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HISTORIA a ES ~ FILOSOFIA iz ULIAN MARIAS Historia da Filosofia JULIAN MARIAS Prélogo de XAVIER ZUBIRI Eptlogo de JOSE ORTEGA Y GASSI I Tradugao CLAUDIA BERLINER Revisdo técnica FRANKLIN LEOPOLDO 1 SIVA Martins Fontes SGo Paulo 2004 Esta obra foi publicada originalmente em espanhol com 0 tiulo HISTORIA DE LA FILOSOFIA por Alianza Editorial, Madri. Copyright © fulidn Mavias. 1941 Copyright © 2004, Livraria Martins Fontes Editora Lida.. Sao Paulo. para a presente edict, A presente edigao foi traduzida com a ajuda da Direccién General del Libro, Archivos y Bibliotecas do Ministerio de Educacién, Cultura y Deporte, cla Espanha. 1 edigao Junho de 2004 Tradugio CLAUDIA BERLINER Reyisao técnica Franklin Leopoldo e Silva Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revistes graficas Renato da Rocha Carlos Sandra Garcia Cortes Dinarte Zorzanetti da Silva Produgao grifica Geraldo Alves Paginagao/Fot Snulio 3 Desenvolvimento Editorial s Dados Internacionais de Catalogay3u na Publicagao (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP, Bra Maries, Julién, 1914- Hist6ria da filosofia / Juliin Marias ; prologo de Xavier Zubini ; epilogo de José Ortega y Gasset ; tradugio Claudia Berliner ; revi sio técnica Franklin Leopoldo e Silva, - Sio Paulo : Mantins Fon- tes, 2004. Titulo original: Historia de la fi:osofia. Bibliografia. ISBN 85-336-1992-8 1. Filosofia — Histéria I. Zubiri, Xavier. II. Ortega y Gasset. José. AU. Titulo. (04-3080 CDD-109 indices para catalogo sistematico: 1. Filosofia. Histéria 109 Todos os direitos desta edicdo para o Brasil reservados & Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheira Ramatho, 3301340 01325-000 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3108.6867 e-mail: info@marnnsfontes.com.br_http:ltwww.martingfontes.com.br Em memoria de meu mestre D. MANUEL GARCIA MORENTE que foi decano e alma da Faculdade de Filosofia e Letras onde conheci a Filosofia. Prélogo a primeira edicéo XVI Reflexao sobre um livro proprio (Prologo a tradugao inglesa) XXIX Historia da filosofia Introducao 3 Filosofia 3 A idéia de filosofia 4 Origem da filosofia 5 A filosofia e sua historia 7 Verdade e¢ historia 8 Filosofia grega Os PRESSUPOSTOS DA FILOSOFIA GREGA 11 I. Os PRE-SOCRATICOS 13 1. A escola de Mileto 13 O movimento 14 Tales de Mileto 15 Anaximandro 16 Anaximenes 17 2. Os pitagoricos 17 Pitagoras 17 A escola pitagorica 18 A matematica 19 3. Parménides e a escola de Eléia 21 Xenofanes 21 DICE Parménides O poema Os atributos do ente A opiniao Ontologia ou metafisica Zenao Melissos A influéncia de Parménides . De Heraclito a Demécrito O problema geral a) Heraclito Vida e carater O devir Td cogov b) Empédocles Vida Cosmologia Biologia As quatro raizes O amor e 0 édio c) Anaxdégoras Vida As homeomerias O “nots” d) Democrito Os atomistas Os atomos Materialismo O conhecimento 22 23 25 25 26 27 28 Il A SQEISTICA E SOCRATES 1. Os sofistas Protagoras Gorgias 2. Sécrates A figura de Socrates O saber socratico A ética socratica A transmissao do pensamento socratico III. PLatao Vida Escritos 1. As idéias A descoberta O ser das idéias O conhecimento 2. A estrutura da realidade O mito da caverna O esquema dos dois mundos O sentido do mito 3. Os problemas da teoria das idéias O ser e o ente A comunidade das idéias O bem O ente como género 4. O homem e a cidade Doutrina da alma Etica A cidade 5. A filosofia IV. ARISTOTELES Vida Obras 1. Os graus do saber 2. A metafisica O ente enquanto tal Deus A substancia 39 39 41 42 42 42 B 44 45 47 47 47 48 48 51 52 54 54 55 56 56 56 58 58 59 59 60 60 60 62 68 70 70 7) 72 3. Os modos do ser A analogia do ente Os quatro modos “Per se” e “per accidens” Categonas O verdadeiro e 0 falso A poténcia € 0 ato 4. A substancia Matéria e forma O movimento As causas Deus O ente como transcendental A esséncia 5. A logica O “légos” O contetado do “organon” 6.A fisica A ciéncia fisica A natureza 7. A doutrina da alma A esséncia da alma A estética 8. A ética O bem supremo A felicidade A vida contemplativa As virtudes 9. A politica A sociedade A linguagem Sociedade e Estado A organizacao do Estado V. O IDEAL DO SABIO 1. Os moralistas socraticos a) Os cinicos b) Os cirenaicos 2. O estoicismo As etapas do estoicismo A doutrina estdica O cosmopolitismo antigo 73 73 73 74 74 75 76 17 78 79 79 98 98 99 100 100 100 102 3. O epicurismo 4. Ceticismo e ecletismo VI. O NEOPLATONISMO Plotino Os filésofos neoplatonicos O cristianismo CRISTIANISMO E FILOSOFIA I, A PATRISTICA As fontes filosdficas da patristica Os problemas Os gnésticos Os apologetas Justino Tertuliano Os padres gregos Clemente de Alexandria Origenes Il. SANTO AGOSTINHO 1, A vida e a pessoa Obras 2. A filosofia A formulacao do problema Deus Aalma O homem no mundo 3. A significacao de Santo Agostinho Filosofia medieval L. A ESCOLASTICA 1. A época de transic¢aéo 2. O cardter da Escolastica A forma externa Filosofia e teologia IL. Os GRANDES TEMAS DA Ipape MEnIA 1. A criagao 104 106 109 109 iL 115 117 118 118 119 120 120 120 121 121 121 123 123 125 126 126 126 127 128 130 135 135 137 138 139 141 141 2. Os universais 3. A razdo IIL. Os FILOSOFOS MEDILVAIS 1. Scotus Erigena De Scotus Erigena a Santo Anselmo 2. Santo Anselmo Personalidade Fé e razao O argumento ontoldgico 3. O século XI A escola de Chartres Abelardo Os vitorinos Hugo de Sao Vitor Ricardo de Sao Vitor As heresias do século XII 4. As filosofias orientais a) A filosofia arabe Seu carater Os filésofos arabes no Oriente Os fildsofos arabes espanhdis b) A filosofia judaica 5. O