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Para desaprender o queer dos trópicos: desmontando a caravela queer1

Por Jota Mombaça2.

Não se pode dizer que o problema da colonialidade tenha passado


desapercebido no marco dos estudos queer acadêmicos do Brasil. No mesmo
ano (2012) que Hija de Perra publicou o ensaio citado no primeiro texto desta
série, um interessante movimento de critica descolonial ganhou força na
produção queer brasileira oficial. Destaco aqui dois textos dessa leva que se
tornaram bastante populares entre pessoas estudiosas do assunto. “Queer nos
Trópicos”, de Pedro Paulo Gomes Pereira, e “Subalterno quem, cara pálida?
Apontamentos às margens sobre pós-colonialismos, feminismos e estudos
queer”, de Larissa Pelúcio, ambos publicados no mesmo Dossiê Saberes
Subalternos da Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCAR (2012).

Esses dois textos compartem uma perspectiva bastante crítica quanto ao


modo como, no que diz respeito à geopolítica do conhecimento afinada em
escala global, a produção teórica queer brasileira deve desafiar, desde as
margens, os postulados projetados como verdade pela colonialidade do saber,
regime que visa definir – segundo uma hierarquia na qual os saberes do “Sul
Global” são necessariamente inscritos por efeitos de subalternidade, ao passo
que as produções euroestadunidenses são hiperestimuladas e sobrevalorizadas
– o que conta ou não como “teoria de ponta”.

Tais reflexões têm a importância de situar os termos definidos pelo cânone


queer global, questionando sua universalidade ao mesmo tempo em que
afirmam, desde o contexto igualmente situado da produção teórica queer
brasileira, uma singularidade perante as generalizações feitas por autores
euroestadunidenses. Nesse sentido é que as proposições de Paul B. Preciado,
especialmente as contidas em Testo Yonqui, são criticamente avaliadas e
confrontadas em ambos os textos. Não se trata, contudo, de uma tentativa de
invalidação das contribuições do autor, mas de uma problematização
contundente quanto ao caráter universal dessas proposições com vistas à
insuficiência de seus modelos para uma análise da realidade brasileira concreta.
Dos dois textos mencionados, é o “Queer nos Trópicos” que vai mais fundo
nessa problematização da obra de Preciado. Para uma revisão crítica do
conceito de “farmacopornopoder” – que, grosso modo, postula a preponderância
dos dispositivos fármaco (biotecnológico) e pornô (semiótico-técnico) nos
processos de subjetivação e de produção de gêneros na contemporaneidade –,
Pedro Paulo Gomes Pereira evoca a experiência de Cida, travesti com quem
conviveu durante uma etnografia realizada em 2004 num abrigo para pessoas
portadoras de aids nas proximidades de Brasília.

1 Artigo publicado no site SSEX BBOX – Sexualidade fora da caixa em 28 de agosto de 2016.
Para acessar a publicação original: http://www.ssexbbox.com/2016/08/para-desaprender-o-
queer-dos-tropicos-desmontando-a-caravela-queer/
2 Jota Mombaça é também Monstra Errática e MC Katrina. É uma bicha não binária do Nordeste

do Brasil, que faz estudos acadêmicos em torno de monstruosidades, perspectivas kuir e


descoloniais, feminismos, contra-humanismos e ficções especulativas; faz também falatórios,
arte de ação e funk. Ama rebolar.
Depois de apresentar brevemente a história de vida de Cida e traçar um
paralelo com a de Preciado, o autor concede especial atenção à relação “de sua
fonte” com a umbanda, enfatizando o modo como esse conhecimento mítico-
religioso e as ritualizações que ele implica interatuam junto a uma série de outros
elementos – técnicos, discursivos, performativos – na produção de seu corpo.
No texto, a relação entre religiosidades afrobrasileiras e processos de
subjetivação e corporificação de mulheres trans e travestis é abordado a partir
de uma série de referências a outras pesquisas acadêmicas sobre o tema.
Levando em conta essas narrativas sobre travestis adeptas de umbanda,
candomblé ou quimbanda, Pedro Paulo busca problematizar a centralidade dada
por Preciado (e por outros autores europeus importantes para o desenvolvimento
dos estudos queer, como Michel Foucault) aos elementos de matriz
biotecnológica na produção dos corpos, afirmando a insuficiência de modelos
universais a partir de um quadro complexificado pela interação de elementos
míticos e rituais com fluxos de imagem, silicone, hormônios etc., no corpo de
travestis afro-religiosas do Brasil.

