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Boletim de Iniciação Científica em Psicologia – 2001, 2(1): 42-58

CLÍNICA DE HEMODIÁLISE: EXISTE QUALIDADE DE VIDA?

Letícia Ribeiro Borges


Dinorah Gióia Martins (O)

RESUMO: Pesquisa realizada com pacientes renais crônicos atendidos


em uma clínica de hemodiálise de São Paulo, com o objetivo de
analisar o grau de humanização deste ambiente hospitalar, bem
como a qualidade de vida destes pacientes. Foram realizadas
entrevistas semi-dirigidas com 5 dos pacientes atendidos nesta
clínica. Os dados colhidos foram analisados sob um referencial teórico
psicanalítico e, através desta análise pôde-se perceber o quanto esta
clínica é pouco humanizada e o quanto a qualidade de vida dos
pacientes se encontra prejudicada. Ao final, são propostas algumas
sugestões de mudança que poderiam tornar este local mais
apropriado para o restabelecimento da saúde e que contribuiriam
para a melhora da qualidade de vida das pessoas lá presentes.
Palavras-chave: Psicologia hospitalar, doença crônica, qualidade de
vida, hemodiálise.

DIALYSES CLINIC: IS THERE QUALITY OF LIFE?

ABSTRACT: Research done with chronic renal patients taken care in


a dialyses clinic of São Paulo. The target was analysing the
humanizing degree of the hospital environment, as well as the
patients’ quality of life. Partly controlled interviews with 5 of the
patients taken care in the clinic were done. The gathered data were
analysed according to a psychoanalytical theory and through this
analysis one could realize this clinic is little humanized and the
patients’ quality of life is imparied. Finally, some suggestions for
changes that could make the estableshment more suitable for the
Letícia Ribeiro Borges; Dinorah Gióia Martins

rehabilitation of health, and could contribute towards a better quality


of life of this patients were proposed.
Keywords: Hospital Psychology, cronic disease, quality of life,
dialyses.

Introdução
Os hospitais, apesar de serem representantes da grande luta
pela saúde, marcam, significativamente, um período na vida de
qualquer pessoa que necessita ser hospitalizada. Isto ocorre com
mais intensidade no caso de pacientes crônicos, que tem de dedicar
mais tempo de sua vida aos cuidados médicos-hospitalares. Neste
contexto, a Psicologia contribui tendo como principal objetivo tratar
os males psicológicos das pessoas que ali estão, contribuindo para “a
minimização do sofrimento provocado pela hospitalização”
(ANGERAMI-CAMON, 1994, p.23).
Sendo assim, podemos pensar que as conseqüências de um
acontecimento como a hospitalização tem um alcance muito maior do
que às vezes supomos, e pode alterar a qualidade de vida de uma
pessoa não apenas durante o período em que ela se encontra no
hospital. Diante deste contexto parece ser necessária uma reflexão
sobre o real estado do paciente que freqüenta o ambiente hospitalar,
uma investigação do alcance das conseqüências da hospitalização e
também pensar em possibilidades que possam tornar o trabalho da
psicologia nos hospitais cada dia mais eficaz, com maior alcance,
visando atingir não somente aquele período de vida em que o
paciente se encontra no hospital, mas também o que decorre dele.
Esta pesquisa, que foi realizada em uma clínica de
hemodiálise, pretende analisar o grau de humanização do ambiente
da clínica (um núcleo hospitalar) com base na fala dos pacientes, e
levantar possibilidades de mudanças que possam promover o bem-
estar dos mesmos na clínica e contribuir para a melhora de sua
qualidade de vida.

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Clínica de hemodiálise: existe qualidade de vida?