mundo espiritual do século XIII O surgimento de Aristoteles A fundacao das Universidades As ordens mendicantes 6. Sao Boaventura Personalidade Doutrina Discipulos de Sado Boaventura 7. A filosofia aristotélico- escoldstica a) Santo Alberto Magno Vida € escritos 143 147 ISL 151 153 154 154 155 156 158 159 160 161 161 162 163 164 165 165 166 167 168 170 170 172 172 173 173 174 175 176 177 177 A obra de Alberto Magno b) Santo Tomas de Aquino Vida e obras A relacdo com Aristoteles Filosofia e teologia Divisao da filosofia A metafisica A alma A moral A acolhida do tomismo O neotomismo 8. Roger Bacon Personalidade Doutrina 9. A filosofia crista na Espanha Raimundo Lulio 10. Duns Escoto e Ockham a) Duns Escoto Vida e obras Filosofia e teologia A metafisica escotista b) Ockham Sua personalidade A filosofia de Ockham 11. Mestre Eckhart 12. A ultima fase da filosofia medieval Os ockhamistas O averroismo A mistica especulativa O século XV Filosofia moderna O Renascimento |. O MUNDO RENASCENTISTA 1. O contexto espiritual 2. O pensamento humanista Italia Franca Lspanha 178 179 179 180 182 183 183 185 186 186 187 188 188 189 189 190 191 192 192 192 193 194 194 194 195 196 197 197 198 198 203 203 203 206 206 207 207 Inglaterra Holanda Alemanha TI. O COMEGO DA FILOSOFIA MODERNA 1. Nicolau de Cusa Personalidade Filosofia 2. Giordano Bruno Vida . Doutrina 3. A fisica moderna Os fundadores da nova ciéncia da natureza Nicolau Copérnico Johannes Kepler Galileu Gatilei Isaac Newton A natureza O método 4.A Escolastica espanhola Os tedlogos Suarez O idealismo do século XVIL I. DESCARTES A vida e a pessoa Obras 1. O problema cartesiano A davida A teologia 2. O homem O “cogito” O critério de verdade 3. Deus O “génio maligno” A demonstracao de Deus A comunicagao das substancias A raz4o e o ser 208 208 209 211 212 212 212 216 216 216 217 217 217 217 218 218 219 219 221 222 223 227 229 229 230 231 231 232 233 233 234 234 234 235 237 237 ¥ 6 O problema da substancia 238 4. O mundo A “res extensa” Biologia 5. Racionalismo e idealismo 240 240 241 241 IL. O CARTESIANISMO NA FRANCA 243 1. Malebranche Personalidade Obras O ocasionalismo 2. Os pensadores religiosos Os jansenistas Pascal Bossuet Fénelon III. Espinosa Vida e escritos 1. Metafisica O ponto de partida A substancia Deus A comunicacao das substancias 2. Etica . O plano da “Etica” O homem 3. O ser como esforco de perduracao LV. LEIBNIZ Personalidade Obras 1. A situacdo filoséfica de Leibniz 2. A metafisica leibniziana Dinamismo As ménadas A harmonia preestabelecida O papel de Deus 243 243 244 244 246 247 247 248 249 251 251 252 252 252 253 253 254 254 254 255 257 257 258 258 260 260 260 262 263 3. O conhecimento Percepgado e¢ apercepgao Verdades de razdo e verdades cle fato A nogao individual O inatismo A logica 4. Teodicéia O otimismo metafisico A liberdade Deus na filosofia do século XVII O empirismo 1. A FILOSOFIA INGLESA 1. Francis Bacon Vida e escritos Sua doutrina 2. Hobbes A doutrina do Estado 3. O deismo A religiao natural A moral natural 4. Locke Vida e escritos As idéias A moral e o Estaclo 5. Berkeley Vida e obras Metafisica de Berkeley 6. Hume Personalidade Sensualismo Ceticismo 7A escola escocesa II, O ILUMINISMO J. O Ituminismo na Franca a) A Enciclopédia Pierre Bayle Os enciclopedistas 204 204 264 205 205 266 266 266 267 268 269 269 270 270 270 272 273 275 275 276 277 277 277 278 279 279 280 281 28) 281 282 283 285 286 286 286 287 O sensualismo e 0 materialismo Voltaire Montesquieu b) Rousseau 2. A “Aufkldrung” na Alemanha Wolff A estética Lessing A transicdo para o idealismo alemao 3. A doutrina da historia em Vico 4. Os iluministas espanhois If]. A FORMACAO DA EPOCA MODERNA 1. A filosofia e a historia 2. O Estado racionalista O absolutismo A ciplomacia 3. A Reforma O livre exame O problema da Reforma 4. A sociedade moderna a) A vida intelectual O tipo de intelectual O tema da natureza A unidade intelectual da Europa b) A transformacao social As novas classes Natureza e graca A Revolucgdo Francesa 5. A perda de Deus O idealismo alemao 1. KANT A) A doutrina kantiana Vida e escritos de Kant 1, Idealismo transcendental As lontes de Kant 287 288 289 290 291 291 292 292 292 293 294 297 297 298 298 298 299 300 301 302 302 303 304 304 304 305 306 307 311 311 311 311 313 313 O conhecimento transcendental A razao pura 2. A “Critica da razdo pura” a) Os juizos Juizos analiticos e juizos sintéticos Juizos “a priori” e “a posteriori” b) O espaco e o tempo Intuigdes puras A matematica c) As categorias Os juizos e as categorias A fisica pura d) A critica da metafisica tradicional A metafisica O argumento ontologico As idéias 3. A vazao pratica Natureza e liberdade O “factum” da moralidade Os objetos da metafisica O imperativo categérico A pessoa moral O primado da razao pratica Teleologia e estética B) O problema do kantismo 1. As interpretacées da filosofia kantiana A metafisica O passado filosofico a) O idealismo alemao b) O neokantismo c) A filosofia atual 2. O conhecimento 3, O ser O sere o ente O ser transcendental Deus 313 314 315 315 316 316 317 317 317 318 318 319 320 320 320 321 322 322 322 323 323 324 324 325 325 325 325 326 327 327 328 329 330 330 332 332 4. A filosofia 334 5. A filosofia do espirito 355 Conceito mundano da O espirito em Hegel 355 filosofia 334 Os estagios do espirito 355 IL. Ficute 337 a) O espirito subjetivo 356 : b) O espirito objetivo 357 Personalidade e obras 337 O direito 357 1. A metafisica de Fichte 338 A moralidade 357 Kant € Fichte 338 A eticidade 357 Oeu | 339 O Estado 358 A realidade 341 A historia universal 