Dessa maneira, “Queer nos Trópicos” pretende excitar uma


reconfiguração possível do arcabouço teórico queer consolidado nos estudos
sobre vivências trans e reivindica, para isso, uma analítica queer sensível ao
modo como diferentes contextos acionam diferentes mediadores para a
produção dos gêneros e sexualidades. Com esse movimento, o autor consegue
desbancar a relação de poder geopolítico que garante aos saberes projetados
desde os centros globais de produção de conhecimento a possibilidade de definir
os modelos analíticos que serão aplicados nas margens. No entanto, para dar
cabo disso, depende de reconstruir com sua própria voz a experiência de Cida e
de outras travestis.

Ao comparar a história de Cida com a de Preciado, por exemplo, o autor


em nenhum momento alude à própria história, ou assume a implicação que o
próprio corpo tem no tipo de produção conceitual que ele leva adiante em seu
texto. O que Pedro Paulo oferece como contraponto à experiência de Preciado
narrada em primeira pessoa é a experiência de Cida narrada em terceira pessoa.
Dessa maneira, não obstante desbanque a tradição universalizante das
produções de conhecimento eurocêntricas a partir de um enfoque singularizado
pela densidade do contexto brasileiro, o seu texto se sustenta por sobre um
apagamento sistemático das próprias marcas corpo-políticas de quem escreve
– o que desdobra uma continuidade insuspeita entre o que autor faz e o que ele
critica.

Se ao criticar a dimensão colonial do queer no mundo sudaca Hija de


Perra evoca sua experiência para interrogar, desde a própria dissidência sexual
e de gênero, a matriz queer de conhecimento, oferecendo dessa forma uma
resistência efetiva à interpelação queer como efeito de poder acadêmico; o giro
decolonial das pessoas teóricas de gênero do Brasil segue limitado a assinalar
escalas hierárquicas entre contextos acadêmicos distintos (os do Norte e do Sul
globais), sem com isso, em momento algum, questionar a própria academia –
com sua linguagem teórica normalizada, sua tematização das vidas de pessoas
reais e suas hierarquias consolidadas por sistemas rígidos de avaliação
institucional – como território-chave para a atualização do queer como referencial
indissociável da colonialidade do saber no contexto brasileiro (sudaca e terceiro-
mundista).

Assim, falta à elite teórica do queer nos trópicos reconhecer de que modos
a colonialidade do queer não se dá somente de fora para dentro – isto é, do
mundo euroestadunidense para os contextos periféricos –, mas também de
dentro para dentro, por efeito de um “colonialismo interno” levado a cabo pelos
mesmos teóricos de gênero que ora questionam a supremacia do queer do Norte
sobre os queer do Sul. Nesse sentido, a oposição macro-estrutural Norte e Sul
produz contraditoriamente um apagamento das tensões Sul-Sul e contribui para
a perpetuação de modos de dominação epistemológica, ética e política não
previstos por autores como Pedro Paulo Gomes Pereira.

Desaprender o queer dos trópicos tem assim o sentido de uma


desnaturalização radical dos procedimentos acadêmicos, incluindo uma
problematização das relações sujeito-objeto que ajudaram a consolidar a elite
teórica queer do Brasil, assim como uma revisão critica dos efeitos de
interpelação que a apropriação do queer desdobrou em territórios como o nosso.
Em tempo: não posso deixar de registrar que esse texto não necessariamente
escapa àquilo que critica, pois que consiste em mais um exercício teórico sobre
o queer, produzido desde a posição de bicha gorda não binária e acadêmica, e
não num programa de ação para as pessoas dissidentes sexuais e de gênero. A
diferença deste texto é que, se ele interpela algo, é a própria elite queer e seus
procedimentos críticos, fazendo de objeto aqueles que, até agora, não
participaram do debate senão como sujeitos: as pessoas pesquisadoras.

p.s.: quando falo em “elite teórica queer do Brasil”, refiro-me à rede de teóricos
de gênero e sexualidade consolidados, bem posicionados nos rankings formais
de produção de conhecimento, empregados por universidades de renome,
majoritariamente brancos e cisgêneros. Falo de gente como Richard Miskolci,
que durante o I Seminário Queer do SESC (que não por acaso ficou conhecido
como Cisminário) chegou a afirmar que a ausência de pessoas trans*,
racializadas e dissidentes sexuais na programação do referido evento se devia
a uma “falta de vocabulário” que ele, e a equipe por ele formada, estava tentando
suprir com suas pesquisas, falas e publicações.

LEITURAS

PELÚCIO, Larissa. Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos à margem


sobre pós-colonialismos, feminismos e estudos queer. Contemporânea, v. 2, n.
2, p. 395-418, jul./dez. 2012. Disponível em:
<http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/89/
54>. Acesso em: 18 ago. 2016.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer nos trópicos. Contemporânea, São


Carlos, v. 2, n. 2, p. 371-394, jul./dez. 2012. Disponível em:
<http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/88/
53>. Acesso em: 18 ago. 2016.

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