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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA E SAÚDE: PSICOLOGIA HOSPITALAR


Mônica Aparecida Zappa Rezende

TENTANDO COMPREENDER O SIGNIFICADO


DA HEMODIÁLISE PARA O PACIENTE RENAL
CRÔNICO A PARTIR DA FENOMENOLOGIA
EXISTENCIAL

São Paulo
2006
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Mônica Aparecida Zappa Rezende

TENTANDO COMPREENDER O SIGNIFICADO DA


HEMODIÁLISE PARA O PACIENTE RENAL
CRÔNICO: ESTUDO DE CASO ATRAVES DA
ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL

Monografia apresentada como


exigência parcial para obtenção do
título de Especialista em Psicologia
Hospitalar e Psicologia da Saúde
pelo programa de estudos pós
graduados em Psicologia Clínica e
Psicossomática da PUC-SP e pela
COGEAE.

Orientadora: Maria Cecília Roth

São Paulo
2006
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer ao meu marido Francisco que tornou possível


em todos os sentidos a viabilidade e a concretização de mais esta etapa do meu
caminho profissional. Sem o seu apoio e amizade este momento não seria possível.
Obrigada pelo carinho e força nos momentos de desânimo. Meus sinceros
agradecimentos por ter estado junto comigo, mais uma vez, neste percurso.
À minha pequena filha Ana Carolina por abster-se de minha
companhia, em seus momentos de necessidade de aconchego e atenção e por ter
compreendido esta fase da minha vida, jamais reclamando, compactuando comigo
nos momentos em que eu precisei fazer uma leitura, nas ausências de casa por
causa do curso, estágio e nas várias noites que não a acalentei. Para você, procuro
tornar-me um ser humano melhor.
À minha mãe Célia, por ter feito do tema “Estudo”, o discurso
principal de sua vida, incentivando-me desde criança a buscar a sabedoria nos
bancos escolares e nunca desistir de percorrer todos os degraus da evolução e
realização como pessoa.
À minha querida orientadora Maria Cecília Roth, tão profissional
quanto ética, objeto de minha admiração pela postura impecável, tanto, que me fez
pensar: “Quando eu crescer, quero ser igual a ela”, obrigada pela paciência e
disponibilidade para o aprimoramento e aprendizado, pela oportunidade de reflexão
e acolhimento, meus sinceros e carinhosos agradecimentos.
À professora Terezinha Kalil, por ter me acolhido desde o primeiro
momento, transmitindo-me informações, orientando-me nos procedimentos para a
realização do estágio no hospital e também em todas as questões pertinentes ao
curso, com atenção e disponibilidade, meus agradecimentos sinceros e carinhosos.
À Equipe de Nefrologia, doutoras e doutores: Anita, Rose, Vitória,
Ana Paula, Karilla, André, Miranda e Sérgio, combatentes silenciosos de uma
batalha diária pela vida, que me fizeram acreditar que a dignidade é praticada desde
as pequenas atitudes até as maiores ações que um ser humano se propõe a
realizar, recebendo-me de braços abertos e imensa capacidade de compartilhar e
respeitar outros profissionais da saúde, sempre generosos, transmitindo-me e
esclarecendo-me sob todos os aspectos à respeito do andamento dos casos e
funcionamento de uma equipe de nefrologia, presentes em minhas reflexões além
de terem demonstrado um carinhoso sentimento de acolhimento e amizade, meus
mais sinceros agradecimentos e admiração por terem contribuído para o meu
aperfeiçoamento profissional.
Aos pacientes que, ao longo destes dois anos, por circunstâncias do
destino, se foram deste mundo durante este período, espero ter conseguido fazer-
lhes a diferença de algum modo, como profissional, contribuindo para que pudessem
alcançar algum conforto mental e psicológico nos momentos finais de suas
existências, meus saudosos respeitos.
À minha querida sobrinha Mariana que muito me auxiliou para que
este trabalho se concretizasse, com seus conhecimentos sobre informática e sua
doce personalidade, paciente e prestativa, meu muito carinhoso agradecimento.
Aos pacientes que muito me auxiliaram e protagonizaram comigo
neste momento da história da minha vida, sempre atuantes em suas falas na
hemodiálise, nunca negando informações e sempre abertos para que acontecesse a
possibilidade da prática psicológica em seu meio, demonstrando sentimento de
confiança e respeito, meu sincero sentimento de gratidão.
Finalmente, às minha companheiras de curso, e também a todos os
encontros e desencontros que vivenciei nestes dois anos, que ficarão na memória,
porque fundamentaram o meu progresso como pessoa e como profissional, além do
que, significaram a ponte para mais uma etapa cumprida da minha existência.
Saudades.
MÔNICA APARECIDA ZAPPA REZENDE. Tentando Compreender o Significado da
Hemodiálise para o Paciente Renal Crônico : Estudo de caso a partir da abordagem
fenomenológica existencial
Orientadora: Maria Cecília Roth

Palavras-Chave: Renal Crônico, Hemodiálise, Fenomenologia.psicologia hospitalar

RESUMO

O presente trabalho pretende compreender o significado da


hemodiálise para o paciente renal crônico. Nos capítulos faz-se um levantamento
teórico sobre temas relevantes para a compreensão do fenômeno estudado:
“Paciente Renal Crônico, “O que é Hemodiálise” e os “Aspectos Emocionais e
Psicológicos do Paciente Renal Crônico”. A pesquisa teve como instrumento a
Entrevista Aberta com uma paciente renal crônica em processo de hemodiálise. Os
dados obtidos através da entrevista foram analisados com base nos princípios
metodológicos do enfoque fenomenológico da personalidade de Yolanda Cintrão
Forghieri.
O que se pode perceber através do relato da paciente renal
crônica, é que o processo de hemodiálise se configura através de uma série de
questões e situações vivenciadas pela paciente, tais como: Sentimentos
Ambivalentes, Sentimento de Desânimo, Contato com a Morte, Aparência,
Relacionamento com a Equipe, Espera pelo Transplante, Planejamento para o
Futuro, Tentativa de Mudança, Preocupações, Incertezas.
Com o material levantado, foi realizada uma análise compreensiva
da entrevista, o que possibilitou uma descrição do fenômeno, tal como ele aparece
para esta paciente. Percebeu-se que apesar de todas as situações referentes às
limitações, prejuízos, sofrimentos e estagnação vivenciadas pela paciente renal
crônica, estes não impediram-na de desenvolver um modo sadio de existir, o que
permitiu que a mesma fosse capaz de se abrir e de se decidir livremente acerca de
suas possibilidades.
Este trabalho trata-se de um esforço em se constituir uma
compreensão sobre este tema, sem a pretensão de que se alcance uma verdade
única e imutável.
SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO................................................................................................ 07

II. REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................. 08


Capítulo 1 – Paciente Renal Crônico....................................................... 08
Capítulo 2 – O que é Hemodiálise........................................................... 12
Capítulo 3 – Aspectos Psicológicos e Emocionais do Paciente em
Hemodiálise....................................................................... 16

III. METODOLOGIA........................................................................................... 30

IV. ANÁLISE E DISCUSSÃO............................................................................. 34


IV.1 – Análise da Entrevista..................................................................... 34
IV.2 – Análise Compreensiva.................................................................. 36

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 41

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 44

ANEXOS
Anexo 1 – Termo de Consentimento....................................................... i
Anexo 2 - Entrevista................................................................................ iii
7

I. INTRODUÇÃO

O interesse pelo tema surgiu devido a um estágio realizado em


uma Equipe de Nefrologia, Transplante de Órgãos e Hemodiálise de um Hospital
Geral na Cidade de São Paulo.

Percebendo o sofrimento dos pacientes e a necessidade de


acolher suas dores diante do processo de hemodiálise, iniciei esta busca ao longo
deste um ano e meio de atuação nesta equipe, ouvindo os relatos e participando do
cotidiano de uma enfermaria de hemodiálise. Muitos foram os questionamentos que
me foram se apresentando, e a necessidade de adentrar neste cenário do renal
crônico foi aumentando na medida em que percebia a necessidade de ajudá-los a
suportar esta condição de cronicidade, tentando compreender o significado desta
vivência.

De todas as teorias psicológicas existentes, ao trabalhar no


Hospital e vivenciar os relatos dos pacientes renais crônicos em uma hemodiálise, a
que mais respondeu a esta busca e inquietação para tentar compreender a
essência do que pode significar para este paciente em questão o processo de
hemodiálise por ele vivenciado, foi a linha com abordagem fenomenológica
existencial, visto que este enfoque permite lançar um olhar para o desvelar da
experiência, tal qual esta demonstra, revelando assim, as possibilidades de contato
com a gama de significados que a constituem.

Sabe-se que a fenomenologia não estabelece pressupostos. Será


apresentado nesta introdução uma retomada do que já foi pensado e refletido sobre
este tema.

Desta maneira, este trabalho tem como característica principal a


análise, ou seja, a reflexão será predominantemente baseada no conteúdo que será
apresentado através das entrevistas com os pacientes.

Os capítulos à seguir pretendem apresentar uma das


possibilidades de direções para o caminho rumo à compreensão deste aspecto do
cenário existencial.
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II. REFERENCIAL TEÓRICO

CAPÍTULO 1 – PACIENTE RENAL CRÔNICO

Segundo a Associação Brasileira de Nefrologia (2004), um


paciente sofre de insuficiência renal crônica quando seus rins não são mais
capazes de filtrar as impurezas do sangue para poder conseguir o equilíbrio de sais
minerais. Existem doenças renais que não são graves. Outras pessoas apresentam
doenças como a diabetes e a hipertensão, que se não tratadas de maneira correta,
podem levar à falência total do funcionamento renal. E, por fim, existem pessoas
que quando sentem alguma “coisa”, já estão com os rins totalmente paralisados.

De acordo com Ajzen & Schor (2002 apud DYNIEWICZ, ZANELLA


& KOBUS, 2004, p. 199-202), a Insuficiência Renal Crônica (IRC) é doença de alta
mortalidade, com incidência e a prevalência de pacientes aumentando
progressivamente no Brasil, bem como em todo o mundo.

Segundo um inquérito realizado pela Sociedade Brasileira de


Nefrologia, entre 1996 e 1887, as principais doenças reportadas como causa da
IRC são Hipertensão Arterial, Glomerulonefrite e Diabetes Mellitus.

A perda das funções renais, para que se atinja a cronicidade,


ocorre de forma lenta, progressiva e irreversível. Assim sendo, esta perda vai
resultando em processos adaptativos que, até um certo ponto, mantém o paciente
sem sintomas da doença.

No início do comprometimento da função renal, o indivíduo


apresenta-se assintomático. A insuficiência renal torna-se crônica, para as autoras
(apud RIELLA, 1996), quando há deterioração irreversível da função renal e
elevação persistente da creatinina no organismo. Isto ocorre por falha na
capacidade do organismo em manter o equilíbrio metabólico e eletrolítico,
ocasionando, conseqüentemente, a uremia.

