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.1.

DIVAGAÇÕES EM TORNO DO TEMA


"DIREITO E PROCESSO"

Humberto Theodoro Júnior


Professor na Faculdade de Direito da UFMG - Desembargador aposentado do
TJMG - Doutor em Direito - Advogado.
.2.
SUMÁRIO:
1. Introdução

2. O processo civil como meio de assegurar a efetividade do direito (Goldschmidt)

3. Direito de ação, como direito concreto à tutela judicial (Chiovenda)

4. Tutela jurisdicional dos direitos (Micheli)

5. O processo como instrumento de pacificação social (Schönke)

6. O processo como instrumento da paz ou da justa composição do litígio


(Carnelutti)

7. O objetivo do processo na doutrina de Liebman

8. A grande controvérsia sobre o fim do processo

9. A intimidade do vínculo existente entre direito material e processo

10. A relevância da tutela processual na implantação da efetividade do direito


material
11. Algumas ilações de ordem prática

12. Conclusão
.3.
I - INTRODUÇÃO

Desde que o Direito Processual Civil adquiriu foros de autonomia


científica, os processualistas tem se debruçado sobre o problema de precisar seu
objetivo e seu relacionamento com o Direito Material.

Sabe-se que o núcleo do direito processual é a ação, de cujo conceito


decorrem necessariamente todo o instrumental e toda a sistemática trabalhada pela
ciência jurídica processual. Compreender o processo, portanto, é compreender o
poder jurídico que se reconhece a alguém de dirigir-se aos órgãos de jurisdição e
de exigir deles uma resposta a uma pretensão exercida contra outra pessoa, em
face da qual se estabeleceu um conflito de interesses.

Definir as regras que disciplinam esse poder de acesso à prestação


jurisdicional é definir o ramo do direito que recebe a denominação de direito
processual.

Ao longo da trajetória histórica do direito de ação até propiciar o


moderno conceito de autonomia logrado pela ciência do processo, passou a
doutrina por alguns estágios mais importantes: assim é que no primeiro
significado, fornecido pelo direito romano, a ação seria o poder de obter em juízo
a satisfação de um direito subjetivo (ius presequendi in iudicium, idéia que, mais
tarde, se substituiu pela de "direito em movimento" ou "em guerra"). Finalmente
atingiu-se o estágio moderno em que o direito de ação se desprende do direito
material e adquire o status de um poder jurídico autônomo.
.4.

Nesse último patamar, não cessou o conceito de evoluir: primeiro se


estabeleceu que o direito de ação era distinto e autônomo em relação ao direito
material, mas não prescindia do direito subjetivo da parte, já que pressupunha a
necessidade de tutelá-lo (direito de ação autônomo, mas concreto). Depois
atingiu-se o grau máximo de autonomia, já que se admitia o seu exercício mesmo
sem o pressuposto de ser a parte realmente o titular do direito subjetivo motivador
da ação (direito autônomo e abstrato).

Dentro desta ótica o direito de ação integra, conforme pensa


COUTURE, o campo amplo do direito cívico de petição, com a peculiaridade de
ser exercitável especificamente em face dos órgãos encarregados da prestação
jurisdicional. "A existência de uma lei regulamentadora específica, como a lei
processual, e o dever jurídico de decidir a controvérsia, que sempre foi a
contrapartida do lado do poder público, apresentaram-se sempre como as notas
dominantes do ato jurisdicional" (COUTURE, Estudios de Derecho Procesal
Civil, Buenos Aires, Depalma, 1979, v. I, p. 37).

Mas, ao responder ao exercício do direito de ação, o órgão


jurisdicional não age discricionariamente: além de ter de obedecer aos
procedimentos da lei processual, terá de solucionar a controvérsia segundo as
regras do direito material, de tal maneira que, em última análise, o processo
cumpre a missão de "atuar a lei" (PODETTI, "Trilogia Estructural de la ciencia
del proceso civil", in Revista de Derecho processal, t. 2, I, p. 147).
.5.
Nem todos os pensadores jurídicos, porém, concordam em que a
tarefa do processo se concentre especificamente no objetivo de "atuar a lei". Para
ter-se uma idéia acerca da divergência reinante sobre o tema, passaremos a resumir
algumas das mais importantes lições da doutrina processual moderna em torno do
fim da prestação jurisdicional.

II - O PROCESSO CIVIL COMO MEIO DE ASSEGURAR A


EFETIVIDADE DO DIREITO (GOLDSCHMIDT)

Segundo JAMES GOLDSCHMIDT, o processo civil "é o método que


seguem os Tribunais para definir a existência do direito da pessoa que demanda,
perante o Estado, a tutela jurídica, e para outorgar-lhe esta tutela, caso tal direito
realmente exista" (Derecho Procesal Civil, trad. esp. de Leonardo Prieto Castro,
Barcelona, labor, 1936, § 1, p. 1).

Assim, o processo civil se apresenta como "um procedimento" ou


"um caminho" concebido para promover "a aplicação do Direito", tarefa que
compreende duas funções principais: a) "a função lógico-teórica endereçada a
determinar em cada caso o que seja justo" (processo de conhecimento); e b) a
"função prática" que é a de "executar o reconhecido como Direito"
(GOLDSCHMIDT, Ob. cit., loc. cit.).

Conclui, enfim, o grande processualista tedesco que


.6.
"O objeto do processo civil é o exame do direito (pretensão) do
autor contra o Estado a obter a tutela jurídica, mediante
sentença favorável e conseqüente execução da mesma (ação
penal), se for suscetível de tanto" (ob. cit., p. 2).

Sempre, portanto, a ação processual haverá de originar-se de um


direito judiciário substantivo (material), que GOLDSCHMIDT considera como
"um direito privado integral convertido em público" (ob. cit., loc. cit.). No entanto,
a tutela jurídica que se realiza por meio do processo civil não se confunde com o
direito material subjetivo do autor cuja atuação pretende contra o réu.

Na verdade, o objeto do processo recai sobre a relação jurídica


material privada, de onde o autor extrai a pretensão de tutela jurídica processual.
Mas a satisfação da tutela jurídica o Estado a realiza declarando "existente ou não"
a relação litigiosa.

Portanto, há uma completa distinção entre a pretensão à tutela


jurídica processual e a relação jurídica privada. E, então, "o objeto do processo
civil é unicamente uma pretensão de tutela jurídica, por parte do autor". Em última
análise, o que se consegue sempre com o processo "é a efetividade do Direito"
(ob. cit., p. 3).

III - DIREITO DE AÇÃO, COMO DIREITO CONCRETO À


TUTELA JUDICIAL (CHIOVENDA)
.7.
CHIOVENDA esposa a teoria de WACH segundo a qual a parte tem
um "direito autônomo", tendente à realização da lei por via do processo".
Entende, porém, que a parte não exerce no processo um direito subjetivo contra o
Estado, mas, sim, contra a outra parte. Para ele, o autor não se dirige contra o
Estado ao promover o processo. Sua relação com o Estado "não é mais que um
meio de obter certos efeitos contra o adversário".

Por não entrever um conflito de interesses entre o Estado e o cidadão,


nega CHIOVENDA a existência de "um direito à tutela jurídica". Repele, pois,
energicamente, a teoria de DEGENKOLB elaborada para definir a ação como "um
direito subjetivo público" que garanta ao autor ser ouvido em juízo e constranja a
adversário a apresentar-se. A seu modo de ver, ter ação sempre correspondeu a ter
direito a "um resultado favorável no processo". Trata-se de "um direito
potestativo". Vale dizer: ter ação é ter "o poder jurídico de provocar, com seu
pedido, a atuação da vontade da lei" (CHIOVENDA, Instituições de Direito
Processual Civil, trad. de J. Guimarães Menegale, 3. ed., S. Paulo, Saraiva, 1969,
v. I, n. 6, p. 22-24).

