostar de patrões. Embora o sorriso, o
sentar e o coração continuassem os mesmos.
Agora, volta e meia, desce ao litoral. Principalmente quan-
do recebe alguma cartinha do SPC. A praia nunca lhe deixava de
mãos abanando. E ele sabia que ela só havia escorregado aquela
única vez, mas não a perdoaria de jeito nenhum. Não por ele,
mas porque temia que os amigos soubessem daquele episódio,
que sabia ter sido único. Pois macho que é macho não perdoa
traição.

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A consumista

Quando a conheci, era minha patroa – só depois passou


a ser minha cliente. Mesmo como patroa, era bacana. Embora
tivesse voz de bebê e se comportasse como adolescente, encon-
trava-se quase na casa dos 40. Mostrava-se sonhadora, quase
que unanimente desinformada e tudo que eu dizia parecia fa-
zer totalmente sentido. Falava-me de suas aventuras amorosas
a dissabores da infância. Não chegou a fazer faculdade, então
pulávamos essa etapa.
Ela era alta, loira e bronzeada. Conhecida pela característi-
ca um pouco peculiar de falar como criança, à moda de Mônica
ou Cebolinha, ou ainda Pica-pau. Além dessa, havia outra sin-
gularidade que lhe permitia a alcunha de exagerada: os gastos
excessivos com futilidades.
Tinha um namorado rico. Até famoso, das revistas. De uma
tradicional família de confecção de roupas de banho. Uma das
mais importantes do Brasil. Se conheceram justamente quando
ela foi admitida como vendedora em uma das lojas de biquínis
de um importante shopping. Na época, seu pai tinha acabado de
morrer, e deixado a família à beira da miséria.
Ela e o irmão mais velho nunca tinham dado um prego em
uma barra de sabão, como diria minha vó. O do meio vivia de
modelar. Trabalho que mal dava pra manter o figurino digno de
um modelo, no início dos anos 1990, e pagar algumas viagens a
título de angariar algum box, de uma revista qualquer. A meni-
na nunca havia sentido nenhum tipo de necessidade. Seus pais,
apesar da miséria batendo na porta, jamais lhe negaram nada,
quaisquer que fossem os caprichos.
Sempre passeavam nos melhores shoppings da capital, pelo
menos duas vezes por semana. Depois que ele faleceu, as visiti-
nhas continuaram. Foi num desses passeios que surgiu a oportu-
nidade de um trabalho como vendedora. Aliara as duas coisas de

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que mais gostava: dinheiro e luxo. Apesar da voz, ela já passava
dos vinte, e ele, dos 40. O rapaz era um investidor da loja e irmão
do proprietário. Logo de cara, caiu de paixão pela moça loira,
de pernas longas e bumbum saliente. Não era o que podíamos
chamar de uma linda mulher, mas era uma daquelas que não
passavam despercebidas, principalmente porque não titubeava
em exigir o que tinha de melhor.
Um mês depois de empregada, já almoçava, na companhia
do amado, nos melhores restaurantes dos Jardins, e fazia questão
de levar a mãe junto. O amor que destinava àquela mãe, uma
mulher gordinha e de dentes encardidos, lembrava uma galinha
que perdera a ninhada, restando apenas um pintinho – no caso
dela, três filhotes, todos embaixo das asas. Como o dinheiro co-
meçou a correr solto, de imediato reformou a casa da mãe, em
Perdizes. Era uma casa simples, de rua, ao lado de uma praça,
mas tinha uma vista bacana. Reformou os quartos, derrubou os
antigos puxadinhos e os anexou à casa grande, e fez um closet
para si. Ah, o closet! Foi a primeira vez que entrei em um. Ainda
era lindo quando o conheci – depois foi se desvanecendo, se de-
teriorando e, por fim, acabou-se. Tudo vendido, feito um brechó.
No terceiro mês, ganhou, além da antipatia dos colegas, um
carro do ano. Foi apenas o primeiro de uma infinidade de mi-
mos que se seguiriam daí por diante. Depois vieram as joias, as
viagens, as festas, as baladas, as revistas. E muitas e muitas orgias.
E aí surgiu o que, depois de algum tempo, começou a re-
colher como parasitas. Os irmãos, que agora, em vez de depe-
nar o pai, tentavam arrancar dele o mais que pudessem antes
que a fonte secasse. E nunca vinham só. Eram amigos parasitas,
mulheres parasitas e empregados parasitas. Todos logisticamen-
te organizados, numa sequência organizacional para sugar sem
deixar marcas aparentes.
A fonte durou exatamente 11 anos. Já havia burburinho nas
revistas de que a grife andava de pernas bambas e até foi vendi-
da para outra, estrangeira. Mas nada oficialmente reconhecido

No divã com a manicure L 25


pelos antigos donos. Aliás, assunto proibidíssimo, inclusive pela
imprensa. Mas os carros continuaram a brotar. Os salões de au-
tomóveis ainda eram seu programa favorito. Tanto no Brasil
quanto no exterior.
Os possantes eram encomendados, baseados no requisito de
que o primeiro a chegar no país fosse diretamente estacionado
na garagem de Perdizes. Os mimos não paravam. Lembro-me de
que tinham dois carros importados iguais, mas com cores diferen-
tes. Comprados em uma feira, com as determinações já citadas.
Joias e mesada cada vez mais polpuda alimentavam o sonho
da princesa e de toda a sua família sanguessuga. Mas, por incrível
que pareça, a fonte secou, e secou de uma forma muito árida.
Além das festinhas com garotas de programa, ele também par-
tilhava de outro hobby não menos atraente para alguns homens:
o pôquer – embora este último não contasse com a conivência
da amada.
De início, apostava com os colegas do clube. Depois, ia para
os cassinos pelo menos a cada três meses, e quando a renda do
mês não era suficiente para suprir as necessidades da família e
dos jogos, recorria aos bancos. Como um castelo de cartas, um a
um os imóveis foram hipotecados. E, depois, os imóveis da so-
ciedade com o irmão. Até chegar a vez daqueles dois esportivos
importados, que também não escaparam à fúria do banco. Em-
bora os carros estivessem no nome dela, os dois eram sócios em
várias empresas, contratos que ela nem sabia que tinha assinado.
Nunca lia nada. Adorava o status de burra desligada.
Desde que deixou o trabalho na loja, depois do segundo ou
terceiro mês de namoro, nunca mais se preocupou com extratos,
e jamais leu qualquer coisa que não fosse a descrição de um pre-
ço ou produto em uma vitrine de luxo. Desta forma, era muito
fácil abrir empresas em seu nome. Era sócia de pelos menos dez
delas. E, nos últimos tempos, todas deviam a bancos. O castelo,
que vinha ruindo há anos, desmoronou ao cabo de três meses.
Até que, um dia, o oficial de justiça veio à casa das Perdizes para

26 L Lindy Lima
tirar-lhe os dois importados, e ela teve que se explicar diante
do juiz. O que fez para falir tantas empresas, as quais nem ela
mesma sabia que existiam. Todas elas assinadas e com firma loi-
ramente reconhecidas.
Foi para a cama, e ficou lá por mais de mês. Odiou o ex até
a décima geração, e se pudesse colocaria sal, como na lenda da
serpente. O fim da convivência de dez anos não pareceu lhe doer
tanto quanto a pobreza. Aguentar aquele solteirão, de corpo afe-
minado e hábitos pouco convencionais, não era tão fácil assim.
Só mesmo muito dinheiro para compensar, embora ele acredi-
tasse piamente que havia amor entre ambos.
O episódio não saiu na imprensa, mas se soube que ele foi
ter em Istambul, de onde eram seus familiares e sua segunda ci-
dadania. E foi sem ao menos se despedirem. Tudo ficou acabado
ali, diante do juiz, quando ele tentou, sem sucesso, explicar-lhe
sobre aquela derrocada social.
Agora, da época das vacas gordas, só restava a voz. Até mes-
mo a pele e os cabelos não dispunham mais do brilho de outrora.
Os trajes sobre tom agora se apresentavam cada vez com menos
cor. De uma palidez acinzentada, ela aparecia de vez em quando,
como quem se esconde do mundo, ou como quem foi atropelada
por nada menos do que milhares de toneladas.
Mas ainda restavam as joias; última luz no fundo do túnel.
Precisava agora cravar as unhas na parede e sair do fundo do
poço. Só não era o fundo porque este era, de certo, terreno do
tipo areia movediça, não parava de afundar, e ela chafurdando
junto. Passou a andar de posse do carrinho da mãe. Um Ford Ka
vermelho. Era tudo o que tinha além de seu closet de muitas joias.
Precisava deixar baixar a poeira e vendê-las. Era sua única tábua
de salvação. Sonhava.
E quando não tinha mais nada o que comemorar, a pro-
prietária lhe pediu o imóvel onde tinha a clínica de estética. Pois
o seu fiador e patrocinador estava, a essa altura, fora do país.
Não sabia que teria de pagar o aluguel de onde tinha a empresa,

No divã com a manicure L 27


onde eu e mais 12 pessoas trabalhávamos. A primeira cobrança
também foi um choque. Aliás, foi a primeira das cobranças, su-
cedidas por outras e mais outras, até não lhe restar sequer ar nos
pulmões.
Na festa de 36 anos, todas nós fomos convidadas. Só com-
pareci por inclinações humanitárias, visto que sou avessa a qual-
quer tipo de badalação ou comemoração, e enterros também. Era
um velório. E o enterro deu-se no closet, esmeradamente orga-
nizado por cores, tom sobre tom. Era uma aparição esdrúxula,
e não deixei, naquele momento, de constatar que dinheiro nem
sempre orna com bom gosto. E surgiu ali, no fundo do meu co-
ração, certa pontinha de esperança de que, sem o dinheiro, seu
gosto pudesse melhorar.
Ela não teria mais como usar alça de bolsa banhada a ouro
e outros espantalhos da moda. Sem contar os terríveis mocassins
italianos com agasalhos. Não sei por que sentia um fascínio sem
limites pelo tom roxo. Roxo de todas as vicissitudes, e enfeitava-
-se de roxo dos pés à cabeça, tudo milimetricamente tom sobre
tom. Sapato, cinto, bolsa, blusa, colar e brincos. Às vezes de baixo
para cima, e noutras, de cima para baixo.
Durante a faculdade de jornalismo, aprendi muito pouca
coisa, é fato. Uma delas é que os esquimós conseguem distinguir
mais de 300 tonalidades de branco. Não sei por que os professo-
res sempre vinham com essa mística, acho que nas aulas de Se-
miologia – que até agora não sei para que serve. Um colega disse
que, ao final do curso, ia fazer uma pós-graduação nessa tal área.
Fiquei surpresa, visto que o jornalismo de faculdade não serve
para quase nada, principalmente um jornalista semiólogo. Mas
ele me certificou de que o Umberto Eco é um grande semiólogo.
Logo, fiquei sem argumentos para me contrapor a tal decisão.
Depois, também tenho uma amiga de que gosto muito, que
fez pós na tal da semiologia. Mas também acho que não é coisa
de perecer, pois ela continua a mesma estranha de sempre. Mas
deixemos os tratados acadêmicos, e recorramos aos sapatos. E,

28 L Lindy Lima
como manicure, se não pude discernir o equivalente à capacida-
de dos esquimós de distinguir cores, fiquei bem próxima. Só que,
em vez de branco, roxo.
De fato, eu já odiava roxo. Mas ver aquela criatura todos os
dias tal qual uma berinjela piorou muito o meu conceito sobre
essa tonalidade. Portanto, acabei não me interessando por nada.
Queria até ter podido ajudá-la naquele último instante. Retri-
buir a gratidão de poder ouvir aquela voz de criança mimada
todos os dias, nos últimos dois meses. Mas não dei conta, como
dizem os paulistas. As roupas eram muitas, e os sapatos também.
Embora fossem artigos de luxo, aquela venda de garagem – quer
dizer, de closet – a mim não apeteceu. Como diria meu marido,
talvez não tivesse um quê de menino nos sapatos, tampouco nas
roupas.
Sempre fui conhecida por esta minha peculiaridade: a de
me fantasiar de menino, mesmo quando uso vestido. Tenho a
impressão de que me olham e dizem: “Um homem de vestido,
que estranho!”. Essa sou eu. Mas, certamente, ela conseguiu o
aluguel daquele mês à custa de muita babação de ovos de minhas
colegas. Dizem que, em tempos de fartura, era muito boa com
os funcionários. Só dava presentes caros, sapatos, bolsas. Até as
empregadas da casa andavam de LV. Eu não peguei esse tempo.
Mas também sei reconhecer muito bem uma LV da 25 de Mar-
ço. O salão fechou três meses depois.
Nessa época, já estavam comprando comida do boteco
onde comíamos. O chamado “marmitex de prisioneiro”. Múscu-
lo, cebola e muito sazon. Quando por fim fechou as portas, todos
nós tivemos que procurar outros salões, e ela preferiu nos acom-
panhar agora como cliente. Quem já trabalhou como manicu-
re, sabe: às vezes uma cliente nos segue por anos. Anda de um
bairro a outro e não mede esforços para nos encontrar. Inclusive
aquelas que desejaríamos muito que nunca tivessem passado em
frente ao nosso local de trabalho. Digo isso porque tem clientes
que é melhor perder do que achar.

No divã com a manicure L 29


Por exemplo, aquelas que vêm apenas desabafar. A que é
humilhada, no trabalho ou em casa, e depois quer descontar na
manicure. Ou aquela outra que não tem dinheiro para nada: com
a única grana que resta, faz as unhas a cada 15 dias – mas faz
esse dinheiro valer a pena. Quer massagem, serviço de podólogo
e atenção. Afinal, está pagando, é seu momento madame. Não
dizem, necessariamente, mas se fazem sentir.
E com ela não foi diferente. Seguiu-me até eu sair de São
Paulo. De início, em um salão que fora seu principal concorren-
te. Segundo ela, nunca guardava rancor de nada. Mas, também,
pudera! Todo o rancor que poderia lhe restar, de toda uma vida,
era dedicado agora ao “ex-namorido”. Ali ela desabafava para
mim e para quem mais quisesse ouvir sobre todos os últimos
infortúnios de sua triste vida.
Detalhes sobre os processos na justiça, a tentativa de não
perder o único bem que restava – a casa da mãe – e o processo
movido contra o ex, algo tipo embromação, calúnia, difamação e
tudo que uma dor de cotovelo proveniente de uma traição pode
proporcionar. E, para quem não sabe, para quem gosta de di-
nheiro, ser trocada por outro ou outra não é tão terrível quanto
ficar pobre. Despojar-se de sua boa vida foi um grande golpe,
afinal.
E quando pensou que tudo tivesse acabado, quando o juiz
enfim deu-lhe um parecer favorável – o de não perder a casa onde
a mãe vivia –, ela resolveu se reestabelecer vendendo as joias. E,
para a sua infeliz surpresa, tudo o que havia ganho durante esses
dez anos não passava de meras bijuterias baratas, algumas répli-
cas vagabundas. Muitas delas, confinadas em um cofre de banco,
já apresentando oxidações perenes.
Aí, sim, foi o golpe de misericórdia. A moça veio a nocaute.
Adeus, possibilidade de recomeço! A velha agora estava doente,
os dentes cada vez mais escuros e as asas cada vez menos apra-
zíveis. Já não tinha mais dinheiro sequer para o bronzeamen-
to artificial, e sua pele dourada agora dera lugar a uma palidez

30 L Lindy Lima
doentia. Os olhos fundos, ornamentados por manchas escuras,
davam ideia de um panda. As linhas de expressão precipitavam
o aparecimento de um ousado bigode chinês. Em outros tempos
facilmente abatidos por cremes importados ou pequenas inci-
sões, esses sinais agora marcavam seu território.
As mãos enrugadas e um tremelicar nos olhos demonstra-
vam uma incipiente ansiedade. A voz de criança mimada agora
dera lugar à voz de uma criança aborrecida. Nós agora éramos
suas amigas. Ligava-nos no meio da noite para desabafar. Os
amigos que ele nunca se permitiu fazer, resumindo a amizade a
apenas duas faxineiras e uma velha costureira – com cara de índio,
unhas vermelhas e cigarro sempre aceso –, ampliaram com devo-
tado amor a mais de dez ex-funcionários da clínica de estética.
E certa de que muitas dessas amizades eram mantidas a tí-
tulo de não colocá-la na justiça, quando tivesse que nos despedir,
eu, como sou meio conhecedora da vida, pulei do barco ainda
navegando. Muitos deram com os botes na água, de modo que a
estratégia foi paliativa, pois de nada lhe adiantou quando a fúria
da mulherada se inflamou ao final de dois meses sem salários.
Os oficiais de justiça tiveram muito trabalho num curto es-
paço de tempo. Mas, como ela mesma começou a pensar, a misé-
ria era para ser compartilhada, e assim o fez. Eu, por ter pulado
andando, não sofri retaliações e não tinha nenhum motivo para
odiá-la. Por isso, as ligações e visitas continuaram ao longo de
algum tempo. Tempo suficiente para ouvir seu choro, sua tristeza
profunda, seu ódio e, por fim, seu sorriso brotar novamente.
O ódio do ex permeou todas as suas falas. Nem posso di-
zer nossas conversas, pois uma das características das pessoas
sem razão é falar automaticamente, sem deixar espaço para ar-
gumentações do seu interlocutor. Minha interação se resumia
em sonoras – “hum”, “rum”, “sei”, “pois”, e coisa do tipo e, volta
e meia, um “não acredito!” – parecendo incrédula mesmo. Isso é
ótimo para quem tem de ouvir o desfibrar de uma vida alheia em
30 minutos. Tempo mais que suficiente para uma boa manicure

No divã com a manicure L 31


fazer uma mão. E termine sempre, vai dar tudo certo, tenha fé
em Deus! Fé em Deus! “Este cara emana dinheiro?” – há de se
perguntar.
Pode até não dar dinheiro, mas dá paz. E foi com essas duas
palavras que outra manicure conseguiu carregá-la à igreja, dessas
cheias de pirotecnias marqueteiras para angariar dinheiro. Ela
recebeu certas quantias para falar de prosperidade. Mas a pros-
peridade só começou a aparecer mesmo, junto com o sorriso, ao
lado de um moço, dono de uma mecânica, perto de sua casa. Não
sei se por forças da igreja, ou se por tanto passar a pé em frente
àquele estabelecimento.
Alguém com quem ela jamais trocaria uma palavra, se es-
tivesse a bordo de um daqueles seus carros importados. E foi
justamente no dia em que o carro, de duas portas e motor zero,
não conseguiu subir mais as ladeiras da Avenida Sumaré, que ela
teve de recorrer ao mecânico vizinho. Enquanto esperava, deu de
olhar no olho do homem. E não é que eram azuis? Surpreendeu-
-se. Depois de uma dúzia de olhadas, puxaram um assunto.
Ela com voz de mulher; ele, de homem. Foram tomar uma
cerveja no boteco vizinho e, de fato, ela tinha esquecido o cheiro
de um homem. O cheiro dos últimos 12 anos era meramente de
perfume importado, mas a essência humana não existia. No ou-
tro dia, saíram juntos. Ele tinha, além de um carro em bom esta-
do, uma motocicleta. De carona, ela lembrou-se de seu primeiro
namorado, um traficante da Bica de Pedra, na Pompeia, quando
tinha 15 anos. E, por lembrar-se desse traficante, lembrou que
havia ganho uma pulseira, de ouro, a qual estava esquecida no
fundo de uma caixinha qualquer. Depois de vendida, nada mal!
Deu para pagar algumas contas da casa daquele mês. No mês
seguinte, havia de se pensar.
Agora a pegada era outra. O motoqueiro da borracharia,
com essência humana, não entendia muito de suas lamentações
passadas, de sua “ex-vida” de rainha. Mas essas, aos poucos, fo-
ram se dissipando, até aparentemente não a incomodarem mais.

32 L Lindy Lima
Todos os dias tomavam café no boteco vizinho. Ao meio-dia,
comia uma coisa qualquer e, no final da noite, comia pizza por
ali mesmo. Aos domingos, iam a Nossa Senhora da Pompeia,
por intimação do cara.
E a vida começou a tomar seu rumo. Soube que, cerca de
alguns meses atrás, sua mãe faleceu. Ela expulsou os irmãos pa-
rasitas de casa, esvaziou a piscina e fechou parte dos cômodos.
Formou mais três casas para aluguel e, com o dinheiro, abriu, em
sociedade com o amado, outra oficina. E, para o meu espanto,
tornou-se uma exemplar dona de casa. Retirou, por fim, a droga
que mantinha no braço para não engravidar. Eram exigências do
anterior. Não queria um filho “caju” (um filho de católico com
judeus). Ainda dá tempo. Espero que não esteja usando bobes no
cabelo. O resto tá valendo! Até ser mãe depois dos 40.

No divã com a manicure L 33


A grande virada

Era uma terça-feira, por volta das 14 horas. Como de cos-


tume, o salão estava vazio naquele horário, quando entrou uma
mulher muito bonita, uma beleza madura. Cabelos escuros no
ombro, rosto angular e pele de pêssego. Sotaque levemente agau-
chado, como de quem o viesse adquirindo com a convivência.
Logo de cara, agradeceu minha atenção por tê-la encaixado em
minha agenda.
Mal sabia ela que era a minha primeira cliente do dia. Pes-
soa muito sensível, percebia-se pela unha. Cutícula fina e bem
cuidada. Unhas bem lixadas e pintadas de ameixa. Era uma pes-
soa em que o tempo tinha se encarregado de dissipar qualquer
marca do passado. Adoro adivinhar os sotaques das pessoas – sou
daquelas que recebem uma ligação de televendas e ficam tentan-
do adivinhar o sotaque da vendedora. E, de repente, pergunto,
sem mais nem menos: “É mineira, paulista, capixaba, baiana, ce-
arense, pernambucana ou é judia?”.
Essa minha habilidade é horrorosa, reconheço. Mas é bem
mais forte do que eu. Principalmente porque todo mundo pensa
que, depois de Minas, é tudo Bahia. E, em São Paulo, há aqueles
mais radicais, que acham que logo depois de Guarulhos tudo
vira coisa de baiano. Lamento discordar, mas não é, de novo. É
como achar que no Oriente Médio só tem árabe! Isso enfurece,
entre outras nações, os judeus – e a mim também.
Mas, deixemos os tratados sociogeográficos de lado, e va-
mos à traída do Sul, que continuava sentada na minha cadeira,
agora escolhendo o esmalte. De fato, havia nascido em Belém do
Pará. Revelação feita com bastante orgulho. Por isso, quando ela
repetiu o preço da unha – “déix” –, fiquei em dúvida sobre seu
gauchês. Mas, quando teve de recorrer às suas moedinhas para
completar o preço, visto que não tínhamos troco para seus 50
reais, ela veio com a máxima: “Tá bom pra ti?”. Daí achei melhor
perguntar.

34 L Lindy Lima
O avô materno havia nascido no Marrocos, veio para o Bra-
sil durante a Segunda Guerra Mundial, a bordo de um navio,
meio que clandestino. Foi jogado em alguns países da América
do Sul. De lá, entrou no Brasil pela fronteira oeste, e acabou por
se instalar no Pará, onde já havia alguns conterrâneos seus. No
início da Segunda Guerra, foi convocado pelos aliados e fazia
o controle dos aviões americanos que entravam no Brasil em
direção à África.
Os aviões americanos faziam uma ponte aqui, cuja base
ficava no Rio Grande do Norte. Lá eles abasteciam, e se diri-
giam a Dakar, no Senegal. De lá partiam para outros pontos do
continente negro. Apenas rememorando, se a geografia não me
falha, o Rio Grande do Norte e o Senegal formam a parte mais
próxima entre esses dois continentes. Por isso, os americanos fir-
maram ali suas bases de abastecimento, fazendo a rota para a
África via Brasil.
Seu avô, depois da guerra, recebeu algumas condecorações
e um convite para trabalhar na nova capital federal, assim que as
principais obras de Niemeyer começaram a surgir. E seu pai, um
jovem recém-casado, também deixou a terra do açaí e do tacacá
e rumou para a capital federal, com ela ainda bebê. Na eferves-
cência cultural de Brasília, ela acabou por engravidar aos 16 anos,
e o casamento forçado não durou muito.
Dois anos depois, ela veio para São Paulo com sua filha nos
braços. Seu pai deu um ultimato. “Vá e vença”. Não vou criar
netos. Ela começou a trabalhar em uma empresa como secretá-
ria e, logo em seguida, conheceu uma pessoa no trabalho mes-
mo. Era um jovem advogado. Estava disposto a criar sua filha e
construírem uma vida juntos. Ele era de descendência italiana e
não chegaram a se casar. A sogra não permitiu. Apenas moraram
juntos em um pequeno apartamento no Bexiga, um andar acima
da casa da mãe dele.
Ela nunca ficava com a chave de casa. Sempre que chega-
va do trabalho, tinha que passar no apartamento de baixo para

No divã com a manicure L 35


pegá-la. A educação da filha também não era boa o suficiente,
por mais que se esforçasse. A comida era pior do que lavagem
e, por isso, o filho era sempre intimado a passar na casa da mãe
antes de chegar à sua. Afinal, ele precisava se alimentar bem.
E assim se seguiam o cabelo, as roupas, a fala, a filha... Nada
era bom o bastante. Os móveis, roupas dele, os tapetes, tudo es-
tava mal cuidado e, por isso, a sogra precisava dar aquela mãozi-
nha pra deixar a casa em ordem. Até a despensa era controlada.
Nada escapava aos olhos e críticas da matrona. E as sugestões de
boas moças nunca faltavam. “Porque a filha de fulana de tal, da
igreja, assim, da festa de santa tal, está procurando um namora-
do. Porque outra moça muito boa, que havia conhecido no clube,
na festa de aniversário da vizinha do lado direito, tinha acabado
o noivado e procurava um novo affair”.
Não era raro dividir a atenção com uma moça lindamente
penteada e bem vestida no almoço de domingo, e todas elas com
uma história muito bonita e detalhes acentuados por semanas
pela dona da casa. Uma era coitada, porque o noivo havia mor-
rido em um acidente qualquer; outra havia pego o noivo com a
melhor amiga; outra deixou de se casar com o homem da vida
para cuidar da avó doente; outra pretendia dedicar a vida à re-
clusão das noivas de Deus, mas, por força maior, desistiu da san-
tidade... Enfim... Todas veramente dignas, sentadas à mesa para
o frango com macarrão da mamma. Ah, apareceu até uma viúva
com três filhos, cujo marido havia deixado uma considerável he-
rança. Vá lá, que bom!
E não ficou só nisso. Os compromissos na casa dessas mo-
ças foram surgindo, e ele tinha de acompanhar. Por fim, não
ficavam mais juntos aos finais de semana. Era o final dos anos
1980. Tempos de inflação terrível. Sua profissão não era ainda
reconhecida, pelo menos no meio feminino. Tentou ingressar no
jornalismo, fez uma pós em jornalismo econômico, e conseguiu
ganhar melhor. Acabou por ser reconhecida no trabalho, podia
agora se sustentar e deixou de vez de tentar arrancar o marido
dos braços de outras mulheres.