Vários pesquisadores, das mais diferentes áreas, já se


dedicaram a pensar a questão da Qualidade de vida, e todos são
unânimes em colocar que este é um termo difícil de ser definido.
RAMOS apud GUIMARÃES e GRUBITS (1999, p.90) define Qualidade
de Vida como sendo “um conjunto harmonioso e equilibrado de
realizações em todos os níveis”. DÉAK apud GUIMARÃES e GRUBITS
(1999, p.93) coloca que Qualidade de Vida “é a sensação de bem
estar do indivíduo”. PETRONE (1994, p.13), em sua pesquisa com
pacientes psicossomáticos, coloca que “Qualidade de Vida é
entendida no sentido de satisfação, vida como realização das
aspirações, dos desejos”. Com base nestas definições, entenderemos
Qualidade de Vida como sendo o bem estar, a satisfação de
necessidades humanas, o respeito a condições e estilo de vida, a
realização.
Os pacientes que se encontram em tratamento em uma clínica
de hemodiálise perderam parcial ou totalmente a sua função renal.
Conforme coloca BELLODI (1994, p.04) “os pacientes são
selecionados para hemodiálise quando os sintomas de falência renal
são incontroláveis por dieta ou outras formas de tratamento”. Quando
a função renal é prejudicada há uma perda excessiva, na urina, de
substâncias químicas essenciais e um acúmulo de detritos químicos e
toxinas no sangue. Assim, os tecidos e órgãos do corpo são supridos
de sangue e de soluções com componentes químicos impróprios, o
que pode por a vida em perigo. O tratamento hemodialítico é um
processo de filtragem, utilizado para retirar do organismo estas
substâncias tóxicas que são filtradas pelo rim em um processo
natural. Durante este procedimento, o sangue do paciente sai de seu
organismo, através de uma fístula ou catéter, com a ajuda de uma
bomba, e circula por uma máquina dialisadora, retornando depois
para o paciente. Este processo dura em média 4 horas e deve ser
feito 3 vezes por semana.

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Segundo CAYRES e GIÓIA-MARTINS (2000, p. 17) a


hemodiálise “não propicia ao paciente um estado de saúde similar ao
que tinha antes de adoecer (...) o corpo em geral fica mais
debilitado”. Esta debilidade física dificulta a manutenção dos hábitos
de vida do paciente, sendo comum em portadores de Insuficiência
Renal Crônica (IRC), a aposentadoria antecipada ou a diminuição de
rotina e carga horária de trabalho, o que diminui consideravelmente a
sua produtividade. Esta diminuição da produtividade provoca um
sentimento de inutilidade, como se o paciente estivesse privado de
dar contribuições à vida e ao mundo. A IRC e a hemodiálise
provocam também uma mudança brusca na vida dos pacientes que
tem de alterar, de maneira significativa, seus hábitos e seu cotidiano
(dietas, cuidados, limite de atividades, dentre outros). Além disso, é
comum encontrar nestes pacientes uma sensação de perda de tempo
durante o tratamento. O fato de terem de permanecer na clínica por
4 horas, 3 vezes por semana, é considerado por grande parte deles
como um período de tempo muito grande que foi perdido.
Do ponto de vista psicológico a hemodiálise é também um
tratamento que causa muito sofrimento, tornando o paciente frágil e
debilitado emocionalmente. Todos os trabalhos pesquisados são
unânimes em chamar a atenção para a grande incidência do mal
estar emocional no paciente, em decorrência de seu mal estar físico.
ALMEIDA (1994, p.03) coloca que “as perdas reais e imaginárias em
torno da doença, associadas ao risco de morte, suscitam sentimentos
de impotência e desamparo frente a esta situação. Neste contexto,
observa-se a emergência de inúmeros conflitos e dificuldades
psicológicas”. CAYRES e GIÓIA-MARTINS (2000) definem bem a
situação destes pacientes do ponto de vista psicológico:
o modo como se manifesta a patologia, a condição crônica
da mesma, as intensas mudanças na rotina do paciente e
sua família, o ambiente do ambulatório, e o prolongado e
doloroso tratamento realizado, precipitam uma série de