Muitos são os sinais e sintomas que aparecem quando a pessoa


começa a ter problemas renais. Alguns são mais freqüentes, embora eles não
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sejam necessariamente conseqüência de problemas renais; de acordo com a


Associação Brasileira de Nefrologia (2004):

• Alteração da cor da urina (cor de Coca-Cola ou sanguinolenta);

• Passar a urinar toda hora;

• Anemia (palidez);

• Levantar mais de uma vez à noite para urinar;

• Dor lombar;

• Náuseas e vômitos freqüentes de manhã;

• Pressão sangüínea elevada;

• Fraqueza e desânimo constante;

• Inchaço nos tornozelos ou ao redor dos olhos.

Para Dyniewicz, Zanella e Kobus (2004 apud RIELLA, 1996), são


definidas quatro fases de instalação da doença:

1ª fase: Diminuição da função renal – redução de mais ou menos 25%


da filtração glomerular. Habitualmente não há aumento da uréia plasmática
(azotemia).

2ª fase: Insuficiência renal – Há redução de aproximadamente 75% da


função renal. O rim já não tem capacidade de manter a homeostasia interna. Ocorre
nictúria, levando à distúrbios na concentração da urina, anemia e moderada
azotemia.

3ª fase: ocorrem anormalidades mais persistentes no meio interno:


azotemia intensa, anemia, acidose metabólica, hiperfosfatemia, hipercalcemia e
hiponatremia. Geralmente, a função renal está interior a 20% da sua capacidade.

4ª fase ou fase terminal – predominam os sinais e sintomas da uremia


(síndrome urêmica), ao que indicam uma terapia substitutiva na forma de diálise ou
transplante.

A hipertensão pode ser a causa ou também o resultado da


enfermidade renal, pois o controle da pressão arterial sangüínea também é uma
função dos rins. Estes controlam as concentrações de sódio e a quantidade de
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líquidos no corpo; quando os rins falham e não cumprem com estas funções vitais,
a pressão sangüínea pode elevar-se, podendo ocasionar o inchaço ou edemia. Os
rins secretam uma substância chamada renina, responsável pelo estímulo à
produção de um hormônio que eleva a pressão sangüínea. Quando os rins não
funcionam bem, a renina é produzida em excesso e isto também pode resultar em
hipertensão. Ao mesmo tempo, a hipertensão prolongada danifica os vasos
sangüíneos, causando a falha renal.

Com relação às diversas complicações enfrentadas pelos


portadores de IRC, estas autoras (apud RIELLA, 1996) citam como problemas
neurológicos as alterações do estado de alerta e do sono, cefaléia, convulsões,
irritabilidade, dificuldade de concentração. Dentre os problemas músculo-
esqueléticos encontram-se, segundo as mesmas autoras ao citarem Riella (1996),
as câimbras, dores ósseas, ptose dos pés e osteodistrofia renal. A palidez, a
hiperpigmentação solar, pele seca e escamosa, prurido e alterações capilares são
alguns dos acometimentos dermatológicos, cujo indivíduo portador de Insuficiência
Renal Crônica se depara. As autoras dizem que Riella (1996) descreve os
problemas endócrinos decorrentes da IRC destacando a possibilidade de
hiperparatireoidismo, amenorréia ou hipomenorréia, decréscimo da fertilidade e
deficiência estrogênica na mulher; já nos homens, verifica-se atrofia testicular,
redução da espermatogênese e na síntese de testosterona, podendo ocorrer
também diminuição da luz vascular, fibrose e esclerose do epidídimo, levando a um
dano reprodutivo irreversível. Em ambos, a disfunção sexual com diminuição da
libido está presente.

O diabetes, segundo a Associação Brasileira de Nefrologia (2004),


é uma das mais importantes causas de perda das funções renais, com um
crescente número de casos. Depois de cerca de 15 anos de diabetes, alguns
pacientes começam a ter problemas renais. As manifestações iniciais são: a perda
de proteínas na urina, o aparecimento de pressão arterial alta e, mais tare, o
aumento da uréia e da creatinina no sangue.

Ainda de acordo com a ABN (2004), a glomerolunefrite (nefrite


crônica) é uma das causas, também muito freqüente de insuficiência renal, que
resulta em uma inflamação crônica dos rins. Depois de algum tempo, se a
11

inflamação não é curada ou controlada, pode haver perda total das funções dos
rins.

Outras causas de insuficiência renal são: rins policísticos (grandes


e numerosos cistos crescem nos rins, destruindo-os), piolonefrite (infecções
urinárias repetidas devido à presença de alterações no trato urinário, pedras,
obstruções etc.) e doenças congênitas (“de nascença”).

Mariano (2004) compara a realidade do paciente renal crônico com


o mito grego antigo de “Scylla” e “Charybdis”; nele, os marinheiros enfrentaram uma
área perigosa na costa da Sicília, através da qual precisavam passar, de um lado
aguardava “Scylla”, um monstro de seis cabeças, cujos membros inferiores eram
serpentes e cães ferozes; no outro lado havia “Charybdis”, um terrível redemoinho.
Sob o olhar da equipe nefrológica, segundo a autora, tem-se uma situação análoga
em uma pessoa enfrentando uma doença renal em estágio final, que está presa
entre a morte certa ou uma vida dependente do suporte tecnológico. Para Mariano
(2004):

[...] este dilema reflete-se na literatura a cerca da insuficiência renal e de


seu tratamento. Freqüentemente são citadas frases como: “medo da morte
e da vida”, “vivendo com tempo emprestado”, “escravo de uma máquina” e
outras [...]
12

CAPÍTULO 2 – O QUE É HEMODIÁLISE

Segundo o professor Otto Busato*. Quando o paciente renal atinge


a fase final de sua doença, ou seja, perde-se a função renal de modo irreparável,
impedindo a filtragem das toxinas, cabe a este paciente, atualmente, três métodos
de tratamento, que substituem a função dos rins: a diálise, a hemodiálise e o
transplante renal. Estes métodos, apesar de seus problemas, segundo Busatto
(1975), irão proporcionar a sobrevivência, com maior ou menos conforto
dependendo de inúmeros fatores. “Assim, cabe-lhes o direito de tomarem a decisão
final”.

A hemodiálise, portanto, é um tratamento que significa a tentativa


de sobrevivência do paciente ao atingir a fase final de sua doença. Isto significa que
a pessoa terá que se deslocar de sua casa, em geral, três vezes por semana e terá
que ficar “ligado” à máquina por um período aproximado de quatro horas por seção.
Esta máquina representa um “rim artificial”, externo, que irá filtrar o sangue e
devolvê-lo ao corpo do paciente.

Para Meleti (2003), é um processo que consiste na circulação do


sangue fora do organismo do paciente, através do acesso vascular. O acesso se dá
por meio de uma derivação ou de uma fístula, que são obtidas através de técnicas
operatórias.

De acordo com Meleti (2003), uma boa técnica operatória


proporciona a sobrevivência da fístula ou derivação por um período de longo prazo.
Geralmente usa-se, para isto, segundo a autora, a artéria radial e/ou a veia cefálica,
tendo a derivação uma vida média que pode variar de 8 a 17 meses para o lado
arterial e de 7 a 10 meses para o lado venoso.

Busato (2001) diz que para realizar a hemodiálise é necessário


fazer passar o sangue pelo filtro capilar e, para isto, é fundamental ter um vaso
resistente e suficientemente acessível, que permita ser pulsionado três vezes por
semana com agulhas especiais.

Busato (2001) diz que o vaso sangüíneo com essas características


é obtido através de uma fístula artéria venosa (FAV). A FAV é feita por um cirurgião
*
Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade do Rio Grande do Sul.
13

vascular, unindo uma veia e uma artéria superficial do braço, de modo a permitir um
fluxo de sangue superior a 250 ml por minuto.

De acordo com Busato (2001), esse fluxo de sangue abundante


passa pelo filtro capilar durante quatro horas, retirando tudo o que é indesejável. O
rim artificial é uma máquina que controla a pressão do filtro, a velocidade e o
volume de sangue que passam pelo capilar e o volume e a qualidade do líquido que
banha o filtro.

A hemodiálise, segundo este autor, tem a capacidade de filtração


igual ao rim humano, ou seja, uma hora de hemodiálise equivale a uma hora de
funcionamento do rim normal. Para ele, a diferença entre a diálise e o rim normal é
que na primeira realizam-se três sessões de quatro horas, o equivalente a doze
horas semanais. Um rim normal trabalha na limpeza do organismo 24 horas por dia,
sete dias por semana, perfazendo um total de 168 horas semanais. Assim sendo, o
tratamento com rim artificial deixa o paciente 156 horas semanais sem filtração.

Ainda de acordo com Busato (2001), apesar de realizar somente


12 horas semanais de diálise, já está provado que uma pessoa pode viver bem,
com boa qualidade de vida e trabalhar sem problemas.

Este autor também diz que a hemodiálise tem seus riscos, como
qualquer tipo de tratamento, e apresenta complicações que devem ser evitadas,
como hipertensão arterial, anemia severa, descalcificação, desnutrição, hepatite,
aumento do peso por excesso de água ingerida e complicações das doenças que o
paciente é portador.

Com relação à máquina, Meleti (2003) diz:

O equipamento padrão consiste essencialmente em um tanque de aço e


uma bomba para circular o líquido dialisador. A hélice de tubulação é
colocada em um receptáculo e conectada às linhas arterial e venosa. A
câmara de bolhas venosas é ligada a um manômetro e a um interruptor. O
recipiente de banho é enchido com água a 37ºC, acrescentando-se
concentrado do dialisato. O sistema é preparado com soro fisiológico
heparinizado, as linhas são conectadas ao paciente e é iniciada a diálise.
A heparina é injetada em uma dose inicial de 50 a 100 mg, sendo feitos
ajustes adicionais de acordo com os tempos de coagulação.

Este tratamento, segundo Meleti (2003), o paciente renal crônico


recebe, no geral, em centros especializados em hemodiálise, instituições vinculadas
à Previdência Social ou hospitais-escolas. É raro instituições privadas prestarem
14

este tipo de assistência. Para Meleti (2003), é um tratamento de alto custo


financeiro, sendo, portanto, formado por grupos de pacientes heterogêneos em
diferentes aspectos: idade, sexo, condição socioeconômica e culturais.

Normalmente, a enfermaria de hemodiálise consiste em várias


máquinas alinhadas lado a lado e frente a frente, o que significa dizer que um
paciente está em contato com outros à todo instante e a cuidados de emergência,
tanto podendo ser para outros pacientes, como para ele próprio.

Isso porque poderá existir ocasião, segundo a autora, e que ele


será a causa do emergencial, ou então poderá passar pela experiência de
presenciar a morte de um outro paciente, companheiro de diálise.

Segundo Denise de Paula Rosa e Walter Pinheiro Nogueira (1990):

[...] estes pacientes além da nefropatia possuem complicações


cardiológicas, crises hipertensivas e quando submetidos à hemodiálise
estão sujeitos não somente aos estresses inusitados e até então
inexplorados, associados com a dependência ao procedimento, bem como
às reações de adaptação ao novo estilo de vida e às reações dos
familiares.

