You are on page 1of 216

FILÓSOFO E CRÍTICO OE ARTE influente

durante as últimas décadas, Boris Groys, nascido

em Berlim Oriental, na antiga República Democráti­

ca Alemã, emigrado para a ex-URSS, é professor de

Estudos Russos e Eslavos na New York University.

Seu primeiro grande ensaio, A obra de arte total no


stolinismo, publicado no início da década de 1990,
derruba o mito de que as vanguardas russas foram

excluídas pelo líder soviético para impor o realismo

socialista. Para o crítico, a utopia da totalidade

estética da avant-garde artística histórica equivalia


à aspiração estalinista. Algumas dessas reflexões

estão incluídas nesta seleção de ensaios, às

quais o crítico acrescenta estudos sobre a arte con­

temporânea e sobre a arte feita sob o totalitarismo,

o socialismo e o pés-comunismo. Groys considera

que a arte das últimas décadas, seja qual fôr o

seu lugar de produção e o regime em vigor, está

impregnada pelas normas da propaganda ideológica.

A arte contemporânea, produzida e exibida para

as massas em exposições internacionais, bienais,

trienais, feiras e festivais, é uma força atuante no

jogo de poder da política global na atualidade como

o foi na arena da Guerra Fria, já que para Groys,

mesmo sendo uma mercadoria, a arte não é uma

mercadoria sem poder, sujeita aos decretos de

inclusão ou exclusão do mercado, mas um meio de

propaganda política.

Os vários tópicos tratados neste livro - a natureza

do mercado da arte, a conexão entre os museus e

a arte contemporânea, o lugar do crítico de arte, a

função do curador, a arte e o terrorismo, a teoria

da arte de Hitler, a arte do realismo socialista, os

efeitos da privatização na Rússia e os papéis das

minorias na Europa - são fundamentais para uma

compreensão mais apurada da arte atual.

MARIA ANGÉLICA MELENDI


\

O OK *

O K * K
* * * '
V * > *
* <P
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

REITOR Jaime Arturo Ramirez

VICE-REITORA Sandra Regina Goulart Almeida

EDITORA UFMG

DIRETOR Wander Melo Miranda

VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL

Wander Melo Miranda (presidente)


Danielle Cardoso de Menezes
Eduardo de Campos Valadares
Élder Antônio Sousa Paiva
Fausto Borém
Flávio de Lemos Carsalade
Maria Cristina Soares de Gouvêa
Roberto Alexandre do Carmo Said

? » V «
♦ * * V

V «* *
* «r

VIRGÍNIA STARLING
TRADUÇÃO

BELO HORIZONTE, 2015 ( E D IT O R A u fm g )


© 2008, Boris Groys *
© 2008, The MIT Press
© 2015, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido
por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.

G874a.Ps Groys, Boris


Arte, Poder / Boris Groys ; tradução Virgínia Starling.
Belo Horizonte : Editora UFMG, 2015.
238 p . : il. - (Artes Visuais)

Tradução de: Art power.


Inclui bibliografia.
ISBN: 9 7 8 -8 5 -4 2 3 -0 1 2 4 -3

1. Arte - Aspectos políticos. 2. Arte e Estado. 3. Arte


moderna - séc. XX - História. 4. Arte - Ensaios. I. Starling, Virgínia.
IL Título. III. Série.

CDD: 701.03
CDU: 7.036

Elaborada pela Biblioteca Professor Antônio Luiz Paixão - FAFICH-UFMG

COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam

ASSISTÊNCIA EDITORIAL Éliane Sousa

DIREITOS AUTORAIS Maria Margareth de Lima e Renato Fernandes

COORDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro

REVISÃO DE PROVAS Ana Teresa Campos e Flaviana Correia

PROJETO GRÃFIC0 DE MIOLO E CAPA Gustavo Piqueira / Casa Rex

PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG

Av. Antônio Carlos, 6.627 CAD II Bloco III


Campus Pampulha 31270-901 Belo Horizonte-MG Brasil
Tel. +55 31 3409-4650 Fax +55 31 3409-4768
www.editoraufmg.com.br editora@ufmg.br
« «P

y *
/ ^ * *

* * V
*

*
S U M Á R I O

Il I N T R O D U Ç Ã O

P A R T E I

25 A LÓGICA DOS DIREITOS ESTÉTICOS IGUAIS

37 SOBRE O NOVO

61 SOBRE CURADORIA

73 A ARTE NA ERA DA BIOPOLÍTICA


DA OBRA DE ARTE À DOCUMENTAÇÃO DE ARTE

83 TOPOLOGIA DA AURA

89 ICONOCLASTIA COMO INSTRUMENTO ARTÍSTICO


ESTRATÉGIAS ICONOCLASTAS EM FILMES

107 DA IMAGEM AO ARQUIVO DE IMAGEM - E DE VOLTA


A ARTE NA ERA DA DIGITALIZAÇÃO

119 AUTORIA MÚLTIPLA

129 A CIDADE NA ERA DA REPRODUÇÃO TURÍSTICA

141 REFLEXÕES CRÍTICAS

P A R T E 2
153 ARTE EM GUERRA

165 O CORPO DO HERÓI


A TEORIA DA ARTE DE ADOLF HITLER

177 EDUCANDO AS MASSAS


A ARTE DO REALISMO SOCIALISTA

187 ALÉM DA DIVERSIDADE


ESTUDOS CULTURAIS E SEU OUTRO PÓS-COMUNISTA

205 PRIVATIZAÇÕES OU PARAÍSOS


ARTIFICIAIS DO PÓS-COMUNISMO

215 A EUROPA E SEUS OUTROS

229 NOTAS
I N T R O D U Ç Ã O
A primeira coisa que se aprende ao se ler a maioria dos textos sobre a
arte moderna e a arte contemporânea é isto: ambas, tanto a moderna
quanto a contemporânea - mesmo em sentido amplo são radical­
mente pluralistas. Esse fato parece excluir de uma vez por todas a pos­
sibilidade de se escrever sobre a arte moderna como fenômeno especí­
fico, como resultado de trabalho coletivo de várias gerações de artistas,
curadores e teóricos - do modo, por exemplo, como alguém escreveria
sobre a arte renascentista ou a arte barroca. Da mesma forma, impede
também a descrição de qualquer obra de arte moderna individual (aqui
me refiro à arte moderna também como contemporânea) enquanto
exemplar da arte moderna como um todo. Toda tentativa como essa
pode ser imediatamente confrontada com um contraexemplo. Assim,
o teórico da arte parece estar condenado, desde o início, a restringir
seu campo de interesse e a se concentrar em movimentos específicos,
escolas e tendências artísticas ou, ainda, em obras de arte individuais.
A afirmação de que a arte moderna escapa a qualquer generalização é
a única generalização ainda permitida. Não há nada senão diferenças
até onde os olhos alcançam. Portanto, deve-se fazer escolhas, assumir
uma posição, estar comprometido - e aceitar a inevitabilidade de ser

u
acusado de parcial, de simplesmente fazer propaganda para um artista
predileto em detrimento de outros, com o objetivo de aumentar o su­
cesso comercial no mercado de arte. Em outras palavras, o pluralismo
que se alega existir na arte moderna e na contemporânea toma qualquer
discurso a esse respeito fútil e frustrante. Esse fato é suficiente para
colocar o dogma do pluralismo em xeque.
Obviamente, a verdade é que todo movimento de arte moderna
provocou um contramovimento, toda tentativa de formular uma defi­
nição teórica para a arte provocou uma tentativa por parte dos artistas
de produzir obras que escapassem à definição, e assim por diante. En­
quanto alguns artistas .e críticos de arte encontraram a verdadeira fonte
da arte na subjetividade da forma de expressão de um artista individu­
al, outros exigiram que a arte abordasse o objetivo traçado, suas condi­
ções materiais de produção e de distribuição. Enquanto alguns artistas
insistiam na autonomia da arte, outros praticavam o engajamento po­
lítico. Em nível mais trivial, quando alguns artistas começaram a fa­
zer arte abstrata, outros se tornaram ultrarrealistas. Portanto, pode-se
dizer que toda obra de arte moderna foi concebida com o objetivo de
contradizer todas as demais obras de arte modernas de uma forma ou de
outra. Isso, no entanto, não significa que a arte moderna, assim, tenha
se tornado pluralista, pois as obras que não contradisseram outras não
foram reconhecidas como relevantes ou como verdadeiramente mo­
dernas. A arte moderna atuava não somente como máquina de inclusão
de tudo o que não era considerado arte antes de seu aparecimento, mas
também como máquina de exclusão de tudo o que imitava padrões de
arte existentes de maneira ingênua, irrefletida, não sofisticada, apolí-
tica, assim como de tudo o que não era, de alguma forma, controverso,
provocativo, desafiador. Isso, no entanto, significa que o ca m p o da arte
m oderna não é p luralista, m a s u m c a m p o estrita m en te estru tu ra d o co n fo r­
m e a lógica da contradição. É um campo em que toda tese deve ser con­
frontada por uma antítese. Num caso ideal, a representação de tese e an­
títese deve ser perfeitamente balanceada de forma a gerar resultado zero.
A arte moderna é produto do Iluminismo, do ateísmo e do humanismo
iluministas. A morte de Deus significa que não há poder no mundo que
possa ser percebido como infmitamente mais poderoso que qualquer ou­
tro. Assim, o mundo ateísta, humanista, iluminista e moderno acredita

12
no equilíbrio do poder - a arte moderna é expressão dessa crença.
A crença no equilíbrio do poder tem caráter regulatório - por isso a
arte moderna tem seu próprio poder, sua própria postura: elã favorece
qualquer coisa que estabelece ou mantém o equilíbrio de poder e tende
a excluir, ou tenta superar, qualquer coisa que distorce esse equilíbrio.
De fato, a arte sempre tentou representar o maior poder possível,
o poder que comandou o mundo em sua totalidade - fosse ele divino
ou natural. Assim, como representação, a arte tradicionalmente reti­
rou sua própria autoridade desse poder. Nesse sentido, a arte tem sido
sempre direta ou indiretamente crítica, pois confronta o poder finito e
político com imagens do infinito - Deus, natureza, destino, vida, morte.
Hoje, o Estado moderno também proclama que o equilíbrio de poder é
seu objetivo final - mas, é claro, nunca alcançará verdadeiramente isso.
Portanto, pode-se dizer que a arte moderna, em sua totalidade, tenta
expor uma imagem de equilíbrio utópico do poder que excede o im­
perfeito equilíbrio de poder do Estado. Hegel, que fora o primeiro a ce­
lebrar a força do equilíbrio do poder incorporado pelo Estado moderno,
acreditava que na modernidade a arte se tomara coisa do passado. Isto
é, ele não imaginava que o equilíbrio do poder pudesse ser mostrado ou
apresentado como imagem. Ele acreditava que o verdadeiro equilíbrio
do poder, cuja somatória fosse zero, só pudesse ser pensado, e não visto.
No entanto, a arte moderna tem mostrado que é possível visualizar o
zero, o perfeito equilíbrio de poder.
Se não há uma imagem que possa funcionar como representação
de poder infinito, então todas as imagens são iguais, pois a arte con­
temporânea possui a igualdade de todas as imagens como sua teleo­
logia. Mas a igualdade das imagens vai além da igualdade pluralista e
democrática da estética do gosto. Há sempre um excesso infinito de
possíveis imagens que não correspondem a nenhum gosto específico,
seja ele individual, bom gosto, gosto marginal ou gosto popular. Por­
tanto, também é sempre possível abordar esse excesso de imagens
indesejáveis, desagradáveis - é isso o que a arte contemporânea con­
tinuamente faz. Malevich já disse que ele estava lutando contra a sin­
ceridade do artista. E Broodthaers disse - quando começou a fazer arte
- que queria fazer algo insincero. Ser insincero, nesse contexto, signifi­
ca fazer arte além de todos os gostos, até mesmo além do próprio gosto.

13
A arte contemporânea é excesso de gosto, inclusive de gosto plura­
lista. Nesse sentido, é excesso de democracia pluralista, excesso de
igualdade democrática. Esse excesso tanto estabiliza quanto desesta-
biliza o equilíbrio democrático do gosto e do poder ao mesmo tempo.
Na realidade, esse paradoxo é o que caracteriza a arte contemporânea
na sua totalidade.
Náo é somente na sua totalidade que o campo das artes pode ser
visto como a materialização do paradoxo. Já na estrutura da moder­
nidade clássica, mas principalmente no contexto da arte contempo­
rânea, obras de arte individuais começaram a ser objetos-paradoxos
que simultaneamente materializam tese e antítese. Assim, A fo n te , de
Duchamp, é arte e não arte ao mesmo tempo. Da mesma forma, Qua­
drado negro so b re fu n d o b ranco, de Malevich, é mera figura geométrica
e pintura. Entretanto, a materialização da autocontradição e do para­
doxo começou a ser praticada na arte contemporânea após a Segun­
da Guerra Mundial. Nesse ponto, somos confrontados com pinturas
que podem ser descritas tanto como realistas quanto como abstra­
tas (Gerhard Richter) ou com objetos que podem ser descritos tanto
como esculturas tradicionais quanto como r e a d y -m a d e s, apenas para
citar alguns exemplos. Somos também confrontados com obras de
arte que têm como objetivo serem tanto documentário quanto ficção,
e com intervenções artísticas que pretendem ser políticas, no sentido
de transcender as fronteiras da arte como sistema - enquanto tam­
bém se mantêm dentro dessa fronteira. A quantidade dessas contra­
dições e de obras de arte contemporâneas que representam e, de fato,
materializam essas contradições, dão a impressão de que se pode
estendê-las à vontade. Essas obras de arte podem criar a ilusão de
que convidam o espectador para potencialmente infinitas interpre­
tações, de que têm amplos significados e não impõem ao espectador
qualquer ideologia, teoria ou fé.
No entanto, essa aparência de pluralidade infinita é, obviamen­
te, apenas ilusão. De fato, há apenas uma interpretação correta que
impõem ao espectador: como objetos-paradoxos, essas obras de arte
exigem uma perfeita reação paradoxal e autocontraditória. Qualquer
reação não paradoxal, ou parcialmente paradoxal, nesse caso, deve ser
compreendida como redutiva e, na verdade, falsa. A única interpretação