358 2. O idealismo de Fichte 341 ©) O espirito absoluto 359 “Tathandlung” 341 O absoluto eo pensar 360 Intuicdo e conceito 341 Os estagios do espirito Idealismo 342 absoluto 360 O saber 342 V. O PENSAMENTO DA EPOCA III. SCHELLING 343 ROMANTICA 363 Vida e obras _ 343 1. Os movimentos literdrios 363 As fases da filosofia de 2. A escola historica 364 Schelling 344 Personalidade filosofica 344 3. Schleiermacher e a Natureza e espirito 344 filosofia da religido 365 A identidade 345 Personalidade de A metafisica da liberdade 345 Schleiermacher 365 A religiao positiva 346 A teligido ; 365 IV Hecet 347 Teologos posteriores 365 Vida e obras 347 4, Derivacées do idealismo 366 1. Esquema da filosofia haa 366 hegeliana 348 8 Herbart 367 2. A “Fenomenologia do Krause 368 espirito” 350 Sanz del Rio 369 O saber absoluto 350 O socialismo 369 Dialetica 350 5. Schopenhauer 372 3. A logica 350 Personalidade 372 O sentido da Logica 350 O mundo como vontade Os estagios do e representacao 373 pensamento hegeliano 351 A marcha da dialética 352 A filosofia no século XIX 375 problema do panteismo 353.1 cupgra cA DO A ontologia hegeliana = 354 SENSUALISMO 379 4. A filosofia da natureza 354 1. Maine de Biran 380 A natureza 354 Situacao filoséfica 380 Os estagios 354 Metafisica 380 2. O espiritualismo 381 Os ecléticos 381 Os tradicionalistas 381 Balmes 382 I]. O POSITIVISMO DE CoMTE 385 Personalidade 385 L.A historia 386 A lei dos trés estados 386 Relativismo 387 2. A sociedade 387 O carater social do esptrito positivo 387 A sociologia 388 A religigo da humanidade 388 3. A ciéncia 389 A enciclopédia das ciéncias 389 A filosofia 390 4. O sentido do positivismo 390 TIT. A FILOSOFIA DE INSPIRAGAO POSITIVISTA 393 L. Os pensadores franceses 393 2. A filosofia inglesa 394 “O utilitarismo” 394 O evolucionismo 395 Herbert Spencer 395 3. A época positivista na Alemanha 396 O materialismo 396 As tentativas de superacao 396 O neokantismo 397 IV. A DESCOBERTA DA VIDA 399 1. Kierkegaard 309 2. Nietzsche 401 Personalidade 401 O dionisiaco e 0 apolineo 402 O eterno retorno 402 O super-homem 402 A moral dos senhores e a moral dos escravos 403 V. A VOLTA A TRADICAO METAFISICA 1. As primeiras tentativas Bolzano Rosmini e Gioberti 2. Gratry A filosofia de nosso tempo 1. BRENTANO 1. O lugar de Brentano na historia da filosofia Personalidade A situacao filoséfica de Brentano 2. A psicologia Fendmenos fisicos e psiquicos O método de Brentano Classificacao dos fendmenos psiquicos A percepcao 3. A ética A sancio O critério moral Evidéncia O amor justo 4. A existéncia de Deus A significagao de Brentano Il. A IDEIA DA VIDA 1. Dilthey Personalidade e escritos O ponto de vista de Dilthey A vida humana A filosofia O sentido da filosofia diltheyana 2. Simmel Vida e escritos A vida como transcendéncia 405 406 406 406 408 411 411 411 411 412 413 413 414 414 41s 416 416 416 416 417 418 418 419 419 419 420 422 424 425 426 426 426 TIL. IV. 1. 2. 3. O analitico e o sintético O tempo A esséncia da vida Bergson Personalidade O espaco e o tempo 427 428 429 429 429 A imeligéncia € a intuigao 430 O “ela vital” Blondel . Unamuno Vida e escritos O problema O método A FILOSOFIA DE LINGUA INGLESA . O pragmatismo Peirce James Os continuadores do pragmatismo . O personalismo . Tendéncias atuais Santayana Alexander Whitehead Russell Os movimentos mais recentes A FENOMENOLOGIA DE HUSSERL Husserl e sua escola Os objetos ideais O psicologismo A fenomenologia O ser ideal Problemas do ser ideal As significagées Palavra, significagdo e objeto Intengao e preenchimento Todo e parte 431 432 433 433 434 434 437 437 438 440 442 442 443 443 444 444 444 445 449 449 450 450 451 452 452 453 453 453 454 454 6. A filosofia fenomenologica A filosofia como ciéncia Implicagdo e complicagao 454 Juizos analiticos e sintéticos. . A consciéncia Vivéncia intencional A reducdo fenomenologica As esséncias . A fenomenologia como método e como tese idealista A definigao completa O método O idealismo fenomenoldgico rigorosa Idéia do mundo e ciéncia Filosofia transcendental A egologia pura A intersubjetividade monadolégica Espaco e tempo Os problemas da filosofia fenomenolégica V. A TEORIA DOS VALORES I. 3. VI O problema do valor O ponto de partida Objetividade do valor Valores e bens Irrealidade do valor Caracteristicas do valor Percepcao e cegueira para o valor Ser e valer . Scheler Personaliclade e escritos A filosofia de Scheler Hartmann . A FILOSOFIA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER Personalidade e obras 455 455 455 456 457 457 457 458 458 458 458 459 460 460 462 462 463 465 465 465 466 467 467 467 468 468 469 469 470 47) 473 473 ! VIL. 2. O problema do ser Ser € tempo Ser e ente O existir e o ser Existir e mundo A analitica do existir O método de Heidegger A filosofia . O andlise do existir A esséncia do existir O “estar no mundo” O mundo A coexisténcia A existéncia cotidiana A existéncia auténtica A verdade A morte A temporalidade . O “existencialismo” Jaspers Buber Marcel Sartre ORTEGA E SUA FILOSOFIA DA RAZAO VITAL . A figura de Ortega Vida Estilo intelectual Obras A génese da filosofia orteguiana a) A critica do idealismo Realismo e idealismo 475 475 475 476 476 477 477 477 478 478 478 479 479 480 480 480 482 483 485 486 487 487 489 493 493 493 494 495 497 497 497 O eve as coisas A consciéncia b) As etapas da descoberta Eu e circunstancia Perspectivismo Razao e vida . A razdo vital A realidade radical Razao vital e razao historica A filosofia . A vida humana Eu eo mundo O projeto vital A moral . A vida historica e social A historicidade da vida