De qualquer forma, o processo de hemodiálise, apesar da


tecnologia avançada que atualmente representa, não oferece um estado de saúde e
qualidade de vida ao paciente renal crônico tal qual ele tinha antes de se ver
acometido pela doença (IRC).

O que se pode dizer é que a hemodiálise significa uma condição


para que este paciente consiga continuar vivendo, apesar de mantê-lo nesta
situação de morte iminente, complicações das mais variadas, desde parada dos rins
de forma mais persistente à complicações originárias da própria máquina, como um
problema na tubulação ou a desconexão de algum tubo, o que pode ocasionar a
morte do paciente num curto período de tempo.

O paciente renal crônico jamais voltará a ter o estado físico que


tinha antes de adoecer. E esta condição, aliada aos problemas do tratamento em si,
mais as complicações da doença e os problemas que podem ocasionar a sua
dependência real à máquina, podem gerar danos psicológicos e emocionais
irreversíveis na vida deste paciente.
15

CAPÍTULO 3 – ASPECTOS PSICOLÓGICOS E EMOCIONAIS

DO PACIENTE EM HEMODIÁLISE

Busato (1976) refere que o tratamento do paciente na fase de


insuficiência renal crônica evoluiu intensamente nos últimos anos. Para ele, a
expansão do conhecimento e o avanço tecnológico nesta área, através do uso de
órgão artificial ou do transplante de órgãos de doadores vivos ou cadavéricos
trouxeram modificações nas atitudes e na vida dos pacientes e seus familiares, bem
como nas vivências das equipes médicas. Aos pacientes renais crônicos
apresentam-se três chances: morrer, fazer diálise ou submeter-se a um transplante.
As duas últimas têm seus problemas, mas indiscutivelmente proporcionam a
sobrevivência com um maior ou menor conforto, dependendo de inúmeros fatores,
assim, cabe-lhes o direito de tomarem a decisão final.

Para este autor, quando a doença renal crônica final é descoberta


abruptamente, tanto o paciente como a família, sofrem profunda depressão e
decepção necessitando algum tempo para serem superadas.

Os pacientes renais crônicos, até atingirem a fase final, passam


por um período mais ou menos longo de evolução, dependendo da etiologia da
doença. Se, durante essa evolução, ocorrer um aconselhamento médico consciente
com adequada orientação, os pacientes terão oportunidade de elaborar a perda de
sua função renal.

Este autor diz que de qualquer forma, hoje, nem o paciente renal
crônico e nem os seus familiares aguardam passivamente a sua morte sem
tentarem o tratamento médico conservador (diabético) ou a diálise (peritoneal ou
hemodiálise) e mesmo, posteriormente, o tratamento cirúrgico (transplante).

É bem provável que, durante o tratamento conservador, momento


em que surgem as primeiras restrições na qualidade de vida, os pacientes
comecem a tomar consciência da chegada de uma nova fase: sua dependência vital
de uma máquina, que é o rim artificial.
16

O tratamento hemodialítico pode se prolongar por toda a vida do


paciente ou até que um doador apareça e forneça um órgão compatível para a
realização do transplante.

Segundo o autor, durante o período hemodialítico, geralmente


ocorrem problemas da seguinte natureza:

a) dificuldades em manter patente o acesso vascular,


com temores de obstrução do “shunt” ou fístula
artério –venosa;

b) dificuldades em manter as restrições diabéticas,


principalmente as relacionadas aos líquidos;

c) dependência da máquina, o que acarreta problemas


sociais, familiares e financeiros;

d) temores relacionados às complicações funcionais da


máquina (hemodiálise, infecções, perdas
sangüíneas etc.);

e) temores quanto a doenças intercorrentes


(hipertensão, infarto, acidente vascular cerebral
etc.);

f) dificuldades de relacionamento com a equipe


médica e de enfermagem;

g) dependência de medicamentos.

Sob estes aspectos, portanto, ao paciente cabe almejar a vida que


levava anteriormente à doença crônica, sem ter que tri semanalmente depender da
hemodiálise, o que o faz ansiosamente aguardar pelo transplante, o que no Brasil
não seria uma solução de fácil viabilidade, por vários motivos, tais como: sociais,
religiosos e culturais, o que dificulta e impede que as equipes médicas consigam
órgãos cadavéricos para transplantes.

Desta forma, para se conseguir uma melhor qualidade de vida com


o transplante, resta ao paciente renal crônico recorrer à ajuda de seus familiares.
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A família e o doente, ainda segundo Busato, ao serem informados


das dificuldades da doação, encontram-se frente a um problema real e objetivo, que
é a busca de um doador. E é durante esta etapa que o paciente entra em crise
emocional, pelo medo e temor de não conseguir um doador, ou pela demora de
encontrá-lo, perdendo com isso as condições físicas necessárias para se submeter
à cirurgia do transplante.

Assim sendo, o paciente renal crônico apresenta uma problemática


emocional variada, que vai surgindo no decorrer da doença. Sabe-se que o ser
humano, quando se vê acometido por uma doença, adoece como um todo. O
estresse causado por uma doença inabilita e enfraquece a estrutura psíquica e
emocional da pessoa enferma.

De acordo com Rosa & Nogueira (1990), os pacientes acometidos


por uma doença crônica, geralmente, utilizam-se de mecanismos de defesa, numa
tentativa de reorganização de sua vida mental, para melhor poderem lidar com as
situações de angústia, dor e sofrimento que a cronicidade da doença traz.

Ainda para as autoras, dois importantes mecanismos de defesa


podem ser ativados, por causa, principalmente, da dependência com a máquina e
com a equipe: a negação e a formação reativa.

A negação vai acontecendo progressivamente e sendo utilizada


pelo paciente renal crônico na medida em que novos estresses físicos e
psicológicos vão aparecendo. Existem ocasiões em que estes pacientes negam a
própria doença e as limitações que a mesma lhe impões, sendo que daí acontece,
segundo Palombini, Manfro & Kopstein (1985) a chamada “fuga para a saúde”.

Para esses autores, a negação, quando acionada, permite o


manejo das frustrações para que o paciente consiga seguir em frente com o
programa de diálise.

Para Rosa & Nogueira (1990), os pacientes crônicos tendem a


reorganizar sua vida mental lançando mão de defesas psicológicas que lhes
possibilitem lidar com situações de angústia provocadas pela cronicidade da
doença. Por outro lado, estes pacientes são pessoas sempre bem adaptadas, em
que a doença eclode criando uma situação de crise, o que traz consigo uma
necessidade de rearranjo das defesas psicológicas.
18

Muitas questões surgem quando se fala do paciente renal crônico,


segundo Meleti (2003), que vão estendendo e entrelaçando desde esferas sociais
até as econômicas, de orgânicas a psicológicas, de culturais a éticas.

Para Meleti (2003), em geral, os pacientes em hemodiálise


vivenciam muitas perdas e vislumbram outras tantas. Perderam suas atividades
escolares, domésticas ou profissionais. Outros tiveram que se afastar de seus
empregos, passando a depende dos benefícios da Previdência Social, fato que os
leva, invariavelmente, à perda da segurança financeira. Perderam as funções
físicas, como o vigor e a resistência ao lazer, incluindo as atividades sexuais. Meleti
(2003) relata também a perda da independência e liberdade em função do
tratamento e das intercorrências, que muitas vezes os confinam em casa ou no
hospital, acamados.

Partindo dessa realidade, Reichsman & Levy (apud MELETI, 2003,


p. 120) descreveram os estágios de adaptação para a manutenção da hemodiálise,
pelos quais passam alguns pacientes. Esses estágios foram denominados:

1- Período de “Lua de mel”;

2- Período de desencanto e desencorajamento;

3- Período de adaptação.

Para Machado e Car (2003), a condição crônica e o tratamento


hemodialítico são fontes de estresse e representam desvantagem por ocasionarem
problemas: isolamento social, perda do emprego, dependência da Previdência
Social, parcial impossibilidade de locomoção e passeios, diminuição da atividade
física, necessidade de adaptação à perda de autonomia, alterações da imagem
corporal e, ainda, um sentimento ambíguo entre medo de viver e de morrer.

As reações do doente, segundo as autoras, advém do seu contexto


social, cultural, das suas crenças e valores pessoais. Alguns estudos mostram que
o apoio psicoterápico individual e grupal e o suporte informal (enfocado nas
relações sociais, de trabalho e familiares) podem ser úteis e utilizados como
estratégias de cooping.

Estas autoras discorrem sobre estes diversos aspectos


relacionados às reações do doente quando influenciam diretamente sua vida e
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existência, no contexto social, que pode prevenir ou servir e ser utilizado por este
paciente como defesa emocional das conseqüências negativas durante o declínio
da função física ao longo do processo do adoecer.

Na relação à reabilitação para o trabalho que, segundo as


mesmas, um estudo revela que 68% dos doentes transplantados apresentam
reabilitação normal; 39% dos doentes em diálise crônica apresentam capacidade
parcial para o trabalho e 29% são totalmente incapacitados ao trabalho, justificando
assim a necessidade de investigação a respeito da qualidade de vida dos doentes
em tratamento hemodialítico.

De acordo com as autoras, para os doentes, a hemodiálise é


“necessária”. Assim, neste fenômeno, o necessário emerge como opressor,
trazendo uma realidade difícil, árdua e repleta de restrições, mas necessária!

Além destas restrições, o paciente renal apresenta uma


problemática emocional variada, segundo Miranda, Krollmann & Silva (1993). Seus
problemas, que surgem no decorrer da doença, precisam ser abordados de modo
bastante diverso, para não excluir o psicológico.

A hemodiálise, ao mesmo tempo que promove a melhora de


alguns sintomas clínicos, provoca desordens emocionais. A cronicidade e os
estresses desse tratamento têm como conseqüência a depressão grave do paciente
e uma maior dificuldade deste em lidar com a nova forma de vida. Esses aspectos
constituem importante variável para sua adaptação ao tratamento e para sua maior
– ou menor – sobrevida.

De acordo com o estudo destas autoras, desde a inclusão no


programa de hemodiálise até o transplante ou óbito, esse paciente passa por várias
experiências.

Num primeiro momento, ele se encontra em estado de alerta,


tenso, agitado e na expectativa de que algo está para acontecer, o que lhe ocasiona
um desgaste físico e emocional muito grande. Isso é vivido desde o diagnóstico de
IRC, quando o paciente começa a apresentar sintomas típicos de estresse. Por
desconhecer o processo a que se submeterá, ele deixa aflorar todos os seus
medos, angústias e fantasias. Tudo o que lhe é apresentado é muito novo e o fato
de todo seu sangue estar circulando entre os dispositivos da máquina faz com que
20

seja atribuído a ela o poder de mantê-lo vivo. Teme, então, que ela pare de
funcionar, retendo parte do seu sangue. Acredita estar arriscando sua vida ao tratar-
se. Esse medo acentua-se, ainda, de acordo com o estado dos outros pacientes
que dividem com ele o mesmo espaço físico, a sala, onde passam boa parte do
tempo. Juntos presenciam situações alarmantes. Por isso, quando acontece algum
incidente numa sessão, eles reativam o estado de alerta e voltam a temer que o pior
lhes aconteça.

