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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Porto, 1999
Agradecimentos
A todos os que acreditaram que eu seria capaz. Foram eles que, muitas vezes sem
Carvalho, pela forma carinhosa com que foi corrigindo as minhas falhas e pelo
exemplo de perseverança - e à minha irmã Lena, pelo apoio dispensado e sem o qual não
índice
Introdução *
Bibliografia
ao Alfredo João
e às nossas filhas
Introdução
Introdu
Violência e Educação Ção
Da razão filosófica à razão pedagógica
violência, já que os problemas que ela suscita à sociedade, à moral e à própria filosofia nos
exercida por homens sobre outros homens e a certeza de que esse mal não deveria existir
olharmos a História, constataremos que ela acompanha todo o percurso do género humano
e parece pesar sobre ele como uma fatalidade. A violência existe e está inteiramente ligada
apesar de a consciência dos valores e do respeito pela vida parecerem ser afirmados em
guerras e de revoluções e, por conseguinte, feito de muita violência que se considera, aliás,
ser habitualmente o seu denominador comum. Nos nossos dias, a violência é, na verdade,
contemporâneas.
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Violência e Educação Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
facto, os instrumentos da violência têm atingido um tal ponto de perfeição técnica que se
torna impossível conceber um fim que seja susceptível de se opor ao seu poder destruidor
ou que possa justificar a sua utilização. É a utilização destes instrumentos que torna a
Arendt:
Nos nossos dias, termos como poder, força, autoridade e violência, são utilizados
indiscriminadamente mesmo por grandes pensadores, o que denota não só uma
certa insensibilidade quanto à sua significação linguística, mas também uma
ignorância lamentável das realidades às quais esta linguagem se refere.
A acção violenta é, assim, inseparável dos meios que tomam muitas vezes uma
importância desproporcionada relativamente aos fins que os deveriam justificar. Por outro
violência, sob todas as formas, bem como uma adesão quase natural a uma política de não
violência. A juventude do pós-guerrajá não queria ouvir falar de fanatismo. Parecia estar
farta, de uma vez para sempre; parecia-lhe pouco inteligente utilizar a violência em nome
espontânea mas não-violenta, contra a injustiça e a violência deu lugar ao culto dessa
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Da razão filosófica à razão pedagógica
mesma violência. Como declara George Wald, "encontramo-nos perante uma geração que
por isso que cabe, a todos aqueles que têm consciência da situação, a tarefa, a
violência um significado que legitime a sua presença no mundo humano? Será ela um fim?
meio de combater o mal. Nessa época havia uma dualidade entre o bem e o mal que podia
ir até ao maniqueísmo. O bem era colocado no plano do positivo, mas sendo sempre
atormentado pelo mal. Daí que a violência apareça justificada porque tinha por fim o
ataque ao mal. Tratava-se, portanto, da negação de uma negação. Esta violência não cria
nada e, por isso, a sua justificação é puramente negativa. Apenas pretende a irradiação do
mal.
aparece ligado à ideia do bem, do positivo, parecendo que o Ser não se pode realizar, não
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Revolução Francesa vimos aparecer um certo número de filósofos que deram à violência
Um dos filósofos que tentou justificar a violência foi Hegel. A sua filosofia
que até ele o Absoluto viveu à parte. O mundo histórico, abandonado aos acasos da
contingência, era o que nascia e que morria, tendo até então, um estatuto inferior. Para
Platão, por exemplo, o Absoluto vive no Mundo das Ideias, e estas, como são eternas e
imutáveis, subsistem à parte das transformações da História. Por outro lado, o conceito
Isto basta para colocá-la na mais aguda oposição possível frente a toda a
Metafísica anterior que, desde Platão, busca a verdade e a revelação do Ser
eterno em toda a parte, excepto na esfera dos problemas humanos, de que Platão
fala com tanto desprezo, precisamente porque nela não se poderia achar
nenhuma permanência, não se podendo pois esperar que desvelasse a verdade. 3
históricos, que os grandes momentos da História, que os grandes homens da História, que
toda esta massa de que é feita a vida das pessoas e das nações é igual à vida do Absoluto,
já que, "ao colocar o Ser divino fora das coisas humanas, adquire-se a facilidade de nos
aparências e o mundo das ideias verdadeiras perdeu parte do seu significado quando Hegel
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dialéctico. "O real é racional e o racional é real." Esta divisa da filosofia hegeliana
pretende mostrar que a razão é tudo e está em tudo, mesmo quando se trata do indivíduo
humano, que deve ser pensado na sua individualidade. Mas não é ele, enquanto indivíduo
determinado, que pensa; é a razão nele. O sentido da sua existência não é para criar, mas
para descobrir, já que ele existe na História, na sociedade e no Estado, nas e para as
instituições às quais ele pertence e onde ele é universalizado. Hegel pretende fazer uma
crítica radical do individualismo moral em que o homem se quer refugiar para cultivar a
Fenomenologia do Espírito, diz que o Absoluto deve ser concebido como resultado, quer
dizer, que ele não se separa deste movimento, pelo qual vai desenvolvendo os seus
diferentes aspectos. "Há que dizer do Absoluto que ele é essencialmente resultado, que
unicamente no fim é aquilo que na verdade é; e precisamente nisto consiste a sua natureza
de ser efectivo, sujeito ou devir de si mesmo." 5 Mas este desenvolvimento efectua-se por
exprimir-se como um jogo do amor consigo mesmo; esta ideia desce até um virtuosismo
que chega a ser insípido se nela faltam a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do
negativo" 6 - trabalho do negativo que, no plano lógico, se chama "contradição", mas que,
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do Ser: "a razão não se pode eternizar junto das feridas infligidas aos indivíduos porque os
manifestação do Ser.
porque sem ela o Absoluto não se desenvolverá. A violência aparece, assim, ligada ao
Com este autor dá-se a oposição ao conceito do homem como ser racional,
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, T. , „ . T,. ~ Introdução
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superior. A sua filosofia moral é uma filosofia exortatória e dinâmica. Pretende uma
transmutação de valores com o fim de conseguir aquilo que julga ser a verdadeira cultura,
que não significa simplesmente saber, ciência, mas que deve também incluir um elemento
vital e essencial - esse elemento vital e essencial seria simplesmente o autodomínio, a vida,
o que significa luta e vontade forte. O fim da cultura, de acordo com Nietzsche, é a
ou a violência já não podem ser julgadas unidas, como quando o evolucionismo aí via a
nos arranca da moleza, do igualitarismo e do conforto moderno e nos lança num mundo de
conflitos, onde cada uma encontrará a coragem e a firmeza exaltante de uma ultrapassagem
de si: "Chamo heroísmo ao estado de espírito de um homem que se esforça por atingir um
fim para além do qual ele mesmo não interessa; o heroísmo é a vontade absoluta com a
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Nietzsche refere várias vezes, na obra Assim Falava Zaratrusta, que o homem só
justificações: uma, a justificação dialéctica, para a qual a violência aparece como um lugar
por fim estimular e fazer surgir protótipos de humanidade notáveis. No entanto, ambas as
apela várias vezes à violência como meio de impedir o homem de se estagnar numa rotina,
numa mediocridade, onde perderá de vista o que é a sua consciência. Isto quer dizer que,
Para não os deixar enraizar-se e endurecer neste isolamento, logo para não
deixar desagregar-se o todo e evaporar-se o espírito, o governo deve, de tempos a
tempos, abaná-los na sua intimidade pela guerra.
apesar das crises e contradições que podem momentaneamente entravar o seu curso,
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criação que permite justificar a violência, já que, para criar, é preciso primeiramente
destruir.
O homem nobre quer criar de novo, quer criar uma nova virtude [...] Criar - eis
o que nos liberta da dor, eis o que aligeira a vida. Mas, para que nasça o criador,
é necessário muita dor e grande número de metamorfoses [...] aquele que cria
destrói sempre primeiro.
justificaram a violência. Parece existir uma espécie de assimilação entre ambas. Por um
acto de violência, o homem foi agarrado pelo seu ser animal. Há um destino que se realiza
através do homem, absolutamente dominado por estas forças. No fundo, ele não pode fazer
Mas como poderá a filosofia moral aceitar tais justificações para a violência?
Podemos dizer que não há filosofia da violência, mas isto é talvez dizer que a violência é
aquilo que o filósofo refuta e que, finalmente, o objecto que ele toma como tema de
que a justifica mas, afinal, o que procura nela é a criação e é isso que permite justificá-la.
A prova disso é o facto de ele distinguir a boa e a má violência, sendo esta última
apelidada de "fúria de destruição", que é terror porque não produz nenhuma obra positiva.
Esta violência Hegel não a justifica: "A liberdade universal não pode, por conseguinte,
produzir nem uma obra positiva, nem uma operação positiva; só lhe resta uma operação
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de vista a essência da mesma e que é, antes de mais, o modo de relação entre os homens.
estranha que se apodera dele. Analisando melhor, vemos que há na violência humana,
O que caracteriza antes de mais a violência humana é que ela vai além das suas
necessidades porque é, de certa forma, desinteressada, transcende-se a ela
mesmo. E eu irei mesmo até ao ponto de dizer que a violência humana se ilimita.
Há, assim, na violência humana, o infinito que marca o homem. Outra das suas
características é ser sistemática (os campos de concentração são disso exemplo)
o que é também uma das características mais reconhecidas ao homem (o espírito
de colocar em ordem, de sistematizar). Ela também é radical, porque é uma
violência que não se contenta apenas em suprimir o que é superficial, mas que
suprime verdadeiramente aquilo sem o qual nada mais existe. Este aspecto de
radicalidade também é comum ao homem e ao seu espírito, que procura ir à a
raiz de todas as coisas.
completamente subvertidos. É lá, por conseguinte, que talvez haja uma possibilidade para o
homem agir; mas esta possibilidade é extremamente reduzida, porque o que nela é
Thomas Hobbes foi, talvez, o maior filósofo da violência. Para ele, o estado da
natureza é justamente o estado de violência. É o estado sem regra, sem moral, é o estado de
todos contra um. Na guerra, cada um procura exterminar o outro para o dominar. Há, em
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Introdu
Violência e Educação Ção
Da razão filosófica à razão pedagógica
Hobbes, uma reflexão que só encontramos nele e que é espantosa: ao dizer-nos, na sua
obra Do Cidadão, que "os homens são iguais porque cada um pode matar o outro. O mais
miserável dos homens, o mais fraco, o mais inferior, o mais idiota, pode expor-se a matar o
maior deles." A liberdade natural é "a guerra de todos contra todos",18 por conseguinte, o
interior da violência que explica também a sua importância e os esforços que, por vezes, se
determinada pela sua atitude em relação à morte. Na parte mais recôndita de si mesmo, o
homem conhece o medo, o seu, o do outro, o do futuro, o do desconhecido que ele imagina
cheio de ameaças e de perigos. Mas o medo do homem enraíza-se sempre no seu receio de
morrer. Assim, decididamente, parece que aquilo que para o homem justifica a violência é
sociedade, é a liberdade de usar a força para garantir a sua conservação, direito total, que
Toda a doutrina que legitima nos seus princípios a violência repousa sobre
confusões de análise, o mais das vezes exigidas pelas circunstâncias ou apenas toleradas.
Por outro lado, nada justifica a exclusão completa da violência; ela é uma perspectiva de
toda a acção. Assim, a legitimação da violência assenta em análises erradas, enquanto a sua
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„. „„ . T^J ~ Introdução
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Mas, se em todos os casos há uma justificação para a violência, ela não poderá
aqui e agora num caso preciso. Dito de outra forma, a violência deve ser objecto de uma
casuística. O exame casuístico minucioso deve, assim, opor-se ao terrorismo dos grandes
princípios. Cada caso deve ser estudado e analisado o valor dos seus objectivos.
próximos estiverem os seus objectivos (por exemplo, a legítima defesa). Todo o emprego
injustificável, porque é desumano, qualquer que seja o fim que se pretenda servir ao
utilizá-la.
Para Eric Weil, autor com que iremos encetar a análise filosófica do problema da
violência, a filosofia surge como uma forma de superar a violência que caracteriza o
livremente que a tal se decide alguém, já que é absurdo querer impor o discurso a um
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Violência e Educação n o uç
Da razão filosófica à razão pedagógica
indivíduo dado, porque tal seria impô-lo pela violência. Filosofar é decidir-se a pensar,
num mundo violento onde a própria ideia de discurso coerente pode desaparecer em
ciência: desta, não possui a abstracção, considera o homem não como um objecto, mas sim
(a exemplo da história) como um sujeito que se põe a si mesmo em jogo. Porque fundada
respeito pela personalidade humana. Eric Weil pensa, sobretudo, que a humanidade chegou
a uma fase da sua evolução em que se lhe tornou possível transpor uma etapa decisiva para
Ele chega mesmo a pensar que a sociedade pode entrever a realização do ideal que
lhe foi consignado desde sempre pelo homem que optou pela razão e, logo, pela
não-violência.
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Violência e Educação Introdução
Da razão filosófica à razão pedagógica
relações entre os indivíduos de tal maneira que toda a violência seja excluída das
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mesmas.
Existe, portanto, uma filosofia moral e uma filosofia política: "convicção prévia
do autor é que a acção humana, considerada enquanto política, é sensata; ela possui
Nas obras de Eric Weil trespassa uma grande fé na razão do homem que se tornou
moral porque recusou a violência que contradiz radicalmente a exigência de razão que o
homem tem em si e que funda a sua humanidade (ele deve, no entanto, renovar
continuamente esta recusa porque, sendo naturalmente imoral, quer dizer, violento, deve
sempre moralizar-se); mas, de qualquer forma, a filosofia não nos pode garantir que a
humanidade não virá um dia a sucumbir na barbárie, porque neste mundo "sensato" o
Assim, como A. Dias de Carvalho, pensamos ser de relevar em todo este processo
educativos.