36 L Lindy Lima
Finalmente, arranjou um apartamentinho na Lapa, próxi-
mo do trabalho, e lá se foi com sua filha. Viviam as duas, sim-
plesmente felizes. Até que apareceu o Roberto. Também era
advogado, mas muito bem-sucedido. Nos primeiros anos, deu-
-lhe uma vida de rainha. Como não precisava mais trabalhar, ele
a convenceu a ficar apenas em casa. E como a casa era realmente
uma mansão no Alto de Pinheiros, ela precisava se dedicar.
Os mimos eram frequentes. As flores, os jantares, os com-
promissos sociais, os vestidos de festas, os cuidados com a ente-
ada. Era um casamento muito bom. O amor, que no início lhe
faltava, transformou-se em agradecimentos e, por que não dizer,
em orgulho. Era muito bom voltar a Brasília de classe executiva.
Olhar para a cara de todos, inclusive os pais, a pensar: “Venci”.
Apesar de financeiramente resolvida, nunca teria sido seu
sonho de consumo. Seu sonho era poder ver a filha feliz. Ten-
tou ter filhos nesse terceiro relacionamento, mas não foi possí-
vel. Mas, como não havia cobranças por parte do marido, isso se
tornou uma tentativa de lhe dar um presente. Durante dez anos
seguidos, pouco se falou sobre isso, a julgar que não era impor-
tante para ele.
O importante era sua presença, de mulher séria e bem cui-
dada. Para que pensassem que não basta ser a mulher da pessoa
mais importante da empresa que ele havia criado seis meses an-
tes de sair da faculdade do Largo de São Francisco. Era como
se não bastasse ser uma mulher fina e digna dele. Tinha que
parecer, para os amigos, digna dele.
E quem o via assim não imaginava que fora aquele meni-
ninho do pau de arara do início dos anos 1970, da debandada
geral, do Nordeste para São Paulo, dos homens das malocas, da
construção civil, filho do homem que havia construído o prédio
vizinho, da Pio XI.
Não gostava muito de se lembrar desse passado, só quan-
do ela se eximia de reconhecer algumas de suas façanhas finan-
ceiras. Um homem que toda mulher desejava: bom, atencioso,

No divã com a manicure L 37


romântico e endinheirado. Até que, certa noite, o telefone tocou.
Ela atendeu e do outro lado uma voz dizia: “Pai, mãe pediu para
lhe dizer que nosso avô morreu”. Ela bateu o telefone. Pensou ser
um simples engano. Mas não foi. O terrível engano se apresen-
tou com uma forma que nem em seus piores pesadelos poderia
imaginar.
O telefone tocou novamente. Ela o atendeu. Dessa vez,
uma voz feminina, com sotaque pernambucano – afirmo porque,
na narrativa, ela deixou escapar um “visse” a mais. Depois eu
explico, para não perdermos o foco da história. Voltando à cama,
ao telefonema. A voz dizia, sem a menor cerimônia: “Diga pro
Roberto que pai morreu. Preciso dele aqui, agora, pois não sei
o que fazer com os meninos”. E, no fim, emendou um “visse?”.
Pernambucana. Com certeza.
Seu mundo caiu. Mediante o recado, ele não se deu ao tra-
balho de lhe explicar, sequer dizer que não era o que ela estava
pensando ou coisa do tipo. E, de fato, ela, até aquele momento,
não estava pensando nada, a não ser que havia recebido um tele-
fonema errado, e que seu marido estava acometido de um terrível
surto de sonambulismo, ao atender às solicitações daquela voz
desconhecida.
Ele só voltou dois dias depois, tempo suficiente para a ficha
cair. Quando ele adentrou a casa de volta, as malas dela e de sua
filha já estavam prontas. Mas queria saber a verdade. E a verda-
de lhe foi mais dolorida do que supunha imaginar. Ela era uma
feirante do Ceasa, filha de um amigo do seu pai, um daqueles
do pau de arara. Haviam namorado quando adolescentes, mas
seguiram caminhos distintos. Ele foi pro Largo de São Francisco
e ela se amasiou com um pistoleiro.
O cara logo foi morto, numa empreitada malsucedida, e ela
ficou com os dois primeiros filhos para criar. Seu pai, como era
um pobre viúvo, não sabia como lidar com esta filha também
viúva. Pediu-lhe ajuda para desbaratar a papelada da compra de
uma banquinha de frutas no Ceasa, maior centro de distribuição

38 L Lindy Lima
de frutas e leguminosas do país, e foi então que se reencontra-
ram, anos depois.
E, à medida que suas diferenças sociais se acentuavam, as
lembranças da infância vinham à tona. Daí por diante, nunca
mais se separaram. Mas aquela mulher não lhe servia de tudo,
apenas para algumas coisas. Tentou sufocar esse amor por muito
tempo, até se casou com outra que lhe parecia ter todos os requi-
sitos necessários para um homem com suas pretensões. Mas, ao
cabo de alguns meses de casado, percebeu que era inútil.
Ela aceitou a desfeita de ele ter se casado com outra, que lhe
acompanhasse nas convenções sociais, desde que ele reconheces-
se no papel, além do filho, as duas meninas frutos do casamento
com o anterior. Negócio fechado. Assim, a vida dupla não foi
difícil de manejar. Ela ia para o Ceasa de segunda a sábado. An-
tes de ir para o trabalho, ele fazia questão de levá-la, inclusive as
crianças para a escola. E, assim, seguiram esses anos de vida du-
pla. A do Ceasa chorava, lamentava, desejava mais sua atenção.
Mas acabava por aceitar os finais de tarde, os inícios de manhã
e o pagamento da escola dos filhos – inclusive dos dois que não
lhe eram legítimos.
Mas ele não pôde deixar de ficar perplexo quando elas,
mesmo diante de toda explicação, rumaram porta afora com suas
respectivas dignidades. Leia-se: as roupas que podiam carregar.
Foram para a casa de uma amiga. Até que a névoa nos olhos
e o amargor da boca passassem, é fato que durou cerca de dois
anos. Foi duro, mas, um belo dia, o gosto de fel estava findo.
Apenas um pequeno arrependimento ficara, de ter sido mais or-
gulhosa do que prudente, não aceitando um conto sequer dos
dez anos em que servira de demonstrativo requintado.
Porém, o passado certamente é um rio, cujas águas correm
para adiante. E assim foi. Por essa época, elas já moravam em
um pequeno apartamento na Avenida Pompeia. Não conseguiu
retomar a carreira de jornalista, então aceitou de bom grado ser
gerente de uma loja de bolsas de luxo, em um grande shopping

No divã com a manicure L 39


da capital. Sua filha tinha completado a maioridade e passado no
vestibular para biomedicina. Como presente, pediu uma viagem
com amigas para o Nordeste. Porto Seguro. Era a primeira vez
que as duas se separavam. Estava agora feliz, a vida por fim esta-
va voltando ao curso.
Mas foi na noite do sétimo dia depois que a filha tinha
viajado que o telefone tocou, novamente no meio da noite. Tris-
te presságio. Uma voz trêmula perguntava se ela era a mãe da
Manuela. Sou sim, respondeu, assustada. A voz do outro lado
afirmou que lamentava muito, mas sua filha havia sofrido um
acidente. Quer dizer, acidente não. Tinha acontecido algo que
eles não sabiam explicar, e solicitaram sua presença de imedia-
to. Pelas informações, a filha estava em um hospital. O restante
da noite passou tentando contato com o hospital de Salvador,
em busca de notícias, sem sucesso. No dia seguinte, correu pra
Congonhas, iria no primeiro voo. Cerca de duas horas e pouco
depois, estava no hospital. Afirmou que era a responsável pela
paciente Manuela. Foi quando uma voz fria veio ao seu encontro.
“É a senhora quem vai reconhecer o corpo?”, inqueriu. “O corpo,
não. É que minha filha passou mal e foi trazida para este hospi-
tal”, retorquiu ela. “Sim, é aqui mesmo. Faleceu ontem, de infarto
agudo no miocárdio. Não é comum na idade dela, mas acontece”,
emendou o médico, já dando as costas.
Suas vistas escureceram, e o amargor desta vez lhe inebriou
até a alma. Tão intenso que tomou-lhe de assalto o fôlego, e não
se recordou mais de nada. Sabe que ligaram para seus parentes
de Brasília, que buscaram o corpo. O velório foi triste. O pai
da menina apareceu. Trocaram um longo olhar e um abraço de
quem deixou algo por fazer.
Culparam-se mutuamente, até pelo que não tiveram cul-
pa jamais, e o olhar dele era o puro esboço do arrependimento.
Lamentou por nunca tê-la conhecido. Deram adeus e partiram,
cada um para seu canto. Durante dois meses, não saiu de casa.
Por isso, foi demitida do trabalho. Emagreceu mais de 15 quilos.

40 L Lindy Lima
Os poucos amigos apareceram na primeira semana, depois fo-
ram-se indo. Ao cabo de um ano, estava só com suas lembranças,
sua incontrolável dor, muitos pertences e recordações e um alu-
guel atrasado.
Não tinha a quem recorrer. O pai havia falecido antes e a
mãe tinha uma pensão miserável. Lembrou-se, então, de cobrar
o ex-marido pelos anos de aluguel, como ela mesma afirmou.
Ele, de imediato, pagou-lhe os aluguéis atrasados, e deu o di-
nheiro que pudesse lhe assegurar mais dois meses sem trabalho.
Foi quando surgiu uma proposta de freelance, para uma dessas
revistas de fofoca. O desespero foi maior do que a dignidade. Era
para cobrir o Festival de Gramado.
Então, lá foi ela. Completamente destreinada, jornalisti-
camente falando. Mas escrever um lead é como andar de bike:
nunca se esquece, embora fosse aquele um texto diferente. De
início, achou que seria uma fria, ainda maior do que o frio que
lhe aguardava – algo em torno de zero grau, ou algo parecido.
Mas foi uma noite encantadora. A cidade linda. O tapete verme-
lho e os cafés eram maravilhosos. Em alguns meses, parecia ser a
primeira vez que conseguia respirar sem dificuldade. Parecia que,
ali, o ar não era tão rarefeito aos seus pulmões.
Ali ela respirou, comeu, tomou chocolate e andou nas ruas
sem destino. Na época, já existia e-mail, mas não tinha internet
móvel. Era difícil achar internet para enviar a matéria. Ligou
para a editora e ditou a reportagem, linha a linha. E permaneceu
lá por mais uns dias. Quando voltou a São Paulo, o ar novamente
fazia-se ausente. Em compensação, a cidade de Gramado lhe era
como música de ninar.
Era diferente daqui, onde em tudo o que fazia, lá estava sua
filha, nas ruas, nos restaurantes, nas alamedas, nos bancos, nas
ladeiras da Pompeia. Em tudo o quanto havia de vida e sem vida.
Lá estava vivamente ela.
O dinheirinho do ex já era findo, só lhe restava o carro.
Foi a uma concessionária e o vendeu. Passou na imobiliária e

No divã com a manicure L 41


entregou o apartamento. Levou as roupas da filha para um abri-
go, e muitas das suas, que não lhe serviam mais – isso significa-
va quase todas, pois ainda não havia recuperado metade dos 15
quilos perdidos. Foi à rodoviária, comprou uma passagem rumo
a Gramado. Lá, procurou por um lugar mais acessível e lhe indi-
caram uma pensão familiar.
Era uma antiga casa, de estilo europeu. A essa época, o frio
já não estava tão instigante. Durante a primeira semana, seguia a
rotina: acordava, andava, almoçava, andava novamente e dormia
à noite, morrendo de cansada. Nessa semana conheceu quase to-
dos os recônditos daquela bela cidade. Não tomou um ônibus
sequer, fazia tudo a pé ou de bicicleta, emprestada da dona da
pensão.
Numa dessas idas e vindas, passava por uma casa grande,
com muros baixos, e um homem lhe cumprimentava. Depois
de duas ou três vezes, isso lhe chamou a atenção. Parecia que ele
lhe aguardava passar. Começou a prestar atenção. Na segunda
semana, além do cumprimento, já veio um convite para tomar
café. Joaquim era filho de alemães. Loiro, alto e charmosamente
calvo. Um daqueles gaúchos típicos das histórias: usava até bom-
bachas verdes. O único defeito detectado, depois de um mês, era
que não fazia nada, absolutamente, antes de tomar o chimarrão,
e exigia ser acompanhado na empreitada.
O chimarrão no começo não lhe descia bem. Mas com o
convívio a tendência era mudar, e assim foi. Joaquim morava
sozinho naquela casa gigante. Morava, mais precisamente, na
edícula, onde tinha sua oficina de móveis de estilo vitoriano.
Os móveis lhe chamaram a atenção, e sugeriu que criassem um
site para divulgação dos produtos. O marceneiro foi resistente à
ideia, mas, ao cabo de um curto espaço de tempo, o site já estava
no ar e rendendo frutos. A casa também estava mais em ordem.
Pois ele só a arrumava quando era alta temporada, porque, geral-
mente, alugava cômodos para turistas, e depois a bagunça corria
solta. Ela era expert em arrumações; colocou a casa do solteirão

42 L Lindy Lima
em ordem em dois tempos. Não só colocou a casa, como a vida
dele também.
Joaquim tinha 50 anos e nunca havia sido casado. Viveu
com os pais até o fim da vida deles, e já morava sozinho há pou-
co mais de 10 anos. Tinha um irmão gêmeo, médico, que vivia
em Porto Alegre, e outra irmã, mais nova, corretora de imóveis,
também na capital. O companheiro se encantou pela organiza-
ção e liberdade dela, e ela pela casmurrice e – por que não dizer?
– bagunça do rapaz. Olhei e não vi nenhum resquício de olhos
de ressaca ou de cigana oblíqua. Como poderia ter se encantado
por aquele Bentinho de meia idade? Mas, como dizem, o amor é
cego. Onde bate, apregoa. Vamos lá. Ao final da história.
Se é que alguém pode gostar de casmurrice, ela foi a prova
mais elementar de que casmurrice nenhuma sobrevive aos cuida-
dos do amor. Haja vista que Bentinho só ficara casmurro porque
Capitu não lhe atribuiu todo o amor merecido. Ou será que o
fez, e Bentinho é que, mordido de ciúmes, nunca o percebeu?
Bem, não discutamos o que se passa na cabeça do homem da
Rua dos Matacavalos. Até mesmo porque, o da bombacha estava
a cada dia mais garboso e cheio dos encantos. Ou seja, Capitu
faltou comparecer.
Não demorou muito e estavam se atropelando pelo meio
da casa. Tudo misturado: vida, dinheiro, dificuldade e Joaquim,
um virgem de casamentos, feliz como pinto no lixo. Toda a vi-
zinhança gabava a nova situação do antigo solteirão do bairro.
Que não era mais coitado, agora era homem casado e, por que
não dizer, cobiçado. Sabe como é. Aquela história. Lembro-me
de que, quando adolescente, namorei o menino mais feio da
escola. Tudo bem que eram apenas quatro, numa turma de 25
meninas. Mas ela era o mais feio. Tinha até piolhos. Depois de
seis meses, me tomaram ele. Como que em um passe de mágica,
o cara ficou bonito. Eu diria mais: maravilhoso, principalmente
quando usava as calças baggy do irmão mais velho, que havia
chegado de São Paulo.

No divã com a manicure L 43


Talvez tenha sido este, justamente, o motivo pelo qual ela
rapidamente tratou de dar um fim a todas as calças “esmaga pei-
to” do cara. Não perdê-lo para uma desavisada com blazer de
ombreiras. Afinal de contas, já estávamos no século XXI.
Joaquim era um homem que gostava de pássaros, nature-
za, pescar e de fazer móveis. Ela nem sabia que existia natureza
fora do Globo Repórter. Achava que animais eram só cachorro
de estimação, e móveis eram planejados. Móveis planejados não
tinham nada de humano, apenas dissabores. Pelas últimas ex-
periências, não era prudente lhe falar em móveis. Mas Joaquim
chegou justamente para mudar todos os seus conceitos.
Além de tudo, tinha uma pequena instância, onde se plan-
tava e cultivava-se de tudo. Ali era possível encontrar: galinha,
pato, marreco, cisnes, pavão, vaca. Tudo o que se mexia, bulia e
grunhia, debaixo do céu e em cima da terra, ali era passível de
vida e cuidados, além de uma exuberante paisagem nas serras
gaúchas, cuja vista era milimetricamente ornamentada por umas
serranias, daquelas que as vistas não se cansam de admirar. Era
ainda melhor apresentada do que nos livros de Veríssimo.
Entre Gramado e a instância eram 30 quilômetros de dis-
tância, percorridos quase todos os dias. Joaquim, agora mais dis-
posto, vendendo mais por causa do site, tinha que se desdobrar
entre ir e estar com a amada, que se recusava a passar seus dias na
cidade, quando tinha tantos bichos para cuidar na roça.
Percebeu que se Tião, um cearense cabra da peste, não se
importava muito com o bem-estar animal dali, ela iria mudar
aquele cativeiro. Comprou uma televisão para o caseiro, assim,
ele ficava mais feliz. Este assistia a programas de culinária pela
manhã, desenhos até o meio-dia, o jornal local, o jornal geral, e
assim se sucedia, com os programas de fofocas, as novelas, e tudo
o que ali fazia gestos e sons. Lá estava Seu Tião, interagindo. Por
um lado, foi excelente, mas não foi um início de gestão sábia.
Logo percebeu a burrada. Mas era tarde! O caseiro havia fei-
to excelentes amigos na TV. Gostava demais dos personagens e

44 L Lindy Lima
falava com eles sem parar. Enquanto isso, os bichos ficavam cada
vez mais ao Deus dará.
Um belo dia, Seu Tião resolveu morar na cidade, pois dese-
java conhecer gente das novelas. Ela começou, então, a se dedicar
integralmente à instância e fazer as vezes do caseiro, mas isso
ficou muito cansativo. Até que apareceu uma família necessitada
de trabalho e moradia. Aí a coisa começou a se organizar melhor.
A marcenaria começou a prosperar de tal forma que as en-
comendas não paravam de surgir. O marido, trabalhando cada
vez mais, só vinha aos finais de semana, mas estava tudo certo.
Reconheceu, porém, que ele necessitava de uma mãozinha para
viabilizar a logística. Contratou mais gente, abriu firma, e ela
administrava o dinheiro. Vinha duas vezes por semana para a
cidade. O restante, fazia de casa. Era da internet.
Ao final, descobriu ser uma exímia administradora. Conse-
guiram, além de reformar a casa e a instância, montar um grande
depósito onde os móveis eram armazenados.
Enfim, a vida lhe sorria. Mas ainda não estava tudo com-
pleto. Joaquim descobriu que não queria passar por esta vida sem
perpetuar seu belíssimo sobrenome alemão. E foi este, justamen-
te, o motivo que os fez abalarem-se de Gramado a São Paulo. A
possibilidade de uma gravidez, aos 42 anos. Mas, como Deus fez
a Jó, no final haveria de lhe restituir tudo em dobro.

No divã com a manicure L 45


A lei dos homens

Não posso dizer que, na maioria das vezes, convivi com per-


fis extremamente iguais. Pessoas inseguras, traídas e, muitas de-
las, depressivas. Minha irmã me dizia sempre que eu atraía estes
tipos. Mas não sei se, necessariamente, eu as atraía, ou se vinham
a mim exatamente porque tinha paciência para ouvi-las.
Na maioria das vezes as aconselhava, quando me pediam.
Enfim, eu as entendia, embora nem sempre concordasse com
tanta autocomiseração.
Porque se automutilavam interiormente, por tão pouco.
Mas nunca as censurava por suas inseguranças e falta de ini-
ciativa – princípio básico de uma manicure. Nunca seja de todo
verdadeira em suas correções. Isso deixemos para os chefes ou
parentes. O salão de cabeleireiro deve ser a válvula de escape das
clientes – elas não estão ali para serem corrigidas, analisadas ou
execradas.
Com exceção de alguns casos. Cito esta moça, uma advoga-
da. Foi minha cliente por pouco tempo, em comparação às muitas
outras. Mas lembro-me de que tínhamos ótimas conversas. Ela
havia nascido em uma cidade do interior, não me recordo ao certo
qual. Sei apenas que era próxima a Laranjal, interior de São Paulo.
Filha de um ex-boia fria, colhedor de café e laranjas em fazendas
da região, até conseguir comprar um terreninho com alguns pés
de laranjas. Foi assim que construiu seu significativo império. O
maior laranjal da região. Além disso, dispunha também de uma
empresa de maquinário para agroindústria. Mas, esta vida um
pouco mais farta acabou por chamar a atenção dos irmãos que, ao
contrário dele, não obtiveram ascensão econômica.
Foi voltando para casa, após a festa do seu aniversario de 10
anos, que o pai foi assassinado. A cena nunca lhe saiu da mente.
O sangue jorrando do peito, a mãe em pânico, e ela segurando o
irmão pequeno. Logo chegou a polícia e tudo transcorreu como

46 L Lindy Lima
não poderia deixar de ser. Família clamando por vingança, o fa-
latório na cidade, a mãe internada em clínica psiquiátrica – sob
alegação de que estava em choque – e ela e o irmão na casa de
um e de outro.
Ainda sob custódia médica, a esposa foi obrigada a assi-
nar documentos e mais documentos – entre os quais, algumas
procurações. Quando, enfim, a saúde foi restabelecida, depois de
três meses, já não tinham onde morar. A casa não lhes pertencia
mais. Nem mesmo os empregados estavam lá, foram dispensa-
dos. Aquela propriedade agora pertencia a outra pessoa, um tio
que não pôde recebê-las durante várias e várias tentativas. Tive-
ram que ir para a casa da avó paterna que, por mais que quisesse
ajudá-las, não impedia que houvesse um clima estranho no ar.
Uma força as repelia daquele local.
Por carta, fora informada de que não podia mais reclamar
sua parte na casa ou nos negócios, sob alegação de que tinham
gastado tudo na clínica. Realmente, os diretores da clínica foram
muito bem pagos, não por ela, mas para mantê-la longe de suas
faculdades mentais. Não restado mais nada, recolheram o pouco
de dignidade que sobrara, junto com a roupa do corpo, literal-
mente. Rumaram para a capital, com a ajuda de uma conhecida
que morava na Vila Maria. Estabeleceram-se no mesmo bairro,
em uma edícula, nos fundos da casa de uma bondosa senhora de
idade. O aluguel nem sempre era cobrado, mas, quando sobrava
algum da insípida pensão por viuvez, conseguida através de uma
sindicalista amiga da própria dona da casa, o aluguel lhe era pago
com muito prazer.
Apenas seis meses depois, conseguiram uma vaga numa es-
cola pública e uma creche para o irmão menor. Lá, ele contraiu
uma meningite viral que, confundida com gripe, acabou negli-
genciada, levando o garoto a óbito meses depois – levando con-
sigo os últimos fiapos de interesse pela vida que restavam à mãe.
O terninho cinza e o caixão branco com alças douradas fo-
ram pagos pela senhora idosa e algumas amigas do carteado de

No divã com a manicure L 47


todas as tardes. Os olhos mórbidos da mãe e sua paralisia visceral
tornaram-se um utensílio no canto da pequena casa, quando não
vagava pelas ruas e praças da cidade, embalando as cadeiras de
balanço como se seu irmãozinho estivesse ali. Jamais se referiu
a nenhum dos dois. Limitava-se a olhar vagarosamente os per-
tences do filho. O marido nem disso dispunha para se lembrar.
Na formatura do colegial, a mãe não esteve presente. Era a
única sem um parente sequer. Mas o pessoal da igreja não deixou
de comparecer. Estava internada em uma clínica psiquiátrica fi-
liada à igreja evangélica, onde encontrou mais apoio do que em
toda a sua triste existência. Em troca disso, passou a assistir aos
cultos dominicais, primeiro por gratidão, depois por obrigação
e, logo em seguida, por amor à palavra de Deus. Há cinco anos
fazia parte daquela comunidade, cantava no coral e era exímia
conhecedora do livro sagrado, embora nem sempre o seguisse
à risca. Identificava-se muito mais com o velho do que com o
novo testamento – quando, segundo ela, o povo de Deus havia
passado por terríveis e temíveis provações.
Como fazia tempo que a mãe não saía da clínica, resolveu
morar em uma pensão. No início do ano seguinte, prestou vesti-
bular para Direito numa instituição privada. Embora não fosse a
universidade que sonhara, foi invadida por uma felicidade jamais
sentida. Era a sua mudança de vida. Lá também conheceu um
rapaz que, quando a sua barriguinha de três meses de gravidez
começou a despontar, bateu em retirada, pois “não estava pron-
to”, assinalou. Aliás, não estavam prontos. Mas ela enfrentou
mais essa. O bebê nasceu nas férias do primeiro para o segundo
ano. E quem estava desempregada, na pensão, era a encarregada
da vez de cuidar do bebê.
Como vendedora de loja no shopping, seu tempo e sua pa-
ciência eram consumidos a todo vapor. Mas, quando podia, não
hesitava em levar o bebê ao encontro da avó. Era bom ver o
sorriso e o brilho dos olhos dela sendo reestabelecidos. O neto a
fazia muito bem. Era notável.

48 L Lindy Lima
Foi promovida a gerente, depois da faculdade, mas o salário
ainda era ínfimo. Mal dava pra pagar o aluguel do quitinete na
Lapa, dividido com uma amiga. A mãe agora alternava tempora-
das na clínica a outras com elas. Quando a mãe vinha, ela dormia
na cozinha, com o bebê. Não cabiam três adultos num quarto.
Mas, quanto se tornava um musgo no canto do sofá, era hora de
voltar para a clínica.
Por inúmeras vezes foi para a faculdade sem jantar. Como
dizia, bebia água para matar a fome afogada, e se alimentava de
orações. Pelo menos meia hora por dia era dedicada a conversar
com Deus. Sem isso, não conseguia manter-se de pé, afirmava.
Conforme o final do curso se aproximava, as dificuldades au-
mentavam. A amiga com quem morava casou-se, e não conse-
guia mais ninguém para dividir as contas. Por isso, o diploma
foi postergado por alguns anos. Entre DPs e trancamento de
matrícula, concluiu o curso ao cabo de intermináveis nove anos.
Era a mesma idade do filho, que agora já era seu compa-
nheiro. Já ficava sozinho em casa, enquanto ela trabalhava. Certa
vez, uma vizinha a denunciou às autoridades por abandono de
incapaz. Mas ela fez a assistente social chorar quando discor-
reu sobre sua situação e, de quebra, ainda conseguiu uma cesta
básica.
Com diplomas em mãos, bateu de porta em porta. Mas fal-
tava o principal. O exame da Ordem. Não foi tão fácil quanto
imaginou. Sem estágio e OAB, emprego na área estava com-
pletamente fora de cogitação. Até que veio um e-mail, de um
antigo professor, que, para sua grata surpresa, lembrava-se dela.
Perguntou-lhe até do filho, além de outras amenidades. Este lhe
conseguiu uma entrevista num renomado escritório de advoca-
cia, para o qual prestava consultoria diariamente, especializado
em casos empresariais, nacionais e internacionais também.
Mas, sem a famosa carteirinha vermelha, o máximo que
conseguiu foi uma vaga na recepção. Salário menor do que de
gerente de loja, mas não trabalhava aos finais de semana. Em

No divã com a manicure L 49


contrapartida, as dívidas se acumulavam, como pedras de gelo
em chuva de granizo. Agarrou essa oportunidade com as duas
mãos e investiu no trabalho. Fazia mais do que lhe era exigi-
do. Saía de mesa em mesa, perguntando se alguém precisava de
ajuda.
Não raro, aparecia alguma coisa além de um pedido de café
ou que esvaziasse suas lixeiras. E ela as executava com a mesma
maestria. No início era só a “miss simpatia”. Depois, foram reco-
nhecendo seu esforço e talento. Redigia uma petição como nin-
guém e pegou os macetes da jurisdição – um texto irretocável,
como reconheceu, certo dia, o diretor da empresa.
Depois do elogio do presidente, foi convidada para o me-
lhor setor da empresa: redigir os textos do setor de contratos
internacionais, que depois seriam traduzidos para outras línguas.
Mas, além da falta da OAB, teria outro agravante, ainda pior. Ao
contrário da turma ali, não falava nenhuma língua estrangeira. O
requisito básico do setor era, no mínimo, inglês fluente.
Ouviu rumores de que seu antigo professor pretendia sair da
empresa. Já quase não prestava mais as consultorias, só aparecia
quando era requisitado. E, quando aparecia, estava muito triste e
desanimado. Cogitava-se que estivesse sofrendo por amor. Mas
como, se sempre tivera todas as mulheres que queria? Dinheiro
e saúde para isso não lhe faltavam. Mais uma vez, recorreu ao
professor. Mas, desta fez, ele não podia fazer nada. Deixou claro:
ou ela falava inglês, ou não falava. Foi taxativo. Mesmo assim,
ela manteve o nome para concorrer ao cargo de assistente do
internacional.
Na noite anterior à entrevista, foi para casa desesperada.
Queria muito a oportunidade, mas sabia que não era fácil, teria
que ocorrer um milagre. Havia muitas outras pessoas mais bem
qualificadas, almejando essa chance. Até tentou dormir, mas o
sono bateu em retirada. O que fazer além de jogar-se aos pés da
cama, e orar até perder os sentidos? Manteve uma daquelas con-
versas de pé de orelha com seu Deus. Expôs sua situação. Como
diria ela, o seu Deus do impossível não haveria de falhar.

50 L Lindy Lima
No dia seguinte, a copeira faltou. Ela mesma levou o café, e
teria estado tudo bem, se ela não tivesse tropeçado no americano
e lhe lavado a camisa de café. A cozinha não era seu forte. O café
era meramente morno. Menos mal. Ainda assim, o desespero
lhe turvou as vistas. “Pai, tenha misericórdia de mim”, suplicou
mentalmente. Seus pensamentos recorreram a lugares ilógicos.
Sua cabeça quase se afundou no desespero.
Esperou os piores agravos, mas o que recebeu foi uma sarai-
vada de risos. O americano achava engraçado o jeito atrapalhado
com que os brasileiros executavam as coisas – e que, ao final, dava
tudo certo. Gracejou! Os risos inundaram a sala, assim como o
café no carpete. Todos se prontificaram a ajudá-la. Mas lá esta-
va ela, de quatro, enxugando o carpete, a fim de evitar maiores
acidentes. Por fim, ordenaram que chamasse a entrevistada. Ela
se ergueu como quem bate continências diante de um batalhão
convocado à guerra, e se fez pronta para a carnificina.
Houve, de antemão, entreolhares de espanto. Mas quem lhe
pediu que se sentasse foi justamente o americano que, a essa
altura, já tinha ido ao banheiro tirar metade do café da camisa.
Mas a mancha marrom ainda reluzia solenemente, como uma
tatuagem que se seguiria por toda uma triste existência. Pesou.
Nem mesmo o professor estaria lá para segurar a sua mão
em condolências, na saída. A essa altura, estava em outro estado,
Tomando posse de um novo emprego. Estava definitivamente
entregue aos leões! E, em vez de Daniel, lembrou-se da passa-
gem de Joel. “A ti, Senhor, eu clamo” ( Joel 1-19). Jamais pode-
ríamos compará-la a uma pregadora reacionária, mas era uma
grande iconoclasta da palavra divina. Jamais perdia a chance de
nos brindar com uma palavra de fé e esperança, fosse qual fosse
a situação. E, por isso, jamais permitiu que seu próprio coração
endurecesse, mesmo em momentos nos quais sua vida parecia
um pesado fardo fora de controle.
De início viu muitas caras feias. Ninguém acreditou. Che-
garam a lhe perguntar com quem ela estava dormindo para

No divã com a manicure L 51


conseguir o cargo do departamento de Contratos Interacionais.
Ela sabia perfeitamente com quem, e fazia questão de revelar.
Caso alguém acreditasse.
Mas, além de ser um departamento altamente masculino, as
poucas mulheres que ali estavam não apresentaram tanta resis-
tência à sua chegada. Era pessoa fácil de lidar. Não se importava
com as críticas, tampouco com as amenidades femininas. A única
coisa que a faria parecer com o modo de vida das mulheres atuais
era o hábito de fazer as unhas semanalmente. Mesmo assim, era
uma mulher extremamente feminina, com rosto hexagonal, de
lateral reta: estilo Isabeli Fontana. E com pele muito clara, con-
trastando com cabelos escuros e ondulados, cortados na base do
queixo. Magra, muito magra – “reflexo da fome que passou na
faculdade”, brincava. Uma mulher que lava o rosto com água e
sabão, e, ainda assim, tem pele de pêssego.
Vinha ao salão fazer as unhas, não por achar que isso a
tornaria mais bela ou sexy, mas porque tinha as unhas dos pés
encravadas, as quais foram apelidadas, carinhosamente, de OAB:
difícil de sair. Só dispunha de dois ou três conjuntos de roupas,
que revezava durante a semana. Agora já podia até se dar ao luxo
de comprar umas pecinhas a mais. Porém, não estava acostuma-
da a luxos. Tivera, desde a morte do pai, uma ou duas roupas, e a
mesma quantidade de sapatos, ao mesmo tempo.
Não lhe faziam falta. Fui eu quem a convenci de que ne-
cessitava melhorar seu guarda-roupa. Não precisava abarrotá-lo,
apenas adequá-lo melhor à sua nova posição profissional. Nada
que destoasse do seu jeito simples de ser, mas precisava sair da-
quele simplório, urgentemente.
Formos à Zara e compramos algumas peças, como calças
jeans escuras, algumas camisas e dois blazers. Também sapatos
de bico quadrado, em outro lugar, e algumas camisetas Hering,
de cores sóbrias. Quase morreu por ter de pagar por aquilo, em-
bora depois viesse a reconhecer necessário mesmo. Agradeceu-
-me pelas aquisições!