Num segundo momento, o paciente passa da fase de alerta para a


da adaptação aparente. Ainda não aceitou a doença e o tratamento, porém,
exteriormente, mostra-se calmo, tranqüilo e não se apavora diante das situações
emergenciais. Realiza o tratamento normalmente, comportando-se como um bom
paciente, assíduo, obediente. Os fatos que ocorrem à sua volta são corriqueiros e
tudo faz parte da sua rotina de vida. Essa fase, segundo as autoras, é caracterizada
pelo surgimento de formações reativas. A formação reativa é o modo que o paciente
encontra para esconder o seu estado angustiante e consiste numa forma de
negação. Nesse caso, a negação torna-se uma defesa útil. O paciente, sem
condições psíquicas para suportar sua dolorosa realidade, necessitará de um grau
maior – ou menor – de negação, a fim de manter as forças necessárias para
conservar-se vivo.

Num terceiro momento, para as autoras, quando suas defesas já


não estão mais tão arraigadas, a mudança comportamental do paciente começa a
surpreender a todos. Atitudes inesperadas, como transgredir a dieta, faltar às
sessões, ter atrito nas relações interpessoais são aspectos que caracterizam essa
fase. Enquanto as defesas diminuem, aumenta o nível de consciência e, em
conseqüência, surge a depressão, como resultante do conflito existente entre
aceitar ou não a nova forma de vida. Esse comportamento pode agravar o quadro
do paciente e ocasionar rompimentos de vínculos afetivos com pessoas próximas, o
que dificultará seu tratamento, sobretudo na medida em que a agressividade gerada
pelo conflito atuar sobre a equipe que o assiste.

Em relação à depressão, Palombini, Manfro & Kopstein (1985)


afirmam que, considerando as perdas e crises que esses pacientes enfrentam, é
inexplicável a depressão que os atinge. E acrescentam que:
21

Entendemos a depressão como uma resposta à perda que se manifesta


quando os mecanismos de defesa (negação, projeção, formação reativa,
deslocamento, isolamento de afeto, entre outros) não são suficientes para
conter a ansiedade.

Estes autores, ao citarem Abram (1978, p. 342 – 363) relatam que


o paciente em diálise crônica atravessa várias fases durante o curso do tratamento;
no início da diálise a ansiedade predomina, ao passo que, no final, a depressão é a
principal característica.

De acordo com estes autores, outro aspecto importante e


freqüentemente presente é a ameaça da morte. Os pacientes procuram dominá-lo
pelo isolamento e pela negação, mas muitas vezes os mecanismos de defesa não
são suficientes para enfrentar, por exemplo, a morte de um colega. Nesse
momento, perdem a confiança na eficácia do tratamento e a harmonia do grupo fica
prejudicada. Ao contrário do paciente que se submete a uma cirurgia cardíaca,
quando a ansiedade e a ameaça de morte são fugazes, o paciente em hemodiálise
crônica, segundo estes autores, é obrigado a coexistir com essa ameaça o tempo
todo.

Assim sendo, ao conviver com a máquina, com a terapêutica de


tratamento e à dependência aos mesmos, de importância vital, pode-se perceber
que esta situação do paciente renal crônico assume características especiais à sua
afetividade e seu comportamento. Isto quer dizer que à ele cabe uma nova forma de
adaptação de vida, que deve se ajustar, pois que não se trata de uma situação
transitória ou aguda, mas de uma situação de ajuste e adaptação permanentes, o
que implica em dizer que esta nova forma de adaptação e ajuste depende da
capacidade do paciente em lidar com as contrariedades, traumatismos e
frustrações, que são inerentes ao tratamento.

Em relação ao apoio da família do paciente renal crônico,


Dyniewicz, Zanella & Kobus (2004, p. 199 – 212), ao citarem Silva et al. (2002, p.
566), descrevem que a avaliação de uma pessoa em relação à sua qualidade de
vida está muito relacionada ao apoio que recebe da família, e que este fato a faz
sentir melhor. Consideram que a “doença, de uma certa forma, também é da
família e, quando os familiares estão presentes, dando apoio constante, a dor do
doente renal crônico é compartilhada, diluída”
22

De acordo com estas autoras, ao citarem Gonçalves et al. (1996),


em relação à doença crônica, verificou-se a tendência para a concentração das
responsabilidades de cuidado ou ajuda num cuidador único da família. Neste
estudo, nota-se que o cônjuge desempenha este papel. Gonçalves et al. (1996)
reforçam que a qualidade de vida tão desejada a ser vivida no contexto familiar
depende do empenho dos familiares junto ao doente, amparando-o, não o
negligenciando ou fragilizando. Para tanto, o cuidador único não deve se
sobrecarregar ou se estressar até à exaustão. Neste estudo, parece haver o
compartilhar de cuidados entre os membros da família quanto aos cuidados com a
dieta, a administração de medicamentos, o que mostra uma resposta positiva
unânime, segundo as autoras, frente às necessidades diárias do paciente.

Comum também nesses pacientes são os problemas sexuais.


Meleti (2003), ao citar Dr. Levy (1979), em estudo realizado em 287 pacientes de
hemodiálise, mostra claramente uma deteriorização na função sexual* à medida que
os pacientes passaram de pré-urêmicos a sintomáticos de uremia. Entretanto, ao
passar de uremia não tratada ao tratamento pela hemodiálise ocorreu uma piora da
função sexual em 35% dos homens e 24% das mulheres. Somente 9% dos homens
e 6% das mulheres experimentaram melhora na função sexual quando sob
hemodiálise. Assim, em uma situação de melhora física, um grupo de pacientes
sofreu piora da função sexual.

Meleti (2003) cita também que as hipóteses levantadas com


relação a essas disfunções abarcam não só a enfermidade física, como também as
razões psicológicas – como sentimento de dependência real do procedimento da
hemodiálise, a impotência perante ele mesmo e os outros, na medida em que
muitos casos há a inversão de papéis na família, quando, diante das necessidades
financeiras, cabe ao cônjuge sadio ir trabalhar fora de casa, restando ao paciente
algumas atividades domésticas; além da depressão, que tem concomitantes físicos
que incluem o estresse e a capacidade sexual diminuídos.

No que diz respeito à vida profissional do paciente renal crônico,


Miranda, Krollmann & Silva (1993) relatam que não se pode inferir quanto à relação
entre profissão dos pacientes e as causas da IRC. Alguns relatam, segundo as

*
A função sexual foi medida quanto à freqüência das relações sexuais à incidência de impotência no
homem e à freqüência do orgasmo durante o coito na mulher.
23

autoras, a fantasia de que dados de suas condições de trabalho, como contato


direto com água (friagem), produtos químicos, calor em excesso etc. possam ter
sido causadores da doença. Porém, nada foi comprovado quanto à veracidade
dessa relação.

De acordo com o estudo realizado pelas autoras, o que se


observou é que o paciente que se submete ao tratamento dificilmente conseguirá
manter-se em emprego com vínculo empregatício, pois tem que ausentar-se do
trabalho durante várias horas semanais para estar no programa de hemodiálise.
Além disso, geralmente, ele reclama de mal-estar, alteração na pressão arterial,
fraqueza generalizada, o que interfere bastante no desempenho de uma atividade
profissional.

Neste estudo as autoras descrevem as privações vividas pelo


paciente e suas implicações no estado emocional dele.

Trabalhar ou não será, pois, determinado não só pelo


condicionamento físico do paciente, como também, segundo as autoras, por
vontade de trabalhar, pelas oportunidades de trabalho e pelo desejo de permanecer
trabalhando. Trabalhar é, na verdade, uma forma de manter-se útil, produtivo e
motivado pela pulsão de vida.

Além da privação concernente à sua vida profissional, neste estudo


as autoras também descrevem as outras privações vividas pelo paciente e suas
implicações no estado emocional dele, tais como a privação alimentar, afetiva e
privação de informação.

Na privação alimentar, de acordo com as autoras, o estado


nutricional do paciente é importante em qualquer estágio de sua doença: a) no pré-
dialítico, o estado nutricional inadequado, em interação com outros fatores, pode
desencadear sérias complicações para o indivíduo; b) no dialítico ele atua como
agravante da doença ou mantenedor da sobrevivência e restabelecimento do
paciente; e c) no pós-transplante, propiciando o sucesso da intervenção e a
recuperação das funções vitais do organismo.

O urêmico crônico é obrigado a cumprir uma dieta com várias


restrições (protéica, de sal e líquidos), que provoca uma frustração oral. Essa
24

frustração gera, nesse paciente, sentimentos diversos, como raiva, culpa, medo e
também faz com que ele utilize mecanismos de defesa para lidar com ela.

1) fator psicológico – transgredir a dieta e ingerir líquidos em


excesso têm diferentes significados peculiares à estrutura de cada paciente. Assim,
tais procedimentos podem representar uma forma de: chamar a atenção e obter
cuidados de pessoas significativas; negar uma realidade, pois aceitar a dieta implica
aceitar a doença; de atuar a raiva diante do fato de não conseguir alguém que lhe
doe um rim; reagir ao fracasso após um transplante mal-sucedido; buscar o auto-
extermínio, de maneira inconsciente ou consciente, para dar fim ao sofrimento.

2) fator psicossocial – nem sempre o paciente gosta de comer


aquilo que é necessário. Além disso, nos dias em que ele faz hemodiálise, alimenta-
se fora de hora, por não aceitar a comida oferecida pelo hospital ou por morar longe
dele.

3) fator socioeconômico – a condição socioeconômica do paciente,


com freqüência, interfere na manutenção da dieta indicada. Muitas vezes, o
paciente vê-se incapacitado de obter alimentos adequados e passa a alimentar-se
do que é possível e não do que é necessário.

4) fator cultural e educacional – o baixo nível intelectual do


paciente dificulta a compreensão da doença e do tratamento. Na maioria dos casos,
observa-se, ainda, ignorância sobre princípios dietéticos básicos.

Mesmo sabendo que seguir o tratamento é a única forma de


manter a vida e de obter sucesso num futuro transplante, segundo as autoras, nem
sempre o paciente renal crônico consegue controlar-se. Para elas, a transgressão
da dieta é, dessa forma, uma atuação da pulsão de morte.

Ao saber do diagnóstico de IRC, o indivíduo percebe que seus rins


nunca mais funcionarão. Esse fato revela um comprometimento grave que ameaça
a sua integridade física. Assim sendo, ele fica e sente-se mais vulnerável à morte,
que se torna, para o doente, um fato dos mais reais e concretos. Se a morte é tão
concreta, a IRC que a representa também o é. Nesse momento de vulnerabilidade,
aparece a depressão reativa, que leva, às vezes, a entregar-se à terminalidade,
totalmente incapaz de suportar o tratamento e de resistir ao sofrimento. Somente
25

após melhorar do seu estado depressivo é que ele começa a adaptar-se ao local, às
pessoas e à rotina que lhe manterão a vida.