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Da razão filosófica à razão pedagógica
sejam, elas também, uma saída para a transformação do homem violento em homem sábio?
meio de tornar possível a vida em comum, estabelecendo regras que limitam a expressão
da violência: "já que existem em todo o ser humano forças de desejo, tendências de
Também para Roger Dadoun, tratar a violência, tratar com a violência, tal é a
variável, a necessidade de ser educado é universal, porque ela também faz parte da
natureza humana. Esta natureza humana é que exige ser educada; mas é também ela que
faz com que a educação não possa tudo. Inversamente, se a educação não pode tudo, nós
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,_ , «, Introdução
Violência e Educação
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nada pudemos sem ela e por isso ela atravessa todas as civilizações, apesar das suas
diferenças.
melhorá-las, como afirma Octavi Fullat. É desta sua função antropológica que nos
Procuraremos ver qual a relação da utopia com a pedagogia, uma vez que nos
parece que entre ambas sempre existiu uma relação estreita, de "cumplicidade", já que
como afirma Octavi Fullat, "enquanto desejo compensador da facticidade, todo o acto
pedagógica, poderão ser consideradas como formas de violência, já que, como afirma o
mesmo autor, na medida em que é uma acção todo o acto educativo é violência? "A
violência é uma categoria de todo o acto educativo. A violência entre duas consciências - a
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do educador e a do educando - é a categoria que especifica a educação humana" . Ou
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n uça0
Violência e Educação °
Da razão filosófica à razão pedagógica
profundo respeito pelo outro, a quem reconhece e atribui o direito à palavra e à sua
diferença, surge como uma forma de combater a violência dos que pretendem impor o seu
projecto.
enquadram-se numa pedagogia filosófica, como esta é definida por A. Dias de Carvalho,
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Introdução
Violência e Educação
Da razão filosófica à razão pedagógica
utopismo e a sua generosidade excessiva desculpam, e por vezes até justificam, a violência
e o terror daqueles que pretendem realizar por estes meios as mesmas promessas que as
humanidade, uma sociedade cada vez mais justa, mais feliz... Ainda nos nossos dias,
terror e a violência.
coerente, lógica. Pensamos que, afinal, a utopia não pode ser esquecida, desde que
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Violência e Educação Introdução
Da razão filosófica à razlo pedagógica
Temos uma memória dos sonhos não resolvidos do passado, para descobrir o
sonho do futuro. É preciso saber mudar à medida que a realidade muda. Ou há
coragem de fazer certas reformas ou é a falta dessa coragem que conduz à
violência.
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Violência e Educação
Da razão filosófica à razão pedagógica
18 Hobbes, op cit, p. 33 e 38
19 Eric Weil - Philosophie Politique, p. 234
20 Idem, p. 83
21 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 95
22 A. Dias de Carvalho - "Education et Violence" (documento cedido pelo autor), p. 8
23 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 15
24 Anne-Marie Drouin-Hans - L Éducation, une Question Philosophique, p. 73-74
25 Roger Dadoun - La Violence - Essai sur /' «homo violens», p. 38.
26 Octavi Fullat - La Peregrinación Del Mai, p. 11
27 Idem, p. 28
28 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 15
29 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Crítica e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire"
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 395
30 A. Dias de Carvalho - "O Estatuto da Filosofia da Educação: Especificidades e Perplexidades"
(documento cedido pelo autor), p. 22
31 Giddens cit. por António M. Magalhães m A Escola na Transição Pós-Moderna, p. 46
32 Paul Ricoeur cit. por Guilherme d' Oliveira Martins in Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1999.07.14, p. 11
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Ia parte:
Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Para que possamos compreender toda a filosofia ou, melhor dizendo, todo o
"filosofar" de Eric Weil, teremos que recorrer a Kant e Hegel, já que é ele próprio que se
intitula um kantiano pós-hegeliano e toda a sua obra é marcada por esta dupla influência.
perspectiva que podemos compreender "a nossa resignação diante da finitude e na finitude
se nos quisermos compreender a nós mesmos." 1 Mas não faz da finitude um postulado e
ultrapassa Kant e a grande descoberta do facto de "que não haveria nenhuma razão de falar
da realidade, de a querer pensar, se ela não fosse contraditória, se, noutros termos, ela se
Para Kant, o homem não é somente finitude mas também vontade racional e,
enquanto tal, ele pensa o infinito embora não o conheça como conhece o sensível. Assim
nasce a dialéctica entre um ser finito e racional que procura o infinito, o absoluto, a
totalidade da realidade (mas que, como ser finito, não pode deixar de finitizar o infinito) e
este infinito finitizado que é a causa da verdadeira dialéctica, que é a projecção da dupla
aparece como o pressuposto necessário da existência da verdade. Isto faz supor que o
sujeito que a si se conhece deve, segundo a concepção ideal, ser ele próprio pensado como
Daí que, na dialéctica, não se trate de uma relação sujeito-objecto, mas de uma
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
com a razão. Isto significa que a verdadeira dialéctica é a da razão, dialéctica não do
infinito."
é o mundo, "ele presta-se ao discurso, permite à ciência constituir-se; ainda mais, permite
ao homem orientar-se, escolher, decidir; ele acolhe a acção da vontade livre, da vontade
racional de liberdade."
O mundo é racional e uno: tal foi a descoberta da 3acrítica kantiana, segundo Eric
Kant hesitou perante tais resultados, pois não podia admitir que o sentido da vida
e do mundo, sem ser finito, repousasse, para aqueles que o pensam, sobre factos que o são,
que a realidade funda tudo e que o finito não é pensado senão sob o ponto de vista do
infinito.
do facto - para o ultrapassar, passando de uma filosofia do ser para uma filosofia do
sentido; "para Eric Weil o problema do sentido não é ontológico mas antropológico: o
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e Educação _ Kmúan0 p ós . H egeliano
- Da razão filosófica a razão pedagógica
compreendido.
Por outro lado, Eric Weil é também um grande conhecedor da filosofia hegeliana,
discurso único que compreenda o todo da realidade natural e intelectual (o que obriga a
De qualquer forma, é na dialéctica e na ideia de saber absoluto que Eric Weil mais
ataca Hegel.
Weil diz que será supérfluo insistir sobre a identidade da dialéctica hegeliana e
da ontologia: «Se a razão existe, se o mundo é racional, se a totalidade do que é
real e age é compreensível e se a compreensão compreende o que dá a todo o
particular a sua consistência, a sua essência e a sua verdadeira substância, o
discurso é necessário nele mesmo - ele não saberá ser outro sem deixar de ser
coerente - e revela o que a realidade contêm de necessário».
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e n a u c a ç a o _ K a n t i a n o Pós . H egeliano
- Da razão filosófica a razão pedagógica **
afirma que, para ele, o finito conhece-se desde então como tal no infinito e a ontologia é
conceito na realidade empírica, neste Dasein que é uma das categorias mais primitivas, das
mais pobres e, por isso, de um pensamento que ainda não foi compreendido em todo o seu
poder." 10
perante a finitude, Eric Weil escolheu a filosofia sob o ponto de vista do Homem, o único a
partir do qual a filosofia pode existir e ter um sentido. Para Eric Weil, a filosofia define-se
razão e liberdade, que é suposto o sistema hegeliano ter identificado de uma forma
porque recusou continuar na simples oposição entre "a razão separada da vida" e "a vida
recusando a razão". É por isso que o filosofar weiliano, inseparavelmente teórico e prático,
de um sistema aberto, uma vez que de Hegel retém mais a ideia de sistema do que a sua
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà tazão pedagogic. Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
contudo a filosofar.
unidade da Filosofia e da História, tornando-se esta uma filosofia humana e não divina: por
isso, a razão é uma tarefa que deve ser realizada pelo homem no mundo. "Eric Weil quer
ultrapassar Hegel, uma vez que coloca questões que Hegel não tinha colocado, mas sem
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renunciar à filosofia. Sem desesperar da razão".
Há uma ideia de saber absoluto, mas não existe, ao mesmo tempo, saber absoluto
e humano. Eric Weil ultrapassa uma concepção ontoteológica e substitui-a por uma
compreensão antropológica.
hegelianismo a inteligência das coisas e cita uma passagem do próprio autor para a ilustrar:
"É sinal daquilo que existe verdadeiramente prestar-se ao discurso, não parcialmente e
Esta proposta coloca em questão, segundo Labarrière, toda a tentativa que queria
separar o viver do dizer, referindo este autor que é aparentemente impossível separá-los,
assim como separar o discurso lógico da sua efectuação. Do que existe até à teoria, e desta
de volta até ao agir moral e político, não pára a continuidade, e é isto a que chamamos
liberdade. É por isso que a decisão pela filosofia é essencialmente uma decisão pela
coerência; e isto, diz Labarrière, sem nenhuma restrição; a tal ponto que Eric Weil não
No entanto, para Labarrière, este projecto, embora tão claramente afirmado, nem
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Vi ni en ci a e E d u c a ç ã o Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e t a u c a ç a o Weil - um Kantiano Pós-Hegeliano
- Da razão filosófica a razão pedagógica j_*iv
arrependimento; isto porque Weil, que está especialmente atento ao problema da violência,
Nasceu nele a suspeita, ténue mas insistente, que Hegel tinha sentido o dever de
forçar um pouco as coisas para que todo o conteúdo da história fosse assumido
na inteligência global que ele tinha querido apresentar dela.
Certamente que há quem se decida pela filosofia, escolha a razão e procure, por
todos os meios teóricos e práticos, reduzir, em si e fora de si, a parte de violência irracional
que encontra. Mas esta não é a única opção possível, já que, face a ela, encontra-se o
homem da violência, que recusa a linguagem e que realiza a sua essência de homem,
subvertendo a ordem das coisas, tal como ela é entendida pelo homem do discurso.
O homem do discurso constata, assim, que ele não representa nem o único tipo,
nem mesmo o único modelo de humanidade e a violência coloca-o face a uma aporia:
ele não pode renunciar a dizer que o discurso que desenvolve tem um valor
universal, sem renegar-se a si mesmo, mas deve confessar, no entanto, que tal
fenómeno escapa de repente e talvez definitivamente à sua compreensão das
coisas. A grandeza de Eric Weil é de não ter querido renunciar nem a uma nem a
outra destas afirmações.
Tal facto fá-lo balançar entre duas posições, segundo Labarrière: por um lado,
achar que cabe ao filósofo a tarefa de reduzir a violência em todas as situações onde a
venha a encontrar; mas, por outro lado, a indicação de que encontra aí um limite
discurso com uma clareza tal que as partes obscuras que a experiência comum envolve,
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v ^ l ê n H a e Fducacão Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e fc,aucaçao _ ^ K a n t i a n 0 Pós . H egeliano
- Da razão filosófica á razão pedagógica
Poderemos concluir que, escolhendo a consciência kantiana, Eric Weil opta pela
autonomia e pelos limites da razão, pela consciência da sua universalidade em ser finito,
pelo pensamento humano que quer compreender e compreender-se mas que, por isso, não
mundana. Optando pela consciência do homem de Kant, que é um ser que conhece a
verdadeiramente divina, porque, já neste mundo e nesta vida, ele reconhece o valor
absoluto de todo o indivíduo, opta pela razão que pensa o mundo e visa a acção, que é
Mas Eric Weil é kantiano de maneira pós-hegeliana - não somente porque Hegel
é historicamente posterior a Kant, e Weil a Hegel, "mas também porque o nosso tempo não
seria o que é se Hegel não tivesse existido, e porque Hegel não teria podido pretender à
compreensão total se, antes dele, Kant não tivesse compreendido o que era compreender"
coerente, quer dizer, a ideia de absoluto "é a ideia que produz a filosofia", embora o
discurso absolutamente coerente seja somente uma ideia no sentido kantiano do termo.
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Eric Weil - um Kantiano Pós-Hegehano
acção compreendida."
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e naucaçao Enc _ ^ K a n t i a n o pós.Hegeliano
- Da razão filosófica à razão pedagógica
1 Eric Weil cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,
p. 13
2 Ibid
3 Idem p. 14
4 Ibid
5 P. Ricoeur cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,
p.134
6 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 685
7 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 134
8 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 684
9 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil, p. 125
10 Eric Weil cit por M. Perine in Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,
p. 12
11 Gilbert Kirscher - Revue Philosophique de Louvain - Tome 87, Quatrième Série, N° 76, p. 664
12 Gilbert Kirscher cit por Labarrière in "Après Weil, Avec Weil" -Archives de Philosophie 53, p. 663
13 Eric Weil, cit por Labarrière in Le Discours de L 'Altérité - Une logique de l'expérience, p. 87
14 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 87
15 Idem, p. 88
16 Ibid
17 M. Perine -Philosophie et Violence -Sens et Intention de la Philosophie d'Eric Weil,p. 134
18 A. Wiel in "Comptes Rendus" -Archives de Philosophie 53, p. 682
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razSo filosófica à razïo pedagógica
pela tradição filosófica e religiosa é a que o considera como animal dotado de razão e de
linguagem racional. É também esta definição de homem que Eric Weil retém, ao afirmar
claramente que a violência contradiz radicalmente a exigência de razão que o homem tem
Igualmente sob o ponto de vista da ciência, o homem deve merecer este título em
sentido humano, isto é, no sentido consagrado por essa mesma tradição. Claro que o
razão, mas deve esforçar-se por atingi-las para se tornar plenamente um homem.