52 L Lindy Lima
O seu filho agora ganhara a primeira bicicleta. Daniel era
o seu nome. Uma referência àquele outro, jogado na cova junto
a leões. Assim como o profeta, eles também sobreviveram. Além
do pessoal da igreja, tinha o professor, que, apesar de longe, ja-
mais deixou de dar notícias. E, da última vez, informou que esta-
va de volta, pois não havia se adaptado ao clima desértico de uma
das capitais do Nordeste, a qual não me recordo.
Marcaram de se ver. Ele agora estava mais grisalho, embora
parecesse cinco anos mais jovem do que quando deixou o escri-
tório. Talvez fosse o bronzeado aparente. Ficou chocada quando
ele lhe revelou que não houve emprego algum fora de Sampa.
O moço tinha tirado um ano sabático, e andou perambulando
por vários cantos do Brasil. Praias, montanhas, desertos, serrados,
caatingas, florestas, enfim. Estava de volta. E continuava sofren-
do por amor. Não adiantou fugir, reconheceu. A pessoa de quem
gostava não lhe dava a mínima. Levava tudo na mais deliciosa
brincadeira, e ele se cansou. E, agora que estava de volta, ia investir
pesado. E, sem titubear, antes de uma possível invertida, ele sacou
um anel de compromisso e lhe atarraxou no anelar direito.
Apesar de perplexa, não sentiu asco por aquela inusitada
cena. Eu a encorajei a se conhecerem melhor, mas ela deixou
claro que não haveria nada de sexo. Ele era 15 anos mais velho,
e tinha um filho adolescente. Era um pouco sem paciência para
essas atitudes quase pueris, mas no fundo achou genial, de modo
que se adaptou rápido ao celibato da moça. Certamente estava
cansado de promiscuidades. De mulheres vendendo facilidades
sexuais, em troca de uma carona em carro de luxo ou uma vi-
sitinha ao seu apê no Morro do Careca, aos finais de semana.
Afinal de contas, era um homem um tanto atraente, não só fi-
nanceiramente, como fisicamente. Porte atlético. Corria, andava
de bicicleta e frequentava academia todos os dias.
Faziam programas de casal de namorados, mas sempre
acompanhados dos filhos. Isso inibia muita coisa, dizia, rindo.
Ao final de três meses, quebraram o jejum. E a coisa engrenou

No divã com a manicure L 53


para valer. Até que pintou a palavra casamento. Ainda era român-
tica. Desejava casar-se, e ele apenas namorar. Foi aí que entraram
em conflito. Estava solteiro há muito tempo, e já não saberia
mais dividir a vida com outra pessoa, ainda que fosse a pessoa
com quem sonhou desde o primeiro dia em que a viu na facul-
dade. Argumentou.
Quando a foi visitar na maternidade – pois sabia que não
tinha ninguém –; quando tentava, ainda que sem sucesso, lhe ar-
ranjar estágios; quando lhe dava caronas até perto de casa, estava
simplesmente fomentando um amor que só cresceu ao longo do
tempo. Mas casar já era demais. Estava vacinado. Isso a deixou
sem chão.
Até se comprometeu a dividir as contas com ela, de um
apartamento alugado, de quase 60 metros, ali na Vila Pompeia
mesmo. Muito diferente do luxuoso loft dele, na Vila Mariana.
Também quis pagar escola particular para o filho. Mas ela achou
um desrespeito tamanho. Uma proposta irretratável. Queria ca-
sar e ponto final. Ele sucumbiu ao desespero e se retraiu. Sua
experiência anterior teria sido ruim. Mulher viciada em limpeza.
Das que arrebentam tudo dentro de casa se encontrarem uma
tampa de vaso sanitário levantada. Uma mulher relógio de Pan-
dora, prestes a explodir à menor menção de coisa fora do lugar.
A decisão de colocarem um ponto-final foi dela, depois de
muita conversa e muitas lágrimas derramadas de ambas as par-
tes. Da parte dele, tudo bem, com a condição de ficarem amigos.
Essa simples menção de amizade foi como mexer num vespeiro
interior. Foram mais de duas horas de negativas muito bem arti-
culadas. Ele não levou a sério. E, na primeira vez em que apare-
ceu, com o intuito de ver o ex-enteado, ela o pôs para correr, sob
pena de chamar a polícia.
Ficaram cinco intermináveis meses sem se falar. Durante
este período, monitorei quase que diariamente os sentimentos
da garota. Quando não me ligava, vinha pessoalmente ao salão
para desabafar. Era radical. Jogou fora o telefone dele, e apagou

54 L Lindy Lima
o número de todos os amigos em comum, para não correr o risco
de, num momento de desespero, recorrer a algum deles com as
mais vis e descaradas desculpas – aquelas que nem mesmo os
drogados, em seus piores momentos de abstinência, são capazes
de dar, para saciar seus vícios, mas os apaixonados, sim, a pedir-
-lhes um refrigério urgente. E, ao cabo de seis meses, o rapaz
jogou a toalha e pediu para marcarem a data do casamento.
A essa altura, o noivo já estava trabalhando na área jurídica
de uma grande multinacional, e tratou de comprar um aparta-
mento digno da família que iria se formar dali por diante. Pre-
cisavam acoplar, além dos filhos do casal, a mãe dela, que agora
estava em melhor fase, embora não tivesse comparecido ao casa-
mento. Eu também não fui. Não fui porque era sábado. Precisava
trabalhar – e, também, porque não gosto de tal evento, verdade
seja dita.
Mas a ajudei a escolher o vestido. Penosa contribuição.
Acho que ficou regularmente feia, pois a convenci pela opção de
um vestido bolo de noivas. Se for para enfiar o pé a jaca, vamos
com gosto. Mas ela se excedeu. O vestido quase não coube nas
fotos, veja lá na simples cerimônia de cartório, já que o noivo era
divorciado. Foi aí que percebi, definitivamente, o quanto não sou
indicada para personal stylist casamenteira.
Certa vez, perdi uma amiga por causa disso. Quer dizer, não
era tão amiga assim – do contrário, não teria ficado brava por tão
pouco. Falei que não iria ao casamento dela porque não gostava
do evento. Ela chocou-se.
“Mas todo mundo gosta de festa de casamento”, argumentou.
“Não sou todo mundo, como diria minha mãe”, retruquei.
Também deixei claro que não gostei da simplicidade do
chique vestido de manga única. Parecia uma tripa, apesar da seda.
“Primeiro: manga única não cai bem pra ninguém, a meu
ver. A não ser que só disponha de um único braço. Assim, tal-
vez!”. E continuei: “Vestido de noiva é igual a festa junina: tem
de ter uma beleza brejeira, é coisa pra rir. Como se fosse cultura

No divã com a manicure L 55


típica, folclórica. Por isso, não deve haver lá tanta sofisticação”,
completei.
Depois voltei aos meus lampejos de sanidade e vi que todo
o salão, com mais de 10 mulheres, me olhava como se fosse lou-
ca. E era. Louca de pedra. Em vias de sofrer um fuzilamento por
retinas. Não se fala mal de vestido ou festa de casamento, nem de
bem-casados, nem de quem deseja, ardentemente, ter filhos gê-
meos no primeiro parto. Eu é que sou desesperadamente errada
sobre o casamento. Reconheço.
O fato é que a minha cliente parecia mais bolo de noiva
do que imaginei. Terrível. Mas casada, e ponto-final. Passaram
lua de mel no Marrocos, cada qual com seu filho a tiracolo, sem
maiores agravos. Divertiram-se muito e, na volta, descobriu que
estava grávida, na mesma semana em que prestaria, por mais uma
vez, a prova da Ordem. Dessa vez também não passou, pois estava
feliz demais para se concentrar em coisas tão sem importância.
Era tão bom o que fazia, que isso já não tinha tanta importância.
Não se importava mais que assinassem pelo seu trabalho. Já tinha
dispensado tempo demais sofrendo, por assim dizer.
Mesmo antes de o bebê nascer, o marido entrou em crise
e não estava mais feliz com a correria da Pauliceia Desvairada.
Desejava uma vida mais tranquila. Vendeu o belíssimo aparta-
mento que tinham acabado de mobiliar, e comprou uma livraria
numa cidade do interior de Minas Gerais. Uma cidade em gran-
de ascensão econômica. E ela foi obrigada a pedir demissão do
trabalho. Eu, chocada, a imaginei demasiadamente triste com tal
reviravolta. Enganei-me de novo.
“Pedi orientação a Deus. E ele me revelou que a mulher
deve estar onde seu marido for”, confessou-me ela, feliz. Achei
digno. Compraram uma casa linda, com jardins e muito espaço.
Ele ficava na livraria, e ela, em casa, cuidando dos meninos. O
maior havia entrado na universidade, ali mesmo, e ela tratava de
dar um suporte jurídico para a livraria. Aprendeu a correr, então
fazia cooper com o marido, todos os dias, antes de a mãe fazer o
café.

56 L Lindy Lima
A senhora estava mais feliz, pois ajudava a cuidar dos ne-
tos, dos cachorros e do jardim, ocupando assim o tempo que,
em outros momentos, usava para divagar sobre o passado. Não
estava de todo boa. Mas, com fé em Deus, iria ficar, era o que
afirmava-me sempre.
Um dia, numa terça-feira, ela me apareceu muito abatida.
Fiquei feliz em vê-la, mas não pude deixar de questionar o mo-
tivo de tamanhas olheiras. Então me contou que, no domingo
anterior, havia recebido uma ínfima mensagem via Orkut que
lhe fez revirar as entranhas. Era uma enfermeira, solicitando sua
presença urgente à cidadezinha onde havia nascido, pois preci-
savam de sua assinatura para retirar o corpo de um homem do
hospital. Quer dizer, meio corpo: o câncer o havia dilacerado
pela metade. Caso contrário, seria enterrado como indigente.
Era seu único tio. O mesmo que ficara com a sua antiga casa.
E lá foi ela, com seu espírito de mansidão. Aquele que lhe
havia tirado quase tudo agora estava morto, sem parentes para
reconhecê-lo na gelidez da pedra sepulcral. A mulher tinha ido
embora com a filha, pois não suportara mais a devassidão do ma-
rido. O dinheiro não lhe servira para outra coisa senão às iniqui-
dades da vida. Até adquirir um câncer de fígado, que lhe ceifou a
vida, com pouco mais de 50 anos, pelo que calculou.
A única filha foi embora para os Estados Unidos e levou
junto a mãe. A enfermeira que lhe contatou deixou escapar que
as duas não vieram nem tanto pelo dinheiro, já que trabalhavam
como empregadas domésticas, mas porque viviam ilegalmente
na terra do Tio Sam, e temiam não conseguir entrar de volta
naquele país. Por isso, deram sua indicação como membro da
família. Até gostaria que fizesse companhia ao pai, caso soubesse
onde fora também enterrado. Mas tratou de fazer um funeral
digno, para salvaguardar a imagem daquele homem que havia
lhe arrancado quase tudo, exceto a mania de ter fé na vida.

No divã com a manicure L 57


Garota dourada

 Maria foi minha cliente, minha amiga e minha colega de


trabalho – e, por fim, meu tormento. Eu a conheci no primeiro
salão em que trabalhei, na Pompeia. Um salãozinho bem sim-
ples, mas ganhávamos dinheiro como água. Uma sólida clientela,
de mais de 20 anos, todas muito bem adaptadas à sujeira, água da
torneira, bipolaridade da proprietária e cera depilatória reutiliza-
da. Reduto das garotas de programa do bairro.
Ela era muito bacana, mas daquele tipo de mulher que não
pode ver um bolso traseiro de homem. Poderia ser feio, bonito,
baixo ou gordo: se sonhasse que carregava um conto, enlouque-
cia. Dava um jeito de levantar a blusa, aumentar o decote, um
sorriso delgado aparecia no canto da boca. Enfim, como dizia
um amigo, “putífera” por natureza.
Vinha de uma família pobre, e seus pais trabalhavam no
corte de cana-de-açúcar na Zona da Mata pernambucana, para
um latifundiário. Aos 13 anos, foi deflorada pelo filho do patrão,
15 anos mais velho. E, ao saber do crime, o pai do sujeito profe-
riu a seguinte admoestação: “O que seria dos nossos filhos se não
fossem essas negrinhas, para lhes servirem?”.
Isso machucou substancialmente sua família. A vergonha e
a revolta tomaram conta de todos. Então, ela colocou na cabeça
um sentimento de vingança. Mas, para isso, precisava se equipa-
rar a eles, financeiramente. Veio para São Paulo para se fazer na
vida. Quando a conheci, tinha 23 anos, e já vivia aqui havia cinco.
Ainda não tinha conseguido se estabelecer. Trabalhava es-
poradicamente de empregada doméstica. Mas, como seu forte
para a sedução era grande, sempre era expulsa pelas patroas, pelo
mesmo motivo.
Não era à toa que chamava a atenção dos homens. Mula-
ta de olhos claros, típica de regiões do Estado de Pernambuco,
fruto da miscigenação afro-brasileira e holandesa. Esbelta e com

58 L Lindy Lima
pele dourada, parecia sempre ter saído de uma câmara de bron-
zeamento artificial. Tinha um senso de humor aguçado, embora
não dominasse sequer o verbo ser. E, por mais que isso fosse
recorrente, para ela, era pouco. Precisava se exibir cada vez mais
para o sexo oposto.
Desempregada e sem dinheiro, vivendo numa pensão no
Largo da Batata, não conseguia mais emprego porque ninguém
lhe cedia uma carta de recomendação. Parecia estar tudo perdi-
do. Sem dinheiro, sem namorado sério, e o último aborto tinha
lhe deixado graves sequelas.
E a vingança? Não podia jogar a toalha, apesar das dificul-
dades. Então, foi fazer as unhas, para ver se melhorava a auto-
estima. E foi como sua manicure que percebi o quão doce era, e
o quanto seguia as trilhas erradas em prol da vingança maldita.
Sabendo que precisava de moradia, ofereci para que dividisse o
aluguel comigo. E foi aí que começou nossa engraçada e turbu-
lenta amizade.
Ensinei-lhe a fazer unhas. Nas primeiras duas semanas,
arrancou as unhas de toda a vizinhança. Eram só lamentos de
“ais”, quando a mulherada colocava os sapatos. Confesso que não
levei muita fé. Mas, cerca de um mês depois, estava emprega-
da no mesmo salão que eu. No começo era péssima manicure,
mas depois acabou por ganhar a simpatia da clientela. Seu senso
de humor compensava a falta de técnica, principalmente, para a
parcela mais exigente: as garotas de programa. Ouvia com aten-
ção os dilemas da clientela e, ao cabo de um ano, figurava entre
as que mais trabalhavam no salão.
Ao contrário de mim, gostava de fazer as unhas das garo-
tas de programa e ouvir suas histórias. Eu andava cansada de-
las. Mas minha amiga adorava saber, principalmente, sobre os
seus polpudos contracheques. Eram sempre as mesmas coisas:
depressão, drogas, amores frustrados e a incompreensão dos fa-
miliares. Poucas delas gostavam do ofício. Mas o dinheiro rápido
as corrompia. Outras apenas para sustentar o vício das drogas,

No divã com a manicure L 59


algumas porque os maridos que conheceram na própria noite
as obrigavam a trabalhar para sustentá-los e poucas o faziam
por prazer. Gostavam da coisa. Embora todas tivessem a mesma
fantasia: encontrar o príncipe encantado na noite.
Certa vez, ela resolveu que iria mudar sua vida. Embora fa-
lasse sempre isso, eu não acreditei. Não via por onde. A vontade
que ela tinha de enriquecer era uma doença. Sempre dizia que
não morreria com o sobrenome de batismo, Silva dos Santos. Na
época, eu mantinha um relacionamento sério, e tinha passado o
final de semana com meu namorado. Apenas três dias depois,
ela apareceu para trabalhar. Usava uma calça justa e, certamente,
cara. Um sorriso de orelha a orelha, apesar da palidez e aparente
cansaço. Agora os cochichos com as nossas damas da noite eram
mais frequentes.
Por vezes a vi portando uns laxantes. Até que, um dia, in-
daguei sobre o motivo daquilo. Ela então me explicou que tinha
se especializado em uma modalidade sexual, para a qual fazia
parte não ter nada no intestino que pudesse comprometer o ato.
Diante da altivez da resposta, calei-me na minha insignificância,
e torci para que ela, no mínimo, não tivesse a flora intestinal
danificada. Mas compreendi que não estava para brincadeiras.
Tanto não estava, que logo pegou suas coisas, acertou o aluguel e
foi-se embora, sem deixar rastros.
Semanas depois, liguei para saber se tinha se arrependido,
se queria voltar. Mas, para minha surpresa, me confidenciou que,
definitivamente, tinha se encontrado na vida. Era esse o glamour
que sempre procurara. Achei a felicidade precipitada demais, e
torci para que não se decepcionasse, como tantas que eu havia
conhecido naquela vida.
Adverti-lhe, inclusive, para que ela não aceitasse e não se
submetesse a todo tipo de despropósito a que a profissão às ve-
zes exige, como violências e outros males em que a prostituição
incide. Ela me agradeceu, reafirmou que me amava, e desapare-
ceu novamente. Não atendia aos meus telefonemas. Eu e todas

60 L Lindy Lima
do salão começamos a nos preocupar. Até as antigas colegas de
profissão já não tinham mais notícias dela com frequência.
Às vezes, me mandava uns recados, dando conta de que
estava trabalhando muito, mas que passaria para tomarmos um
café, ou coisas do tipo, mas nunca aparecia de fato. Até que, um
dia, nos encontramos no mercado. Era de madrugada. Meu na-
morado trabalhava até tarde e, por isso, sempre passamos no
mercado naquele horário. E, para minha surpresa, lá estava ela,
no estacionamento, acompanhada de um cara muito bonito, com
um carro espetacular.
Confessou-me que ele era casado, mas era seu fixo. “Fixo”
é como elas chamam um cliente que banca suas contas, mas que
mantém um relacionamento sem compromisso. Este, inclusive,
lhe pagava cursos de inglês e informática, e mais 500 reais por
mês. Fiz as contas e, obviamente, ela estava ganhando num mês
o que ganhávamos por semana no salão. Então pensei: deve ser
paixão.
Cadê a liberdade financeira, que propagara, e a exata divisão
entre sexo, namoro e dinheiro? Tinha ido tudo por água abaixo.
Cadê o bom casamento por interesse, que jurava que iria fazer?
Enfim, minha amiga estava fazendo um péssimo negócio, pois
pior do que ser amante é ser escrava sexual. Mas ela achava que
valia a pena. A maioria delas batalhava pelo fixo, enquanto o
príncipe não chegava.
Também tinha o curso de inglês. Que, tantas vezes, eu ten-
tei ensinar-lhe, mas nunca se interessou. Quer dizer, eu também
não tinha muita paciência, já que seu português era precário.
Quando ela vinha com o “a gente fomos” e o verbo “ponhar”, eu
me retirava e a deixava falando sozinha. Ponhar é uma estranha
junção entre os verbos pôr e colocar. Ainda difundido, em alguns
cantos do Brasil.
No entanto, continuava resignada a viver trancafiada em
uma quitinete, assistindo a um boyzinho se drogar e exigir todas
as impertinências sexuais, ao custo de um salário de fome, só

No divã com a manicure L 61


para dizer que não era mais doméstica, nem manicure, e não
andava mais de ônibus. Agora, se designava erroneamente como
“de classe média”. Mas acabou por cair na real ao ver que mais
valia uma vassoura ou um alicate na mão do que servir de saco
de pancadas para extravasar a energia de malandro. Logo ela co-
meçou a me ligar, para desabafar. Depois das sessões de violência
gratuita.
Eu sempre falava para ela procurar um emprego. Lutar por
outros ideais, sem explorar sua sexualidade. Mas, sempre que a
conversa convergia para isso, ela desligava. Acreditava que esse
caminho, embora mais difícil, fosse mais rápido. E, para exem-
plificar essa opinião, eu pedia que ela me mostrasse algum caso
em que uma mocinha havia se dado bem, como fixa. Pode até
ter existido, mas em outras épocas. Porque, atualmente, nem em
novelas de Manoel Carlos as garotas estão se dando bem com
essa coisa de sexo pago.
Um dia, ligou-me de madrugada, pedindo para ir urgente
até sua kit. A voz completamente embargada. Julguei que esti-
vesse drogada ou bêbada. Eu esperava o dia amanhecer, quan-
do me ligou novamente. Eram quatro horas da manhã quando
tomei o táxi na Heitor Penteado. Dez minutos depois, já me
deparava com a visão mais aterradora de minha vida. Minha
amiga estava disforme. Seus cabelos eram uma vermelha pasta
de sangue, e o rosto parecia monstruoso. O corpo não tinha cor,
de tantos hematomas.
De início, ainda balbuciou algumas palavras. Mas, depois,
quedou-se num sono que parecia profundo e agitado, ao mesmo
tempo. Comecei por tentar reanimá-la, mas, não obtendo êxito,
liguei para o SAMU. Enquanto isso, tentei limpar o sangue e os
vômitos. Passaram-se 10 minutos, que pareciam uma eternidade.
Finalmente o socorro chegou. Fizeram-me um monte de per-
guntas que eu não sabia responder, até que me irritei e comecei
a perguntar se eles eram médicos ou policiais. Levaram-nos para
a Santa Casa de Misericórdia; a assistência não demorou muito.
Perceberam o quão grave era o estado dela.

62 L Lindy Lima
Fomos atendidas por um jovem e gentil médico, que não
nos fez pergunta alguma, além do que poderia necessitar para
lhe passar os medicamentos e curativos. Isso me fez supor que
um hospital daquele porte transforma tudo em rotina. Pergun-
tou por quanto tempo estava machucada, e se foi com material
de ferro, aço ou outro elemento parecido, e só.
Ela tentou responder, balbuciando e escondendo a maio-
ria das verdades. Não sei se porque já estivesse melhorando, ou
se porque estava sendo atendida por um jovem bonito, mas seu
rosto já ganhara outros contornos. O médico a mandou para a
enfermaria, fez-lhe uns curativos e, depois de cinco horas de ob-
servação, fomos embora. Na saída, o encontramos novamente.
Ele me chamou e sugeriu, sutilmente, que denunciássemos o
agressor. “Não é porque vocês fazem o que fazem que devem se
submeter a este tipo de situação”, nos alertou ele. Fiquei a me-
ditar: “Como sabia que era prostituta?”. Até eu estava no barco.
Até fiquei lisonjeada, por saber que tinha atributos aceitáveis ao
ofício.
Voltamos as duas mudas, dentro do táxi. Faltavam-me pa-
lavras, e lhe faltava voz. Ela, estava usando um xale sobre meta-
de do rosto, para evitar comentários. Mas, volta e meia, o olhar
curioso do taxista pelo retrovisor tentava adivinhar o que poderia 
ter sido aquilo. Foi só quando chegamos em casa que percebi que
ela ainda usava a cinta-liga vermelha e preta, com delicados bol-
sinhos para camisinha. Por isso não foi difícil o médico chegar
àquela conclusão.
Cuidei dela durante os três dias seguintes. Eu vinha para o
trabalho e, depois que voltava da faculdade, ia direto para a casa
dela. E foi nesse revezamento que a vi melhorar, sarar, e começar
a reclamar a falta do amado. Só depois de um mês ela me pediu
dinheiro emprestado, para pagar o aluguel, pois nunca mais o
cara apareceu por lá. A mísera fonte secou.
Mas nunca me falara nada. Além disso, eu também não lhe
perguntei. Até que, uns dois meses depois, ela resolveu deixar o

No divã com a manicure L 63


apartamento, e pediu para morar comigo novamente. Como pa-
gava faculdade e mais outras contas, tive que me desfazer da an-
tiga casa. Agora minhas economias só me permitiam pagar um
quartinho e banheiro, onde tinha de haver um equilíbrio para
acoplar meus 400 exemplares de livros e minha outra mobília:
uma cama de solteiro, que ganhei de uma cliente, um armário de
parede onde ficavam os poucos pratos e um guarda-roupa, que
quando se abria a porta, fechava-se a do banheiro – o que era
bom, porque o banheiro não tinha mesmo porta. Além do mais,
o príncipe sabia onde eu morava, e eu não queria encrencas.
Mas nem precisei dar uma negativa. Quanto expus-lhe a
situação do barraco, ela certamente preferia apanhar, mas morar
razoavelmente. Por si só, resolveu pedir exílio na casa de uma
colega de trabalho. Sempre tive fama de ter boa intuição e, mais
uma vez, ela não me falseara. Uma semana depois que tinha dei-
xado o apartamento, eis que aparece, no meu portão, o príncipe.
O príncipe estava vermelho. Vermelho de ódio. Transtornado,
me inquiriu sobre o paradeiro da moça e, usando um vocabulário
impronunciável, me encheu de impropérios.
Joguei a real sobre minha última conversa com ela, mas não
lhe falei onde estava morando, embora eu realmente não sou-
besse. O cara pareceu acreditar, e bateu em retirada. Mas, antes,
disse em alto e bom som que a mataria, assim que a encontrasse,
pois ela o havia prejudicado de monte. Disse estar muito arre-
pendido do que fez com a sua esposa, a quem chamava de “pa-
troa”. É que, assim que minha amiga pôde falar, a primeira coisa
que fez foi ligar para a mulher do cara e contar toda a história
deles, do início ao fim.
Agora o coitado estava na rua da amargura, porque os pais
da patroa tinham o despedido do emprego, e posto para fora do
apartamento da filha, a pontapés. Encontrava-se simplesmente
desesperado. Sem mulher, sem casa, sem emprego e, por isso,
teve que voltar para a casa dos pais, em um local que ele abomi-
nava, num bairro próximo à represa de Guarapiranga. Um lugar

64 L Lindy Lima
que nunca combinou com ele. Só ia ali para comprar droga ba-
rata. Ademais, tinha horror daquela gente pobre. Até dos pais,
que insistiam em convidá-lo para as festas de aniversário dos so-
brinhos. “Aquela puta acabou com minha vida”, disse, enquanto
dava sinal para um táxi, na avenida. Então pensei: “E você? Com
quantas vidas já acabou?”.
Passaram-se mais de dois anos. Um dia eu estava fazendo
reportagem sobre moda, num shopping da capital, e eis que ela
me aparece, cheia de sacolas por todos os lados. Minha amiga, a
mais louca que já conheci, me agarrou, me beijou, me suspendeu
no ar. Tinha uma aparência ótima, de quem estava realmente
feliz. Perguntei sobre sua vida, mas não teve tempo de responder,
porque apareceu um homem de mais ou menos uns dois metros
de altura. Um negro daqueles que chamamos na Bahia de preto
retinto, bonito e elegante, a quem ela me apresentou como seu
marido.
Parecia estar um pouco apressado, mas nos permitiu tomar
um café juntas, enquanto ele fazia umas ligações. Ele falou qual-
quer coisa em inglês, com um sotaque estranho que a princípio
não identifiquei. Mas mostrou-se com um sorriso cordial, de
quem não queria contrariar a mulher, apesar da pressa. “E aí?
Gostou do que você me arranjou?”, perguntou-me, sorrindo.
Foi quando ela começou a contar sua nova trajetória.
Quando ela chegou à rodoviária do Recife, indo embora – por-
que, depois da visitinha em minha porta, a procurei e exigi que
fosse –, ela conheceu o nigeriano, com o nome de Konon. Eles
se trombaram na rodoviária, e ele lhe pediu alguma informação.
Lembram-se daquele curso de inglês, que a mocinha morria de
orgulho em fazer? Pois sim, ela parece ter ido além do verbo
“to be”. Não é que conseguiu se comunicar com o moço e até
ajudá-lo na compra de duas passagens para São Paulo, além
de dois pernoites em um hotel, ali mesmo, nas imediações dos
Guararapes?

No divã com a manicure L 65


Konon fazia a trajetória que muitos africanos fazem para
chegar ao Brasil. Pegam um avião do seu país de origem até Es-
panha ou Portugal e, de lá, voam até Recife, de onde vêm para o
Sul – às vezes de ônibus, pois é menos perigoso para suas merca-
dorias. Outros apenas vêm de ônibus porque é mais barato – isso
depende das condições e intuitos de cada um.
Mesmo assim, ela chegou a ir à casa dos pais, viu toda a fa-
mília. Alguns estavam na lida, e outros não estavam em casa. Foi,
como se diz no Nordeste, num pé e voltou no outro, a tempo de
pegar seu ônibus de volta à terra prometida. Chegaram em São
Paulo e já tinha um quarto esperando por eles, em um hotel da
Avenida São João.
E lá ficaram os dois. Ele saía e voltava depois, com um mar-
mitex, e ela ensinava os nomes das ruas da capital paulista para
ele. Explicava quais eram os pontos mais movimentados, e até
levava umas encomendas aos lugares mais difíceis.
Estavam juntos desde então. Ele não bebe, não fuma, não
fala. Às vezes reclama da bagunça dela, e quer fazer amor de
três a quatro vezes por dia, confessou-me, orgulhosa. Dava todo
o dinheiro que ela pedia, principalmente depois do casamento,
quando foram morar na Zona Leste, em uma casa muito grande
– coisa que ela fez questão de frisar. Agora ela só vai ao centro
aos domingos, no Edifício Ester, onde ele pratica sua religião, o
Islamismo.
E, depois que o bebê de três meses que estão esperando
nascer, ele já prometeu levá-la para conhecer as outras duas mu-
lheres dele e os sete filhos que tem com ambas. Eles também irão
à Inglaterra, onde moram muitos dos seus irmãos e melhores
amigos, com quem tem negócios. Confessou-me, entusiasma-
díssima, que não vê e hora de conhecer a “Torre Welfel” e ver
aquela gente elegante, e de falar inglês de verdade, passeando so-
bre o rio Hudson. Cabiam aí pelo menos três notórias correções,
mas poupei-lhe, tamanha era sua ingenuidade.