14
adequada para um paradoxo é uma interpretação paradoxal. Portanto,
a maior dificuldade de lidar com a arte moderna é nossa relutância
em aceitar interpretações paradoxais e autocontraditórias como ade­
quadas e verdadeiras. Mas essa relutância deve ser superada para que
possamos ver a arte moderna e a arte contemporânea como realmente
são, ou seja, local de revelação do paradoxo que administra o equilíbrio
de poder. Na realidade, ser um objeto-paradoxo é exigência normativa
implícita na execução de qualquer obra de arte contemporânea. Uma
obra de arte contemporânea é boa à medida que é paradoxal, que é ca­
paz de materializar a mais radical autocontradição e de contribuir para
estabelecer e manter o perfeito equilíbrio de poder entre tese e antí­
tese. Nesses termos, até mesmo a mais radicalmente parcial das obras
de arte pode ser considerada boa, se ajudar a compensar o equilíbrio
distorcido do poder no campo das artes como um todo.
Ser parcial e agressivo é, obviamente, pelo menos tão moderno
quanto ser moderado e estar à procura de manter o equilíbrio de poder.
Os movimentos modernos revolucionários, ou talvez alguém diga mo­
vimentos e Estados totalitários, também estão em busca do equilíbrio
de poder, mas eles acreditam que isso somente pode ser encontrado
por meio de permanente batalha, conflito e guerra. A arte colocada a
serviço desse equilíbrio de poder dinâmico e revolucionário assume,
necessariamente, o formato da propaganda política. Tal arte não se
reduz à representação do poder, elã participa da luta pelo poder que
interpreta como único meio através do qual o equilíbrio de poder pode
se revelar. Preciso confessar, agora, que meus próprios artigos organi­
zados neste livro são também motivados pelo desejo de contribuir para
certo equilíbrio de poder no mundo da arte atual, ou seja, encontrar
mais espaço nele para a arte como propaganda política.
Sob a condição de moderna, uma obra de arte pode ser pro­
duzida e apresentada ao público de duas maneiras: como merca­
doria ou como ferramenta de propaganda política. Obras de arte
produzidas sob esses dois regimes podem ser vistas como grossei­
ramente iguais. No entanto, nas condições do cenário contemporâ­
neo da arte, dispensa-se muito mais atenção à história da arte como
mercadoria do que à história da arte como propaganda política.
A arte oficial, bem como a não oficial, da União Soviética e de outros

is
antigos Estados socialistas permanece quase totalmente fora do foco
da história da arte contemporânea e do sistema de museus. O mesmo
pode ser dito sobre a arte da Alemanha nazista ou da Itália fascista,
patrocinadas pelo Estado. Ou sobre a arte do O e s te europeu, apoiada
e divulgada pelos partidos do L este comunista, sobretudo pelo Par­
tido Comunista Francês. A única exceção é a arte do Construtivismo
Russo que foi criada sob a NEP,1durante a reintrodução temporária do
mercado livre limitado na Rússia Soviética. Obviamente, houve razões
para que a arte politicamente engajada e produzida fora dos padrões
do mercado fosse negligenciada: depois da Segunda Guerra Mundial,
principalmente depois da mudança de regime nos antigos países do
Leste Europeu Socialista, o sistema comercial de produção e distribui­
ção de arte dominou a política. A concepção de arte tornou-se pratica­
mente sinônimo de mercado de arte, de tal forma que a arte produzida
em condições não mercantilistas era de fato excluída do campo da arte
institucionalizada. Essa recorrente exclusão é normalmente expressa
em termos morais: parece que se está muito preocupado com a éti­
ca para lidar com a arte “totalitária” do século XX que “perverteu” as
aspirações políticas “genuínas” da verdadeira arte utópica. Essa con­
cepção de “arte pervertida” como diferente de “arte genuína” é, ob­
viamente, muito problemática - é bastante curioso o fato de que esse
vocabulário é usado repetidas vezes por autores que estão prontos para
denunciar o uso da mesma concepção de perversão em outros con­
textos. É interessante que o mais severo dos julgamentos acerca da
dimensão moral do mercado livre nunca leva ninguém a concluir que
a arte que foi e é produzida conforme aquelas condições de mercado
deverá ser excluída de considerações críticas e históricas. É ainda ca­
racterístico desse pensamento que não só a arte oficial, mas também
a não oficial e dissidente dos países socialistas tende a ser negligen­
ciada pela teoria da arte dominante.
Mas o que quer que se pense sobre a dimensão moral da arte não
comercial e “totalitária” de fato não tem relevância. A representa­
ção da arte politicamente engajada dentro do mundo artístico não
tem nada a ver com o fato de alguém considerá-la moral ou estetica­
mente boa ou ruim - assim como ninguém perguntaria se A fo n te , de
Duchamp, é moral ou esteticamente boa ou ruim. Como rea d y -m a d e,

16
a mercadoria ganhou acesso ilimitado ao mundo da arte, mas a pro­
paganda política não. Assim, o equilíbrio de poder entre economia e
política na arte ficou distorcido. Não se pode evitar a suspeita de que
a exclusão da arte que não tenha sido produzida nos padrões do mer­
cado de arte tem apenas uma justificativa: o discurso artístico domi­
nante identifica a arte a partir de seu mercado, permanecendo cego
a qualquer arte que tenha sido produzida e distribuída por qualquer
mecanismo que não seja o mercado.
Significativamente, esse entendimento da arte é compartilhado
também pela maioria dos artistas e teóricos cujo objetivo é criticar a
mercantilização da arte - e que desejam que a arte seja, elã mesma,
crítica de sua própria mercantilização. No entanto, perceber a crítica à
comercialização como principal ou até mesmo único objetivo da arte
contemporânea serve simplesmente para reafirmar o poder total do
mercado de arte - mesmo que essa reafirmação assuma caráter crítico.
Dessa perspectiva, compreende-se que a arte é completamente impo­
tente, sem qualquer critério de escolha e lógica de desenvolvimento
imanentes. De acordo com esse tipo de análise, o mundo da arte está
totalmente ocupado por vários interesses comerciais que, em última
instância, ditam os critérios de inclusão e exclusão que o moldam.
A obra de arte apresenta-se, assim, como mercadoria infeliz, sofredo­
ra e totalmente submissa ao poder do mercado, diferenciando-se de
outras mercadorias apenas por sua habilidade de se tornar mercadoria
crítica e autocrítica. Essa ideia de mercadoria autocrítica é totalmente
paradoxal. A obra de arte (auto)crítica é um objeto-paradoxo que cabe
perfeitamente no paradigma dominante da arte moderna e contempo­
rânea. Portanto, a partir desse paradigma, não há nada a dizer contra
esse tipo de arte (auto)crítica - mas questiona-se se tal arte poderia
também ser compreendida como verdadeira arte política.
Obviamente, todos os envolvidos em qualquer tipo de prática
artística ou crítica estão interessados nessas questões: quem decide
o que é e o que não é arte? E quem decide o que é arte boa e o que
é arte ruim? É o artista, o curador, o crítico de arte, o colecionador,
o meio artístico como um todo, o mercado de arte, o público geral?
Parece-me, no entanto, que essa questão, ainda que tentadora, é cap­
ciosa. Quem quer que decida qualquer coisa sobre arte pode cometer

17
enganos; o público geral e democrático pode cometer enganos - e, de
fato, já o cometeu muitas vezes na história. Não devemos esquecer que
toda a arte de vanguarda foi produzida contra o gosto do público - até
mesmo, e principalmente, quando foi produzida em nome do gosto do
público. Isso significa que a democratização do público de arte não é
a solução. A educação do público também não é solução, porque toda
arte boa foi, e ainda é, produzida contra qualquer tipo de regra apre­
sentada pela educação. Uma crítica às regras existentes do mercado de
arte e às instituições de arte é, obviamente, legítima e necessária, mas
essa crítica só faz sentido se o objetivo fôr chamar nossa atenção para a
arte interessante e relevante que passa despercebida por essas institui­
ções. Além disso, como todos nós sabemos, se esse tipo de crítica tiver
sucesso, levará à inclusão dessa arte despercebida nas instituições, e,
em última análise, a um maior equilíbrio delas. A crítica interna do
mercado de arte é capaz de melhorá-lo até certo ponto, mas não é
capaz de mudá-lo fundamentalmente.
A arte se torna politicamente efetiva só quando é feita para além
ou para fora do mercado de arte - no contexto de propaganda política
direta. Tal arte foi feita nos antigos países socialistas. Exemplos atuais
incluem os vídeos e os pôsteres islâmicos que funcionam no contexto
do movimento internacional antiglobalização. Obviamente, esse tipo
de arte obtém apoio financeiro do Estado ou de vários movimentos po­
líticos e religiosos. No entanto, a produção, a avaliação e a distribuição
não seguem a lógica do mercado. Esse tipo de arte não é mercadoria.
Principalmente sob as regras da economia socialista do tipo soviética,
a obra de arte não era mercadoria, porque não havia mercado. Elã não
foi criada para consumidores individuais que deveriam ser comprado­
res em potencial, mas para a massa que deveria absorver e aceitar sua
mensagem ideológica.
Pode-se argumentar que essa arte de propaganda é um simples
d esig n político e mera construção de imagem. Isso significa que, no
contexto de propaganda política, a arte permanece tão sem poder
quanto no contexto do mercado de arte. Esse julgamento é, de certa
forma, tanto uma verdade quanto uma inverdade. É claro que os artis­
tas que trabalham no contexto da propaganda não são, para usar uma
expressão contemporânea de gerenciamento, provedores de conteúdo.

18
Eles fazem propaganda com certo objetivo ideológico - e subordinam
sua arte a esse objetivo. Mas então o que é, realmente, esse objetivo
propriamente dito? Toda ideologia é baseada em certa visão, em certa
imagem do futuro - seja elã uma imagem do paraíso, de uma socie­
dade comunista ou de uma revolução permanente. É isso o que sina­
liza a fundamental diferença entre mercadoria e propaganda política.
O mercado funciona por uma “mão invisível” , é meramente uma sus­
peita obscura; ele faz circular imagens, mas não possui sua própria
imagem. Em contraste, o poder de uma ideologia é sempre, em última
análise, o poder da visão. E isso significa que, ao servir qualquer ideo­
logia política ou religiosa, um artista serve, essencialmente, à arte. Por
isso, um artista pode desafiar um regime baseado numa visão ideoló­
gica de forma tão mais eficaz que a forma como ele ou elã pode desafiar
o mercado. Um artista atua no mesmo território da ideologia. O poten­
cial afirmativo e crítico da arte revela-se, portanto, muito mais pode­
roso e produtivo no contexto da política que no contexto do mercado.
Ao mesmo tempo, a obra de arte permanece, no regime ideoló­
gico, um objeto-paradoxo. Isto é, toda visão ideológica é apenas uma
imagem prometida - uma imagem de o que está por vir. A materia­
lização e a realização da visão ideológica devem sempre ser adiadas
- até o fim apocalíptico da história ou até a comunidade vindoura do
futuro. Assim, toda arte motivada por uma ideologia rompe ou quebra
necessariamente com a política de diferimento, porque a arte é sem­
pre feita aqui e agora. Obviamente, a arte motivada por uma ideolo­
gia pode sempre ser interpretada como prefiguração e antecipação da
verdadeira visão do que está por vir. Mas essa arte também pode ser
vista, ao mesmo tempo, como paródia, crítica e difamação dessa visão
- como evidência de que nada mudará nesse mundo, ainda que a visão
ideológica se faça carne. A substituição da visão ideológica pela obra
de arte é a comutação do tempo sagrado da esperança infinita pelo
tempo profano dos arquivos e da memória histórica. Isso significa que
toda arte motivada por uma ideologia - seja elã religiosa, comunista
ou fascista - é sempre, a priori, afirmativa e crítica ao mesmo tem­
po. Toda realização de certo projeto - religioso, ideológico ou técnico
- é também e sempre uma negação desse projeto, o fim desse projeto
como tal. Toda obra de arte que apresenta uma visão que orienta certa

19
ideologia religiosa ou política torna essa visão profana e, portanto, tor­
na-se objeto-paradoxo.
Atualmente, a arte motivada por uma ideologia não é simples­
mente coisa do passado ou de movimentos marginais ideológicos
e políticos. Hoje, a principal corrente da arte ocidental funciona tam
bém, e cada vez mais, como propaganda ideológica. Essa arte é feita e
exposta também para a massa, para os que não necessariamente dese­
jam comprá la - na verdade, os não compradores constituem o esma
gador e sempre crescente público de arte, como frequentemente fica
evidente nas conhecidas e internacionais bienais, trienais e assim por
diante. Essas exposições não devem ser confundidas com meros lo­
cais de autopromoção e de glorificação dos valores do mercado de arte.
Mas elas tentam, repetidas vezes, criar e demonstrar um equilíbrio de
poder entre tendências artísticas contraditórias, atitudes estéticas e
estratégias de representação - para oferecer uma imagem idealizada
e selecionada desse equilíbrio.
A luta contra o poder da ideologia tradicionalmente assumiu a
forma de luta contra o poder da imagem. O pensamento anti-ide-
ológico, crítico e erudito sempre tentou se livrar de imagens, ten­
tou destruí-las ou, pelo menos, desconstruí-las - com o objetivo
de substituir imagens por conceitos invisíveis, puramente racionais.
O anúncio feito por Hegel de que a arte é coisa do passado e que nossa
époque tornou-se a ép oqu e do conceito foi uma proclamação da vitó­
ria do Iluminismo iconoclasta sobre a iconofilia cristã. Obviamen­
te, naquele momento, Hegel estava certo em seu diagnóstico, mas
ele negligenciou a possibilidade da arte conceitual. A arte moderna
tem repetidamente demonstrado seu poder ao se apropriar de gestos
iconoclastas direcionados contra si e ao transformar esses gestos em
novas formas de produção artística. A arte moderna se posicionou
como objeto-paradoxo também nesse sentido mais profundo - como
imagem e, ao mesmo tempo, como crítica à imagem.
Isso garantiu à arte a oportunidade de sobrevivência em condi­
ções de secularização e desidealização radical - numa perspectiva
que vai muito além daquela de ser mera mercadoria no mercado de arte.
Nossa era supostamente pós-ideológica tem sua própria imagem: expo­
sição internacional prestigiosa como imagem do perfeito equilíbrio de

20
poder. O desejo de se livrar de qualquer imagem só pode ser realizado
através de uma nova imagem - a imagem de uma crítica à imagem.
Essa figura fundamental - a apropriação artística da iconoclastia que
produz o objeto-paradoxo que chamamos obra de arte moderna -
é tema, tanto direto quanto indireto, dos textos que seguem.

21
ft
A L 0 G I C A

D O S

D I R E I T O S

E S T É T I C O S

I G U A I S

Se quisermos falar da habilidade da arte de resistir à pressão exter­


na, primeiramente deve-se responder à seguinte pergunta: a arte tem
um território próprio que vale a pena ser defendido? A autonomia da
arte tem sido negada em várias discussões recentes sobre teoria
da arte. Se estas estiverem corretas, a arte não pode ser fonte de qual­
quer resistência. Na melhor das hipóteses, a arte poderia ser utiliza­
da meramente para criar, para estetizar os movimentos de oposição e
de emancipação já existentes, ou seja, poderia ser, quando muito, um
mero suplemento para a política. Isso me parece ser a pergunta crucial:
a arte tem algum poder próprio ou somente é capaz de decorar poderes
externos — sejam eles opressores ou libertadores? Assim, a pergunta
sobre a autonomia da arte me parece ser a questão central no contexto
de qualquer discussão sobre o relacionamento entre arte e resistência.
E minha resposta para essa pergunta é: sim, podemos falar em autono­
mia da arte e, sim, a arte tem um poder autônomo de resistência.
O fato de a arte ter essa autonomia não significa que as insti­
tuições de arte, o sistema de arte, o mundo artístico ou o mercado
de arte possam ser vistos como autônomos em qualquer significado

25
da palavra. Isto porque o funcionamento do sistema da arte é basea­
do em certos juízos de valor estético, em certos critérios de escolha,
regras de inclusão ou exclusão e similares. Todos esses julgamentos
de valor, critérios e regras, obviamente, não são autônomos. Ao invés
disso, eles refletem as convenções sociais e as estruturas de poder
dominantes. Podemos, seguramente, dizer que não há nada como um
sistema de valor puramente estético, essencialmente artístico e au­
tônomo que possa regulamentar o mundo artístico em sua totalidade.
Esse entendimento levou vários artistas e teóricos à conclusão de que
a arte como tal não é autônoma, porque a autonomia da arte era - e
ainda é - pensada como dependente da autonomia do julgamento de
valor estético. No entanto, eu sugiro que é precisamente essa ausên­
cia de qualquer julgamento de valor essencial e puramente estético
que garante a autonomia da arte. O território da arte é organizado ao
redor da falta, ou melhor, da rejeição a qualquer julgamento estéti­
co. Dessa forma, a autonomia da arte implica não numa hierarquia
autônoma do gosto, mas na abolição de toda hierarquia desse tipo e
no estabelecimento do regime de direitos estéticos iguais para toda
obra de arte. O mundo da arte deveria ser visto como a manifesta­
ção socialmente codificada da igualdade fundamental entre todas as
formas visuais, objetos e mídias. Somente a partir dessa hipótese da
igualdade estética fundamental de toda obra de arte podem todos os
julgamentos de valor, todas as exclusões ou inclusões, serem poten­
cialmente reconhecidos como resultado da intrusão heterônoma na
esfera autônoma da arte - como o efeito da pressão exercida por for­
ças e poderes externos. É esse reconhecimento que abre a possibilida­
de de resistência em nome da autonomia da arte, isto é, em nome da
igualdade de todas as formas de arte e mídia. Mas, obviamente, quero
que a “arte” seja entendida como resultado de uma longa batalha por
reconhecimento que aconteceu ao longo da modernidade.
Arte e política inicialmente se conectam em um aspecto funda­
mental: ambas são esferas em que há luta por reconhecimento. Con­
forme foi definido por Alexander Kojève em seu comentário sobre
Hegel, esta ultrapassa a habitual luta pela distribuição de bens mate­
riais, que na modernidade é normalmente controlada pelas forças do
mercado. O que está em jogo aqui não é meramente que certo desejo

