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Flutuações da atenção

no processo de criação
Virgínia Kastrup

Os processos de criação ou invenção – aqui tomados como sinônimos – são múltiplos


e variados. Não são restritos ao campo da criação artística, científica, tecnológica ou
filosófica, mas estão presentes durante todo o tempo em nossa vida cotidiana. As grandes e
pequenas invenções permeiam nosso conhecimento do mundo e atravessam subjetividades e
domínios cognitivos, estilos de vida e paisagens existenciais. Embora os processos de criação
não sejam exclusividade da arte, é possível notar que as práticas artísticas têm sido
amplamente utilizadas no âmbito dos trabalhos comunitários, dos movimentos sociais, da
reforma psiquiátrica e da chamada reabilitação de pessoas portadoras de deficiência, como um
caminho e uma perspectiva de transformação de subjetividades e de mundos constituídos.
Sem questionar o mérito ou êxito de tais projetos, considero que eles têm dado lugar a pouca
discussão teórica acerca da natureza e das possibilidades dos processos de criação. Muitas
vezes não se vai além de colocações vagas e imprecisas sobre as oficinas artísticas, como
“estimulam a criatividade” ou “aumentam a auto-estima”, o que do ponto de vista conceitual
está longe de ser satisfatório (KASTRUP, 2006).
Denominamos invenção ou criação não um processo psicológico especial, mas a
potência que a cognição possui de diferir de si mesma (KASTRUP, 2007a). Constatamos que
estudar a criação dentro de parâmetros científicos nem sempre é simples, pois não há uma
teoria da criação. Como afirma Isabelle Stengers (1993) a idéia de uma teoria da invenção é
uma contradição de termos. Por não ser submetida a leis gerais, a invenção também não está
sujeita à previsibilidade. Henri Bergson (1930/2006) sublinha esse ponto quando, na ocasião
em que ganha o prêmio Nobel, é perguntado por um jornalista sobre como seria a literatura do
futuro. Bergson responde que se fosse possível sabê-lo, ele próprio a faria. Observamos que
além de ser preciso abrir mão da intenção de encontrar leis gerais e de fazer previsões quanto
a seus resultados futuros, há que se renunciar a explicar a criação pelo criador. Tal caminho
não parece adequado, pois ao invés de fundamento, o sujeito deve ser entendido, ele mesmo,
como efeito do processo de criação. O desafio é explicar a criação sem apelar para uma
instância criadora. Muitas vezes se tem confundido criação com criatividade, o que é também
um equívoco a ser evitado. A criatividade é somente uma pequena parte do processo de
criação, que é bem mais amplo. A criatividade é apenas a criação de soluções originais para
problemas dados, enquanto a criação envolve a invenção dos próprios problemas.
As ciências cognitivas, a psicologia e a filosofia apontam elementos para seu
entendimento, e diversos artistas descrevem seus processos de criação. Sem pretender chegar
a um saber totalizante, é possível afirmar hoje que os processos de criação envolvem um
modo de funcionamento da atenção que inclui movimentos distintos do ato de prestar atenção,
que costuma predominar nas atividades ordinárias da vida prática. Tomarei como ponto de
partida a idéia de Pierre Vermersch (2002a; 2002b) de que a atenção é o fundo de flutuação da
cognição. De acordo com tal perspectiva, a flutuação não é apenas um tipo especial de
atenção, como S. Freud (1912/1969) falava da atenção flutuante do psicanalista. Para

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Vermersch, o próprio da atenção é sua flutuação. Isso faz dela uma espécie de solo movente e
lhe dá um papel de destaque na invenção da cognição. Recorrendo aos trabalhos de Henri
Bergson, Gilles Deleuze e Francisco Varela, minha intenção é descrever algumas flutuações
da atenção durante o processo de criação. Vou desenvolver essa idéia por meio de duas
colocações. A primeira é que a criação não é um processo espontâneo. Tomando como
referência o ato de ter uma idéia, vou procurar demonstrar que existe um aquém e um além da
idéia, o que evidencia um trabalho efetivo durante o processo de criação. A segunda colocação
é que a criação é sempre um processo de autocriação, ou seja, que a criação de uma obra ou
de um novo objeto é também, ao mesmo tempo, um processo de criação de si.