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conseqüências nos pacientes que por si só já influenciam


na dinâmica psíquica dos mesmos, tornando-a mais
suscetível à conflitos e instabilidades, independente do
histórico de vida de cada um (p.15).
Alguns autores consultados fazem ainda uma investigação
acerca dos mecanismos de defesa encontrados freqüentemente no
funcionamento psíquico destes pacientes. Para ZOZAYA apud SANTOS
e SEBASTIANI (1998)
as enfermidades crônicas produzem uma série de conflitos
emocionais, ansiedade, angústia, que vão desencadear no
paciente uma série de mecanismos defensivos múltiplos;
entre os mais freqüentes e interessantes de comentar se
encontram: regressão (...) negação (...) intelectualização
(p.157).
Para BELLODI (1994, p.17) “a negação tem sido vista como o
mecanismo de defesa mais comumente usado pelos pacientes em
diálise”.
Além de marcar significativamente este período de vida, a
hospitalização traz mudanças importantes, altera aspectos da vida do
indivíduo que foi hospitalizado. Estas experiências, estes sentimentos
são, em sua maioria, resultantes do ambiente frio e, muitas vezes
desumano do hospital e do tratamento, geralmente impessoal, dos
profissionais que ali atuam. Em decorrência de sua formação
extremamente técnica e muito pouco humana, estes profissionais
geralmente buscam tratar a doença, o mal e não a pessoa que foi
acometida por alguma enfermidade. Desta forma, substituem a
pessoa pela doença, esperando apenas preservar aquela vida. É certo
que neste ambiente o principal objetivo é a manutenção da vida, mas
do que adianta prolongar a vida se esta se encontra repleta de mal
estar e sofrimento emocional?
CHIATTONE (1984, p.45) coloca que “os hospitais, em geral,
possuem uma estrutura capaz de atender o paciente de forma mais

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humana. Basta, para isto, que haja uma maior conscientização da


necessidade e premência de atendimento interdisciplinar”. E aqui
chegamos a um ponto quase unânime entre os estudiosos da questão
hospitalar. É inegável a importância da especialização mas também é
igualmente inegável a necessidade de se enxergar o paciente como
um ser único. Para tanto, é necessário que os profissionais trabalhem
juntos, superando as diferenças e os melindres, buscando uma visão
completa do paciente e o seu bem estar total.
Se pensarmos no papel da psicologia nos hospitais, é possível
concluir que a nossa grande contribuição é amenizar o sofrimento
causado pela hospitalização, mas sobretudo prevení-lo através da
humanização do ambiente hospitalar que deve ser alcançada junto
dos pacientes e dos outros profissionais da saúde. É importante
colocar que não se objetiva aqui, com estas constatações, criticar o
trabalho médico que tanto se dedica à manutenção da vida humana.
Espera-se apenas mostrar que não basta ao paciente estar vivo. Ele
espera viver mas com qualidade. Propõe-se, então, que pensemos na
manutenção da vida do paciente, mas também na qualidade desta
vida.
Método
A clínica de hemodiálise onde se realizou esta pesquisa está
ligada à um hospital particular da cidade de São Paulo e atende
principalmente pacientes renais crônicos em 2 modalidades de
tratamento: Hemodiálise (3 períodos por dia, 6 dias por semana) e
CAPD (Diálise Peritonial Ambulatorial Contínua ) na qual os pacientes
e familiares apenas são treinados para o auto cuidado. Na ocasião da
pesquisa, esta clínica atendia 110 pacientes, de ambos os sexos, com
idade variando de 02 à 81 anos e nível sócio-econômico variável. A
maioria deles era encaminhada pelo SUS – Sistema Único de Saúde –
e apenas alguns estão cadastrados na fila única do transplante.
Para a realização desta pesquisa foi necessário, além da
observação do ambiente e do funcionamento da clínica, e da postura

