Professional Documents
Culture Documents
IGOR MARCONI
MARINGÁ – PARANÁ
2019
IGOR MARCONI
MARINGÁ – PARANÁ
2019
IGOR MARCONI
COMISSÃO EXAMINADORA:
__________________________________
Prof. Dr. Luiz Felipe Viel Moreira
__________________________________
Prof. Dr. Marcela Cristina Quinteros
__________________________________
Prof. Dr. Meire Mathias
6 Para citar alguns dados: em 2006, segundo o Consejo Nacional de Población (CNP), no Estado de
Chiapas, 78,14% da população viviam com até dois salários mínimos; 42,76% não completaram o
ensino primário ou, 21,35%, eram analfabetas; 25,90% das residências não possuiam água tratada;
além disso, 58,46% da população vivia em localidades com menos de 5.000 habitantes, o que
dificulta o acesso a serviços básicos de saúde e educação. A situação não era muito diferente nos anos
anteriores, sendo que a conclusão do relatório afirma que “este fenómeno tiende a persistir en el sur
del país”. Apesar da miséria, Chiapas continua sendo um dos Estados mexicanos com maior
quantidade de recursos naturais. Responsável por mais da metade da produção de energia hidrelétrica
do país (55%), maior produtor de café em âmbito nacional e quarto maior em mundial. Entre 1991 e
1992 foi o quinto maior produtor mundial de petróleo bruto: 82% das exportações de petróleo bruto e
70% dos derivados do México vinham de Chiapas. NIGRI, 2009, p. 28-40.
7 Processo no qual as fileiras (neo)zapatistas se expandem vertiginosamente. Para mais detalhes:
ASSIS, 2013, p. 60-66.
8 Para utilizar o termo que remete à Teoria da Dependência formulada na América Latina em meados
do século XX e que contrapunha um centro a uma periferia, entendendo que a superação das
dificuldades locais se dava através da compreensão da divisão internacional do trabalho como um
caráter estrutural e que via na luta social e quebra das estruturas de poder internacionais a saída do
processo estagnante da economia e, invariavelmente, da reprodução da miséria e da desigualdade
social. ANDREO, 2010, p. 55-56.
9 Expressão que remete à consolidação da vitória capitalista ante o comunismo soviético no início da
década de 1990. FUKUYAMA, 1992.
10 Para mais detalhes: ALMEIDA, 2017, cap. I.
(OMC) e a aplicação das diretrizes do Consenso de Washington – foi capaz de
sobreviver, criar formas estratégicas de resistência e de divulgação, reorganizando as
características dos movimentos sociais em escala global, na criação de uma cultura
política11 que somava a ancestralidade maia, o marxismo-leninismo guerrilheiro, a
internet e as relações com a sociedade civil12.
Alguns autores como Ernesto Laclau, escrevendo no final da década de 1980,
passam a apresentar uma análise pós-marxista para a esquerda em um movimento de
questionamento da dialética e dos conceitos básicos da historicidade/lógica histórica
(modos de produção, relações de produção e luta de classes). Com o desmantelamento
da URSS, um ciclo revolucionário chega ao fim “tanto como fuerza de irradiación en el
imaginario colectivo de la izquierda internacional”, que relaciona a possibilidade real,
material e concreta de revolução, “como en términos de su capacidad de hegemonizar
las fuerzas sociales y políticas de aquellas sociedades en que el leninismo (…)
constituyera una doctrina de Estado”. Com tal crise de existência, a esquerda passa a
procurar novas formas de se conceber como movimento político, a reorganizar suas
ações e práticas e a resistência à hegemonia do capitalismo (LACLAU, 2000, p. 11).
De outro lado, o pensamento liberal, partindo da premissa da universalidade de
sua formulação, encontra uma vontade autoritária, impositiva e violenta que,
paradoxalmente, entra em conflito com sociedades e organizações coletivas que
pensam, atuam ou vivem de forma divergente. Esse paradoxo, representado pela noção
de que a universalidade se dá na criação de consumidores e produtores, determina a
postulação a sociedades divergentes de tal premissa e alcunha de “atrasadas”, “tribais”
ou “primitivas”. Dessa forma, tem como característica a impossibilidade da convivência
com o diferente, que, antes de tolerante – no enriquecer da existência humana – se
determina pelo “choque de civilizações”13, pelo aspecto conflitivo e violento, do
11 Termo advindo da renovação da História Política e que perpassa a ideia de entender as influências do
cultural no âmbito político de diversas formas e como processo de longa duração. Para uma leitura
mais aprofundada ver: BERSTEIN, 1998, p. 349-363; SIRINELLI, 1997, p. 157-164.