A criação não é um processo espontâneo


O processo de criação não ocorre de modo espontâneo, ou seja, não vai por si, não se
dando num sujeito relaxado e passivo. A ação espontânea se distingue da ação voluntária. O
que caracteriza a ação voluntária é possuir uma intenção ou uma meta ativamente buscada. A
presença da atenção voluntária responde pelo sentimento de esforço para a realização da ação.
Já a ação espontânea, como a ação automática ou mecânica, não requer investimento especial
da atenção. Nem espontâneo nem voluntário, o processo de criação não parece caber em tal
dicotomia.
Tomemos o ato de ter uma idéia, que é um momento essencial no processo de criação.
Curiosamente, esse ato não foi estudado pela psicologia cognitiva. A psicologia da gestalt
formulou o conceito de insight, mas o insight do chipanzé que usa o bastão para pegar uma
banana pendurada fora do alcance de sua mão é um processo de solução de problemas. Não
cria um problema novo. Para procurar entender o ato de ter uma idéia, vou acompanhar aqui a
argumentação de Deleuze numa conferência para estudantes de cinema (DELEUZE, 1999a).
Deleuze começa afirmando que ter uma idéia é algo raro, pouco corrente, uma espécie de
festa. Por outro lado, sublinha que ter uma idéia não é algo genérico. Não temos uma idéia em
geral. Uma idéia já está destinada a este ou aquele domínio – cinema, pintura, literatura,
filosofia, ciência. Isso significa que as idéias já estão empenhadas em seu modo de expressão.
Elas surgem como que predestinadas a um certo domínio. Um filósofo não pode ter uma idéia
em cinema, um cineasta em literatura, um escritor em artes plásticas ou um pintor em
filosofia.
Deleuze afirma que a filosofia, a ciência e a arte são formas de pensamento e
atividades criadoras. A filosofia existe para criar conceitos, não para refletir “sobre”. Sublinha
que não se criam conceitos num piscar de olhos. Isso exige tempo. Também não funciona na
base da decisão, da escolha deliberada ou da vontade. Acrescenta em seguida que o criador
não trabalha pelo prazer. É preciso que haja uma necessidade. O criador só faz aquilo de que
tem extrema necessidade. Ele é como que forçado ao pensamento, à criação. De uma idéia
pode-se, talvez criar algo, mas isso não é garantido.
Numa outra fala, agora numa série de entrevistas concedidas a Claire Parnet, que
saíram no vídeo L’abécedaire, Deleuze (s/d) toca mais uma vez no ato de ter uma idéia na fala
sobre a letra P – Professor. Descrevendo seu processo de preparação dos cursos, afirma que é
preciso muito preparo e muita repetição para ter alguns minutos de inspiração. Como a
inspiração é o momento em que se tem uma idéia, que é um movimento de devir da cognição,
fica marcado o esforço que precede esse ato raro, que Deleuze considera indispensável para