humana As geracées O homem e a gente O interindividual e o social Os usos Sociedade e dissociagéo . A Escola de Madri Morente Zubiri Gaos Ferrater Apéndice bibliografico Epilogo de José Ortega y Gasset 498 499 500 500 501 502 503 503 504 506 508 508 509 S11 512 513 513 S14 515 516 517 519 520 523 541 Prélogo a primeira edicaéo E com o maior carinho, querido Marias, que aceito apresentar ao pu- blico espanhol este livro, destinado a essa juventude de que vocé ainda faz praticamente parte. E 0 carinho se funde com a profunda satisfagdo de sen- tir que as palavras de uma catedra nao cairam totalmente no vazio, e servi- ram em parte para nutrir uma vida intelectual, que emerge cheia de entu- siasmo e vigo e se afirma pairando acima de todas as vicissitudes a que 0 planeta se encontra submetido. Presenciei suas primeiras curiosidades, guiei seus primeiros passos, endireitei algumas vezes suas sendas. Ao me despedir de vocé, jd a caminho da maturidade, fi-lo com a paz e 0 sossego de quem sente ter cumprido uma parcela da missdo que Deus lhe deu neste mundo. Peco que me desculpe por este orgulho vir envolto nas ondas de terror que invadem quem tem quinze anos a mais que vocé. Terror de ver estam- pados, em alguns lugares, pensamentos que, em seu momento, podem ter servido numa catedra ou no didlogo de um semindrio, mas que, destituidos de maturidade, nao estavam destinados a um piblico de leitores. Alguns, talvez, j4 ndo os comparta; vocé me conhece o suficiente para que isso nao lhe cause estranheza. Estive varias vezes a ponto de deixar correr minha pena na margem de suas paginas. Detive-me. Decididamente, um livro so- bre o conjunto da historia da filosofia quic¢d s6 possa ser escrito em plena mocidade, quando o impeto propulsor da vida pode mais que a cautela. Simpatico gesto de entusiasmo; em definitivo, é algo inerente a esséncia do discipulado intelectual. Sua obra tem, ademais, ratzes que reavivam minhas impresses de discipulo de um mestre, Ortega, ao magistério de quem também eu devo muito do que ha de menos ruim em meu trabalho. XVII HISTORIA DA FILOSOFIA Mas tudo isso so apenas as raizes remotas de seu livro. Resta o livro ent si; multiddo de idéias, a exposicdo de quase todos os pensadores e tam- beni de algumas épocas sao obra pessoal sua. Ao publica-lo, estou certo de que poe em mdos dos recém-ingressados numa Faculdade de Filosofia um instrumento de trabalho de consideravel precisdo, que lhes poupara pesqui- sus dificeis, lhes evitard passos perdidos no vazio e, sobretudo, fara com que se ponham a andar pelo caminho da filosofia. Coisa que para muitos purecerd ociosa, sobreiudo quando, ainda por cima, se dirige o olhar para o passado: uma historia..., agora que o presente urge, e uma historia da fi- losofia..., de uma suposta ciéncia, cujo resultado mais evidente € a discor- ddncia radical no tocante a seu proprio objeto! Contudo, ndo nos precipitemos. Ocupar-se da historia ndo é mera curiosidade. Seria se a historia fosse uma mera ciéncia do passado. Mas: 1° A historia ndo é uma mera ciéncia. 2° Nao se ocupa do passado uma vez que este ja ndo existe. Nao é uma simples ciéncia, mas existe uma realidade historica. A his- toricidade é, com efeito, uma dimensdo desse ente real que se chama homem. E esta sua historicidade nao provém exclusiva nem primariamente do fato de o passado avancar na direcdo de um presente e empurrd-lo para o porvir. Esta é uma interpretacdo positivista da historia, absolutamente in- suficiente. Supée, com efeito, que o presente é somente algo que passa, ¢ que passar é ndo ser o que uma vez foi. A verdade, pelo contrario, consiste antes em que uma realidade atual — portanto, presente —, 0 homem, esta constituida parcialmente por uma posse de si mesma, de tal forma que ao entrar em si se descobre sendo o que é, porque teve um passado e esta se realizando desde um futuro. O “presente” é essa maravilhosa unidade des- ses (rés momentos, cuja sucessiva manifestacdo constitui a trajetéria histd- ticd: 0 ponto em que o homem, ser temporal, tangencia paradoxalmente a cternidade. Sua intima temporalidade abre precisamente seu olhar para «a clernidade. Com efeito, desde Boécio a definicdo classica da eternidade involve, além da interminabilis vitae, de uma vida intermindvel, a total si- XVII PROLOGO A PRIMERA EDIGAO mul et perfecta possessio. Reciprocamente, a real:dade do homem presen- te esta constituida, entre outras coisas, por esse ponto de tangéncia concre- to cujo lugar geométrico se chama situaca nos descobrimos em uma situacdo que nos pertence constitutivamente e na qual se acha inscrito nosso peculiar destino, algumas vezes escolhido, outras, imposto. E embora a situacdo nao predetermine forcosamente o con- teudo de nossa vida nem de seus problemas, circunscreve evidentemente o dmbito desses problemas e, sobretudo, limita suas possibilidades de solugdo. Por isso, a historia como ciéncia é muito mais ume ciéncia do presente que uma ciéncia do passado. No que concerne a filosofia, isso é mais verdadeiro do que poderia ser para qualquer outra ocupacdo intelectual, porque c carater do conhecimen- to filosdfico faz dele algo constitutivamente problemdtico. Zytovpévn émotriin, o saber que se busca, era como costumava chamé-la Aristéte- les. Ndo estranha que aos olhos do leigo este problema tenha uns ares de . Ao entrarmos em nos mesmos discérdia. No curso da historia encontramos trés conceitos distintos de filosofia, que emergem em ultima instdncia de trés dimensdes do homem: 1° A filosofia como um saber sobre as coisas. 