66 L Lindy Lima
E, ao final, me lembrou: “Não te falei que não morreria
com sobrenome Santos da Silva?”.
Recentemente, enquanto fazia minha mudança, achei o te-
lefone de uma parenta dela e resolvi ligar para saber notícias. A
moça me disse, sem muitos rodeios, que estavam agora cuidando
do bebezinho, pois a irmã tinha ido se encontrar com o marido
na terra dele, mas alguma coisa tinha dado errado em uma co-
nexão na Espanha. Parece que passou muito mal do estômago, e
as autoridades não a deixaram embarcar. Por fim, a companhia
aérea trouxe o bebê de volta e o entregou à família, no Reci-
fe. Isso havia acontecido há uns seis meses, e do marido não
se tinha notícias há muito. Foi o que ressaltou a moça, de voz
desesperançosa.

No divã com a manicure L 67


Nothura maculosa

Uma das coisas com as quais o ser humano ainda não con-
segue lidar é com a traição. Todo mundo tem receio do beijo do
Judas. Ficamos à espreita, aguardando o beijo fatídico e, quando
o recebemos, o levamos conosco para o túmulo. Se for por parte
de colegas de trabalho ou amigos, ainda é passível de remendos.
Mas se a dita ocorre dentro do perímetro familiar, mais precisa-
mente entre quatro paredes, um ódio mortífero inebria as vísce-
ras, causando-nos os mais diversos males da alma.
Conheci uma senhora com quem tive contato por mais de
cinco anos, e a quem apelidamos de codorna –, por andar sempre
rápido e cabisbaixa, apressada, como se tivesse a escapar de um
feroz predador – no caso dela, a própria vida. Era, de fato, igual
a uma codorna.
Mas, como se julgava demasiadamente chique, nós a cha-
mávamos, também, pelo último nome científico da ave: Maculo-
sa, de Nothura maculosa, que lhe caía como uma luva.
A codorna, ou maculosa, tinha um coração como poucos,
mas era melindrada demais. Não conseguia perdoar a traição do
marido. Saltava-lhe aos olhos como uma doença, dilacerando as
vísceras. Foi preterida em favor da secretária, por um marido a
quem tinha dedicado 30 anos de sua triste vida. Isso sem men-
cionar o fato de a moça ter sido uma de suas poucas grandes
amigas. Pelo menos foi o que pensou, durante muito tempo.
A secretária era uma mulher muito feia e austera. Tinha,
inclusive, uma deficiência em uma das pernas. Até ajudou-a, por
muito tempo e com extrema eficiência, a cuidar das finanças do
patrão desorganizado, e das minúcias das filhas mimadas.
Esses ressentimentos amorosos a codorna costumava afo-
gar em comida ou em receitas de bolo. A cada dez assuntos, nove
eram sobre receitas ou indicação de como não engordar. Além
dessa forma de imputar a dor, falava mal das ações do então

68 L Lindy Lima
presidente do Brasil, e dos nordestinos em geral, mesmo saben-
do que eu era um deles. Olhando por esse prisma, o presidente
seria odiado por pelo menos três plausíveis critérios: homem,
político e nordestino.
Discorria muito bem sobre os costumes italianos de seus
ancestrais, de quem tinha muito orgulho de descender. Lembra-
va a infância mediana, em uma cidadela do interior do Paraná,
e as agruras de um pai político e mulherengo. Um dia, se con-
fessou temerosa de que os filhos de qualquer um do bem estão
sujeitos a se casarem com o “povo de lá”. Lá pra depois do norte
de Minas, eu supus. Nem questionei o “lá”. Abstive-me da loca-
lização do advérbio, para evitarmos um embate racista.
Naquele momento, ela sequer cogitou que eu portava uma
arma branca. Um afiado alicate de unha, e inúmeras pontiagu-
das espátulas. Mas, como me contive, impassível ao assunto, ela
emendou: “Chega um momento em que temos de deixar os nos-
sos filhos casarem-se com qualquer um”. E emendou: “Me res-
ponda: quem está livre de ter um filho casado com um povo de
lá? Mesmo nós, descendentes de italianos, não estamos imunes
a isso”.
Eu, resignadamente, concordei. Ela era a cliente; eu, a fun-
cionária. Embora minha vontade fosse de lhe lembrar um fato
que muitos esquecem, ou sequer sabem: a esmagadora maioria
dos pobres italianos que migraram para o Brasil nada mais era
do que escravos brancos. Com poucas exceções, foram ampa-
rados em terras tupiniquins com regalias que os escravos e ex-
-cativos não tiveram. Regalias em nossas terras de gente burra
e analfabeta, como pensavam – e pensam, ainda hoje – algumas
nações sobre nossa gente.
Lembro-me de que ela e uma cabeleireira japonesa, com
quem trabalhei por muito tempo, tinham os mesmos pensa-
mentos partidários sobre determinados assuntos de nossa gente.
Afirmações racistas, as quais não cabe aqui replicar. Eram ba-
seadas em reportagem torpes e conceitos ultrapassados, na base

No divã com a manicure L 69


do “achismo”. Nunca levavam em consideração as incumbências
de nossa sociedade, advindas dos problemas históricos de nossas
administrações passadas, e a formação de nosso caráter políti-
co pouco desenvolvimentista. Era um imperativo senso comum
pairando diante da possibilidade de abrir um jornal e averiguar
a respeito de políticas, ou recorrer ao nosso Darcy Ribeiro sobre
a formação do caráter nacional de um povo – que não teve outra
chance na vida a não ser, somente, ser brasileiro.
FHC era o maioral para as duas, e quando uma das dezenas
de coisas nas suas enfadonhas vidas não dava certo eu já o presu-
mia, pois já chegavam escrachando o pobre do então presidente.
Já fazia cerca de três anos que eu conhecia a codorna. Via-a qua-
se que semanalmente. Foi então que percebi uma leveza em seu
pensar a vida. Continuava a falar mal do presidente, mas com
parcimônia. Apresentava um sorriso mais excêntrico e, às vezes,
até discordava das filhas mimadas.
Achei que alguma coisa fluía melhor para aquela criatura.
Foi quando me confidenciou que estava saindo com um amigo.
Dizer que está saindo com um amigo, quando se está dando pra
ele, é coisa de quem tem medo de ser feliz. É que, caso não dê
certo, é só lembrar para si mesmo que eram apenas bons amigos.
Ora, se beijar na boca, fizer sexo, deixar as nossas pernas tremen-
do... se a resposta for sim para tudo isso, é no mínimo um caso.
Eu, sinceramente, quase caí de costas ao imaginar a codor-
na acasalando. Aflorando-se para a vida. Mas as codornas saem
da toca, quase sempre. Era um chuvoso dia de domingo, daque-
les que todo paulistano já conhece, e nos quais tem vontade de se
jogar da sacada. Ela saiu de casa, muito pouco animada.
Movida tão somente pela possibilidade de aplacar a fome
pagando pouco, foi até o clube, Palestra Itália, como fazia re-
gularmente, quando tinha preguiça de cozinhar, situação rara.
Como o clube se encontrava em estado de superlotação, por par-
te de terceira idade, um atendente sugeriu que ela dividisse a
mesa com outro cliente, assegurando-lhe que seria um cavalhei-
ro muito distinto.

70 L Lindy Lima
Como gostava muito de conversar, o papo fluiu com natu-
ralidade, e lá pro final da sobremesa já tinham trocado telefones
e ele já sabia todo o seu passado, nos mínimos detalhes. Não
poderia ser diferente: as pessoas infelizes têm mania de falar da
vida particular para qualquer um que se disponha a ouvi-las.Tal-
vez seja por isso que a vida se torna um fardo muito difícil de
carregar. É o peso das diversas opiniões. E, depois, se queixam,
ficam contrariadas porque todos dão pitacos em suas vidas.
O senhor era dez anos mais moço, porém muito românti-
co. Parecia até muito interessado na coitada retraída. Ela, como
sempre, veio me perguntar sobre o que fazer. Só que, desta vez,
não foi para me pedir opinião se deveria ou não permitir que as
filhas viajassem e ela ficasse em casa, ou nas casas delas, cuidando
dos netos. Desta vez pensava nela, única e exclusivamente nela.
A princípio, pensei estar ouvindo vozes do além, através do
corpo de outra pessoa. Mas, quando retomei os meus sentidos e
percebi que ali, diante de mim, havia uma mudança viva, quedei-
-me de consternação. Uma nova mulher. Uma mulher apaixona-
da. Um dia, convidou-me para conhecer o rapaz, e lá fomos nós,
a um restaurante por quilo próximo da Cotoxó, na Pompeia. Ele
era realmente um senhor muito bonito, mas não aparentava ser
tão mais jovem que a codorna. A vida também lhe fora um tanto
perversa, apesar de ele não dar muita atenção para o passado.
Fato este que a codorna nunca compreendia. Queria ele lembran-
do sempre do passado, refletindo sobre os erros, remoendo-se
com a ingratidão da família, ou coisas do gênero. Ele, no entanto,
queria e desejava o presente, e parece que agora o tinha.
O jeito rude e desleixado de se vestir indicava, de fato, um
homem muito maltratado pela vida, embora fosse aparente sua
nata falta de requinte. Tinha conseguido alguma ascensão finan-
ceira ao longo dos anos, mas naquele momento estava comple-
tamente decaído. Os filhos do primeiro casamento haviam lhe
arrancado tudo. Fato que o abalara bastante.
Era um cidadão rude na maneira de falar. Mas, no trato com
sua senhora, era puro cavalheirismo, e chegava a ser grosseiro

No divã com a manicure L 71


por estar demasiadamente feliz e querer extravasar isso a todo
momento. Os beijos e afagos em qualquer lugar e momento a
incomodavam. Percebia-se que, apesar do peso da vida, era feliz
por natureza. A família tinha saído pela outra porta, junto com
o dinheiro, e a solidão se fez presente até ele encontrar a mãe do
seu terceiro filho, esta teria lhe dado a cartada final.
Mas, como eu presumia, uma descendente de europeus ne-
cessitava de mais. Depois de algum tempo, o namoro foi esfrian-
do, pois ele não correspondia aos requisitos de refinamento e
elegância dela.
Ele vivia em um pequeno apartamento nos Campos Elíse-
os, no centro da cidade. Era o aluguel que conseguia pagar. Mas
não deixou que isso atrapalhasse sua vida. Continuava a vivê-la
com maestria. Praticá-la, como dizia. Embora isso incomodasse
muito a maculosa, pois a ave primava por um sujeito igual àquele
que a traiu. Que se vestisse igual, que fosse tão comedido quanto.
O que ela chamava de “comedido” entenda-se por dotado
de mau humor. Como certa vez uma de suas filhas me confi-
denciou, o pai era o homem mais mal-humorado do mudo. Ela
viveu à sombra daquele homem por mais de 30 anos, achando
que aquilo era o máximo de felicidade que alguém poderia ter na
vida: criar os filhos ao lado do marido.
Os arranca-rabos acreditava que eram provenientes dos
bons casamentos, e achava que faziam parte do aperitivo a
dois. Passou a vida toda sem trabalhar, só cuidando da casa e da
educação das filhas. Cuidou tanto que deixou uma depressiva, e
a outra sem autoestima alguma.
Ao contrário da vida de submissão imposta pelo ex, a co-
dorna agora era paparicada e mantinha a autoridade sobre o par-
ceiro. Ela escolhia suas roupas e o restaurante aonde iam, por
mais simples que fosse. Ele ligava várias vezes ao dia, para saber
como ela estava.
A codorna nunca havia sido mimada, de modo que estes
mimos a tiravam do sério. “Era um chato, pegajoso, jocoso e sem

72 L Lindy Lima
educação.” E, de fato, era. Era um cara que ousava atrapalhar as
sessões de cuidados com os netos malcriados para perguntar se
ela estava bem, ou se precisava de alguma coisa.
Por fim, chegou à conclusão de que eles eram muito di-
ferentes. A genética também não lhe foi favorável: embora sua
aparência fosse de um europeu nato, seus modos de falar e gesti-
cular faziam dele um nordestino por excelência, como por vezes
mencionou a infeliz, contrariedade.
Meses depois, perdeu o brilho no olhar, e recomeçou a falar
mal do presidente. Andava cada vez mais rápido, chorava por
tudo e, volta e meia, tornava a falar sobre a fatídica traição ma-
trimonial que havia levado a sucumbir parte da vontade de viver.
Todo o seu íntimo vinha à tona, lembrando como fora maltrata-
da por ele e toda a sua família italiana.
Lembrava-se do fatídico episódio que expôs a traição. Foi
no dia em que a mãe da secretária morreu, e ela foi acordada no
meio da madrugada pelo marido, informando-a de que precisa-
ria sair em auxílio à sua secretária. Como ela sofreu em vê-los
juntos no mesmo velório, e como desejou ser enterrada junto
com a defunta, a ter de suportar aquela humilhação. Não se deu
ao trabalho de conversar com o marido. Chamou os três filhos,
os prendeu no quarto junto com o pai, e o fez confessar que
estava tendo um caso extraconjugal. Daí por diante, a vida desta
família foi banhada de dissabores.
Ela pediu a separação. Ele saiu de casa, mas voltou em se-
guida, alegando que se aproximava o casamento da primeira fi-
lha e ele gostaria de estar em casa quando isso acontecesse. Ela
de pronto o aceitou. Mas esperava que ele se separasse da outra
e, com isso, colocariam um ponto final na história, o que não
ocorreu.
Ele continuou dando suas escapadinhas, e estava ainda mais
exigente com os afazeres domésticos e os cuidados com seus per-
tences. Ela, depois de mais de dois anos de sofrimento, pediu a
separação definitiva, mas ele não acreditava. Saía e voltava quan-
do bem queria, pois continuavam morando na mesma casa.

No divã com a manicure L 73


Até que, um dia, o velhaco debochou dela, ou ouvi-la entrar
em contato com uma imobiliária para vender a belíssima casa
onde viviam na Granja Julieta, região nobre da capital. Desta
vez ele finalmente sorriu para as paredes, pois a codorna havia
tomado a decisão mais ousada de sua sonsa existência.
Ela acabava de fechar negócio com o corretor, o qual lhe
deu suporte para adquirir outro apartamento, nas Perdizes. Era
um apartamentinho simples, se comparado com a majestosa casa
onde viveu grande parte da sua vida ao lado do marido. E pensa-
va que tinha tudo de que precisava, até o fim da sua inexpressiva
vida. Tinha os netos e as filhas – problema, que moravam perto,
e muita ladeira para subir e descer a cada dez metros, quando
precisasse sair de casa.
Depois que o relacionamento com o pegajoso findou-se,
ela resolveu mudar de casa. Parece que todos os seus problemas
eram por conta do apartamento de 80 metros quadrados, que
tornara-se muito grande de repente. Não suportava mais limpar
tudo aquilo. Bramia que precisaria de mais tempo para si; queria
viajar, curtir as baladas com as senhoras de sua idade, desejava ir
mais vezes ao clube. Enfim, os afazeres do apartamento estavam
privando-lhe de liberdade.
Começou a pesquisar preços de apartamentos, até que con-
seguiu um mais para o centro de São Paulo, próximo de uma
estação de metrô. Regalia que iria lhe melhorar a vida, pois não
gostava de dirigir. Depois de uma reforma de quase três meses,
ela acabou mudando-se para o novo apê. À primeira vista, estava
muito feliz. Mas, na segunda vez que veio ao salão, estava toda
borocoxô, pois, com tantas ruas em São Paulo, ela fez questão
de comprar uma casa nas proximidades de onde o ex-marido
tinha fincando residência desde que se separaram. E, como o
ex-marido nunca havia deixado de ser um bon vivant, antes do
trabalho ele gostava de caminhar na companhia da antiga secre-
tária, agora sua esposa, embora ele nunca assumisse o fato.
Esse episódio a deixou consternada, pois o tinha visto atra-
vessar a rua de mãos dadas com ela, e, mesmo a encontrando de

74 L Lindy Lima
frente, jamais deixou de segurar a mão da mulher, fato que ca-
racterizou, segunda ela, profundo desrespeito por aquela que era
a mãe dos filhos deles e, ainda por cima, havia lavado suas cuecas
por mais de 30 aos. Fez questão de relembrar isso.
Depois disso, vieram outras reclamações: os jovens vizinhos
faziam muito barulho na hora do sexo. O metrô estava sem-
pre lotado de nordestinos. Os gatos dos vizinhos faziam xixi no
corredor. E os porteiros falavam errado. Um deles tinha até os
trejeitos do então presidente da República. E assim por diante.
Nesta última sessão, também percebi que o cabelo perdera
o brilho. Ela andava cada vez mais rápido e de cabeça baixa. Os
olhos de peixe estavam mais protuberantes e parcialmente ma-
rejados. Não havia mais nada daquela criatura que lembrasse a
mulher que, há poucos meses, tinha renovado o guarda-roupas,
feito plástica na barriga e diminuído os fartos seios, com os quais
a lei da gravidade não havia sido indulgente. Tinha viajado à
Itália, visto seus antigos familiares, trazido lembrancinhas para
todos, inclusive para mim.
Não se interessava mais por cinema, nem queria mais sair
para dançar. Estava novamente focada nas doenças imaginárias
da filha mimada e do neto malcriado. E continuava a falar hor-
rores do presidente. Da última vez que liguei para saber quando
teria alta do hospital, ela lamentou que o ex-marido tinha aca-
bado de voltar de lua de mel, e temia que a então ministra de
Minas e Energia fosse a sucessora para a Presidência.

No divã com a manicure L 75


O criador e as criaturas

Dizem que o mal do século é a depressão. O mal da alma.


Para mim, é a busca incessante da felicidade, adquirida através
de outra pessoa. O mundo corre atrás da felicidade, e essa se
esconde cada vez mais. Ouso dizer – obviamente, sem qualquer
respaldo científico, apenas por minha experiência empírica com
mulheres, que me permitiu ter um vasto conhecimento de causa
– que somos os seres mais instáveis do planeta e sentimo-nos
cada vez mais culpados por não sermos completamente felizes.
Principalmente quando não somos bem casados.
Não importa o nível social ou a formação familiar. A maio-
ria daquelas mulheres com quem convivi demonstrava a mesma
desconfiança pelos homens, o mesmo amargor pela vida. Tudo
que lhes acontecia de mau, atribuíam ao ex. Lembro-me de uma
delas, que não tivera uma vida muito fácil. Foi casada, durante
algum tempo, com o homem publicitário com quem teve lindos
filhos. Duas meninas e um menino.
Umas das mais difíceis com que já tive o desprazer de lidar.
Passou muito tempo achando que, assim como o ex-marido, o
mundo se virava contra ela. Revestia-se de uma terrível arma-
dura contra tudo. Confiança é uma palavra que fora abolida do
seu vocabulário, há muito. Quando vinha ao salão, tínhamos de
trancar sua bolsa na gaveta, e ela segurava a chave. O portão ti-
nha de ficar no cadeado e, se alguém risse, pensava que era dela.
Os esmaltes estavam sempre velhos, pois nunca fixavam em
suas unhas mais de um dia. Observação: um traço das mulheres
infelizes é a mania de limpeza. Tive um namorado que dizia:
“Quando a casa brilha, a mulher perde o brilho”. Me parece que,
neste caso, ele tinha razão. Observação: unha e detergentes, pa-
lha de aço e esfregação são incompatíveis.
No mês seguinte, aparecia reclamando da unha. Que estava
amarela, e suspeitava que fosse micose. Reclamava de tudo e,

76 L Lindy Lima
principalmente, da unha da pessoa do lado, que era sempre mais
bonita que a dela. Tudo coisa da cabeça. Era uma pessoa muito
culta. Conhecia de política, sociologia, filosofia e história. Em-
bora deixasse que o senso comum da televisão lhe deteriorasse os
sentidos. Carregava um preconceito que só vi em pouquíssimas
pessoas.
Nunca viajou pelo Brasil porque, segundo ela, onde quer
que fosse tinha “mulatos nordestinos”, e não confiava nesse povo.
Um dia, soltou a seguinte pérola: “A nossa desgraça foi a escravi-
dão”. Sim, também acho. Mas nossas opiniões não foram conver-
gentes além daí. E prosseguiu: “Somos uma sociedade violenta,
pois o negro é originalmente violento”. “Basta olhar os morros
do Rio de Janeiro. Vemos como se mata e se morre naquele lu-
gar”. Enquanto ela “subia o morro”, eu tive vontade de descer das
tamancas, como se diz. Não o fiz, primeiro porque o cliente tem
sempre razão, embora não seja necessário concordar – mas calar
já ajuda bastante. E também porque a cabeleireira dona do salão
já me olhava com cara de incredulidade. Ela não só era negra
como nordestina. Mas, nesse caso, a cliente esqueceu-se disso.
Isso porque ela era empresária, e as pessoas reconhecem a nossa
cor pelo dinheiro que temos. Um preto com dinheiro pode ser
razoavelmente branco.
Certa vez eu conversava com uma moça, em Salvador. Di-
vidíamos um táxi. Ela morava em São Paulo e os pais em um
condomínio, num bairro do qual não me recordo o nome, mas
sei que era nobre. Falamos sobre várias coisas, e chegamos ao
preconceito. Foi quando ela soltou: “Aqui neste bairro há uma
visível separação entre negros e brancos. Não há negros. Eles
moram do outro lado. Nós, do lado de cá”. Ou seja, no condomí-
nio. Mas o que me chamou a atenção é que ela era muito negra.
Mas, como tinha conseguido uma ascensão social, se conside-
rava branca. Pensei comigo: “Território perigoso. Calar-me-ei”.
Despedimos-no sem muitos rapapés, e jamais me esqueci dessa
fala. Mas, não raro, vemos pessoas que pensam assim. E era este
o sentimento dela para com minha patroa.

No divã com a manicure L 77


Falava muito mal dos nordestinos – entre outras coisas, que
éramos feios. Até concordo. Não somos, necessariamente, um
povo Massai. Somos um pouco mais claros, mais baixos, menos
alegres, menos evoluídos. Não podia discordar em tudo sobre
aquela criatura. Pois, se até a Hitler cabe defesa! De mim ela
gostava. Um dia, disse-me que, se eu não quisesse dizer, ninguém
desconfiaria de que sou baiana. Parecia-me muito mais com ca-
tarinense, paranaense e mineira do que com baiana, propria-
mente dita. Minha irmã, do meu lado, “pegou vento”. Eu rezava
quando ela vinha, pois nunca sabia até quando íamos suportar
suas pérolas. Mas, graças a Deus, não há mal que dure para sem-
pre. Seu ex-marido felizmente morreu, ao cabo de dois anos de
tortura para nós.
E, com todo o respeito que tenho pelo meu povo do Sul,
“bah”, e os mineirinhos, “uai”, mas não há nada como ser baiano.
Como traduzir o sentimento de ser conterrâneo de Gil e sua ma-
lemolência? De Caetano, e sua indecisão ao falar? De Bethânia,
com seus cabelos desgrenhados, e de Gal e sua voz estridente?
Ser baiano tem lá seus encantos. E, acreditem: se tivesse que
escolher onde nascer, nasceria nordestina de novo. Fugiria da
seca de novo, trabalharia no sisal de novo, subiria os elevadores
de sérvio em São Paulo de novo. Só não sei se suportaria mais
tanto desconhecimento sobre nossa região. O Nordeste não é
uma massa homogênea, como muitos pensam ser. Somos um
caleidoscópio cultural. Mas deixemos o tratado social de lado, e
foquemos no assunto em pauta: Dona mal-amada.
Um dia, sua filha caçula chegou chorando. Vinha da missa
de sétimo dia do pai. Foi então que nos contou toda a saga fami-
liar. Daí compreendemos por que era tão difícil agradar aquela
mulher. Trabalhou toda a sua mórbida existência, até ali, como
bibliotecária, em uma tradicional faculdade da capital – o que
lhe possibilitou garantir o estudo dos três filhos, por meio de
bolsas na própria instituição. Esforçou-se muito para dar uma
educação esmerada para eles, enquanto o marido passava a maior

78 L Lindy Lima
parte do tempo desempregado e em busca do emprego dos so-
nhos, digno de seu incomparável talento.
O cara nunca estava satisfeito com nada, e sempre achava
que os trabalhos ou a posição ocupada estavam aquém de suas
capacidades. Então, começou a sonhar com o negócio próprio.
Queria ser o seu próprio patrão, e investiu, além de todas as ex-
pectativas, a poupança da mulher nesse ideal. Por mais que ela
reclamasse da sobrecarga familiar, ele sempre argumentava que
ela era sem esperanças, tinha hábitos de pobre e, por isso, atrapa-
lhava o desempenho financeiro da família. E, além do mais, ele
não deveria submeter-se a certos tipos de ocupação, pois perde-
ria credibilidade junto aos amigos do clube e afins. Amigos esses
que, depois de verem o resultado dos seus investimentos, obvia-
mente iriam lhe ajudar, incluindo-o em melhores rodas.
Fazer parte de um rol de amizades que estava muito além
de suas possibilidades era motivo de desavenças constantes entre
os dois. Já que, para isso acontecer, ela precisava economizar nas
despesas domésticas e ajudá-lo a pagar a mensalidade do clube,
bem como a compra de roupas e sapatos finos. Inclusive, os pró-
prios filhos, em Dia dos Pais, teriam de presentear-lhe com mi-
mos que custariam mais do que os salários de todo o mês. Caso
contrário, mostrava-se ofendido.
Finalmente ele conseguiu, através de um empréstimo e de
algum dinheiro guardado da esposa, montar seu primeiro negó-
cio. Um quiosque de café em um grande shopping da capital. A
família não pôde trabalhar, para não dar a impressão de uma em-
presinha familiar. Ele desejava, em breve, constituir uma extensa
rede de cafés. Mesmo assim, o negócio começou a prosperar. Em
dois anos, ele tinha montado mais três lojas e todas estavam fa-
turando razoavelmente bem.
Já no terceiro para o quarto ano, ele comprou um belíssimo
apartamento nos Jardins e, finalmente, saíram do aluguel. Mas as
prestações continuavam sendo pagas pela mulher e os dois pri-
meiros filhos, que a essa altura já faziam faculdade e conseguiam

No divã com a manicure L 79


trabalhar por meio período. Ele continuava cuidando dos ne-
gócios, agora não tão de perto. Não era de bom tom que um
empresário bem-sucedido viesse todos os dias à empresa contar
dinheiro, e contratou uma experiente profissional do ramo.
Uma mulher conhecida no meio como uma das principais
degustadoras de café de São Paulo. Segundo ele, isso ia ser bom
para chamar clientela e, quem sabe, aparecer nas colunas sociais.
O salário da nova diretora era tão alto que precisou tomar di-
nheiro no banco para pagar os dois primeiros recebimentos da
funcionária.
Do terceiro em diante, ela preferiu ganhar como comissio-
nada. Ele teve que aumentar bruscamente o preço dos alimentos
para sobrar algum dinheiro no final do mês. Já não sobrava mais
quanto antes. Então a moça o convenceu a ser sua sócia, e abri-
rem mais três lojas.
Ele entrava com o dinheiro e ela com a força da experiên-
cia, e o apresentou a um gerente de banco que poderia solu-
cionar todos os problemas. Os empréstimos começaram a ser
cada vez mais frequentes. Certa vez, o gerente recusou-lhe um
empréstimo, alegando que os negócios que ele possuía já não
eram suficientes para cobrir as contas. Então teve de hipotecar
o apartamento.
Quando a mulher soube dessa parte, pegou os três filhos,
agora adultos, e saiu de casa. Cerca de um ano após, o dono do
flat pediu que ele desocupasse o apartamento, por falta de paga-
mento, e ele foi morar na edícula da gerente que, a esta altura,
já tinha contratado outra pessoa para fazer o trabalho dela, e
ganhava em cima dos dois.
Ela também ofereceu-lhe empréstimos financeiros. Dois
anos depois, os filhos receberam um telefonema de uma delegacia
e, acompanhados por um advogado, foram ao local, achando que
estavam sendo confundidos com outras pessoas. Pagaram fiança e
soltaram o pai. A alegação era de furto em supermercado dos Jar-
dins. Desde então, nunca mais tiveram contato com ele, a não ser

80 L Lindy Lima
com o autorretrato na parede do quarto de um dos filhos, onde
aparecia ornamentado por carros de luxo e de terno bem cortado.
No casamento do filho mais velho, uma figura esquelética
e envergonhada, em mangas de camisa, apresentou-se no altar
como pai do noivo. Um convidado ofereceu um terno, e tudo
acabou numa bebedeira só – ele contando aos convivas sobre suas
últimas aventuras pela Europa.  Alguns chegaram até a acreditar
nas peripécias, mas um convidado jurava que o tinha visto catan-
do papel em uma movimentada avenida de Higienópolis.
Num dia de sexta chuvoso, após vender seu papelão, próxi-
mo à Avenida São João, e tomar seu porre costumeiro, ele passou
mal. Mas, como já estava tarde, o dono do bar o chutou para a
calçada e fechou o estabelecimento. Outros moradores de rua
tentaram levá-lo para suas acomodações, embaixo do Minhocão,
mas ele já se encontrava teso. Acionaram as autoridades respon-
sáveis. No bolso de um Armani puído, repousava um passaporte,
com vários carimbos e, no interior, um número de telefone. À
meia-noite, sua filha caçula atendera ao telefonema sobre a finda
vida daquele que, um dia, sonhara ter o mundo aos seus pés.
Meses depois, a filha adentrou o salão, muito triste. Disse-
-nos que fora falar com alguns amigos de rua do pai, a fim de sa-
ber mais detalhes sobre sua morte, e ficou surpresa. O pai nunca
havia falado que tinha filhos no Brasil. Um deles foi mais longe.
Afirmou que o velho dizia ter familiares apenas na Europa. Ex-
ceto mulher – esta havia morrido há muitos anos. E lá viviam
em suntuosos castelos, e não gostavam do Brasil, e que, por ter
se cansado de uma vida supérflua, deixou o Velho Continente
sem eles.
Sendo assim, antes de vir ao Brasil, passou uma longa tem-
porada na Índia, visitando templos e gurus. Foi um desses que
lhe sugeriu abdicar de todos os bens materiais, para o cresci-
mento da alma. Por isso, vivia daquele jeito. Por livre e espontâ-
nea vontade. Inclusive o dinheiro arrecadado, com a venda dos
materiais catados, ele dividia com todos ali. Só a dormida é que
ninguém sabia onde ficava.