Na privação afetiva, as autoras afirmam que no relato dos


pacientes verifica-se freqüente ocorrência de conflitos afetivos. O que pode gerar a
ruptura de vínculos significativos e, de certa forma, necessários ao bem-estar de
todos e à sua possível recuperação. Os conflitos apontados se dão em vários
níveis: com a equipe do serviço de Nefrologia, com a família, com o cônjuge e com
os amigos.

• A equipe – apesar de a solução para o problema do paciente ser


dada pela máquina, é a equipe de médicos e enfermeiros que
garante sua manutenção adequada. Ele sabe que depende dessa
equipe para sair com vida da sessão de hemodiálise, mas isso não
impede um conflito interpessoal. É comum vê-lo reclamar de todos.
É preciso perceber o que está subjacente a essas reclamações para
não se ficar em constante atrito com o paciente. A fala do paciente
revela seus sentimentos diante de tudo o que lhe está acontecendo.

• Família e amigos – inicialmente, segundo as autoras, a família e os


amigos acompanham de perto o tratamento do paciente renal
crônico. Com o passar do tempo, instala-se uma rotina e um
conseqüente afastamento das pessoas. O paciente considera esse
afastamento como abandono. Muitas vezes, é o paciente quem se
distancia das pessoas, porque imagina que a aproximação pode
significar uma cobrança à família ou às pessoas mais próximas para
que lhe doem um rim. O fato de a família compartilhar do seu
problema leva-o a um sentimento de culpa exacerbado, gerando
sofrimento para todos os envolvidos. O próprio estado depressivo
leva o paciente, às vezes, a fechar-se em si mesmo, evitando
relacionar-se com os outros.

• Cônjuge – na relação conjugal as autoras citam que a situação


torna-se bastante delicada. Sobretudo porque, com freqüência, a
fantasia do casal diz respeito à impotência e à dependência gerada
pela doença, como foi anteriormente abordado. Vários são os casos
26

de separação após o casal ter consciência de serem esses


problemas sem previsão de solução um fator que contribui para
todos esses conflitos, segundo as autoras, é a falta de informação
geral.

Na privação de informação, de acordo com as autoras, o paciente,


muitas vezes, não reconhece a presença da doença até que surja a IRC. Foi
observado por elas que a grande maioria ignora as origens, causas e
conseqüências da insuficiência renal.

Observa-se que, apesar da demanda do paciente quanto a essa


necessidade de informação, muitas vezes ele não é capaz de perguntar ao médico
o que quer saber, por não entender o que ele diz, por não ter acesso ao informante
na medida em que este não lhe parece muito disponível, ou mesmo por ter medo de
escutar aquilo que ainda não está pronto para ouvir. Conseqüentemente, o sujeito
que, de modo geral, nunca teve contato com essa doença, tem que aceitar as
intervenções médicas sem saber em que consistem e porque são necessárias.

O grau de escolaridade do paciente, para estas autoras, contribui


para essa situação. Sua capacidade de abstração e compreensão é baixa e isso
dificulta uma maior compreensão do processo da doença.

Sentimentos de ambivalência também norteiam o quadro


psicológico do paciente renal crônico, segundo Gordon (1975) com relação a
“máquina”, salvadora de sua vida, não-comunicativa. Os pacientes comentam,
segundo o autor, com freqüência, que esta parece ter personalidade própria. Produz
barulhos, tem luzes que piscam e em alguns dias parece trabalhar melhor do que
em outros. De certa forma, a diálise reproduz situação análoga a uma dependência
primitiva mãe-criança, pela qual o paciente é novamente obrigado a depender de
um sistema externo de subsistência de vida, tipo placenta, para purificar seu
sangue. Priva o paciente de sua independência, mas salva a sua vida.

Viederman (1974 apud Gordon, 1975) acredita que esta


dependência produz dificuldade. Se o paciente teve conflitos com ansiedade
resultante, nos primeiros anos, por cuidados maternos inadequados, a diálise,
representando simbolicamente esta situação primitiva pode provocar reprodução da
ansiedade e conseqüente regressão neurótica.
27

A perda de status – para o autor, a regressão pode ser


intensificada pela perda do status. Muitos pacientes não podem continuar com suas
ocupações. É provável, por exemplo, que a dona-de-casa tenha que depender do
marido ou das crianças, com conseqüente perda de estima. O chefe da família pode
não ser mais capaz de produzir a renda, sendo obrigado a depender do auxílio
governamental.

Gordon (1975) também fala sobre a morte iminente – sengundo o


autor, estas angústias difíceis e crônicas estão em jogo contra a implacável e
onipresente perspectiva da morte iminente. A defesa normal da negação da morte
está sempre presente no paciente com insuficiência renal. Mais ameaçadora ainda
é a morte de um companheiro com o mesmo problema. O estresse crônico da
incerteza da morte produz uma irmandade única.

O autor também discorre sobre a morbidade psiquiátrica em


pacientes sob estresse – o que pode ser dito sobre a população que enfrenta este
tipo de estresse? Estudos da morbidade psiquiátrica de uma população de
ambulatório rural da Nova Escócia e do Centro de Manhattan demonstraram que
25% da população estão severamente prejudicadas por sintomas psiquiátricos, 50%
estão menos alterados, porém afetados por alguns sintomas e 25 % estão
definitivamente não afetados.

Para o autor, portanto, em qualquer programa de diálise ou de


transplante, pode-se esperar encontrar depressão, comportamento imaturo, de
oposição ou neurótico, dificuldades conjugais e sexuais, psicoses ocasionais e
morte provocada pelo paciente. Destes, Abram et cols. (1971, apud Gordon, 1975)
descreveram pacientes que não permitiriam ao corpo médico a possibilidade de
participar da decisão de interrupção da diálise, na maioria jovens que preferiram,
então, interrompê-la.

De acordo com o estudo do autor, portanto, o espectro dos


pacientes tratáveis está se expandindo, incluindo muitos portadores de sérios
problemas emocionais.

A morbidade psiquiátrica deve ser, portanto, esperada e tratada


tanto quanto as circunstâncias o permitam. Gordon (1975) finaliza:
28

Como na maior parte das outras situações humanas, os pacientes que


têm maiores possibilidades de serem bem sucedidos são aquela minoria
de afortunados que podem adaptar-se ao estresse crônico e difícil,
submeter-se a experiências emocionais positivas e ter uma família que
colabore, trabalho satisfatório, identidade sólida, amor próprio adequado –
em resumo, aqueles com boa saúde mental. A discussão gira em torno da
personalidade ou das variáveis da experiência da vida que possam ter
utilidade prognostica.

Em relação à esperança do transplante renal, Medina et al. (2002,


apud DYNIEWICKS, ZANELLA & KOBUS, 2004) relatam que no Brasil existem
cerca de 46.000 pacientes em diálise. Em 2001, foram realizados 3.099
transplantes, sendo 1.256 com doador cadáver. As leis nº 9434/97 e 10211/01, do
Congresso Nacional, estabelem os critérios para a doação de órgãos de cadáver e
de doador vivo. Os critérios para diagnóstico de morte encefálica foram
estabelecidos pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1480/97, com
base no diagnóstico clínico, comprovado por ao menos um exame subsidiário.
Entretanto, o principal obstáculo à doação continua sendo a não-identificação do
doador e a ausência de sua notificação às centrais de captação, através de uma
abordagem adequada.

Esta situação é percebida pelo paciente renal crônico, quando


suas expectativas chegam ao ponto angustiante, na espera de um transplante que
nunca acontece, na esperança de visualizar a “tal da lista” que nunca aparece, em
uma “fila” que simboliza esta fantasia de espera que prolonga ainda mais o
sofrimento e a dor do paciente renal crônico. Nas palavras de Mariano (2004):

A diálise “modifica” a vida que salva. Cria problemas na medida em que


prolonga a vida, já que os meios utilizados são psiquicamente:
fragmentadores do corpo, excludentes do afetivo e essencialmente
provocadores da dor. [...] os pacientes, temendo a vida, tornam-se
homens marginais. O homem marginal está suspenso entre o mundo dos
doentes e o mundo dos sãos, sem pertencer a nenhum deles e fazendo
parte, ao mesmo tempo, de ambos. Ele parece bem, mas sente-se mal,
espera e deseja atingir a normalidade, mas não é capaz de fazê-lo.

Para Machado & Car (2003), à respeito do dia seguinte à


hemodiálise, relatam que o doente desenvolve normalmente tarefas domésticas,
exceto quando apresenta alguma alteração (dor). De acordo com as autoras:

[...] Toda realidade guarda em sua essência infinitas possibilidades que


podem ou não vir-a-ser. Cada uma delas, quando encontra condições
necessárias à sua concretização, logo se torna a nova realidade. Assim, é
possível perceber como, por meio de pequenos aspectos do cotidiano,
29

diferentes realidades emergem, conforme o cotidiano é rompido pela


história individual de cada um dos doentes.
30

III. METODOLOGIA

Este trabalho tem como objetivo compreender o significado da


hemodiálise para o paciente renal crônico, a partir da fenomenologia existencial.
Para isso, será utilizada a Entrevista Aberta como instrumento descrito a seguir e
será feita uma análise fenomenológica dos dados obtidos.
No método fenomenológico procura-se desvelar um determinado fenômeno, isto é,
refletir e apreender o fenômeno tal qual ele se mostra, para assim chegar a uma
compreensão do mesmo e recriar uma nova possibilidade de ser e de compreender
o mundo do outro e da relação que o este estabelece com o pesquisador, para que o
mesmo possa atuar como agente facilitador do acesso ao vivido. Assim, a pessoa
que fala, efetivamente tem a oportunidade para dizer a sua experiência, tornando a
pessoa que relata, não um sujeito que fornece informações, mas um colaborador,
pensando junto o assunto, fazendo-o com a novidade da primeira vez.
Que tipo de pesquisa é a fenomenológica? Para Amatuzzi (2003) é
basicamente uma pesquisa de natureza, (Husserl falava do conhecimento das
essências). Ela pretende dar conta do que acontece, pelo clareamento do fenômeno.
Construindo uma compreensão de algo. Se o fizer a partir da experiência comum,
teremos a pesquisa fenomenológica no sentido mais filosófico do termo. Se o fizer
fundamentando-se numa análise objetiva de dados, teremos a pesquisa
fenomenológica no sentido mais empírico do termo, isto é, no sentido em que se
baseia uma análise sistemática de registros de experiência Para Amatuzzi (2003) “a
pesquisa fenomenológica é a pesquisa do vivido e ele pode não ter sido acessado
antes” (p.21)
O objetivo de uma entrevista fenomenológica é para
Amatuzzi(2003) dialética e mobilizadora, e diz “ surpreender o vivido no presente,
quando a experiência da pessoa é pensada de repente e dita como pela primeira
vez” (p. 21)
Segundo o autor, neste tipo de pesquisa o melhor juíz é o
colaborador. Só ele saberá dizer se se reconhece no que o pesquisador “lê” no que
diz. Sendo que aqui, caso o pesquisador esteja trabalhando com fenomenologia, é
preciso distinguir o que o pesquisador pode dizer sobre a experiência concreta de
uma pessoa, o que seria, em situação ideal.
31

De acordo com Forghieri (2004), portanto, o método


fenomenológico apresenta-se à Psicologia, como um recurso para a pesquisa da
vivência.
A Fenomenologia surgiu no campo da Filosofia como um método
que possibilitasse chegar à essência do próprio conhecimento apresentando a
redução fenomenológica, como o recurso para empreender essa tarefa. Portanto,
retornar à experiência vivida e sobre ela fazer uma profunda reflexão que permita
chegar à essência do conhecimento, ou a maneira como este se constituiu no
próprio existir humano.
Para Forghieri (2004) o conhecimento psicológico é reflexão e ao
mesmo tempo vivência; é conhecimento que pretende descobrir a significação, no
efetivo contato do psicólogo com sua própria vivência e com a de seus semelhantes.
Para Boss (1975, pg.24) apud Forghieri (2004):
A essência de todos os sofrimentos humanos fundamenta-se no fato de
que a pessoa perdeu essa capacidade de se abrir e de se decidir
livremente acerca de suas possibilidades de comportamento normal... Os
métodos psicoterapêuticos têm por objetivo devolver à pessoa, na medida
do possível, a livre disposição de suas possibilidades existenciais de
comportamento que correspondem aos dados do mundo.