26
seja satisfeito, mas que seja também reconhecido como socialmente
legítimo.1Enquanto a política é uma arena em que vários grupos de in­
teresse lutaram por reconhecimento, tanto no passado quanto no pre­
sente, artistas da vanguarda clássica competiram principalmente pelo
reconhecimento de formas individuais e procedimentos artísticos que
não eram anteriormente considerados legítimos. A vanguarda clássi­
ca lutou para alcançar reconhecimento de todos os signos, formas e
coisas como objetos legítimos de desejo artístico e, por conseguinte,
também como objetos legítimos de representação em arte. Ambas as
formas de luta estão intrinsecamente interligadas e têm como objetivo
uma situação em que todas as pessoas, com seus interesses variados,
assim como são suas formas e procedimentos artísticos, finalrnente te­
rão garantidos seu direito à igualdade.
A vanguarda clássica já abriu o campo horizontal de todas as
formas pictóricas possíveis, todas alinhadas, lado a lado, com direi­
tos iguais. Uma após a outra, as chamadas obras de arte primitivas,
formas abstratas e simples objetos corriqueiros adquiriram o tipo de
reconhecimento que outrora só seria concedido às obras-primas his­
toricamente privilegiadas. Essa equalização de práticas artísticas tem
progressivamente se tornado mais pronunciada ao longo do século XX,
enquanto as imagens de cultura de massa, entretenimento e k itsch re­
ceberam o mesmo status dentro do contexto da alta arte tradicional.
Ao mesmo tempo, essa política de direitos estéticos iguais, essa luta
pela igualdade estética entre todas as formas e mídias visuais que a
arte moderna lutou para estabelecer era, e até hoje ainda é, frequen­
temente criticada como expressão de cinismo e, paradoxalmente, de
elitismo. Essa crítica tem sido direcionada à arte moderna tanto pela
direita quanto pela esquerda - como falta de amor genuíno pela arte
ou de envolvimento político genuíno, de engajamento político. No en­
tanto, de fato, essa política de direitos iguais em nível estético, em nível
de valor estético, é pré-requisito para qualquer engajamento político.
Com efeito, a política contemporânea de emancipação é uma políti­
ca de inclusão - direcionada contra a exclusão de minorias políticas
e econômicas. Mas essa luta por inclusão é possível somente se as for­
mas, em que desejos de minorias excluídas se manifestam, não forem
rejeitadas e suprimidas desde o começo por qualquer tipo de censura

27
estética operando em nome de valores estéticos mais elevados. Somente
na pressuposição da igualdade de todas as formas e mídias visuais em
nível estético é possível resistir à desigualdade factual entre as imagens
- como imposto pelo ambiente exterior e refletindo desigualdades cul­
turais, sociais, políticas e econômicas.
Como Kojève já ressaltou, quando a lógica geral de igualdade sub­
jacente a lutas individuais por reconhecimento se torna aparente, cria-
-se a impressão de que essas lutas, até certo ponto, entregaram sua ver­
dadeira seriedade e seu caráter explosivo.2É por isso que, mesmo antes
da Segunda Guerra Mundial, Kojève foi capaz de falar sobre o fim da
história - no sentido de história política das lutas por reconhecimento.
Desde então, esse discurso sobre o fim da história deixou sua marca
principalmente no cenário artístico. As pessoas se referem sempre ao
fim da história da arte querendo dizer que, hoje em dia, todas as formas
e coisas são, a p riori, consideradas obras de arte. Sob essa premissa, a
luta pelo reconhecimento e igualdade na arte alcançou seu final lógico
- e, portanto, tornou-se desatualizada e supérflua, pois, como foi dis­
cutido, se as imagens já são consideradas como tendo igual valor, isso
aparentemente privaria o artista da possibilidade de quebrar tabus, pro­
vocar, chocar ou ampliar as fronteiras do aceitável. Em vez disso, quando
a história chegar ao fim, cada artista será suspeito de ter produzido ape­
nas mais uma imagem arbitrária entre várias. Se esse fosse mesmo o
caso, o regime de direitos iguais teria que ser visto não somente como
o telos da lógica seguido pela história da arte moderna, mas também
como sua negação última.
Em consequência, atualmente testemunhamos repetidas ondas de
nostalgia por um tempo em que certas obras de arte individuais eram
reverenciadas como obras-primas preciosas e singulares. Por outro lado,
vários protagonistas do mundo da arte acreditam que agora, depois do
fim da história da arte, o único critério que restou para mensurar a qua­
lidade de uma obra de arte individual é seu sucesso no mercado de arte.
Obviamente, o artista também pode dispor de sua arte como instru­
mento político no contexto de várias lutas políticas contínuas - como
ato de compromisso político. No entanto, este é visto principalmente
como alheio à arte, determinado a instrumentalizar a arte para interes­
ses e objetivos políticos externos. Pior ainda, essa atitude também pode

28
ser tomada como mera publicidade para a obra de um artista através da
busca de um perfil político. Essa suspeita de exploração comercial
da atenção midiática por meio de compromisso político impede até
mesmo as tentativas mais ambiciosas de politizar a arte.
Contudo, a igualdade de todas as formas visuais e da mídia em
termos de valor estético não significa a obliteração de todas as dife­
renças entre arte boa e arte ruim. O caso é bem o oposto. A arte boa
é, precisamente, a prática que visa à confirmação dessa igualdade.
E essa confirmação é necessária porque a igualdade estética formal não
assegura a igualdade factual de formas e mídias em termos de produ­
ção e distribuição. Pode-se dizer que a arte atual age no espaço entre a
igualdade formal de todas as formas de arte e sua desigualdade factual.
É por isso que pode haver e há “boa arte” - mesmo que todas as obras
de arte tenham direitos estéticos iguais. A boa obra de arte é precisa-
mente aquela que afirma a igualdade formal de todas as imagens sob as
condições de sua desigualdade factual. Esse gesto é sempre contextuai
e historicamente específico, mas também tem importância paradig­
mática como modelo para futuras repetições de tal gesto. Assim, críti­
cas sociais ou políticas em nome da arte possuem uma dimensão afir­
mativa que transcende seu contexto histórico imediato. Ao criticar as
hierarquias de valores - social, cultural, política ou economicamente
impostos - a arte afirma a igualdade estética como garantia de sua ver­
dadeira autonomia.
O artista do Antigo Regime estava determinado a criar uma obra-
-prima, uma imagem que existiria, por si só, como a visualização úl­
tima das ideias abstratas sobre a verdade e a beleza. Na modernida­
de, por outro lado, os artistas tendem a apresentar exemplos de uma
sequência infinita de imagens - como Kandinsky fez com composi­
ções abstratas; como Duchamp fez com r e a d y -m a d es ; como Warhol
fez com ícones da cultura de massa. A fonte do impacto exercido por
essas imagens na subsequente produção artística repousa não em sua
exclusividade, mas em sua capacidade de funcionar como mero exem­
plo da potencialmente infinita variedade de imagens. Elas não apenas
se apresentam, mas também agem como indicadores da inesgotá­
vel massa de imagens das quais são representantes de igual prestígio.
É precisamente essa referência à infinita multiplicidade de imagens

29
excluídas que empresta a esses espécimes individuais sua fascinação
e significância no contexto finito da representação política e artística.
Consequentemente, não é à infmitude “vertical” da verdade
divina que o artista hoje se refere, mas à infmitude “horizontal” de
imagens esteticamente iguais. Sem dúvida, cada referência a essa in-
fmitude precisa ser estrategicamente escrutinada e manejada, se se
pretende que seu uso em qualquer contexto representativo específico
seja eficaz. Algumas imagens, inseridas por artistas no contexto do
cenário internacional da arte, sinalizam sua origem étnica ou cul­
tural particular. Essas imagens resistem ao controle estético norma­
tivo exercido pela atual mídia de massa que evita todo regionalismo.
Ao mesmo tempo, outros artistas transplantam imagens produzidas
pela mídia de massa para o contexto de suas próprias culturas regio­
nais como meio de escapar das dimensões provincianas e folclóricas de
seus ambientes imediatos. Inicialmente, ambas as estratégias artísticas
parecem ser opostas: uma abordagem enfatiza imagens que denotam
uma identidade cultural nacional, enquanto a outra, ao contrário, pre­
fere tudo que é internacional, globalizado e relacionado à mídia. Essas
duas estratégias são ostensivamente antagônicas: ambas referem-se a
algo que é excluído de um contexto cultural específico. No primeiro
caso, a exclusão discrimina imagens regionais; no segundo, imagens
da mídia de massa. Mas nas duas instâncias as imagens em questão
são, simplesmente, exemplos que apontam para a infinita e “utópi­
ca” esfera da igualdade estética. Esses exemplos poderiam nos indu­
zir à conclusão equivocada de que a arte contemporânea sempre age
e x n eg a tiv o , de que seu reflexo, em qualquer circunstância, é adotar
uma posição crítica meramente em prol de ser crítica. Mas esse não
é o caso, de forma alguma: todos os exemplos de posicionamento
crítico, em última análise, referem-se à visão única, absolutamente
positiva, afirmativa, libertadora e utópica de uma esfera infinita de
imagens dotadas de direito à igualdade estética.
Esse tipo de crítica em nome da igualdade estética é tão necessá­
rio hoje como nunca. A mídia de massa contemporânea emergiu até
agora como a maior e mais poderosa máquina de produção de ima­
gens - imensamente mais extensa e efetiva que nosso sistema contem­
porâneo de arte. Somos constantemente alimentados por imagens de

30
guerra, terror e catástrofes de todo tipo, num nível de produção com o
qual o artista, com suas habilidades artesanais, não consegue competir.
Enquanto isso, a política também passou para o domínio da imagem
produzida pela mídia. Hoje em dia, todo grande político gera milha­
res de imagens através de aparições públicas. Analogamente, políticos
agora estão sendo cada vez mais julgados pela estética de seu desem­
penho. Essa situação é frequentemente lamentada por ser indicativo
de que “conteúdo” e “questões” foram mascarados pela “aparição na
mídia” . No entanto, essa crescente estetização da política nos oferece,
ao mesmo tempo, uma oportunidade de analisar e criticar o desem­
penho político em termos artísticos. Isto é, a política midiática atua
no terreno da arte. À primeira vista, a diversidade das imagens da mí­
dia pode parecer imensa, se não quase incomensurável. Se imagens
de política e guerra forem adicionadas às da propaganda, do cinema
comercial e do entretenimento, parece que o artista - o último arte­
são da modernidade atual - fica sem oportunidade de rivalizar com a
supremacia dessas máquinas geradoras de imagens. Mas, na realida­
de, a diversidade de imagens circulando na mídia é altamente limi­
tada. De fato, para que sejam efetivamente propagadas e exploradas
na mídia de massa comercial, as imagens precisam ser facilmente
reconhecidas pelo vasto público alvo, fazendo com que a mídia de mas­
sa seja praticamente tautológica. A variedade de imagens circulando
na mídia de massa é muito mais limitada do que o grupo de imagens
preservadas, por exemplo, em museus, ou produzidas pela arte con­
temporânea. É por isso que é necessário manter os museus e em geral
institutos de arte como lugares onde o vocabulário visual da mídia de
massa contemporânea possa ser criticamente comparado à herança
artística das épocas anteriores, e onde possamos redescobrir visões
e projetos artísticos que indicam a introdução da igualdade estética.
Os museus, cada vez mais, estão sendo vistos com ceticismo e
desconfiança, tanto por quem está inserido na arte quanto pelo públi­
co em geral. Por todo lado, ouve-se repetidamente que os limites insti­
tucionais do museu devem ser transgredidos, desconstruídos ou sim­
plesmente removidos para dar à arte contemporânea liberdade total
para se afirmar na vida real. Tais apelos e exigências se tornaram lugar -
- comum a ponto de agora serem considerados atributo fundamental

31
da arte contemporânea. Esses pedidos pela abolição do museu pare­
cem seguir estratégias anteriores da vanguarda e, como resultado, são
aceitos com entusiasmo pela comunidade de arte contemporânea. Mas
as aparências enganam. O contexto, o significado e a função desses pe­
didos pela abolição do sistema do museu passaram por uma mudança
fundamental desde a época das vanguardas, mesmo que, à primeira
vista, eles pareçam tão familiares. Gostos predominantes no século
XIX e na primeira metade do século XX foram definidos e incorpora­
dos pelo museu. Nessas circunstâncias, qualquer protesto direcionado
ao museu era simultaneamente um protesto contra as normas predo­
minantes do fazer artístico - , assim como era a base a partir da qual a
arte nova e inovadora poderia evoluir. Em nosso tempo, no entanto, o
museu tem sido indiscutivelmente despojado de seu papel normativo.
Agora, o público geral define sua noção de arte a partir de propagan­
das, vídeos da MTV, videogames e sucessos de Hollywood. No contexto
contemporâneo de gosto criado pela mídia, o pedido para abando­
nar e desmantelar o museu enquanto instituição assumiu, necessa­
riamente, um sentido totalmente diferente de quando foi enunciado
na era vanguardista. Hoje em dia quando as pessoas falam de “vida
real” , o que normalmente querem dizer é mercado da mídia global.
E isso significa: o atual protesto contra o museu não é mais parte de
uma luta travada contra o gosto normativo em nome da igualdade es­
tética, mas, ao contrário, tem como objetivo estabilizar e arraigar gos­
tos atualmente predominantes.
As instituições de arte, entretanto, ainda são retratadas na mídia
como lugares de seleção, onde especialistas, pessoas envolvidas e os
poucos iniciados aprovam o julgamento preliminar acerca do que é
permitido ser classificado como arte em geral e, principalmente, do que
é “boa” arte. Assume-se que esse processo de seleção seja baseado em
critérios que, para uma maior audiência, devem parecer imperscru­
táveis, incompreensíveis e, finalrnente, irrelevantes. Em consequência,
é de se perguntar por que seria necessário alguém para decidir o
que é arte e o que não é. Por que não podemos simplesmente esco­
lher por nós mesmos o que queremos reconhecer ou apreciar como
arte sem ouvir um intermediário, sem os condescendentes conselhos
de curadores e críticos de arte? Por que a arte se recusa a procurar