Segundo o mestre italiano, há entre a ação e a obrigação um vínculo


estreitíssimo, pois a obrigação tanto pode ser satisfeita voluntariamente pela
prestação do devedor como compulsoriamente por meio do processo. Haveria,
assim, direitos subjetivos concorrentes na espécie, já que a parte obteria por meio
da ação aquilo que não lhe foi dado obter por meio do cumprimento voluntário da
obrigação (ob. cit., n. 7, p. 26-27).
.8.
Enfim, para CHIOVENDA, "o processo civil é o complexo dos atos
coordenados ao objetivo da atuação da vontade da lei (com respeito a um bem que
se pretende garantido por ela, por parte dos órgãos da jurisdição ordinária"(ob. cit.,
n. 11, p. 37).

"A atividade dos juízes (dentro do processo) dirige-se, pois,


necessariamente a dois distintos objetos: exame da norma
como vontade abstrata de lei (questão de direito), exame dos
fatos que transformam em concreta a vontade da lei (questão
de fato)" (ob. cit., p. 40).

Esclarece, porém, o notável processualista, que não é a defesa do


direito subjetivo o objetivo do processo, mas, especificamente, a atuação da
vontade da lei. A defesa do direito subjetivo é escopo do autor, não do processo.
"O processo, em vez disso, visa ao escopo geral e objetivo de fazer atuar a lei, e o
escopo do autor e o do processo coincidirão só no caso em que seja fundada a
demanda. A sentença, porém, é sempre atuação da lei, seja a demanda fundada ou
infundada. Assim admitindo como rejeitando a demanda, afirma a sentença uma
vontade positiva ou negativa da lei. Destarte, não serve o processo a uma ou outra
parte: serve à parte que, segundo o juiz, está com a razão" (CHIOVENDA, ob. cit.,
p. 45).

Finalmente, rebate CHIOVENDA a tese de CARNELUTTI de que o


objetivo do processo seria "a justa composição da lide", porque entende que o
objetivo imediato do processo não é tal composição, "mas dizer e atuar a vontade
.9.
da lei". Mesmo porque se por "justa" composição se entende a que é conforme à
lei, "resolve-se na atuação da vontade da lei" (ob. cit., p. 46).

IV - TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS (MICHELI)

MICHELI explica a função do processo como um instrumento de


realização da garantia que o Estado constitucionalmente assumiu de promover "a
atuação do direito objetivo nos casos em que este não seja voluntariamente
observado". Realiza-se, dessa maneira, a "tutela jurisdicional dos direitos", que se
dá por meio da intervenção do juiz. Ao órgão judicial, no processo, então, cabe
prosseguir na obra do legislador, pondo em prática os remédios necessários para
obter em concreto a reafirmação do comando estabelecido pelo Estado-legislador.

O fim do processo, em síntese, é, para MICHELI, "assegurar a


observância do direito objetivo" (Derecho Procesal Civil, trad. Sentis Melendo,
Buenos Aires, EJEA, 1970, v. I, n. 1, p. 3-4).

V - O PROCESSO COMO INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO


SOCIAL (SCHÖNKE)

Lembra ADOLF SCHÖNKE que existem duas concepções opostas


sobre a natureza e estrutura do Direito Processual Civil. Uma apoiada na lição de
WACH e outra no pensamento de KLEIN.
.10.
A primeira permitiu o desenvolvimento da teoria da "pretensão à
tutela jurídica", segundo a qual, com a demanda a parte formula sua pretensão
contra o Estado, visando a que este profira um pronunciamento judicial favorável
e conforme a situação jurídica real. O juiz deve permanecer tão passivo quanto
possível, cabendo às partes titulares dos interesses contrapostos o livre jogo de
suas forças para defendê-los. No processo, portanto, está em jogo apenas "um
interesse individual alheio ao Estado", segundo WACH (cf. SCHÖNKE, Derecho
Procesal Civil, trad. esp. da 5. ed. alemã, Barcelona, Bosch, 1950, § 1, p. 15).

Para a corrente afinada com a doutrina de FRANZ KLEIN, o processo


civil não se restringe a tutela do interesse privado da parte. É, isto sim, uma
instituição voltada para o bem social, ou seja, uma "norma do Poder para proteção
dos interesses da comunidade e dos bens jurídicos individuais". Fiel seguidor de
tal entendimento, SCHÖNKE vê no processo um instrumento de atuação do
Estado "de acordo com as orientações da política social" (KLEIN). E explica:

"Todo processo Civil afeta também a comunidade,


especialmente porque exige energias que esta há de prestar-lhe
e por isso deve ter a faculdade de influir amplamente por
meio do Juiz no curso do procedimento ... O processo civil
não serve para medir habilidade ou destreza como numa
competição esportiva; é um remédio pacificador destinado a
restabelecer entre os particulares a paz, e, com isto,
manter a da comunidade" (SCHÖNKE, ob. cit., § 1, p. 15).
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Embora reconheça que todo cidadão seja credor da tutela jurídica
estatal, SCHÖNKE não aceita que esse crédito possa configurar "um direito
público subjetivo contra o Estado", como entende GOLDSCHMIDT. Lembra,
porém, que JELLINEK aponta a ação (pretensão de tutela jurídica) como "um
exemplo significativo de direito público subjetivo", acrescentando que "a
pretensão mais importante e que a seu tempo surge do núcleo mesmo do Estado, é
a que persegue a tutela jurídica, a qual se pode designar em suma como o atributo
essencial da personalidade" (System, p. 124, apud SCHÖNKE, ob. cit., p. 16).

De qualquer forma, o objeto litigioso, que configura o conteúdo da


ação "é a afirmação jurídica feita pelo autor", em torno da qual o processo civil
estabelecerá a discussão e solução de "um conflito de Direito Civil". O
procedimento regula-se pelos preceitos do direito formal, enquanto prevalecem
para a solução do conflito os preceitos de Direito material (SCHÖNKE, ob. cit.,
p. 14).

VI - O PROCESSO COMO INSTRUMENTO DA PAZ, OU DA JUSTA


COMPOSIÇÃO DO LITÍGIO (CARNELUTTI)

O processo, para CARNELUTTI, corresponde a "um método para


formulação ou para aplicação do direito que tende a garantir a excelência do
resultado, vale dizer, uma tal regulação do conflito de interesses que consiga
realmente a paz e, portanto, seja justa e certa" (Instituciones del proceso civil,
trad. Sentis Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, v. I, n.1, p. 22).
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Mormente no processo contencioso, realiza-se, segundo
CARNELUTTI uma atividade tipicamente repressiva que consiste em "fazer
cessar a contenda, o que não quer dizer fazer cessar o conflito, que é imanente,
mas sim compô-lo mediante o direito, seja com formação de um mandado, seja
com sua integração seja com sua atuação" (ob. cit., I, n. 4, p. 27).

A lide que o processo procura compor é precisamente aquele conflito


de interesses (intersubjetivo) qualificado por uma pretensão e uma resistência
(discussão). O que caracteriza o processo, então, é o seu fim que não é
outro senão "a composição da lide". Pensa, por isso, CARNELUTTI, que quem
coloca o seu objetivo na declaração de certeza ou na atuação do direito,
confunde o fim com o meio, que consiste precisamente nessa declaração de
certeza ou atuação. Quando muito, "a declaração de certeza ou a atuação do direito
poderia ser o fim próximo, mas nunca o fim último do processo" (ob. cit., I, n. 17,
p. 43).

Uma vez que a composição da lide deve ser feita segundo o direito ou
segundo a eqüidade, e uma vez que a conformidade com o direito ou com a
eqüidade se expressa mediante o conceito de justiça, pode-se completar a fórmula
falando-se em justa composição da lide (ob. cit., I, n. 17, p. 43).