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dos profissionais, procurar conhecer a opinião de pacientes sobre a


clínica, o tratamento e sobre a sua doença. Para tanto, foram
realizadas entrevistas semi-dirigidas com 5 dos pacientes adultos,
que dialisam nesta clínica às terças-feiras no período da manhã. Não
se levou em consideração o sexo ou uma faixa etária específica.
Seguiu-se apenas um roteiro de questões, com as devidas
adaptações, levando em consideração, as diferentes situações em
que se entrevistou estes pacientes e as diferenças emocionais e de
estado físico dos mesmos. Segue o roteiro.
§ Como é estar na clínica?
§ O que geralmente você faz enquanto dialisa?
§ O que você aprecia fazer?
§ Acha que poderia passar melhor o tempo em que se encontra na
clínica, dialisando?
§ O que você gostaria de poder fazer enquanto dialisa?
§ Você se lembra de alguma experiência agradável na clínica, onde
foi proposta uma outra atividade além da hemodiálise?
As entrevistas eram realizadas durante o período de diálise com
pacientes que se mostravam disponíveis, física e psicologicamente
para o contato. Se iniciavam com a aproximação da pesquisadora e a
verificação da disponibilidade do paciente. Caso o paciente se
mostrasse disponível a pesquisadora iniciava o encontro, explicando o
motivo daquela entrevista, falando sobre seu objetivo e
procedimento. Após esta explicação, pedia para que o paciente lesse
o termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, caso concordasse, o
assinasse. Neste momento a pesquisadora dava início à entrevista
propriamente dita. Não se pôde definir o tempo médio das
entrevistas.
Os dados colhidos nas entrevistas foram selecionados levando-
se em consideração o seu significado, a sua freqüência e também a
sua importância para a presente análise. Considerou-se dados
significativos aqueles que se referissem ao sentimento do paciente

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em relação à sua doença, ao tratamento e a clínica de hemodiálise, e


que pudessem contribuir para a análise da clínica onde se realizou o
trabalho. Para a discussão dos dados, utilizou-se um dos modelos de
análise de conteúdo propostos por BARDIN (1995) no qual, depois de
selecionados, os dados mais significativos são agrupados por
semelhança ou natureza. Após este agrupamento foram formuladas
hipóteses referentes a esta pesquisa, que foram comprovadas ou não
no decorrer da análise.
Para a análise, seguiu-se um referencial teórico Psicanalítico,
levando-se em consideração principalmente as emoções, os
sentimentos, a vivência do paciente em relação à sua doença e à sua
experiência na clínica, e atentando para os impulsos e conflitos
expressos na fala dos pacientes.
Resultados e discussão
O primeiro aspecto que chama a atenção, após uma leitura das
entrevistas é a quantidade de nãos colocada por todos os pacientes
em suas respostas. “Não posso fazer mais nada disso”, “não tenho
mais disposição, não enxergo mais, não vejo mais os meus amigos”,
“não tenho podido fazer muitas coisas porque o médico me proibiu”,
“(...) eu não posso comer nada”. Este dado é muito importante
porque não se refere apenas a um aspecto de linguagem do discurso
mas sim ao que ele nos transmite, ao que esta expresso além dele.
Estes nãos são a expressão clara das inúmeras perdas consequentes
da doença crônica e do tratamento ao qual estão sendo submetidos
estes pacientes. É possível atestar que estas perdas são duras e
muito significativas para o paciente, já que a maioria delas é
definitiva. Ter que comparecer para o tratamento 3 vezes por
semana, ter de tomar uma série de medicamentos, seguir uma dieta
rígida, restrições de atividades e conseqüentes mudanças de hábitos
são apenas algumas destas perdas. Estas perdas reais levam a
sentimentos de perdas ainda mais importantes como a perda da
liberdade, da autonomia, da independência, dos valores e, em última