32
legitimidade no mercado aberto como qualquer outro produto?
Da perspectiva da midia de massa, as aspirações tradicionais do museu
parecem historicamente obsoletas, fora de alcance, falsas e até mesmo,
de certa forma, bizarras. E a arte contemporânea, cada vez mais, de­
monstra ânsia de seguir as tentações da era da mídia de massa, volun­
tariamente abandonando o museu em busca de ser disseminada atra­
vés dos canais da mídia. É claro que a prontidão por parte de vários
artistas em se envolverem com a mídia, com comunicação pública e
política mais amplas - em outras palavras, em se engajarem na “vida
real” além dos limites do museu - é bastante compreensível. Esse tipo
de abertura permite ao artista abordar e seduzir uma audiência mui­
to maior; é também uma maneira decente de ganhar dinheiro - para
isso o artista, anteriormente, precisava implorar ao Estado ou a patro­
cinadores privados. Isso lhe dá uma nova sensação de poder, relevân­
cia social e presença pública, em vez de forçá-lo a batalhar por uma
existência despretensiosa como o parente pobre da mídia. Portanto, o
pedido para se libertar do museu corresponde, de fato, ao pedido de
empacotar e comercializar a arte, ao acomodá-la a normas estéticas
geradas pela mídia de massa atual.
O abandono do passado “museografizado” é também frequen­
temente celebrado como a abertura radical para o presente. Mas abrir
para o vasto mundo exterior os espaços restritos do sistema de arte pro­
duz, ao contrário, certa cegueira ao que é contemporâneo e atual. Falta,
ao mercado da mídia global, principalmente a memória histórica que
permitiria ao espectador comparar o passado com o presente e a partir
daí determinar o que é verdadeiramente novo e genuinamente contem­
porâneo sobre o presente. A variedade de produtos no mercado midiá-
tico é constantemente substituída por novas mercadorias, eliminando-
-se qualquer possibilidade de comparação entre o que é oferecido hoje
com o que estava disponível no passado. Como resultado, o novo e o
presente são discutidos em termos de o que está na moda. Mas o que
está na moda não é, de forma alguma, por si só evidente ou incontestá­
vel. Enquanto é fácil argumentar que, na era da mídia de massa nossa
vida é predominantemente ditada pela moda, de repente ficamos bas­
tante confusos quando nos pedem para dizer, com precisão, o que está
em voga agora. Quem pode realmente dizer o que está na moda num

33
dado momento? Por exemplo, se algo parece estar na moda em Berlim,
alguém poderia rapidamente assinalar que essa tendência há muito
tempo saiu de moda, ao avaliar o que está atualmente na moda, diga­
mos, em Tóquio ou Los Angeles. Mas quem pode garantir que a mes­
ma moda de Berlim náo vai, algum dia, estar nas ruas de Los Angeles
ou Tóquio? Quando chega o momento de avaliar o mercado, estamos,
de fato, à mercê dos conselhos dados pelos gurus do mercado, os su­
postos especialistas da moda internacional. No entanto, tais conselhos
não podem ser verificados por qualquer consumidor individual, já que,
como todos sabem, o mercado global é vasto demais para que alguém
possa, sozinho, sondá-lo. Dessa forma, onde o mercado midiático está
focado tem-se a impressão simultânea de ser implacavelmente bom­
bardeado pelo novo e de também ser permanentemente testemunha
do retomo do mesmo. A familiar reclamação de que não há nada de
novo na arte tem a mesma origem da acusação oposta de que a arte está
sempre lutando para parecer nova. Enquanto a mídia fôr o único ponto
de referência, simplesmente faltará ao observador qualquer contexto
comparativo que proporcione a ele, ou a elã, os meios de efetivamente
distinguir o velho do novo, o mesmo do diferente.
De fato, somente o museu oferece ao observador a oportunidade
de diferenciar o velho do novo, o passado do presente. Pois os museus
são repositórios de memória histórica, e são também o lugar onde as
imagens e coisas que no momento saíram de moda, que se tornaram
velhas e obsoletas, são mantidas e mostradas. Desse modo, somente o
museu pode servir de local para uma comparação histórica sistemática
que nos possibilita ver com nossos próprios olhos o que realmente é
diferente, novo e contemporâneo. O mesmo, incidentalmente, aplica-
-se à afirmação sobre o que é diferença cultural ou identidade cultu­
ral que nos bombardeia persistentemente na mídia. A fim de desafiar
criticamente essas reivindicações, novamente exigimos alguma forma
de modelo comparativo. Onde tal comparação não é possível, todas as
reivindicações de diferença e identidade alegadas permanecem infun­
dadas e vazias. De fato, toda exposição importante de arte num museu
oferece tal comparação, mesmo que isso não esteja explícito, pois cada
exposição num museu se inscreve na história das exposições docu­
mentadas no sistema de arte.

34
Obviamente, as estratégias de comparação seguidas por curadores
e críticos individuais podem, por sua vez, ser criticadas, mas tal crítica
só é possível porque eles também podem ser avaliados a partir das estra­
tégias de curadoria mantidas pela memória artística. Em outras palavras,
a simples ideia de abandonar ou mesmo abolir o museu eliminaria a pos­
sibilidade de haver uma investigação crítica sobre as reivindicações de
inovação e diferença com as quais somos constantemente confrontados
na mídia atual. Isso também explica porque os critérios de seleção mani­
festados por projetos contemporâneos de curadoria tão frequentemente
diferem daqueles predominantes na mídia de massa. A questão aqui
não é que curadores e iniciados na arte têm gostos exclusivos e elitistas
muito distintos daqueles do público geral, mas sim que o museu oferece
meios de comparar o presente e o passado que repetidamente chegam a
conclusões que não as sugeridas pela mídia. Um observador individual
não estaria necessariamente na posição de aceitar tal comparação se a
mídia fosse tudo o que ele tivesse em que se apoiar. Então, dificilmen­
te surpreende o fato de que a mídia acabe por adotar o diagnóstico do
museu quanto ao que é contemporâneo a respeito do presente, simples­
mente porque elã, por si só, é incapaz de fazer seu próprio diagnóstico.
Dessa forma, os museus de hoje são elaborados para não somen­
te colecionar o passado, mas também para criar o presente a partir da
comparação entre velho e novo. O novo, aqui, é algo não meramente
diferente, mas sim uma reafirmação da igualdade estética fundamen­
tal de todas as imagens num dado contexto histórico. A mídia de massa
constantemente renova a reivindicação de confrontar o espectador com
a arte diferente, inovadora, provocativa, verdadeira e autêntica. O siste­
ma de arte, ao contrário, mantém a promessa de igualdade estética que
solapa qualquer reivindicação como essa. Em primeiro lugar, o museu
é um local onde somos lembrados dos projetos igualitários do passado
e onde podemos aprender a resistir à ditadura do gosto contemporâneo.

(“The Logic of Equal Aesthetic Rights” , originalmente publicado como “ La política de


la igualdad de derechos estéticos/The Politics of Aesthetic Equal Rights” , R e sistê n cia /

Resistance, p. 48-58, 201-210, 2004. Edicion de la Memória, SITAC, México. Tradução


para o inglês de Steven Lindberg.)

35
S O B R E

O N O V O

Em décadas recentes, o discurso sobre a impossibilidade do novo na


arte tornou-se especialmente divulgado e influente. Sua característi­
ca mais interessante é certo sentimento de felicidade, de entusiasmo
positivo quanto a esse suposto fim do novo - certa satisfação interna
que esse discurso produz no meio cultural contemporâneo. De fato, a
inicial tristeza pós-moderna com relação ao fim da história acabou.
Agora, parece que estamos felizes com a perda da história, da ideia de
progresso, do futuro utópico - todas as coisas tradicionalmente co­
nectadas ao fenômeno do novo. A liberação da obrigação de ser histo­
ricamente nova parece ser uma grande vitória da vida sobre narrati­
vas históricas anteriormente predominantes, que tendiam a subjugar,
ideologizar e formalizar a realidade. Dado que experimentamos a his­
tória da arte antes de tudo como elã é representada em nossos museus,
a liberação do novo, compreendida como liberação da história da arte
- e, nesse caso, da história como tal - é vivida pelo mundo da arte, em
primeiro lugar, como uma oportunidade de escapar do museu. Escapar
do museu significa tomar-se popular, viva e presente fora do círculo
fechado do mundo estabelecido da arte, além das paredes do museu.
Parece-me, portanto, que o entusiasmo positivo com relação ao fim do

37
novo na arte está ligado, em primeiro lugar, a essa promessa de trazer
arte para a vida - além de todas as construções e considerações histó­
ricas, além da oposição entre o velho e o novo.
Artistas, assim como os teóricos da arte, estão felizes por final­
rnente estarem livres do fardo da história, da necessidade de dar o
próximo passo e da obrigação de estarem em conformidade com as
leis históricas e as exigências daquilo que é historicamente novo. Em
vez disso, esses artistas e teóricos querem estar política e cultural­
mente engajados na realidade social; querem refletir sobre sua pró­
pria identidade cultural, expressar seus desejos individuais e assim
por diante. Mas, antes de tudo, querem se mostrar verdadeiramente
vivos e reais - em oposição às construções históricas abstratas e mor­
tas representadas pelo sistema de museu e pelo mercado de arte. Esse
é, obviamente, um desejo completamente legítimo. Entretanto, para
realizar esse desejo e fazer uma arte verdadeiramente viva, precisa­
mos responder à seguinte pergunta: Quando e em que condições a
arte parece estar mais viva?
Há uma tradição profundamente arraigada na modernidade de
difamar a história, o museu, a biblioteca ou, de modo mais geral,
de difamar o arquivo em nome da vida real. A biblioteca e o museu
são os objetos preferidos do intenso ódio da maioria dos escritores e
artistas modernos. Rousseau admirou a destruição da famosa antiga
Biblioteca de Alexandria; Fausto, de Goethe, estava preparado para
assinar um contrato com o diabo se ele pudesse se livrar da bibliote­
ca (e da obrigação de ler seus livros). Nos textos de artistas e teóricos
modernos, o museu é repetidamente descrito como um cemitério
da arte, e curadores de museu, como coveiros. De acordo com essa
tradição, a morte do museu - e da história da arte incorporada pelo
museu - deve ser interpretada como a ressurreição da arte verda­
deira e viva, como uma virada em direção à realidade, à vida, em
direção ao grande Outro: se o museu morrer é a própria morte que
morrerá. De repente nos tornamos livres, como se tivéssemos esca­
pado de uma forma de escravidão egípcia e estivéssemos preparados
para viajar para a Terra Prometida da verdadeira vida. Tudo isso é
bastante compreensível, mesmo que não seja tão óbvio o p o rq u ê de o
cativeiro egípcio da arte ter chegado ao fim agora.

38
No entanto, a questão pela qual tenho mais interesse neste mo­
mento é, como disse, diferente: Por que a arte prefere estar viva a estar
morta? E o que significa para a arte estar viva, ou parecer viva? Tentarei
mostrar que é a lógica interna da ação de colecionar dos museus que
leva o artista a mergulhar na realidade - na vida - e fazer uma arte
que é percebida como viva. Também tentarei mostrar que “estar viva”
significa, de fato, nada mais nada menos que ser nova.
Parece-me que os numerosos discursos sobre memória histórica
e sua representação frequentemente negligenciam a relação comple­
mentar que existe entre realidade e museu. O museu não é secundário
à história “real” , e nem é meramente uma reflexão e registro do que
“realmente” aconteceu além de suas paredes conforme às leis autôno­
mas do desenvolvimento histórico. O contrário é verdade: a “realida­
de” , propriamente dita, é secundária em relação ao museu - o “real”
somente pode ser definido em comparação com a coleção do museu.
Isso significa que qualquer mudança na coleção do museu provoca
uma mudança em nossa percepção da realidade como tal - , afinal de
contas, a realidade pode ser definida nesse contexto como a soma de to­
das as coisas que ainda não são colecionadas. Logo, a história não pode
ser compreendida como um processo totalmente autônomo que acon­
tece além das paredes do museu. A imagem que fazemos da realidade
depende de nosso conhecimento do museu.
Um caso demonstra claramente que a relação entre realidade e
museu é mútua: o caso do museu de arte. Artistas modernos que tra­
balham após a emergência do museu moderno sabem (apesar de todos
seus protestos e ressentimentos) que trabalham principalmente para a
coleção do museu - pelo menos se eles trabalham no contexto da cha­
mada alta arte. Esses artistas sabem, desde o começo, que serão cole­
cionados - e eles, na verdade, querem ser colecionados. Enquanto os
dinossauros não sabiam que eventualmente acabariam representados
em museus de história natural, os artistas, por outro lado, sabem que
podem ser representados em museus de história da arte. Tanto quan­
to o comportamento dos dinossauros não era - pelo menos até certo
ponto - afetado pela sua futura representação nos museus modernos,
o comportamento dos artistas modernos é afetado pela consciência de
tal possibilidade de forma bastante substancial. É óbvio que o museu

39
aceita apenas coisas retiradas da vida real, de fora de suas coleções,
e isso explica por que o artista quer fazer sua obra parecer real e viva.
O que já é apresentado no museu é automaticamente considera­
do algo pertencente ao passado, já morto. Se, fora do museu, encon­
trarmos algo que nos faça pensar nas formas, posições e abordagens
já representadas dentro do museu, náo veremos essa coisa como real
ou viva, mas como cópia morta do passado morto. Portanto, se um ar­
tista disser (como a maioria deles diz) que ele ou elã quer escapar do
museu para entrar na vida propriamente dita, para ser real, para fazer
arte verdadeiramente viva, isso apenas quer dizer que o artista deseja
ser colecionado. Isto porque a única possibilidade de ser colecionado
é transcendendo o museu e entrando na vida, no sentido de fazer algo
diferente daquilo que já foi colecionado. Novamente: apenas o novo
pode ser reconhecido pelo olhar treinado pelo museu como real, pre­
sente e vivo. Se você repete a arte já colecionada, sua arte é classificada
pelo museu como mero k itsch e é rejeitada. Aqueles dinossauros vir­
tuais que são meras cópias mortas de dinossauros já “museograflza-
dos” puderam ser mostrados, como sabemos, no contexto do Jurassic
Park - no contexto de diversão, entretenimento - , mas não no museu.
O museu é, nesse sentido, como uma igreja: primeiramente deve-se ser
um pecador para então tornar-se santo - do contrário, permanece-
-se uma pessoa comum, decente, sem oportunidade de uma carreira
nos arquivos da memória de Deus. É por isso que, paradoxalmente,
quanto mais você quiser se livrar do museu, mais você se sujeitará da
forma mais radical à lógica da coleção de museu, e vice-versa.
Obviamente, essa interpretação do novo, real e vivo contradiz
certa convicção profundamente arraigada encontrada em vários textos
da vanguarda mais precoce, ou seja, que o caminho para se entrar na
vida somente pode ser aberto pela destruição do museu e pela radical
e arrebatadora eliminação do passado que está entre nós e nosso pre­
sente. Essa visão do novo é fortemente expressa, por exemplo, em um
pequeno mas importante texto de Kazimir Malevich: “On the Museum” ,
de 1919. Naquele tempo, o novo governo soviético temia que os antigos
museus e coleções de arte russos fossem destruídos pela guerra civil e
que houvesse um colapso geral das instituições estatais e da economia,
e o partido comunista respondeu tentando salvar essas coleções.

40
Em seu texto, Malevich protestou contra essa política pró-museu
do poder soviético ao pedir que o Estado não interviesse em nome das
coleções de arte, porque sua destruição poderia abrir caminho para a
arte verdadeira e viva. Em especial, ele escreveu:

A vida sabe o que faz e se elã luta para destruir, não se deve interferir,
pois ao dificultá-la bloqueamos o caminho para uma nova concepção da
vida que nasce de nós. Ao queimar um cadáver, obtemos um grama de pó:
dessa forma, milhares de cemitérios poderiam ser acomodados em uma
única estante de um químico. Podemos fazer uma concessão aos conser­
vadores ao oferecer-lhes que queimem todas as épocas passadas, já que
estão mortas, e organizem uma botica.