2° A filosofia como uma direc4o para o mundo e para a vida. 3° A filosofia como uma forma de vida e, portanto, como algo que acontece. Na verdade, essas trés concepcées da filosojia, que correspondem a trés concepcoes distintas da inteligéncia, conduzem a trés formas absoluta- mente distintas de intelectualidade. Delas o mundo, e as vezes até o pro- prio pensador, foi se nutrindo sucessiva ou simultaneamente. As trés con- vergem de uma maneira singular na nossa situacdo e recolocam, de forma pungente e urgente, o prdprio problema da filosofia e da inteligéncia. Essas trés dimensées da inteligéncia talvez nos tenham chegado distorcidas pelos cursos que a historia tomou, ¢ a inteligéncia comegou a pagar em si mesma sua propria deformacdo. Em sua tentativa de se reformar certamente re- servard para o futuro formas novas de intelectualidade. Como todas as precedentes, ainda assim serdo defeituosas, ou melhor, limitadas, o que ndo as desqualifica, porque o homem é sempre o que é gracas a suas limitacées, que lhe permitem escolher o que pode ser. E ao sentirem sua propria limi- XIX HISTORIA DA FILOSOFIA faguo, os intelectuais de entdo voltardo 4 raiz de onde partiram, tal como hoje 1etrocedemos para a raiz de onde partimos. E isto é a historia: uma si- tide que implica outra passada como algo real que possibilita nossa pré- pia situagdo, Ocupar-se da historia da filosofia néo é, pois, simples curiosidade, c 0 proprio movimento a que se vé submetida a inteligéncia quando em- preende precisamente a ingente tarefa de por-se em marcha desde sua raiz ultima. Por isso a historia da filosofia nao é extrinseca a propria fi- losofia, como poderia ser a historia da mecdnica em relagdo a mecénica. A filosofia nao é sua historia; mas a historia da filosofia é filosofia; por- que a entrada da inteligencia em si mesma na situacdo concreta e radi- cal em que se encontra instalada é a origem e a colocacao em marcha da filosofia. O problema da filosofia ndo é outro sendo o préprio pro- blema da inteligéncia. Com essa afirmacdo, que no fundo remonta ao velho Parménides, comecou a existir a filosofia na terra. E por isso Pla- tdo nos dizia que a filosofia é um silencioso didlogo da alma consigo mesma em torno do ser. Contudo, dificilmente o cientista comum conseguird livrar-se da idéia de que a filosofia, se nado em toda sua amplitude, pelo menos na medida em que envolve um saber sobre as coisas, se perde nos abismos de uma discordia que dissolve sua propria esséncia. E inegdvel que no curso de sua historia a filosofia entendeu de modos muito diversos sua propria definicao como um saber sobre as coisas. E a primeira atitude do filosofo deve consistir em ndo se deixar levar por duas tendéncias antagonicas que surgem espontaneamente num espirito principiente: a de tender para o ceticismo ou a de deci- dir aderir polemicamente a uma formula, preferindo-a a outras, ten- tando até mesmo forjar uma nova. Deixemos essas atitudes para ou- tros. Percorrendo essa rica listagem de definicées, é inevitdvel que se- jumos invadidos pela impressdo de que algo muito grave pulsa sob essa diversidade. Se forem realmente tdo distintas as concep¢ées da filoso- fia enquanto saber teorético, fica claro que essa diversidade significa precisumente que ndo so o contetido de suas solugdes, mas a propria ulvia de filosofia continua sendo problematica. A diversidade de defi- nicoes atualiza em nossa mente o proprio problema da filosofia, XX PROLOGO A PRIMEIRA EDICAQ, como um verdadeiro saber sobre as coisas de semelhante problema pudesse desqualificar 0 saber teorélico é con- denar-se para todo o sempre a nao entrar nem sequer no saguao da fi- losofia. No funda, os problemas da filosofia nada mais sdo sendo o pro- blema da filosofia. Mas talvez a questdo ressurja com nova angustia ao tentar pre- cisar a indole desse saber teorético. Nao é uma questdo nova. Faz mui- to tempo, hd séculos, a mesma pergunta vem sendo formulada de diver- sas maneiras: tem a filosofia um cardter cientifico? No entanto, essa maneira de apresentar o problema ndo é indiferente. De acordo com ela, o “saber das coisas” adquire sua expressdo plena e exemplar no que se chama “saber cientifico”. E esse pressuposto foi decisivo para o destino da idéia de filosofia nos tempos modernos. De fato, sob diversas formas observou-se reiteradas vezes que a filo- sofia estd muito longe de ser uma ciéncia; que na melhor das hipoteses ndo passa de uma pretensdo a ciéncia. E isso, quer conduza a um ceticismo em relacao a filosofia, quer conduza a um maximo otimismo em relacdo a ela, como acontece precisamente em Hegel, quando, nas primeiras paginas da Fenomenologia do espirito, afirma rotundamente que se propée “colabo- ray para que a filosofia se aproxime da forma da ciéncia..., mostrar que chegou o tempo de elevar a filosofia a categoria de ciéncia’; e quando mais tarde repete resolutamente que é preciso que a filosofia deixe de uma vez por todas de ser um simples amor a sabedoria para se tornar uma sabedo- na efetiva. (Para Hegel, “ciéncia” ndo significa uma ciéncia no mesmo sen- tido que as demais.) Com propésito diverso, mas com ndo menos energia, nas primeiras li- nhas do prélogo a segunda edi¢do da Critica da razao pura, Kant comeca dizendo o seguinte: “Se a elaboracdo dos conhecimentos... segue ou ndo o caminho seguro de uma ciéncia, é algo que logo se deixa julgar pelos resul- tados. Quando apés muito preparar-se e equipar-se esta elaboracdo cai em dificuldades tdo logo se acerca do seu fim ou se, para alcanga-lo, precisa freqiientemente voltar atras e tomar um outro caminho; quando se