12 Compreende-se o termo sociedade civil como uma representação da antinomia entre grupos sociais
diversos, permeados por classes e disputas de poder de um lado e o aparato estatal do outro. Não se
entende que a dicotomia em si seja excludente, já que os dois polos apresentam diversas relações
entre si. Vale ressaltar, em todo caso, que sociedade civil não é uma estrutura unívoca, pautada pela
homogeneidade, mas arena de disputas políticas, de poder, econômicas, sociais e culturais.
ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR (orgs.), 2000, p. 39-40.
13 Termo que se tornou famoso no artigo de Samuel Huntington apresentado ao periódico de Relações
Internacionais dos Estados Unidos, Foreing Affairs em 1993 e ampliado e transformado em livro em
1996. A ideia geral da produção, grosso modo, é estabelecer um iminente conflito que se levantaria
entre o Ocidente, marcado principalmente pelos Estados Unidos e o Oriente, numa aliança entre
intolerante. Nesse sentido, a emergência dos movimentos sociais do final do século XX,
principalmente os indígenas, vêm questionar a hegemonia do capitalismo e a prática do
neoliberalismo, demonstrando as inúmeras tensões que evocam a diversidade (ao
contrário da universalidade) do mundo (DAVALOS, 2005).
Partindo da ideia representada pelo contexto e na ambientação da configuração
internacional em evidência, estruturada historicamente e estabelecida como processo de
continuidades e rupturas, as nuances do movimento passaram – pelo aspecto
performático e seminal – a quebrar o paradigma revolucionário latino-americano
representado pela Revolução Cubana de 1959 e a Sandinista de 1979, ambos processos
que se pautaram numa atuação presente da luta armada, da organização guerrilheira e do
levante popular. As atuações (neo)zapatistas14 demonstraram efetuar um semblante
histórico que reorganizou e deu pujança a uma prática revolucionária que não se
estabelecia pelo conflito direto (mesmo que existente), mas pelas ações (pequenas ou
grandes) de questionamento do status quo determinado pelo sistema capitalista,
pautados em conceitos históricos ocidentais e de regimes liberais como democracia,
justiça, liberdade e autonomia15.
Pretende-se compreender com este trabalho como a produção acadêmica
brasileira dos últimos dez anos elaborou pesquisas sobre o movimento, observando as
especificidades históricas do mesmo, ressaltando uma constante retomada dos aspectos
revolucionários na atualidade. A história é sempre produto de um olhar do presente para
o passado e as nuances da cientificidade expressas na Universidade demonstram a busca
da possibilidade de superar as relações de poder e de dominação proeminentes do
16 A pesquisa na plataforma teve como base alguns critérios de seleção: o uso dos termos “zapatismo” e
o sufixo “neo”, bem como o sujeito “zapatista”, a referência ao Estado de “Chiapas” e ao movimento
“EZLN”; que fossem produções que estivessem no âmbito da História ou das Ciências Sociais e
Antropologia; e que versassem sobre os temas aqui abordados de origem e organização. Alguns
trabalhos encontrados também estão referenciados na bibliografia ao final pois tiveram importante
participação na construção deste artigo, mas que não abordam, por fins analíticos, a classificação aqui
definida.
proximidades e semelhanças sempre que for possível.
DE ONDE VIEMOS?
17 Processo de reorganização dos estudos em história política na França capitaneados por autores como
René Rémond e Jacques Julliard. Uma das principais contribuições dessa renovação é o
estabelecimento dos estudos de História Política pautados na interdisciplinariedade e na amplitude de
temporalidade, em recusa ao factual. Vide RÉMOND, 2003; JULLIARD, 1976.
Echeverría18 e estadual de Manuel Velasco Suárez19, celebrar os 500 anos de nascimento
do frei Bartolomé de Las Casas, importante figura do período colonial que representava
a luta pelas comunidades indígenas na América Espanhola. Todavia, mais que apenas
uma celebração, o Congresso Indígena de 1974 representou um importante passo na
configuração do que seria, futuramente, o EZLN.
O que acreditamos ser possível concluir com estas passagens (…) é que já
havia ocorrido o início de um processo de união entre comunidades de mesma
etnia (…) graças à influência da Teologia Libertação propagada pela diocese
27 Vale apontar que não se pode estabelecer uma centralidade em qualquer uma das visões, mas sim a
diferenciação de olhares entre ambas, na qual as particularidades da pesquisa são próprias da
operação historiográfica, em consonância com CERTEAU, 1982, cap. II.