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sua atividade de professor. Preparar um curso não é estudar para obter informações, para
acumular um saber e posteriormente transmiti-lo aos alunos. É antes ler os textos estando
atento, à espreita dos problemas que eles colocam, às vezes ler nas suas entrelinhas, nos poros
onde a escrita respira, captar suas idéias, suas lufadas de ar fresco. É repetir a leitura e deixar
que ela reverbere em si, o que toma tempo. Desse tipo de leitura pode surgir a inspiração que
o professor tanto deseja para dar um curso pautado numa idéia nova. Eis a festa à qual
Deleuze se refere.
Ter uma idéia que deslancha um processo de criação é uma experiência rara, de
exceção e vem da longa habitação de um território, de um domínio específico. A idéia
introduz uma novidade desse domínio, é uma experiência nova, não-recognitiva. Enfim, o ato
de ter uma idéia não resulta da deliberação. É uma experiência sem piloto, que independe da
vontade de um eu. Diversos artistas, quando são interrogados sobre seu processo de criação,
afirmam que são tomados pelas idéias que lhes servem de inspiração. Eles são acometidos por
elas, como se elas os invadissem. Eles não escolhem as idéias. Ao contrário, é como se fossem
escolhidos por elas.
Ter uma idéia não resulta de um processo de busca ativa. O ato mais se assemelha ao
encontro do que ao resultado de uma busca. Mas nem por isto a idéia surge espontaneamente.
Em realidade, as noções de passividade ou de atividade não são adequadas ao processo. Não é
uma busca orientada, mas também não é uma simples espera. Trabalha-se para ter a
possibilidade de recebê-la. Melhor seria referir-se a uma ativa receptividade. É nesse sentido
que Deleuze (s/d) fala que quando vai ao cinema, a museus ou galerias de arte, vai com a
atenção à espreita, como aquela de um caçador. Em consonância com essa idéia, N. Depraz, F.
Varela e P. Vermersch (2003) propõem a noção de uma atenção ao mesmo tempo concentrada
e sem foco, como aquela que caracteriza a meditação budista. Vale notar que, de acordo com
tal perspectiva, os processos de concentração e de focalização não se sobrepõem, pois pode
haver focalização sem concentração e também concentração sem foco. Do ponto de vista da
invenção é muito importante distinguir a concentração, que é a atenção dotada de espessura
temporal, e a focalização, que pode ser rasa, passageira e evanescente. Do ponto de vista da
invenção, a focalização sem concentração é estéril. Já a concentração é indispensável. Quando
ela é sem foco pode-se estar à espreita do encontro com uma idéia (KASTRUP, 2004).
A idéia é ativadora, abrindo um campo para o processo de criação ser desenvolvido. O
funcionamento da atenção vai além da atenção focada, cuja metáfora é o foco de luz. A
atenção focada ilumina um estímulo ou um objeto entre uma infinidade de outros, com uma
atividade de inibição concomitante dos demais. Mas no processo de criação há flutuações da
atenção, e grande parte do processo ocorre fora de foco. Por exemplo, a distração tem sua
importância. A distração é um funcionamento em que a atenção vagueia, experimenta uma
errância, fugindo do foco da tarefa e indo na direção de um campo mais amplo, habitado por
pensamentos fora de lugar, percepções sem finalidade, reminiscências vagas, objetos
desfocados e idéias fluidas, que advém do mundo interior ou exterior. O distraído é alguém
extremamente concentrado, que não é meramente desatento, mas cuja atenção se encontra em
outro lugar (KASTRUP, 2004). Mas é preciso distinguir distração de dispersão. A dispersão
consiste num repetido deslocamento do foco atencional, que impossibilita a concentração, a
duração e a consistência da experiência. Um exemplo é a pessoa que fica o tempo todo
zapeando os canais da TV. A focalização consecutiva impede a espessura temporal da
experiência. No fim do séc. XIX T. Ribot (1889/1931) já havia notado essa diferença, presente