Segundo Forghieri (2004), ao fazer a transposição do método


fenomenológico, do campo da Filosofia para o da Psicologia, o objetivo inicial de
chegar à essência do próprio conhecimento passa a ser o de procurar captar o
sentido ou o significado da vivência para a pessoa em determinadas situações, por
ela experienciadas em seu existir cotidiano.
O pesquisador deve iniciar o seu trabalho voltando-se para a sua
própria vivência, ao se utilizar da redução fenomenológica para investigar formas
concretas de existência, a fim de refletir sobre ela no objetivo de captar o significado
da mesma.
O pesquisador utiliza-se da redução fenomenológica para investigar
a sua própria vivência e também para estudar e compreender a vivência de outras
pessoas.
A pesquisa fenomenológica busca acessar a apreensão da
realidade, a partir do sentido desta para uma subjetividade intencional, ou seja,
alcançar o significado da realidade e do mundo para um sujeito encarado como ator
e protagonista de sua própria vivência.
32

Considerações metodológicas norteadoras do trabalho


Sujeito....................................................................................................................
Critérios de escolha do sujeito...........................................................................
Instrumento de coleta de dados..........................................................................

Local da pesquisa:
Hospital Geral da Cidade de São Paulo– Equipe de Nefrologia, Transplante de
Órgãos e Hemodiálise.

Instrumentos para coleta de dados:


1 entrevista com um paciente renal crônico para levantamento de dados .
Os dados obtidos através da entrevista deverão ser analisados de acordo com o
enfoque fenomenológico da personalidade e suas características básicas do existir
humano, proposto por Forghieri (2004).

Critérios de escolha do sujeito:


Os critérios de escolha do sujeito obedeceram as seguintes premissas: o paciente
se dispor a participar da pesquisa e que estivesse passando pela experiência de
diálise.

Sobre o Sujeito desta pesquisa:


Joana (nome fictício) tem 27 anos, é separada há um ano e vive com seu filho de
cinco anos. Está aposentada e vive desta renda. Aos 18 anos foi diagnosticada com
nefrite e aos 20 anos de idade, engravidou. Por causa da nefrite, na gravidez os rins
começaram a falhar e o filho nasceu prematuro aos 6 meses. Os rins ainda
funcionaram por mais 1 ano antes de parar definitivamente e logo depois iniciou o
processo de hemodiálise em 2002.

Procedimento:
Foi feita pelo pesquisador uma entrevista que não seguiu um roteiro pré-
estabelecido, que portanto, podendo ser considerada aberta. A única pergunta
formulada indagava para que a paciente relatasse que, a partir de sua experiência
33

pessoal, o que significava para ela, o processo da hemodiálise. As perguntas que


surgiram depois aconteceram de acordo com o relato da paciente.
A entrevista foi realizada durante uma sessão de hemodiálise, onde o pesquisador
esclareceu que anotaria tudo o que fosse sendo falado pela paciente. Também foi
esclarecido pelo pesquisador que esta entrevista estaria dentro das normas de
proteção à indentidade da paciente e do sigilo. Obtendo o consentimento da
paciente, deu-se início à entrevista concedida pela paciente.
Desta forma, ante a entrevista e o material trazido através deste relato pela paciente,
será feita a análise, discussão e interpretação.
34

IV. ANÁLISE E DISCUSSÃO

O presente capítulo consiste na reconstrução do que foi apreendido na entrevista,


tratando-se de uma descrição. Em alguns momentos desta entrevista foram tecidos
comentários sobre o conteúdo que a paciente explicitou, mas com objetivo de
integração dos elementos que levaram em direção ao sentido da experiência vivida
e relatada pela mesma. O que vale ressaltar que não se pretendeu promover com
isso um redirecionamento dos dados, mas uma tentativa de organizá-los de forma a
tornar claro e evidente o tema ao qual se referiam.

IV.1 - Análise Da Entrevista

A análise compreensiva da entrevista mostra os seguintes temas:

O aparecimento da doença:
Hemodiálise: “significa uma paralização na minha vida”

Sentimentos Ambivalentes:
- Possibilidade de cuidar do filho: “É uma coisa ambígua, porque me permite cuidar
do meu filho”
- Não disponibilidade para brincar com o filho: “...e ao mesmo tempo paralizou a
minha vida”

Prejuízos:
- Tempo: “...não posso sair, não posso viajar, é um compromisso, porque a gente
não tem Natal, não tem feriado, não tem festa, passeio”.

Casamento:
- “Depois da hemodiálise piorou de vez até a separação.”

Ganhos:
- Sentimento de Gratidão: “Ao mesmo tempo agradeço a hemodiálise”.
- “A hemodiálise me mantém viva.”
35

Espera pelo transplante:


- Sentimento de injustiça: “...eu acho que isso tudo aqui é muito injusto”.
- Sentimento de descrédito: “Esta lista é fictícia é fantasia”.

Relacionamento com a Equipe:


- Sentimento de desconfiança: “A gente não é compatível com um rim, porque não é
compatível com a conta bancária do médico”.

Impossibilidade de exercer a maternidade plenamente:


- “...se não fosse a hemodiálise eu poderia ser uma mãe melhor...”

Compara o início do tratamento e o momento atual:


- “É...agora já estou acostumada, já estou adaptada, já não é mais um “bicho de sete
cabeças”. Na época, a “ficha” só “caiu” mesmo muito tempo depois. Eu já fazia
diálise. Eu já tinha mais de um ano de diálise. Aí que foi “cair a ficha”. Pensava:
“Gente, olha onde eu estou”!

Falta de planejamento:
- “Eu acho que já estou tão acostumada que o tempo passou e eu não planejei a
vida”.

Diferença socioeconômica de tratamento:


- “...algumas enfermeiras, não estou falando das auxiliares, nem te olha para te dar
bom dia”.

Sentimento de Desânimo:
- “...mas desanima, não muda nada...”

Contato com a Morte:


- “Você começa a ver pessoas que vão morrendo à sua volta e quando isso
acontece, é muito ruim, porque você passa muito tempo aqui dentro”.
36

Aparência:
- Sentimento de incômodo: “Uma coisa que me incomoda muito também é a
aparência do braço”.

Justifica a tentativa de mudança:


- “É uma idéia mudar alguma coisa, porque está estagnada.”

A crença em suas possibilidades de mudança:


- “Sim mesmo. Acredito que eu posso.”

Procura uma justificativa, um motivo para estar ali:


- “Eu acho que se estou aqui é porque tenho que estar, e por algum motivo eu estou
aqui. Tem que ter um motivo, porque nada acontece por acaso”.

Planejamento para o futuro:


- “Agora eu pretendo fazer uma faculdade”.

Não realização:
- ”... coisa que nestes cinco anos de diálise eu já podia ter feito”.
- “Eu deixei tudo para depois que eu fizesse hemodiálise”.

Escolha do momento para efetuar mudança:


- “Eu estou começando a me organizar. Por enquanto estou planejando fazer
faculdade e aos pouquinhos eu vou me organizar.”

Preocupações e incertezas:
- “...não posso esperar sair da diálise, porque pode ser que isso não aconteça”.

IV.2 - Análise compreensiva da entrevista a partir da fenomenologia existencial

Neste momento proponho-me a refletir sobre a vivência desta


paciente com insuficiência renal crônica em processo de hemodiálise, que participou
37

da entrevista, a partir da psicologia fenomenológica, mais precisamente através do


enfoque fenomenológico da personalidade proposto por Forghieri.
O homem é um ser-no-mundo. E esse é um mundo concreto no
qual o homem atribui significados, ou seja, existe sempre em relação com algo e
alguém e compreende as suas experiências, o que dá sentido à sua existência.
Possuindo consciência da sua existência no mundo, este homem se constitui em
suas experiências, se contextualiza e atribui sentido às coisas e às pessoas e se
relaciona. É um ser que possui historicidade e um modo próprio e único de vivenciar
as suas experiências.
Para Forghieri (2004) existem características básicas do existir
humano, percebidas e compreendidas pela pessoa no decorrer da vivência cotidiana
imediata, constituindo uma totalidade, sendo elas: o ser-no-mundo, o temporalizar, o
espacializar e o escolher.
A nossa vida decorre dentro do cenário da experiência cotidiana
imediata. A estrutura fundamental desta experiência é o ser-no-mundo. Para
sabermos quem somos precisamos, de certo modo, saber onde estamos, pois a
identidade de cada um de nós está implicada nos acontecimentos que vivenciamos
no mundo. A vivência desta paciente com insuficiência renal crônica, em processo
de hemodiálise, se dá no universo da doença e do tratamento. Portanto, seu mundo
se configura através das relações mediadas pela situação de cronicidade e
enfrentamento desta doença.
Mas esse mundo, embora seja vivenciado como uma totalidade,
apresenta-se ao homem sob três aspectos simultâneos, diferentes: o mundo
circundante, o mundo humano e o mundo próprio.
O mundo circundante consiste no relacionamento da pessoa com o
ambiente, caracterizando-se pelo determinismo, sendo portanto, a adaptação, o
modo mais apropriado do homem relacionar-se a ele. Na fala da paciente, este
mundo é caracterizado pelo ambiente hospitalar e as pessoas que ali se encontram,
pelo ambiente familiar e pela conseqüência que o tratamento em hemodiálise impõe
ao seu corpo. É preciso adaptar-se a esse mundo e se inteirar a respeito do
processo que envolve o “estar” em hemodiálise. O corpo é o depositário das
sensações e o unificador, tendo o poder de sintetizá-las de forma global. A paciente
relata sob este aspecto, a vivência incômoda à respeito da aparência do braço, por
38