Para ele próprio ser o que deseja e para que o outro possa ser considerado seu
igual, deve ser racional. Ora, embora dotado de razão e linguagem, ele encontra-se sempre
a um nível inferior ao da razão; "ele é mesmo o ser que não é, já que é essencialmente a
sua própria transformação, e que essa transformação não é natural e descritível, mas o seu
O homem é um ser vivo como os outros, mas com a diferença de não ter só
necessidade mas também desejos, que não fazem parte da sua natureza, mas que ele criou
como necessidades - o homem procura o que ele apelida de sua negatividade. Ele ignora o
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão P=dagóg.ca O Homem como Razão - o Homem como Violência
negatividade, não somente dizer não ao que existe, mas produzir do que existe
aquilo que ainda não há, um novo objecto, um novo procedimento, ambos isentos
daquilo que era incómodo na natureza.
interesses, desejos, paixões e que, como tal, está naturalmente predisposto à violência para
transformar este ser composto, reduzindo, tanto quanto possível, o que não é racional, para
que todo ele seja razão. Ele nunca será totalmente razão, mas será capaz de se fazer razão,
isto é, será capaz de se transformar pela razão e para ela. É esse esforço do homem para
Para Weil, ao contrário do homem comum, o filósofo é o homem que nasce com
esse estatuto, com sabedoria, o animal negador que acabará por negar a animalidade em si
próprio; a razão não lhe dá satisfações imediatas porque ela é sabedoria, contentamento.
Ora, todo o homem quer estar contente, noutras palavras, procura o bem, porque o bem é o
É evidente que ao homem comum não lhe interessa o que dizem os filósofos, já
que, para ele, é mais importante viver do que ser. De qualquer forma, a consciencialização
de tal posição é fruto da influência dos filósofos e dos seus discursos, já que sem eles tal
via não lhe seria visível, porque estaria imerso somente na sua vida.
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagóg,ca O Homem como Razão - o Homem como Violência
possibilidade, mas o mais natural é que, uma vez possuidor da linguagem racional que o
filósofo lhe ensinou, se ocupe das suas tarefas, que não são as do filósofo, de uma forma
racional.
Épara um ser que fala, que, falando, persegue o sentido, para um ser que já deu
um passo na discussão e que sabe qualquer coisa da racionalidade, que a
violência é problema, que a violência acontece como problema. Assim, a
violência tem o seu sentido no seu outro: a linguagem. E reciprocamente. A
palavra, a discussão, a racionalidade obtêm também a sua unidade de sentido no
desejo que elas têm de reduzir a violência. A violência que fala éjá uma violência
que procura ter razão; é uma violência que se coloca na órbita da razão e que
4
começa já a negar-se como violência.
De qualquer maneira, esta "razão" não é a razão do filósofo, embora tenha sido a
O que parece estranho aos filósofos é que os homens não aproveitem tais
conhecimentos para se tornarem cada vez menos animais e mais racionais, mas que os
aproveitem, pelo contrário, para dominar outros homens, com a ajuda das suas paixões e
reacções inconscientes, tornando-se também eles próprios cada vez mais inconscientes e
somente mais fortes e mais hábeis para perseguir os seus fins, que são os menos racionais
para o filósofo.
É, então, com a ajuda da obra do filósofo, que o homem sabe o que faz e sabe
dizer porque o faz (e já não é somente instinto). Ele não deseja "o contentamento" do
filósofo, porque prefere a vida com todas as suas facetas (boas e más) e, por isso, o filósofo
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência
considera que ele não é racional. O filósofo compreende, no entanto, que, embora a
filosofia (ou a razão) seja uma possibilidade para o homem, ele pode realizá-la ou não.
linguagem racional, a razão da filosofia, mas que, nem por isso, é um discurso
O homem comum obriga o filósofo a admitir que a procura da razão tem a sua
origem na negatividade primitiva, nesse desejo que é a natureza humana. Isso é ponto
assente. No entanto, mostra também que não é a negatividade simples e natural que o
filósofo refuta, mas uma outra forma. Não é a negatividade primitiva do homem pelo
assim fosse, ele rejeitaria também a filosofia), mas uma forma determinada de desejo. Ao
mesmo tempo que o homem-filósofo decide optar pela razão, ele toma consciência do que
nele o impede de se tornar racional. O filósofo não tem medo dos perigos exteriores, nem
mesmo da morte; o filósofo tem medo do que em si não é racional, tem medo da violência.
Essa violência que o filósofo descobre em si e que o leva a uma atitude não racional
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e naucaçao _ como violência
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- Da razão filosófica à razão pedagógica «-» ™ ™ ' "■
que a violência desapareça do mundo e, por isso, para ele, é ilegítimo tudo o que a faça
aumentar. Está assim determinada, para o filósofo como para todos os outros, a máxima
qualquer homem e de todos, "o principal dever (do homem moral) é respeitar a razão em
todo o ser humano e respeitá-la em si mesmo respeitando-a nos outros".8 E isso significa,
em primeiro lugar, que deve abster-se de violentar quem quer que seja. "Ele não pode
esquecer as consequências dos seus actos [...] não tem direito de querer aquelas, por
Para Eric Weil, existe uma estrutura do discurso que nunca coincide com ele, já
que este é inesgotável. Há, assim, qualquer coisa definitivamente irredutível ao homem e
que não é a razão mas que está na sua origem, uma realidade que limita o domínio de toda
Absoluto." Esta realidade é a Violência. Por isso, como a razão não existe fora da
Toda a filosofia de Eric Weil é uma enorme meditação sobre esta dualidade da
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagoga O Homem como Razão - o Homem como Violência
discurso coerente para a realidade total) e Violência, sendo que ambas estão intimamente
recusa, definitiva e sem apelo, da autoridade da razão, e não uma arma ao serviço da razão
separam, para o homem, depois da sua opção pela razão; por isso, ao filósofo não lhe
O homem pode assim escolher entre razão e não-razão, o que parece uma escolha
livre mas não-racional, ou seja, do ponto de vista do discurso absolutamente coerente, uma
escolha absurda. A liberdade não se confunde com o discurso da razão. Antes da razão, a
Se, para Hegel, a liberdade se confunde com o discurso da razão, Weil enfoca a
possibilidade de existir a liberdade de dizer tanto não como sim ao discurso e à
razão. O discurso não é o destino da liberdade. A recusa da razão é a outra
possibilidade íntima da liberdade. A escolha da filosofia, por seu turno, não é
mais do que uma possibilidade face a outra. A esta outra, Weil chama violência
Violência e razão têm a mesma origem: a liberdade.
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência
Assim, não é somente a liberdade que define o homem, mas também a violência, porque é
também não tem justificação, já que, para tal, era necessário um discurso anterior a outro
para a justificar.
determinando-se: a liberdade pode aceitar como pode recusar a violência; pode colocar-se
do lado da animalidade, da mesma forma que pode afastar-se dela. "A liberdade escolhe
n
entre a razão e a violência". Assim, para Eric Weil, o problema fundamental da filosofia
coerente teria absolutamente razão e o homem, qualquer que ele fosse, realizá-lo-ia sempre
somente capaz de razão, o que significa uma possibilidade do homem, sendo que a outra é
a violência.
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagóg.oa O Homem como Razão - o Homem como Violência
do filósofo, que fala no interior de um discurso não violento, mas não para o homem
comum, para quem ele é apenas uma possibilidade entre outras, uma vez que para si, a
ideia de coerência absoluta não tem sentido. Assim, aquele que escolheu o discurso
racional contra a violência pode esbarrar na violência do homem que não aceita esse
discurso e que "procura o contentamento lutando pelo seu próprio discurso, que pretende
seja único, não só para ele, mas para toda a gente, e que tenta tornar realmente único por
não-violência.
O homem não se compreende como violência, porque ele não é apenas violência.
Tudo o que é violência para o homem é-o porque ele já tem a ideia da
não-violência e, por esta razão, pode ver a violência na natureza [...]Não existe
não-sentido senão do ponto de vista do sentido.
O resultado paradoxal é que a violência só tem sentido para quem a recusa pela
busca do contentamento. Fruto de uma escolha da razão, ela surge como a possibilidade de
superar a violência que caracteriza o homem enquanto animal. É por isso que a origem, o
esta só pode impedir o contentamento do ser finito e racional, porque ela é a recusa da
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaàrazãopedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência
verdade e da coerência. A exigência filosófica, que se junta aqui à exigência moral, leva o
homem a optar pela razão contra a violência; "a violência sentida de forma violenta, afirma
categoricamente Eric Weil, deve ser afastada de uma vez por todas.'" 17
Eric Weil, para quem a filosofia se define integralmente pela vontade de sentido, pela
escolha em favor do discurso coerente. O homem que optou pela razão, porque quer que o
seu discurso informe e transforme a sua vida, submete as suas decisões ao "critério da
universalidade". É por isso que o homem só pode avançar para a universalidade se escolher
a não-violência: "ela é universal". Assim, o filósofo deve esforçar-se por educar os outros
para a razão e para a transformação do mundo, afim de pôr termo, na medida do possível
aquele que pode edificar a compreensão de tudo o que resulta desta escolha.
Para Labarrière, torna-se insustentável fazer o que pretende Eric Weil: juntar, ao
mesmo tempo, o facto do dever que o filósofo tem de reduzir a violência com o de a
O facto de Weil não admitir que haja nada fora do discurso é que o leva, na
possíveis, e nos três capítulos seguintes (em que, segundo Labarrière, seria de esperar a
execução do que foi anteriormente exposto) a preocupar-se antes em aceitar as atitudes que
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência
se prendem com um certa forma de anti-fílosofia, para a qual é necessário, antes de mais,
Das duas uma: ou bem que se julga esta atitude efectivamente na categoria que
lhe corresponde, e ela está como que domesticada no discurso da razão, que a
integra na filosofia; a totalidade, neste caso, está salva, mas já não há resto; ou
bem que se trata realmente de uma viragem no movimento da obra, e a razão
filosófica encontra-se arredada para dar lugar a expressões, que já não
correspondem aos seus ideais de coerência; é então que a totalidade é posta em
19
causa, e o discurso [...] encontra-se, pela primeira vez, quebrado no seu seio.
Para Labarrière, Eric Weil nunca explicou claramente o que entendia por
violência nas suas diferentes formas, de modo que é necessário questionar se ela será da
qualquer forma, a fronteira entre eles não é totalmente estanque e, mesmo que fosse, nada
com uma inteligibilidade limitada e, por isso mesmo, recusar-se a integrar a violência no
seu sistema de ideias, já que, se o fizesse, estaria a retirar automaticamente uma questão
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência
contingência pré-racional; isto, além de mais, tanto para si como para o outro [...] pois todo
o ser está antes de mais preso na rede cega de uma contingência que não se revela."
Coloca-se, então, uma questão com dupla face: por um lado, passando do primeiro
"intencionalmente, com certeza, ainda que esta passagem esteja longe de ser inocente: ela
marca muito exactamente, a meus olhos, o lugar de uma decisão necessária, para a qual
um Eric Weil talvez não esteja plenamente preparado." 21 Por outro lado, é necessário ver
"se a razão que se confronta com a contingência possui a mesma estrutura e o mesmo
• l'y
funcionamento que a que luta com a violência."
E Labarrière junta as duas faces da questão para voltar ao que lhe parece ser o
Labarrière considera não ser possível o que pretende Eric Weil, quando este
afirma com vigor que não existe nada fora do discurso. A pretensão de exigir, em conjunto,
que alguém dizia, com humor: «Eric Weil é um homem impossível, ele quer tudo e o
resto»." 24
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razïo pedagógica O Homem como Razão - o Homem como Violência
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Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Segundo M. Perine, embora não fazendo o papel de historiador, Eric Weil segue,
constituição de discursos científicos, daí resultando o abandono do primeiro, até que surge
que nos prova que esta não se reduz à lógica. Um discurso pode ser lógico, em termos de
correcção, isto é, sem contradições, o que não significa a sua compreensão, no seu ser e
intenção. Não é apenas a não contradição do discurso em si mesmo que decide o seu valor.
Com certeza que ela é indispensável e, sem isso, nenhum discurso compreensível pode ser
pensado. Mas esta condição necessária não é suficiente. Assim, a lógica pode ajudar o
A contradição está presente quando uma tese não é válida para todos os
mesma forma, "o diálogo não poderia conseguir-se com um parceiro que negasse o valor
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
sendo o seu fim provar a consistência do discurso para o tornar coerente, permitindo, por
outro lado, dizer qual dos interlocutores não tem razão, isto se considerarmos que não tem
razão quem se contradiz, já que nada nos prova que quem se encontra convicto não esteja
igualmente errado mas, apenas temporariamente, em vantagem sobre quem não está
convicto. A lógica pole o discurso e o homem aceita esta situação porque, sendo assim, se
domínio da não-violência.
ou combater-se - até que uma das duas teses desapareça com aquele que a defendeu. Se
não queremos esta segunda solução, teremos que optar pela primeira, isto é, pelo diálogo,
O diálogo weiliano é esta disciplina da Razão que se esforça pela coerência afim
de encontrar o contentamento do acordo: acordo que exige a violência do logos
contra a violência emocional.
A lógica formal é indispensável, mas apenas tem sentido na medida em que nos
discurso que registe tudo e seja ao mesmo tempo totalmente livre de toda a contradição.