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na distinção proposta por ele entre distração dissipada (que eu chamo de dispersão) e
distração absorta. Segundo Ribot, esses dois regimes apenas em aparência são semelhantes,
sendo na verdade contrários, pois no primeiro a atenção passa incessantemente de um estado
mental a outro, enquanto no segundo a atenção mantém-se tão concentrada num único estado
que outros acontecimentos não são capazes de penetrá-la. A semelhança é que ambos revelam
um movimento de irradiação da atenção, mas a diferença essencial é que no primeiro essa
irradiação vem associada a uma ausência de concentração, enquanto no segundo a
concentração é mantida.
Além de um aquém da idéia, há também um além da idéia. O processo de criação não
se esgota no ato de ter uma idéia. A idéia nova é uma condição necessária, mas não suficiente,
para que o processo de criação se dê por inteiro. Não é fácil criar algo novo: um conceito
filosófico, uma função científica, uma obra de arte ou mesmo um estilo de vida dependem de
um processo. Isso quer dizer que a criação envolve trabalho, no sentido de trabalho de
composição e de lida com a matéria. Dada uma idéia, há um movimento forçado que deve ser
seguido para lhe dar corpo, para torná-la algo que se ponha de pé, que se sustente. Pois a idéia
não é o pensado, mas o que faz pensar. O pensamento criador não vai por si, mas se realiza
por meio de uma experimentação e movimentos que buscam dar expressão à idéia. A idéia
requer uma matéria para se exprimir. Como sublinhou Simondon (1989), a matéria não é
moldada sem resistências, mas impõe seus próprios constrangimentos. A argila é um dos
exemplos analisados por G. Simondon; voltaremos a ela adiante. Deleuze (1987) também
apontou que o marceneiro deve seguir os veios da madeira, aprender sua semiótica para lidar
com ela. Nesse sentido, podemos dizer que a matéria não é inerte e submissa à vontade do
criador. Tocado pela idéia e usando a matéria que lhe dará corpo, o criador deve ser sensível a
suas exigências. Há um aprendizado que deve ter lugar aí. O resultado não é imediato, requer
tempo e, conforme apontou Bergson, envolve esforço.
No texto sobre esforço intelectual, Bergson inicia afirmando:

O problema que trataremos aqui é distinto do problema da atenção, tal como põe
a psicologia contemporânea. Quando nos recordamos de fatos passados,
interpretamos fatos presentes, ouvimos um discurso, seguimos o pensamento
alheio, e quando nos ouvimos pensar, enfim, quando um sistema complexo de
representações ocupa nossa inteligência, sentimos que podemos tomar duas
atitudes diferentes: uma de tensão e outra de relaxamento, que se distinguem,
sobretudo, quanto ao sentimento de esforço presente numa e ausente noutra
(BERGSON, 1902/2006, p. 153) 1

Bergson acrescenta que a psicologia da época – Ribot, por exemplo – atém-se


principalmente à atenção ligada à percepção, mas a presença do sentimento de esforço em
operações do espírito como a invenção técnica e artística atesta que a atenção participa do
trabalho de toda a cognição.
Para falar do esforço intelectual, Bergson lança mão do conceito de planos de
consciência. Apresenta a consciência como uma espécie de pirâmide composta de planos
distintos, onde cada plano contém representações num certo estado de contração ou de
distensão. Na parte de baixo estão localizadas as representações dotadas de contornos