28 Para o autor, a transnacionalização refere-se a um processo de reorganização do sistema capitalista
por meio da extrapolação dos limites geográficos para a constituição da divisão internacional do
trabalho, isto é, não se estabelece como globalização pois esta advém de uma interpretação
integralista, de união e como forma de entender o fim das fronteiras por meio das construções sociais
de ajuda mútua, e aquele da internacionalização do modus operandi do capitalismo, expandindo seus
meios de subsistência através da intensificação da exploração do trabalho que, como aponta, trata-se
de ser, ao menos no campo da América Latina, pautado na semiescravidão ou em condições muito
precárias. ALMEIDA, 2017, p. 87-90.
29 Conceito estabelecido no final do século XIX, tinha como concepção a dominação política e
econômica de um país sobre outro. No entanto, como qualquer outro conceito, altera-se com o tempo
até chegar ao período estudado (décadas de 1970-1990) com uma nova formação, também pautada
nas construções supranacionais citadas anteriormente (FMI, BM, OMC), na qual o controle se dá pelo
poder. ALMEIDA, 2017, p. 39-44.
A força paradigmática dos questionamentos ao status quo capitalista e outras
representações de movimentos sociais30 no século XX seriam o estopim de uma quebra
institucional do capitalismo e de respostas contrárias ao sistema vigente. Entretanto,
inserido nessa lógica, o EZLN teria uma prática própria marcada pela “linha teórica
seguida, pela base social que adota, pela tradição de luta de cada povo, pela tática
acionada, estratégia perseguida, pela correlação de forças estabelecida, conjuntura
política e social em que se situa, e pela ideologia de que se apropria, redefine e recria”.
As respostas trazidas pelos (neo)zapatistas, originárias da herança dos movimentos
anteriores, acabam por “apropria-se de elementos e categorias inerentes a uma
determinada ideologia e opera uma reinterpretação sob a ótica específica (…) de sua
tradição cultural”, isto é, partindo de uma concepção marxista-leninista da guerrilha
que, posteriormente, em contato com as comunidades indígenas, transformam-na em
uma proposta de luta pautada na experiência milenar dos povoados (ALMEIDA,
2017( p. 95-97).
É importante destacar, ainda, em como o autor analisa o EZLN e a luta armada
empregada tanto na esfera de organização anterior a 1994, passando pelos primeiros
dias de conflito e que não cessam a partir de um ambiente hostil, pautado na guerra de
baixa intensidade31, como uma representação classista, isto é, que não se determina
unicamente pela característica étnica ou ainda pela agremiação de vanguarda aos
moldes de Lukács, mas sim como um elemento de resistência dentro da estratégia mais
ampla de luta antissistêmica e anticapitalista que se insere em uma base social
heterogênea e como movimento reformista dinâmico (ALMEIDA, 2017, p. 90-98).
Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho faz uma dissertação na área de Ciências
Sociais e este aspecto é marca presente na forma que conduz o texto. Como perspectiva
histórico-social, a concepção do autor é que o movimento precisa ser entendido dentro
de uma constituição histórica de relações que, todavia, ainda perpassam as respostas
socialmente dadas aos problemas em evidência. É por isso, por exemplo, que não há um
recorte cronológico delimitado sobre a formulação do EZLN, ou seja, a noção dentro
30 Cita, por exemplo, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a Guerra do Vietnã (1963-1975), as
guerras do Golfo (1980-1991), Revoluções Russa (1917), Chinesa (1949), Mexicana (1910), Cubana
(1959) e Sandinista (1979), a experiência socialista chilena da Unidade Popular (1970-1973), as
rebeliões estudantis de 1968 na França e no México e rebeliões populares como da Praça Celestial na
China de Deng Chiao Ping (1989). ALMEIDA, 2017, p. 89-90.
31 Uso de aparatos paramilitares supralegais para levar terror, morte e cerco. Pode ser entendido também
como uma das práticas do terrorismo de Estado. No caso de Chiapas, destacam-se as guardias
blancas, grupos paramilitares que possuem suporte de ação supralegal dos aparatos institucionais.
das Ciências Sociais extrapola a condição da temporalidade da História como mote. As
condições da realidade são mais coerentes que as formulações algumas vezes teóricas
que tentam suplantar por meio de fórmulas objetivas a complexidade dos fatos e,
também, demonstra uma não linearidade na narrativa.