No divã com a manicure L 81


Um deles chegou até a afirmar que, depois de ter conhecido
aquele velho gente fina, teria aceitado a sua real condição de
vida, já que o outro era milionário e o dinheiro nunca havia lhe
feito feliz. E que, na rua, ele dizia que realmente teria encontrado
a verdadeira felicidade.
Outro também disse que ele era líder nato, e que todos por
ali o respeitavam. Só quando bebia é que perdia a noção. No
mais, todos seguiam suas ordens. Ele era conhecido como Conde.
E o Conde lhes falava de história do mundo, das coisas da vida,
e os ensinava a falarem outras línguas. Por isso era tão respeita-
do no pedaço. Outro afirmou que o Conde morreu como herói.
Mas não queria saber dos filhos, porque estes eram muito liga-
dos em dinheiro e esqueceram a vida espiritual.
Mas, logo depois da morte do ex-marido, a senhora que
vivia reclamando da vida já apresentava mudanças significativa
na maneira de vê-la. Nunca mais se referiu ao falecido da forma
como dizia, quando ele ainda vivia. Por fim, o havia enterrado.
Nunca mais tocou no assunto. Parecia que tinha sido finalmente
vingada pelas  situações que lhe fizera passar. As traições amoro-
sas e os perrengues financeiros.
No primeiro ano, fez uma cirurgia de redução de seios. Dei-
xou de andar curvada, como quem esconde um peso. Ela já era
aposentada há mais de dois anos e, mesmo assim, continuava
trabalhando como secretária na mesma instituição onde formara
os filhos. Neste meio tempo, a instituição fez uma reestruturação
e a demitiu. Com o dinheiro de mais de 25 anos de trabalho,
comprou um novo apartamento, na Freguesia do Ó.
O local não era tão glamoroso como o ex-marido gostaria,
mas agora ela mandava. Mesmo não morando mais juntos, não
tinha coragem de tomar certas decisões, por medo das críticas.
Mas agora ele era finado. Poderia morar até numa favela, como
lhe fosse aprazível. A filha mais velha se casou, restando com ela
apenas a mais nova. As duas moravam agora sozinhas, no apar-
tamento espaçoso e cheio de plantas.

82 L Lindy Lima
Como a mãe gostava muito de ler, a filha lhe deu de presen-
te uma biblioteca em um dos quantos vagos. Nas prateleiras, era
possível perceber leituras leves como Sidney Sheldon, Agatha
Christie, Tom Clancy e Rosamunde Pilcher, além da última sen-
sação: Marian Keyes. Inclusive chegou a emprestar-me algumas
obras desta última, embora eu não tenha conseguido lê-las. Mas
o quadro muito bem pintado, com traços de grafite em cinza,
representando a família, com a seguinte descrição: O criador e as
criaturas, em nada ornava com aquela sala clara e sem mobília
– a não ser por uma cadeira branca e laranja. Não me contive,
e perguntei de quem era. “Não o joguei fora porque é a única
herança que o pai dos meus filhos deixou pra eles”, respondeu-
-me solenemente. “Como não posso reparti-lo em três, ficará
comigo”, salientou.
Agora, em vez de preconceito, trazia para mim livros com
narrativas suaves. Saía pra almoçar ou jantar com algumas vizi-
nhas do prédio. Um indício de que voltara a acreditar em amiza-
des. Como ela mesma proferia antes: “Ter amigos é engolir sapo.
Não estou disposta”. Mas, se dispôs. Iam a restaurantes japoneses.
Depois de 50 anos, começou a dirigir, e comprou seu primeiro
carro, um Fiat Uno quadrado. Às vezes, quando a sua filha caçu-
la estava viajando, ela me convidava para lhe fazer companhia e
dormir lá. O meu espanto não poderia ser maior. Nunca aceitei,
não como represália, mas porque abomino dormir fora de casa,
por mais que tivesse lá uma recheada biblioteca ao meu dispor.
Mas foi um “tratado de psicologia” perceber a mudança da-
quela figura, depois de vingada. Como dizem as escrituras sa-
gradas, a soma do pecado é a morte. A soma da felicidade é uma
viuvez desejada. Até as profundas linhas de expressão bateram
em retirada. Certa vez, dei-lhe de presente um livro de que gosto
muito, e penso que toda mulher liberada e emancipada deva ler.
É bobageira, mas edificante para o ego. Solstícios de Inverno, da
própria Rosamunde Pilcher.
Este livro a inspirou bastante. Bom pra mim. Ganhei, além
de uma excelente amiga, para falarmos de política, uma pessoa

No divã com a manicure L 83


encantadora, que gostava de plantas e flores. Fez um curso de
paisagismo por causa da personagem principal do livro, que cul-
tiva sebes em algum lugar da Escócia ou Inglaterra – nem me
recordo mais. O fato é que o curso prosperou e deu frutos – quer
dizer, muitas flores. Fez um belíssimo jardim de inverno em sua
lavanderia. E as vizinhas gostaram da novidade. Já tinha Orkut
na época, e fotos foram postadas e vistas por muita gente. As
encomendas chegaram aos montes. Depois dos jardins de inver-
no, vieram outras propostas e, por fim, começou a trabalhar com
uma decoradora para apartamentos em exposição.
Um desses empreendimentos ficava próximo de sua casa.
Ela era responsável pelo projeto de paisagismo interno. Passou
muito tempo indo lá, e voltando. Numa dessas vezes, seu carro,
que não era lá tão novo, deu problema, e um cavalheiro, senhor
de pouco mais de 60 anos, lhe ofereceu carona. Não teve melhor
alternativa senão aceitar. Como o cavalheiro era um dos encarre-
gados pela venda daquele empreendimento, não era raro que se
encontrassem várias vezes ao dia.
Além da carona daquele dia, e das que ocorreram nas duas
semanas seguintes, vieram também os jantares, algumas idas à
praia e, por fim, um anel de compromisso. Numa das últimas
vezes em que nos falamos, eu já não era tão feliz, já trabalhava
agora em empresa. Em compensação, ela transpirava felicidade,
embora estivesse em um dilema muito difícil de solucionar. O
namorado queria oficializar a relação, e passar a lua de mel na
Espanha – assim aproveitaria para visitar alguns velhos parentes.
Mas o filho não aceitou, pois os gêmeos iam nascer no pró-
ximo mês – mas era capaz que antecipassem o parto. Ela, porém,
achava melhor ir para o Nordeste. O que eu achava, ela indagou.
Como eu sou uma pessoa que espera qualquer coisa do ser hu-
mano, tanto de bom quanto de mau, não caí pra trás, mas estive a
ponto. Sugeri, então, que fosse a Natal. Meses depois me enviou,
por e-mail, fotografias dos gêmeos, da praia de Ponta Negra, das
dunas de Genipabu, da praia da Pipa e até da camela Tereza,
com quem fez grande amizade.

84 L Lindy Lima
O crime da juíza

Existem vários métodos de terapia com a manicure, alguns


não tão gratificantes. Tem a paciente que deseja ser amada, ao se
dar uma unha de presente a cada semana. Por isso, tenta fazer
daquele momento o melhor de sua vida. Age como se estivesse
em um importante spa. Agradecida e feliz da vida, prefere ser a
última, para demorar bastante. Outras não aceitam sequer um
bom dia da profissional. Isso ela já teve que engolir do chefe,
pela manhã.
Não permite ser interrompida nem pelo barulho do seca-
dor, muito menos por conversa fiada de subalternos. Humilha a
manicure, como se estivesse descontando toda a sua frustração
da semana. De frente com a manicure, ela é a chefe, a diretora.
Ela manda! Outras parecem estar culpadas por ter uma pessoa
exercendo atividade que, na própria consciência, elas acreditam
ser menor. Têm pena da profissional. Acham uma profissão in-
digna, em que se ganha pouco. Enfim, somos verdadeiros dalits.
Poderia citar vários tipos de personalidades a cargo de uma tera-
pia. Inclusive a dessa juíza.
A Juíza, como era conhecida no salão, era uma figura em-
blemática. Uma beleza regada à cafonice e de amargura pela vida.
Brigava por tudo, não se dirigia a ninguém, apenas lia as revistas
de fofoca, o que a deixava parecer com uma frequentadora de
salões. Descobrimos, com o tempo, que ela gostava muito dessas
revistas e, quando ela chegava, tratávamos de deixar próximo o
maior número possível de exemplares. Isso viabilizava o nosso
trabalho, e a tornava menos rabugenta. Meses depois, ela come-
çou a fazer comentários sobre a vida das celebridades e, depois,
confessou seu desejo secreto de ter sido artista.
Seu fascínio pelo mundo artístico era tal que mantinha uma
assinatura de TV a cabo sobre a vida das celebridades estrangei-
ras – sem contar as nacionais. O Big Brother era um dos seus

No divã com a manicure L 85


programas favoritos já nas primeiras edições. Era incrível o co-
nhecimento dela sobre o mundo artístico, tanto nacional quanto
internacional. Sabia de todos os filmes, todas as novelas, quem
era casado ou separado de quem, qual peça estavam fazendo,
enfim, tudo. Sua especialidade eram os seriados estrangeiros.
Pouco tempo depois, estava amiga de infância de minha irmã,
que trabalhava comigo. Ambas eram dadas aos acontecimentos
artísticos.
As duas se adoravam, e andavam trocando figurinhas sobre
as celebridades. Foi aí que ela nos falou que, pouco antes de ficar
grávida e se casar, por determinação da mãe, teria iniciado um
curso de teatro. No momento em que faria sua primeira peça
profissional, teve de subir ao altar.
Ela tinha nascido em uma família humilde, na Freguesia
do Ó, zona norte de São Paulo, mas sua mãe sempre teve gran-
des aspirações sociais. Criou as três filhas como se fossem prin-
cesas, nunca se importando com as dificuldades que passavam
para manter o nível da casa. Principalmente depois que o pai as
deixou, sem ao menos deixar-lhes endereço. Segundo o que ela
se lembrava da relação, o pai e a mãe tinham opiniões díspares
sobre todo e qualquer assunto. Inclusive sobre a educação das
três meninas, pelas quais a mãe, mais tarde, teve de batalhar so-
zinha para criar.
Às vezes, fazia faxina em um bairro mais rico da cidade,
para pagar a diária de uma faxineira no bairro onde moravam,
apenas para mostrar aos vizinhos e às filhas que elas não precisa-
vam fazer nada dentro de casa, pois tinham nascido para serem
servidas e nunca o contrário. E foi com medo da pobreza que ela
jamais cogitou outra profissão que não fosse segura, com diplo-
ma e emprego garantido, como ser juíza, por exemplo.
De faxineira a gerente de loja, ela conseguiu pagar cursinho
para as filhas. A mais velha – nossa Juíza – passou no vestibular,
em uma grande e tradicional universidade. Logo conseguiu está-
gio no campus onde estudava, até sair com o diploma de bacharel

86 L Lindy Lima
em Direito, aos 23 anos. A mãe não deixou que ela parasse por
aí: “Ser advogado neste país de merda não quer dizer nada. Bom
é ser juiz, porque você é a máxima autoridade no seu ambiente
de trabalho”, conclamava a matriarca.
E a menina tomou estas palavras como verdade absoluta, e
assim o fez. Se pôs a estudar dia e noite, se esquivou dos poucos
amigos, e se enclausurou até sangrar diariamente pelas narinas,
de tanto nervoso. Aos 27 anos, ela era juíza do trabalho, e come-
çou a trabalhar no famoso prédio do Lalau, na Barra Funda, o
edifício conhecido que levou o juiz Nicolau dos Santos Neto e
outro montante de políticos para a prisão, graças ao escândalo de
superfaturamento da construção, no final dos anos 1990.
Mas o fato é que quando ela chegou lá, era tudo comple-
tamente diferente do que sua mãe havia lhe sentenciado a vida
inteira. Foi chocante descobrir que não há quem não seja subor-
dinado. E ela era apenas uma juíza substituta. Era escrava do seu
próprio status. Vivia desesperada, por medo de errar suas sen-
tenças. Trabalhava oito horas por dia, sem tempo para respeitar.
Era um lugar hostil. Sempre que tinha festas com os grandes,
no final do ano, ela passava mal. Odiava o mundo dos juízes e a
maneira como se comportavam diante dos demais mortais, o que
ela chamava de “juizite”.
Juizite era, mais ou menos, achar que se podia tudo, que se
mandava em tudo. Mas quando cada um colocava sua cabeça
no travesseiro, via que eram os mais frágeis seres do universo,
podiam menos do que qualquer um, e seriam sentenciados por
muito menos do que os outros. Ela nunca perdoara a mãe pela
glamorização da profissão que a tornara escrava. O palco do Su-
premo Tribunal do Trabalho era muito diferente daquele que
imaginou, com aplausos e demonstrações de afeto.
Lembro-me de que, quando entrei na faculdade, ela me
abraçou com lágrimas nos olhos, desejou-me felicidade e dis-
se ter muita inveja de mim, naquele momento, pois eu poderia
ser uma jornalista e cobrir a vida das celebridades. “Acho que se

No divã com a manicure L 87


tivesse a oportunidade de ser jornalista, para cobrir celebridades,
seria muito feliz. Eu me sentiria realizada”, completou.
Na época, éramos grandes confidentes. Como manicure,
pude descobrir a diferença entre amiga e confidente. A confi-
dente, quanto menos for sua amiga, melhor. Pode ser que um
dia vocês nunca mais se encontrem, que não tenham amigos em
comum. Por isso,  quanto maior for seu distanciamento social,
melhor, já que assim os segredos tendem a morrer, a menos que
a manicure vire escritora. O que eu nunca ouvi dizer que tenha
acontecido.
Do contrário, como amigas, correm o risco de permanecer
muito tempo juntas. Estreitam os laços familiares, fazem amigos
em comum, uma invejinha aqui, outra dorzinha de cotovelo ali,
e, em uma dessas desventuras, acabam brigando. E, como se sabe,
língua de mulher é solta, e acabam dando com a danada nos den-
tes. O que raramente ocorre, com a confidente manicure.
Como eu era sua confidente, ela um dia apareceu muito
consternada e disse que teria ouvido um absurdo, para o qual
preferia, em última instância, ser surda. Estava realmente atônita
com o ocorrido. Então, ela começou a me falar sobre o que acon-
teceu. Tratava-se de um mal-entendido entre ela e a faxineira.
A faxineira estava com ela havia muito tempo e, como os
empregados domésticos, em sua grande maioria, são o bode
expiatório de muitas madames, fazem de seu esporte favorito
difamar as coitadas. Elas estão sempre enfurecidas com sua cria-
dagem, mas também não sabem viver sem elas, a ponto de não
conseguirem fazer nada na ausência desses seres odiados. Prin-
cipalmente quando querem mostrar poder. E o poder para uma
classe em ascensão é ter empregados. E, para que saibam que
estamos em ascensão social, vamos malhar a criadagem. Descar-
regamos nossos dissabores e, de quebra, sabem que somos classe
média, pois temos empregados domésticos como a latitude que
se preza. Embora, incrivelmente, ela não fosse uma dessas. Achei
que fosse apenas sua primeira investida contra a doméstica que

88 L Lindy Lima
cuidava de sua casa e do filho de dois anos. Mas, aí, foi quando
ela começou a olhar de um lado para o outro, para ver se nin-
guém nos escutava, quando percebi que se tratava, realmente, de
algo abrasador.
Dessa serviçal ela jamais havia falado absolutamente nada.
Eu sabia que trabalhava com ela havia muito tempo, pois eu
mesma sempre a via esmerando-se na limpeza da sacada, to-
dos os dias, ou mimando o filho dela, de dois anos, no carrinho,
quando ia levá-lo ou buscá-lo na escola. Ela uma mulher morena
e forte. Com ar austero, traços másculos e cara de poucos amigos.
Dava sempre a impressão de que estava pronta para a batalha.
Cabelo amarrado em rabo de cavalo e bermuda justa, deixando o
seu corpo, bem definido, à mostra. E tênis baixo.
Então, nesse dia, a empregada chegou um pouco descon-
fiada e apreensiva, dizendo que precisava falar algo de muito
importante com ela. Porém, não poderia ser naquele momento,
porque o filho dela estava junto, e preferia também que fosse
quando o marido não estivesse.
A Juíza foi para o trabalho imaginando mil coisas. Um pe-
dido abusivo de aumento salarial, uma demissão instantânea, ou
alguma ação na justiça, contra ela. Não suportando mais a ansie-
dade, pediu licença, a primeira em mais de dois anos, e foi para
casa. A empregada, então, começou sua sentença. Confessou,
sem rodeios, que era lésbica e que tinha um desejo insaciável de
transar com a patroa, pois há muito sentia um tesão incontrolá-
vel por ela.
Motivo pelo qual trabalhava tanto tempo por uma remu-
neração tão insignificante, emendou. Confessou, também, que
nunca havia sido faxineira antes: era professora de ginástica, mas,
depois que tinha conhecido a patroa em uma academia, havia
se apaixonado por ela. Por isso veio trabalhar, com referências
falsas, na tentativa de uma aproximação. A moça morava no
mesmo bairro e, como já a conhecia de vista, arquitetou o plano

No divã com a manicure L 89


minuciosamente. Depois de contar todo o episódio, ela me per-
guntou o que eu achava.
Eu falei que o fato de a senhora ser lésbica não influenciava
em nada. Mas contava o fato de ela sentir esta paixão, e as pai-
xões são sempre muito perigosas, salientei. Por isso, deveria ser
levado em consideração que, em nome dessa paixão, ela havia
mentido e forjado falsas referências, para conseguir ficar perto
dela. Isso denotava mau-caratismo.
Nunca imaginou que aquela senhora, com mais de 40 anos,
casada, com dois filhos já na faculdade, pudesse ser tão perver-
tida. Porém, quando o desfecho se revelou, começou a juntar as
peças do quebra-cabeças. Ela sempre faxinava o banheiro na
hora em que ela saía do banho, e estava por colocar as roupas.
Estava sempre por perto, ajudando no que precisasse. Além dis-
so, ela estava sempre mal-humorada quando o marido da Juíza
estava em casa. Parecia-lhe que a presença dele minimizaria suas
chances.
Nesse dia, ela foi embora bastante confusa. Eu já dava por
certa uma demissão instantânea. Mas, para minha surpresa, na
outra semana ela veio me explicando que não a tinha despedido,
pois, apesar de ela ter mentido, e tê-la feito aquela proposta ab-
surda, já tinha dado várias provas de seu comprometimento com
o trabalho, e de que era uma pessoa realmente confiável. Sem
ela, estaria completamente perdida, pois o marido só pensava em
trabalhar e não lhe ajudava em absolutamente nada.
Até aí, achei que fosse aquela velha insegurança da classe
média, que se acostumara tanto à criadagem que, quando ficam
sós, sentem-se desamparadas. Por isso muitos vivem à mercê de
péssimos empregados –, porque não se acham capazes de cuidar
dos próprios filhos e maridos sozinhas.
Além do mais, confessou que sempre admirou a destreza
com que ela executava as tarefas de casa, além de ser muito inte-
ligente e sagaz. Entendi isso como um elogio de quem deseja a
pessoa por perto, mais do que nunca. Tanto que não manifestou

90 L Lindy Lima
vontade alguma nem disposição de despedir a moça. E, de que-
bra, não dividiu esses contratempos com o marido, temendo que
ele, de imediato, despedisse a mulher.
O marido dela era um cara bacana, muito atualizado nas
coisas do mercado econômico. Era 15 anos mais velho, de uma
tradicional família nordestina. Tinha estudado economia e era
pós-graduado numa das melhores instituições americanas. Tra-
balhava para uma multinacional. Era para terem uma vida mais
confortável, mas tudo o que o marido ganhava, guardavam, espe-
rando por tempos piores. Por isso, moravam em um apartamento
de menos de 100 metros quadrados.
Ele cuidava dela e do dinheiro também. Não acreditava
em seu potencial econômico, já que gostava tanto das coisas do
mundo artístico. Em outras palavras, ela era tão somente uma
fútil. Por isso, ele se achava no direito de cuidar do patrimônio
deles. Guardando o seu salário e pagando as contas com o dela.
E, assim, ela se sentia em parte protegida, e ele cumpria o seu pa-
pel de protetor, que há muito havia prometido à sogra que teria.
Mas nunca, em hipótese alguma, a acompanhava em seus
devaneios – que incluíam um teatro ou aulas de dança, seu maior
desejo. Ela poderia ir só, se quisesse. Quando muito, um cinema,
para assistirem a filmes de tiros ou pancadaria. Os filmes infantis
também faziam parte do cardápio dos domingos, além da casa
da sogra.
Na outra semana, quando ligou para marcar, ela me disse:
“Tenho novidades que você não vai acreditar!”. Pensei em várias
coisas. Todas elas referentes a processos, dispensa por justa causa
ou coisas do tipo. Errei! E feio.
Mas ocorreu que ela ficou muito tensa com a situação e,
depois de uma semana pensando no que fazer, resolveu colocar
o filho na escola em período integral e dispensar a mulher, por
telefone. Seria mais fácil. Mas não foi. Ouviu argumentos bem
elaborados do outro lado da linha. Como que “não era uma vira-
-latas, para ser dispensada de tal forma”. Como juíza do trabalho,
ela deferiu o argumento!

No divã com a manicure L 91


Além do mais, tinha a parte burocrática, como assinar a
papelada de dispensa. Afinal de contas, estava neste mudo para
fazer cumprir os direitos dos trabalhadores. E assim o fez. Pediu
dispensa do trabalho, novamente.
Mas, em vez de papéis sobre a mesa, lençóis foram para
o chão. Tiveram momentos enlouquecidos de amor. Ou seja, à
faxineira chegou a vez de alcançar lugares que jamais imaginou
visitar. Ficaram a tarde toda se refastelando de prazer, até serem
incomodadas pela perua escolar, que trazia o bebê da escola.
Ela me confidenciou isso com um pouco de constrangi-
mento. Porém, com muito menos pudor do que a mulher de
outrora, certamente, teria. Aqueles foram os momentos mais in-
teressantes e prazerosos de sua vida, e acrescentou que não que-
ria que essa fantasia terminasse tão já.
Na semana seguinte, eu sempre a esperava, um tanto ansio-
sa para saber o desfecho da história. Eis que me apareceu com
uma solução muito engenhosa. Como ela tinha outra empregada
que dormia em casa, optou por dispensá-la, alegando que a co-
zinheira era demasiado rabugenta, além de estar enjoada da sua
comida, e contratou-a para dormir a semana inteira em casa.
O marido sequer questionou sua resolução, visto que nunca
concordou em ter duas funcionárias em uma casa tão pequena.
Além do que, precisavam economizar. Nunca se sabia o que o
próximo ano político lhe reservaria, economicamente falando.
Mas, ao longo de uns seis meses, a coisa ficou insustentável.
Até o marido já percebia sua aparente preocupação em agradar à
funcionária de casa. Embora nunca fosse severa, também não era
de preterir um cinema a troco de ficar em casa, ajudando a moça.
Da mesma forma, ir ao mercado com a empregada nunca fora
seu programa dominical favorito. Entretanto, gostava do novo
humor da mulher. Menos brigona, menos austera, e lhe permitia
fazer suas contas no final de semana, sem ser importunado.
Talvez fosse a constante presença da empregada faz-tudo.
Essa era muito mais prestativa do que a outra. Inclusive aos finais

92 L Lindy Lima
de semana, lá estava ela, para auxiliá-los no que fosse possível, e
o melhor: sem cobrar nada a mais por isso. Com a faz-tudo, sua
vida foi facilitada. Iam ao shopping, ao cinema, ao teatro. Este
último lhe dava arrepios. Como a esposa não gostava de dirigir,
a empregada fazia as vezes de motorista, e o eximia dessas coisas
tão chatas. E a vida seguia em passos lentos e agradáveis. Até
cair na malha fina da moral e dos bons costumes da matriarca
familiar.
Não precisou de muito para ela, a mãe, tentar expulsar
aquela intrusa do maravilhoso mundo que projetou para a filha.
Profissão, marido e filho.
Mas ela deu com a cara na porta. Achou finalmente uma
inimiga à sua altura. A mãe adentrou o apartamento, gritando
impropérios para que a empregada sumisse dali com o rabo en-
tre as pernas, caso contrário, ela daria um jeito de colocá-la na
cadeia e coisa e tal. A moça já dispunha de mil e um argumentos,
argumentos esses respaldados firmemente por um peito impreg-
nado de paixão.
“Suma daqui, sua velha intrusa. Caso contrário, eu acabo
com seu castelo de areia. Falo pro seu genro querido, que mal
olha na sua cara, que ela deseja a separação.” A velha se enfezou e
correu para cima da empregada como uma fera à espreita de uma
carne fresca. A filha, do canto, precipitou-se para cima da mãe, e
tomou-lhe a frente e as rédeas da discussão.
Desferiu-lhe algumas palavras, como lembrando-a de quem
era aquela casa. E mais: falou da profissão que não escolhera, e
da vida medíocre que a mãe achava ser a oitava maravilha do
mundo. Estava cansada da “juizite”, das saias cafonas, dos sapa-
tos de bico fino. Cansada do medo de errar, de não ser feliz, de
viver uma vida que não escolheu. Cansada do marido, por fim. E,
conforme disse a amante, ia pedir a separação.
A velha quedou-se de joelhos, rogando por misericórdia.
Pediu que, por todos os santos do mundo, e pelos que ainda hão
de ser canonizados, que não o fizesse. Temia o julgamento das

No divã com a manicure L 93


pessoas. “Mas que pessoas?”, pensou a filha. Não havia pessoas.
Não tinha família, tampouco amigos. Ninguém era suficiente-
mente bom para a mãe. Por isso, vivia numa vida de ostracismo.
Estava cansada, finalmente revelou.
Conduziu a mãe até a garagem. Aproveitou para reter seu
cartão de visitante, e avisou aos porteiros que a majestosa senho-
ra de cabelos negros, olhos escuros e protuberantes olheiras azu-
ladas não era mais bem-vinda naquela casa. “Que fique claro!”,
ressaltou.
Nunca mais eu soube nada sobre essa cliente. A última no-
tícia que tive foi de que estava triste, pois não podia mais fazer
parte da peça de teatro que estava ensaiando, já há algum tempo:
a barriga de gravidez de oito meses, de um menino, não lhe per-
mitia mais atuar.

94 L Lindy Lima
Os ricos também choram

A cadeira da manicure é como uma janela de onde enxer-


gamos a sociedade, por um ângulo privilegiado. Não importa
se já é cliente antiga, ou se está nos vendo pela primeira vez: há
sempre quem queira nos fazer uma revelação. Um segredo há
muito guardado; uma mágoa antiga de um amor perdido, ou um
sonho frustrado.
Cheguei à conclusão de que os nossos sonhos contam mui-
to. Não há, definitivamente, modelo ou receita para ser feliz. A
felicidade também não está humanamente intrínseca. É preciso
que as peças estejam em seus devidos lugares. E isso inclui os
sonhos realizados, não o que sonharam para nós. Não seguir o
modelo padrão, mas o que acreditamos ser realmente importante.
Mas nunca é tarde para terminar um projeto de vida, correndo
atrás do sonho perdido.
Essa moça veio pouquíssimas vezes ao salão. Era bancá-
ria, no litoral norte. E, desde a primeira vez em que nos vimos,
começou a falar da sua vida pregressa. Toda vez me contava um
pouco mais de sua história. Falava com entusiasmo e até orgulho
sobre como tinha saído do atoleiro que a vida havia lhe imposto.
Quando criança, morava em uma soberba casa, com vista
para o estádio do Pacaembu. Estudou nas melhores escolas da
cidade, e viajou grande parte do mundo. Comemorou do 5º ao
10º aniversários na Disney, junto com a irmã dois anos mais
nova, e passavam as férias na casa de campo da avó paterna, em
Campos do Jordão. Por vezes iam, no alto verão, para a não tão
suntuosa casa de praia em Caraguá, no litoral norte de São Paulo.
Não era um passeio que agradava de todo ao pai, pois a
casa não comportava o conglomerado de amigos que se reuniam
em torno da modesta piscina, para fumar charuto e beber uís-
que. O pai era um homem altivo, que administrava a imobiliária
da família. Um dos seus maiores prazeres era reunir-se com os

No divã com a manicure L 95


amigos, fosse em casa ou em qualquer outro lugar que lhes pro-
porcionasse bem-estar e conforto.
Enquanto isso, a mãe cuidava, com esmero, de mimá-las
das mais diversas maneiras. Levava-as à escola, ao balé no clube
Pinheiros, à aula de dança e, quando sobrava tempo, tomavam
sorvete no final da tarde, quase sempre na Praça Vilaboim.
E, nos raros finais de semana que ficavam em São Paulo,
desfrutavam das compras nos shoppings Iguatemi e Ibirapuera,
e tomavam café em badaladas padarias da região. O shopping
não era de fato o programa preferido do pai, mas, às vezes, acom-
panhava a família, quase sempre se esgueirando e sentando-se
no primeiro banco que encontrava, ou entrando na primeira
tabacaria.
Depois de almoçar na companhia de amigos, em algum res-
taurante da moda, olhavam as vitrines das lojas infantis da Lore-
na, identificando as cópias das suas originais, compradas pela avó
paterna em Paris, e que, não raro, destoavam dos trajes das outras
crianças. Ainda tinha o haras do tio Marcos, na região de Var-
gem Grande Paulista, aonde as meninas raramente iam, graças
à incompatibilidade de gênios entre a mãe e a cunhada invejosa.
Elas eram como água e azeite. A mulher do tio Marcos
nunca aceitou que uma pobre menina do interior, caiçara, “a
suburbana”, como era conhecida e tratada por grande parte da
família, pudesse ser coberta de ouro pelo marido, e este lhe pare-
cesse nato. Ao passo que ela, da alta sociedade paulista, tinha um
marido que apenas lhe cobria de maltratos.
Toda essa vida de “mundo fantástico de Alice” ruiu em me-
ados dos anos 1990, quando o chefe da família sofreu um infarto
fulminante, no túnel da saída da cidade de Mairiporã, quando
voltava de mais um sensacional final de semana em Atibaia.
O que aconteceu depois das seis horas da tarde daquele fa-
buloso dia ela procurava não se lembrar. Mas lembrava-se, com
certeza, do barulho das crianças na piscina da casa de campo e
do tilintar dos talheres de prata sendo servidos pela cozinheira
de sotaque mineiro, que lhe fazia polenta frita.