VII - O OBJETIVO DO PROCESSO NA DOUTRINA DE LIEBMAN

LIEBMAN, cujo pensamento, exerceu fundamental influência na


elaboração do atual Código de Processo Civil brasileiro, depois de observar que a
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jurisdição é, disciplinada pelo direito processual e realizada por meio do
processo, afirma que ela compreende a atividade estatal que garante a "eficácia
prática e efetiva do ordenamento jurídico", tanto por meio da cognição como da
execução. Na cognição, o órgão judicial valora um fato do passado "como justo
ou injusto, como lícito ou ilícito, segundo critério de julgamento fornecido pelo
direito vigente, enunciando, em conseqüência, a regra jurídica concreta destinada a
valer como disciplina do caso (fattispecie) em exame". Já na execução forçada, "os
órgãos judiciários tratam de dar atuação prática e efetiva àquilo que a lei dispõe
para os casos concretos " (Manual de Direito Processual Civil, trad. de Cândido
Dinamarco, Rio, Forense, 1984, v. I, p. 3-4).

Para LIEBMAN, "a jurisdição é, em certo sentido, uma atividade que


se coloca como continuação e especificação da legislação", de modo que "a norma
jurídica, que é produto da legislação, torna-se critério de julgamento para a
jurisdição". Nisso, a função jurisdicional se aproxima da função administrativa do
Estado. Mas dela se distingue porquanto a administração, ao praticar atos
concretos de execução da vontade da lei, o faz sempre para proteger e satisfazer
determinados interesses públicos, como a segurança, a saúde, a instrução etc. Já a
jurisdição tem como função específica apenas e precisamente "fazer justiça, isto
é, dar atuação à lei" (ob. cit., p. 5-6).

VIII - A GRANDE CONTROVÉRSIA SOBRE O FIM DO PROCESSO

Diante da diversidade de posicionamento do pensamento doutrinário


em torno do objetivo do processo civil, duas correntes se destacam como as que
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mais se radicalizaram: A primeira, sob a liderança de CHIOVENDA, aponta como
meta visada pelo processo a atuação da vontade concreta da lei. E a segunda,
comandada por CARNELUTTI, sinaliza dito objetivo como sendo a composição
dos litígios (lides).

Deixando, porém, de lado certas sutilezas próprias da genialidade


dos filósofos, a divergência entre as duas posições se revela, na ordem prática,
mais aparente do que substancial. É que aqueles que vêem no processo a procura
de realização do direito, não a dissociam da circunstância de ocorrer tal busca
somente diante de situações litigiosas; e para os que reduzem o processo a um
sistema de composição do litígio, esse mesmo sistema só atua mediante aplicação
do direito para solucionar a lide.

Em suma, pode-se admitir que o objetivo do processo seja,


efetivamente, a composição da lide, mas não qualquer composição, e sim a justa
composição, que somente pode ser alcançada dentro da aplicação dos preceitos do
ordenamento jurídico às contingências do caso concreto.

Em outras palavras, o processo é instrumento de atuação do direito


frente às situações litigiosas, valendo, por isso, como real veículo de manutenção
da paz social almejada pela ordem jurídica.

Qualquer , portanto, que seja a postura filosófica adotada pelo


doutrinador, não conseguirá conceituar a função do processo sem conjugar as duas
idéias fundamentais de "atuação da lei" e "composição de litígios". O máximo
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que se obtém é uma ordem diferente da conjugação cronológica dos dois
elementos indissociáveis dentro da conceituação doutrinária.

Daí a justeza da observação feita por LIEBMAN sobre a velha


polêmica travada entre CHIOVENDA e CARNELUTTI:

"As duas definições acima recordadas, que no passado foram


objeto de vivas discussões, hoje todavia podem-se considerar
complementares" (ob. cit., I, p. 6).

Na verdade, não há teoria alguma entre as modernas que consiga


explicar a função do processo sem relacioná-lo com a missão pacificadora dos
litígios e com a realização efetiva da vontade da lei.

IX - A INTIMIDADE DO VÍNCULO EXISTENTE ENTRE


DIREITO MATERIAL E PROCESSO

A necessidade que tem o direito material de se valer do processo para


alcançar efetividade quando se estabelece o conflito de interesses e a
obrigatoriedade para o processo de encontrar para a lide uma justa composição
segundo os padrões do direito positivo fazem com que não se possa pensar
juridicamente o direito processual como uma realidade técnica completamente
isolada ou autônoma frente ao direito positivo material.
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É certo que, para fins práticos e pedagógicos se deve proceder à
regulamentação e estudo do direito processual fora dos quadros do direito
material, mas sem, jamais, perder a noção de que a existência do direito formal não
se justificará, em hipótese alguma, a não ser como instituto prático ligado à
necessidade de operar concretamente o direito material nas situações conflituosas.

Com efeito, é hoje irrecusável que a jurisdição, realizada pelo Estado


Democrático de Direito, compreende a atividade estatal "'destinada a formular e
atuar praticamente a regra jurídica concreta que, segundo o direito vigente,
disciplina determinada situação jurídica", como preleciona LIEBMAN (ob. cit., I,
p. 7).

A propósito do tema, adverte CARNELUTTI que seccionar o sistema


jurídico para dele apartar o direito processual civil a fim de submetê-lo a um
estudo isolado do restante do direito é o mesmo que faz o biólogo que mata um
animal para estudar como atuam as leis que regem sua vida. Para CARNELUTTI a
apartação do direito processual do resto do sistema jurídico representa um
seccionamento da realidade que se acha indissoluvelmente conexo com ele.

"o direito processual civil é, não tanto uma fração, mas um


aspecto da realidade jurídica inteira, isto é, do direito inteiro
(objetivo). Nessa separação, por mais necessária que seja, uma
parte de sua realidade se perde, isto é, fica oculta do
observador. Isto quer dizer que o direito processual não pode
ser conhecido inteiramente por quem não conheça também os
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outros setores do direito" (Instituciones del proceso civil, trad.
Santis Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, v. I, p. 5).

Remontando às raízes históricas da instituição do processo, em suas


profundas relações com o direito material, CARNELUTTI anota que

"Nas origens, pelo menos quando se enfoca o pensamento


latino, não se falava em processo mas em juízo (iudicium). De
outro lado, o que hoje se chama direito, portava o nome de ius.
Emerge assim o estreito parentesco semântico entre ius e
iudicium" (Diritto e Processo, Napoli, Morano, 1958, n. 2, p.
3).

Para o grande processualista peninsular o problema que nos desafia


não está no íntimo vínculo entre ius (direito) e iudicium (processo), mas na
precedência de um ou de outro: primeiro o iudicium ou primeiro o ius? E com sua
genialidade responde: "Quem se limita à estrutura das palavras é induzido a
responder: Primeiro o ius; iudicium é composto com o verbo dicere e com o
substantivo ius; a precedência lógica cabe, então, ao ius.

"No entanto" - adverte - "se não é dictum não é ius; como o


dicere sem ius não é iudicium, assim o ius sem dicere não é ius.

E conclui:
.18.
"A relação entre ius (direito) e iudicium (processo) é a mesma
que há entre o pensamento e a palavra; uma relação circular.
Iudicium (processo) é incarnação do ius (direito); mas o direito
não existe se não encarnado" (Diritto e Processo cit., n. 2, p. 3-
4).

Direito e processo se integram intimamente porque o legislador


somente cria uma lei abstrata e genérica (lex generalis), que, diante dos fatos
concretos da vida, terá de ser completada pela lex specialis do órgão jurisdicional
(o comando sentencial, frente à lide).

A despeito da claríssima distinção que se faz modernamente entre o


direito subjetivo material e a ação, "não se pode negar - como adverte BUZAID -
que há entre esses dois fenômenos uma soldadura. Não tê-la em conta seria um
erro, quase tão grave quanto não saber fazer a distinção" (A ação declaratória no
direito brasileiro, S. Paulo, Saraiva, 1943, n. 53, p. 71).