1
As citações desse texto são tradução nossa.

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distintos, como imagens preceptivas ou mnésicas. Tal estado de distinção diminui à medida
que ascendemos na pirâmide da consciência até que, na parte mais alta, na extremidade
superior, encontra-se uma espécie de representação totalmente contraída que, como um papel
amassado, é uma idéia sem contorno definido. Os elementos que a compõem encontram-se
interpenetrados, aglutinados, indiscerníveis. Bergson denomina “esquema dinâmico” essa
espécie de representação virtual que, em seu movimento de atualização, se desdobra se
diferenciando, criando imagens que não estavam dadas antes a título de possível. 2
O problema da atenção está bastante presente no texto sobre o esforço intelectual.
Bergson propõe um funcionamento distinto para a ação mental espontânea ou automática –
ele utiliza os dois termos indistintamente – e a ação com esforço, na qual vai caber a ação
inventiva. A ação mental espontânea ou automática caracteriza-se por um estado de
relaxamento, enquanto a ação mental acompanhada de esforço é marcada por um estado de
tensão. A primeira segue um movimento horizontal, segundo um mecanismo de associação de
imagens distintas, pertencentes a um mesmo plano. Já a segunda – a atividade cognitiva
operada com esforço – realiza um movimento vertical, atravessando diferentes planos de
consciência e segundo outro modo de funcionamento, distinto da associação. Freqüentemente
esse dois modos de funcionamento aparecem entrelaçados e raramente se dão em estado puro.
Mesmo assim, para Bergson, é possível identificar que a recordação espontânea encontra-se
no primeiro caso e a recordação voluntária, no segundo. A distinção básica é a presença do
esforço. Bergson (1902/2006, p.167) conclui que “o esforço de recordação consiste em
converter uma representação esquemática, cujos elementos se interpenetram, em uma
representação imajada cujas as partes se justapõem”. Em resumo, na parte superior da
pirâmide as representações são marcadas pela interpenetração, pela aglutinação, enquanto na
parte inferior impera a justaposição de elementos.
Na primeira modalidade de funcionamento mental, a horizontal, responde-se
automaticamente a uma percepção por uma ação apropriada. Há processo de reconhecimento
automático, bem como um saber servir-se do objeto. Em outras palavras, esboça-se
mecanicamente o ato que o hábito associou ao objeto percebido. O exemplo é a conversação
banal, feita de respostas prontas, sem atenção especial ao que se diz. Bergson afirma que a
verdadeira atividade intelectual é a outra, a que traça um movimento vertical, a que atravessa
diferentes planos da consciência, atividade que é dotada de esforço. O movimento vertical
pode se dar de baixo para cima ou de cima para baixo. Um exemplo de movimento
descendente é a invenção de um texto ou de uma poesia, movida por uma idéia que quer
ganhar forma. Voltando ao tema da atenção Bergson conclui que o sentimento do esforço
intelectual se produz no trajeto do esquema à imagem.
Bergson aponta que o esforço intelectual, embora sendo um sentimento, não é apenas
um colorido da cognição. O esforço não deve ser confundido com algo de natureza
meramente afetiva. Ao comportar um funcionamento distinto do mecanismo da associação, é
a cognição que se torna aí mais complexa. Trata-se de um funcionamento cognitivo feito de
resistências, lutas internas, composições e interferências recíprocas. A sensação de esforço
funciona fazendo eco com esse jogo de representações.
Por fim, o tema tratado é o do esforço de invenção. O ponto de partida é uma idéia, um

2
Para uma discussão detalhada sobre a distinção entre o virtual e o possível Constituição Federal. DELEUZE,
1999b.

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esquema dinâmico, e a questão é converter o esquema abstrato em imagens concretas e
distintas. Tateios, experimentação, tudo isso faz parte de um processo em que o fim não está
dado de antemão. Mas mesmo assim o esquema força para tomar corpo. O interessante aí é
que o esquema, que é dinâmico, não permanece inalterado ao longo da operação de
atualização em imagens concretas, mas muda ao se atualizar. Em outras palavras, há um
movimento de vaivém entre esquema e imagens. Por exemplo, quando um escritor cria os
personagens de um romance, estes podem retroagir sobre a idéia inicial e impor certos rumos
à história que não haviam sido previstos pelo autor. Na medida em que o inventor realiza sua
obra ele abre mão de muitas coisas que inicialmente desejaria obter, ou seja, ele renuncia a ser
o piloto do processo de invenção. Aí entra o elemento de imprevisibilidade do processo. Não
há um comando central, mas movimentos endógenos e exógenos, constrangimentos
recíprocos do criador e da criatura, que se impõem e que se libertam um do outro alternando-
se e combinando-se durante o processo.
Bergson afirma que a riqueza de um estado mental existe na proporção do esforço que
ele testemunha. É o caso do trabalho a partir do esquema dinâmico. O esquema é uno, embora
não seja simples. É uma espécie de “idéia diretriz”, comum a um grande número de elementos
organizados, que entram em relação de luta e de interferência entre si e que respondem pela
complexidade do processo. Bergson (1902/2006, p. 187-188) afirma que o esquema

consiste em uma expectativa de imagens, em uma atitude intelectual destinada


tanto a preparar a chegada de certa imagem precisa, como no caso da memória,
como a organizar um jogo mais ou menos prolongado entre as imagens capazes
de vir aí se inserir, como no caso da imaginação criadora. Ele é, em estado
aberto, o que a imagem é um estado fechado. Apresenta em termos de devir,
dinamicamente, os que as imagens nos dão como prontas, em estado estático.