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
ciência do discurso, ela é útil e suficiente à solução dos problemas formais que são e
compreende o mundo sem admitir um elemento negativo, um não-ser no ser. Contudo, esta
contradição pode ser enunciada sem que o discurso que fala dela seja em si mesmo
contraditório. O homem é "o ser dotado de discurso racional, não porque possa entender-se
com os seus semelhantes e excluir a contradição no que ele diz, mas porque pode formar
A sua racionalidade não lhe advém do facto de não se contradizer, mas do facto de
O homem, por ser racional, pode enganar-se e ser enganado. Ele só conhece a
linguagem que herdou, a linguagem das conveniências e dos interesses, suficiente para as
seduz, purificar o seu discurso, procurar ser racional e compreender a verdade. "O homem
é racional - o homem, não os homens; e é o Ser que se mostra na verdade, não as coisas
5
que parecem ser." Cabe, por isso, à filosofia procurar aceder à verdade, já que ela não é
O indivíduo, para ser homem, deve começar por se negar, já que nada lhe dá a
certeza racional. Até o acordo entre os indivíduos, se não for fundado no Ser, é apenas um
sinal de que cada um não está a seguir os seus interesses pessoais, havendo um acordo
acidental entre eles. A discussão constitui um primeiro passo para a certeza racional, mas
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
não é senão isso, e afirmar que uma discussão sobre o Ser pode colocar todos os homens de
principais direcções: a que não reconhece nada que seja superior a esse discurso e que vê a
realização da razão na via do que existe, na pura teoria, e uma outra, que exige à ciência o
abandono de todo o medo tradicional para poder ligar-se ao Ser. Uma, que quer viver para
a filosofia, a outra que quer a filosofia para viver. O recurso ao Ser não permite, no
entanto, fundar um discurso único sobre o qual todos os homens estejam de acordo - o
discurso do homem.
procura o fundamento comum, o Ser, o Uno, a discórdia reina de novo: não existe essencial
pelos meios tradicionais, isto é, racionalizando as questões, mas sem resolver pela razão o
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
Possuímos uma linguagem e um discurso que nos permitem viver. Mantemos uma
lógica formal, porque aprendemos que a violência entre os homens constitui um perigo
para todos e que o acordo é o meio indispensável para a defesa dos nossos interesses
naturais.
Mas a linguagem e o discurso só são úteis se forem uma arma contra a violência,
tentando, portanto, evitar a contradição. É por isso que é importante encontrar o discurso
verdadeiro sobre o Ser, isto é, eficaz, que não se contradiga nas suas consequências
práticas.
Dito de outra forma, parece que o homem não pode falar verdadeiramente de si
mesmo a não ser numa linguagem científica, com a ajuda de um discurso
ontológico fundado sobre o Ser, e, contudo, não pode falar de si mesmo, não pode
mesmo falar de todo (no sentido em que falar significa também a interrogação e
remete, por consequência, para a praxis) a não ser que uma tal ciência total do
Ser fosse possível: a interrogação só é possível ao não-ser livre, sendo livre, e só
pode ter resposta se tudo for determinado.8
sua substância, já que não se trata de encontrar o consenso entre os diferentes discursos
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
contribuindo em nada para a história da lógica, é ela que acaba por empurrá-la para uma
Não há liberdade sem ciência, porque não existe acção racional sem
conhecimento do mundo; e não há ciência sem liberdade, porque a condição que
revela a ciência só existe movida pela vontade que a procura, precisamente
porque a ciência não a considera.
obtém é que o homem é um ser condicionado; o seu primeiro fundamento é que ele é livre.
Como pode então o homem ser livre se é um ser condicionado? Mas se é livre, quer dizer,
Ainda segundo Weil, Kant salvou a situação considerando que era um contra-
senso querer conhecer a liberdade (infinita) cientificamente, já que ela apenas podia ser
pensada. Ela não está em contradição com a ciência, a qual, sendo apenas possível no
renunciar a apoderar-se do Ser, já que o homem compreende que na ciência não se trata do
Ser, mas do que existe. A ciência é possível como ciência dos fenómenos e o homem livre
possui uma ciência do necessário, mas não é objecto dela, na medida em que é livre.
Tudo lhe é dado, excepto o que não lhe pode ser dado: ele mesmo enquanto livre,
a quem tudo é dado. Livre, pode reconhecer-se condicionado; enquanto
condicionado, não concebe a liberdade. O que é, assim, dado à liberdade é
determinado por ela, mas a liberdade ela própria, não é do domínio do
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determinado, é determinante.
Assim, a liberdade, embora não possa ser conhecida, pode ser concebida, o que
não acarreta contradições à ciência, porque ela existe independentemente de toda a certeza
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
científica. O homem que, por seu turno, diz não ao que lhe é dado, que compreende o que
existe a partir do que é possível, embora nada o possa impedir de afirmar o contrário, não
está, não pode estar logo seguro, não só da sua realidade, porque a realidade só se define
A importância desta questão, assim como a resposta, pode ser definida de duas
formas:
podendo o homem, por esse facto, deixar de se movimentar nas contradições. O homem
constata que todo o conteúdo da sua actividade, do seu discurso concreto lhe é imposto de
fora, por uma violência, por uma natureza na qual ele pode agir, mas que não pode criar
formal como para a ontologia. Se é verdade que o discurso do homem se deve defender da
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
contradição, por outro lado, se o homem nunca se encontrar perante ela, todo o problema
terá desaparecido para ele, bem assim como toda a possibilidade de acção e, por isso,
natureza, factor determinante da sua actividade e da sua acção, não pode ser afastada como
um aspecto menor, já que daqui resulta que o homem não pode encontrar o contentamento
na perspectiva do Uno eterno, uma vez que este nunca lhe é dado, encerrando a ideia de
O que é eterno para o homem é a forma do que está sempre para suceder no
futuro, e esta forma, se lhe permite encontrar leis válidas para os acontecimentos, sempre,
não lhe pode dar, contudo, um conteúdo eterno, uma vez que ela só se revela unida ao seu
dado, mas estar em acordo consigo mesmo, com a sua razão, excluindo das suas decisões a
violência (já que, no fundo, ele é um ser moral), embora não esteja seguro de a ter excluído
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razSofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
Ele pode esperar o contentamento na eternidade, já que, na sua vida, apenas pode
sentir a satisfação, cada vez que resiste ao que há de violência em si. Deve agir de tal
forma que o princípio de cada um dos seus actos possa fundar um sistema de regras de
conduta coerente, quer dizer, não violento, e embora saibamos que nem sempre seja capaz
de o fazer, pelo menos deve tentá-lo. É claro que um fim que não é universal em nome do
que ela quer submeter o dado, libertar-se dele e instaurar no lugar do reino da necessidade
O homem vive, assim, num mundo que não criou, negando a violência da natureza
que o rodeia e da natureza que forma o seu ser. Esta é a vida do homem e não propriamente
o que o homem é, já que ser se refere ao domínio da ciência precisa. O homem faz-se e não
é, porque ele é um dado da experiência. Tudo o que o rodeia é da ordem do que existe, da
ordem do facto. Nada depende de si, a não ser o querer e decidir-se racionalmente, sendo
factos que ele se faz não facto, liberdade, subjectividade e, por isso, ele não é nada sem
eles. O homem sabe que é livre porque existe condição para a liberdade, porque existe
Ele é racional e deve perseguir os fins que estão em acordo com o fim único: a
A tarefa da ciência é precisamente impor uma unidade que não é dada, de tal
forma que as contradições da experiência não sejam nem refutadas, nem
recusadas, mas sejam conservadas da mesma forma, apesar da redução que
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaàrazãopedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
sofreram, graças a isso [...]A ciência procede à união do que não está unido por
si mesmo, mas que, de facto, se presta à acção unificadora.
O homem é um ser finito que, como tal, só pode conhecer os fenómenos, mas tem
uma liberdade infinita. Existe ciência para o homem porque não existe ciência do Ser nem
da liberdade. Os termos liberdade e Ser têm sentido para o discurso, na medida em que este
se orienta face a eles, mas o homem deve renunciar a conhecê-los para se lhes poder
dirigir.
Sem dúvida que o homem pode não ir além da reflexão sobre a possibilidade de
um discurso concreto que tem por objecto o que existe, contentando-se em compreender
dentro de certos limites. Ele sabe que o que encontrou assim, sendo verdadeiro, pode não
ser, no entanto, toda a verdade. Não se pode forçar o homem a ultrapassar esta posição.
relação ao Ser, acabando por tê-lo como referência, por falar nele de qualquer forma.
Pode-se admitir que a ciência do homem que vive no mundo não tem acesso ao absoluto.
de vista da razão, liberdade, razão e ser coincidirão. O que é facto para o indivíduo, só o é
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
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porque ele próprio se compreende como tal. "Mas todos os factos, aí incluído o facto
chamado homem, são factos da Razão, e são fundados sobre o Ser, que não é senão a
mesmo.
A razão pode conhecer tudo, desde que o homem renuncie a limitar a sua ideia de
por conseguinte, necessário que o discurso do homem se torne absolutamente coerente, isto
é, da razão que é Ser e liberdade. É absurdo falar de um outro da razão, seja como força
que valha contra quem não a escolha, já que todo o argumento em favor de um discurso
pressupõe que se tenha optado por ele. O discurso do indivíduo não é naturalmente
coerente, mas o homem tem interesse em começar a discussão consigo mesmo para
coerência do mesmo provando, na elaboração desse discurso, que toda a realidade, mesmo
pretende, tem de se aperceber do discurso que se quer finito, da linguagem que não quer
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ser discurso, mesmo do silêncio. Ele encontra-se, então, como ser que quer livremente a
sua liberdade, agindo sobre o dado, sobre si e sobre as suas condições, encontrando desta
forma o contentamento.
resultado da sua própria acção sobre o dado. A partir do momento em que a razão se
realiza e se reconhece realizada, o homem sabe porque está insatisfeito e como encontrou o
contentamento, sabe que não há mais nada a negar: sujeito e objecto coincidem nele, que é
razão e liberdade e que se reconhece ser razão livre e liberdade com razão, graças à sua
acção negadora que acabou por destruir tudo o que lhe era dado positivamente.
O homem reconciliado com o que existe pode falar do Ser, não do Ser imóvel e
único da antiga ontologia, mas do Ser que vive como a soma das contradições, mais
que conduz à conciliação, não no discurso, como pretendia a antiga ontologia, nem na
consciência finita, como queria a reflexão transcendental; mas ela faz-se conciliação e
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absolutamente coerente, eleva-se acima do dado, da sua existência, e não é o Uno, o divino
que vislumbra, mas a violência compreendida como tal e, por isso, tornada razão. O
homem, enquanto indivíduo, não escapa à violência, embora possa aceder à sabedoria,
O Ser é também acessível, já que a noção de acesso supõe ainda uma separação: o
Mas o Ser, como unidade das contradições, é uno e razão e sabe-se Pensamento,
da mesma forma que o Pensamento, tendo saído do finito, tomando posse do
finito na sua totalidade, sabe-se Ser: não mais existe somente lógica do discurso
não contraditório, nem ontologia, nem a questão da possibilidade de um discurso
suporte do real; existe saber absoluto, liberdade sabendo-se logos e Ser,
onto-lógica
racional e finito, que escolheu pensar a sua vontade de coerência no percurso da Lógica da
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Relação da Lógica Formal com a Filosofia
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
busca da coerência" l nasce a ideia de uma lógica filosófica. A sua tarefa consiste, segundo
Weil, em mostrar como se desenvolve o discurso, quer dizer, "como o discurso se pode
formar na história a partir de uma atitude primeira da qual nada obriga o homem a sair.'
toda a filosofia ulterior, qualquer que seja o nome que ela traga: ontologia, moral,
anterior a ele e, por isso mesmo, o homem é determinado por esse discurso antes de ser ele
próprio. Só no momento em que o mundo deste discurso não contente o homem é que é
É a violência que, época após época, está na origem de todo o discurso que se
quer coerente, que "compreendendo-se como liberdade no seu discurso e, ao mesmo tempo
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
Mas é um facto, e nada refuta os factos, que os homens não possuem, regra geral,
a coerência do discurso nem pretendem ser filósofos. No entanto, todo o discurso humano
pode ser compreendido pela filosofia e mesmo a incoerência que o filósofo nele possa
encontrar apenas cria uma dificuldade de compreensão que o filósofo resolve, já que é esta
a sua tarefa.
É evidente que tal tarefa, tão importante para o filósofo, não o é para o homem
comum, que pode escapar à incoerência do seu discurso pela linguagem incoerente ou pelo
compreender a linguagem que não quer a coerência, mas que somente quer exprimir o que
ele sente. Isto quer dizer que "na acção histórica o homem não se compreende como
filósofo, mas que a filosofia se compreende como histórica, como nascida da violência, da
circunstância, que ela é para si mesma a libertação do homem das condições" 4 , condições
essas que ele, mesmo não sendo filósofo, sente como cadeias ou obstáculos.
universal é, para ele, o princípio e o fim do seu discurso. O homem que optou pela razão,
porque quer que a coerência do seu discurso informe e transforme a sua vida, submete as
Cada um deve comportar-se de tal forma que a sua forma de agir, a maneira
como decide, possa ser pensada como forma de agir de cada um e de todos. Por
outras palavras, que ela seja tal que possa ser universalizada. 5
mesmo tempo, fundamento da filosofia e regra da moral. É inadmissível toda a acção que
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razSofilosóficaà razão pedagógica A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
não é dirigida para a universalidade, a liberdade, a razão, para esta liberdade que é a razão
universal." 6
Para Weil, a filosofia da história não é somente possível, mas constitui uma
exigência da filosofia e, como tal, ela existe, ainda que muitas vezes de forma implícita,
filosofia.
suceder a identidade entre a filosofia e a história do homem concreto nas suas realizações
no mundo. É o homem concreto que faz a filosofia e esta é o discurso de um ser cuja outra
primeira já não é uma teoria do Ser, mas o desenvolvimento do logos, do discurso por ele
mesmo e para si mesmo, na realidade da existência humana, que se compreende nas suas
realizações, na medida em que ele se quer compreender. Ela não é ontologia, é lógica, não
do ser, mas do discurso humano concreto, dos discursos que formam o discurso na sua
unidade.