X - A RELEVÂNCIA DA TUTELA PROCESSUAL NA IMPLANTAÇÃO


DA EFETIVIDADE DO DIREITO MATERIAL

Quando ainda não se havia estabelecido a base científica do estudo do


processo e este não era visto senão como praxe ou maneira de fazer atuar, em
juízo, o próprio direito material, dizia-se que não havia direito subjetivo sem ação,
pois, proclamava, enfaticamente, o art. 75 do Código Civil:
.19.
"A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura".

A partir, porém, do século passado, instalou-se séria e definitiva


batalha pela emancipação do direito de ação frente ao direito subjetivo material.
Primeiro, estabeleceu-se que, diante da lesão ao direito subjetivo, estariam
configurados dois direitos distintos: um voltado contra o autor da lesão (de ordem
privada) e outro contra o Estado (de ordem pública), tendente a exigir deste o
emprego de medidas coercitivas para declarar e fazer realizar, concretamente, o
direito subjetivo de uma parte contra a outra. Por fim, estabeleceu-se que, mesmo
sem ter o direito subjetivo material, a parte seria titular do direito de ação, pois,
para exigir a sentença de mérito do Estado-Juiz bastaria que o autor demonstrasse
a ocorrência de um conflito jurídico (lide ou litígio). O direito de ação, portanto,
seria o direito ao processo, cujo objetivo final seria a composição da lide, pouco
importando se mediante acolhida ou rejeição do pedido do titular do direito de
ação.

Como acontece, porém, em todos os fenômenos de ação e reação,


cria-se um movimento pendular, com excessos nos dois extremos opostos, de sorte
que o movimento tende, ao longo do tempo, a acomodar-se num ponto de inércia
situado a meia distância dos extremos.

Se, pois, existe um direito da parte de exigir do Poder Judiciário a


composição do litígio, isto se deve, acima de tudo, à vontade da própria lei de que
nenhuma lesão ou ameaça a direito seja subtraída à tutela jurisdicional
(Constituição Federal, art. 5º, nº XXXV). É certo, portanto, que a tutela
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jurisdicional é dada mesmo diante de quem não tem, efetivamente, o direito
subjetivo material que invoca contra o adversário. Mas isto se deve ao objetivo de
eliminar o litígio, que intranqüiliza o convívio social e compromete a autoridade
do ordenamento jurídico. A lei não pode ter seu império negado ou diminuído. O
processo é, nessa ordem, o instrumento de manutenção do direito ou de atuação
frente às situações de conflito.

Não se pode, realmente, imaginar o ordenamento jurídico do moderno


Estado de Direito sem a cooperação imprescindível do processo. E, atuando
concretamente através dele a lei, mesmo quando o autor (titular do direito de ação)
não seja detentor do direito subjetivo material pretendido, mesmo assim o que o
processo revela é a vontade concreta da lei, dando razão ao réu. Nesse sentido,
afirma-se que o direito de ação (direito à tutela jurisdicional) é um direito bilateral,
exercido tanto pelo autor como pelo réu.

Sendo inconteste a função do processo de tutelar o direito material,


não merece censura a afirmação clássica do direito ancião de que a cada direito
subjetivo corresponde uma ação que o protege e que assegura o seu exercício nos
casos de lesão (Cód. Civ., art. 75). É que a ação aí lembrada não é a mesma ação
cogitada pelos processualistas, quando tratam do direito da parte a obter uma
sentença que ponha fim ao litígio, ainda que de modo adverso à sua pretensão
material em face do réu. A ação dos civilistas tradicionais é simplesmente a
proteção que a lei dispensa, in concreto, a todos os direitos que ela mesma cria e
proclama.
.21.
Daí falar-se numa ação de direito material e numa ação de direito
processual (PONTES DE MIRANDA, Tratado das Ações, S. Paulo, ed. RT, 1970,
v. I, p. 52 e segs.; OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Curso de Processo civil,
Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1987, v. I, p. 62-64). É inquestionável, todavia, que
no Estado de Direito, a ação de direito material quase que somente pode ser
exercida por meio da ação de direito processual, porquanto não se tolera, em
princípio, a justiça de mãos próprias e ao Estado é reservado, por isso mesmo, o
monopólio da prestação jurisdicional (LUIZ GUILHERME MARINONI, A
técnica da cognição e a construção de procedimentos adequados à tutela dos
direitos. "Rev. Forense", 325/52-53).

Nesse sentido, a regra do art. 75 do Código Civil, longe de conter


uma impropriedade jurídica, apresenta-se como verdadeira explicitação da garantia
constitucional de tutela jurisdicional contida no art. 5º, nº XXXV, da Carta Magna.

Por conseguinte, cabe ao direito processual instituir procedimentos


que viabilizem a adequada tutela jurisdicional, que somente pode ser aquela capaz
de possibilitar, para as partes, resultado igual ao que seria obtido se
espontaneamente observados os preceitos legais (MARINONI, ob. cit., p.52;
PROTO PISANI, "Il raporti fra diritto sostanziale e processo", in appunti sulla
giustizia civile, bari, Cacucci, 1982, p. 42-44). É de CHIOVENDA a observação
de que "o processo deve dar a quem tem um direito, tudo aquilo e precisamente
aquilo que ele tem o direito de obter" (Dell'azzione nascente del contratto
preliminare, "Revista del Diritto Commerciale", 9/1).
.22.
A função do direito, como é óbvio, não se esgota na elaboração das
leis. Como simples regras de conteúdo abstrato e geral, nem sempre são,
espontaneamente compreendidas e acatadas pelos destinatários. É necessário,
destarte, complementá-las por meio de instrumentos destinados a "assegurar, na
medida do possível, a sua estrita observância, em nome da liberdade e dos direitos
de cada um na ordem objetiva da convivência social; em outras palavras, é
necessário, sempre que falte a observância espontânea, identificar, declarar e dar
atuação a essas regras, caso por caso, nas vicissitudes concretas da vida de cada
dia, eventualmente até mediante meios coercitivos" (ENRICO TULIO LIEBMAN,
Manual de Direito Processual Civil, trad. de CÂNDIDO R. DINAMARCO, Rio
de Janeiro, Forense, 1986, v. I, n. 1, p. 3).

Ao direito processual, como ramo do complexo universo jurídico,


toca a tarefa de "garantir a eficácia prática e efetiva do ordenamento jurídico,
instituindo órgãos públicos com a incumbência de atuar essa garantia e
disciplinando as modalidades e formas da sua atividade" (LIEBMAN, ob.cit., loc.
cit.). Jurisdição é o nome que se dá à atividade dos órgãos estatais encarregados
dessa função e processo o método ou sistema de atuar a tutela jurisdicional
(CÂNDIDO DINAMARCO, nota 1 a LIEBMAN, "Manual" cit., p. 3).

Impossível, por isso mesmo, a análise e compreensão dos institutos


processuais, mormente no que se relaciona aos procedimentos e seus objetivos,
sem um relacionamento com as regras de direito material que haverão de atuar, no
caso concreto, por meio da tutela jurisdicional. Sobre esse tema, rica é a literatura
atual de direito processual, toda ela voltada para a urgente necessidade de facilitar
.23.
o acesso à Justiça, por via de remédios sempre mais e mais adaptados à atuação
dos múltiplos e complexos direitos subjetivos.

"Nesta perspectiva, a técnica processual assume grande


relevo, uma vez que para a efetiva tutela jurisdicional dos
direitos é necessária uma pluralidade de processos atendendo
às variadas situações de direito substancial carentes de tutela"
(MARINONI, ob. cit., p. 51).

Em todos os tipos de processo (cognição, execução, cautelar, de


injunção, etc.), todos os atos da série procedimental se vinculam ao atendimento
de um escopo de direito subjetivo material, cuja natureza e cujas peculiaridades
não podem deixar de influir na estrutura processual. Ainda quando a demanda é
rejeitada, a causa petendi analisada e julgada tem sua substância assentada no
direito material.

Daí que, mesmo sendo abstrato o direito de ação, por caber à parte o
poder de manejá-lo em juízo mesmo sem conseguir demonstrar a respectiva
titularidade do invocado direito subjetivo, não é possível dar seguimento ao
processo sem que, pelo menos em tese, se tenha argüido um relação de direito
material, capaz de justificar o pedido de formação da relação processual perante o
réu.