ela experienciada corporalmente. A paciente também reflete em sua vivência, uma


forma adaptada de se relacionar com este mundo, quando diz estar já acostumada a
fazer diálise.
Denota impossibilidade de viver concretamente a sua liberdade de
ir e vir, demonstrando o condicionamento que está sujeita, limitada em seu ambiente
e na sua corporeidade, quando não consegue realizar todas as suas possibilidades.
O mundo humano diz respeito a vivência e ao encontro da pessoa
com os seus semelhantes, sendo de fundamental importância para a existência
humana esta relação com os outros seres humanos ocorrendo neste encontro, uma
relação de reciprocidade, na qual ambos influenciam-se mutuamente. A paciente
encontra-se em convívio dia sim, dia não, com os companheiros de diálise, tendo
portanto, a oportunidade de se identificar, de atualizar as suas potencialidades, na
relação com os companheiros e também na relação que estabelece com o filho, ao
vivenciar com ele suas potencialidades, peculiarmente humanas de amor, liberdade
e responsabilidade.
O mundo próprio constitui-se na relação que a pessoa estabelece
consigo mesma, e envolve sua consciência e o seu autoconhecimento, percebendo-
se como sujeito e objeto. Quando a paciente retoma a história da sua vida e relata
os acontecimentos por ela vivenciados neste momento, em relação à doença,
maternalidade, ganhos, perdas, expectativas, relacionamento, aparência,
planejamento, passado, presente, futuro e contato com a morte.
O temporalizar consiste em experienciar o tempo como um fluxo
contínuo, que se estende tanto em direção ao passado como em direção ao futuro.
A existência humana consiste em estar continuamente saindo de si mesma,
portanto, “existir e transcender possuem o mesmo significado que é o de lançar-se
para fora, ultrapassar a situação imediata, que também quer dizer temporalizar”
(Forghieri, 2004).
O relato desta paciente demonstra que ao lançar para o passado o
seu temporalizar, na reflexão sobre a sua existência e o que fez deste tempo em que
está desde então, fazendo hemodiálise, denota a estagnação e a paralização de sua
vida e as possibilidades de realização que não aconteceram. E quando fala do
tempo remete-se também ao futuro quando planeja fazer uma faculdade, na
tentativa de mudança. Questiona e compara o início do tratamento com o momento
atual de sua existência.
39

O espacializar consiste no modo como vivemos o espaço em nossa


existência, objetivando a nossa espacialidade, localizando e denominando os
lugares e as coisas que nele se encontram.
Procuramos racionalizar, objetivar, localizar e determinar esta
vivência do espaço em nossa existência, como se fosse algo estático. O nosso
espacializar compreende uma “expansividade”, reunidos numa compreensão global.
Quando vivemos intensas alegrias o nosso existir se amplia e quando vivemos
intensos sofrimentos, se restringe.
A vivência do espaço e tempo estão intimamente relaciona-das.
Podem ser vivenciadas com amplitude ou restrição, a esperança da pessoa em
poder realizar as suas possibilidades, amplia. O desânimo e as perspectivas de não
conseguir visualizar os meios de concretizar as suas possibilidades, restringe. Na
fala da paciente, esboça sentimento de desânimo, que nada muda, também
sentimento de desconfiança em relação à equipe, num modo de vivenciar o espaço
com estranheza. O que sob este aspecto de sua vivência, restringe.
O escolher consiste na condição de liberdade humana,
proporcionando amplitude nas possibilidades de escolha, durante a existência. Para
Forghieri (2004), podemos considerar que a liberdade de escolher é tanto maior
quanto mais ampla for a abertura do ser humano à percepção e compreensão de
sua vivência no mundo. Esta abertura, requer também que a compreensão esteja de
acordo com a realidade; a compreensão deve ser verdadeira para que a escolha não
venha a ser apenas uma quimera, ou uma ilusão. A realidade está originalmente
fundamentada, segundo a autora, na compreensão que o ser humano tem das
situações que vivencia, estando nela implícitas as três dimensões temporais de seu
existir: como ele tem sido (passado), como está sendo (presente) e como poderá vir
a ser ( futuro). O ser-no-mundo é um ser-de-escolhas e a necessidade que este ser
tem para efetuar uma escolha entre várias possibilidades já contém a sua limitação
como ser humano, indicando que não se pode escolher, simultaneamente, todas as
suas potencialidades.
Entretanto, de acordo com a autora, esta abertura originária às
nossas possibilidades, não se realiza facilmente, pois defrontamo-nos com os
obstáculos e restrições no decorrer da existência; estes, fazem parte de nossa
facticidade, que abrange a materialidade do mundo e a nossa própria. O ambiente, o
clima, as intempéries, os acidentes, bem como o nosso organismo, os instintos,
40

condicionamentos e doenças aos quais estamos sujeitos, constituem limites


mundanos e pessoais à vida de todos nós.
E as vivências desta paciente renal crônica, se dão dentro de uma
enfermaria de hemodiálise, constituindo um obstáculo para a não realização de suas
possibilidades, limitando-a à facticidade de sua existência, restringindo a sua
presença concreta, a este determinado momento, único lugar, permitindo-lhe fazer
apenas uma coisa de cada vez, e cada escolha implica em muitas renúncias. Na fala
da paciente observa-se uma compreensão clara de sua condição. Através do desejo
de mudança da mesma, em relação ao seu cotidiano estagnado, percebe-se esta
abertura para a percepção e para a compreensão de sua vivência no mundo, o que
também reflete uma maneira sadia de existir, abrindo-se a novas possibilidades,
apesar de reconhecer as limitações que o processo de hemodiálise implica. O que
não impede a paciente de se entregar à situação, que apesar de vivenciar
momentos de restrição, conflitos e contrariedades, demonstra ter conseguido
recuperar o envolvimento e a sintonia com o seu sofrimento ao atribuir-lhe um
significado em sua existência, de forma saudável, quando faz planos para o futuro,
desejando cursar uma faculdade, apesar destas limitações, na tentativa de mudar o
seu cotidiano e começar a organizar a sua vida, abrindo-se às possibilidades de
existir, desenvolver suas potencialidades e ampliar a compreensão de si e do
mundo.
41

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Intervir, como profissional da área da saúde, requer habilidades tais


que possibilitem o acolhimento e o cuidado com o outro, com o corpo e com a alma,
na tentativa de auxiliar a pessoa na recuperação da abertura às múltiplas
possibilidades de sua existência.
Nessa atuação, é necessário que o terapeuta esteja presente de
forma genuína, para que por meio desta, seja viabilizada a recuperação do
envolvimento e da sintonia da pessoa com o mundo e consigo mesma e também
favorecer o conhecimento de si mesmo, a compreensão do mundo, propiciando a
busca por uma inserção plena, dentro do significado e do sentido que a pessoa
atribui a sua vivência.
Ao buscar compreender e refletir com o paciente, a essência do seu
sofrimento e o seu significado, o terapeuta propicia, na medida do possível, a
devolução à pessoa, da livre disposição de suas possibilidades existenciais de
atuação que respondem aos dados do mundo.
Observei que a insuficiência renal crônica, apesar de estagnar a
vida da paciente, dentro do contexto da história da sua vida e todas as limitações
implicadas nesta condição, impediram-na, durante todo este tempo de diálise, de
desenvolver um modo enfermo de existir; ao contrário, demonstrou que a mesma,
apesar do sofrimento e da dor que esta condição propicia, não perdeu a capacidade
de se abrir e de se decidir livremente acerca de suas possibilidades.
Este estudo me propiciou lançar o meu olhar para a família do renal
crônico e como, com o tempo, esta vai se desligando do tratamento e
conseqüentemente do paciente, onde percebe-se o abandono que surge ao seu
redor, acarretando mais prejuízos em sua vida. Sugiro um estudo mais aprofundado
sobre o tema, porque o profissional psicólogo, também pode atuar como educador,
orientador, na medida em que fornece informações a família e ao paciente, sobre os
aspectos que norteiam sua condição e sobre o tratamento em si. Também pode
propiciar um pensamento conjunto, para a abertura e para a ampliação da
compreensão do adoecer na família, objetivando o desenvolvimento das
potencialidades existentes e de reflexões acerca de um vir-a-ser mais sadio da
família e do paciente renal crônico.
42

Sendo a paciente do estudo, do sexo feminino, a questão da


aparência é um tema que também propicia um estudo posterior aprofundado, porque
notei que esta condição gera um incômodo, uma depreciação de si mesma e um
afastamento da relação com os seus semelhantes, significando a falta de
reciprocidade, condição de fundamental importância para a existência humana.
O contato com a morte iminente é um tema importante, que
também merece um estudo mais aprofundado, porque denota a facticidade humana
a todo instante, limita as possibilidades de um vir-a-ser saudável e angustia o renal
crônico, de maneira a revelar sentimentos ambivalentes de estagnação e de
necessidade de mudança, o que reflete uma vivência conflitiva, de intensas
contrariedades, revoltas e medos. Neste sentido, pode o profissional psicólogo
oferecer os meios para que o paciente renal crônico recupere o envolvimento e a
sintonia com o seu sofrimento, ajudando-o a atribuir um significado em sua
existência.
Observei que a desconfiança da paciente em relação à equipe,
remete-nos a uma reflexão conjunta, para que todos os profissionais envolvidos em
uma enfermaria de hemodiálise não se atenham somente nas intervenções
pautadas nos aspectos técnicos e conhecimentos biológicos, devendo abranger a
compreensão do que se vivencia pelo paciente renal crônico, procurando integrar na
sua atuação a perspectiva da visão de quem é cuidado, para tanto há a necessidade
de se realizar um estudo futuro, com a possibilidade da equipe poder refletir e
compreender esta visão, sob o prisma da vivência do paciente.
A Insuficiência Renal Crônica abrange muitos aspectos a serem
estudados e pesquisados. O que aqui apresento, apenas refletem alguns destes
caminhos a serem ainda percorridos e estudados, não se constituindo, portanto,
num encerramento das possibilidades para o entendimento sobre esta questão nem
tão pouco significando uma verdade única a respeito deste tema.
Assim sendo, eu acredito ter conseguido atingir meu objetivo, pois
este estudo possibilitou-me compreender o significado que cada pessoa atribui à sua
vivência e nesta tentativa de compreensão deste fenômeno que é a experiência da
hemodiálise para o paciente renal crônico, também me possibilitou compreender
vários aspectos que norteiam esta vivência na hemodiálise e principalmente, a
buscar intervir de forma genuína, ouvindo suas experiências, acolhendo suas dores,
tentando compreender a essência dos seus sofrimentos, observando a realidade
43

circundante deste cenário no qual o paciente renal pertence, na medida em que o


profissional propicia a compreensão destes aspectos pertinentes a esta condição e
participa desta vivência conjunta, de modo a permitir que a pessoa existencialmente
doente reflita sobre as várias escolhas apresentadas contidas num horizonte repleto
de um vir-a-ser com infinitas possibilidades de viver no mundo inserido num contexto
que lhe permita se abrir a estas possibilidades, aceitando e enfrentando os
paradoxos e as restrições da sua existência, de modo a conseguir estabelecer
articulações eficientes entre a amplitude e as restrições de seu existir. Ou seja, que
consiga tentar dispor livremente e normalmente de todas as possibilidades que lhe
permita se relacionar com o mundo de maneira existencialmente saudável.
O importante, é que o profissional consiga transmitir para o
paciente o reconhecimento de suas limitações para que este possa, também
transcendê-las, de algum modo, através da descoberta de suas outras
possibilidades. Quer dizer, permitir que o paciente se envolva e aceite o seu
sofrimento, para que consiga compreendê-lo e ter condições, de se abrir para as
suas possibilidades de existir.
44