é, assim, levado a confrontar o seu próprio discurso com o dos outros. Portanto, é no
mundo que o homem-filósofo deve viver a sabedoria a que aspira. "Não se trata de morrer
para o mundo, de se libertar dele, de se retirar dele, não se trata de ser sábio fora do
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaàrazãopedagógica A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
Aquilo que a filosofia indica é a via da sabedoria prática, essa faculdade que o
seu interesse; quer viver de maneira razoável, com "sentido". A compreensão do homem
que é "liberdade face à razão ou à violência", significa que a filosofia é história e que não
sobre todo o real, incluindo a violência e a ilusão, o erro e o que é perecível - não sobre um
"necessário", nem sobre uma realidade primeira, de onde pudesse derivar tudo o resto
mesmo neste mundo em função do sentido que este possui e, por conseguinte, quer realizar
o sentido do mundo pelo discurso, pela razão, pela acção racional. O homem que optou
pela razão deve, pois, agir a fim de incarnar a razão no mundo. "Também a filosofia do
homem-filósofo só chega ao fim com a acção [...] A filosofia realiza-se e termina na acção
Para a filosofia, a história tem o seu sentido na coerência, mas o seu conteúdo na
no fim da história.
61
Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razïo pedagógica A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
Dito de outra forma, ela será mesmo o fim da história, da mesma forma que todo
o sistema é o fim da história - da sua história, que é aqui a história da filosofia
ou (porque a filosofia não tem história, só o homem a tem) o fim da procura do
contentamento pelo discurso.
compreensão, e é histórica, porque não importa o que ela encontra, mas por que via o
encontra, de que ponto parte, enfim, qual é, historicamente, o homem que empreende a
procura da coerência. Este homem é o homem concreto que aspira "à satisfação e à
O indivíduo pode sempre optar pela violência e recusar o discurso qualquer que
plausível que esse discurso seja destruído ou se torne insensato para uma humanidade
No entanto, segundo Weil, a lógica da filosofia não garante nem pode garantir que
uma tal via seja realmente possível. O que ela pode afirmar, se conseguir o seu projecto, é
O homem que tenha passado pela lógica da filosofia não será mais filósofo, não
porque sinta que a filosofia não o pode contentar, mas porque sabe que a filosofia lhe deu
todo o contentamento que podia exigir ao discurso. Ele terá compreendido a filosofia a
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
para ele já não se trata mais de compreender como pode chegar ao universal, como pode
atingir a verdade e a presença: sabe que já se encontra sempre aí, na medida em que ele as
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica A Lógica da Filosofia, a Violência, a História e o seu Fim
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica
compreensão.
possa ser pelo homem que quer compreender o que vive, e compreender a sua atitude no
discurso: "o homem mantém-se no mundo (entendido como aquele em que ele vive) de
relação a certas atitudes, que são consideradas puras ou irredutíveis e definidas como puras
em relação ao discurso filosófico. As atitudes puras só são diferentes das restantes porque
elaboram, num discurso para si mesmas, o que no seu mundo é, para elas, essencial.
"Numa palavra, a atitude pura compreende o essencial do seu mundo como conceito;
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Atitudes e Categorias
sentido e se organiza tudo o que fazem os homens no seio de uma atitude determinada. A
categoria é, por conseguinte, categoria de uma atitude pura e irredutível, cuja pureza e
categoria do discurso, e não como categoria metafísica. Weil insiste no facto de ser
essencial distinguir os dois sentidos do termo para compreender a Lógica da Filosofia, que
"só se interessa pelas categorias metafísicas na medida em que elas revelam as categorias
filosóficas, estes centros de discurso a partir dos quais uma atitude se exprime de forma
coerente (ou, no caso de atitudes recusando todo o discurso, pode ser apreendida pelo
discurso da filosofia)."
categorias. "A atitude pura é aquela que desenvolve uma categoria pura, e é irredutível se
Weil: "cada atitude ultrapassa a categoria que a precede declarando que esta última
-7
66
Viniência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
Violência e £,aucaçao Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica a razão pedagógica
todas as atitudes se tornam compreensíveis, mesmo as que não consideramos puras. Assim
homem."
necessidade de distinguir o discurso do lógico dos discursos de que ele trata. A Lógica da
Filosofia repousa, para este autor, sobre a distinção fundamental entre a doutrina e a
explicação.
das outras, atitudes e categorias. A sua sucessão, que não é histórica, salvaguarda a
67
• ,- ■ e Educado ****Problemática»^daVWJjdj»«*-
Violência e h-ducaçao
- Da razão filosófica à razão pedagógica
vo,,ar-se para ela, numa atilude de procura, iniciando-se aqui o percurso da iógica da
Kircher:
A nrnnelra supSe o aue a se^a se ocupa preCsamen.e a refn,a, arnoso
«o sen.ido esta separado da verdade e c,ue este afastamento nSo * visto na sua função
retoma inteiramente vo.tada para o silencio da , * * * . ao «ua, e,a nao pára de asp.rar".
categoria, embora n,o passe do inicio, ja ,ue, apesar de a ca.egona distinguir o verdade.ro
esclare cido o que e con.eudo essência, e o que e inessenciai. "Numa paiavra: a cer,e,a e a
Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica Atitudes e Categorias
categoria na qual aparece o mundo (- cosmosj - o mundo, não somente certo mundo - a
nelas existente. Primitividade esta que "subsiste na afirmação imediata da verdade, sem
diferentes. Na categoria da discussão aparece a ideia de uma doutrina cuja verdade deve
conhecem-na sob uma forma simples, ainda não desdobrada. "Para a discussão, assim
como para o objecto e o eu, a razão permanece o todo no qual se deve suprimir toda a
alteridade." 16
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
> ri -c • - A A„;,.. Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica a razão pedagógica "
Epicuro. O eu é caracterizado pela tensão que o constitui, pela luta dele contra si mesmo. O
eu quer, com esforço sempre renovado, dominar o sentimento nele. Ele é a luta entre o
Daí a acção do homem sobre ele próprio: porque é sentimento, toma partido pela
razão contra si mesmo [...] querendo escapar a si mesmo, comporando-se com o
que queria ser, compreende-se tal e qual é. "
ela é a estrutura de uma relação na qual o homem e o seu Deus, separados pelo
laço que os une, se reflectem um no outro, num jogo da identidade e da diferença,
cuja dualidade penetra tanto apropria relação como cada um dos seus termos.
Para o lógico, esta categoria tem, assim, por função fazer aparecer a dualidade
constitutiva do homem, a sua liberdade, no que ela tem de irredutível à razão e à verdade.
Cada vez mais o homem se compreende como factor natural e cada vez mais lhe
interessa ser somente isso, despojado e libertado de todo o factor «pessoal» [...]
Porque o tipo de lei à qual quer chegar não conhece a pessoa, que é definida pelo
sentimento particular.
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica àrazãopedagógica Atitudes e Categorias
condicionado e do Eu incondicionado.
estrutura objectiva dos mundos concretos que ela interpreta. É, de alguma forma, uma
consciência invertida, que se esquece de si mesma. Compreende tudo menos a ela própria.
"Ela não quer ser consciência, ela é-o, e, o que mais lhe importa, é consciência dos
outros".21
sentimento criador; "a personalidade quer apoderar-se do mundo comum na sua totalidade
99
(não de qualquer coisa no mundo) para daí fazer o seu, para criar o seu mundo". A
personalidade compreende-se nesta categoria em termos de crise e de conflito:
a personalidade está sempre em crise; sempre, quer dizer em cada instante, ela
cria-se, constitui-se criando a sua imagem, que é o seu ser no futuro. Está sempre
em conflito com os outros, com o passado, com o inautêntico.
Segundo Weil, a categoria da personalidade funda, através das suas retomas com
filosofia "que procura o contentamento do homem na compreensão do seu ser por ele
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica Atitudes e Categorias
que é a última das categorias da reflexão. Paul Ricoeur reconhece, na Lógica da Filosofia
Para Ricoeur, isto indica que o homem já é o centro, não com certeza o individual,
objectivo".27 Ricoeur chama a atenção para o facto de a palavra absoluto ter sido já
inteiramente humanos, na sua relação com a crise e com o conflito que marcam a categoria
28
da Personalidade."
O absoluto de Weil possui, segundo este autor, um conteúdo não hegeliano, tendo
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica árazãopedagógica Atitudes e Categorias
categoria do absoluto. Ricoeur não compreende como será possível manter o projecto de
discurso coerente para lá desta função totalizante, dito de outra forma, hegeliana, do
O homem não pode pensar mais longe que o Absoluto, já que pensar é procurar a
coerência, e que a coerência é tudo, em si e por si. Mas o homem pode ter
pensado, ele pode ter aceite tudo o que ensina a ciência, e pode não pensar, não
querer pensar, recusar-se ao Pensamento.
discurso, mas não se deixa guiar por eles; conhece a filosofia, mas troça dela; conhece a
coerente que "fornece a categoria desta atitude [...] mas ela produz a sua categoria porque
"consiste no facto de aquela afirmar o papel essencial do discurso enquanto esta o rejeita
[...] a obra mostra, a finitude demostra que o homem não é essencialmente saber [...] e que
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Atitudes e Categorias
obra e o finito, não tornou mais difícil o seu próprio projecto de coerência. "A questão é
saber que coerência está ainda disponível quando deixamos o discurso único e
34
e do Finito"
G. Kircher, por seu turno, considera que é o lógico, e só ele, que, nesta atitude,
Assim, segundo este autor, para Weil, não se trata de escolher entre o sistema e a
finito, a Lógica da Filosofia evita escolher discursos em relação aos quais entende, pelo
Emerge, então, a nova categoria da acção como uma categoria de síntese sempre
em curso, nunca acabada, mas de síntese prática, que não é somente teoria ou poiesis, mas
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica Atitudes e Categorias
razão, sabendo que uma e outra são irredutíveis. Na acção, o homem encontra a unidade da
razão. Não a unidade no sentimento único da vida, porque o homem não é pura finitude
condição humana, a finitude revela-se ela própria como simples discurso ao homem que se
opõe à violência do ponto de vista da violência: este homem age sobre a realidade na sua
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica Atitudes e Categorias
relação a todas as outras categorias. O discurso coerente que abandonou o absoluto entende
tornar coerente a realidade, quer dizer, ser uma prática racional e totalizante do ponto de
O homem passou da finitude a uma outra atitude que exige precisamente o que é
impossível tanto do ponto de vista da finitude como do Absoluto. Nem um acto
nem uma razão, mas a acção, uma via que seja coerente, uma razão total que
possa guiar a vida.
absurdo não desaparecer, se o niilismo não for praticamente ultrapassado, para que se
possa falar da "unificação do discurso pela acção e na acção" . Para o mesmo autor, tudo
ao do filósofo, dando acesso, segundo Ricoeur, ao que considera ser o último enigma da
Lógica da Filosofia:
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógrca Atitudes e Categorias
Acerca da categoria do sentido, Eric Weil afirma que, se existe uma categoria para
além da acção, ela só pode ser "uma categoria que não serve para compreender tudo, mas
que funda a filosofia por si mesma [...] O sentido é, assim, a categoria que constitui a
filosofia".44
filosofia elaborada pela Lógica da Filosofia, "não como necessidade, mas como
possibilidade; não como ontológico, mas como (antropo)-lógico do discurso; não como
mostra, enquanto categoria, ao filósofo; não uma categoria filosófica, mas uma categoria
constitutiva da filosofia".
Para Ricoeur, as duas categorias não fazem mais do que reflectir o estatuto
revolta. O que era discurso implícito, mas pleno, da acção, tornou-se discurso explícito,
mas vazio, do sentido; "é pela forma vazia do sentido que se mantém e se efectua o
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
V lOiencia e t u u c a ^ a u Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica a razão pedagógica
projecto de discurso coerente [...] Este vazio é o preço a pagar pela coerência. É a dura
Mas Paul Ricoeur considera que esta passagem pelo vazio é essencial para
Há, assim, segundo este autor, dois sentidos para a sabedoria no discurso
discurso depois da acção [...] por outro lado, retorno ao ponto de partida, à categoria da
verdade..."
salvar a coerência da Lógica da Filosofia, já que ela não pode ser preservada se seguir
somente a ordem progressiva das categorias, uma vez que, como afirma Weil, "a passagem
Parece a Ricoeur que a aposta de Weil se situa mais perto do segundo polo,
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Atitudes e Categorias
E conclui que o que Weil afirma de todo o grande livro filosófico é também
Labarrièrre vai também levantar algumas questões ao discurso weiliano. Para este
autor, atitudes e categorias são, antes de mais, realidades da história. A filosofia perderia
todo o sentido para Eric Weil, segundo Labarrière, se ela viesse a construir apenas um
mundo de ideias, já que o filósofo é um indivíduo do seu tempo, que vive o mesmo destino
do homem comum, que se debate com problemas morais, políticos, culturais, e que se
compromete.
Assim, para nós, é a violência que constitui a cruz do nosso pensamento, não
porque tenhamos escolhido interessarmo-nos por ela, mas porque, ao contrário,
foi ela, se tal posso dizer, que antes se mostrou interessada em nós. Eric Weil
subscreveria sem dificuldade o aforismo de Hegel «Não poderás ser melhor do
que o permitido pelas condicionantes do teu tempo, mas, nessas condições, serás
c'y
que o homem toma nessa situação da história, a forma como reage às solicitações ou
provocações a que está sujeito, embora a atitude weiliana não seja, segundo este autor, um
dado à priori fornecido pela história, comum a todos os homens de uma mesma época. Ela
não é o que se impõe ao homem no plano dos acontecimentos exteriores, estando antes ao
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica Atitudes e Categorias
lado do que eles suscitam em nós; acontecimentos esses que nem têm nenhum poder de
determinação, já que é apenas a liberdade individual que conta quando se trata de definir
Épor isso que a atitude não se desenvolve em nenhum momento sem a categoria,
quer dizer, sem o risco de uma palavra, de uma linguagem, de um discurso, que
assumem a situação ao nível de uma totalidade inteligível e comunicável. Atitudes
e categorias apelam-se assim umas às outras; e, mesmo se as suas velocidades de
evolução não são idênticas - é a razão pela qual, justamente, há história, e não
uma simples temporalidade descontínua - elas não são nunca, na situação
humana, uma sem a outra.
noção básica da lógica weiliana. Podemos dizer que a retoma é a compreensão de uma
atitude (ou categoria) nova sob uma categoria precedente, compreensão realizada nessa e
por essa atitude anterior. É através da retoma que a atitude se torna categoria.