96 L Lindy Lima
Lembrava-se, também, das caras amarradas das babás dos
visitantes, certamente desejosas de que metade dos pirralhos se
afogassem na cristalina água da piscina para, quem sabe, o final
de semana acabar ali. E, então, voltariam para seus minúsculos
quartos, nos fundos de alguma casa ou apartamento.
Era o 48º aniversário do homem mais fabuloso que ela co-
nhecera: seu pai. Nos aniversários, ele costumava beber cerveja,
além das bebidas quentes costumeiras. Naquele dia, a mãe estava
mais radiante do que nunca. Ela gostava de se mostrar alegre e
altiva para os visitantes, por mais que fosse cansativa aquela ma-
ratona de 48 horas de comilanças e olhares de inveja e desdém.
Em meio aos fingimentos de amizades, ela procurava sempre
estar bela e romântica. Relembrava isso com pesar.
“Volta e meia, abraçava e beijava meu pai”, lembrou. “Fazia-
-lhe um elogio qualquer, para que ele se sentisse o homem mais
amado do mundo. E repetia, para mim, a frase que mais ouviu
durante sua infância: ‘Sabem quem é o homem mais amado do
mundo?’. ‘Eu’, ele respondia, automaticamente. Era uma per-
gunta frequente, mas sempre cativante”.
E continuou: “A maioria dos amigos nutria uma certa in-
veja da felicidade deles. Alguns elogiavam o jeito romântico de
minha mãe; outros a invejavam, como mulher. Ela era realmente
poderosa, como dizia o tio Marcos. Principalmente quando
aparecia usando aquele vestido branco, descompromissado. Os
‘descompromissados’, como ela gostava de falar, tratava-se de
um estilo de roupas único. Quando entrávamos em uma loja, a
primeira coisa que ela perguntava pras vendedoras era ‘não tem
alguma coisa soltinha, mais descompromissada?’”, lembrou ela,
em meio a um sorriso triste.
“Eu não entendia este gosto dela por roupas largas, também
só vim a descobrir depois de muito tempo.” E continuou: “Mi-
nha mãe acreditava que as coisas nunca poderiam ser explícitas.
Exceto as boas ideias. Ela tinha sido professora, antes de conhe-
cer meu pai. Uma simples professora primária, do subúrbio de

No divã com a manicure L 97


Santos, no litoral. Talvez ela nunca tenha deixado a predileção
por causas sociais. Embora tivesse aprendido a pensar, do alto
de nossa casa de seis suítes, que não poderia combater a miséria
sozinha, e que, simplesmente, havia pessoas com e outras sem
sorte, e contra a má sorte não havia o que se fazer”.
“Poucas vezes, mas com significativos argumentos, a ouvi
criticando o governo pelos desajustes sociais. Mas apenas se li-
mitava a pedir para um dos nossos motoristas entregarem, na se-
gunda bem cedo, o resto da comida do domingo. Estivesse onde
estivesse, ela fazia disso um ritual sagrado, nunca profanado. Era
a famosa ‘comida das minhocas’, a comida daqueles que mora-
vam embaixo do Minhocão.”
“Às vezes nós mesmos íamos entregar, com o motorista, e,
em seguida, éramos deixadas na escola. Ela nunca deixou o mo-
torista, Toninho – um homem baixinho e de poucas palavras
(poucas, porém erradas) – nos levar sozinho a qualquer lugar.
Ainda bem que a prudência chegou ali e fez morada, pois ai de
uma palavra que tivesse mais de duas sílabas: sucumbiriam rapi-
damente pela sua dificuldade em pronunciar palavras maiores.”
“Acho que ele tinha preguiça de falar, assim como tinha
de comer e de andar. Apenas conversava com meus pais, mas
de dentro do carro, onde dormia o tempo todo, enquanto nos
esperava em nossas mil e uma atividades diárias. Mas esta tarefa,
de levar comida aos necessitados, Toninho fazia de muito bom
grado. Nunca fazia cara de quem tinha pouco tempo. Também
tinha muita paciência conosco. Às vezes, nos dava chiclete es-
condido, na hora do almoço, e pedia para não falarmos para as
empregadas.”
“Nós não tínhamos babás. Mamãe não gostava. Era ciu-
menta demais com a gente, e dizia que queria sempre acompa-
nhar nosso desempenho de perto. Mas acho que fazia isso só
para mostrar ao nosso pai que era boa mãe e esposa. E, de fato,
era”, reconheceu. “Mamãe ficou viúva aos 35 anos. No enterro
do meu pai, do pouco que me recordo, ela trajava um dos seus

98 L Lindy Lima
vestidos descompromissados. Aquele de que ele mais gostava. E
foi a última vez em que a vi usando um deles.”
“Naquele dia, o cortejo dentro do Cemitério da Consolação
me causou enjoo. Alguém, de quem não me recordo, me pegou
no colo e me levou para dentro da pequena capela, onde todos
os amigos choravam copiosamente a morte de papai. A famí-
lia dele, apática como sempre, prostrou-se num canto, com as
maquiagens de mais de quilo na cara das mulheres. Elas apenas
olhavam para mamãe e gesticulavam entre si.”
“Talvez estivessem realmente felizes por ele ter se livrado
de minha mãe, finalmente. O túmulo dele era o mais imponente
da alameda, e minha avó cuidava para que as coroas de flores que
chegavam fossem expostas gradativamente, por cores, das mais
escuras para as mais claras. Tudo na vida dela era assim. Tudo era
combinado, orquestrado, ensaiado, para que nada desse errado. E
não dava. Inclusive o seu último e grande anseio estava, naquele
momento, sendo concretizado: a separação de meus pais. A eter-
na separação carnal de meus pais.”
“Depois, dali, fomos para casa, e ela ainda se parecia maior
do que nunca. Era tudo triste. Eu, com dez anos, e Marcia, mi-
nha irmã mais nova, com oito, não precisamos tomar banho, nem
jantar, nem ir para a escola no outro dia. Os telefones tocavam
incansavelmente, e minha mãe deu ordens para a Maria, nossa
empregada mais antiga, desligá-los todos da tomada. E assim se
passou mais de um mês quando a diretora da escola veio pesso-
almente à nossa casa, exigindo que voltássemos às aulas.”
“Era uma segunda pela manhã quando ela desceu as escadas.
Estava pálida, magra e sem vida. Não tinha mais as bochechas
rosadas, a raiz negra do cabelo parecia estar no meio da cabeça.
As unhas das mãos roídas, e as dos pés com o esmalte roxo pela
metade. Minha mãe assemelhava-se a uma velha cigana que cos-
tumava a ler a mão das pessoas, em um calçada da praia. A única
diferença é que trajava roupas estupidamente justas, embora, vi-
sivelmente, estivesse cerca de 10 quilos mais magra.”

No divã com a manicure L 99


“Ela ordenou, em tom ríspido, que nos retirássemos da sala
e, logo em seguida, só se ouviam os murmúrios de nossa empre-
gada: ‘Eu já falei, eu já avisei, eu já disse pra ela’. Parece que a
maldita tinha apertado a tecla play de algum gravador.”
“Minutos depois, a diretora saiu, e ela nos levou para o
quarto e disse que, a partir do próximo dia, teríamos que retornar
às nossas atividades escolares, e só. Não mencionou natação, nem
balé, nem idas ao clube, à tarde. Voltou para a sua cama desar-
rumada e engrenou no sono ao som de Chico Buarque. Seria o
prenúncio do sono que lhe roubaria grande parte da vida.”
“Tempos depois, a diretora, a mesma que veio à nossa casa
ordenando que voltássemos às aulas, pedia, em uma singela car-
ta, que nos retirássemos da escola por falta de pagamento. A
única coisa que nos restava, dos bens de consumo, era o celular
com conta atrasada, último presente de papai, antes de morrer,
para a esposa querida.”
“De resto, não sobrou nada. Lembro-me do dia em que o
tio Marcos – aquele que vinha em nossas festas, trazia brinque-
dos e elogiava mamãe – entrou em nossa casa, pegou a chave dos
carros e saiu, sem dizer palavra. Mamãe, saindo do seu sono de
mais de uma semana, pediu encarecidamente para que ele dei-
xasse conosco ao menos um dos carros, para nos levar à escola.
‘Não. Elas não vão mais precisar. Ninguém sequestra pobre nesta
cidade, podem ir à pé’, emendou, num tom de deboche.”
“Só víamos nosso espaço estreitando, nossa comida min-
guando, nosso dinheiro se esvaindo. Agora, nossa avó fazia
nossas compras, desde produtos de limpeza até os de higiene
pessoal. Nossa antiga cozinheira, que já não era lá flor que se
cheirasse, tornou-se ainda mais ousada. O que mamãe aguenta-
va, porque diziam que era única coisa da época de papai que nos
restava. Isso embora a minha irmã e eu tivéssemos nos tornado
especialistas em preparar miojos e ovos cozidos, sem necessitar
daquela figura amarga em nossa casa. Se bem que, às vezes, ela
soltava algumas máximas engraçadas, do tipo: ‘Esta geladeira

100 L Lindy Lima


está semelhante a um coco. Quando abre, só aparecem o branco
e a água’.”
“Ela passava a maior parte do tempo dormindo – acredito
que o marasmo de minha mãe também a tenha afetado. Acredito
que se achava muito velha para procurar outro emprego e, por
isso, limitou-se a viver parasitando em nossa casa, cada dia mais
podre de sujeira. Muitas das vezes, criticava minha mãe pelas
costas. Falava mal dela para o primeiro que aparecesse. Quantas
vezes não a ouvi bater o telefone na cara das pessoas, quando
percebíamos que estava se referindo maldosamente a nós, ou fin-
gia que falava mal de outra pessoa que não minha mãe? Mas, no
fundo, sabíamos o quanto nos odiava, e não era por pouco. Era
pelos anos de salários atrasados.”
“A primeira vez em que internamos a minha mãe foi na
véspera do aniversario de 15 anos de minha irmã. A mãe do
meu namorado, um garoto do colégio, solidarizou-se comigo e
indicou minha mãe para uma clínica de recuperação contra as
drogas. Embora ela nunca tenha tocado em outra droga senão a
bebida, estava se consumindo a cada dia. Passava semanas sem
comer absolutamente nada, apenas esvaziando suas garrafas,
uma, e depois outra, e mais outra.”
“Depois de três meses, ela fugiu da clínica, e começou a be-
ber assim que chegou em casa. Nunca foi agressiva conosco. Mas
também não dava conta da nossa existência. Para ela, estarmos
ali, ou não, faria muito pouca diferença em sua vida amargurada.”
“Os vizinhos eram quem cuidavam da gente, cada um a seu
modo. Alguns davam comida; outros, conselhos; outros criti-
cavam. Mas me lembro de Dona Rosinha, uma senhora judia,
surda de tudo. Sempre nos esperava no elevador com alguma
comidinha. Mesmo quando entrei na faculdade, foi ela quem
me fez um bolo, e avisou todos os outros moradores da minha
façanha.”
“Por vezes, nos deu roupas, feitas por ela mesma. Quando
minha mãe estava muito mal, com convulsões, precisando ser

No divã com a manicure L 101


hospitalizada, ela levava minha irmã ao cinema, no West Plaza,
e depois para dormir em sua casa. Ela dizia que gostava de ir ao
cinema porque lá ouvia tudinho. Também botou muita gente
para correr quando os condôminos queriam nos expulsar do pré-
dio, por falta de pagamento. Por causa de Dona Rosinha, nós só
saímos do prédio quando me casei com Flávio, e mudamos para
a casa de Caraguá. Não foi difícil conseguir uma transferência, já
que o gerente geral do banco onde eu era concursada tinha sido
estagiário do papai”, ressaltou.
“O Flávio era professor de tênis. Então, como não tínhamos
casa, e estávamos começando a nossa vida, lembrei-me da úni-
ca coisa que nos restava: a casa da praia. Nessa época, a minha
irmã, que falava muito bem o inglês – embora tenha deixado de
frequentar a escola de línguas desde que nosso pai morreu – foi
para os Estados Unidos, trabalhar como babá.”
“Eu e Flávio pegamos os móveis que, apesar de velhos, con-
tinuavam em bom estado, e demos uma repaginada neles. Pin-
tamos alguns, reformamos outros... Enfim, ficou tudo novinho.
Foi quando buscamos minha mãe para morar conosco, definiti-
vamente. Ela não resistiu. Era como se não tivesse mais vontade
própria. E não tinha, a bebida mandava e desmandava na sua
vida havia mais de 15 anos.”
“Não lembrava mais de tê-la visto sorrir depois da morte
de meu pai, até ela adentrar a porta da frente de nossa antiga
casinha de Caraguá. Foi como um sonho vê-la novamente na-
quele espaço, apanhando e beijando todo e qualquer objeto que
encontrava pela frente. Naquela noite, dormia sossegada em um
dos quartos de visitas, o qual pintamos de lilás, a cor que ela mais
gostava. Também mandei fazer uma colcha em patchwork, que
ela adorava. Era um bicho-grilo reprimido. Um estilo que meu
pai só aprovava quando estávamos a sós.”
“No dia seguinte, quando nos levantamos, quase enfartei ao
constatar que ela não estava em casa. O Flávio, com sua habitual
sabedoria, sugeriu que ela pudesse ter ido dar uma volta na praia.

102 L Lindy Lima


Mas as últimas investidas dela não me deixavam alternativa se-
não pensar no pior. Estaria ela se afogando na bebida? Por ali,
já cativando seus futuros botequeiros, para que lhe vendessem
fiado e, depois, fizessem escândalos quando eu não tivesse mais
dinheiro para quitar as dívidas de minha mãe, como habitual-
mente nos ocorria em São Paulo?”
“Foi um dos motivos pelos quais minha irmã fugiu para
bem longe”, ressaltou. “Todos no bairro sabiam que éramos fi-
lhas da cachaceira e velhaca do prédio amarelo.”
“Já passava das duas horas da tarde quando meu coração
parecia sair bela boca: minha mãe aponta, em passos lentos e
faceiros. Uma rainha coroada pelo sol de janeiro, sorriso tímido e
gestos de quem estava faminta. Imediatamente, compreendi que
apenas desejava matar a fome, e lhe convidei para comer como
se não esperasse outra atitude de uma mulher que vi tentar se
matar junto com toda a família, pela maior parte da minha vida.”
“Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, depois que lavamos
toda a louça suja, saímos para passear na praia. Percebi, por várias
vezes, que ela virava o rosto quando nos aproximávamos de al-
guma barraca na praia ou birosca na calçada. Desde então, nunca
mais foi hospitalizada, e dava sinais de que gostava a cada dia
daquela vidinha.”
“Eu saía todos dos dias para trabalhar no banco, e ela ficava
em casa. Fazia o almoço, lavava a louça e fazia toda a faxina da
casa. Às vezes, eu a proibia de fazer as coisas, e deixava claro
que ela não era nossa empregada. Ela brincava, e dizia que tinha
nascido para aquilo.”
“O Flávio, como professor de tênis, viajava por todo o li-
toral norte de São Paulo, chegando até o Rio de Janeiro. Onde
tivesse gente rica, lá estava ele. Às vezes, íamos com ele. Sempre
que ia a Parati, condomínio Laranjeiras, minha mãe gostava de
ir. Acho que ficava se lembrando do passado, de quando fazía-
mos parte daquele estilo de vida. Embora ela nunca se referisse a
isso. Parece-me que, daquele tempo, surpreendentemente, ela só
sentia falta do papai, embora há anos não falasse nele.”

No divã com a manicure L 103


“Tínhamos uma vizinha muito bacana, também viúva e
bem mais velha do que minha mãe. Passava a maior parte do
tempo viajando e conhecendo as praias do litoral brasileiro. Ela
sempre convidava minha mãe, mas ela nunca ia. Alegava sempre
falta de dinheiro, mas, na verdade, tinha desaprendido a viver em
sociedade. Achava-se indigna de amizades.”
“Apesar disso, iniciou uma boa amizade com a Marcia, faxi-
neira dessa senhora, a quem começou a contar a história de nossa
vida, e acompanhá-la até sua igreja, nos fins de tarde. Era uma
igreja católica, onde cuidavam de crianças carentes. A princípio,
teve vergonha de nos contar o feito, pois papai odiava igrejas e
religiões, quaisquer que fossem. Criou-nos como ateias, embora
eu nunca tivesse conseguido ser”, ressaltou.
“Ela achava que eu também iria criticá-la por isso. Mal sa-
bia como fiquei feliz, ao saber que estava se aproximando da
casa de Deus, independentemente por qual porta. Eu e Deus
havíamos feito as pazes desde que conheci o Flávio. Ele era des-
cendente de potiguares, muito religioso: fora crismado, batizado,
consagrado e benzido por todos os afoxés. Aprendi com ele e
com sua família a importância da religiosidade. O quanto o ser
pode ser insustentável sem o pilar da religião.”
“Cerca de quatro meses depois, nossa vida estava em curso.
Ela ia à igreja todos os dias, frequentava o programa AAA três
vezes por semana, indicada pelo padre, para evitar recaídas. Con-
tinuava a cuidar com muito esmero da casa. Providenciou, com a
ajuda da Marcia, uma horta nos fundos do quintal, e a frente de
nossa residência agora parecia a oitava maravilha do mundo. Mal
raiava o dia e lá estava ela, de luvinhas amarelas e ferramentas em
punho, cuidando da poda das árvores, recolhendo as folhas secas
e semeando sementes e mais sementes.”
“Alguns vizinhos vieram me pedir o telefone de meu jardi-
neiro, o qual dei com bastante prazer. Agora, ela até já ganhava
dinheiro com sua nova atividade, cuidando das flores. Atividade
que ela afirmava enfeitar a vida.”

104 L Lindy Lima


“Flávio continuava com sua atividade em alta, correndo de
condomínio em condomínio. Já era conhecido por todo o litoral
norte paulista e, muitas vezes, nem voltava para casa. Quando ti-
nha grandes torneios de tênis, ele passava até duas semanas sem
retornar, treinando a garotada dos ricos nas férias. Minha mãe
e eu sofríamos com a falta dele. Ela era incrivelmente grudada
nele, e percebíamos que era um afeto verdadeiro. E pensar que,
um ano atrás, ela não pôde nem comparecer ao nosso casamen-
to... Tinha estado em coma alcoólico.”
“Em um sábado, de manhã, ela desceu as escadas do segundo
andar esplendorosa, com o vestido branco que só usava quando
íamos à praia com o papai. Um flashback de minha infância pas-
sou na minha mente e, por uma questão de segundos, voltei a ser
criança. Chorei ao vê-la tão bela. Ainda era extraordinariamente
encantadora. Estava cinco quilos mais gorda, e as tristes marcas
de expressão, aos poucos, davam lugar a suaves marcas de bron-
zeado dos caiçaras.”
“Nós nos abraçamos, depois de muito tempo. Foi então que
ela me contou: havia falado, há pouco, com minha irmã de Nova
Iorque. Ela lhe dissera que estava grávida de três meses, e estaria
a caminho, com o noivo, para que este pedisse a sua mão em
casamento.”
Era um dia de sexta-feira, o salão estava lotado. Eu estava
atrasada para atender a minha próxima cliente. Apesar dos anos
em salão, nunca lidei muito bem com atrasos. Odiava-os. Tanto
os da minha parte como os de parte das clientes. Ainda assim,
acompanhei-a até a sala de estar, onde ficou aguardando o ma-
rido e a mãe para irem buscar a irmã no aeroporto. Recomendei
que trouxesse a irmã para fazer as unhas comigo. Foi quando vi
aquele homem negro, forte, com o rosto cheio de sardas e lar-
go sorriso, acompanhado de uma linda mulher, na casa dos 50.
Talvez a mulher mais bonita de quem tive o prazer de conhecer
a história.

No divã com a manicure L 105


Sobre bonecas

Esta cliente, a quem chamarei de Boneca – mais tarde ex-


plicarei o porquê –, era uma simples mortal, que, como todos
nós, padecia dos males modernos. Entre eles, uma insalubre falta
de autoestima. Chefes prepotentes, clientes intransigentes, cole-
gas que querem a todo o momento puxar o tapete, e o principal e
mais comum de todos os problemas: – a ausência de um grande
e verdadeiro amor –, corroboravam para tal situação.
Logo que segurei sua mão, ela começou a desabafar sobre
sua vida nada singular. Disse-me que era muito sozinha, tinha
poucos amigos, era separada, não gostava de sair e se sentia mui-
to carente. Adjetivo completamente dispensável na conversa,
pois essa carência gritava. Desde que o marido a abandonara,
grávida de seis meses – e, agora, apesar da companhia do filho de
três anos – ela se sentia a pessoa mais solitária e inútil da Terra.
Dias depois, confidenciou-me que, apesar da separação
traumática, continuava saindo com o pai do filho, um cara a
quem, mais tarde, apelidamos de “padre”. O Padre era um ho-
mem muito inteligente, mas de difícil convivência. Não tinha
amigos, não falava com ninguém; eram só ele, as músicas e os
livros esquisitos. O apelido nada tinha a ver com o sacerdócio,
mas com a pouca importância que dava aos prazeres carnais.
O Padre fora seu segundo marido. O primeiro a deixou
quando descobriu o relacionamento dela com o secretário, que
levava mais jeito de padre do que de Ricardão. Só depois de qua-
tro meses, quando a viu grávida, junto com o assistente, teve que
admitir que a aparência dos padres também é atrativa, e tratou
de demitir o funcionário antes que a notícia vazasse para mais
departamentos.
Mas como o “padreco” era bastante eficiente, e a empresa
entendeu que “cada um que cuide de si e guarde seus chifres
atrás da porta de casa”, optou por manter o rapaz na equipe.
O chefe, entretanto, teve que se adaptar aos chifres e passar a

106 L Lindy Lima


conviver com o Ricardão da mulher, ainda que isso lhe custasse a
dignidade. A Barbie e o estagiário passaram a viver juntos, desde
então. No entanto, depois do sexto mês, a paixão não resistiu
àquelas estranhas manias, a convivência ficou muito difícil e o
padreco a mandou para fora de casa.
Alegou as coisas mais descabidas que um homem poderia
fazer. Chegou a dizer que ela o corrompera, e, de certo, foi o
que aconteceu. Sem aceitar, e morrendo de amores pelo aparente
religioso, ela voltou para a casa da mãe, sob severas críticas da
família, exceto da própria mãe, pois de amores e dissabores a
velha era catedrática.
A Barbie nunca gostara de estudar. Desde a infância fugia
da escola e, na adolescência, fumava maconha com os amigos
nos barzinhos da Vila Madalena, enquanto ouviam rock paulei-
ra. Carregava consigo o estigma do fracasso, e a culpa de não
ter concluído nenhuma das quatro faculdades que começara –
principalmente se comparado tal fracasso com o currículo dos
irmãos, doutorados pela USP.
Agora, vinha fazer as unhas aos sábados, no lugar da terapia
em grupo. Durante um longo papo, detectei essa insegurança,
misturada com vergonha de ser a única pessoa do trabalho a não
ter nível superior. Costumava dizer que vinha fazer sua terapia
semanal comigo. E, então, a incentivei a estudar. Mas, como era
demasiado preguiçosa, talvez devido à depressão, ela não dispu-
nha de ânimo para qualquer atividade que fosse. Nem ginástica,
nem igreja, nem qualquer outra atividade além do maçante tra-
balho num órgão público.
Ela apenas gostava de dormir. Sua cama era a amiga in-
substituível. Só de pensar em perder uma hora de sono, isso lhe
tirava o sono. Deitava-se às 21 horas para tirar o maior provei-
to do descanso. E, quando acordava no meio da madrugada, se
desesperava, acreditando que tinha insônia. Sua vida seguia um
círculo vicioso de trabalhar com sono, falta de sono no meio da
madrugada, remédio para dormir e aguardar o praticamente “ex-
-atual-marido” ligar.

No divã com a manicure L 107


Alegando extremo cansaço à noite, resolveu matricular-se
num curso online de Administração de Empresas, com duração
de dois anos, fato a que nos referíamos como “A busca do canudo
Sagrado”. Aos poucos, percebi uma mudança de comportamen-
to, principalmente depois de eu convencê-la de que era muito
bonita, e tal beleza só carecia de aflorar um pouco.
Era necessário um up, e evitar o vício de procurar namoros
pela internet – fugindo, assim, das recorrentes decepções. Ela
alegava que, enquanto procurava os namorados virtuais, não
precisaria se preocupar com os cuidados femininos de primeiros
socorros, tais como: fazer depilação, cuidar da pele comprar rou-
pas e sair de casa. Só tinha essas preocupações quando era para
encontrar algum deles, embora não percebesse que este hábito
consistia no maior de todos os seus problemas.
Uma semana antes eu havia lhe reforçado o quanto era bela.
Falamos sobre como ela deveria proceder para arrumar um na-
morado de verdade, sem recorrer à internet, e sepultar de vez o
“falecido”. Invoquei aquelas receitas que sabemos ser infalíveis,
mas nunca as praticamos embora as indiquemos sempre aos ou-
tros, como: se arrumar mais jovialmente; deixar de ter aparência
tão séria; ir, de vez em quando, jantar fora; sempre sorrir quando
estiver em locais públicos e etc. Ela começou por tirar as pontas
ressecadas dos negros e opacos cabelos, e fazer mechas mais cla-
ras, dando-lhes um tom mais jovial.
Enfim, acho que ela conseguiu, porque, pouco depois do
Ano Novo, foi a um barzinho perto de sua casa, na Rua Diana, e
conheceu um homem muito bonito. Mas isso depois de conhe-
cer, na internet, um cara que pediu-lhe dinheiro emprestado, no
segundo dia de encontro. Um cara que, em menos de duas sema-
nas, “enterrou” toda a família: só de avós mortas, contamos apro-
ximadamente cinco. Também ele cuidava de toda a vizinhança
de velhinhos, bastante dispendiosos. E, ela, prontamente, contri-
buiu financeiramente para estes atos humanitários. Até dinheiro
para tratamento e enterro de cachorros ela forneceu.

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Mas, na semana seguinte, quem ligou foi a mulher do cara,
achando que ela era agiota, e pediu mais dinheiro emprestado.
Tinha conseguido o telefone dela na agenda do digníssimo, com
o seguinte codinome: “Dinheiro Fácil”.
Daí por diante, ela se convenceu de que precisava largar a
vida online e arriscar a real. Mas não foi tão fácil assim. Antes de
tomar a decisão, teve que aguentar um mineirinho que frequen-
tou sua casa, com a filhinha a tiracolo, durante meses, e sumiu
sem deixar rastros. Tempos depois, ela descobriu que a mulher
deste cara tinha viajado para fazer intercâmbio, e ele precisava de
um lugar para morar até a esposa retornar, já que não tinha como
pagar aluguel sozinho.
A cada novo rolo na internet, eu já sabia, pois ela vinha fa-
zer mechas claras no cabelo para se encontrar com o novo “gran-
de amor de sua vida”. Em menos de um ano, estava loiríssima,
Barbie. Daí o apelido de “Boneca”. Mas o réveillon de 2006 havia
lhe sorrido, depois de muitas lágrimas. Enfim, tinha colocado
um ponto-final na relação ioiô entre ela e o Padre, aquela que vai
e volta, e também cessado os casos virtuais.
O pai do filho era antissocial de carteirinha: nunca ia a fes-
tas. Mas, neste réveillon, tinha dado o ar da graça, apenas para
colocar um ponto final no vai e volta entre eles e, por tabela,
levar sua felicidade de Ano Novo para as cucuias. No outro dia,
arrasada, fora a uma esfirraria perto de casa, e ali, conhecera o
Marcos.
O Marcos não resistiu à sua saia jeans, relativamente curta
para uma moça de 35 anos. Ou – quem sabe? – às sardinhas
dos peitos protuberantes, levantados pelo sutiã meia-taça que eu
havia lhe convencido a comprar, umas semanas antes. Ou teria
sido os cabelos, de mechas loiríssimas? Marcos era um cara rela-
tivamente atraente. O físico de nerd era compensado pela cútis
rosada e os cabelos grisalhos. O tênis All Star, com as únicas
duas calças jeans Levis, e camisetas justas, fechava o conjunto
harmonioso.