torna igualmente imposstvel aos diversos colaboradores por-se de acordo sobre a maneira como ¢ objetivo comum deve ser perseguido, entdo se pode estar sempre convicto de que um tal estudo se acha ainda bem longe de ter toma- : pensar que a existéncia XX] HISTORIA DA FILOSOFIA io. v cminho seguro de uma ciéncia, constituindo-se antes num simples ta- tut: diferentemente do que acontece precisamente na logica, na mate- mutica, na fisica etc., a metafisica “ndo teve até agora um destino tao favo- ravel que lhe permitisse encetar 0 caminho seguro da ciéncia, apesar de ser mais antiga que todas as demais”. Faz um quarto de século que Husserl publicou um vibrante estudo na revista Logos, intitulado “A filosofia como ciéncia estrita e rigorosa”. Nele, depois de mostrar que seria um contra-senso discutir, por exemplo, um problema de fisica ou de matematica fazendo entrar em jogo os pontos de vista de seu autor, suas opinides, suas preferéncias ou seu entendimento do mundo e da vida, defende vigorosamente a necessidade de também fazer da filosofia uma ciéncia de evidéncias apodicticas e absoluta. Em ultima instancia, nada mais faz sendo referir-se & obra de Descartes. Descartes, com grande cautela, mas no fundo afirmando o mesmo, comeca seus Principios de filosofia com as seguintes palavras: “Como nas- cemos em estado de infancia e emitimos muitos jutzos a respeito das coisas sensiveis antes de possuir 0 uso integro de nossa razdo, somos desviados, por muitos preconceitos, do conhecimento da verdade e acreditamos nao ser posstvel livrar-se deles a ndo ser tentando pér em divida, pelo menos uma vez na vida, tudo aquilo em que encontremos 0 menor indicio de in- certeza.” Desta exposi¢do da questdo deduzem-se aigumas observacées im- portantes. 1° Descartes, Kant, Husserl comparam a filosofia e as demais ciéncias do ponto de vista do tipo de conhecimento que proporcionam: possui ou ndo possui a filosofia um tipo de evidéncia apodictica compardvel ao da matematica ou ao da fisica teorica? 2 Essa comparacdo incide depois sobre 0 método que conduz a tais evidéncias: possui ou ndo a filosofia um método que conduza com seguran- ¢a, por necessidade interna e ndo sé por acaso, a evidencias andlogas as que obtém as demais ciéncias? 3* Isso conduz finaimente a um critério: na medida em que a filoso- fia ndo possui esse tipo de conhecimento e esse método seguro das demais riencias, seu defeito se transforma numa objecdo ao carater cientifico da fi- losofia. XXIL PROLOGO A PRIMEIRA EDICAO, Pois bem: diante dessa colocagdao da questdo devemos afirmar energi- camente: 1° Que a diferenca que Husserl, Kant, Descartes assinalam entre a ciéncia ¢ a filosofia, embora seja muito profunda, nao é, em definitivo, su- ficientemente radical. 2° Que a diferenca entre a ciéncia e a filosofia nado é uma objecdo ao carater da filosofia como um saber estrito sobre as coisas. Porque, afinal. a objecdo a filosofia procede de uma certa concep¢do da ciéncia que, sem prévia discussdo, se pretende aplicar univocamente a todo saber estrito e rigoroso. 1. A diferenca radical que separa a filosofia das ciéncias nao procede do estado do conhecimento cientifico e filosdfico. Escutando Kant, pare- ceria que a unica questdo é que, no que se refere a seu objeto, a filosofia, di- ferentemenie da ciéncia, ainda nao conseguiu dar nenhum passo firme que nos leve a seu objeto. E dizemos que essa diferenca ndo é bastante radical porque, ingenuamente, pressupde-se nela que o objeto da filosofia esta ai, no mundo, e€ que a unica coisa a fazer é encontrar 0 caminho seguro que nos leve a ele. A situacdo seria muito mais grave caso se constatasse que o proble- matico é 0 proprio objeto da filosofia: existe o objeto da filosofia? E isso o que separa radicalmente a filosofia de todas as outras ciéncias. Se, por um lado, estas partem da posse de seu objeto e simplesmente procuram estudd-lo, a filosofia, por sua vez, tem de comegar por justificar ati- vamente a existéncia de seu objeto; sua posse é 0 término e ndo o pres- suposto de seu estudo, e ela sé pode se manter reivindicando cons- tantemente sua existéncia. Quando Aristoteles a chamava Cntovuevy emotiipn, entendia que o que se buscava nao era tanto o método mas 0 proprio objeto da filosofia. Que significa que a propria existéncia de seu objeto é problematica? Se apenas se ignorasse qual é o objeto da filosofia, o problema, embo- ra grave, seria no fundo simples. Seria questao de dizer ou bem que a hu- manidade néo conseguiu ainda descobrir esse objeto, ou que este é suficien- temente complicado para que sua apreensdo resulte obscura. Na verdade, foi o que aconteceu durante milénios com todas as ciéncias, e por isso seus objetos nao foram descobertos simultaneamente na historia: por isso, algu- XXIII HISTORIA DA FILOSOFIA mas ciéncias nasceram depois de outras. Qu entdo, caso se constatasse que esse objeto € complicado demais, seria questdo de tentar mostrd-lo apenas para as mentes que tivessem alcancado maturidade suficiente. Tal seria a dificuldade de quem pretendesse explicar a um aluno de matematica de uma escola primdria o objeto proprio da geometria diferencial. Em qual- quer desses casos, e considerando-se todas as vicissitudes historicas ou difi- culdades didaticas, tratar-se-ia simplesmente de um problema déictico, de um esforco coletivo ou individual para indicar (déixis) qual é esse objeto que anda perdido por at entre os demais objetos do mundo. Tudo leva a crer que nao se trata disso. O cardter problematico do objeto da filosofia nao decorre apenas do fato de que efetivamente ndo se tenha reparado nele, mas do fato de que, diferentemente de qualquer outro objeto possivel, entendendo aqui por ob- jeto o termo real ou ideal sobre o qual versa nao sé uma ciéncia, mas qual- quer outra atividade humana, ele é constitutivamente latente. Nesse caso é claro que: 1° Este objeto latente nao é de maneira nenhuma compardvel a qual- quer outro objeto. Portanto, tudo o que se queira dizer sobre o objeto da fi- losofia tera de se mover num plano de consideracdes radicalmente alheio do de todas as demais ciéncias. Se toda ciéncia versa sobre um objeto real, ficticio ou ideal, o objeto da filosofia nao é nem real, nem ficticio, nem ideal: € outra coisa, tao outra que ndo € coisa. 