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instância, da própria identidade. SANTOS e SEBASTIANI (1998,


p.161) colocam que “com a aquisição da doença crônica, muitos
pacientes enfrentam a perda de um corpo saudável e ativo”, o que
pode provocar um sentimento de desconhecimento do próprio “eu”.
Os pacientes entrevistados demonstram isto quando colocam “eu
estou na mão deles (médicos)”, “eu não era assim, era muito mais
ativa”, “não podemos nem nos mexer”.
Estas sucessivas e constantes perdas, segundo LIMA,
MENDONÇA FILHO e DINIZ (1994, p.87) “muitas vezes (...) são
equivalentes à perda de um objeto de amor”. Elas simbolizam a
perda de objetos amados, de conquistas, de possibilidades das quais
eles tiveram, obrigatoriamente, que ser afastados. Conforme coloca
WEININGER (1996, p. 72) “a perda do objeto (...) é sentida como
uma experiência interna de ser roubado ou punido”. Muitas vezes,
simbolizam também a perda de uma parte de si mesmo, conforme
coloca HINSHELWOOD (1992, p.158) “o luto pela perda de um objeto
amado deve incluir uma forma de luto pela parte do self que se acha
ligada com esse objeto”. Estas perdas geralmente trazem consigo,
em decorrência deste luto tão penoso, o estado depressivo,
comumente encontrado em pacientes submetidos à hemodiálise. DE
NOUR apud BELLODI (1994, p.18) já colocava que “a depressão é a
mais comum complicação psiquiátrica” encontrada neste tipo de
tratamento, e esta afirmação pode ser facilmente comprovada à
partir de uma experiência com estes pacientes. BELLODI (1994, p.18)
complementa a afirmação deste autor colocando que “além de tornar
a vida dos pacientes miserável, do ponto de vista emocional, a
depressão também prejudica a aderência à dieta e aumenta os
distúrbios relativos à vivência da sexualidade” o que pode
seguramente complicar o estado físico e emocional destes pacientes.
Nas entrevistas, demonstrações de um estado depressivo ou um
discurso eminentemente depressivo podem ser facilmente
encontradas, por exemplo: “não tenho muito o que fazer”, “não tenho

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mais disposição, não enxergo mais, não vejo mais os meus amigos”,
“não tenho mais saúde ou disposição” ou “me sinto deprimida e não
tenho mais vontade de lutar pelas coisas”.
A IRC, a hemodiálise e até mesmo o estado depressivo,
provocam freqüentemente nos pacientes a assunção de uma postura
passiva. Eles parecem assumir a postura literal de pacientes e se
mostram acomodados e desinteressados pela vida, como podemos
atestar nesta frase colhida em uma das entrevistas: “tenho ficado em
casa olhando o mundo pela janela”.
A hemodiálise não é um procedimento simples e já prevê
possíveis complicações para o paciente, como queda de pressão,
cãibras, etc. Durante o tratamento, é comum que os pacientes
passem mal ou testemunhem algum de seus companheiros tendo
complicações, o que os remete a um sentimento de maior fragilidade
de seu corpo, de sua saúde. Além disso, é constante a ocorrência de
óbitos ent re eles o que contribui para aumentar o sentimento de que
se está chegando ao fim da vida. LIMA (1996, p.17) coloca que na
hemodiálise “a morte é quase onipresente, em função dos constantes
riscos e complicações letais, de reduzida esperança de sobrevivência,
dos inúmeros óbitos dos submetidos ao mesmo tratamento”. Desta
forma percebemos que o diagnóstico da doença crônica e o próprio
tratamento hemodialítico, aproximam o paciente do sentimento de
iminência de morte. Os entrevistados demonstram este medo de
passar mal, de morrer e até solidariedade, explicitada na
preocupação de alguns com a evolução da doença e do tratamento
dos outros companheiros nestas frases: “tenho medo de passar mal
ou de que os outros pacientes passem mal” e “eu sinto medo (...)
medo do que possa acontecer”.
Conforme coloca LIMA, MENDONÇA FILHO e DINIZ (1994, p.86)
“a especificidade da IRC é que seu diagnóstico não marca uma
expectativa de cura, a devolução do estado de saúde, mas uma
passagem irreversível para o mundo dos doentes”. Isto traz