Eis porque autores há que, no estudo da ação e do processo,


substituem, até mesmo, o tema da "autonomia" e "abstração" da ação pelo tema da
.24.
"relação entre a ação e o direito subjetivo material" (ELIO FAZZALARI, Note in
Tema di Diritto e Processo, Milano, Giuffrè, 1957, p. 158).

Sem abandonar totalmente o caráter abstrato do direito de ação,


lembra FAZZALARI que seu conceito em direito processual não é o mesmo
daquele que se usa, por exemplo, na qualificação do título de crédito e de outros
negócios jurídicos não causais ou abstratos.

Com efeito, a ação não pode ser admitida sem uma causa que a
justifique no plano do direito material. Aqui o sentido de direito abstrato de ação
está unicamente na circunstância de que a prestação jurisdicional correspondente à
ação manejada será dada "independentemente da existência ou inexistência do
direito pressuposto". O título jurídico material é que não pode deixar de ser
invocado (FAZZALARI, ob. cit., loc. cit.).

Sob este aspecto especialíssimo, FAZZALARI admite a opinião


daqueles que entendem ser "causal" a demanda judicial (i. é, "concreta"), já que
seu esquema normativo "compreende l'allegazione della situazione sostanziale
pressuposta (cioè della causa petendi)", embora prescindindo de "sua effettiva
sussistenza" (FAZZALARI, ob. cit., loc. cit.).

Finalmente, o atualizadíssimo processualista italiano, em mais de uma


oportunidade, destaca que:
.25.
"il rapporto col diritto sostanziale non riguarda soltanto
la domanda, ma tutti gli atti della serie procedurale: vuoi
quelli in cui si concreta l'azione, cioè la situazione soggettiva
(composita) dell'attore; vuoi quelli in cui si concreta la
situazioni processuale del convenuto; vuoi quelli in cui si
traduce la funzione dell'ufficio" (FAZZALARI, ob. cit., p.
159).

Em síntese, aponta FAZZALARI sua conclusão sobre o tema:

"Tirando le somme, mi pare si debba riconoscere che il


processo civile, nei vari tipi, è sempre coordinato al diritto
sostanziale" (ob.cit., p. 151).

O processo não é senão, como observa ATTARDI em passagem


lembrada por CRUZ E TUCCI, "o meio para a produção de determinados efeitos
jurídicos em favor do titular de um direito", razão por que "as normas materiais, e
não somente as processuais, devem ser levadas em conta pelo Juiz, existindo,
portanto, um sem-número de possibilidades de que o titular do direito obtenha
uma sentença, pois o processo existe para que quem tenha direito possa conseguir
sua realização ou declaração" (ALDO ATTARDI, L'interesse ad agire, Padova,
CEDAM, 1958, p.72-73).

Múltiplos são os graus de cognição e acertamento dos direitos


subjetivos nos diversos tipos de processo, mas é indiscutível que, em todos eles, o
.26.
direito material influi como pressuposto em toda a série dos atos que compõe a
relação processual, desde a propositura da demanda, seguindo a resposta do réu,
passando pela instrução probatória, até, finalmente a resposta jurisdicional
(FAZZALARI, ob. cit., p.153).

Como adverte CÂNDIDO DINAMARCO o princípio da


instrumentalidade, que tão intimamente vincula o direito processual e o direito
material, se põe, modernamente, sob duplo sentido: sob prisma negativo, exige que
se evitem os males do "exagerado processualismo". E sob prisma positivo, impõe
uma visão do processo "como instrumento eficaz de acesso à ordem jurídica justa,
apto a realizar os seus verdadeiros escopos, jurídicos, políticos e sociais"
(CÂNDIDO R. DINAMARCO, A instrumentalidade do processo, São Paulo, Ed.
RT, 1987, p. 450-451, apud SÍLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, A efetividade
do processo e a reforma processual, "Rev. Forense", v. 325, p. 110).

Também BARBOSA MOREIRA, um dos processualistas que se


empenham na luta pelo processo como veículo de efetividade da ordem jurídica
material, reclama para os remédios estruturados pelo direito processual uma
função que sempre atinja tal resultado prático "que assegure à parte vitoriosa o
gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento"
(BARBOSA MOREIRA, Notas sobre o problema da efetividade do processo,
"Estudos de Direto processual em homenagem a JOSÉ FREDERICO
MARQUES, São Paulo, Ed. Saraiva, 1982. p. 203 e segs).
.27.
Entre os processualistas mais eminentes da atualidade, pode-se
afirmar, sem medo de erro, que a nota da efetividade da tutela jurídica se
transformou na busca incessante de aproximar cada vez mais o processo e o direito
material, sob inspiração do princípio da instrumentalidade (ANTÔNIO
SCARANCE FERNANDES, Incidente processual, São Paulo, Ed. RT, 1991, n.
3, p. 25).

Os mecanismos processuais, nessa ordem de idéias, não podem brigar


com os institutos de direito material, nem podem gerar incerteza formal quanto ao
modo e aos efeitos do expediente procedimental posto à disposição do titular do
direito subjetivo substancial que tem necessidade de recorrer à prestação
jurisdicional. A inadequação do processo que se distancia da verdadeira natureza
do direito material e provoca incerteza em partes e magistrados apresenta-se como
altamente nociva aos interesses da sociedade, "porque complica e retarda a
realização do direito material, desvirtuando-lhe o seu papel e a sua eficácia"
(Ministério da Justiça, Reforma do Código de Processo civil - Notas justificativas
e Trabalhos Preparatórios, Lisboa, 1982, p. 9).

"El objetivo último del proceso, desde que importa ejercer la función
jurisdiccional, es la actuación del derecho objetivo, la imposición de la paz social,
el imperio de la regra jurídica, la justicia" (ENRIQUE VESCOVI, Teoria general
del proceso, Bogotá, Ed. Temis, 1984, n. 4.2, p. 13).

Portanto, para que o processo possa, realmente, realizar os direitos,


imprescindível é a visualização da ação na perspectiva do direito material. "Se o
.28.
processo visa tornar efetivo o direito, necessário é que o resultado da ação
(processual) corresponda exatamente àquilo que se verificaria se a ação (= o agir)
pudesse ser realizada no mundo do direto substancial. Em outras palavras, a ação
processual deve ser uma espécie de realização da ação privada, ou seja, da ação
que foi proibida quando o Estado assumiu o monopólio da jurisdição. A
perspectiva de direito material possibilita o ajuste da ação processual às
peculiaridades da pretensão de direito material" (MARINONI, Novas linhas do
processo civil, n. 3.2.5.1, p. 130).

Há o direito à resposta jurisdicional (que se relaciona com o direito


abstrato de ação) e há "o direito à adequada tutela jurisdicional", que envolve em
toda extensão a garantia do devido processo legal e que contém "a idéia de ação
condicionada e adequada ao plano de direito material". Isto faz com que o direito
processual tenha a obrigação de fornecer "provimento e meios executórios
adequados às peculiaridades da pretensão de direito material" (MARINONI,
Novas linhas cit., n. 3.2.5.3, p. 138-139).

O anseio de efetividade do processo, então deve conduzir os


responsáveis pela elaboração do direito e pela doutrina processuais a ponderar
que:

a) "tudo aquilo que contribua para tornar mais fácil e compreensível o contacto
com os mecanismos jurídicos fará com que o Direito ingresse na vida das pessoas,
como razão de normalidade e não como circunstância excepcional, que só
forçadamente se aceita";
.29.

b) "tudo que é desnecessariamente complexo deve ser evitado por implicar um


inadequado custo social, ou seja, para a comunidade, e individual, ou seja, para os
utentes dos serviços" (Ministro da Justiça, DR. MÁRIO RAPOSO, Para uma
modernização do direito, Boletim do Ministério da Justiça", 1980, novembro,, n.
300, Lisboa, p. 11-12).