2° Compreende-se entdo que esse abjeto peculiar nao pode estar sepa- rado de nenhum outro objeto real, ficticio ou ideal, mas inclutdo em todos eles, sem se identificar com nenhum. E isso que queremos dizer ao afirmar que ele é constitutivamente latente: latente sob todo objeto. Como 0 homem sé encontra constitutivamente voltado para os objetos reais, ficticios ou ideais, com os quais constréi sua vida e elabora suas ciéncias, esse objeto constitutivamente latente ¢ também, por sua propria indole, essencialmen- te fugidio. 3° Aquilo de que esse objeto escapa é precisamente do olhar simples da mente. Diferentemente, pois, do que pretendia Descartes, 0 objeto da fi- losofia jamais pode ser descoberto formalmente por uma simplex mentis inspectio. Depois de ter apreendido os objetos sob os quais pulsa, é€ neces- sdrio um novo ato mental que opere sobre o anterior para colocar o objeto XXIV PROLOGO A PRIMEIRA EDICAO, numa nova dimensdo que torne, ndo transparente, mas vistvel essa outra dimensdo sua. O ato com que o objeto da filosofia se torna patente nao é uma apreensao, nem uma intuigdo, mas uma reflexdo. Uma reflexdo que nao descobre, portanto, um novo objeto, seja ele qual for. Nav & um ato que enriquega nosso conhecimento sobre o que as coisas sao. Ndo se deve espe- rar da filosofia que nos conte, por exemplo, a respeito de forcas fisicas, or- ganismos ou tridngulos, algo que seja inacessivel para a matematica, a fisi- ca ou a biologia. Enriquece-nos meramente por nos conduzir a outro tipo de consideracao. Para evitar equivocos, convém observar que a palavra reflexao é em- pregada aqui em seu sentido mais inocente e vulgar: um ato ou uma série de atos que de uma forma ou outra retornam para o objeto de um ato an- terior através deste. Reflexdo ndo significa aqui simplesmente um ato de meditacdo, nem um ato de introspeccdo, como quando se fala de conscién- cia reflexa por oposigdo a consciéncia direta. A reflexdo em questdo consis- te numa série de atos por meio dos quais se coloca numa nova perspectiva todo o mundo de nossa vida, incluindo os objetos e todos os conhecimentos cientificos que tenhamos adquirido sobre eles. Observe-se em segundo lugar que o fato de a reflexdo e 0 que ela nos revela serem irredutiveis a atitude natural e ao que ela nos revela nao sig- nifica que espontaneamente, num ou noutro grau, numa ou noutra medi- da, ela ndo seja tao primitiva e ingénita como a atitude natural. Il. Conclui-se, portanto, que essa diferenca radical entre ciéncia ¢ fi- losofia nao se volta contra esta ultima como uma objecdo. Nao significa que a filosofia nao seja um saber estrito, mas que é um saber distinto. Se a cién- cia € um conhecimento que estuda um objeto que esta ai, a filosofia, por tratar de um objeto que por sua propria indole escapa, um objeto que é evanescente, sera um conhecimento que precisa perseguir seu objeto € reté-lo ante o olhar humano, conquista-lo. A filosofia consiste apenas na constituigdo ativa de seu proprio objeto, na colocagdo em funcionamento da reflexdo. O grave erro de Hegel foi no sentido inverso do kanliano. Este, em ultima instdncia, destitui a filosofia de um objeto proprio fazendo com que ela incida tao-somente sobre nosso modo de conhecimento. Hegel, por sua vez, substantiva o objeto da filosofia fazendo dele o todo de onde emer- gem dialeticamente e onde se mantém, também dialeticamente, todos os demais objetos. HISTORIA DA FILOSOFIA. Por enquanto ndo é necessdrio precisar 0 cardter mais profundo do ob- jeto da filosofia e de seu método formal. A unica coisa que me importa aqui é sublinhar, contra todo irracionalismo, que o objeto da filosofia é estrita- mente objeto de conhecimento. Mas que este objeto é radicalmente distinto de todos os demais. Se qualquer ciéncia e qualquer atividade humana con- sidera as coisas como sdo e tal como sdo (we éottv), a filosofia considera as coisas enquanto sao (jeotw), (Arist.: Metaf., 1064 a 3). Em outras pala- vras, o objeto da filosofia é transcendental. E, como tal, apenas acessivel numa reflexdo. O “escandalo da ciéncia” ndo s6 nao é uma objecao a filo- sofia a ser resolvida, como é uma dimensdo positiva a ser conservada. Por isso Hegel dizia que a filosofia é 0 mundo ao revés. A explicacdo desse es- candalo é precisamente o problema, o contetido ¢ 0 destino da filosofia. Por isso, embora o que Kant dizia nao fosse correto — “ndo se aprende filosofia, 86 se aprende a filosofar” —, é absolutamente certo que so se aprende filo- sofia pondo-se a filosofar. E vocé esta comecando a filosofar. Ou seja, comecard a se debater com todo tipo de razdes € problemas. Permita-me que no umbral dessa vida que promete ser tdo fértil, eu lhe traga a memoria aquela passagem de Platdo em que ele prescreve formalmente a youvacia. do entendimento: “E belo e divino 0 impeto ardente que te lanca as razées das coisas; mas exer- cita-te