No divã com a manicure L 109


A atração entre os dois foi imediata, e passaram dois anos
juntos. O Marcos dizia que tinha feito arquitetura na FAU. Mas,
pelo raquítico português que praticava, era de se supor que não
tinha segundo grau completo. Mas, até aí, tudo bem. Ela tam-
bém havia comprado o diploma superior e estava a caminho da
segunda graduação.
Mas a paixão arrasadora do início foi dando sinais de des-
gaste com o passar dos meses. Ela não queria casar com o rapaz
que não dizia em que trabalhava. Tinha um carro caindo aos
pedaços, e não queria mudar de vida, nem emprego, nem de ami-
gos. Ele continuava dividindo a pizza de 12 reais, e serrando a
Coca-Cola dela.
Conforme o tempo passava, as diferenças foram se acen-
tuado, e chegando ao ponto de não mais praticarem uma con-
vivência passiva. O ápice do descontentamento ocorreu durante
uma viagem de férias para o Guarujá. Na hora de check-out, ele
foi levar as malas ao carro e não voltou. Foi a última vez que ela
pagou uma conta dele. Sem contar que, durante os quinze dias,
o cabelo grisalho não viu uma água com sabão. Depois disso, ele
passou a ser chamado, em vez de tarado, de Cascão. Mas, pelo
menos, a vida ao lado do “sacerdócio” parecia superada.
Mas, antes de o relacionamento ruir definitivamente, en-
trou no trabalho uma moça que apelidamos de “Menino” e, de-
pois, de “Pedra”. Essa figura, apesar da aparência delicada, era
tão lésbica que deixava qualquer jogador de futebol morrendo de
inveja. Só faltava coçar o saco e cuspir no chão. Depois do Me-
nino, a vida da Boneca não foi mais a mesma, tanto no trabalho
quanto em outros departamentos. O Menino era muito delicado
na aparência, tinha pele bonita e cabelos sedosos, mas bastava ver
um cortador de unhas para sair correndo. As sobrancelhas junta-
vam-se uma na outra, e as pernas nunca tinham visto uma cera.
Ela era 11 anos mais jovem do que a Barbie, e a aproxima-
ção se deu por confidenciar sua orientação sexual, embora fosse
aparente. Versava sobre as dificuldades de relacionamento com a

110 L Lindy Lima


família, e o vício em drogas, iniciado ainda na escola e acentuado
durante o curso de geografia na USP. Logo depois, a amizade
transformou-se em longas investidas do Menino sobre a Boneca,
até que, um dia, depois de umas caipirinhas a mais, foram parar
em um bar LGBT, na Vila Madalena. Daí por diante, o Menino
não saiu mais do apartamento dela, nem ela queria.
Para não chocar tanto a sociedade, o Menino se disfarça-
va de menina, fazendo as sobrancelhas, cortando e pintando as
unhas e depilando as pernas – e até outras particularidades. Para
aquela mulher austera, que adentrou um salão há cerca de três
anos, se envolver num relacionamento homossexual foi, no mí-
nimo, inusitado para mim.
Mas ela não me contou logo no início. Percebi pelo tom dos
telefonemas e pelo brilho diferente no olhar, embora quase sem-
pre desconfiado. E porque, também, soube que dera um tempo
com os remédios para dormir. Depois, começou a me falar do
Menino, cada vez mais. Como eu me mostrava receptiva, com na-
turalidade, ela acabou por me confessar que estava “comendo da
mesma carne” – com estas palavras e meio sem jeito. Perguntou-
-me se eu a achava normal. “Anormal é não ser feliz”, salientei.
Depois me falou da difícil vida da moça e sua dedicada
atenção para que se livrasse dos vícios. Agora, ela tinha um pro-
blema real. Uma razão por que lutar, e o fazia com afinco. E não
era mais o fantasma do abandono do marido, com seis meses de
gestação. Tinha agora, em suas mãos, as drogas. E a droga do
preconceito, que tinha de primeiro ser eliminado de dentro de si.
Ela não era exatamente homossexual, mas essa experiência
a estava fazendo crescer. A frágil de antes não existia mais. As
incessantes terapias agora faziam parte do passado, e o uso dos
remédios para dormir estava cada vez mais raro. Uma amiga em
comum brincava que a nova dieta, à base da mesma carne, anda-
va lhe fazendo muito bem.
Era curioso para uma pessoa que fora casada, como diria
ela, com um “padre”, cujos hábitos eram sempre os mesmos, e

No divã com a manicure L 111


agora vivia um mundo novo e cheio de desafios, ainda que mui-
tos não lhe agradassem. Era o caso das festas regadas a drogas, e
manter financeiramente a companheira, coisa que era uma pedra
no seu sapato. Mas o amor superava tudo. Por esse motivo, nós
passamos a chamá-la de Pedra. Uma pedra no sapato, uma pedra
de crack. Por mais que tivesse a certeza de que sairia muito ma-
chucada daquela situação, não conseguia deixar de usar.
Lutava com veemência para que seu amor aprendesse a
conviver em família e ter novos amigos. Tentou fazer com que
enxergasse que já não era mais aquela adolescente deslumbrada
com a poesia do mundo, do museu de biologia da USP. E que os
inúmeros amigos desempregados, cujas dependências de drogas
minavam a cada dia a possibilidade de colocarem em prática o
que aprenderam na universidade, não deveriam fazer parte de
seu círculo de amizades.
Também tentou fazer uma ponte entre a companheira e a
burocrática família dela: a mãe, gerente de banco, e a irmã, pro-
fessora de escola religiosa. Tentou fazer com que não vissem a
filha e irmã como simples ser andrógeno, mas como uma pessoa
que tinha sonhos e aspirações, apesar da dificuldade de relacio-
namento, mas com pouco sucesso.
Em seu primeiro Natal juntas, ela teve que arrastá-la, quase
caindo de bêbada, de uma festa na casa de amigos, ali mesmo
na Pompeia, onde as paredes eram cobertas por fotografias de
rock pauleira e mulher pelada. Na festa sobrava lugar no sofá, e
os banheiros apinhados de cheiradores exalava tanta fumaça que
chamava a atenção da vizinhança, que esbravejava em repúdio ao
cheiro da erva queimada.
Além disso, havia sido hostilizada pelos papos de diploma.
Quem era doutor em quê. Quem fez o que na USP, e ela, que
tinha comprado seu canudo, ficava de soslaio, torcendo para que
nenhum daqueles lhes perguntasse onde adquirira um diploma.
Apesar de que, em meio àquela confusão de cheiros, fumaça, pi-
cadas e palavrões, ninguém se lembraria do que foi feito, muito

112 L Lindy Lima


menos do que foi dito. Ela conseguiu levá-la à troca de presentes
na casa da família, onde a austera mãe e a retraída irmã professo-
ra fizeram de conta que as duas não estavam ali. Ou, se estavam,
eram transparentes. Se não fosse pelo irmão, professor de ginás-
tica, oferecer-lhe um copo de vinho, as duas tinham passado a
noite no quarto da Pedra, ela cheirando e a Boneca olhando.
Uns dois dias após o Natal, ela me procurou, mostrando-se
preocupadíssima com o estado de saúde da Pedra. Não parava de
sangrar do nariz, mesmo depois de irem a vários prontos-socor-
ros. Não esbarrava na falta de vontade da moça. Aquela vida de
drogas era uma religião. Assim como pular de emprego em em-
prego medíocres apesar da facilidade para passar em concursos.
Passava em todos os que tentava, mas tinha aptidão para os que
pagavam menos, com grau de exigência proporcional ao salário.
Aos poucos, a dependência do vício foi diminuindo, assim
como as faltas no serviço. As desconfianças dos colegas aumen-
tavam em maior proporção, principalmente da parte do gerente.
O gerente havia sido seu “PA”. Pau Amigo. Aquele cara que ouve
os lamentos da mulherada e, no final, as leva pra cama, sem com-
promisso algum.
Nós também chamávamos o PA de “Gato”, não porque era
bonito, mas porque “quem não tem cão, caça com gato”. O Gato
era aquele cara bacana, que ouvia o problema de todos, conhecia
todos os aposentados da fila a quem, eventualmente, vendia uma
garrafa de vinho do Paraguai. Além de ser o terapeuta do grupo,
era também muambeiro, e o mais fofoqueiro da turma. Sendo
assim, foi o primeiro a desconfiar delas.
Em poucos dias, o assunto estava mais batido do que jornal
de ontem. A apelidara de “canibal”: aquela que come carne se-
melhante. Mas ela não se importou com as críticas, nem com as
piadas do departamento. Assim, não precisavam mais disfarçar
para saírem juntas pro almoço e no final do expediente. Tudo
isso durou cerca de um ano, até o Menino passar em um concur-
so dos correios. Aí a coisa começou a degringolar.

No divã com a manicure L 113


Não tinha mais por quem lutar, a quem dar conselhos e
de quem limpar vômitos. Até disso sentia falta. Os telefonemas
foram rareando: de diários, passaram a semanais, depois men-
sais, até se findarem. Novas carnes, novos pratos. A galinha velha
fora trocada por novas frangas. E a vida da Boneca perdeu nova-
mente o brilho. Voltou então a se confessar com o Padre. Agora
aprendera coisas novas para ensinar a ele, que até gostava.
O Padre também parecia mais atraente. Agora já não usava
mais suspensórios, e os óculos fundo de garrafa tinham ganho
armações novas, dando mais leveza à barba por fazer. Ensinou o
Padre a tocar, a como tocar a Boneca. Embora ele não chegasse
a ser um maestro, era um pequeno aprendiz. Porque a Pedra,
segundo ela, era mestre na arte de tocar. Era a sinfonia dos so-
nhos, onde todo o seu corpo estremecia com a delicadeza de
uma sinfonia dos deuses. E, neste repertório, o Padre era apenas
um aprendiz. Infelizmente, apenas o confessionário não supria a
falta da Pedra. Foi devastador esse processo de abstinência. Caiu
de novo.
Recorreu novamente aos sites de relacionamentos. Só que,
agora, o perfil mudara. Dessa vez, procurava por mulheres. Os
encontros eram marcados, mas ela nunca aparecia. Não gostava
de mulheres, gostava da Pedra, daquela Pedra. A constante an-
gústia chegou ao conhecimento da mãe, que começou a perceber
uma mudança brusca do humor da filha depois do sumiço da
amiga, a qual já não mais aparecia para dormir lá. E não iam
mais ao cinema, tampouco às festas. Vendo a filha de volta à
antiga reclusão peculiar, caíra-lhe então a ficha.
O Padre não era de todo sem coração. Havia lhe comprado
um apartamentinho no mesmo prédio que Dona Marta – que,
apesar da idade, era ainda mais parceira do que mãe. Amiga para
todos os assuntos: financeiros, amorosos e domésticos.
Dona Marta tinha quase 80 anos, e merece que abramos
um parêntese sobre ela, pois era uma criatura incrível. A Bone-
ca era a segunda filha do segundo casamento e, quando nasceu,

114 L Lindy Lima


sua mãe já tinha mais de 40 anos. Ela nasceu no interior de São
Paulo, próximo a Lins. O sítio da família fazia fronteira com
uma enorme fazenda, pertencente a um industrial de São Paulo.
E, não raro, ele aparecia por lá.
Um belo dia, o motorista do industrial aportou no seu ter-
reiro e convidou toda a família para ir até a fazenda, passar o
Natal, a pedido do patrão. Eles ficaram bastante lisonjeados e
aceitaram o convite. Dias depois, ela começou a ir seguidamente,
todas as vezes em que o moço estivesse lá. Os pais não desconfia-
ram de nada. Só depois que a barriga da menina de pouco mais
de 15 anos começou a aparecer é que as preocupações vieram à
tona. De antemão, a expulsaram de casa, e ela foi viver em São
Paulo com o industrial.
Lembro-me de como sorria, ao referir-se à vida com ele.
Levava uma vida de rainha, ainda que fosse como concubina.
Tinha motorista particular e os dois filhos, nascidos da união.
Tinha tudo de bom. Escolas caras, roupas e passeios para o exte-
rior, embora ela mal conhecesse São Paulo. O motorista a levava
para passear, mas sempre nos mesmos locais – em geral, bairros
distantes do centro, ou parques populares. Até que um dia, quan-
do as crianças já estavam maiores, começaram a se perguntar por
que tinham apenas o sobrenome da mãe, inquietação que foi
desencadeada pelas professoras da escola.
Dona Marta tentou falar com o pai das crianças a respeito
dessas implicações. Ele disse que, na próxima semana, os levaria
ao cartório para resolver a questão. Passaram-se uma, duas, três
semanas, um mês, dois... O motorista aparecia com o dinheiro e
todo o resto tinha se findado. Anos mais tarde, o mesmo moto-
rista chegou à sua casa não no habitual carro preto, mas de táxi,
para informá-la sobre o número da sepultura, caso ela quisesse
visitá-la com os filhos. Mas deixou bem claro que era prudente
ela ir apenas aos meios de semana.
Ela então rasgou o papel, na frente do motorista, e aquele
assunto entre ela e os filhos fora sepultado junto ao falecido,

No divã com a manicure L 115


menos o amor que sentia por ele. Este só será enterrado com ela,
afirmou-me várias vezes. Já estava sem chão, agora tudo estava
pior. Sem amor e sem dinheiro. Mas, muito jovem e com bas-
tante disposição, foi trabalhar de secretária em um banco, para
o qual, mais tarde, fez um concurso público, e se aposentou nele.
Mas, cerca de cinco anos depois da viuvez, ela conheceu outra
pessoa: um cliente do banco, que se engraçou por ela e vice-versa.
Nem se importou com a espessura da aliança que este ostentava
no anelar esquerdo. Ele era gentil e elegante. Ajudava a pagar as
contas atrasadas, e, pela primeira vez em muitos anos, pôde com-
prar um vestido novo. Nesta época, os dois mais velhos dela já
eram adultos, então o pretendente passou a frequentar mais a casa
dela.
Foi durante a espera do primeiro filho dos dois, uma lin-
da menina, que ela ficou sabendo do falecimento da esposa do
amante. Daí por diante, ele passou a frequentar mais assidua-
mente a sua casa, e a desfrutar da aposentadoria tão desejada.
Embora um homem de 65 anos não estivesse mais apto a cuidar
de um bebê, a segunda filha foi muito desejada e bem-vinda.
Embora, às vezes, lhe faltasse paciência com a menor. Era muito
mimada, já que os irmãos mais velhos já passavam dos 20 anos.
Mesmo assim, casaram-se na igreja, no mesmo dia em que
batizaram os quatro filhos – pois, a essa altura, ele dera o seu so-
brenome para os dois primeiros. O casamento já começou mor-
no, mas o amor que ele dedicava aos quatro filho, e a gorda ajuda
para pagar escola, faculdade e despesas domésticas faziam com
que ela suportasse as manias do “marido”. Mas não foi por muito
tempo. Ele faleceu por volta do quinto aniversário da filha caçu-
la, deixando viúva 50 anos mais nova, e um trauma enorme de
relacionamentos. Quando falei com ela pela última vez, era uma
senhora muito espirituosa. Mas há quem a achasse pervertida,
embora nunca mais tivesse encostado em um homem depois da
morte do segundo parceiro.
Dizia-me ter horror a homens, principalmente depois
de sofrer com um velho em época em que não havia Viagra.

116 L Lindy Lima


Contava-me de um artifício que usavam para manter relações
sexuais. Algo como um aparelho de ferro que mantinha o pênis
ereto, embora a machucasse muito. Passou anos, depois da viu-
vez, com ódio mortal daquele tal aparelho. Talvez isso a tenha
feito perder o interesse pelo sexo, propriamente dito. Entretanto,
falava muitos palavrões e contava piadas sobre o tema a todo
momento.
Vivia sempre rindo e olhando revistas de fofocas. E, mes-
mo com aquela idade, depois de ter fraturado as duas pernas e
a bacia, com cicatrizes bem aparentes, ainda era cobiçada pelos
“velhotes”, como assim dizia. E foi neste clima de amores sufo-
cados ou por conveniência que criara os filhos, mas sem nunca
lamentar a vida.
Os dois mais velhos, agora com sobrenome, tornaram-se
doutores. A primeira, do segundo casamento, era uma empresá-
ria muito bem-sucedida – ao contrário da Boneca, que era uma
simples funcionária pública e seu salário mal dava para quitar
as contas, recorrendo, frequentemente, à aposentadoria da mãe.
A experiente mãe tinha uma grande habilidade em falar de
tudo abertamente com os filhos. Assim, ninguém escondia nada
de ninguém. E não foi diferente com o relacionamento homos-
sexual da caçula. Os irmãos não ficaram sabendo, mas a ávida
senhora desconfiou e, ao final, ela teve que dividir sua angústia.
E foi no colo da mãe que ela se curou dessa ferida, apaixonando-
-se por um rapaz que veio morar no prédio, e com quem seu
filho, agora com 11 anos, vai ao Shopping Bourbon comprar All
Star e camisa Hering branca. Filho básico, sim. Padreco, não.
Ele quer muito se casar com ela. Só que agora essa é a
última coisa que ela deseja fazer da vida. Aprendeu a gostar de
si mesma e da companhia do filho. Não quer dividir a cama com
mais ninguém por período superior a oito horas. Disse-me isso
às gargalhadas, recentemente.

No divã com a manicure L 117


Tamanho é documento

Não sei se fiz certo ou errado. O fato é que a maioria das


amigas que tenho hoje provém dos salões de cabeleireiros onde
trabalhei. Não sei se isso, profissionalmente, é bom ou ruim. Mas
não tem como uma manicure ser completamente imparcial. Im-
parcialidade é a palavra que encabeça o jargão jornalístico, é es-
sencial a todo bom jornalista. Como jornalista, procuro ser. Mas,
como manicure, com certeza não o fui.
No entanto, isso me ajudou muito, jornalisticamente fa-
lando. Jamais tive problemas para conseguir fontes. Tinha pro-
motoras, juízas, advogadas, psicóloga, médica, faxineira, babás,
empresárias e etc. Toda uma gama de gente que, se não pudesse
me ajudar, indicaria quem pudesse.
A parte ruim é que fiz amigos demais. Amigos, às vezes,
enchem. Muitos casamentos, muitos presentes, muitas festas de
aniversário dos filhos, muitas reclamações de que não dou a de-
vida atenção. Tudo isso que não considero prioridade. Mas há
uma desvairada de quem sinto muitas saudades, e quase sem-
pre nos falamos. Era uma figura diferente. Não apenas pelos seus
1,80 m de altura, mas pela sua singularidade. Primeiro, tinha al-
gumas obsessões. Uma delas, o tamanho do membro masculino.
Avaliava suas supostas “presas” – como sempre nos refe-
ríamos aos homens com quem se relacionava – pelo tamanho
do pênis. Pouco importava se eram brancos, negros, japoneses,
pobres ou ricos. Se fossem avantajados, passavam no teste, sem
maiores considerações. Chamarei ela de Mara, para que pos-
samos, em determinados momentos, evitar o uso contínuo dos
pronomes pessoais – a fim de não empobrecer tanto meu texto,
visto que a história é original, sem maiores arremedos.
Ela lembrava muito a atriz Cláudia Raia, devido ao físico
avantajado e os cabelos bem tratados. Dos pés e das mãos, não
posso dizer o mesmo. Às vezes, algumas manicures a chamavam,

118 L Lindy Lima


preconceituosamente, de “pés de pedreiro”. Coisa, aliás, que uma
manicure nunca deve fazer. Mas, como nós tínhamos muita inti-
midade, brincávamos com o fato de seus pés serem muito resse-
cados e ela não dar a menor atenção ao fato.
Quando via um homem, já cogitava espessura e tamanho.
Era uma verdadeira obsessão pela coisa. Tanto que, certa vez,
ficou um ano namorando com dois caras ao mesmo tempo. Por
um era completamente apaixonada, e o segundo era bem dotado.
Ela era uma grande executiva, de uma das mais importantes em-
presas de tecnologia do país. Apesar de ter sido a primeira de três
filhos, de uma família muito pobre da Zona Leste, ela conseguiu
se sobressair profissionalmente, através da faculdade e dos bons
cursos que procurava fazer sempre.
Sua mãe era uma vigorosa feirante e jamais teve domínio
sobre as duas filhas e sobre o único e indolente filho homem. Ex-
ceto ela, o resto não trabalhava, e viviam mendigando suas sobras
e queixando-se, como se ela houvesse usurpado toda a sorte que
lhes cabia. Ela havia sido casada e tinha uma filha com quem
mantinha uma relação muito boa e bem resolvida. As duas con-
versavam como se fossem adultas, e não havia cobranças entre
ambas. Ela sempre me dizia que a filha sofria de falta de apego,
a ponto de não perguntar nunca pelo pai, tampouco ficar carente
quando ela viajava para ministrar curso no exterior.
A única reclamação que fazia da sua filha de 11 anos é que
a menina não gostava de qualquer comida. Mas, quando esta-
va somente na companhia da preguiçosa empregada, ou na casa
do pai, comia de tudo, sem reclamar. Mesmo que passasse mal
quando chegasse em casa. Apesar disso, era uma mãe relativa-
mente ausente, e a despachava sempre que surgia a possibilida-
de de uma cama farta. A educação que destinara à menina era
primorosa para os dias atuais. Liberdade com responsabilidade.
Com bastante frequência, ela viajava aos mais inusita-
dos países do mundo. Desde Oriente Médio até países da
América Central. Lembro-me de uma viagem que ela fez para

No divã com a manicure L 119


a Guatemala, e lá se encontrou-se com um colega alemão, com
quem sempre ministrava cursos juntos. E, depois do expediente,
rolava um “extra”.
A empresa alemã de tecnologia, para onde prestava servi-
ços, sempre oferecia um funcionário da matriz para encontrá-la
e dar um suporte em todos os países para onde viajava. Sendo as-
sim, ela fazia coleção de histórias sobre estes homens que nunca
voltavam sem antes passar pelo controle de qualidade da moça.
A viagem da Guatemala poderia ter acabado como tantas
outras, não fosse pelo fato de o alemão auxiliar também gostar
da coisa. Em vez de a maratona sexual começar depois do curso,
foi antes – o que ocasionou um atraso básico de duas horas no
início das apresentações.
Sorte que só tinham que descer dois lances de escada do ho-
tel para chegarem à sala de apresentações, onde todos os aguar-
davam com cara de poucos amigos. Ainda bamba das pernas, ela
teve que contar piadas em castelhano, e fazer outras artimanhas
para justificar o atraso. Pena que nunca mais esse cara foi escala-
do para as viagens – talvez os alemães sejam verdadeiros britâni-
cos, no quesito pontualidade.
Outra vez, cismou que o entregador de pizza poderia ser
bem dotado, e fingiu um desmaio quando o rapaz chegou, fazen-
do com que este a levasse até o sofá, onde deu um jeito de sentir
a protuberância, que era mínima. Não valia arriscar a fama de
síndica durona por tão pouco. Mas, às vezes, perdia a esportiva.
Por exemplo: quando descobriu que estava sendo corneada pelo
marido, não perdeu tempo com brigas e chiliques desgastantes.
Apenas foi a todos os orelhões das redondezas das Perdizes e
colou cartazes oferecendo sexo homossexual, com prazeres das
mais diversas formas, com o nome e telefone da casa e do traba-
lho do marido, e com alguns ramais como o do diretor da em-
presa. Em pouco tempo ele estava desempregado, sem moradia e
sem telefone para contato.

120 L Lindy Lima


Foi o suprassumo da vingança feminina pós-traição, pois os
sites pornográficos da internet já haviam surgido em profusão, e
a moça aproveitou para instalar os dados do ex também por lá.
Agora, com números de telefones atualizados, motivo que o fez
trocar novamente seus números e de toda a sua família. E, ainda,
processar a companhia telefônica pela reincidência do equívoco.
Nós nos tornamos muito amigas. Ela era uma pessoa ex-
tremamente prática, talvez levada por uma vida na qual tinha
que correr contra o tempo para dar conta de uma filha pré-ado-
lescente, encontrar bem-dotados, se divertir e, ainda, formatar
as mil e uma apresentações de PP – adquiriu uma habilidade
incrível de fazer uso dos recursos audiovisuais, sem muitos des-
gastes, e procurar simplificar a vida. Ajudava-me sempre que eu
precisava de uma apresentação de power point.
Se via que tinha muito trânsito, andava os cinco quartei-
rões da casa até o salão a pé. Como calçava número 42, compra-
va cinco pares iguais de sapatos, quando os encontrava. Como
era muito grande e chamava muito a atenção, vestia-se sempre
em tons moderados. Como não tinha muito tempo para sair de
casa, fazia festinhas com os porteiros mesmo. Tudo em nome da
praticidade.
Apesar do corre-corre, costumávamos sair juntas. E olha
que para alguém me tirar de casa era muito difícil, pois eu traba-
lhava de segunda a segunda e estudava à noite. E, quando estava
de folga, fazia trabalhos da faculdade. Ainda assim, era irresistí-
vel um convite dela, para onde quer que fosse.
Íamos a barzinhos, onde ela entrava e todos paravam para
olhar. Não diria que era uma belíssima mulher, mas uma figura
interessante. Cantava e dançava quantos ritmos tocassem. Sabia
abordar os homens sem ser vulgar, e se o cara, porventura, não
atendesse aos seus propósitos, seria capaz de passar a noite in-
teira conversando com ele, pois sempre sabia descobrir alguma
coisa boa nas pessoas.

No divã com a manicure L 121


Nunca a ouvi criticando ninguém. Parecia-me que não se
achava no direito de fazer isso em relação aos outros, pois sa-
bia que seu telhado era de vidro. Reconhecia que seu fraco nem
sempre poderia ser compreendido por todos, e o fazia em segre-
do absoluto. Apenas poucas pessoas do seu universo de amigos
tinham conhecimento de suas aventuras.
Uma vez, desejei inteirar-me mais sobre o poder da “obses-
são” em sua vida. Ela simplesmente explicou-me que não dava
para trepar de pé se o cara não tivesse as medidas perfeitas, por
causa de seu tamanho, configurando a posição que mais aprecia-
va quando estava entre quatro paredes – às vezes, até sem elas.
Outro fato desesperador para mim é que ela vivia se meten-
do com homens comprometidos. Ela era bem resolvida demais
para manter um relacionamento normal, com cobranças e outros
males de uma relação estável. Mantinha um passatempo, como
chamava sua relação com um cara do trabalho, que era noivo
e, segundo ela, tinha alguns atributos valiosos, que justificavam
“comer a carne onde se ganhava o pão”. Ele era especialmente
x-G. Já fazia cerca de um ano que ela namorava sério o morno
rapaz, adorado pela família, quando o colega de trabalho come-
çou a frequentar o apartamento da Rua Vanderlei.
De morno foi se tornando gelado – mas temia acabar. Ha-
via muita amizade entre as famílias. Era o que ela chamava de
“pacote”: cunhada, sogras, sobrinhos... Enfim, um povo muito
legal. Mas o pacote de que ela gostava mesmo era outro; e a coisa
não tardou a ficar complicada quando os próprios porteiros to-
maram a iniciativa de avisá-la a cada vez que um deles aparecia.
Ao cabo de algum tempo, não deu mais para enrolar os
dois. Era cansativo demais. Então resolveu romper com o “pa-
cote”: perdeu algumas amizades, conquistou outras, mas optou
pela frequência das maratonas matinais antes de irem trabalhar.
Depois, percebeu que não conseguia mais manter-se imparcial
na relação. Começou a sentir ciúmes da noiva do cara, e este
sentimento a tornou muito frágil. Consequentemente, aquela

122 L Lindy Lima


mulher maravilhosa apagou seu brilho, e vivia triste pelos cantos.
Eu não sei por que, mas tenho dificuldades para entender como
as mulheres bem-resolvidas sofrem por amor.
Não queria mais sair. Ficava esperando a boa vontade do
outro em visitá-la. Lembro-me de um Natal em que ele viajou
para Bariloche com a outra, enquanto ela foi para a praia com
algumas primas. Por vezes me ligou, e era visível a amargura em
sua voz.
Quando retornou da praia, estava determinada a colocar
um ponto-final naquela relação. A coisa estava ficando séria. Não
conseguia sequer procurar ou se interessar por possíveis “paco-
tes bem dotados”. Mas a determinação não foi muito longe. Ao
cabo de duas semanas, cedeu. Ele vinha visitá-la quando queria,
e ela cada vez mais triste. Até que entrou num curso de música,
e lá encontrou um cara que tinha uma plantação de orquídeas.
Ambos eram muitos diferentes, financeiramente e culturalmente
falando. Mas tinham uma grande sintonia em outros aspectos.
Era um cara sentimentalmente fragilizado. Tinha sido
chifrado pela mulher de toda uma vida. Sua namoradinha de
infância, que se tornou a mãe dos dois filhos, de 10 e 8 anos.
Uma idade difícil para ser gostado por alguém, apesar do auge
da libido – rezam alguns. Estão também atolados nas pensões
por pagar.
E com esse não era diferente. Por isso, o cara se armou con-
tra um novo relacionamento. Tinha os chifres e as pensões que
povoavam seus pensamentos, embora dispusesse dos requisitos
mais atrativos pra moça: mais de um metro e noventa, e um
pacote de fazer inveja, além de parecer sofrer de priapismo. Foi a
primeira coisa que cogitou: caso aquele metro e noventa tivesse
também a coisa avantajada, eles poderiam fazer de pé. Isso a tor-
nou fascinada pelo homem e suas possibilidades, confessou-me
certa vez.
Correu atrás durante dias. Tentava sempre encontrá-lo, fin-
gindo ser por mero acaso. Convidou o cara para tomar cerveja

No divã com a manicure L 123


em sua casa. Mas, como todo gato escaldado, o homem das or-
quídeas mostrava-se cada vez mais ressabiado. Até que, um dia,
convidou-me para sairmos. Eu, ela, um amigo e o grandão. Lá
no final do salão eu os vi aos beijos e amassos, e depois sumiram.
Eu e o amigo tomamos um táxi e fomos cada um para sua casa,
já que fomos de carona com eles.
Só deu notícias três dias depois. Maravilhada com tudo
aquilo. Era expert no assunto. Detectava um bom investimento
de longe. Sempre se gabava. Eu tentei mencionar o ex, mas pa-
recia uma pessoa de quem não mais se recordava.
Sempre que nos falávamos, o discurso havia mudado deli-
beradamente. Não havia mais tristeza em foco. Agora, eram só
posições novas e falava de como aquele fabuloso homem se doa-
va na cama – ao contrário do outro, que agora, depois das águas
passadas, chegou à conclusão de que não era tão bom assim.
E eu sempre tive vontade de lhe dizer que só é tão bom
enquanto não gostamos de outro. E que nós é quem criamos,
em nosso imaginário, certos mitos e os revestimos de uma sig-
nificância que verdadeiramente não têm. Chegou, então, minha
oportunidade.
Meses depois, ela não se lembrava mais daquele homem
que ela supunha o melhor do mundo na cama. A não ser pelas
inúmeras vezes em que ele lhe ligara por dia. Pelas flores que
ele mandava entregar na sua casa. E pela ex-noiva, ligando e
culpando-a pelo fim do noivado. Até pedido de casamento ela
recebeu, além de convites para viagens – aquela que ela sempre
sonhara. Mas, agora, era tarde: ela não pensava em outra coisa
senão no “grandão” das orquídeas.
Numa das dezenas de vezes em que se encontrara com o
Grandão pela escadaria da garagem, o novo porteiro os pegou
no flagra. Eles desajeitadamente ergueram as roupas e saíram
correndo em direção ao apartamento, mas a tempo de ouvir o
porteiro falar que não se preocupassem, que na amanhã seguinte
ele iria entregar-lhe a fita da gravação da câmera da garagem.