Concluamos algumas coisas. A invenção não é apenas esforço, mas há esforço na


invenção. Parece que é isso o que Bergson quer dizer. A invenção não é uma atividade
espontânea, mesmo que incluamos sob esse termo a invenção da vida cotidiana, e não apenas
as grandes invenções tecnológicas, artísticas ou científicas. Por que há esforço? Porque nos
desviamos do caminho já aberto, e por isso bem mais fácil, que os hábitos anteriores deixaram
trilhado. O desafio da invenção é evitar o mecanismo horizontal da cognição, das associações
mecânicas, das imagens distintas, do reconhecimento de representações e atravessar diferentes
planos de consciência, do mais conhecido ao menos conhecido. Dito de outro modo, inventar
é conduzir uma mesma representação através de planos de consciência, do mais conhecido ao
menos conhecido. Dito de outro modo, inventar é conduzir uma mesma representação através
de planos de consciência diferentes, numa direção que vai do esquema à imagem (e vice-
versa). Na invenção, as coisas não vão por si. Há sentimento de dificuldade, incômodo,
obstáculos. O processo pode comportar um grande número de vaivéns. Ainda pensando com
Bergson, há esforço quando há desaceleração e retardo. Há que haver trabalho, que se buscar
solução, pois a idéia pode se desmanchar se não se busca concretizá-la numa solução. A busca
é ativa e muitas vezes dura, envolvendo tensão e demandando esforço. Por outro lado, a
criação não é apenas esforço, porque ela inclui o encontro. O encontro é o refluxo da busca,
pois nele somos receptivos. Há então um ritmo. Buscando uma coisa, podemos encontrar
outra e reorientar todo o processo. O encontro tem sempre uma margem de inesperado, um
elemento de imprevisibilidade e de surpresa. Não podemos ser completamente ativos num

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encontro, mas devemos deixar-nos afetar pelo que encontramos.
A idéia se transforma no curso do processo de criação. Este é marcado por idas e
vindas, por um movimento de vaivém entre a idéia e sua expressão concreta numa obra.
Vimos que não se cria por prazer, mas por necessidade. A necessidade que a própria idéia, em
sua impessoalidade, impõe é o motor do trabalho, e não a vontade pessoal do criador. É a
natureza desse motor, juntamente com os constrangimentos da matéria, que faz com que não
só o processo tenha resultados imprevisíveis, mas com que a criatura escape das mãos do
criador e a obra assuma, depois de concluída, uma espécie de vida própria.
Em resumo, o trabalho de criação aparece aquém e além, antes e depois do ato alegre,
da festa que é ter uma idéia. Deleuze ressaltou o trabalho que antecede esse ato, apontando
que a idéia não vem naturalmente, mas depende de repetição e de tempo. É a partir de um
trabalho atento e demorado, de todo um mergulho num território, que se pode abrir passagem
para que a idéia nos acometa, para que um acontecimento tenha lugar. A criação começa com
a subjetividade em festa pela chegada da idéia que vai orientá-la, mas precisa seguir em frente
para dar consistência e expressão a ela. No texto sobre o esforço intelectual, Bergson aponta
para o que deve se seguir à idéia e para o esforço envolvido nesse seguir em frente.
Na atitude de acolhimento, de ativa receptividade à idéia, vislumbramos uma atenção
aberta ao encontro. Pela via da pragmática fenomenológica, Depraz, Varela e Vermersch
(2003;2006) descreveram como a atenção pode, sob certas condições – no caso, pelo método
de redução fenomenológica – mudar de qualidade. Essa mudança corresponde precisamente à
passagem de uma atitude de busca para uma atitude de encontro, de deixar vir (letting-go). É
procurando escapar da oposição entre atenção com esforço e sem esforço, entre tensão e
relaxamento, que propõem a formulação paradoxal de uma atenção caracterizada pelo
“esforço sem esforço”.