Nessa conjuntura, urge reconhecer que, entre nós, muitos institutos


antigos e muitas praxes anciãs se mostram como entraves sérios à consecução do
ideal de instrumentalidade e efetividade do processo. Há, mesmo, entre os
processualistas e os profissionais da área, uma consciência e um movimento pela
modernização do processo, máxime em sua maneira prática de ser aplicado nos
tribunais.

É, de fato, difícil inovar em doutrina acerca de velhos institutos, não


pelos embaraços da argumentação, mas porque há uma força muito atuante entre
os intérpretes e aplicadores do direito positivo, que é a lei da inércia, pois é, sem
dúvida muito mais cômodo seguir antigos padrões já estabelecidos de longa data
na praxe forense e nos manuais da doutrina, do que repensar soluções para os
quase sempre complicados problemas da interpretação evolutiva das normas
legais.

Sobre essa dificuldade de inovar no campo do direito, escreveu certa


feita BILAC PINTO:
.30.
"Estamos, entretanto, em que o apego dos juristas ao
tradicional e sua correlata aversão ao novo é apenas um
eufemismo com que se procura mascarar a sua verdadeira
causa: - a lei do menor esforço.

"L'homme est un être dont l'énergie, suit la voie de la


moindre résistence, du moindre effort, dont la sensibilité
rechêrche la moindre fatigue, la moindre douler, et que son
instinct de conservation dirige vers le moindre risque"
(GEORGE VALOIS, L'homme que vient, pág. 41).

"A aversão ao novo é, assim, a aversão ao estudo; o


apego ao passado é, nada mais, nada menos, que expediente
para evitar o esforço de meditar sobre as novas normas
jurídicas" (Processo oral, págs. 29 a 31, apud "reforma do
Código de Processo Civil", v.II, Ministério da Justiça, Lisboa,
1983, p. 145-146).

O encargo não é fácil e, ao contrário, é penoso e de complicado


tratamento. Mas, a sina do jurista é a de labutar sempre com problemas
(THEODOR VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, tradução e prefácio de
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, Brasília, Dep. Imp. Nacional, 1979, § 8,
p. 87), cabendo-lhe, invariavelmente, a tarefa de, em meio à balbúrdia dos
posicionamentos sociais conflitantes, optar por alguma solução, ainda que o tempo
venha no futuro a substituí-la por outra mais convincente e satisfatória.
.31.

Merece lembrar, enfim, a advertência de CAPPELLETTI:

"Ninguém, muito menos o jurista, pode se subtrair ao


peso da cruz que recai sobre cada ser humano, furtando-se à
difícil responsabilidade de opções, críticas e lutas para
resolver os problemas e as dificuldades que, dia após dia,
afligem nossa vida, na qual nada está rigidamente
predeterminado.

"Por isso, cabe a cada um de nós, advogados, juristas, o


dever de agir de maneira que nos parecer mais justa, ainda
que cometendo erros, que deverão ser progressivamente
depurados, através do método trial and error, provando e
riprovando" (MAURO CAPELLETTI, "Problemas de reforma
do processo civil nas sociedades contemporâneas", in O
processo civil contemporâneo, diversos autores, Ed.Juruá,
1994, p. 30).

XI - ALGUMAS ILAÇÕES DE ORDEM PRÁTICA

Para dar sentido prático e útil ao reconhecimento da íntima


intervinculação do direito processual civil com o direito material e para ressaltar a
relevância do princípio da instrumentalidade, alguns exemplos de grande
freqüência na vida forense podem ser lembrados, como os pertinentes às
.32.
condições da ação , às nulidades processuais, ao julgamento antecipado da lide e
as medidas cautelares.

a) Condições da ação

A jurisdição apresenta-se como manifestação da soberania estatal e


se instala numa das funções do Poder Público. Ao serviço que a função
jurisdicional presta corresponde uma verdadeira obrigação assumida perante a
coletividade. Daí que corresponde à jurisdição o direito subjetivo público dos
cidadãos de exigir prestações de direito público a serem cumpridas pelo Estado
para eliminar controvérsias jurídicas, seja mediante declaração de certeza acerca
da relação jurídica material controvertida (cognição), seja mediante realização
coativa de interesses tutelados pelo direito objetivo (execução).

Vistas panoramicamente, no universo da ordem jurídica, tanto a


jurisdição como a ação revelam-se fenômenos genéricos e de conteúdo
indeterminado.

Mas, a atuação da jurisdição nunca será genérica e abstrata como é


a da função legislativa; ao contrário, somente há pronunciamento e execução
dentro do processo jurisdicional, diante de situações específicas e concretas.

Os elementos do direito de ação frente à função jurisdicional, que, na


previsão normativa, se apresentavam indefinidos, serão, pois, forçosamente
.33.
determinados no momento da formação do vínculo processual, sem o que
prestação jurisdicional não ocorrerá.

Analisando a estrutura do direito de ação, ensina ROCCO que esse


direito é daqueles que na sua concepção genérica envolvem elementos
indeterminados, mas determináveis.

Aliás, isto não é, evidentemente, uma característica apenas do direito


de ação. Toda vez que a lei impõe, estatutariamente, ao Estado, uma obrigação
jurídica de prestar bens ou serviços em favor de interesses diretos e imediatos
dos cidadãos, nasce para estes um direito subjetivo público individual, mas de
previsão e conteúdo genéricos. Para exercitá-lo, os indivíduos terão, caso a caso,
que determinar os elementos da relação a ser travada com o Poder Público, a fim
de exigir e obter a prestação a que corresponde o seu direito público subjetivo.

A determinação desses elementos é que vai evidenciar se,


concretamente, há ou não o direito subjetivo público feito atuar contra o Estado.
Essa determinação, outrossim, não é arbitrária, pois que se acha regulada,
também, na mesma ordem jurídica que instituiu e previu genericamente o direito
subjetivo público ao serviço criado a benefício dos cidadãos.

Daí a conclusão de ROCCO no sentido de que "os critérios de


determinação, tratando-se de obrigações ex lege, estão igualmente indicados
pelas normas legislativas, regulamentares ou estatutárias , que constituem a fonte
.34.
das obrigações de direito público" (Tratado de Derecho Procesal Civil, b. Aires,
Temis-Depalma, 1969, vol. I, p. 268).

Disso decorre, para a jurisdição, que a parte só alcançará a


composição estatal da lide se o processo for provocado por ação que determine os
elementos da relação jurídica processual em harmonia com os requisitos
previstos na lei.

Vale dizer: o autor, para assegurar a tutela jurisdicional, num caso


concreto, tem de observar determinados pressupostos e condições, sem o que o seu
genérico direito de ação não obrigará o Estado.

Os requisitos de validade da relação processual são os pressupostos


processuais, que correspondem à genérica capacidade das partes, à regularidade
de sua representação nos autos, à competência do órgão judicial, e à adequação da
forma procedimental.

Mas, para que a relação processual válida seja realmente eficaz para
chegar à sentença de mérito é indispensável que as partes atendam a certos
requisitos que evidenciem a sua posição dentro da relação jurídica material
controvertida. São as condições da ação, ou seja, a legitimidade de parte, o
interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido. Nessa ordem de idéias,
pode-se afirmar que os pressupostos processuais se revelam como requisitos
extrínsecos da relação processual, por corresponderem a dados necessários para
que qual relação processual seja válida. Seu exame, por isso mesmo, faz-se
.35.
exteriormente, sem penetrar no interior da pretensão, que se veicula no processo,
ou seja, sem qualquer referência ao direito subjetivo material controvertido.

Já no enfoque das condições da ação, o exame se endereça aos


efeitos da relação jurídica processual em face da pretensão (isto é, sobre o
direito subjetivo material), e não apenas à genérica validade da relação processual
instaurada.