Esta noção pode ser considerada, segundo Labarrière, "a melhor ou a pior das
coisas". A melhor, porque assegura a "cobertura" das atitudes e das categorias, dando
essencial e a substância dos acontecimentos, das situações e das reacções do homem. Mas
a pior, também, porque o movimento pode aqui petrificar-se, quando o atraso estrutural da
«retoma» toda a nova figura nos esquemas antigos, reduz o outro ao mesmo e impõe às
novidade por um sistema instalado".55 Labarrière acentua que a expressão atraso estrutural
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razãofilosóficaà razão pedagóg.ca Atitudes e Categorias
Assim, no melhor dos casos, atitudes e categorias, sob a égide de uma retoma que,
sucessão das atitudes / categorias, sucessão fundada sobre a liberdade, Labarrière constata
história. Ora, é neste ponto que Labarrière encontra outra inconsistência no discurso
weiliano:
Labarrière sustenta que Weil não responde claramente à questão de saber o que
procurar a razão no facto de o seu discurso acabar por se tornar num outro exterior a si
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
„ , „ ,. . . . ,■ , Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica arazãopedagógica <=
próprio, uma vez que Weil afirma que a acção é a última categoria do discurso. Mas, se a
intemporalidade na qual ele se finda é lógica, então a Lógica da Filosofia deixa "escapar
do seu domínio uma atitude e uma categoria muito concretas - a Sabedoria, termo do
Sentido - não se vislumbrando como ela poderá, privada desta estruturação, continuar
CO
Assim, para Labarrière, na categoria da Sabedoria, Weil escapa (e não pode deixar
de escapar) ao "processo de coerência que ele tão dificilmente elaborou [...] Eric Weil é
obrigado a dizer que a Sabedoria permanece coisa do tempo; no entanto, todo o movimento
do seu pensamento condu-lo - e ele di-lo também - a apresentá-la como uma realidade
fora do tempo...".
processo que Weil traça, referindo ainda que "a explicação se encontra no oculto
esta unidade não conduz nunca à redução da dualidade essencial ao discurso, dualidade que
Weil designa como dualidade da verdade e da liberdade, fora da qual só existe silêncio. A
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
„ ,, . , . .■ Atitudes e Categonas
- D a razão filosófica a razão pedagógica "
sua filosofia continua filosofar, acto de liberdade, que se pode fechar sobre si mesmo na
verdade do seu discurso, mas que pode também abrir-se de novo ao sentido dessa verdade.
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
- Da razão filosófica à razão pedagógica Atitudes e Categorias
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Violência e Educação Análise da Problemática Filosófica da Violência em Eric Weil
, ., . _ . . Atitudes e Categorias
- Da razão filosófica a razão pedagógica
28 Idem,p. 118
29 Ibid
30 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 345
31 Idem, p. 363, 365
32 Idem, p. 385, 394
33 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 120-121
34 Idem, p. 123
35 Jean Michel Buée in "Comptes Rendus" - Revue Philosophique de Louvain, Tome 87, Quatrième Série,
N° 76, p. 660
36 Idem, p. 661
37 Gilbert Kircher - "Les Figures de la subjectivité dans la Logique de la Philosophie d'Eric Weil" in
Archives de Philosophie 59, p. 627
38 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p.393
39 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 123
40 Eric Weil cit. por Paul Ricoeur in Lectures Autour du Politique, p. 123
41 Idem, p. 124
42 Ibid
43 Idem, p. 125
44 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 419-430
45 M. Perine - Philosophie et Violence - Sens et Intention de la Philosophie à! Eric Weil, p. 212-213
46 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p. 434
47 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 127
48 Idem, p. 128-129
49 Idem, p. 129
50 Eric Weil - Logique de la Philosophie, p 345-346
51 Paul Ricoeur - Lectures Autour du Politique, p. 130
52 Eric Weil cit. por Paul Ricoeur in Lectures Autour du Politique, p. 130
53 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 93
54 Idem, p. 93-94
55 Idem, p. 94
56 Ibid
57 Idem, p. 95
58 Ibid
59 Idem, p. 96
60 Ibid
61 Labarrière - Le Discours de L Altérité - Une logique de I 'experience, p. 96
85
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
2a parte:
A Educação como Meio de Superar a Violência
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Há, pois, uma relação intrínseca entre a educação e os valores, com base
recuos, alguns dos quais bem significativos - acerca dos problemas que envolvem a
educação.
Quando Sócrates critica o uso da palavra pela palavra, fá-lo na medida em que o
diálogo socrático busca o acordo entre o ser e o dever ser. "Para estabelecer a identidade da
felicidade e do bem, Sócrates assimila o bem e o bom, o mal e o mau, o bem ao que é útil,
Platão vai situar claramente o percurso entre o não-ser e o ser na linha entre o que
é e o que deveria ser, por meio do saber. Vai ligar o mal à ignorância. Para Platão, os
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Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Educação e Violência
sofistas, ao seduzirem os jovens para a sua retórica, levam-nos a pensar que "o Bem não
vale mais que o seu contrário, nem que o Justo" {Republica, VU, 538, c).
segundo Platão, a agir mal. De todo o pensamento de Platão, sobressai uma grande
erro precede o mal querer. "Toda a sua vida, não parou de repetir o grande princípio de
Sócrates: ninguém é mau voluntariamente, os maus são-no contra a sua vontade." "
que são a verdadeira causa das coisas efémeras, os modelos de que elas participam.
Com o cristianismo, a ideia do Bem é elevada até Deus. O saber não é apenas o
garante da passagem entre o que é e o que deveria ser, mas é concebido como um meio
moral para atingir o Bem, para passar do pecado à graça que levará à felicidade eterna.
Passa-se, assim, de uma pedagogia do saber para uma pedagogia do saber ser, o que obriga
mesma. As leis da razão são valorizadas e o mal surge como um obstáculo que deve ser
ideia de que o homem é um ser perfectível e educável. A passagem do mal ao bem deve ser
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Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Educação e Violência
vista pedagógico, têm como seu ideal a realização harmoniosa das faculdades morais e
estéticas do indivíduo: "a sua pedagogia do saber fazer inscreve-se nos limites das leis da
nascem da interacção entre sujeitos livres e conscientes, do acordo e do contrato entre eles,
centrada não na intersubjectividade mas nos indivíduos. Porém, esta lição de prudência e
de sabedoria não consegue prevalecer contra as necessárias rupturas, nem contra a busca de
si próprio como sujeito, na qual está empenhado o indivíduo e que o leva a subverter,
Como se sabe, o Iluminismo tomou, desde o seu início, uma atitude culturalista:
pretendeu transformar o Homem e o Mundo, de forma ambiciosa e radical, por
força de uma acção política, pedagógica e técnica. Depositava inteira confiança
nas capacidades intelectiva e activa de que dispomos. '
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Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Educação e Violência
sociedade, Deus pela ciência, remetendo, na melhor das hipóteses, as crenças religiosas
modificar a condição humana. Ele representa o reino da Razão em que o homem (o homem
superstições e da ignorância, mas não libertou o indivíduo; substituiu o reino dos costumes
pela razão, "a autoridade tradicional pela autoridade racional legal", como dizia Weber.
matemático criador (de que Descartes, Galileu, Newton, Hobbes, e Leibniz, entre outros,
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Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagogia Educação e Violência
são portadores) não deixou de trazer à luz a tensão dialéctica inerente ao motivo religioso
inimiga da liberdade.
homem e pensa que existe um plano oculto dessa mesma natureza que o leva a ser livre,
mas que o homem só atinge libertando-se da natureza (no sentido animal). O mau uso que
o homem faz da sua liberdade é que origina o mal. Assim, segundo Kant, "o mal não é nem
a liberdade, nem a natureza, nem a razão, nem a sensibilidade, mas a liberdade que
enfraquece e que escolhe a natureza, a razão que se inverte e que por este facto se coloca
ao serviço da sensibilidade."
91
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagópca Educação e Violência
educativas, onde se afirma particularmente a crença nascida das Luzes na Educação toda
ignorância servil.
supomos uma relação estreita entre racionalidade e saber. A pedagogia especulativa dá,
herdeira de toda uma tradição, se pretende mais abrangente, mais aberta, encarando ao
92
A
Violência e Educação Educação como Meio de Superar a Violência
Violência e n o u c a ç a o Educação e Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
sensatos.
modificá-lo a ele e ao mundo para um futuro melhor, a filosofia é animada por uma
93
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà ruzão pedagógica Educação e Violência
94
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
razão vitoriosa - e nós sabemos que não se vence sem alguma violência - volta-se com
Mas, como afirmou Marx Horkheimer, "não basta a razão para defender a razão".
ideologia das Luzes, demasiados seguros de si, já que se pretendeu impor a ideia de que era
necessário, para fazer triunfar a ciência, sufocar o sentimento e a imaginação para libertar a
razão.
que, como afirma Paul Feyerabend na obra Adeus à Razão, "o pressuposto de que existem
Ora, "a moralidade é um fenómeno humano cuja universalidade inclui uma essencial
que ignore o campo dos comportamentos e valores morais redunda numa racionalidade
hemiplégica."
95
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razio pedagógica A Razão da Modernidade como Símbolo de Vtolencia
seguro acesso ao saber verdadeiro como legitimação do direito de dizer aos outros,
privados desse acesso, aquilo que deviam fazer, como comportar-se, que fins deveriam
• „3
perseguir e com que meios
excessos só a razão podia limitar. Daí se deduziu a ideia do despotismo iluminado, que tem
receavam oprimir aqueles e conculcar esta. De resto, Voltaire, seu principal mentor,
dominação, quando os homens, que são nutridos de razão violenta, crêem que podem
"racionalizar" a violência.
A aparição da violência, a sua tematização num conceito próprio, é indissociável
do movimento pelo qual as sociedades industriais viram desaparecer os quadros
e os valores tradicionais da comunidade política em nome da racionalidade
técnica e científica.
O mundo da razão moderna foi, por isso, muitas vezes colocado ao serviço de
interesses irracionais e os seus ideais pervertidos, dando origem aos regimes totalitários do
nosso século. Para Alain Touraine, "durante a época da modernidade, o homem tomou-se
por um deus, inebriou-se com o seu poder e aprisionou-se numa gaiola de ferro que foi
96
\n~itnnia <* FHnracão A Educação como Meio de Superar a Violência
Violência e Educação n
Modernidade como Símbolo de Violência
- Da razão filosófica a razão pedagógica xvac«u y^ x
forma à sua força crítica: "a razão positivista fracassou, está totalmente desacreditada.
num tédio incapaz de reflexão crítica, de desarticulação da máquina opressora que pesa
sobre si".
homem por parte das ideologias repressivas. Refere, a este propósito, E. Abranches de
Soveral:
A razão inata, a razão progressista e histórica, tal como a razão expressiva,
respondem todas ao optimismo e à ambição do espírito moderno que não
renuncia às evidências discursivas da Lógica. O máximo a que se resigna a razão
moderna é a considerar a totalidade dessas evidências como tendencial. Já a
razão contemporânea renuncia a tamanha ambição, ou, talvez melhor, ao que há
de ingénuo nela. Vários movimentos empenharam-se temerariamente em destruir
a lógica no exercício consciente dos seus enunciados judicativos.
Nesta acção, o grupo intelectual mais importante foi, sem dúvida, o do Instituto
para a Investigação Social, fundado em 1923 em Frankfurt, que tomou como primeira
97
,,. r . a c^^^gn A Educação como Meio de Superar a Violência
Violência e t,aucaçãO l u u
Modernidade como Símbolo de Violência
- Da razão filosófica a razão pedagógica « "
indissoluvelmente ligada ao pensamento calculista e à sua conservação. Ela não serve para
reduzir as barreiras nas relações sociais ou para tornar os homens mais solidários entre si.
Nesta perspectiva, esta razão manipuladora, predadora, não conhece mais do que
de violência. "A lucidez filosófica reside, então, num pensamento radicalmente pessimista
98
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I ^„^Õ^ A Educação como Meio de Superar a Violência
Violência e Educação Modernidade como Símbolo de Violência
n
- Da razão filosófica à razão pedagógica <-^a^a'J " » *
Pensamos poder concluir que, embora a razão tenha mantido muitas vezes
relações especiais com o poder, agindo como sua justificação, o que lhe deu um sentido
99
A
Violência e Educação Educação como Meio de Superar a Violência
U r, r • - ^ 2 , A Razão da Modernidade como Símbolo de Violência
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- Da razão filosófica a razão pedagógica « ^
100
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
comunicação humana por excelência - e sendo através dela que os seres humanos pensam,
comunicacional no acto educativo, bem assim como tentar verificar até que ponto ela pode
ser promotora de um homem melhor que, pela prática da linguagem, verifique que tem um
amplo leque de discursos à sua disposição, já que "compreender que há, por exemplo,
formas de argumentar que são da ordem das opiniões verosímeis, e não da ordem da
O projecto da modernidade acaba, afinal, por ser traído nos limites da razão
constitui na e pela razão comunicacional que passa, antes de mais, por uma relação entre
sujeitos socializados, a qual se desdobra, por sua vez, em relações normativas mediadas
pela linguagem.
101
A
Violência e Educação Educação como Meio de Superar a Violência
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica Da Razão da Modernidade à Razão Comunicacional
gerador e formador de conceitos. Um novo sujeito que se forma contra a elisão do sujeito.