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repercussões emocionais fortíssimas no paciente diagnosticado, que


pode alterar inclusive seus valores e sua maneira de conduzir a vida.
ZOZAYA apud SANTOS e SEBASTIANI (1998, p.157) coloca que
quando é diagnosticada uma doença crônica, isto “pode significar
para este paciente um limite de suas possibilidades de vida”.
OLIVIERI apud SANTOS e SEBASTIANI (1998, p.152) coloca também
que a partir do diagnóstico, o paciente “tem ameaçado o seu futuro,
o que acarreta grande insegurança e ansiedade. É possível sentir o
fim do futuro planejado”. Como resposta às questões sobre a
possibilidade de melhora da clínica e do tempo em que dialisam,
puderam ser colhidas frases como “não tenho idéia”, “tudo o que eu
gosto de fazer eu não posso mais”, “não, acho que não tem nada”.
Assim, estes pacientes nos mostram que a doença crônica assume
um papel tão importante e central, que passa a cronificar sua própria
vida, não permitindo que eles ao menos pensem em avanços ou
melhoras em nenhum aspecto.
Este sentimento de cronificação da vida que atinge o paciente
crônico, parece atingir também a clínica de hemodiálise, entendida
aqui não somente como o ambiente físico, mas também o próprio
tratamento e as relações estabelecidas. Podemos imaginar que isto
ocorre porque a clínica faz parte da vida deste paciente, já que ele
passa 48 horas por mês em tratamento, e também porque ela
representa maciçamente a doença e o tratamento crônico. Alguns
pacientes entrevistados colocaram de forma clara a sua descrença na
melhora da cl ínica: “acho que não tenho muitas coisas para fazer
aqui”, “acho que não tem nada que possa melhorar o ‘clima’ da
clínica”, “aqui não tem nada para fazer (...) não dá para fazer nada”.
Além disso, foi quase uma unanimidade falar que na clínica nunca
tiveram uma experiência boa: “não, nunca aconteceu nada (...) é
sempre assim, normal”, “acho que nunca vivi uma experiência boa
aqui”, “não acho que possa ter existido uma experiência boa aqui”,
“não me lembro de nenhuma experiência boa que tenha acontecido

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aqui (...) nunca aconteceu nada de diferente”. Estas frases nos


mostram o quanto a clínica de hemodiálise é sentida pelos pacientes
como um lugar rotineiro e, como um deles mesmo disse, como “um
lugar ruim”, o que contribui para o agravamento do sofrimento de
todos.
Concebendo a clínica como um local ruim, onde passam por um
tratamento longo e doloroso, alguns pacientes parecem tentar ao
máximo fugir desta realidade. Se utilizam de vários artifícios que os
permita entrar menos em contato com estes sentimentos
desagradáveis. Muitas vezes, inclusive, esta fuga é apenas
fantasiosa. Nas respostas dos pacientes entrevistados é possível
atestar tentativas de burlar a realidade do tratamento de diversas
maneiras, visando a amenização deste sofrimento. “Eu gostava
quando vinham os voluntários para conversar com a gente (...) o
tempo passava mais rápido”, “gosto de conversar (...) porque assim
o tempo passa mais rápido”, “tem de esperar o tempo passar”, “às
vezes durmo (...) o resto de tempo fico vedo o tempo passar”,
“quanto mais cedo eu chegar mais cedo vou embora para casa”. A
maior parte destas frases foram colhidas nas respostas à questão “o
que você costuma fazer enquanto dialisa?”, e mostram o quanto é
difícil o contato com a clínica e o tratamento, o quanto é difícil
enfrentar a realidade a qual estão expostos.
Outro aspecto sobre o relacionamento dos pacientes com a
clínica pode ser coletado. É possível perceber que as relações
estabelecidas na clínica entre os pacientes e a equipe de saúde, e até
mesmo entre os pacientes, estão longe do adequado. Alguns
depoimentos mostram isto: “ninguém te pergunta ‘como você está?’,
‘você precisa de alguma coisa?’”, “outra coisa que eu acho que
poderia mudar é o contato que temos aqui com os outros pacientes,
ou melhor, o contato que não temos”, “não confio mais nos médicos”,
“agora não estamos podendo conversar muito com os enfermeiros
porque eles não podem mais” e “eles fizeram um monte de exames