Assim, para o autor, as origens do EZLN se dão em um contexto de crise global
das esquerdas e a queda da União Soviética, na qual se estabelece a formulação do
Homos Economicus, na perspectiva da “paz reinante”, no livre-mercado e na associação
do sistema de consentimento e coerção como em Gramsci, ou seja, no convencimento
ideológico e na repressão militar utilizada cirurgicamente, principalmente contra grupos
rebeldes. Uma conjuntura na qual as saídas do século XX não tinham mais grande
espaço, como se pôde afirmar com a América Central na derrota da guerrilha na
Guatemala, o impasse em El Salvador e a crise da Nicarágua Sandinista 32. Quatro
movimentos são percebidos como importantes aspectos históricos da dissertação: a
fraude eleitoral de 1988 por Salinas de Gortari 33; o estabelecimento das políticas
neoliberais desde o governo de Miguel de La Madrid e a entrada no México no Tratado
de Livre Comércio (TLC)34; a crise do PRI como Partido-Estado, isto é,
institucionalmente estabelecido desde a década de 194035; e a realidade chiapaneca de
miséria e exploração. Hilsenbeck Filho resume o surgimento do EZLN pelas seguintes
condições:
COMO LUTAMOS?
36 Referindo-se a ideia de “mito da origem” que Marc Bloch menciona sobre o ofício do historiador.
BLOCH, 2001.
37 Assassinatos de líderes de organizações indígenas e campesinas como Juan Jesús Posadas Ocampo,
Luis Donaldo Colosio e José Francisco Ruiz Massieu entre 1993 e 1994; a morosidade do
atendimento às solicitações da constituição de ejidos; e a expedição de certificados de inafetabilidade
sobre terras de Chiapas são alguns dos aspectos que marcam a radicalização do movimento em
Chiapas. HILSENBECK FILHO, 2007, p. 36-37; HARVEY, 1998, p. 154.
38 Dois em especial: a dissertação de Alyne dos Santos Gonçalves e Alexander Maximilian Hilsenbeck
demonstram a característica humana do processo, qual seja, focalizada na ação dos
viventes dentre as possibilidades que se davam historicamente, isto é, que não se
estabelece pela busca de formas teóricas capazes de adequar o movimento em uma
fórmula preestabelecida.
As produções que se focalizam sobre a organização do EZLN são: a de Júlia
Melo Azevedo Cruz, defendida em 2017 na UFMG com o título de “Armas, palavras,
autonomias: o complexo repertório de confronto do Exército Zapatista de Libertação
Nacional (1983-2005)”; Alyne dos Santos Gonçalves, defendida em 2008 na UFES e
intitulada “As Autonomias Zapatistas: uma construção rebelde de novos sujeitos
políticos (1994-2008)”; e Leandro Machado de Souza, “Autonomia, Nação e Classe: o
projeto zapatista das Comunidades Lacandonas para o México (1994-2004)”, defendida
em 2014 na UFRRJ.
Júlia Melo Azevedo Cruz faz uma leitura dos documentos disponibilizados pelo
EZLN na internet39 e busca compreender as diversas estratégias que foram se dando ao
longo da existência do movimento, partindo da chegada dos guerrilheiros à Selva em
1983 até a criação das Juntas de Bom Governo e dos Caracóis em 2003 e a promulgação
da Otra Campaña40 em inícios de 2006, que extrapolam os interesses da dissertação
como objeto. As perspectivas de Cruz se focam na análise teórica das performances e
repertórios do (neo)zapatismo através da teorização de Charles Tilly. Nesse sentido,
quer-se entender em como as nuances dos momentos foram cruciais para as respostas do
movimento, criando-se uma representação estratégica e ação política, em um “conjunto
reconhecido de maneiras de agir de certas estruturas de conflito, histórica e
culturalmente apreendido por grupos e atores políticos”. Assim, a autora destaca as três
performances do movimento: Armas, palavras e autonomia (CRUZ, 2017, p. 18)41.
As armas seriam a primeira estratégia utilizada pelo movimento que se pautava
na guerra direta contra o governo priísta e o neoliberalismo. Tal conflito foi marcado
pela preparação geral do movimento na Selva na década de 1980, mas, principalmente,
por um histórico processo de resistência que marcam as comunidades indígenas desde a
colonização. Neste sentido, ela levanta uma constituição longa das rebeldias e conflitos
Filho.