O processo de criação é sempre um processo de autocriação


A segunda colocação a ser examinada é que o processo de criação não é uma projeção
subjetiva, não é a expressão de um sujeito, não tem no sujeito seu fundamento. A criação de
uma obra é, ao mesmo tempo, um processo de autocriação. Acompanhando a idéia de
Francisco Varela, pode-se dizer que sujeito e objeto, criador e criatura estão ligados por uma
operação de coengendramento (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003). A idéia é que há um
plano caracterizado por um fazer, por um agir infinitivo; enfim, por práticas cognitivas que
configuram, de modo recíproco e indissociável, o si e o mundo. Sujeito e objetos são efeitos
dessas práticas. Avançando ainda mais, o próprio processo de criação opera o
desmanchamento das configurações do sujeito e do objeto anteriormente formadas. Enfim, a
criação se dá num sujeito, mas não se explica por ele.
John Dewey (1889/1980) aponta um caminho nessa mesma direção em seu texto sobre
a experiência estética. Dewey questiona a adequação da separação entre percepção estética e
prática artística. Afirma que em geral a palavra “artístico” se refere primordialmente ao ato de
produção, e a palavra “estético”, ao ato de percepção e apreciação. Embora o vocabulário
corrente separe as dimensões ativa e receptiva, a arte revela a profunda conexão entre elas. O
fazer artístico não se separa do sofrer e do gosto. Por outro lado, o artista, enquanto trabalha,
incorpora a atitude de quem percebe. Além disso, a ação artística só se completa com a

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participação do expectador, daquele que percebe o produto executado. A experiência
perceptiva é, ela própria, uma experiência criadora, complementando o trabalho de produção.
Nessa direção, a prática artística, como a percepção estética, aciona processos de cognição
inventiva e tem papel na produção de subjetividades, na transformação de domínios
cognitivos e no engendramento de novos territórios existenciais.
Há algum tempo venho investigando o funcionamento da atenção durante processos de
criação em cegos e portadores de baixa visão. Todas as pessoas do grupo são portadoras de
deficiência visual adquirida, ou seja, perderam ou estão em processo de perda da visão em
virtude de doenças ou acidentes os mais diversos. Pessoas, portanto, que por não terem
nascido cegas enfrentam o desafio de reinvenção de suas vidas e de seu território existencial.
Essa pesquisa, 3 realizada na oficina de cerâmica do Instituto Benjamim Constant, no Rio de
Janeiro, me conduziu ao estudo não apenas das transformações cognitivas, mas também da
produção de subjetividade a partir do trabalho com a cerâmica.
A argila é uma matéria estranha e muito peculiar, por suas características de
maleabilidade, temporalidade lenta e imprevisibilidade. Como explico com maiores detalhes
em outro texto (KASTRUP, prelo-a), ela é extremamente flexível, mas não é possível dominá-
la. É preciso entrar em sintonia com ela e lidar com seu tempo lento. Durante o processo de
criação das peças, inúmeras coisas imprevisíveis podem acontecer – a argila pode rachar,
pesar, pender para o lado, quebrar etc. Não apenas aceitar, mas principalmente aprender a
incluir os acasos que surgem, no próprio processo de criação, é um dos desafios de seu
aprendizado.
Pode ser observado que a experiência com a argila corresponde não apenas a um
movimento cognitivo voltado para o exterior, para o trato com a massa, mas também a um
movimento voltado para o interior. É pelo seu lado de dentro que a experiência vai cavando e
modulando a subjetividade. Na experiência estética que tem lugar na oficina de cerâmica, a
produção dos objetos é indissociável da produção da subjetividade de seus participantes. Na
prática artística com a cerâmica ficou evidenciado que há uma atenção voltada para a
fabricação das peças e também uma atenção direcionada para si. Pensando com Varela,
Thompson e Rosch (2003) podemos dizer que tal atenção entra em contato com a virtualidade
do si-mesmo. O si não se limita ao plano identitário de um ego, mas se encontra ligado a uma
rede de processos de onde ele emerge. No caso da oficina, a prática com a argila não coloca os
participantes em contato atencional com a crosta identitária de “deficientes visuais”, mas com
sua potência inventiva.
Bergson apontou em diferentes momentos a necessidade de ampliar o conceito de
atenção, sublinhando que além da atenção à vida prática, havia uma “atenção suplementar”. A
atenção suplementar é caracterizada como uma atenção à duração ou à “mobilidade que existe
no fundo das coisas” e – o que é especialmente interessante – pode ser cultivada e
desenvolvida. Segundo Bergson a intuição traz consigo essa atenção suplementar. Ela é uma
visão direta das coisas e também a atenção que o espírito presta a si mesmo, como um
suplemento, quando se fixa sobre a matéria, seu objeto (BERGSON, 1934/2006, p. 88-89). A
intuição é mais próxima do pensamento que do sentimento. Ela concorre ainda para o
alargamento do campo da experiência, para além de seu alcance funcional e utilitário. Para