Para apreciar a pretensão e emitir o provimento de mérito, a lei


processual exige que a parte seja legítima, que haja interesse na tutela
jurisdicional, e que o pedido seja, em tese, possível.

Ora, para se formar um juízo sobre tais condições, a análise do


magistrado não se dará no plano do processo, e sim plano do direito material. Vale
dizer: será, em função da relação substancial que se definirá, ainda em tese, se
autor e réu são as pessoas que nela ocupam os pólos ativos e passivos; se a medida
processual requerida é, nas circunstâncias da inicial, necessária, ou não, para evitar
uma lesão do possível direito material do autor; e se a providência reclamada é,
ou não possível, segundo os padrões genéricos ou abstratos do ordenamento
jurídico.

Fácil é concluir, destarte, que toda a definição das condições da ação


haverá de se fazer com um juízo preliminar sobre a pretensão e sua
fundamentação de ordem material, de modo que não se pode discordar de
ZANZUCCHI quando ensina que os requisitos que a lei processual arrola como
.36.
condições da ação nada mais são que requisitos de "fundamentação" da demanda,
que, por isso, fazem a conexão indispensável entre a ação e o direito material.

Juízes, portanto, que não cuidam de bem orientar o processo, segundo


as condições da ação, a seu devido momento, não raro criam enormes,
injustificáveis e inúteis dispêndios de tempo e recursos, tumultuando a prestação
jurisdicional e atravancando os serviços já tão deficientes da Justiça. Quantas
vezes, por não se detectar, desde logo, a ilegitimidade de parte, se chega ao
absurdo de complexas e onerosíssimas perícias bem como à oitiva de dezenas de
testemunhas em sucessivas audiências, para, depois de anos de trabalhos perdidos,
extinguir-se o processo sem apreciação do mérito, por carência de ação ...

b) Nulidades processuais

A forma traçada pela lei é o meio de garantir-se um fim. Daí por que,
em nossos dias, a lei processual só cogita de nulidade, quando, por desvio de
forma, o fim colimado não for atingido.

Cumpriu o legislador, entre nós, muito bem seu dever de impedir que
o formalismo processual, tal como no tempo do praxismo forense, pudesse
subverter a hierarquia dos valores em jogo na prestação jurisdicional.

Os atos processuais, em si mesmos, não tem objetivo próprio, pois


somente se explicam em função do destino que o ordenamento jurídico lhes
conferiu, e que vem a ser o de atuar a lei material diante da situação litigiosa.
.37.

Como observa AMARAL SANTOS, no moderno direito processual


civil, "os atos processuais são meios de que servem os sujeitos da relação
processual para atingir um fim, que é o fim do processo, ou seja, a sua definição
pela atuação da vontade da lei ao caso concreto. Por outros palavras, os atos
processuais nada mais fazem do que configurar atividades que se destinam a um
fim. Daí concluir a doutrina que os atos processuais não têm caráter autônomo,
mas essencialmente formal, instrumental, finalístico, no sentido de que são
meios, dotados de forma, com a finalidade de criar as condições necessárias ao
processo para que atinja o seu fim" (verbete Nulidades Processuais, in
Enciclopédia Saraiva de Direito, v. 55, p. 165).

Prossegue a lição: "E, como esse é o seu caráter, rege-os o princípio


da instrumentalidade das formas, que Liebman eleva à categoria de um dos
princípios fundamentais do processo, e conforme o qual, no julgar da validade ou
invalidade de um ato processual, se deve atender, mais que à observância das
formas, ao fato de haver ou não o ato atingido a sua finalidade".

Conclui AMARAL SANTOS, ressaltando que "o que se deve


verificar é se o ato, pela forma que adotou, atingiu a sua finalidade próxima, de
autenticar e fazer certa uma atividade, e remota, mas que lhe é própria, de meio
para atingir a finalidade do processo. Quer dizer que o princípio da
instrumentalidade das formas dos atos processuais recomenda que, ao julgar
da validade ou invalidade de um ato processual, se atendam a dois elementos
.38.
fundamentais: a finalidade que a lei atribui ao ato e o prejuízo que a violação da
forma traria ao processo" (ob. cit., loc. cit.).

O princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais é,


sem dúvida, o mais importante dos fundamentos da atual concepção do processo e
se acha muito bem explicitado pelo CPC brasileiro (arts. 244, 249, § 1º , e 250,
parágrafo único).

Por esse princípio se entende que, sendo a forma instrumento, meio,


e não fim, o que se procura apurar para definir-se uma nulidade é a circunstância
de ter ou não sido atingida a finalidade do ato.

No direito processual, preleciona CALMON DE PASSOS, "o


interesse predominante é o interesse final de realização dos fins de justiça do
processo", que se consubstanciam na pacificação do litígio por meio da
realização prática do direito material.

O processo globalmente, e cada ato que o integra, particularmente,


revestem-se de tipicidade estatuída em função de sua natureza instrumental.

O descumprimento da forma, isto é, da tipicidade do ato processual,


contudo, nem sempre afeta sua finalidade instrumental.
.39.
Daí a necessidade, recomendada por CALMON DE PASSOS, de
apurar-se a cada caso se o defeito formal (atipicidade) é relevante ou não-
relevante.

Se o resultado do ato defeituoso ou atípico foi o mesmo que se


esperava do ato perfeito ou típico, a atipicidade é irrelevante. Se, ao contrário, o
ato defeituoso não gerou o resultado almejado, então a atipicidade é relevante.

Para se apreciar a tipicidade e relevância, o que há de ser, outrossim,


ponderado pelo magistrado será sempre o cotejo do ato concreto com os fins de
justiça do processo, ou seja, com o "seu fim de pacificação e seu fim de efetivação
do direito material", como destaca CALMON DE PASSOS (Comentários ao Cód.
Proc. Civil, 3. ed., vol. III, n. 273.3, p. 544).

Se o ato, embora atípico, mostrou-se eficaz (atipicidade irrelevante),


teremos mera irregularidade formal. Se, porém, a atipicidade for relevante (tiver
causado prejuízo), teremos a ineficácia, cabendo ao juiz decretar a nulidade do
ato.

COUTURE, tratando do mesmo tema, fala em princípio de


"transcendência", ao explicar que "não há nulidade de forma se a irregularidade
não tem transcendência sobre as garantias de defesa em juízo". E explica, mais,
que "não há nulidade sem prejuízo". Sem um gravame, ninguém pode postular a
invalidação de qualquer ato processual" (ob. cit., n. 251, p. 390).
.40.
O que preside, fundamentalmente, o sistema de nulidades formais de
nosso Código de Processo Civil é, em suma, a valoração do prejuízo. Pas de
nullité sans grief.

Mesmo quando a lei prescreve a forma de um ato processual com


cominação expressa de nulidade para sua inobservância, como no caso de citação
e intimação, não teria sentido, dentro do sistema da instrumentalidade do ato,
decretar-se a sua nulidade, se seu fim foi atingido mediante a produção de defesa
hábil pelo citado. Daí considerar a lei suprida a citação (nula ou inexistente)
pelo comparecimento do réu ao processo (CPC, art.214, § 1º).

O ato processual nulo reclama, após o reconhecimento de sua


invalidade, a respectiva repetição. Mas qualquer que seja a nulidade, "o ato não se
repetirá", nem reclamará suprimento de sua falta, "quando não prejudicar a parte"
(CPC, art. 249, § 1º).

Absurdo, por exemplo, seria mandar fazer a citação omitida, depois


que o réu já compareceu espontaneamente e já produziu sua resposta.