Posteriormente, Malevich dá um exemplo concreto para o que ele


quis dizer: “O objetivo (dessa botica) será o mesmo, ainda que as pes­
soas examinem o pó de Rubens e toda sua arte - um amontoado de
ideias surgirá nas pessoas e frequentemente será mais vivo que a re­
presentação atual (e ocupará menos espaço).”1
O exemplo de Rubens não é fortuito, para Malevich; em vários
de seus manifestos mais antigos ele afirma que se tornou impossí­
vel em nosso tempo continuar a pintar “a bunda gorda de Vénus” .
Malevich também escreveu, em um texto mais antigo, sobre seu fa­
moso “Quadrado negro sobre fundo branco” - um dos símbolos mais
reconhecidos do novo na arte daquele tempo - que não há chance
de “o doce sorriso de Psiquê aparecer no meu quadrado negro” , e
que ele, o quadrado negro, “jamais poderá ser usado como cama para
fazer amor.”2Malevich detestava os monótonos rituais de fazer amor
pelo menos tanto quanto odiava as monótonas coleções de museus.
Mas o mais importante é a convicção - subjacente a essa sua afir­
mação - de que uma arte nova, original e inovadora seria inaceitável
para coleções de museus governadas pelas convenções do passado.
De fato, a situação era o oposto no tempo de Malevich e, na verdade,
já o era desde o surgimento do museu como instituição moderna no
final do século XVIII. A coleção de museu é governada, na moder­
nidade, não por algum gosto bem estabelecido, definitivo e norma­
tivo com uma clara origem no passado. Ao invés disso, é a ideia de

41
representação histórica que impulsiona o sistema de museu a cole­
cionar, em primeiro lugar, todos os objetos que são característicos de
determinadas épocas históricas - incluindo a contemporânea. Essa
noção de representação histórica jamais foi questionada - nem mes­
mo em escritos pós-modernos bastante recentes que, por sua vez,
pretendem ser historicamente novos, verdadeiramente contemporâ­
neos e atualizados. Eles não vão muito além da questão: Quem e o
que é novo s u fic ie n te para representar o nosso tempo?
Somente se o passado não fôr colecionado, se a arte do passado
não fôr assegurada pelo museu, faz sentido - e ainda, torna-se certa
obrigação moral - permanecer fiel ao passado, seguir tradições e resis­
tir ao destrutivo trabalho do tempo. Culturas sem museus são “cultu­
ras frias” , como Lévi-Strauss as definiu, e essas culturas tentam man­
ter sua identidade cultural intacta ao reproduzirem constantemente o
passado. Elas fazem isso porque sentem a ameaça do esquecimento, da
completa perda de memória histórica. No entanto, se o passado fôr co­
lecionado e preservado em museus, as réplicas de antigos estilos, for­
mas, convenções e tradições se tornarão desnecessárias. Além disso, a
repetição do velho e tradicional se tomará uma prática socialmente
proibida ou, pelo menos, sem recompensa. A fórmula mais genérica
de arte moderna não é “agora estou livre para fazer algo novo” , mas
que é impossível continuar a fazer o velho. Como Malevich diz, tor­
nou-se impossível pintar a bunda gorda de Vénus. Mas isso só ficou
impossível devido à existência do museu. Se os trabalhos de Rubens re­
almente fossem queimados, como Malevich sugeriu, isso de fato abriria
caminho para que os artistas, mais uma vez, pintassem o traseiro gor­
do de Vénus. A estratégia da vanguarda começa não com a abertura
para uma liberdade maior, mas com o surgimento de um novo tabu - o
“tabu museu” , que proíbe a repetição do velho porque o velho não de­
saparece mais, mas permanece à mostra.
O museu não dita como deve ser a aparência do novo, ele ape­
nas mostra como elã não deve ser, funcionando como um demônio
de Sócrates, que lhe disse só o que ele não deveria fazer, mas nun­
ca o que ele deveria fazer. Podemos denominar essa voz demoníaca,
ou presença, de “o curador interno” . Todo artista moderno tem um
curador interno que lhe diz o que não é mais possível fazer, ou seja,

42
o que não é mais colecionado. O museu nos dá uma definição bastante
clara de o que significa para a arte parecer real, viva, presente - , isto é,
elã não pode se parecer com a arte já “museografizada” , colecionada.
A presença não é definida aqui somente como oposição à ausência.
Para se r presente a arte precisa também p a r e c e r presente. Isso significa
que elã não pode se parecer com a arte velha e morta do passado, como
elã é apresentada no museu.
Podemos até mesmo dizer que, sob as condições do museu mo­
derno, a novidade da arte recém-produzida não é estabelecida p ost
fa c tu m , como resultado da comparação com a arte antiga. Em vez dis­
so, a comparação acontece antes do surgimento da obra de arte nova
- e virtualmente a produz. A obra de arte moderna é colecionada antes
mesmo de ser produzida. A arte de vanguarda é a arte de uma mino­
ria de pensamento elitista, não porque expressa algum gosto burguês
específico (como, por exemplo, Bourdieu afirma), pois, de certa forma,
a arte de vanguarda não expressa nenhum gosto - nenhum gosto pú­
blico, pessoal e nem mesmo o dos artistas propriamente ditos. A van­
guarda é elitista simplesmente porque se origina da restrição à qual o
público geral não é sujeitado. Para este, todas as coisas, ou pelo menos
quase todas, poderiam ser novas porque elas são desconhecidas, mesmo
que já sejam colecionadas em museus. Essa observação abre caminho
para estabelecer a distinção principal necessária para alcançar uma me­
lhor compreensão do fenômeno do novo - aquela entre novo e outro, ou
entre o novo e o diferente.
Ser novo é frequentemente compreendido como uma combinação
entre ser diferente e ter sido produzido recentemente. Chamamos um
carro de novo se ele fôr diferente de outros carros e, ao mesmo tempo,
se ele fôr o último e mais recente modelo produzido pela indústria au­
tomobilística. Mas como Soren Kierkegaard ressaltou - principalmente
em seu P h ü o sop h isch e B rocken - ser novo não é, de forma alguma, o
mesmo que ser diferente. Kierkegaard até mesmo opõe rigorosamente
à noção de novo a de diferente, seu principal argumento sendo o de que
uma dada diferença só é reconhecida como tal porque já somos capa­
zes de reconhecê-la e identificá-la como diferença. Portanto, nenhuma
diferença nunca será nova - porque se elã realmente fosse nova, não
poderia ser reconhecida como diferença. Reconhecer significa, sempre,

43
lembrar. No entanto, uma diferença reconhecida e lembrada obviamen­
te não é uma nova diferença. Assim sendo, de acordo com Kierkegaard,
não existe tal coisa como um carro novo. Mesmo que um carro seja bas­
tante recente, a diferença entre ele e aqueles anteriormente produzidos
não é tão grande que o torne novo, porque essa diferença pode ser re­
conhecida por um espectador. Isso torna compreensível o porquê de a
noção de novo ter sido, de certa forma, suprimida do discurso teórico
sobre a arte de décadas passadas, mesmo que elã tenha mantido sua
relevância para a prática artística. Tal supressão é um efeito da preocu­
pação com a Diferença e com a Alteridade no contexto dos pensamen­
tos estruturalista e pós-estruturalista que dominaram a teoria cultural
recente. Mas para Kierkegaard, o novo é uma diferença sem diferença
ou uma diferença além da diferença - uma diferença que somos inca­
pazes de reconhecer porque elã não está relacionada a qualquer código
estrutural preestabelecido.
Como exemplo de tal diferença, Kierkegaard utiliza a figura de
Jesus Cristo. De fato, o filósofo afirma que a figura de Cristo inicial­
mente se parecia com a de qualquer ser humano comum naquele
tempo histórico. Em outras palavras, um espectador objetivo daque­
le tempo, confrontado com a figura de Cristo, não poderia encontrar
qualquer diferença visível e concreta entre Cristo e um homem co­
mum - uma diferença visível que pudesse sugerir que Cristo não era
simplesmente um homem, mas também o filho de Deus. Assim, para
Kierkegaard, o Cristianismo é baseado na impossibilidade de reco­
nhecer Cristo como Deus - na impossibilidade de reconhecer Cristo
como diferente. Além disso, significa que Cristo era rea lm en te novo e
não meramente diferente - e que o Cristianismo é uma manifestação
de diferença sem diferença, ou de diferença além da diferença. Por­
tanto, para Kierkegaard, o único meio para um possível surgimento
do novo é o comum, o “não diferente” , o idêntico - não o Outro, mas
o Mesmo. A questão, porém, é de como lidar com essa diferença além
da diferença. Como o novo pode se manifestar?
Se olharmos mais de perto para a figura de Jesus Cristo como des­
crita por Kierkegaard, elã é impressionante porque parece ser bastante
similar com o que hoje denominamos rea d y -m a d e. Para Kierkegaard, a
diferença entre Deus e o homem não é tal que possa ser objetivamente

44
estabelecida ou descrita em termos visuais. Colocamos a figura de
Cristo no contexto do divino, sem reconhecê-lo como tal - e é isso que
o torna genuinamente novo. Entretanto, o mesmo pode ser dito sobre
os rea d y -m a d es de Duchamp. Aqui também estamos lidando com a di­
ferença além da diferença - agora entendida como diferença entre a
obra de arte e o objeto comum, profano. Consequentemente, podemos
dizer que A fo n te de Duchamp é uma espécie de Cristo dentre as coisas,
e a arte do rea d y -m a d e, um tipo de Cristianismo do mundo da arte.
O Cristianismo pega a imagem de um ser humano e a coloca, inaltera­
da, no contexto religioso, o panteão dos deuses pagãos. O museu - um
espaço de arte ou o sistema inteiro de arte - também funciona como
local onde a diferença além da diferença, entre obra de arte e meras
coisas, pode ser produzida, ou encenada.
Como mencionei, uma obra de arte nova não pode repetir as for­
mas da arte velha, tradicional e já colecionada. Mas hoje, para real­
mente ser nova, uma obra de arte não pode nem mesmo repetir as ve­
lhas diferenças entre objetos de arte e coisas comuns. Ao repetir essas
diferenças, é possível criar apenas uma obra de arte diferente, não uma
nova. A obra de arte nova parece realmente nova e viva somente se se
assemelhar, de certo modo, a todas as coisas comuns e profanas, ou
com todos os produtos da cultura popular. Apenas nesse caso, a obra
de arte nova pode funcionar como significante para o mundo além das
paredes do museu. O novo só pode ser experimentado como tal se ele
produzir um efeito de infinito fora dos limites - se abrir uma visão
infinita sobre a realidade para além do museu. E esse efeito de infini-
tude pode ser produzido, ou melhor, apresentado somente dentro do
museu: no contexto da realidade propriamente dita, podemos experi­
mentar o real somente como finito, porque nós mesmos somos fini­
tos. O pequeno e controlável espaço do museu permite ao espectador
imaginar o mundo para além das paredes do museu como esplêndido,
infinito, extático. Esta é, de fato, a função primária do museu: deixar -
-nos imaginar o que está fora dele como infinito. Novas obras de arte
funcionam no museu como janelas simbólicas abertas à visão do in­
finito do lado de fora. Mas, obviamente, novas obras de arte podem
cumprir essa função somente por um tempo relativamente curto antes
de deixarem de ser novas e se tornarem meramente diferentes, tendo

45
sua distância em relação às coisas comuns se tornado, com o tempo,
muito óbvia. A necessidade então surge de substituir o novo velho pelo
novo novo, a fim de restaurar o sentimento romântico do real infinito.
O museu, nesse sentido, nem é tanto um espaço para representação
da história da arte quanto uma máquina que produz e apresenta a arte
nova de hoje — em outras palavras, produz o “hoje” como tal. Portanto,
o museu produz, pela primeira vez, o efeito da presença, de parecer vivo.
A vida parece verdadeiramente viva somente se a olharmos da perspec­
tiva do museu, pois, novamente, só no museu somos capazes de pro­
duzir diferenças novas - diferenças além de diferenças - , diferenças
que estão surgindo aqui e agora. Essa possibilidade de produzir novas
diferenças, por si só, não existe na realidade, porque nela encontramos
apenas velhas diferenças - diferenças que podemos reconhecer. Para
produzir novas diferenças precisamos de um espaço de “não realida­
de” culturalmente reconhecida e codificada. A diferença entre vida e
morte é, de fato, da mesma ordem daquela entre Deus e o ser humano
comum, ou entre obra de arte e uma coisa comum - é uma diferença
além da diferença, que somente pode ser experimentada, como disse,
no museu ou arquivo como espaço socialmente reconhecido do “não
real” . Novamente, a vida hoje em dia só parece viva, e está viva, quan­
do vista da perspectiva do arquivo, do museu, da biblioteca. Na reali­
dade propriamente dita, somos confrontados apenas com diferenças
mortas - como aquela entre um carro novo e um carro velho.
Não há muito tempo, era amplamente esperado que a técnica
rea d y -m a d e, com o crescimento da fotografia e da videoarte, levaria
à erosão e, por fim, à morte do museu da forma como se estabelecera
na modernidade. Parecia que o espaço fechado da coleção de museu
encarava uma iminente ameaça de inundação pela produção em série
de obras re a d y -m a d e , de fotografias e imagens da mídia que levariam à
sua eventual dissolução. Para se ter certeza, esse prognóstico ficou de­
vendo sua plausibilidade a certa noção específica de museu - que co­
leções de museu se orgulham de seu status excepcional e socialmente
privilegiado porque contêm coisas muito especiais, isto é, obras de arte
que são diferentes das coisas normais e profanas da vida. Se os museus
foram criados para incorporar e abrigar coisas tão especiais e maravi­
lhosas, então seria plausível que eles encarassem certa morte se essa

46
pretensão, em algum momento, se afirmasse ilusória. E são as próprias
práticas de rea d y -m a d e, fotografia e videoarte que provam claramente
que as pretensões tradicionais da museologia e da história da arte são
ilusórias ao tornarem evidente que a produção de imagens não é um
processo misterioso, que requer um gênio como artista.
Isso é o que Douglas Crimp alegou em seu artigo muito conhe­
cido “On the Museum’s Ruins” , com referência a Walter Benjamim:

Através da tecnologia reprodutiva, a arte pós-moderna dispensa a aura.