39 Através do site http://enlacezapatista.ezln.org.mx/.
40 Estratégia de expansão da ação política do EZLN para o âmbito nacional com o fomento e apoio a
outros movimentos de esquerda suprapartidários. É formalizada pela Sexta Declaração da Selva
Lacandona.
41 Não por coincidência presentes no título da dissertação.
entre os povoados indígenas e o Estado, os coyotes42 ou os ladinos43. O avanço da
esperança armada se daria, dessa forma, a partir do estabelecimento de uma política
neoliberal e a quebra das negociações de âmbito institucional.
O embate se dá, assim, em processos diferentes: primeiramente uma preparação
que envolve o período da década de 1980 e, principalmente, a expansão das linhas
zapatistas a partir da queda do preço do café, um conjunto de epidemias curáveis que
causaram mortes devido ao precário sistema de saúde, a perseguição de grupos
paramilitares conhecidos como guardias blancas e da fraude eleitoral de 1988; então
com as assembleias44 e a decisão da guerra, criando-se o Comando Clandestino Rebelde
Indígena (CCRI)45 em 1992, treinando-se os combatentes e estabelecendo uma
economia de guerra, com a participação das várias bases de apoio e comunidades do
entorno; a declaração de guerra em 1º de janeiro de 1994 com a Primeira Declaração da
Selva Lacandona e os doze dias de conflito que tiveram cessar-fogo unilateral por parte
do governo, respaldado na pressão da sociedade civil; e a guerra de baixa intensidade46,
na qual persiste até os dias atuais e que envolve as estruturas de ação do governo e dos
grupos paramilitares, com a disponibilização de crédito, das disputas sobre os títulos de
propriedade, os programas sociais, cercos que objetivavam suplantar o abastecimento de
comida e água (CRUZ, 2017, p. 91-97).
Conclui, assim, que é possível perceber que, mesmo não intensa e direta como
foi nos primeiros doze dias, a persistência do terror, das mortes e do enclausuramento
são motivos que dão base para a continuidade da ação militar e a existência do Exército
Zapatista como força de segurança, proposta presente já nos primórdios da preparação
para o conflito com o Estado mexicano47.
42 Intermediários que compravam o café ou outros produtos da cultura chiapaneca e revendiam às
indústrias e/ou consumidores. Normalmente ficavam com boa parte do valor embutido nos produtos.
43 Termo que referenciava ao “mexicano” não indígena, grosso modo, mestiço de nascimento e
hispânico de cultura.
44 Consulta à população que era comum nas comunidades indígenas e que passou a fazer parte da ação
do EZLN.
45 Hierarquia máxima de decisões militares do EZLN.
46 “O conceito de guerra de baixa intensidade foi criado nos Estados Unidos e utilizado no México e em
outros países da América Latina, como na Nicarágua durante o governo sandinista nos anos 1980. No
caso referente ao EZLN, os zapatistas afirmaram que ‘el encargado fue el general Mario Renán
Castillo, que había ya traducido del inglés el manual norte-americano que recomienda el uso de
civiles para combatir a fuerzas insurgentes. Destacado alumno de la escuela estadunidense de
contrainsurgencia, Renán Castillo se dedicó a seleccionar a un grupo de militares para la
capacitación, dirección y equipamiento.’ EZLN. Chiapas: la guerra. II. La máquina del etnocidio
(Carta 5.2).” Idem, p. 118.
47 “Julgamos importante sublinhar esse aspecto uma vez que grande parte da bibliografia referente ao
EZLN desconsidera o caráter militar do movimento zapatista, afirmando que, após os doze dias de
As palavras, estratégia posterior, nasce em conjunto com o conflito de janeiro
mas, torna-se proeminente após o cessar-fogo do governo. Demonstra-se especialmente
uma ação política performática quando passa a instituir um canal de comunicação em
defesa dos interesses do movimento e que fizesse contraste com as alegações oficiais do
governo. A perspectiva inicial do movimento era que, conforme observado em outras
revoluções como a sandinista, a população iria ou aderir à luta rebelde ou apoiar a causa
do governo. A resposta por meio das ações pacifistas e a defesa do diálogo deram um
choque de realidade nas esperanças dos (neo)zapatistas que viram, por meio do espaço
aberto da divulgação pelo rádio e internet, um meio de expandir suas pautas. A
comunicação, portanto, foi uma saída obtida pela entrada do EZLN no âmbito político
suprainstitucional e apartidário que superava os caminhos guerrilheiros do conflito
direto. O uso dos oximoros48, das consultas à sociedade civil, a criação dos
Aguascalientes49, a realização de marchas e manifestações pacíficas, a criação da
FZLN50 e a maior presença da defesa dos interesses indígenas foram processos que se
deram como respostas à conjuntura que se estabelecia (CRUZ, 2017, p. 126-142).