124 L Lindy Lima


Essa história de amor nas escadas era uma prática recorrente e
recriminada por mim. Vamos ter cautela. Ela sempre alegava ter
uma filha de 11 anos em casa. Falta de privacidade e coisa e tal.
Mas escadaria não é local de quem deseja ter privacidade, vamos
combinar.
Na manhã seguinte o porteio procurou-a cedo, com cara de
carregador de hotel que espera opulenta gorjeta. Ela era, entre
outras coisas, rápida de raciocínio. Catou logo cem reais e jogou
na mão do funcionário, e tudo certo. Mais tarde, quando o mes-
mo rapaz veio entregar a correspondência, ofereceu-lhe um café,
pois reconheceu que tinha talento. O rapaz agradeceu a gentile-
za, mas deixou claro que só costumava tomar café à noite, depois
do expediente. Agora, com a mensagem clara, não pôde deixar
de sentir o estômago girar. Ficou tonta de pavor e quase não o
ouviu dizer para não se preocupar, que mais ninguém teria aces-
so à cópia da filmagem da noite anterior. Ela entendeu o recado.
Foi na manhã seguinte, indo para o trabalho depois de uma
noite bastante produtiva, que se deu conta: aquele homem rús-
tico, de cabelos grisalhos, com proeminente sotaque nordestino,
bem que poderia tê-la flagrado antes. E essa era sua sina. Um
era pouco.

No divã com a manicure L 125


Uma atitude muda tudo!

Quando ela chegava no salão, todos se entreolhavam. Era o


que poderíamos chamar elegantemente de “feia por excelência”.
Era feia da cabeça aos pés, e do tipo que não dava pra disfarçar.
Além da falta de elegância, não era simplesmente possível passar
despercebida. Tinha cerca de 1,80 m e o peso na casa dos três
dígitos. Uma tristeza no olhar, mais evidente que viuvez precoce,
e uma simpatia pouco vista até nas pessoas felizes. Professora de
matemática. Era casada com um homem muito bonito, e tinham
dois filhos. Ele era um engenheiro formado pela USP, com cara
de poucos amigos. De natureza e beleza díspares, foi justamente
a simpatia dela e a constante facilidade de se desculpar por exis-
tir que os uniu.
Ele era estudante de engenharia. Ela, a mais brilhante es-
tudante de matemática da sala, na mesma instituição. Ele era
o mais belo da turma, mas não abria a boca, nem para tirar as
dúvidas de matemática. Eram poucas as meninas na sala, e com
os homens ele não tinha papo. Sempre fora monossilábico.
Na lanchonete, estava só. Na sala, sentava-se o mais separa-
do possível do restante. Quase não participava dos debates e não
comparecia às festinhas e barzinhos. Foi então que um professor
lhe indicou a excelente aluna de matemática, conhecida por aju-
dar a todos, inclusive substituindo os professores. Foi assim que
a química surgiu. De início, eles quase nem se falavam, além do
conteúdo estudado.
Ele saía do Brooklin, região nobre de São Paulo, e ia até a
Penha, na Zona Leste, tomar aulas de matemática, física, e coisas
do gênero, com a mais brilhante aluna da faculdade, por indica-
ção de um professor em comum.
As aulas, no entanto, iam se tornando cada vez mais fre-
quentes. Ele precisava se superar. Não queria ser apenas reco-
nhecido como o cara estranho e de opiniões pouco ortodoxas.

126 L Lindy Lima


Essa dificuldade em matemática era sumariamente camuflada
– ninguém deveria saber, a não ser o professor de corpo raquítico,
cabelos ralos e cigarros sempre entre os dedos.
Agora, as aulas passaram a ser também aos finais de se-
mana. E, para sair da rotina, ela sugeriu um cinema. “Por que
não estudarmos no Shopping?”, sugeriu. Até mesmo porque a
Penha era muito longe. Ele não tinha hábitos de shopping, mas,
por fim, se tornou um frequentador. Era mais cômodo para ele.
Certa vez, sentaram-se bem em frente de um cartaz de filme que
acabava de chegar aos cinemas.
Era infantil, é certo. O Rei Leão. Ótimo, completamente
despretensioso. Na semana seguinte, assistiu a uma comédia, de-
pois a um romântico. Por fim, os românticos eram mais frequen-
tes, apesar de ele preferir os de lutas marciais e muito sangue.
Além do material das aulas, ela também carregava as pipocas,
os sucos e, muitas vezes, suas jaquetas. Os encontros foram se
acentuando e, no final da faculdade, ela foi convidada para sua
madrinha.
Talvez fosse a única pessoa do sexo oposto com quem
tivesse contato, além da mãe. Mas foi uma emoção, mesmo as-
sim. Os pais da moça ficaram encantados. Foi muito luxuoso, e,
no final, foram convidados a participar da modesta cerimônia na
mansão da família. Foi a primeira vez que conheceu a família do
rapaz e a última festa naquela residência.
A hipoteca foi executada no meio daquele ano. Os pais vol-
taram para o Sul e ele foi morar na casa da então namorada.
Seis meses depois, casaram-se e continuaram a morar na Penha,
na casa dos sogros. Quando a primeira filha nasceu, ele julgou
necessário mais conforto para a menina, e convidou os sogros a
se mudarem para o quarto dos fundos, pois a sua filha merecia o
conforto da única suíte da casa.
A menina crescia forte, parecidíssima com ele até na perso-
nalidade. O trabalho da mulher teve de ser interrompido. A me-
nina carecia de cuidados em tempo integral, visto que a vó não

No divã com a manicure L 127


dispunha das qualificações necessárias para cuidar da nenê sozi-
nha. Ninguém, senão ele ou a mulher, poderia tocar na menina.
Os avós maternos só podiam usufruir da pequena enquanto ele
não estivesse por perto.
Apenas ele trabalhava, em uma grande empresa de teleco-
municações. Chegava em casa sempre mal-humorado. O salário
não era suficiente para comprar uma casa, segundo seus critérios,
digna dele e de sua filha. Então o silêncio de sempre deu lugar a
agressões verbais destinadas a quem quer que atravessasse o seu
caminho. Principalmente em casa. Apenas a pequena era digna
de seus carinhos e atenção.
A esposa, agora sem trabalho, passou a usar roupas ainda
mais simples do que aquelas de quando era solteira. E nunca
poderia acompanhar-lhe aos seus almoços e jantares, por dois
motivos. Um: não dispunha de vestimentas à altura do marido;
e, segundo: a pequena não poderia ficar aos cuidados de alguém
que não fosse a mãe.
Aliás, ele mandou fechar a porta da sala que dava acesso
aos quartos dos fundos, onde dormiam os sogros. Assim, eles
tiveram que construir outros cômodos, como cozinha e uma pe-
quena sala, pois ficaram sem os acessos principais.
Mas quando a menina, de longos cabelos louros, passou dos
cincos anos, ficou difícil continuar a morar ali. Por mais que ele
tentasse evitar o contato da pequena com os avós, ficava evidente
o amor que ela dedicava aos dois.
Então, o mais rápido que pôde, procurou comprar o aparta-
mento da Pompeia. Queria um nos Jardins, mas não deu. No fi-
nal dos anos noventa, a Pompeia ainda era barata, e ele conseguiu
o apartamento de 50 metros quadrados, próximo ao hospital São
Camilo. Nesse mesmo ano, a mulher ficou grávida novamente, e
tiveram seu segundo filho.
Um menino. Tão lindo quando a primeira, seis anos mais ve-
lha. Os avós jamais poderiam visitar a filha sem o consentimento

128 L Lindy Lima


dele. Nem no hospital, para ver o neto recém-nascido, eles tive-
ram o privilégio. Entretanto, sempre davam um jeito. Quando o
caçula completou dois anos, ele achou por bem a mulher voltar
ao trabalho. A escola particular e a prestação do apartamento
estavam muito caros para um só pagar.
Ela passou em um concurso da prefeitura de São Paulo
sem maiores esforços, e começou a dar aulas em uma escola pú-
blica, num bairro carente da Zona Norte da capital. Quase não
tinha aulas – só quando os traficantes deixavam. Assim, ela fica-
va mais em casa do que na escola, e podia cuidar dos pimpolhos
de perto. O menino, desde bebê, deu sinais de companheirismo,
ao contrário da menina, que se deixava levar apenas por presen-
tes e pela companhia paterna.
Nesse período, ela foi engordando, e mal tinha tempo de
se cuidar. Não tinha empregada, e a casa tinha de estar impecá-
vel. Ao chegar, a primeira providência do marido era correr os
dedos por sobre os móveis, para averiguar o nível de ácaros dos
objetos. Olhava também se a despensa de mantimentos estava
em ordem, e se os pijamas das crianças não eram os mesmos do
dia anterior.
Depois de tudo isso, o jantar na mesa e o sermão de sempre.
Tudo o que não estava de acordo com seus padrões, para ele, ela
havia adquirido no convívio com os bandidos da fábrica de de-
linquentes que ela frequentava no trabalho. Ela já nem se sentava
à mesa. Também nem dava tempo. Precisava urgentemente lavar
a louça, cuidar de tudo, enquanto eles assistiam à televisão.
Só depois que as crianças dormiam no sofá ela as carregava
para o outro quarto. Isso quando ele não preferia que os filhos
dormissem na cama do casal – só aí ela podia descansar. E, no
dia seguinte, rezar para que o Gol bolinha não lhe deixasse na
mão. Os filhos iam para a escola na companhia do pai.
Disso ele fazia questão. E, nas festinhas, ela também era
dispensada. Em parte, era até bom. Ela podia adiantar todo o

No divã com a manicure L 129


serviço da casa, e ligar para os poucos amigos que ainda restavam
depois de quase dez anos de reclusão social.
No enterro da mãe, ela foi, mas os filhos não. Não desceram
do carro, e no cemitério não foi diferente. No entanto, já na “era
da progressiva”, as coisas melhoraram para ela. Agora até já ia a
festinhas da escola, desde que tivesse feito escova. Com progres-
siva, era mais fácil domar as madeixas rebeldes, aquelas que lhe
renderam a alcunha de “leoa”.
Apelido que recebeu adesão até dos filhos. Mas, depois que
o pequeno cresceu, este evitou os dizeres, já que a mãe não ficava
feliz com o adjetivo. Uma das vezes em que ela chegou chorando
foi porque, na noite anterior, a filha havia preferido esperá-la
no carro, em vez de entrar com ela na pizzaria. Nessa noite, ela
estava mais leoa do que nunca. E, no dia seguinte, foi domar a
juba e começou a nos contar a história de sua vida.
Daí por diante, todos os dias tinha um novo flashback.
Como na primeira vez em que foi visitar os sogros, no Paraná.
Na época, só tinham a primeira filha, que nunca tinha visto os
avós paternos. Esses não compareceram nem no casamento, se-
quer no nascimento da prole. A casa, no subúrbio de Curitiba,
era grande, mas sem maior conforto. Parte dela inclusive era de
madeira, em estilo europeu. Mas já estava carcomida por gorgu-
lhos, justamente nos compartimentos onde ficava o quarto de
hóspedes.
Os móveis antigos eram belíssimos. Porém, há muito que
não passavam por uma boa limpeza, assim como toda a casa.
A aposentadoria dos dois mal dava para comprar os remédios
do velho, que depois da quebra passou a sofrer do coração e de
outros males que costumam aparecer depois de uma grande der-
rocada social.
Foi assim que a moça passou seus dias. Sobre pias e mais
pias de louças, roupas por lavar, passar, a lustrar móveis etc. A
comida também ficou por sua conta, enquanto o restante ficava
na sala, colocando os assuntos em dia. Durante as noites, ela

130 L Lindy Lima


ficou no quarto de hóspedes; o marido e a bebê, no quarto dos
pais, e este repousava na antessala, uma salinha de TV onde o
velho passava seus dias mais frios, à deriva em seus pensamentos,
quando não estava fazendo palavras cruzadas ou reclamando de
alguma dor imaginária.
Os jogos estavam terminantemente proibidos pelos médi-
cos, com a intervenção da mulher. Era o vício que tantos proble-
mas lhe causou, o enfiou na ruína e, agora, mesmo jogando sem
dinheiro, corroía-lhe os nervos e os da mulher também. Ela que,
durante grande parte da vida, nunca se opôs aos desmandos do
marido – depois de o velho naufragar financeiramente, e tam-
bém com a saúde, agora deixava que seu sangue italiano falasse
mais alto. Afinal, não tinha mais nada a perder. Impunha limites,
a fim de velar pelo último fio de dignidade que lhe restava: uma
vida mais saudável.
Poucas vezes as duas se falaram e, quando isso acontecia,
eram só elogios ao filho, quando criança e quando adolescente.
Por vezes, deixava escapar sua decepção por ele não ter se ca-
sado melhor. Em determinados momentos, não pôde disfarçar
sua crença de que, talvez, se o filho tivesse feito uma faculdade
privada, dessas caras, lá poderia ter se arranjado melhor na vida.
Ao contrário de se enfiar naquela fábrica de pobretões, como se
referia à Universidade de São Paulo.
Ao fim de duas semanas, suas mãos estavam sangrando de
tanta água fria e sabão. A criança de bochechas rosadas agora se
despedia dos avós paternos. Houve choros e lamentações, sau-
dações que só poderiam ser ouvidas em meio a muito orgulho e
superioridade nórdica.
Cerca de dois anos depois, eles morreram, um seis meses
após o outro. A casa, caindo aos pedaços, foi vendida – de longe,
para um parente distante – e o dinheiro foi investido em um car-
ro importado. Ao contrário dela, que desejaria um apartamento
de três quartos – já que pretendia ter outro filho –, ele optou por

No divã com a manicure L 131


impressionar, estacionando seu possante junto da diretoria da
empresa onde trabalhava.
De fato tiveram um menino, que acabou por dividir o quar-
to com os pais, já que a irmã nunca concordou em dividir nada
que era seu com o irmão caçula. Os filhos puxaram para ela, pelo
menos na disposição óssea: depois dos três anos, o menino esta-
va enorme e ficou inviável dividirem o mesmo colchão. Solução
mais plausível foi ela se arranjar em uma bicama, aos pés deles.
Volta e meia o menino descia, e acabava amanhecendo ao lado
da mãe.
No início, a penitência até que não era muito ruim. Ela
ainda não havia engordado os trinta quilos. Estava, certamente,
fora do peso desde a primeira gravidez. Mas na segunda foi que
relaxou pra valer, e a somatória dali para os trinta foi um pulo.
Certa vez, estava muito chateada. Não me recordo se foi
porque a filha havia fingido que não era sua mãe, para uma co-
leguinha na escola, ou se, durante o jantar, inventaram um novo
coro no qual ela era chamada de leoa – às vezes, sobre o protesto
do filho mais novo. Ou se, novamente, teria sido ameaçada na
escola, pela milésima vez, pela mãe da menina que insistia em
alegar que a aluna sofria perseguição da professora, já que ia para
a escola todos os dias e, mesmo assim, bombava em faltas.
Eram tantos os problemas que, às vezes, nem me atinha a
eles, e sim àquela figura que mal passava na porta, com os cabe-
los cada vez mais envassourados, e o estrabismo mais saliente, já
que os olhos estavam sempre vermelhos e marejados.
O fato é que, em um desses dias, tinha no salão uma outra
moça. Ela era nutricionista, e como as sofredoras só não sofrem
mais porque despejam todos os seus dissabores sobre as mani-
cures, sobraram para a nutricionista alguns resquícios daquelas
aflições. Então travaram uma conversa sobre saúde, e a nutricio-
nista a convenceu a fazer uma visita ao seu consultório.
Fato é que uma dieta foi notadamente seguida, pelos me-
ses subsequentes. Os resultados foram aparecendo, e até uma

132 L Lindy Lima


cirurgia para a redução de pele foi realizada, ao cabo de um ano
e pouco. Na última vez em que a atendi, ela se recusava termi-
nantemente a ceder pela milésima vez seu horário da unha para
o marido, que era meu cliente assíduo, duas vezes por semana. E,
muitas vezes, ele usurpava o horário da coitada.
Ambos eram meus clientes. Ele, muito mais frequente. Ela,
muito mais falante. Dele nunca se ouviu a voz. Dela, eu sabia, se
não tudo, quase tudo. Dias atrás, encontrei-os em um shopping
da Zona Oeste. Ela não me viu. Ele sim, mas fingiu que não.
Eu só a reconheci por causa dele e dos filhos, já bem crescidos.
Está magra – quer dizer, macérrima –, de cabelos sedosos e pele
brilhante. Jeito de quem está por cima.
E andava à frente. Sentaram-se a uma mesa, e ela escolheu
o cardápio. Na minha imaginação. Também não pagou a conta.
Bravo! Fiquei ali, por longo tempo, como uma espiã. Dando uma
de São Tomé. E pensei: “Como uma simples atitude muda tudo.”

No divã com a manicure L 133


A contadora de histórias

Vamos chamá-la assim: a Contadora de Histórias. Essa não


se trata de uma cliente, mas de uma manicure. Coube espaço
aqui para duas delas, pois também dispõem de seus universos um
tanto particulares.
Era uma moça morena jambo, magrinha e com cara de so-
frimento, porém muito bonita. A patroa não quis admiti-la, não
gostava de funcionárias bonitas em seu salão. Isso decorre de al-
guns casos, quando o cônjuge é aproximadamente 15 anos mais
novo, jovem, atlético e com bastante tempo para cultivar seu
abdômen sarado. Saí em defesa da moça. Quase roguei. Disse-
-me que tinha três filhos, um deles muito doente. Um problema
crônico de coração. Foi o xeque-mate. Admitimos a moça.
Não chegava a ser péssima manicure, mas também não era
boa. Abria sua vida, indiscriminadamente, para todas as clientes.
Mas, como dispunha de um grande problema em casa, abría-
mos exceção. Deixávamos que desabafasse com a clientela. Era
boa de papo. Ganhava a clientela pela narrativa comovente sobre
como peregrinava de hospital em hospital com o filho doente.
Assim, anestesiava as clientes, que nem percebiam a quan-
tidade de bifes que tirava. Às vezes, eu tinha absoluta certeza de
que nunca havia visto um alicate de cutículas de perto, quanto
mais manejado um. Mas tentava achar argumentos para não me
arrepender de tal contratação.
Eu, definitivamente, não sou do tipo que costumava se en-
ganar com as pessoas. Acreditava sinceramente que ela poderia
se tornar uma boa profissional. Mas, nada. Trabalhava na base
da história. Contudo, ao cabo de dois meses, tinha feito uma
clientela razoável, trabalhando dois ou três dias por semana – os
restantes eram dedicados ao filho doente.
Toda semana ela estava nos hospitais, correndo contra o
tempo para adquirir um transplante cardíaco para o menino. Até

134 L Lindy Lima


já conhecia, segundo ela, pessoas importantes, comovidas com sua
situação. Por isso, haveria uma chance de se pular a fila do trans-
plante. Coisa quase que impossível, mas não vamos desestimular
uma mãe numa hora dessas. Torcíamos pelo impossível, também.
Orávamos, fazíamos correntes, enfim. Tanto nós quanto as
clientes. Todo mundo se comovia com a história dela, como não
poderia ser diferente.
A cada dia que passava, o menino piorava. Já imaginávamos
apenas ao ver sua testa marcada, e enormes olheiras escurecidas.
As semanas se passavam, e as rugas iam ficando cada vez mais
profundas. A tristeza em seus olhos não tinha tradução. Ficáva-
mos alertas a cada telefonema dela.
Certa semana, recebeu uma ligação. Foi atender no toalete.
As ligações do banheiro não eram, nem de longe, boas. Como
prevíamos, saiu de lá com os olhos marejados. Já conhecíamos
aquela expressão. Notícias desanimadoras. Saiu correndo, sem se
despedir. Sumiu por duas semanas. Tentamos falar com ela, pelo
celular, pelo telefone de casa, e nada. Ninguém atendia.
A sua ficha de inscrição tinha o telefone do marido. Mas,
também, nada. Do marido ela não falava muito. Mas, certa vez,
deixou escapar que era um homem muito bom, mas não era
dado ao trabalho. Ela era quem tinha de correr para sustentar a
casa e os filhos. Estava desempregado havia algum tempo, e não
se mexia para arranjar emprego. Por isso, a situação estava cada
vez mais difícil.
Mas ele cuidava bem dos três filhos do casal. Era um bom
homem. Haviam ficado juntos em uma situação adversa. Eles
eram vizinhos de bairro. Ele, um homem formado, e ela criança,
brincando com a molecada, sem a parte superior da roupa. Ele
brincava: vá vestir a roupa, que não quero minha noiva andando
nua por aí. Ela se limitava a mostrar-lhe a língua, ou outra mal-
criação qualquer.
Em seu aniversário de quinze anos, ele interrompeu o “para-
béns” para lhe pedir em namoro. E, aos 16, nasceu o primeiro filho

No divã com a manicure L 135


do casal. Só depois disso é que os pais dela aceitaram a união. Não
gostavam da diferença de 20 anos de idade entre eles.
Daí que cuidaram em agradá-los com um neto. A estratégia
deu muito certo. Tanto que o pai dela construiu um puxadinho
nos fundos, onde moravam, até aquela data, com os outros dois
filhos que vieram a seguir. Ela queria ter uma família grande,
pois era filha única. Apesar de tudo, se dizia feliz com a família
que conseguiu construir, não fosse o problema do filho.
Mas, naquele dia, suas lágrimas não eram apenas de apre-
ensão. Um fatídico acidente, na Zona Leste, havia ceifado a vida
de uma criança, e a dela estaria, por fim, salva. Disse-nos isso, ra-
diante, um mês depois do ocorrido. Agora o menininho já estava
andando de bicicleta. Ficamos chateadas pela falta de notícias,
mas como dispensar uma pessoa em tão complicadas situações?
Meu senso de humanidade sequer precisou sair em defesa da
moça. A dona do salão fingiu não ver o ocorrido, e encerramos o
assunto do sumiço. Afinal, teria sido por uma boa causa.
Durante os últimos dois meses, trabalhou corretamente.
Vez por outra, o marido ligava para dar notícia dos filhos, como
fazia sempre, mas sem a apreensão das outras vezes. Parecia que
a vida havia, enfim, lhe sorrido. Mas, outra vez, foi atender a liga-
ção no toalete. Entreolhamo-nos, aturdidas. Um suspense pairou
no ar. E o terrível agouro se caracterizou.
O filho transplantado estava passando mal. Fizemos uma
vaquinha para pagar o táxi até Pirituba. Seria mais rápido. Bus-
caria o filho e o levaria para as Clínicas. Olhos marejados trans-
figuraram o clima do salão. Colegas e clientes cabisbaixos com
a notícia.
Mais uma vez os telefones não foram atendidos. Até que,
ao final de duas semanas, deu sinal de vida. Para nossa alegria,
informou que o perigo já havia passado, mas o menino ia pre-
cisar de nova cirurgia, pois, entre outras atribulações, o órgão
transplantado teria sido rejeitado.

136 L Lindy Lima


Como os remédios eram muito caros, e no posto de saú-
de estavam em falta, o menino estava correndo sérios riscos de
vida. Quedamos em orações novamente. Desta vez, não pedimos
somente para Deus – pedimos para a clientela também. Con-
tribuições, para comprar o medicamento do menino. Ela ficou
de entrar em contato, e novamente desapareceu. Então resol-
vi ir, pessoalmente, entregá-la o dinheiro arrecadado. Peguei o
endereço em nosso cadastro e fui até Pirituba. Um local muito
simples, com casa por terminar. Mas o endereço mencionado
não conferia.
Perguntei pela vizinhança, mas ninguém conhecia a pes-
soa com tais características. Até que juntou-se um montante de
pessoas para tentar descobrir, quando revelei o motivo da minha
visita. Parou um rapaz de motocicleta, e disse que conhecia al-
guém com essas características, embora não fosse do conheci-
mento dele que tivesse marido e filhos, muito menos com um
deles doente. Mas se ofereceu para me levar até o endereço. Um
pouco relutante, aceitei a carona da motocicleta. O rapaz come-
çou a rodar por ruas cada vez mais estreitas. Já estávamos a cerca
de dez minutos parece que andando em voltas. Comecei a sentir
que havia algo de errado, pedi para ele parar.
Ele riu e disse: “Já vamos parar. É na próxima rua. Tem
medo de moto ou não tá confiando em mim?”. “As duas coisas”,
pensei. Mas ponderei e esperei dobrar a próxima esquina. Depa-
ramo-nos com uma avenida, de casas grandes e bem cuidadas.
Estacionou lentamente, em frente a uma delas.
– É essa aí. – Disse-me, enquanto anunciava nossa chegada
com uma aguda buzina. Uma distinta senhora, com ar de matro-
na italiana, veio nos atender. Perguntei se era a casa da moça, ela
disse que sim. Convidou-me para entrar, ressaltando que ela não
se encontrava em casa.
– Foi pro shopping. – Adiantou-me.
– Ah, que ótimo! Isso quer dizer que o Pedro está melhor.
– Sinalizei.

No divã com a manicure L 137


– Quem é Pedro? – Indagou-me, surpresa, a senhora.
– Seu netinho, que fez o transplante.
– Mas não tenho neto chamado Pedro, minha filha. Aliás,
nem tenho netos. Só tenho essa filha, que você conhece, mas
acho que nunca há de se casar.
Se não fossem as diversas fotografias da moça ornamen-
tando o aparador da belíssima sala de estar, ia achar que não
estávamos falando da mesma pessoa.
Diante da confusão, que meu rosto e minha gagueira não
conseguiram disfarçar, a senhora então tratou de me arrancar
daquele mar de devaneios.
“Estamos, sim, falando da mesma pessoa, filha”, ponderou
a senhora, enquanto me convidava a sentar-me em uma macia
poltrona, de veludo vermelho. “Não se preocupe”, tornou a se-
nhora. “É a minha filha pregando mais uma de suas peças.” Con-
tinuei sem compreender o teor da conversa. “Já lhe explico, filha.”
“É que minha filha tem um problema sério de mentiras”,
disse-me ela, com ar acabrunhado. “Infelizmente, não sabemos
mais o que fazer. Tudo o que diz, na maioria das vezes, não le-
vamos em conta. São fantasias da cabeça dela. Nem quero saber
o que disse pra vocês. Mas, seja o que for, não acreditem. É tudo
mentira”, sentenciou.
“Desde pequena, inventava histórias para fugir dos casti-
gos, para não ir à escola, para não fazer nada que estivesse a
contragosto. Eu e o pai dela nunca soubemos como proceder.
Batíamos, colocávamos de castigo, levamos em psicólogo, mas
nada adiantou. Ela sempre mentia pra nós. Por vezes, mudamos
de bairro, pois, não raro, ela nos metia em trapalhadas com os
vizinhos, por causa das mentiradas.”
“O pai dela e eu daríamos tudo para tirá-la deste mundo em
que vive. Mas há jeito? Entregamos nas mãos de Deus!”
Saí dali passada. Tomei um táxi e voltei para a Pompeia,
com meu sexto sentido em frangalhos.

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Contato com a Autora
lindineials@hotmail.com
No divã com a manicure é um livro de contos escritos por uma
manicure, inspirados nas histórias que ouviu de clientes em salões de cabeleireiros.
São 13 contos, sendo que 2 deles são, puramente, fictícios. Nos demais foram
substituídos nomes e profissões a fim de preservar as identidades dos evolvidos.
A maioria das histórias foi ambientada na Pompeia, região oeste de São Paulo,
cujos personagens sobem e descem aquelas ladeiras, casam e separaram, traem e
são traídos; onde morrem uns e nascem outros. Personagens entrando e saíndo das
mais inusitadas situações.
São histórias de gente real, de diferentes idades e classes sociais, retratadas em
situações do cotidiano com as vicissitudes que a sociedade lhes impõe. Alguns, cuja
vida se encarregou de dar-lhes boas histórias para serem vividas. Muitas de alegria
e tristeza, outras de fraqueza e superação.
Há fatos que vos parecerão mentiras, assim como há pequenas mentiras que vos
parecerão verdades. Porém, a verdade mais absoluta é que todos nós temos boas
histórias para contar.

ISBN 978-85-411-0924-6

9 7 8 8 54 1 1 0 9 24 6

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