Nesta linha, Habermas procurou mostrar que a verdade é uma pretensão que só é
Assim, o valor verdade, tal como outros valores, não radica em evidências lógicas
consenso racional alcançado a partir dos dados factuais encarados à luz de vicissitudes da
102
A
Violência e Educação Educação como Meio de Superar a Violência
- D a razsofilosofaàraZaopedagogic Da Razão da Modenudade à Razão Comunicacional
seguinte:
assumindo a reivindicação do sentido, contra a racionalidade positiva, mas
aceitando a crítica da hermenêutica, face a uma teoria de ideologia denunciando
os factos de dominação, tratando por seu turno a dominação como uma
comunicação e renovando a exigência da fundamentação e da legitimidade, sem
diminuir o rigor da análise crítica, a pragmática reconstrói os pressupostos
universais da intercompreensão entre os sujeitos sociais, satisfaz a racionalidade
pela inter-relação das exigências de validade dos diversos tipos de discurso e,
por aprofundamento, liberta «o ideal ético-político de uma prática política que,
como discussão racional e como argumentação pública», representaria a ideia
legitimada da democracia.
Esboça-se, assim, com Habermas, uma nova racionalidade, que encontra o seu
103
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Darazãofilosófica à razão pedagógica Da Razão da Modernidade à Razão Comunicacional
104
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
ciência tecnificada, acaba por sentir uma atracção fascinante pelo símbolo, refugiando-se
compreender o que falar quer dizer, quando a intenção é relativa à educação, utilizando um
futura (da educação) que quererá apresentar-se como ciência".1 Deste ponto de vista,
retórica e da sofistica, pela quebra ou, pelo menos, pela extrema vacilação dos critérios de
razão que deram origem à modernidade, em que a evidência talha o discurso verdadeiro e
É, deste modo, necessário, segundo Hameline, reabilitar a palavra, para que não
continue a ser vista como uma deficiência do pensamento, mas antes como um ornamento
105
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
legítimo da palavra, do discurso, de forma a que o seu uso rigoroso não seja desviado, ou
De qualquer forma, Hameline apela para alguns perigos a que devemos estar
atentos para não cairmos também na desacreditação total da razão. Um deles é o de uma
certa posição behaviorista na pedagogia, que leva a exigir a razão unicamente na medida
em que o acto educativo não se torne definitivamente ininteligível, e não como uma
Outro dos perigos em que podemos incorrer é o de nos deixarmos prender pelas
ainda é o de tomar uma posição metalinguística (discurso sobre discurso), criando a ilusão
106
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Darazãofilosóficaà razão pedagógica Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
de nos mantermos acima do debate, o que é uma posição cómoda no domínio da educação,
porque nos dispensa de discutir problemas difíceis que hoje se colocam ao debate
pedagógico.
pensar passará justamente pela destruição obrigatória das imagens geradoras de obstáculos
epistemológicos, dando-nos como exemplo Bally, que considera que "a maior imperfeição
de que sofre o nosso espírito é a incapacidade de abstrair absolutamente" ; por outro lado,
"deve existir uma essência comum a tudo e, por isso, uma relação entre todas as
que "existem afinidades secretas entre as coisas" e "não só comparações racionais". Ora, é
coisas, ou colocá-la nos artifícios da linguagem. Parece a Hameline que o sonho simbolista
entre estas duas posições: o espírito racional e a alma imaginante. Para si, como para Alain,
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Darazãofilosóficaàrazãopedagógica Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
a metáfora deve ser tomada "muito a sério" e não há incoerência em reclamar contra as
Como refere A. Dias de Carvalho, "para este autor, apesar da imaginação poder
imaginação".
o provável, entre a dialéctica e a retórica ou, mais exactamente, no seio de uma dialéctica
que trabalha a pressão conjunta dos dados reais e das paixões imaginárias, porque só estas
últimas tornam possível este singular conhecimento de causa que se chama educação. O
propósito da educação é, neste sentido, a conjugação de dois dados a bem das relações
108
Violência e Educação A Educação como Meio de Superar a Violência
- Da razãofilosóficaà razão pedagógica Entre a Razão e o Sonho - O Papel das Imagens na Educação
109
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
3a parte:
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Dimensão Antropológica da Utopia
- Da razão filosófica à razão pedagógica
"Por mentirosos que sejam os sonhos mais estúpidos, eles existem [...] O animal
não conhece nada semelhante; só o homem, a despeito de sua mais alta lucidez, é pleno de
A noção de utopia tem sofrido ao longo dos tempos variações significativas. Até
especulativa e, como tal, irrealizável. A utopia era um paraíso terrestre tanto mais
Neste sentido, parece que as utopias, no seu sentido clássico, terão tido um
alcance social menor do que alguns autores lhes quiseram atribuir, já que, pelo facto de
respondiam às aspirações ideológicas dos seus autores, mas não constituíam um projecto
modifica a noção de utopia, estendendo o termo a todo o pensamento que rompe com a
ordem existente com vista a transformá-la; "um estado de espírito é utópico, quando está
111
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica Da Utopia à Antiutopia e Até aos Nossos Dias
em desacordo com o estado da realidade no qual ele se produz".1 Também para Camus, a
para os quais a utopia dependia da ficção, tais como Morus, Cyrano de Bergerac, ou
Vairrasse, entre outros; de outro lado, os do socialismo utópico, que consideravam o seu
sistema como aplicável, uma regra de acção, e que experimentaram mesmo realizá-lo,
mediante experiências, como Owen ou Cabet (que não acreditavam ser de todo utopistas,
já que os seus projectos foram susceptíveis de ser postos em prática pelo recrutamento de
aderentes e partidários), mas que foram classificados, depois, como criadores de utopias no
Mas, se o termo utopia apareceu no século XVI, forjado por Thomas Morus, o
género literário que ela designa é infinitamente mais antigo - poderemos citar, como
dando-se a ruptura com a utopia clássica, pelo menos do ponto de vista formal.
Morelly não descreve uma sociedade ideal, mas faz um ensaio de legislação
abstracta, destinada a ser aplicada às sociedades históricas existentes, com vista à sua
colectivo. A transição de uma concepção tida por irrealizável (um modo de pensar, uma
ficção gratuita) a um projecto imaginário realizável teve por consequência fazer passar a
A diferença entre estes dois tipos de utopias (a impossível e a possível) está bem
A utopia passa, assim, a ser uma forma de organizar racionalmente, num sistema
decorre de um imaginário racional" 3, dado o seu carácter abstracto. Mas, por este facto
conhecimento e, neste sentido, portanto, "a utopia surgirá, inclusive, em nome da liberdade
tornando-se irónica face aos sucessivos insucessos dos projectos experimentais. "As
113
Violência e Educação Dimensão Antropológica da Utopia
-Daraz.ofi.osófcaà^pedagógica Da Utopia à Antiutop.a e Ate aos Nossos D.as
numa sátira amarga da ordem social reinante".6 A fantasia torna-se crítica violenta.
Sem dúvida que, à primeira vista, estas digressões pelo domínio da imaginação
podem ser consideradas como um divertimento inocente ou como um exercício
útil para o pensamento [...] Contudo, quando as quimeras adquirem demasiada
ambição, outro é o dever dos escritores, ou seja, devem levar de novo os espíritos
ao sentimento das realidades e demarcar os limites da fantasia.
A utopia vira-se, então, contra si mesma. Torna-se mais crítica, mas também mais
céptica. Passa-se a uma contra-utopia, já que, diferentemente da utopia clássica, ela não
sonha com a melhor sociedade, mas serve-se da irrealidade para fustigar certos aspectos do
real. "Deste modo, a verdade que a sociedade imaginária lança sobre o homem é ainda
mais cruel do que a realidade".8 A utopia serve, assim, para questionar os sonhos utópicos,
colocando o homem diante de um futuro ainda mais inquietante. "Swift foi o primeiro,
senão a inventar a contra-utopia, pelo menos a dar-lhe a forma literária de uma obra-prima
e um poderoso fôlego filosófico, com a sua obra "Viagens de Gulliver" (1726). Swift
também para uma maior consciência dos limites e fraquezas da utopia. Huxley escreve a
114
, . . ,~ : „ . c A 1 M p S n Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação ^ aos Nossos D,as
- Da razão filosófica a razão pedagógica *-"* " r r
de produção.
polícia omnipresente e de métodos brutais, que pode ser passiva (com violência
componentes, o que, aliás, acontece com frequência, ainda que nem sempre a intimidação
psico-física passe ao acto físico de execução, ao mesmo tempo que são utilizadas diversas
115
i- , ;,_ Dimensão Antropológica da Utopia
V i o l e n c e e Educação
- Da razSo filosófica à razão pedagógica e ^ aog N o s s o s ^
_ n » roTSrtfiln-crifîf:» a razao Deoaeoeica ^ r r
que, embora muitas vezes sejam confundidas, a utopia não é ideologia. Assim, para Karl
Manheim, as ideias utópicas "não são ideologia, na medida e desde que conseguem,
acordo com as suas próprias concepções".12 De facto, elas são concebidas, muitas vezes,
menos como ficções e mais como modelos susceptíveis de orientar a acção, levando-as a
dimensão antropológica.
Também para Paul Ricoeur, sendo a utopia evasão e não distorção, ela demarca-se
externa de uma dada identidade, enquanto aquela se distingue como uma "alternativa ao
1^
poder presente ou uma forma alternativa de poder".
Nos nossos dias, a utopia está estreitamente ligada à linguagem particular das
das sociedades contemporâneas, embora o seu significado permaneça vago, talvez porque
procure ser um pensamento de acção que, para ser eficaz, é obrigado a refutar as
«desencantadas» que sejam, continuam a produzir sem cessar a sua própria mitologia." '
116
x. „ ~, ~„ Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação ,^ e At- a o s N o s s o s D i a s
- Da razão filosófica à razão pedagogic.
117
Dimensão
Violência e Educação Antropológica da Utopia
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Carvalho:
A utopia aparece, no âmbito de uma aproximação crítica entre as finalidades
antropológicas e os objectivos dos projectos pedagógicos, tanto ao nível
individual, como no plano dos discursos educativos. Na verdade, a função
mobilizadora e crítica das utopias parece ser imprescindível para o
desenvolvimento dos processos educativos, sobretudo, enquanto estes podem ser
í
considerados como percursos antropológicos.
Octavi Fullat, por seu turno, considera que podemos suspeitar que o seu
processo educativo, isto porque, para este autor, "o acto educativo especificamente humano
Parece-nos inegável afirmar que entre pedagogia e utopia existe muitas vezes uma
relação de cumplicidade, sendo que a pedagogia foi sempre uma das maiores inquietações
das utopias clássicas, consagrando-lhe quase todas pelo menos alguns parágrafos e
sistema educativo que, nesta perspectiva, condiciona o futuro da sociedade, porque a sua
118
... r ■ 0 Tj^^QrSn Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e naucaçao Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação
u LU
- Da razão filosófica à razão pedagógica Pla c L
euagugi 6 r
original num ou noutro autor, que propõem, frequentemente, uma educação comum, em
ligação com o princípio da comunhão dos bens. No fundo, a educação é moral e não tolera
nenhum desvio à ordem estabelecida, mesmo se o sistema educativo geral, por causa do
seu comunitarismo, está, nele mesmo, em oposição com as ideias do tempo. Os conselhos
utopistas acreditam que o facto de incutir às crianças unicamente o sentido das virtudes e
educativo global, com alguns autores a proporem uma educação às custas do Estado. Para
uma oposição clara entre utopia e ciência ou, mais exactamente, entre socialismo utópico e
socialismo científico. Graças a esta distinção, Marx e Engels tornaram-se distantes dos
119
,. ,„ _, ~n Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação
sistemas utópicos fechados da sua época. A utopia mais não era, para estes autores, do que
para eles, somente a teoria científica era a verdadeira. Na obra Socialismo Utópico e
Socialismo Científico, Marx afirma que "para fazer do socialismo uma ciência é preciso
primeiro situá-lo num plano real", indicando de maneira bem clara o sentido dessa
estaria submetido a uma espécie de teleologia, amadurecendo ao longo da história para dar
lugar ao marxismo. Por outro lado, há uma ruptura clara entre os dois conceitos, já que,
para o marxismo, apenas o proletariado armado com uma teoria científica pode e tem
estritamente à vida material, real e social do homem. Com base nesta tese pode
continua, por todo o lado, o mesmo: ordem e disciplina. Como a política, a educação é
120
. . . ,„ . „ Tj,i„~ Q ~Br. Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação _ n a Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica u l u p i a 1.1 v u o 6 ^ 6 i u B r
pura domesticação, tendo este aspecto constrangedor da utopia chegado aos nossos dias.
qualquer utopia pedagógica, já que ele é, como afirma Reboul, a perversão da educação; ao
problemas do homem, prometendo-lhe a felicidade, não deverá ser levada tanto a sério.
portanto, o cerne de uma antropologia filosófica e de uma educação que, visando-o, nele se
inspire, o que, por tal facto, leva a que seja "inadiável o esclarecimento do seu estatuto
seu próprio sentido pedagógico" 9, uma vez que as utopias hoje se inclinam para uma
pedagogia social, para o esbatimento das fronteiras entre o espaço político e o espaço
novos.
Esta noção de utopia obriga, necessariamente, à sua articulação com outras ideias
que lhe são próximas, como a da esperança e a da alteridade. Uma esperança utópica, à
maneira de Bloch, em que o que busca no presente não são traços ou ruínas do passado
mas, bem pelo contrário, as potencialidades do futuro, suas antecipações ainda não
121
,7. „ . TJ^^O^Õ^ Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Pedagogia - O Lugar da Utopia na Educação
. n« r«rân filosófica à razão nedaeomca uiupia 1 1 i.ua6u6ia fc
Por outro lado, a pedagogia utópica, ao ser filosófica, deve, antes de mais, ser
protagoniza e radicaliza. A verdade da utopia seria então a ética, para a qual o outro não
pode ser identificado ao mesmo, isto porque o homem é um ser inconcluso que se constitui
no encontro com os outros. Parece-nos que Reboul corrobora esta nova noção mais
abrangente de utopia, ao considerar que ela é a crítica mais radical, a recusa mais profunda
das coisas tal como existem e dos homens tal como foram feitos.