A autonomia tem como referência uma alteração nas estratégias do movimento
que se dão principalmente a partir de 2001, mas já presentes como pauta desde 1998. A
ideia que envolve tal estratégia é a superação – não total – da fase estritamente
midiática51 do movimento e de colocar em prática as ações de uma autonomia de fato
nas comunidades. Essa alteração se deu a partir das distensões com o Estado mexicano
que marcaram a recusa deste na efetivação dos Acordos de San Andrés de 1996 e a
aprovação, em 2001, de um projeto de reforma constitucional 52 que distorcia o que fora
acordado.
confronto em janeiro de 1994, sua guerra teria se tornado uma ‘guerra de palavras’, ‘guerra de papel’,
‘guerra midiática’ ou ‘guerrilha informacional’, para citar alguns dos termos mais comumente
utilizados”. Idem, p. 124.
48 Figura de linguagem que coloca as palavras de significados opostos em conjunto, criando um
paradoxo que reforça o significado das palavras combinadas. Vários exemplos são encontrados de
referência do EZLN como o “mandar obedecendo”.
49 Locais da região controlada pelo EZLN que tinham como objetivo fazer uma ponte entre o
movimento e a sociedade civil. Foram abolidos na criação das Juntas de Bom Governo em 2003. O
nome se refere às assembleias zapatistas do período da Revolução de 1910. Idem, p. 137.
50 Frente Zapatista de Libertação Nacional criada em 1996 com a Quarta Declaração da Selva
Lacandona. Tinha como característica a participação de comitês civis para se discutir as
possibilidades de reforma do Estado. Idem, p. 142.
51 Importante destacar, como já apontado, que não há ações homogêneas que se fecham nas estratégias
por si só. Assim, as armas continuariam a existir enquanto o foco principal fosse as palavras ou a
autonomia, em todos os sentidos.
52 Artigos 1, 2, 4, 18 e 115. Idem, p. 179.
Percebe-se um rompimento das negociações entre o movimento e o governo e,
em 2003, criam-se as Juntas de Bom Governo e os Caracóis Zapatistas. Há um
movimento de saída do comando militar na tomada de decisões do movimento,
percebida como prática antidemocrática pelo mesmo, e a tentativa de se estabelecer um
vínculo regional que colocasse em prática as perspectivas autônomas pautadas nas
possibilidades dadas pelo Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho, na
autodeterminação dos povos e na identidade indígena como processo de reconhecimento
individual e coletivo. Assim, a autonomia – compreendida não como uma
independência, mas na existência de regulações próprias das comunidades inseridas em
um Estado – foi implementada por vias de fato e não de direito, isto é, supralegais
(CRUZ, 2017, p. 170-171; 184-192).
Alyne dos Santos Gonçalves tem a proposta de analisar diretamente o
significado e a construção da autonomia dentro da região de Chiapas. Diferentemente de
Cruz que a estabelece como um processo estratégico do EZLN, Gonçalves entende que
a autonomia é uma referência anterior já existente nas comunidades indígenas e na
região de Chiapas, o que demonstra uma constituição histórica da mesma. Assim, a
perspectiva de Gonçalves passa pela compreensão, primeiramente, do que se determina
pela autonomia que é dada não por uma vontade política, mas pela necessidade dos
habitantes ante uma escassez de serviços públicos e na ausência do Estado, isto é,
autonomia como uma característica comunitária, pautada na resolução de problemas
práticos de subsistência. Mas não somente, a autonomia que as comunidades
compreendem perpassam a busca da resolução, por parte do governo, do que seria o
“problema indígena”, pautado na inserção dos povoados ao que se determinava como
México ou mexicano por meio das políticas indigenista. Dessa forma,
A luta por autonomia tem uma forte tradição no México. Trata-se de um longo
processo histórico, no qual os povos indígenas têm buscado resistir às
tentativas governamentais de incorporá-los autoritariamente à ‘cultura
nacional’ e do qual o EZLN é apenas seu último expoente – talvez o mais
radical (GONÇALVES, 2008, p. 30).