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mas não me falaram nada”. Um relacionamento melhor entre os


pacientes e a equipe de saúde e entre os próprios pacientes, pode
auxiliar, e muito, na aceitação da doença, na adesão ao tratamento e,
principalmente na melhora do ambiente ao qual todos estão
expostos.
Conclusão
Conforme pudemos verificar na análise das entrevistas, não é
somente a doença ou a história pessoal de cada paciente
hospitalizado que influencia no seu estado emocional. Todos os
sentimentos que foram citados pelos autores utilizados, bem como
aqueles que pudemos verificar na análise das entrevistas, são,
inegavelmente, conseqüentes da doença que acometeu o paciente,
mas também da estrutura institucional a qual ele está exposto,
incluindo a equipe de saúde, a rotina e o ambiente hospitalar.
Não é possível ignorar todos estes sentimentos decorrentes
desta “internação” longa e sofrida dos pacientes renais crônicos.
Porém, se pensarmos na questão prática, a demanda é muito grande
e o setting não adequado para um trabalho individual nos moldes de
uma psicoterapia comum. Então, se faz necessário que o Psicólogo
investigue possibilidades, conquiste espaços de atuação que não
alterem muito a rotina da clínica, mas que possam trazer alívio aos
pacientes. Além disso, é necessário também que os profissionais da
psicologia inseridos no hospital busquem promover junto aos
pacientes e à equipe de saúde, a humanização do ambiente e do
tratamento hospitalar, alterando, consequentemente, as relações e
possivelmente os resultados alcançados nos tratamentos.
Com base no discurso dos pacientes, pudemos analisar a clínica
onde se realizou a pesquisa e concluir que ela está distante do que
poderíamos chamar de ambiente humanizado. Nas próximas linhas
serão citados os principais aspectos reveladores desta constatação.
Pouca preocupação no estabelecimento de relações humanas
saudáveis

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A preocupação em contribuir para o estabelecimento de


relações adequadas entre as pessoas que freqüentam a clínica fica
sob a responsabilidade de alguns poucos, geralmente os próprios
pacientes, que sentem necessidade de um maior contato com as
pessoas e que, por outro lado, tem mais facilidade para estabelecer
vínculos. Entendemos que o contato, as relações estabelecidas em
um tratamento crônico são bastante delicadas e, às vezes, difíceis de
serem administradas pelos profissionais da saúde, que em sua
maioria foram instruídos durante a formação para evitar maiores
envolvimentos com os pacientes. Entretanto, sabemos também que
uma boa relação interpessoal pode ajudar no tratamento e na
recuperação do paciente, além de trazer bem estar para todos os
presentes no ambiente hospitalar.
Escassez de informação ao paciente
Muitos pacientes reclamaram das visitas médicas que
geralmente duram de 1 a 2 minutos e se dedicam apenas a
verificação da necessidade de novas receitas e a leitura dos últimos
exames. Assim, não parece ser grande a preocupação por parte da
clínica em manter o paciente adequadamente informado de sua
condição clínica.
Colocaremos agora algumas possibilidades de mudanças, que
podem tornar este e qualquer outro ambiente hospitalar mais
saudável e humano, e contribuir para o resgate ou a manutenção da
qualidade de vida das pessoas nele atendidas.
Presença de um psicólogo
É extremamente necessária a presença de um psicólogo no
ambiente hospitalar, não só como estagiário ou voluntário, mas como
mais um membro da equipe de saúde. Seu papel principal seria
acompanhar de perto os pacientes, atendendo-os terapeuticamente,
sob um modelo individual ou grupal, e o acompanhamento constante
dos pacientes que são candidatos ao transplante, preparando-os
emocionalmente para a grande mudança. O psicólogo, fazendo parte