T7.,. . -c^^^zn Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Pedagog.a - O Lugar da Utopia na Educação
u lu
- Da razão filosófica à razão pedagógica Pla c L cua
& B b r
9 Idem, p. 3
123
, r - ,~ • c ^^^5^ Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
-Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e actuar movido por tal
fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se
pudesse reduzir a actos calculados apenas, à pura cientifwidade, é frívola ilusão. [...]
concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se
alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã." - Paulo Freire.
pensamos ser importante abordar o pensamento de Paulo Freire, o qual, no seu texto Acção
tem de ser uma pedagogia utópica e esperançosa, orientada para o futuro, construída a
sociedade existente e a vontade de uma sociedade futura melhor, com base numa teoria da
interpretado como futuro a construir. Alcançar o inédito viável implica superar uma
concretos apenas através da sua subjectividade. Assim, uma pedagogia da libertação deve
124
_ . „, ~ Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação _Uma ped i a u t ó ica e Esp erançosa
1 tt
- Da razão filosófica à razão pedagógica "'" *
Paulo Freire insiste, sobretudo, no valor absoluto que o outro deve representar para o
educador e no profundo respeito que lhe deve merecer. Para o autor, os homens educam-se
uns aos outros por meio da vida, "da responsabilidade solidária, segundo a qual toda a
educação e libertação são dialógicas ou não chegam a ser verdadeira educação e efectiva
libertação" 2, isto porque ninguém educa ninguém, nem ninguém se educa a si próprio; a
educação faz-se na relação com o mundo e com os outros: "a educação se faz então
diálogo, comunicação. E, se é diálogo, as relações entre os seus pólos já não podem ser as
norteado pelo ideal da libertação global do indivíduo, em muitos sentidos não deixa de ser
uma utopia.
Usando expressões como liberdade do homem Ser Mais, não situando a acção
alfabetizadora numa análise global, ideológica e política, da exploração e
alienação das massas, das suas lutas de classe, não colocando o problema da
125
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Q^ . ^ _ U m a P e d a g o g i a utópica e Esperançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Paulo Freire rejeita a educação tradicional burguesa que, assentando numa falsa
suas intenções, que não separa o homem do mundo porque o considera um ser histórico.
A sua pedagogia da Uberdade traz o gérmen da revolta, mas nem por isso seria
correcto afirmar que esta se encontre, como tal, entre os objectivos do educador.
Se ocorre, é apenas e exclusivamente porque a conscientização divisa uma
situação real em que os dados mais frequentes são a luta e a violência. 7
separa a teoria e a prática. Neste sentido, consideramos que o seu projecto pedagógico se
A sua pedagogia não se esgota no acto escolar nem tão pouco no educativo.
e realização pessoal ligada ao desenvolvimento global social e político. Na sua obra Uma
O propósito de Paulo Freire não era alfabetizar para dissimular o atraso técnico e
económico dos países da América Latina, mas para que se alterasse a mentalidade dos
seres aprisionados pelo que chama "culto do silêncio", já que este nega o direito ao
conhecimento e à educação. A sua obra funciona como uma espécie de consciência crítica,
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação paulo ^ ^ _ U m a P e d a g o g i a utópica e Esperançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
pedagógica.
isso o processo pelo qual o homem aprende a perceber (não como mero recipiente, mas
como sujeito interveniente) as contradições sociais, políticas e económicas. Mas, para que
o seu método tenha êxito, o autor define a teoria gnoseológica que o legitima, prevenindo
o papel da consciência na libertação do homem, embora a reflexão, por si só, bem assim
como a acção também isolada, não seja suficiente para essa libertação.
fortemente ligada à prática, já que, para Paulo Freire, a linguagem e o trabalho são
enfim, da vida. A alfabetização dos adultos seria um meio de libertação dos oprimidos.
favorece a tomada de consciência dos problemas reais, mas que apenas mantém o "status
cumplicidade das Igrejas no funcionamento dos sistemas escolares burgueses. "Ao lado do
tema da conscientização que, de facto, habita profusamente os textos deste período, uma
Considerando que não pode haver renovação pedagógica sem uma renovação
uma posição política. Contudo, Paulo Freire não se considera um político, mas um
pedagogo. Confia que a sua pedagogia servirá para que os "alfabetizados" adoptem uma
129
_ Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação ^ ^ _ U m a P e d a g o g i a U t ó p i c a e Esp erançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
sociedade a construir.
interesses, mas também se opõe às pretensões das novas elites que manipulam as massas
reflexão para a tomada de consciência, que constitui o seu interesse central, pois está
Numa época de tanto desalento como a que estamos a atravessar, "e porque toda a
130
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação pauio ^ ^ _ U m a P e d a g o g i a U t ó p i c a e Esperançosa
- Da razão filosófica à razão pedagógica
1 Paulo Freire cit. por J. Neves Vicente in "Educação, Diálogo, Critica e Libertação na Acção e no
Pensamento de Paulo Freire" - Revista Filosófica de Coimbra, n. 8, p. 396
2 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Critica e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire"
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 378
3 Paulo Freire - Uma Educação para a Liberdade, p. 18
4 "Apprendre à Être" (Unesco), cit. por A. Reis Monteiro in Educação, Acto Político, p. 54
5 François Maspero cit. por A. Reis Monteiro in Educação, Acto Político, p. 55
6 Paulo Freire - Pedagogia do Oprimido, p. 85-86
7 Francisco C. Weffort in "Educação e Política" - Introdução ao livro Educação como Prática da
Liberdade, de Paulo Freire (Ed. Paz e Terra, Brasil), p.ll- 12
8 Paulo Freire cit. por Pierre Furter in Paulo Freire: Política e Pedagogia, p. 86
9 Paulo Freire - Uma Educação para a Liberdade, p. 13-14-18-26-49
10 Idem, p. 56
11 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Críúca e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 397
12 Idem, p. 405
13 Francisco C. Weffort in "Educação e Política" - Introdução ao livro Educação como Pratica da
Liberdade, de Paulo Freire (Ed. Paz e Terra, Brasil), p. 16
14 J. Neves Vicente - "Educação, Diálogo, Crítica e Libertação na Acção e no Pensamento de Paulo Freire"
in Revista Filosófica de Coimbra, n.° 8, p. 400
131
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
forma, ela faz parte integrante do homem e foi sempre um dos meios para exprimir
dão-nos até a imagem de uma sociedade ideal através de uma cidade sem violência. A
afinidade que, nos nossos dias, se pode constatar entre uma e outra, é recente e é,
ideia revolucionária. Foi, por conseguinte, um longo caminho dos espíritos que conduziu à
132
, r . ,„ T-,, ~„ Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Da Utopia à violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
violência encontra-se legitimada, sendo que esta legitimação lhe vem de uma razão de
Estado Absoluto, ou de uma filosofia totalitária que impõe os seus modelos de homem e de
sociedade.
certo tipo de socialismo. Uma análise profunda do nacionalismo (de direita ou de esquerda)
mostra que esta ideologia é fundada sobre o espírito da vingança. Terrorismo e utopismo
pelo poder.
proveito a falsa aparência da virtude. Não se justifica a violência por ela mesma, mas pelos
efeitos utópicos que se consideram realizáveis. Ela é a via para chegar à liberdade,
violência tornam-se cúmplices nos projectos colectivos que veiculam muitas das ideologias
133
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação D a utopia à Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
fundo, este género de regime existiu sempre. Segundo as épocas, foram chamados de
aplicação constante da violência, em proveito de uma minoria que se mantém no poder por
É evidente que nem todo o pensamento utópico moderno tem ligação com a
violência, até porque a maior parte das antiutopias nos colocaram de sobreaviso contra o
atentado crescente dela sobre os seres humanos, mas, em geral, o utopismo contemporâneo
legitima, ou pelo menos desculpa, a violência. Refere Julien Freund, na obra Utopie et
Violence:
A utopia e a violência crêem poder determinar definitivamente o destino dos
homens: a primeira imaginando a cidade perfeita ou idealizando um paradigma
da sociedade futura, a segunda confiando aos partidos^ ou às organizações a
missão de agente redentor ou libertador da humanidade.4
Também a Paul Ricoeur parece que vivemos numa época em que o espírito de
134
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Da Utopia à Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Berdiaeff:
As utopias aparecem como bem mars realizáveis do que se acreditava noutros
tempos E encontramo-nos, actualmente, perante uma questão não menos
angustiante: «Como evitar a sua realização definitiva?...» As utopias são
realizáveis. A vida corre em direcção a elas. E talvez comece um novo século, um
século em que os intelectuais e as classes cultas sonhem com o modo de evitar a
utopia e de voltar a uma sociedade não utópica, que seja menos «perfeita» e mais
livre.
Uma coisa é certa, da mesma forma que julgamos os nossos antepassados, nós
seremos julgados pelas gerações futuras. É de prever que esse julgamento seja severo, jã
que a onda de violência em que ho,e vivemos é tão grande que é impossível que ela não
Existem, de facto, nos nossos dias, utopias totalitárias alimentadas pelo fanatismo
politico e impostas pelo terror que se mostram mortíferas até ao limite. A falta de
enquanto não param de pronunciar o discurso humanista, também não deixam de alimentar
utopia, factores esses que nos obrigam a compromissos no plano ético, social e político,
135
Dimensão Antropológica da Utopia
Violência e Educação Da Utopia à Violência
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Considerações Finais
Considerações Finais
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
A questão com que iniciámos o nosso trabalho prendia-se, desde logo, com a
Ela não é uma invenção da nossa época, como procurámos demonstrá-lo, mas a
compreender porque é e como é que esta época, ao mesmo tempo que viu proclamar, com
Esta dimensão assustadora que a brutalidade atingiu no nosso tempo não reside
força que pode revestir formas variadas e extremas, desde a coacção até ao homicídio.
violência que se produzem pelo mundo ou perto de nós: guerras, atentados, assassinatos,
suicídios ou, mais simplesmente, outras violências nas suas formas quotidianas mais
banais.
Seja qual for a forma que assume ou sob a qual se esconde, a violência não é
senão, de um modo geral, um condenável atentado que, por motivos diversos, sejam eles
138
Considerações Finais
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
A violência gera violência e, por isso, o combate contra ela não pode ser, em
princípio, levado a cabo com o recurso às mesmas armas. E dizemos em princípio porque
violência possa alcançar uma certa aceitação perante uma consciência ética.
servir de pretexto ao homem não-racional. Julgamos, por isso, que é um dever cívico
tentar, com todos os meios ao nosso alcance, reduzir a violência até ao mínimo, embora tal
empreendimento não deva assentar no recurso a essa mesma violência. Escreveu a este
De facto, com Eric Weil, o autor de referência que escolhemos para tratar o tema
da violência, pensamos que "a violência, por necessário que pareça o seu emprego no
qualquer forma, depois de analisar mais profundamente as suas obras, concluímos que,
apesar da aposta feita na razão como forma de combater a violência, a lógica da sua
filosofia não permite entrever uma história que saia da lógica da violência.
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Considerações Finais
Violência e Educação
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mundo:
a violência deve ser compreendida naquilo que tem de positivo, pois é a mola sem
a qual não existiria movimento; não passando de negatividade em cada ponto, ela
é, na sua totalidade, a positividade do ser que se reconhece racionalmente como
liberdade.
recusa de forma absoluta. Ela própria, concede Eric Weil, "recomenda o emprego da
É verdade que Eric Weil não fecha a história na fatalidade da violência, como
até ao final da sua reflexão. Com efeito, não é fatal que os homens escolham a violência.
Eles fazem-no livremente. De resto, nem todos o fazem, e Weil pensa que são cada vez
menos a fazê-lo. Mas, se é verdade que basta que alguns deles escolham a violência para
que aqueles que escolheram a razão se encontrem na necessidade de recorrer eles próprios
momento em que o homem não se deixa convencer pelos argumentos da razão, é preciso
Se o facto de propor aos homens a razão, em vez de lha impor, fosse um processo
suficiente para que eles se tornassem racionais, já há muito que a violência não
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Considerações Finais
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
história. Não se pode, racionalmente, legitimar a violência. Para tal, prefere-se, muitas
vezes, ignorar as alternativas que se poderiam empregar em sua substituição. Por outras
palavras, trata-se de pensar como é que a razão humana pode entrar num conflito tão
sua cúmplice, ou de se tornar ela também uma forma de violência. Não deixamos de
acreditar na razão e partilhamos com Friedrich Hacker a ideia de que "à razão crítica e
autocrítica cabe muitas vezes razão. Talvez possamos encontrar-nos no direito de esperar
que acabará um dia por ganhar a realização de algumas das suas pretensões."
É por isso que pensamos que hoje cabe à filosofia e, mais concretamente, à
Por tudo isto, a educação contemporânea não se pode reduzir a uma mera
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Considerações Finais
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- Da razão filosófica à razão pedagógica
democracia e a paz se, de uma forma critica, não participar estes valores. Neste contexto, é
constitui antes uma autêntica educação para a violência, por ocultamente de um conjunto
de valores que poderiam e deveriam dar sentido à vida humana, como a paz, a
causas ao fanatismo.
esperança que a violência e as suas manifestações diminuam. Hoje, despontam sinais bem
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
Bibliografia
Bibliografia
Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
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Violência e Educação
- Da razão filosófica à razão pedagógica
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- Da razão filosófica à razão pedagógica
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