Há, assim, uma vertente de compreensão de que o papel do EZLN, dessa forma,
seria muito mais de “braço armado” que necessariamente de comando ante as
necessidades dos povoados chiapanecos. Essa constituição se expressa, também, na
determinação do contato da década de 1980 e as transformações 53 da guerrilha foquista-
guevarista em um representante militar indígena.
A autonomia desses povos é, para tanto, centrada na característica de
propriedade da terra. A autora traz as disputas do período revolucionário, a formulação
da Constituição com as formas de posse comunitárias, os ejidos, o processo de disputas
institucionais que marcaram as décadas de 1970 e 1980 com os organismos
intermediários como a citada Unión de Ejidos Quiptic ta Lectubtesel, e, por fim, as
disputas com o estabelecimento do EZLN. Apesar de centrada na terra, cinco conjuntos
de questões envolvem a prática autônoma: o direito de existir juridicamente54; o direito
territorial55; político56; linguístico57; e de justiça58. A aplicabilidade dessa autonomia
acaba por representar, justamente como demonstra Cruz, as distâncias entre o Estado e
os rebeldes. Dessa forma, a formulação das Juntas de Bom Governo e dos Caracóis
representam a ruptura com os caminhos legais e a aplicação da autonomia de fato,
concreta na região, mas ilegal e, portanto, com problemas de reconhecimento
institucional.
Leandro Machado de Souza faz uma discussão que retoma as propostas de Cruz
53 Que o Subcomandante Marcos vai chamar de “primeira derrota” do EZLN: “La virtud de esta
organización militar está en reconocer que no tenía respuesta y que debía aprender. Ésa es la primera
derrota del EZLN, la más importante y la que lo marcará de ahí en adelante. Cuando el EZLN se
enfrenta a algo nuevo y reconoce que no tiene solución para ese problema, que tiene que esperar y
aprender, deja de ser maestro”. LE BOT, 1997, p. 62-63.
54 O direito de existência, juridicamente estabelecido, é justamente entender a condição de uma
sociedade multicultural e de diversas etnias, ou seja, coexistir, por meio da condição legal, das
diferentes culturas em um mesmo Estado. GONÇALVES, 2008, p. 101-103.
55 O direito territorial talvez seja o mais complexo nas discussões e negociações entre os povos
indígenas, incluindo-se aqueles sob a condição de rebeldes zapatistas, e o Estado. Segundo a autora,
essa complexidade se determina pela condição do território em termos de pertencimento a uma nação,
isto é, a ideia por trás da deliberação de uma autonomia na gestão do território que perpassa um
alarde público sobre a formação de pequenos Estados independentes dentro do Estado mexicano.
Essa condição, todavia, não é considerada própria nem pelos especialistas em direito nem como
solicitação dos grupos étnicos, o que denuncia um certo tipo de interesse escuso na concepção. Idem,
p. 103-105.
56 O direito político diz respeito à condição dos membros das comunidades em escolher seus
representantes e líderes à sua própria maneira, a partir dos meios próprios de percepção da política.
Idem, p. 105.
57 O direito linguístico é aquele que diz respeito ao uso de suas formas de se expressar das
comunidades. Esse tipo de direito se determina no uso de documentos legais, mas também na
educação, da qual o Estado, por diversos motivos, acaba por não flexibilizar, nos territórios indígenas,
a educação por uma condição cultural própria e falada apenas em espanhol. Sabe-se que a língua é
uma expressão cultural que remete também a uma maneira de se compreender as condições de
existência e o modo de vida, e a educação focalizada nos aspectos tradicionais não abarca esse tipo de
condição. Idem, p. 107-108.
58 O direito da justiça é aquele que se determina pela escolha, por diversos meios mas em especial de
regimes específicos e comunitários, das condições da pena e do julgamento de delitos internamente.
Idem, p. 105-107.
e Gonçalves sobre o que se determina por autonomia, as práticas e limites da aplicação
do (neo)zapatismo e a formação da identidade mexicana por meio do indigenismo e da
histórica resistência dos povos indígenas. Entretanto, um ponto se expressa de forma
diferente para Souza: a influência da perspectiva marxista inglesa, especialmente de E.
P. Thompson e Eric Hobsbawm sobre a experiência e a característica classista do
movimento. Essa delimitação atravessa, dessa forma, a construção da narrativa na
consideração da autonomia anterior ao EZLN, na concepção da ação humana como
motor da histórica, e na condição de movimento de esquerda e de classes (SOUZA,
2014, p. 9-11).