e adestra-te nesses exercicios que aparentemente ndo servem para nada, e que o vulgo chama de palavrorio sutil, enquanto ainda és jovem; caso contrario, a verdade te escapara das mdos” (Parm., 135 d). Nao é ta- refa nem facil nem grata. Nao é facil; af esta a sua HISTORIA DA FILO- SOFIA para demonstra-lo. Ndo € grata porque envolve, hoje mais que nunca, uma violéncia e uma retorsdo intimas para entregar-se a verdade: “A verdade esta tao ofuscada nestes tempos — dizia Pascal sobre o seu tempo —e a mentira esta tao assentada, que, a menos que se ame a ver- dade, ja ndo é possivel reconhecé-la” (Pensam., 864). E porque, como dizia Sdo Paulo sobre sua época, “os homens retém a verdade agrilhoada” (Rm 1,19). O pecado contra a Verdade foi sempre o grande drama da his- toria. Por isso Cristo pedia a seus disctpulos: “Consagra-os na verdade” XXVI PROLOGO A PRIMEIRA EDICAO Jo 17,17). E Sao Jodo exortava seus fieis a serem “colaboradores da ver- dade” (3Jo 8). Unido neste empenho comum, abraca-o efusivamente seu velho amigo. X. Zusiri Barcelona, 3 de dezembro de 1940. XXVII Reflexao sobre um livro proprio (Prélogo a tradugao inglesa) Debrugo os olhos sobre este livro de titulo genérico, Historia da filo- sofia, vinte e quatro anos depois de ter terminado de escrevé-lo, agora que vai ser lancado em Nova York traduzido para o inglés, como se olha para um filho ja crescido que vai empreender uma longa viagem. Foi meu pri- meiro livro; também o de melhor fortuna editorial: desde que foi publicado pela primeira vez em Madri, em janeiro de 1941, teve vinte edigoes espa- nholas; é 0 livro em que estudaram a historia da filosofia numerosas tur- mas de espanhéis e hispano-americanos; em 1963 foi traduzido para o portugués; agora ingressa no mundo de lingua inglesa. Ndo é estranho que um livro espanhol de filosofia tenha tido tanta sorte? Como, apesar do enor- me prestigio que na época a filosofia alemé tinha na Espanha e na América hispdnica, pode este livro de um desconhecidu espanhol de 26 anos so- brepujar quase por completo as obras alemds que tinham dominado o mer- cado é as universidades de lingua espanhola? E como isso foi possivel tra- tando-se de um livro que invocava desde sua primeira pagina a tradicao intelectual de 1931 a 1936, que acabava de ser proscrita e condenada ao ostracismo e ao esquecimento? Quem sabe isso se explique voltando as ratzes desta Historia da filo- sofia. Eu estudara na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Madri de 1931 a 1936. O esplendor que o ensino dessa Faculdade alcan- cou era tao superior a tudo o que precedera e, afora isso, durou tdo pouco, que hoje mal parece crivel. O departamento de filosofia, sobretudo, tinha adquirido um brilhantismo e um rigor desconhecidos na Espanha antes e depois daquele periodo. Inspirava-o e 0 animava um dos maiores criadores da filosofia de nosso tempo, que era ao mesmo tempo um professor excep- cional: Ortega. Para ele, a filosofia era assunto pessoal; era sua prépria vida. XXIX HISTORIA DA FILOSOFIA. Os estudantes de Madri assistiam enldo ao espetaculo fascinante e impro- vavel de uma filosofia sendo feita diante deles. Aqueles anos eram os tlti- mos de uma das etapas mais brilhantes e fecundas do pensamento europeu, entre Ilusserl e Heidegger, de Dilthey a Scheler, de Bergson a Unamuno. Sentia-se que a filosofia estava descobrindo novas possibilidades, que era um tempo germinal. (Acho que foi efetivamente assim, e que o fato de hoje seu horizonte parecer menos promissor ndo se deve a que essas possibili- dades ndo fossem reais e nao continuem existindo, mas a certos desalentos, descuidos € paixdes nefastas que vez por outra acometem 0 homem em algumas épocas.) Havia um ambiente auroreal na Faculdade de Filosofia de Madri, corroborado pela evidencia de se estar vendo erguer-se, como um galedo num estaleiro, uma nova filosofia de grande porte. A imagem do estaleiro ndo é inadequada, porque aquela Faculdade comecava a ser uma escola. Além de Ortega, lecionavam nela Manuel Gar- cia Morente, Xavier Zubiri, José Gaos, todos discipulos seus, e cada qual de todos os outros mais velhos, colaboradores entdo na mesma empresa co- mum. Podia-se pensar, sem extremar demais a esperanca, que talvez um dia o principal meridiano da filosofia européia fosse passar, pela primeira vez na histéria, por Madri. A Faculdade de Filosofia estava persuadida de que a filosofia é insepa- ravel de sua historia; de que consiste naquilo que os filésofos do passado fi- zeram e que chega até a atualidade; em outras palavras, de que a filosofia é historica e a historia da filosofia é filosofia estrita: a interpretacao criadora do passado filoséfico desde uma filosofia plenamente atual. Por isso voltava- se para os classicos do pensamento ocidental sem distingao de épocas: liam-se — quase sempre em suas linguas originais —. estudavam-se, comentavam-se gregos, medievais, modernos, dos pré-socraticos aos contempordneos, tudo isso sem qualquer sinal de “nacionalismo” nem “provincianismo”; a Espa- nha, que entre 1650 e 1900 permanecera isolada da Europa em muitas di- mensées — embora nao tanto como as vezes se pensa — tinha chegado a ser um dos paises em que se tinha uma visao menos parcial do horizonte efetivo da cultura; e o pensamento espanhol — filosoficamente muito modesto até © presente ~ ndo era objeto de nenhum trato privilegiado. Em todos os cursos estudavari-se os classicos. Nao s6 Zubiri, em seu curso de Histéria da Filosofia, introduzia-nos nos pré-socraticos e em Aris- XXX

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