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da equipe de saúde, também poderia ter como objetivo a busca,


junto aos outros profissionais, da implantação do trabalho
interdisciplinar, o que deve trazer benefícios para os pacientes
atendidos, além de contribuir para o bem estar da equipe de saúde.
Investimento nas relações humanas
O investimento no relacionamento humano é imprescindível em
um ambiente hospitalar. Especificamente na clínica analisada foi
possível constatar que as relações estabelecidas são superficiais e
não adequadas para o tipo de convivência que se tem neste local.
Primeiramente, é interessante que se busque aproximar a equipe de
enfermagem dos pacientes. Neste caso cada profissional poderia
tratar de uma cota de pacientes, conhecendo-os melhor e,
consequentemente, tratando-os melhor. Um ambiente onde as
pessoas são próximas é muito mais propício e agradável.
A relação médico-paciente também poderia ser estreitada com
visitas médicas mais freqüentes ou mais longas. Desta forma, os
médicos poderiam acompanhar mais de perto o estado do paciente e
de conhecê-lo melhor. Além disso, o paciente poderia estabelecer
com o medico uma relação de mais respeito e confiança, tendo
grande chance de responder melhor ao tratamento.
Se faz necessário também investir na aproximação dos próprios
pacientes. Eles, inegavelmente, já fazem parte um da vida do outro,
considerando o tempo semanal de convivência obrigatória e,
certamente, seriam beneficiados por reuniões extra-tratamento, que
ocorressem de preferência fora do ambiente hospitalar e que
objetivassem principalmente, a confraternização, a reunião destas
pessoas que tem ao menos a doença e o tratamento em comum. Esta
medida contribuiria inclusive para o restabelecimento, em parte, da
vida social destes pacientes, que muitas vezes é deixada de lado.
Proposta de atividade profissional dos pacientes
Já que, no caso específico dos renais crônicos, muitos dos
pacientes perdem seus empregos, tem de se aposentar, ou

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consideram não mais ter saúde para o trabalho após o início do


tratamento, a clínica poderia buscar uma possibilidade de trabalho a
ser realizado por eles no próprio ambiente hospitalar, durante o
tratamento. Trabalhos simples, que pudessem ser realizados em um
prazo flexível e que trouxessem um ganho financeiro para os
pacientes, seriam bastante interessantes. É certo que existem
algumas dificuldades de espaço útil e possibilidades de movimento
dos pacientes, em decorrência da fistula, mas que poderiam ser
facilmente administradas se fosse realizada uma reestruturação física
da clínica e um estudo minucioso junto aos médicos do tipo de
trabalho que poderia ser proposto. Esta proposta, além de inserir, de
uma outra forma, o paciente no mercado de trabalho e amenizar seu
sentimento de improdutividade, poderia ajudar a tornar o momento
do tratamento menos doloroso.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, A. C. O. (1994) Considerações Psicológicas acerca do


Transplante Renal. In: Revista de Psicologia Hospitalar do Hospital
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Contatos:
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Faculdade de Psicologia
Coordenação de TGI, Iniciação Científica e Grupos de Pesquisa
Rua da Consolação, nº 896 – Prédio 14 – 1º andar
Consolação – São Paulo – S.P.
Cep: 01302-907
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Tramitação:
Recebido em: 09/2001
Aceito em: 10/2001

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