A ficção do sujeito criador abre caminho para o franco confisco, a citação,
extração, acumulação e repetição de imagens já existentes. Noções de ori­
ginalidade, autenticidade e presença, essenciais ao discurso esperado do
museu, estão arruinadas.3

As novas técnicas de produção artística dissolvem as estruturas


conceituais do museu - construídas sobre a ficção da criatividade
subjetiva, individual - , levando-as à desordem através de sua práti­
ca de reprodução e, por fim, levando o museu à sua ruína. E deve-se
acrescentar, com razão, pois as estruturas conceituais do museu são
ilusórias: elas sugerem a representação do histórico compreendido
como uma epifania temporal da subjetividade criativa, num lugar
onde, de fato, não há nada mais que uma incoerente confusão de
artefatos, como Crimp afirma fazendo referência a Foucault. Dessa
forma, Crimp, como vários outros autores de sua geração, considera
qualquer crítica à concepção romântica da arte como uma crítica à
arte como instituição, incluindo a instituição do museu, que, supos­
tamente, se legitima sobretudo com base nessa exagerada e, algumas
vezes antiquada, concepção de arte.
É incontestável que a retórica da singularidade - e diferença - que
legitima a arte ao consagrar as conhecidas obras-primas há muito de­
termina a história tradicional da arte. No entanto, é questionável se esse
discurso, de fato, proporciona uma legitimação decisiva para a cole­
ção museológica de arte, para que sua análise crítica possa funcionar
ao mesmo tempo como crítica ao museu como instituição. Se a obra de
arte individual pode se posicionar separadamente de todas as outras
coisas pela virtude de sua qualidade artística, ou, para dizer de outra

47
forma, como a manifestação do gênio criador de seu artista, então o
museu não se tomaria completamente supérfluo? Podemos reconhecer
e devidamente apreciar uma pintura magistral, se é que tal coisa existe,
mesmo - e mais efetivamente - num espaço inteiramente profano.
No entanto, o desenvolvimento acelerado da instituição do mu-
seu, em especial do de arte contemporânea, que testemunhamos nas
últimas décadas, equiparou-se à acelerada obliteração das diferenças
visíveis entre obra de arte e objeto profano - obliteração sistematica­
mente perpetrada pela vanguarda do século XX, mais precisamente
a partir da década de 1960. Quanto menos uma obra de arte difere
visualmente de um objeto profano, mais necessário se torna delinear
uma distinção clara entre o contexto artístico e o profano (corriquei­
ro, não museológico) de sua ocorrência. É quando uma obra de arte
se parece com uma “coisa normal” que se exige a contextualização
e proteção do museu. De fato, a função de proteger do museu é im ­
portante também para a arte tradicional, que se destacaria num am­
biente corriqueiro, já que ele a protege da destruição física do tempo.
Quanto à recepção dessa arte, no entanto, o museu é supérfluo, talvez
prejudicial: o contraste entre a obra individual e seu ambiente diário
e profano - o contraste através do qual a obra se torna respeitável - é,
na maior parte, perdido no museu. A obra de arte que não se destaca
em seu ambiente com suficiente distinção visual só é realmente per­
cebida num museu. As estratégias da vanguarda artística, entendidas
como a eliminação da diferença visual entre obra de arte e coisa pro­
fana, levam diretamente, portanto, ao desen v o lv im en to de museus, o
que assegura institucionalmente essa diferença.
Longe de subverter e deslegitimar o museu como instituição,
a crítica à concepção enfática de arte proporciona um fundamento
teórico para a institucionalização e “museografização” da arte con­
temporânea. No museu, objetos comuns recebem a promessa de uma
distinção da qual não desfrutam na realidade - a diferença além da
diferença. Essa promessa será mais válida e crível quanto menos esses
objetos a “merecerem” , isto é, quanto menos espetaculares e extra­
ordinários forem. O museu moderno não proclama sua nova doutri­
na para o trabalho exclusivo de gênios marcados por uma aura, mas
para o insignificante, o trivial e o corriqueiro que, de outra forma,

48
rapidamente se afogariam na realidade além das paredes do museu.
Se o museu fosse realmente se desintegrar algum dia, então a oportu­
nidade da arte de mostrar o normal, corriqueiro e trivial como novo
e verdadeiramente vivo estaria perdida. Para se afirmar com sucesso
“na vida” , a arte deve se tornar diferente - incomum, surpreendente,
exclusiva - , e a história demonstra que a arte só pode fazer isso ao
tocar nas tradições clássicas, mitológicas e religiosas, bem como
ao quebrar sua conexão com a banalidade da experiência do cotidiano.
O sucesso (merecido) da produção de imagem da cultura de massa em
nossos dias se alimenta de ataques alienígenas, mitos de apocalipse
e salvação, heróis dotados de poderes sobre-humanos etc. Tudo isso,
por certo, é fascinante e instrutivo. Entretanto, de vez em quando al­
guém pode desejar contemplar e apreciar algo normal, comum, banal.
Em nossa cultura, esse desejo somente pode ser garantido no museu.
Na vida, por outro lado, apenas o extraordinário está disponível como
possível objeto de nossa admiração.
Mas isso também significa que o novo ainda é possível, porque o
museu ain da está aí, mesmo após o suposto fim da história da arte, do
sujeito etc. O relacionamento do museu com o que está fora não é pri­
meiramente temporal, mas espacial. E, de fato, a inovação não ocorre
no tempo, mas no espaço: além dos limites físicos entre a coleção do
museu e o mundo do lado de fora. Somos capazes de atravessar esses
limites literal e metaforicamente, a qualquer tempo, em diferentes pon­
tos e em diferentes direções. Mais ainda, isso significa que podemos - e
na verdade devemos - dissociar o conceito de novo do conceito de his­
tória, e o conceito de inovação de sua associação com a linearidade do
tempo histórico. A crítica pós-moderna à noção de progresso ou às uto­
pias da modernidade toma-se irrelevante quando já não se pensa em
inovação artística em termos de linearidade temporal, mas como rela­
ção espacial entre o espaço do museu e o seu exterior. O novo não surge
de fontes ocultas na vida histórica em si, nem como promessa de uma
teleologia histórica oculta. A produção do novo é meramente resultado
da mudança dos limites entre itens colecionados e não colecionados,
os objetos profanos exteriores à coleção, que é, em primeiro lugar, uma
operação física, material: alguns objetos são trazidos para dentro do
sistema de museu, enquanto outros são jogados para fora dele e caem,

49
vamos dizer, no lixo. Tal mudança provoca, repetidas vezes, o efeito da
novidade, abertura, infmitude, ao usar significantes que fazem obje­
tos de arte parecer diferentes daqueles do passado “museografizado” e
idênticos a coisas comuns e imagens da cultura popular que circulam
no espaço exterior ao museu. Nesse sentido, podemos manter o con­
ceito do novo muito além do suposto fim da narrativa histórica da arte
através da produção, como já mencionei, de novas diferenças além de
todas as diferenças historicamente reconhecíveis.
A materialidade do museu é uma garantia de que a produção do
novo na arte pode transcender todos os fins da história, precisamente
por demonstrar que o ideal moderno do espaço universal e transpa­
rente do museu (como uma representação da história da arte univer­
sal) é irrealizável e puramente ideológico. A arte da modernidade se
desenvolveu sob a ideia reguladora do museu universal como repre­
sentante de toda a história da arte e como criador de um espaço uni­
versal e homogêneo, que permite a comparação de todas as possíveis
obras de arte e a determinação de suas diferenças visuais. Essa visão
universalista foi muito bem capturada por André Malraux, através de
seu famoso conceito de m u sé e im aginaire. Essa visão de museu uni­
versal é hegeliana em sua origem teórica, pois incorpora uma noção
de autoconsciência histórica capaz de reconhecer todas as diferenças
historicamente determinadas. E a lógica da relação entre a arte e o
museu universal segue a lógica do Espírito Absoluto hegeliano: o su­
jeito do conhecimento e da memória é motivado, ao longo de toda a
história de seu desenvolvimento dialético, pelo desejo pelo outro, pelo
diferente, pelo novo - mas, no fim dessa história, deve descobrir e
aceitar que a alteridade, como tal, é produzida a partir do movimento
do desejo propriamente dito. E, nesse ponto final da história, o sujeito
reconhece no outro sua própria imagem. Podemos afirmar, então, que
no momento em que o museu é entendido como a verdadeira origem
do outro, porque este é, por definição, o objeto de desejo do colecio­
nador ou curador do museu, ele se tornará, digamos, o Museu Abso­
luto, e alcançará o fim de sua possível história. Mais além, pode-se
interpretar a técnica rea d y -m a d e de Duchamp, em termos hegelianos,
como ato de autorreflexão do museu universal que põe fim a qualquer
desenvolvimento histórico ulterior.

50
Não é de forma alguma acidental, portanto, que recentes discursos
que proclamam o fim da arte apontem para o advento do reaáy-m ade
como ponto final da história da arte. O exemplo predileto de Arthur
Danto, ao argumentar que a arte alcançou o final de sua história há al­
gum tempo, são as Brillo B oxes, de Warhol.4E Thierry de Duve fala sobre
“Kant depois de Duchamp” , o que significa o retorno do gosto pessoal
depois do fim da história da arte provocado pelo ready-m ade. ’ De fato,
para o próprio Hegel, o fim da arte, como ele afirma em suas palestras
sobre estética, acontece num tempo muito mais remoto: ele coincide
com o surgimento do novo Estado moderno, que apresenta sua própria
forma, sua própria lei à vida de seus cidadãos, de maneira que a arte
perde sua função genuína de apresentar formas.6 O Estado moderno
hegeliano codifica todas as diferenças visíveis e experimentais - ele
as reconhece, as aceita e dá a elas seu lugar apropriado dentro de um
sistema geral de leis. Após esse ato de reconhecimento político e ju­
dicial do outro pela lei moderna, a arte parece perder sua função his­
tórica, que era manifestar a alteridade do outro, dar-lhe uma forma
e inscrevê-lo no sistema de representação histórica. Assim sendo, no
momento em que a lei triunfar, a arte se tornará impossível: a lei já re­
presenta todas as diferenças existentes, tornando supérflua a represen­
tação através da arte. Obviamente, pode-se argumentar que algumas
diferenças sempre permanecerão sem representação, ou, pelo menos,
pouco representadas pela lei, para que a arte, então, mantenha pelo
menos um pouco de sua função de representar o outro não codificado.
Mas nesse caso, a arte atende apenas ao papel secundário de servir à
lei: o genuíno papel da arte que, para Hegel, consiste em ser o modo
pelo qual as diferenças originalmente se manifestam e criam formas
é, em toda caso, obsoleto sob o efeito da lei moderna.
No entanto, como eu disse, Kierkegaard pode nos mostrar, por
implicações, como uma instituição que tem a missão de representar as
diferenças também pode criá-las - além de todas as diferenças pre­
existentes. Neste ponto, posso formular, mais precisamente, o que é
essa nova diferença - diferença além da diferença - da qual falei antes.
É uma diferença não na forma, mas no tempo, é a diferença na expec­
tativa de vida de coisas individuais, assim como em sua tarefa histó­
rica. Relembre-se a “nova diferença” como descrita por Kierkegaard:

51
para ele, a diferença entre Cristo e um ser humano comum de seu tem­
po não era uma diferença na forma, que pudesse ser re-(a)-presentada
pela arte e pela lei, mas uma diferença imperceptível entre o curto
tempo da vida humana comum e a eternidade da existência divina. Se
eu mudar uma coisa comum como rea d y -m a d e de fora do museu para
o seu espaço interno, eu não modifico a forma dessa coisa, mas altero
sua expectativa de vida e atribuo a elã certa data histórica. A obra de
arte vive mais e mantém sua forma original por mais tempo dentro do
museu do que um objeto comum na “realidade” . É por isso que uma
coisa comum parece mais “viva” e mais “real” no museu do que na
realidade propriamente dita. Se eu vejo uma coisa comum na realida­
de, imediatamente antecipo sua morte - como quando é quebrada e
jogada fora. Uma expectativa de vida finita é, de fato, a definição para
a vida comum. Então, se eu mudar a expectativa de vida de uma coisa
comum, mudo tudo sem, de certa forma, mudar nada.
Essa imperceptível diferença na expectativa de vida de um item
de museu e a de uma “coisa real” desvia nossa imaginação das ima­
gens externas das coisas para os mecanismos de manutenção, restau­
ração e, geralmente, suporte material - o núcleo dos itens de museu.
Essa questão da expectativa de vida relativa chama também nossa
atenção para as condições político-sociais sob as quais esses itens são
colecionados no museu e, assim, têm longevidade garantida. Ao mes­
mo tempo, o sistema de regras de conduta e tabus do museu toma seu
apoio e proteção invisíveis e não experimentáveis. Essa invisibilidade
é irredutível. Como se sabe, a arte moderna tentou, de todas as formas,
tomar transparente o lado material interno da obra. Mas ainda é so­
mente a superfície da obra de arte que, como espectadores do museu,
podemos ver: por trás dessa superfície, algo permanece para sempre
dissimulado sob a condição de uma visita ao museu. Como espectador
num museu, devemos nos submeter a restrições que, fundamental­
mente, funcionam para manter a substância material das obras de arte
inacessível e intacta de forma que possam ser expostas “para sempre” .
Temos aqui um caso interessante de “o exterior no interior” . O suporte
material da obra de arte está “dentro do museu” , mas, ao mesmo tem­
po, não é visualizado - e não é visualizável. O suporte material, ou o
portador da matéria-prima, assim como todo o sistema de conservação

52
de museu, deve permanecer obscuro, invisível e escondido de seu es­
pectador. De certa forma, dentro das paredes do museu somos con­
frontados com uma inacessibilidade infinita ainda mais radical que no
mundo infinito externo às paredes do museu.
Mas se o suporte material da obra de arte “museograíizada” não
puder ser transparente, ainda assim será possível abordá-la explicita­
mente como obscura, escondida, invisível. Como exemplo do funcio­
namento de tal estratégia no contexto da arte contemporânea, podemos
pensar na obra de dois artistas suíços, Peter Fischli e David Weiss. Para
meus propósitos atuais, uma breve descrição é suficiente: Fischli e Weiss
expõem obras que se parecem muito com rea d y-m a d es - objetos corri­
queiros como se vê em todo lugar, no dia a dia.7 De fato, esses objetos
não são “verdadeiros” rea d y -m a d es, são simulações: esculturas de po­
liuretano - um material leve de plástico - que, no entanto, são escul­
pidas com tal precisão (uma aguçada precisão suíça) que, se você as vir
no museu, no contexto de uma exposição, você terá grande dificuldade
em distinguir objetos feitos por Fischli e Weiss dos verdadeiros ready-
-m a d es. Se você visse esses objetos, digamos, no ateliê de Fischli e Weiss,
você poderia pegá-los na mão e pesá-los - uma experiência que seria
impossível num museu, já que é proibido tocar em objetos de exposição.
Fazer isso imediatamente dispararia o sistema de alarme e alertaria o
pessoal do museu e, logo, a polícia. Nesse sentido, podemos dizer que é
a polícia quem, em última instância, garante a oposição entre arte e não
arte - a polícia que ainda não está a par do fim da história da arte.
Fischli e Weiss demonstram que os ready-m ades, ao manifestarem
sua forma no espaço do museu estão, ao mesmo tempo, obscurecendo
ou ocultando sua própria materialidade. Ainda assim, essa obscuridade
- a invisibilidade do suporte material como tal - é exposta no museu
através da obra de Fischli e Weiss, devido à evocação explícita da dife­
rença invisível entre o “real” e o “simulado” de seu trabalho. O espec­
tador do museu é informado pela inscrição que acompanha a obra de
que os objetos expostos por eles não são “reais” , mas rea d y -m a d es “si­
mulados” . Ao mesmo tempo, porém, o espectador do museu não pode
testar essa informação porque elã está relacionada ao miolo oculto, ao
suporte material dos itens da exposição - e não à sua forma visível. Isso
significa que a nova diferença introduzida entre “real” e “simulado”