3
Projeto de pesquisa “Atenção e invenção na produção coletiva de imagens – um estudo com deficientes visuais
numa oficina de cerâmica”, apoiado pelo CNPq.

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Bergson, a intuição exige um esforço, sendo uma “maneira difícil de pensar”. É um método
que requer do espírito, para cada novo projeto, um esforço inteiramente novo. Enfim, ela põe
em marcha “um outro conhecimento”.
Bergson (1911/2006) afirma que a arte pode concorrer para alargar a percepção,
fazendo-nos ver o que, na percepção comum, permanecia invisível. A percepção comum é
constrangida pela vida prática e voltada para a ação futura. Já os artistas são pessoas que
“Quando olham para alguma coisa, vêem-na por ela mesma, e não mais para eles; percebem
por perceber – por nada, pelo prazer” (p.158). Bergson atribui também à filosofia a
capacidade de operar um deslocamento, ou melhor, de operar a conversão de nossa atenção. A
arte, como a filosofia, tem uma dimensão educativa, atuando diretamente sobre a atenção.
Para Bergson educar a atenção consiste em “reter seus antolhos, em desabituá-la ao
encolhimento que as exigências da vida prática impõem” (p.160). Afirma também que a arte
nos faz ver nas coisas mais qualidades e matizes do que percebemos naturalmente.
Como a percepção estética, as práticas artísticas são capazes de mobilizar essa atenção
suplementar. Acessar a dimensão de mobilidade que repousa no fundo das coisas é, pelo lado
de dentro da experiência, entrar em contato com a duração e o campo de forças moventes que
habitam a própria subjetividade, para além das formas aparentemente fechadas da identidade
do eu. Nessa medida, nas oficinas de arte, a criação de peças é indissociável da criação dos
próprios participantes. No caso dos cegos, a experiência de deficiência, produzida num
mundo cujo paradigma é marcadamente visuocêntrico, é cotejada com a experiência da
potência e da invenção. No caso de pessoas que perderam a visão, o trabalho na oficina de
cerâmica coloca em marcha um longo e laborioso trabalho de reinvenção de si e do mundo,
cujos limites devem ser, dia após dia, ultrapassados. Quando a perda da visão abre a
possibilidade de desenvolvimento de processos de criação, como é o caso que observamos na
oficina de cerâmica, essa perda pode acabar por acionar processos de reinvenção, atualizando
outras virtualidades da subjetividade (KASTRUP, prelo-b). Na pesquisa sobre o funcionamento
de atenção com deficientes visuais, tive de cultivar minha própria atenção para dispor, na
pesquisa de campo, de uma atenção sensível aos signos que marcam esse território tão
singular (KASTRUP, 2007b). Cartografando as práticas da oficina e dando voz aos cegos,
venho entendendo, a cada dia, um pouco mais sobre as flutuações da atenção no processo de
criação, não apenas dos deficientes visuais, mas de todos nós, e confirmando, cada vez mais, a
tese de que o conhecimento é um processo de invenção de si e do mundo.

Referências
BERGSON, H. A percepção da mudança. (1911) In: O pensamento e o movente: ensaios e
conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON H. O possível e o real (1930) In: O pensamento e o movente: ensaios e
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