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Hexágono – Vol. 2 – Nº. 1 – 1975 – págs. 10-24.
BRUNS, Maria A. de T.; HOLANDA, Adriano F. Psicologia e Fenomenologia:
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BUSATO, Otto. “Transplante Renal: aspectos emocionais”. In: MARTINS, Cyro et
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2003. Disponível em: http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?224 –
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CAMON, Valdemar A. A. (org.); CHIATTONE, Heloisa B. de C.; MELETI, Marli R. A
Psicologia no Hospital. 2 Ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
DYNIEWICZ, Ana Maria; ZANELLA, Eloísa; KOBUS, Luciana S. G. Narrativa de uma
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FORGHIERI, Yolanda C. Psicologia Fenomenológica: fundamentos, método e
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MACHADO, Leise R. C.; CAR, Márcia R. A Dialética da Vida Cotidiana de Doentes
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45

MIRANDA, Eunice M. F.; KROLLMANN, Aparecida de O.; SILVA, Cibely A. da. Perfil
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SIQUEIRA, André. O Filtro da Vida. Jornal da Paulista, ano 12, nº 129 – São Paulo:
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THOMAS, Caroline V.; ALCHIERI, João C. Qualidade de Vida, Depressão e
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Avaliação Psicológica. – V. 4 – nº. 1 – Porto Alegre: Junho, 2005. Disponível
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Acessado em: 11/12/2006.
ZABOROWSKI, Denise R. H. O Papel do Psicólogo numa Unidade de Diálise. Jornal
Brasileiro de Nefrologia – Vol. 11 – nº. 1 – Março, 1989.
ANEXOS
i

ANEXO I - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA


REALIZAR ESTUDO SOBRE O SIGNIFICADO DA HEMODIÁLISE PARA O
PACIENTE RENAL CRÔNICO A PARTIR DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL

Você está sendo convidado como voluntário a participar da


pesquisa: “Tentando compreender o significado da hemodiálise para o paciente
renal crônico a partir da fenomenologia existencial”.

A Justificativa, os Objetivos e os Procedimentos.


O motivo que nos leva a estudar o significado da hemodiálise para
o paciente renal crônico, provém da necessidade de maior compreensão sobre este
processo, visando melhorias do atendimento clínico-hospitalar. O objetivo deste
trabalho é descrever e analisar, partindo de um pressuposto teórico, o fenômeno da
hemodiálise para a paciente renal crônica , buscando o sentido existencial atribuído
a esta experiência. O procedimento de coleta de dados se baseará na realização de
uma entrevista com a paciente renal em processo de hemodiálise.

Garantia de Esclarecimento, Liberdade de Recusa e Garantia de Sigilo.


Você será esclarecida sobre a pesquisa em qualquer aspecto que
desejar. Você é livre para retirar seu consentimento ou interromper a sua
participação na pesquisa a qualquer momento. A sua participação é voluntária e a
recusa em participar não irá acarretar em qualquer penalidade ou perda de
benefícios.
O pesquisador tratará a sua identidade com padrões profissionais
de sigilo. Os resultados da pesquisa serão enviados a você. O nosso encontro será
transcrito manualmente, com a sua autorização. Uma cópia deste consentimento
informado será arquivada no trabalho e outra será fornecida a você.

Custo da Participação.
A sua participação não acarretará nenhum custo a você e também
não serão disponibilizados nenhum tipo de compensação financeira adicional.
ii

Declaração da Participante, ou do Responsável pela Participante.


Eu,___________________________________________________
____________ fui informada dos objetivos da pesquisa acima de maneira clara e
detalhada e esclareci minhas dúvidas. Sei que em qualquer momento poderei
solicitar novas informações e modificar a minha decisão se assim desejar. A
pesquisadora Mônica Aparecida Zappa Rezende (RG: 18.044.588-1 SSP) certificou-
me de que todos os dados desta pesquisa serão para fins acadêmicos.
Também sei que caso existam gastos adicionais, estes serão de
minha própria responsabilidade. Em caso de dúvidas, poderei chamar a psicóloga
Mônica Aparecida Zappa Rezende no telefone (11) 3051-2030 e (11) 7627-2075.
Declaro que concordo em participar desta pesquisa. Recebi uma cópia deste termo
de consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e
esclarecer as minhas dúvidas.

____________________________
____________________________ ________________________
Nome Assinatura do responsável
Data

____________________________
____________________________ ________________________
Nome Assinatura da Pesquisadora
Data

_____________________________
_____________________________ _________________________
Nome Assinatura da Testemunha
Data
iii

ANEXO II – ENTREVISTA

Transcrição da Entrevista Realizada em 20/11/2006


Dados do Sujeito:

NOME:I. P. S. F.
SEXO: Feminino
NASCIMENTO: 17/10/1979
IDADE: 27 Anos
ESTADO CIVIL: Separada
QUADRO CLÍNICO:
Paciente tem 27 anos é separada há 1 ano e vive com seu filho de cinco anos. Está
aposentada e vive desta renda.
Aos 18 anos foi diagnosticada com Nefrite e aos 20 anos de idade, engravidou. Por
causa da Nefrite, na gravidez os rins começaram a falhar e o filho nasceu prematuro
aos 6 meses. Os rins ainda funcionaram por mais 1 ano antes de cessar
definitivamente e logo depois a paciente iniciou o processo de hemodiálise em 2002.

P. O que significa para você o processo da hemodiálise?


I. Significa uma paralização na minha vida. É uma coisa ambígua, porque me
permite cuidar do meu filho e ao mesmo tempo paralizou a minha vida. Prejudicou
também.

P. Prejudicou o que?
I. O tempo. Porque não posso sair, não posso viajar, é um compromisso porque a
gente não tem Natal, não tem feriado, não tem festa, passeio.
É como se a minha vida tivesse parado no momento em que eu comecei a
hemodiálise e ela tivesse estacionado. E até mesmo no meu casamento que já não
era bom. Depois da hemodiálise, piorou de vez até a separação. Ao mesmo tempo
eu ainda agradeço a hemodiálise, porque ainda posso cuidar do meu filho. A
hemodiálise me mantém viva, mas ao mesmo tempo, chego em casa tão acabada,
que não posso brincar com o meu filho, nem ajudar ele a fazer uma lição. Parece
castigo de Deus...
iv

P. Sempre dois momentos antagônicos, contrários...


I. Isso, mesmo... ambíguo. Quando eu chego em casa, eu faço o essencial, tipo
cuidar do jantar, mas não posso correr com meu filho, atrás de uma bola, porque
minha cabeça está girando...eu acho que isso tudo aqui é muito injusto. Que aqui
não é uma coisa verdadeira. A lista de transplante não existe. Esta lista é fictícia é
fantasia. Nestes cinco anos que estou aqui, nunca vi um companheiro receber um
rim aqui. Eu acho que a gente nunca vai ser chamado. A gente não é compatível
com um rim, porque não é compatível com a conta bancária do médico. Acho que
isso é uma fonte de renda para o médico e que quando a gente caiu aqui, não tem
volta. Aqui tem muito favorecimento para alguns pacientes e para outros não, apesar
de ter gente aqui tanto do SUS quanto dos convênios e particular. Aqui não tem
diferença. Mas algumas enfermeiras, não estou falando das auxiliares, nem te olha
para te dar bom dia. Eu imagino que é um castigo por alguma coisa. Acho que
quando eu entrei aqui tudo me parecia tão cruel...mas hoje já estou acostumada.
Mas desanima, não muda nada e com o tempo começa a desanimar. Você começa
a ver pessoas que vão morrendo à sua volta e quando isso acontece, é muito ruim,
porque você passa muito tempo aqui dentro.
Uma coisa que me incomoda muito também é a aparência do braço. É assim, o povo
te aponta na rua. Já chegaram a me perguntar se eu tentei me matar. Minha vida
parou. Hoje para mim não é tão ruim. Não vejo mais tanto drama. Quando comecei
meu filho tinha 1 ano. Hoje já estou adaptada e mais tranqüila e ele entende mais.

P. Seu filho se acostumou também...


I. Sabe, eu penso que se não fosse a hemodiálise eu poderia ser uma mãe
melhor...Coitadinho...se acostumou e tão pequeno ainda...ter que entender...eu
acredito que sou uma boa mãe. Eu não saio, não viajo e não tem feriado, Natal,
férias, passeios com ele...estas coisas que a gente pode fazer com criança. E
depois, quando ele completou 1 ano eu entrei em diálise. Na gravidez forçou o rim e
ele ainda agüentou 1 ano antes de parar totalmente.
v

P. Então você veio para esta enfermaria...


I. É... agora já estou acostumada, já estou adaptada, já não é mais um “bicho de
sete cabeças”. Na época, a “ficha” só “caiu” mesmo muito tempo depois. Eu já fazia
diálise. Eu já tinha mais de 1 ano de diálise. Aí que foi “cair a ficha”. Pensava:
“Gente, olha onde eu estou!” Eu acho que já estou tão acostumada que o tempo
passou e eu não planejei a vida. Agora eu pretendo fazer uma faculdade, coisa que
nestes 5 anos de diálise eu já podia ter feito. Eu estou começando a me organizar.
Por enquanto eu estou planejando fazer faculdade e aos pouquinhos eu vou me
organizar. Eu deixei tudo para depois que eu fizesse hemodiálise. Sendo que eu
poderia ter feito durante este tempo.

P. O uso que você fez e faz do seu tempo. O tempo é esse...o momento
presente...
I. É isso...não posso esperar sair da diálise porque pode ser que isso não aconteça.
É uma idéia mudar alguma coisa, porque está estagnada. Será que eu não posso
fazer alguma coisa para mudar isso? Mesmo estando fazendo hemodiálise?

P. Me parece que sim...vc está dizendo que sim.


I. Sim mesmo. Acredito que eu posso. Eu acho que se estou aqui é porque tenho
que estar e por algum motivo eu estou aqui. Tem que ter um motivo, porque nada
acontece por acaso...é isso o que eu tinha pra dizer.

P. Bem, então eu agradeço muito por você ter me ajudado neste trabalho e a
gente se vê depois de amanhã, tenha um bom dia e até...

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