53
não representa quaisquer diferenças visuais já estabelecidas entre coi­
sas no nível de sua forma. O suporte material não pode ser revelado
na obra de arte individual - mesmo que vários artistas e teóricos da
vanguarda histórica quisessem que assim fosse revelado. Mais preci­
samente, essa diferença só pode ser explicitamente abordada, no mu­
seu, como obscura e irrepresentável. Ao simular a técnica rea d y -m a d e,
Fischli e Weiss direcionam nossa atenção para o suporte material sem
revelá-lo, sem torná-lo visível, sem representá-lo. A diferença entre
“real” e “simulado” não pode ser “reconhecida” , somente produzida,
porque todo objeto no mundo pode ser visto tanto como “real” quanto
como “simulado” . Podemos produzir a diferença entre real e simulado
ao colocar certa coisa, ou imagem, sob a suspeita de ser não “real” ,
mas meramente “simulada” . E colocar certa coisa comum no contexto
do museu significa, precisamente, colocar um portador da matéria-
-prima, do suporte material, das condições materiais da existência
dessa coisa, sob permanente suspeita. A obra de Fischli e Weiss de­
monstra que há uma infinitude obscura no museu propriamente dito
- é a dúvida infinita, a suspeita infinita de que todas as coisas expostas
sejam simuladas, falsas, com o interior feito de um material distinto
daquele sugerido pela forma externa. E isso significa também que não
é possível transferir “a totalidade da realidade visível” para dentro do
museu - mesmo na imaginação. Também não é possível realizar o an­
tigo sonho nietzschiano de estetizar o mundo em sua totalidade para
chegar à identificação da realidade com o museu. O museu produz suas
próprias obscuridades, invisibilidades, diferenças; ele produz seu pró­
prio exterior oculto em seu interior. E o museu só pode criar a atmos­
fera de suspeita, incerteza e angústia em relação ao suporte oculto das
obras de arte nele expostas que, ao mesmo tempo em que garantem
sua longevidade, também comprometem sua autenticidade.
A longevidade artificial garantida às coisas colecionadas e colo­
cadas num museu sem p re é uma simulação; essa longevidade só pode
ser alcançada através de uma manipulação técnica do material central
oculto da coisa exposta, de forma a assegurar sua durabilidade: toda
conservação é uma manipulação técnica que também é, necessaria­
mente, uma simulação. E ainda, tal longevidade artificial de uma obra
de arte somente pode ser relativa. Sempre chega o momento em que

54
toda obra de arte morre, é quebrada, dissolvida, desconstruída - não
necessariamente na teoria, mas em nível material. Na visão hegeliana
do museu universal, a eternidade corporal é substituída pela eternida­
de do espírito na memória de Deus. No entanto, tal eternidade corpó­
rea é, obviamente, uma ilusão. O museu em si é uma coisa temporal
- mesmo que as obras de arte colecionadas sejam afastadas dos perigos
da existência cotidiana e de trocas em geral, visando sua preservação.
Esta pode não ter sucesso ou tê-lo apenas temporariamente. Objetos
de arte são regularmente destruídos por guerras, catástrofes, acidentes,
tempo. Esse destino material, essa irredutível temporalidade de obje­
tos de arte como coisas materiais, limita qualquer possível história da
arte - , mas um limite que funciona, ao mesmo tempo, como oposto
ao fim da história. Num nível puramente material, o contexto artístico
muda constantemente, de tal forma que não podemos controlar, refle­
tir ou prever totalmente, de forma que essa mudança material sempre
nos atinge como uma surpresa. A autorreflexão histórica é dependente
da materialidade oculta, sobre a qual não se pode refletir, dos objetos
de museu. É precisamente por ser o destino material da arte irredutível
e sem possibilidade de reflexão que a história da arte deve ser revisi-
tada, reconsiderada e constantemente reescrita de uma nova maneira.
Mesmo se a existência material de uma obra de arte individual fôr
garantida por certo tempo, seu status como obra de arte sempre de­
pende do contexto de sua apresentação numa coleção de museu. Mas
é extremamente difícil - na verdade, impossível - estabilizar esse
contexto por um longo período. Este é, talvez, o verdadeiro paradoxo
do museu: a coleção do museu serve para a preservação de artefatos,
mas elã própria é sempre extremamente instável e constantemente em
mudança. Colecionar é um evento no tempo, por excelência - mes­
mo quando é tentativa de escapar do tempo. A exposição do museu
flui permanentemente: não está crescendo ou progredindo, mas está
mudando de várias maneiras diferentes. Consequentemente, o mode­
lo para distinguir o velho do novo e para atribuir o status de obra de
arte às coisas está mudando também o tempo todo. Artistas como Mike
Bidlo ou Shirley Levine demonstram, por exemplo - através da técnica
da apropriação - a possibilidade de alterar a atribuição histórica de dadas
formas artísticas, ao mudar seu suporte material. A cópia ou repetição

55
de obras de arte bastante conhecidas desalinha a ordem da memória
histórica. É impossível para um espectador comum distinguir, di­
gamos, uma obra original de Picasso de uma apropriada por Mike
Bidlo. Portanto, aqui, e no caso dos r e a d y -m a d e s de Duchamp ou os
re a d y -m a d e s simulados de Fischli e Weiss, somos confrontados com
uma diferença não visual e, nesse sentido, uma diferença nova produ­
zida - a diferença entre a obra de Picasso e uma cópia desta produzida
por Bidlo. Novamente, essa diferença só pode ser representada dentro
de um museu - dentro de certa ordem de representação histórica.
Dessa forma, ao inserir obras de arte já existentes em novos contex­
tos, mudanças na exposição de uma obra de arte podem causar diferen­
ças em sua recepção, sem ter havido alteração em sua forma visual. Em
tempos recentes, o status do museu como local de coleção permanente
está gradualmente mudando para o de museu como teatro para expo­
sições itinerantes de larga escala, organizadas por curadores interna­
cionais, e instalações de larga escala criadas por artistas individuais.
Toda exposição grande ou instalação desse tipo é feita com a intenção
de criar uma nova ordem de memórias históricas, de propor novos cri­
térios de coleção através da reconstrução da história. Essas exposições
itinerantes e instalações são museus temporais que expõem aberta-
mente sua temporalidade. A diferença entre estratégias de arte moder­
nistas e contemporâneas é, portanto, relativamente fácil de descrever.
Na tradição modernista, o contexto artístico era considerado estável -
era o contexto idealizado do museu universal. A inovação consistia em
colocar uma nova forma, uma nova coisa, dentro desse contexto esta­
bilizado. Em nosso tempo, o contexto é visto como mutante e instável.
Logo, a estratégia da arte contemporânea consiste em criar um contexto
específico que pode fazer certa forma, ou coisa, parecer outra, nova e
interessante - mesmo que essa forma já tenha sido colecionada. A arte
tradicional trabalhou no nível da forma. A arte contemporânea trabalha
no nível do contexto, do modelo, do passado ou de uma nova interpreta­
ção teórica. Mas o objetivo é o mesmo: criar um contraste entre forma e
passado histórico para fazer a forma parecer outra e nova.
Então, Fischli e Weiss podem agora expor rea d y -m a d es que pa­
recem completamente familiares aos espectadores contemporâneos.
A diferença entre eles e os rea d y -m a d es padrões, como eu disse, não

56
pode ser vista, porque a materialidade interior das obras não pode ser
vista. Elã só pode ser contada: temos que ouvir uma história, a história
da fabricação desses p se u d o -r e a d y -m a d e s , para perceber a diferença,
ou melhor, para imaginá-la. Não é necessário que essas obras de Fischli
e Weiss sejam verdadeiramente “feitas é suficiente contar a história
que nos permite olhar para “modelos” desses trabalhos de forma dife­
rente. Apresentações de museu em constante mudança nos compelem
a imaginar o fluxo de Heráclito que desconstrói todas as identidades e
solapa todas as ordens históricas e taxonômicas, finalrnente destruin­
do por dentro todos os arquivos. Mas a visão heraclitiana só é possível
dentro do museu, dentro dos arquivos, porque somente lá há ordens de
arquivamento, identidades e taxonomias estabelecidas em tal grau que
nos permite imaginar sua possível destruição como algo sublime. Essa
visão sublime é impossível no contexto da “realidade” propriamente
dita, que nos oferece diferenças perceptíveis, mas não no que diz res­
peito à ordem histórica. Além disso, através de constantes mudanças
nas exposições, o museu pode apresentar sua materialidade oculta
e obscura - sem revelá-la.
Não é por acidente que agora podemos assistir ao crescente sucesso
das formas de arte narrativas, como vídeo e instalações de cinema, no
contexto do museu. Instalações de vídeo trazem a “grande noite” para
dentro do museu - que deve ser sua função mais importante. O espaço
do museu perde sua própria luz “institucional” , que tradicionalmente
funcionou como propriedade simbólica do espectador, do colecionador,
do curador. O museu toma-se obscuro, escuro e dependente da luz que
emana da imagem do vídeo, ou seja, do núcleo oculto da obra de arte,
da tecnologia elétrica e da informática escondida em sua forma. Não é o
objeto de arte exposto no museu que deveria ser iluminado, examinado,
e julgado pelo museu como em tempos remotos, mas essa imagem tec­
nologicamente produzida que traz sua própria vida para dentro da es­
curidão do espaço do museu - e somente por certo período. Também é
interessante notar que, se o espectador tentar invadir o interior material
do interior da instalação de vídeo enquanto elã estiver “funcionando” ,
ele será eletrocutado, o que é ainda mais efetivo do que uma intervenção
da polícia. De maneira similar, um intruso no espaço interno proibido de
um templo grego deveria ser atingido por um raio de Zeus.

57
E mais que isso: não somente o controle sobre a luz, mas também
o controle sobre o tempo necessário para contemplação é passado do vi­
sitante para a obra de arte. No museu clássico, o visitante exerce controle
quase total sobre a duração da contemplação. Ele ou elã pode interromper
a contemplação a qualquer momento, retomar e ir embora novamente.
O quadro fica onde está e não tenta fugir do olhar do observador. Com
quadros que se movem isso já não é o caso - eles escapam do controle do
observador. Quando damos as costas a um vídeo, normalmente perdemos
alguma coisa. Agora o museu - antes um lugar de visibilidade completa
- toma-se um lugar onde não podemos compensar uma oportunidade de
contemplação perdida, onde não podemos voltar ao mesmo lugar para
assistir à mesma coisa que vimos antes. Ainda mais na chamada vida real,
porque sob as condições básicas de uma visita à exposição, o espectador,
na maioria dos casos, está fisicamente impossibilitado de assistir a todos
os vídeos à mostra, pois a duração cumulativa excede o tempo de uma
visita ao museu. Assim, o advento do vídeo e da instalação de cinema no
museu demonstra a finitude do tempo e revela também a distância até
a fonte de luz que permanece oculta sob as condições normais de vídeo
e circulação de filme em nossa cultura popular. Ainda melhor: o filme tor­
na-se incerto, invisível e obscuro ao espectador em consequência de sua
colocação no museu - o tempo do filme sendo, via de regra, mais longo
que o tempo médio de uma visita ao museu. Aqui, novamente, uma nova
diferença na recepção do filme emerge como resultado da substituição do
museu por uma sala de cinema comum.
Para resumir o ponto de vista que venho tentando defender: o museu
moderno é capaz de introduzir uma nova diferença entre coisas colecio­
nadas e não colecionadas. Essa diferença é nova porque não representa
qualquer diferença visual já existente. A escolha dos objetos para “museo-
grafização” é interessante e relevante para nós somente se não reconhecer
e reafirmar, meramente, diferenças existentes, mas se apresentar como
infundada, inexplicável, ilegítima. Essa escolha abre para um espectador
uma visão acerca da infinitude do mundo. Mais que isso: ao introduzir
essa nova diferença, o museu desvia a atenção do espectador da forma vi­
sual das coisas para o suporte material oculto e para a expectativa de vida
delas. Aqui o novo não funciona como uma representação do outro, nem
como um próximo passo para o esclarecimento progressivo do obscuro,

58
mas como um novo lembrete de que o obscuro assim se mantém, que
a diferença entre real e simulado permanece ambígua, que a longevidade
das coisas está sempre em perigo, que a dúvida infinita acerca da natu­
reza interna das coisas é intransponível. Ou, em outras palavras: o mu­
seu proporciona a possibilidade de introduzir o sublime no banal. Na Bí­
blia, podemos encontrar a famosa afirmação de que não há nada de novo
sob o soi. Isso, obviamente, é verdade. Mas não há soi dentro do museu.
É por isso, provavelmente, que o museu sempre foi - e permanece sendo -
o único lugar possível para a inovação.

(Originalmente publicado como “On the New” , R e se a r c h Journ al o f A n th ro p o lo g y

a n d A e s th e tic s , n. 38, p. 5-17, Autumn 2000.)

59
«

S O B R E

C U R A D O R A
O trabalho do curador consiste em colocar obras de arte dentro do es­
paço da exposição. Isso é o que diferencia o curador do artista, já que
este tem o privilégio de expor objetos que ainda não foram elevados ao
status de obra de arte. Nesse caso, é precisamente por serem coloca­
dos no espaço de exposição que eles recebem esse status. Duchamp, ao
expor o mictório, não é curador, mas artista, pois como resultado de
sua decisão de apresentá-lo nos moldes de uma exposição, o mictório
se tornou uma obra de arte. Essa oportunidade é negada ao curador.
Ele pode, obviamente, expor um mictório, mas somente se fôr o de
Duchamp - um mictório que já recebeu o status de arte. O curador
pode facilmente expor um mictório sem assinatura, um que não te­
nha status de arte, mas será apenas compreendido como um exem­
plo de design europeu de certo período, servirá como “contextualiza­
ção” para exposições de arte ou preencherá outra função subordinada.
De forma alguma esse mictório pode obter o status de arte - e, ao final
da exposição, ele retornará não ao museu, mas ao local de onde veio.
O curador pode expor, mas ele não possui a habilidade mágica de
transformar não arte em arte através da ação de expor. Esse poder,
conforme convenções culturais atuais, pertence somente ao artista.

61
Nem sempre foi assim. Originalmente, a arte se tornou arte pela
decisão de curadores, não de artistas. Os primeiros museus de arte sur­
giram na virada do século XIX e se consagraram ao longo do século XX
como consequência de revoluções, guerras, conquistas imperiais e pi­
lhagem de culturas não europeias. Todos os tipos de objetos funcionais
“bonitos” - anteriormente utilizados para vários rituais religiosos, para
decorar os quartos dos poderosos ou para manifestar riqueza privada -
eram colecionados e colocados em exposição como obras de arte - isto
é, como objetos sem função, objetos autônomos para pura contempla­
ção. Os curadores que administravam esses museus “criaram” arte a
partir de ações iconoclastas contra ícones tradicionais de religião ou
poder ao reduzi-los a meras obras de arte. Arte, originalmente, era
“apenas” arte. Essa percepção dela como tal está situada na tradição
do Iluminismo europeu, que concebeu todos os ícones religiosos como
“coisas profanas, seculares” - e a arte apenas como objetos bonitos,
como meras obras de arte. A pergunta então é: Por que os curadores
perderam o poder de criar arte por meio de sua exposição, e por que
esse poder passou para os artistas?
A resposta é óbvia. Ao expor um mictório, Duchamp não desvalo­
riza um ícone sagrado, como os curadores do museu fizeram; ao con­
trário, ele faz um u p g ra d e de um objeto produzido em massa para uma
obra de arte. Nesse sentido, o papel da exposição na economia sim­
bólica mudou. Outrora, objetos sagrados foram desvalorizados para se
produzir arte; hoje, por outro lado, objetos profanos são valorizados
para se tornarem arte. O que originalmente era iconoclastia tomou-se
iconofilia. No entanto, essa mudança na economia simbólica já havia
sido iniciada pelos curadores e críticos de arte do século XIX.
Toda exposição conta uma história ao orientar o espectador através
dela numa ordem específica; o espaço de exposição é sempre um espaço
narrativo. O museu de arte tradicional contou a história do surgimento
da arte e de sua vitória subsequente. Obras de arte individuais conta­
ram essa história - e, ao fazê-lo, elas perderam sua significância re­
ligiosa ou representativa e ganharam novo significado. Uma vez que
o museu surgiu como o novo local de adoração, os artistas começa­
ram a trabalhar especificamente para ele: objetos historicamente
significativos não precisavam mais ser desvalorizados para servirem