Enfim, sem dano não se concebe nulidade processual. Por inexistir


nulidade sem conseqüências, grave que seja a violação formal, "inexiste nulidade ,
quando inexiste prejuízo, ou quando o fim atribuído ao ato foi alcançado com a
realização do ato atípico" (CALMON DE PASSOS, ob. cit., n. 273.6, p. 546).
.41.
Qual seria o dano que justifica a nulidade do ato processual?
Responde-nos CALMON DE PASSOS, afirmando que no processo todo o
interesse das partes e do Estado cinge-se à aplicação da lei ao caso concreto, para
fazer cessar o conflito existente. Logo, o prejuízo que justifica a nulidade é o que
se relaciona com o interesse na consecução do objetivo processual. Sempre que
se perde ou se diminui uma faculdade processual, há lesão ou prejuízo para a
parte , ficando demonstrado que tal faculdade poderia gerar influência no
resultado final do processo.

GALENO LACERDA cita como casos em quese pode dar, por


ausência de prejuízo, a não incidência da nulidade as hipóteses gravíssimas de
invalidade da citação do réu revel, de falta de citação de litisconsorte necessário
(como a mulher do réu, em ação real imobiliária), e a falta de intervenção do
Ministério Público. Mesmo diante de tais vícios, que são gravíssimos e
correspondem a nulidades cominadas em texto expresso de lei, "os atos
processuais não serão anulados se não tiver havido prejuízo, respectivamente para
o réu (se vencedor), para os litisconsortes ou para a parte que deveria ter sido
assistida pelo representante do Ministério Público" (Despacho Saneador, 1953,
p. 131).

c) Julgamento antecipado da lide

A garantia do devido processo legal, hoje erigida ao nível de garantia


constitucional, compreende, entre seus elementos essenciais a rapidez ou presteza
da tutela jurisdicional, já que está assente entre os doutos que justiça tardia
.42.
eqüivale a Justiça denegada. Nesse sentido mereceu irrestrita aprovação
doutrinária a criação do julgamento antecipado da lide pelo Código de Processo
Cível de 1973.

Concedendo a lei ao juiz o poder de indeferir provas inúteis e


diligências procrastinatórias (CPC, art. 130) e ainda lhe impondo o dever de julgar
a lide antecipadamente (sem audiência), quando não houver necessidade de prova
oral (CPC, art. 330), há possibilidade de grande parte das ações ordinárias se
encerrar, em primeiro grau, no curto prazo de dois ou três meses. O que
infelizmente ocorre é que, na prática, um grande número de juízes despacha a
inicial e o pedido de provas sem sequer ler a petição do interessado, e por isso
acaba por encher a pauta de audiências com processos cujo julgamento de
maneira alguma dependeria de prova oral. Trata-se de prática viciosa que agride
frontalmente o princípio da celeridade e, conseqüentemente, frustra a garantia do
devido processo legal.

Porém se, por um lado, o julgamento antecipado da lide atende ao


anseio de celeridade do processo, é preciso não transformar esse instrumento de
maior acesso à Justiça numa arma de cerceamento de defesa. Sempre que a parte
requerer provas pertinentes e a solução da lide for passível de sofrer influência de
tais provas, o magistrado não tem o direito de encerrar o feito sem antes ensejar
sua adequanda e oportuna produção.

É que, acima da celeridade processual, existe a garantia fundamental


do contraditório e ampla defesa (CF, art. 8º, n. LV), cuja violação leva ao
.43.
cerceamento de defesa e à nulidade do processo, reconhecíveis em segunda
instância, com total perda do falso esforço de abreviamento feito em primeiro
grau.

Portanto, o uso do julgamento antecipado haverá de ser feito com a


preocupação sempre de respeitar a função instrumental do processo, ou seja, sem
prejudicar o compromisso que a tutela jurisdicional tem, com a verdade real, em
torno da relação jurídica material, que só se cumpre, com fidelidade, quando as
partes não são cerceadas no exercício do contraditório e ampla defesa.

d) Medidas cautelares

Certo, tendo o Estado o monopólio da Justiça, o indivíduo tem o


direito subjetivo público à tutela jurisdicional do Estado. Se essa tutela demanda
tempo e, com essa demora necessária, o resultado prático do processo corre
risco de tornar-se coisa inútil, claro é que a parte tem também direito subjetivo
público a medidas preventivas que resguardem os bens jurídicos indispensáveis
ao resultado útil do processo.

Assim, não se pode conceber o moderno direito processual sem a


presença e o concurso prático das medidas cautelares.

Mas, medida cautelar não é instrumento de aceleração do processo,


nem muito menos de prematura execução provisória de possíveis direitos
subjetivos ainda pendentes de acertamento e definição no processo principal. Daí
.44.
dizer a boa doutrina que as medidas cautelares não devem, em regra, se
apresentar como satisfativas, mas apenas preventivas.

Tutela-se, cutelarmente, o processo principal, não o direito


subjetivo incerto da parte. Medidas liminares que arbitrariamente antecipam
favores materiais à parte não contribuem para o prestígio da Justiça nem mesmo
representam providências de aceleração da prestação jurisdicional.

Não é só o autor da ação cautelar que merece a tutela jurídica. São as


duas partes do litígio que têm o direito ao devido processo legal e,
conseqüentemente, a justa composição de seu conflito de interesses. A
antecipação arbitrária de medidas liminares satisfativas, fora dos casos
extraordinários criados pela lei, só gera tumulto, com quebra evidente do
princípio do contraditório e ampla defesa, aumentando consideravelmente os
pontos de atrito jurídico a serem dirimidos pelo juiz. Longe de acelerar a
conclusão do processo, complicam-lhe a marcha e protelam, mais ainda, a resposta
final da justiça.

É hoje, sem dúvida, o poder geral de cautela a mais importante


faculdade conferida ao juiz, na busca da justa composição da lide. Mas, pode, pelo
abuso, transformar-se em fator da angústia e desalento para muitos litigantes.

Como sempre, todos os poderes do juiz, no comando do processo,


não podem ser utilizados fora dos limites que configuram a garantia básica da
isonomia, e, principalmente, ao arrepio da conquista maior da história do
.45.
processo, consubstanciada na garantia do devido processo legal e seus
consectários do princípio do contraditório e ampla defesa.

Não pode, enfim, o magistrado, no manejo de um simples


instrumento acessório, subverter os valores e princípios que informam o bem
jurídico maior, que é o processo com todas as garantias que o cercam, e com a
destinação invariável de tratar igualitariamente as partes e somente tomar
medidas de força contra uma delas depois de adequadamente acertados o direito
de uma e a obrigação da outra.

Somente à lei cabe, em princípio, decidir sobre a conveniência de


medidas liminares antecipatórias de satisfação do direito substancial de um dos
litigantes (possessórias, mandado de segurança, desapropriação, nunciação,
despejo etc.).

É importante ressaltar que se mostra tão nocivo ao princípio da


instrumentalidade do processo, tanto o não deferimento da medida cautelar,
quando realmente cabível e necessária, quanto a sua desastrosa concessão, em
conjuntura incompatível com sua destinação específica.

XII - CONCLUSÃO

A autonomia do direito de ação e, conseqüentemente do direito


positivo que a regula, não apaga o traço de união que pela natureza da coisa tem
de existir entre processo e direito material.
.46.

Se algum poder discricionário tem o órgão judicial quanto a certos


atos do iter procedimental (o que é, aliás, raríssimo), na essência a prestação
jurisdicional não dá espaço a nenhuma discricionariedade. Presidido por um dever
de realizar a vontade concreta da lei, com fim obrigatório, o juiz pratica, em
relação ao mérito da causa, ato de "conteúdo vinculado", mesmo quando analisa a
prova dos fatos ou interpreta a norma legal a eles aplicável (FAZZALARI,
Processo e giurisdizione, in Riv. di Dir. Processuale, CEDAM, 1993, n. 1, p. 16-
17).

Mais prestigiado e acatado será, destarte, o direito processual civil


quanto mais se mostrar capaz de servir, com presteza e eficiência, aos ditames do
direito material; ou seja, quanto mais conseguir convencer de que as formas que
impõe são, de fato, as que se revelam úteis e necessárias para a mais fiel e justa
atuação da vontade da lei material.

A história do processo é, por isso mesmo, a história da relação entre o


processo e o direito material, como bem destaca o Prof. Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira.

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