Para Souza, a característica de classe que advém do (neo)zapatismo é percebida
através das formas de luta e resistência, isto é, mesmo que o movimento pouco utilize a
palavra classe ou o termo revolução, possui uma busca por organizar-se através do
sentido dominantes versus subalternos que se aproxime de um conflito entre
representantes ou Estado e representados ou população, com aquele entendido como
ferramenta burguesa, como instrumento de propagação do status quo. Nesse sentido, a
proposta de classes do (neo)zapatismo é ampla, envolve não só as características étnica
ou campesina, mas busca representar uma maioria, ao menos no discurso, que vive da
força de trabalho, que sofre discriminação e que não tem direitos garantidos. Por fim, o
autor apresenta o conceito de pluriclassista59, na qual o movimento se representa como
um aglutinador de “diversas classes” diferentes, como estudantes, intelectuais,
camponeses, proletários, gays e mulheres. (SOUZA, 2014, p. 88-96)
A dissertação apresentada, em especial no uso do termo pluriclassista pode ser
aproximada da leitura da noção de “Abajo y a la izquierda” que o movimento remete e
que tem como objetivo entender que a estrutura de classes permeia uma configuração
diferente para a compreensão de uma condição histórica específica e não pode ser
traduzida como uniforme a todos os seres humanos. Aguirre Rojas (2017) resume a
59 “Sendo assim, o zapatismo pode ser visto como um agente pluriclassista, pois não representa e nem
fala somente em nome de um determinado setor da sociedade mexicana. Pelo contrário, além de não
poder ser visto como uma vanguarda revolucionária, como já se observou acima, o zapatismo
abandona a ideia de mudança a partir da tomada do Estado, mas ele luta pela transformação do
Estado.” Mais ainda, o conceito diz respeito também à base social e o diálogo com a sociedade civil:
“Aquilo que denominamos como pluriclassismo pode ser percebido com a convocatória de modo
irrestrito aos mais variados setores da sociedade, ou seja, não importando o credo, a ideologia,
categoria profissional, a idade ou a posição social que ocupam. Isso não quer dizer que haja interesses
e posicionamentos que sejam conflitantes, mas o que mais nos importa salientar é que, de certa
forma, o pluriclassismo defendido transcorre a essas variadas classes que objetivam mudanças
políticas, igualitarismo, inclusão, respeito e melhorias de vida.” Idem, p. 95-96.
ideia:
Creo que mirar desde abajo es mirar las cosas, como decía Walter Benjamin,
desde el punto de vista de las víctimas, es decir, tratar de mirar como miran los
proprios oprimidos, que son los que sufren en carne propria y día a día la
explotación, la exclusión, el ser parte del abajo, y todo lo que ya dijimos antes.
Mientras que mirar hacia abajo, sería mirar enfocándonos en los problemas y
las cuestiones centrales y vitales que afectan a esse abajo social, a esse vasto
mundo de los excluidos, los olvidados, y los reprimidos. Como ven, no es para
nada idéntico mirar hacia abajo que desde abajo. Después, mirar hacia la
izquierda es enfocarnos siempre en las contradicciones de los procesos, para
no ver el lado terso y bonito de la historia y de la realidad, sino como decía
Benjamin y al contrario, pasar la mano a contrapelo de los hechos y ver su lado
rasposo y molesto, lo que Hegel llamaba el ‘lado malo’ de la historia, las
contradicciones fundamentales. Finalmente, mirar desde la izquierda es mirar
en una lógica siempre emancipadora, es decir, mirar buscando las salidas
genuinamente anticapitalistas y antisistémicas que nos permitan salir del
laberinto capitalista, lo que como explicó Raúl Zibechi no es nada fácil, porque
la hidra se reproduce disfrazándose de gobierno ‘progresista’, y se roba
nuestros discursos y lemas, y hasta nuestra manera de hablar y de actuar
(ROJAS, 2017, p. 165).
CONCLUSÃO
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HARVEY, Neil. The Chiapas Rebellion: the struggle for land and democracy. Durham
and London: Duke University Press, 1998.
RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2003.
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. La tierna furia. Nuevos ensayos sobre el
neozapatismo mexicano. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2017.
DISSERTAÇÕES
SOUZA, Leandro Machado de. Autonomia, Nação e Classe: o projeto zapatista das
comunidades lacandonas para o México (1994-2004). 2014. 107 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica.
DOCUMENTOS CONSULTADOS