62
à arte. Em vez disso, objetos novos e profanos se posicionaram para
que fossem reconhecidos como obras de arte, porque supostamente
incorporavam valores artísticos. Esses objetos não tinham uma pré-
-história; eles nunca haviam sido legitimados pela religião ou pelo
poder. Quando muito, poderiam ser reconhecidos como signos de
uma “vida cotidiana simples” com valor indeterminado. Assim, sua
inscrição na história da arte significou a valorização desses objetos,
não a desvalorização. Então, os museus foram transformados de lo­
cais de iconoclastia inspirada pelo Iluminismo em locais de iconofilia
romântica. Expor um objeto como arte não mais significava sua pro­
fanação, mas sua consagração. Duchamp simplesmente levou isso a
fundo quando desnudou o mecanismo da iconofilia, da glorificação
de coisas comuns ao rotulá-las como obras de arte.
Ao longo dos anos, artistas modernos começaram a declarar a total
autonomia da arte - e não somente a partir de sua pré-história sagra­
da, mas a partir da história da arte também - porque toda integração
de uma imagem numa história, toda apropriação dela como ilustração
para uma narrativa específica é iconoclasta, mesmo que seja a história
de seu triunfo, sua transfiguração ou glorificação. Conforme a tradição
da arte moderna, uma imagem deve falar por si só; deve imediatamente
convencer o espectador, que está diante dela em contemplação silencio­
sa de seu valor. As condições em que a obra é exposta deveriam ser redu­
zidas a paredes brancas e boa iluminação. O discurso teórico e narrativo
é uma distração, e deve parar. Mesmo o discurso afirmativo e a disposi­
ção favorável eram considerados como distorções da mensagem da obra
de arte propriamente dita. Como resultado, mesmo depois de Duchamp,
a ação de expor qualquer objeto como obra de arte permanece ambiva­
lente, ou seja, parcialmente iconófila, parcialmente iconoclasta.
O curador não pode senão colocar, contextualizar e transformar
em narrativa obras de arte - o que necessariamente leva à sua relati­
vização. Dessa forma, artistas modernos começaram a condenar cura­
dores, porque a figura do curador era vista como a incorporação do
lado escuro, perigoso e iconoclasta da prática da exposição, como o
doppelgãnger destrutivo do artista que cria arte expondo-a: os museus
foram regularmente comparados a cemitérios, e os curadores a agentes
funerários. Com esses insultos (disfarçados de críticas institucionais),

63
os artistas trouxeram o público para o seu lado, porque este não sabia de
toda a história da arte; ele nem mesmo queria ouvir falar dela. O público
deseja ser diretamente confrontado com obras de arte individuais e ser
exposto ao seu impacto sem mediação, ele acredita piamente no sig­
nificado autônomo de obras de arte individuais que, supostamente, se
manifesta diante de seus olhos. Toda mediação do curador é suspeita:
ele é visto como alguém que se coloca entre a obra de arte e o especta­
dor, insidiosamente manipulando sua percepção com intenção de tirar
o poder do público. É por isso que, para o público, o mercado da arte
é mais divertido do que qualquer museu. As obras de arte que circulam
no mercado são destacadas, descontextualizadas, sem curadoria - por
isso elas têm a oportunidade aparentemente inalterada de demonstrar
seu valor inerente. Em consequência, o mercado de arte é um exemplo
extremo do que Marx denominou fetiche da mercadoria, o que signi­
fica a crença no valor inerente de um objeto, sendo o valor uma quali­
dade intrínseca. Assim, iniciou-se o tempo de degradação e aflição de
curadores - o tempo da arte moderna. Os curadores lidaram com sua
degradação impressionantemente bem ao internalizá-la com sucesso.
Ainda hoje ouvimos de vários curadores que eles estão trabalhan­
do para um único objetivo: o de fazer obras de arte individuais apare­
cerem na luz mais favorável. Em outras palavras, a melhor curadoria
é a não curadoria. A partir desse ponto de vista, a solução parece ser
deixar a obra de arte sozinha, permitindo ao espectador confrontá-
la diretamente. No entanto, nem o renomado cubo branco é sempre
suficiente para esse propósito. O espectador é frequentemente orien­
tado a abstrair-se completamente do entorno da obra, para mergulhar
em uma contemplação própria que nega o mundo. Somente sob essas
condições - ou seja, para além de qualquer tipo de curadoria - o en­
contro com uma obra de arte pode ser considerado autêntico e ge­
nuinamente de sucesso. Permanece, no entanto, incontestável o fato
de que tal contemplação não pode continuar sem a obra de arte ser
exposta. Giorgio Agamben escreveu: “a imagem é um ser, o que está
em sua essência é aparência, visibilidade ou semelhança” .1 Mas essa
definição da essência da obra de arte não é suficiente para garantir
a visibilidade de uma obra de arte concreta. Uma obra de arte não pode,
de fato, apresentar-se em virtude de sua própria definição e forçar

64
o espectador a entrar em estado de contemplação; faltam a vitalidade,
a energia e a saúde necessárias. As obras de arte parecem estar genui­
namente doentes e desamparadas - o espectador deve ser guiado até
a obra de arte como os funcionários de um hospital podem precisar
levar um visitante até um paciente acamado. De fato, não é por coin­
cidência que a palavra “curador” está etimologicamente relacionada à
palavra cura. Curadoria é cura. O processo de curadoria cura a falta de
poder da imagem, sua incapacidade de se apresentar. A obra de arte
precisa de ajuda externa, precisa de uma exposição e de um curador
para se tornar visível. O remédio que faz com que a imagem doente
pareça estar saudável - faz com que a imagem literalmente apare­
ça, e faz isso sob a melhor luz - é a exposição. Nesse sentido, já que
a iconofilia depende da imagem parecer saudável e forte, a prática da
curadoria é, até certo ponto, serva da iconofilia.
Mas, ao mesmo tempo, a prática da curadoria enfraquece a ico-
nofllia, pois seus artifícios médicos não podem permanecer com­
pletamente escondidos do espectador. Nesse sentido, a curadoria
permanece, não intencionalmente, iconoclasta, mesmo que seja pro­
gramaticamente iconófila. De fato, a curadoria age como suplemento
ou fármaco (na concepção de Derrida),2no sentido de curar a imagem
mesmo que a faça mal. Como a arte em geral, a curadoria não escapa
de ser simultaneamente iconófila e iconoclasta. Ainda assim, essa afir­
mação aponta para uma questão: Qual é o tipo correto de curadoria?
Já que o processo de curadoria nunca pode ocultar-se completamen­
te, seu objetivo principal deve ser visualizar-se, ao tornar sua prática
explícita. O desejo da visualização é, de fato, o que constitui e orienta
a arte. Uma vez que ocorre dentro do contexto da arte, a prática da
curadoria não escapa à lógica da visibilidade.
A visualização da curadoria demanda uma mobilização simultâ­
nea de seu potencial iconoclasta. A iconoclastia contemporânea de­
veria estar direcionada principalmente não a ícones religiosos, mas
à arte propriamente dita. Ao colocar uma obra de arte num ambiente
controlado, no contexto de outros objetos cuidadosamente seleciona­
dos e, sobretudo, envolvendo-a numa narrativa específica, o curador
faz um gesto iconoclasta. Se esse gesto fôr suficientemente explícito,
a curadoria retoma seu início secular, resistindo à transformação da

65
\

arte em “arte-como-religião” e se torna expressão de “ateísmo-arte” .


A arte como fetiche acontece fora do museu, pode-se dizer, fora da
zona onde o curador tradicionalmente exerce sua autoridade. Agora,
as obras de arte se tornam icônicas não como resultado de sua exposi­
ção no museu, mas por sua circulação no mercado da arte e na mídia
de massa. Nessas circunstâncias, a curadoria de uma obra de arte sig­
nifica seu retorno à história, à transformação da obra de arte autônoma
novamente em ilustração - cujo valor não está contido nela mesma,
mas está extrínseco, anexado a elã através de uma narrativa histórica.
O romance M y N am e Is R ed, de Orhan Pamuk, apresenta um grupo
de artistas à procura de um lugar para a arte numa cultura iconoclasta,
a saber, a da Turquia islâmica do século XVI. Os artistas são ilustrado­
res, comissionados por quem está no poder para enfeitar seus livros
com requintados desenhos-miniaturas; em seguida, esses livros são
colocados em coleções públicas ou particulares. Não só esses artistas
são cada vez mais perseguidos por adversários islâmicos radicais (ico­
noclastas), que querem banir todas as imagens, como eles também
competem com pintores ocidentais da Renascença, principalmente os
venezianos, que assumem abertamente sua iconofilia. Mas os heróis do
romance não podem compartilhar essa iconofilia, porque eles não acre­
ditam na autonomia da imagem. E, portanto, eles tentam encontrar
o caminho para assumir uma postura consistentemente iconoclas­
ta, honesta, sem abandonar o terreno das artes. Um sultão turco, para
quem a teoria da arte serviria como boa orientação para a prática da
curadoria contemporânea, mostra o caminho:

Uma ilustração que não complementa uma história acaba por tornar-se
nada mais do que um falso ídolo. Uma vez que náo podemos acreditar na
história ausente, naturalmente começamos a acreditar na imagem em si.
Isso em nada seria diferente da adoração dos ídolos em Caaba antes de
Nosso Profeta, que a paz e a bênção recaiam sobre ele, tê-los destmído...
Se eu acreditasse, Deus permita que não, da forma como os pagãos acre­
ditam, que o Profeta Jesus também era Deus Nosso Senhor... só assim, tal­
vez, eu pudesse aceitar o retrato detalhado da humanidade e pudesse ex­
por tais imagens. Você entende que nós, eventualmente, começaríamos a
adorar, sem pensar, qualquer figura pendurada na parede, não entende?3

66
Fortes tendências e correntes iconoclastas seriam naturalmente
encontradas também no Ocidente cristão - especialmente na arte mo­
derna do século XX. Grande parte da arte moderna foi criada a partir
da iconoclastia. Aliás, a vanguarda representou o martírio da imagem,
o que substituiu a imagem cristã do martírio; e também submeteu a
pintura tradicional a todos os tipos de tortura, o que faz lembrar, aci­
ma de tudo, aquela a que os santos foram submetidos ao serem retra­
tados em pinturas da Idade Média. Assim, a imagem é - simbólica e
literalmente - serrada, cortada, fragmentada, furada, escavada, ar­
rastada pela poeira e deixada à mercê do ridículo. Não é coincidên­
cia que a vanguarda histórica tenha empregado consistentemente
a linguagem da iconoclastia: artistas de vanguarda falam em demolir
tradições, romper com as convenções, destruir sua herança artística e
aniquilar valores antigos. O gesto iconoclasta é instituído aqui como
método artístico, menos pelo aniquilamento de ícones antigos do que
pela produção de novas imagens - ou, se se preferir, novos ícones
e novos ídolos. Nossa imaginação iconográfica, que há muito tem sido
aprimorada pela tradição cristã, não hesita em reconhecer a vitória na
imagem da derrota, conforme retratado na imagem de Cristo na cruz.
Aqui a derrota é vitória desde o início. A arte moderna se beneficiou
significativamente da adoção da iconoclastia como modo de produção.
Ao longo da era do Modernismo, sempre que uma imagem icono­
clasta foi produzida, pendurada na parede ou apresentada num local de
exposição, elã se tomou um ídolo. A razão é clara: a arte moderna lutou
firmemente contra o uso ilustrativo de imagens e sua função narrativa.
O resultado dessa luta ilustra a premonição do sultão. A arte moderna
queria purificar a imagem de tudo exterior a elã, para tornar a imagem
autônoma e autossuficiente - mas, ao fazê-lo, apenas confirmou a ico-
nofilia dominante. Portanto, a iconoclastia ficou subordinada à iconofi-
lia: o martírio simbólico da imagem apenas fortalece nossa crença nela.
A estratégia iconoclasta mais sutil proposta pelo sultão - ao de­
volver o caráter ilustrativo da imagem - é, na verdade, muito mais
efetiva. Sabemos, pelo menos desde Magritte, que, ao olharmos para
uma imagem de um cachimbo, consideramos não um cachimbo real,
mas um que tenha sido re-(a)-presentado. O cachimbo, como tal, não
está ali, não está presente; ao contrário, é retratado como ausente.

67
A despeito desse conhecimento, ainda estamos inclinados a acreditar
que, quando olhamos para uma obra de arte, confrontamos a “arte”
direta e instantaneamente. Vemos a obra de arte como arte encarnada.
A famosa distinção entre arte e não arte geralmente é compreendida
como a distinção entre objetos inabitados e animados pela arte e aque­
les em que a arte está ausente. É assim que obras de arte se tornam ído­
los artísticos, ou seja, analogamente a imagens religiosas que também
são, acredita-se, habitadas ou animadas por deuses.
Por outro lado, praticar o ateísmo-arte seria compreender obras
de arte não como encarnações, mas como meros documentos, ilus­
trações ou significantes da arte. Ainda que se refiram à arte, elas, no
entanto, não são arte. Em maior ou menor grau, essa estratégia tem
sido seguida por vários artistas desde os anos 1960. Projetos artísticos,
performances e ações foram documentados regularmente e, por meio
dessa documentação, representados em locais de exposição e museus.
Tal documentação, porém, refere-se meramente à arte sem ser, elã
própria, arte. Esse tipo de documentação é frequentemente apresen­
tado na estrutura de uma instalação de arte com o propósito de narrar
certo projeto ou ação. Pinturas, objetos de arte, fotografias ou vídeos
tradicionalmente executados também podem ser implementados no
contexto de tais instalações. Nesse caso, reconhecidamente, as obras
de arte perdem seu status de arte. Elas se tornam, então, documentos,
ilustrações da história contada pela instalação. Pode-se dizer que, hoje,
a audiência da arte se depara, cada vez mais, com a d o cu m en taçã o da
arte, que fornece informações acerca da obra de arte em si, seja um
projeto de arte ou uma ação artística, mas que, ao fazê-lo, só confirma
a ausência da obra de arte.
Mas, ainda que a ilustração e a narração consigam encontrar o
caminho da arte, esse caminho, de forma alguma, significaria o triun­
fo automático do ateísmo-arte. Ainda que o artista perca a fé, ele ou
elã não perde, assim, a habilidade mágica de transformar coisas co­
muns em arte, como a perda da fé por um padre católico não toma
seus rituais ineficazes. Enquanto isso, a instalação propriamente dita
foi abençoada com o status de arte: a instalação foi aceita como for­
ma de arte e assume, cada vez mais, um papel principal na arte con­
temporânea. Portanto, mesmo que imagens e objetos individuais

68
percam sua autonomia, a instalação inteira a recupera. Quando Marcei
Broodthaers apresentou sua “Musée d’Art Moderne Département
des Aigles” no Kunsthalle em Düsseldorf, em 1973, ele colocou o rótulo
“Isto não é uma obra de arte” junto a cada um dos objetos apresentados
na instalação. A instalação inteira, no entanto, é legitimamente consi­
derada uma obra de arte.
Aqui, a figura do curador independente, cada vez mais central
para a arte contemporânea, entra em jogo. Afinal de contas, o cura­
dor independente faz tudo o que o artista contemporâneo faz. Ele viaja
pelo mundo e organiza exposições comparáveis a instalações artísti­
cas - comparáveis por serem resultado de projetos, decisões e ações de
curadoria individual. As obras de arte apresentadas nessas exposições/
instalações assumem o papel de documentação de um projeto de cura­
doria. Ainda assim, tais projetos não são, de forma alguma, iconófilos;
eles não têm por objetivo glorificar o valor autônomo da imagem.
“Estação Utopia” é um bom exemplo - curadoria de Molly Nesbit,
Hans-Ulrich Obrist e Rirkrit Tiravanija, essa exposição foi apresentada
na 5a Bienal de Veneza, em 2003. Discussões críticas e públicas sobre o
projeto enfatizaram as seguintes questões: se o conceito de utopia ainda
é relevante; se o que foi apresentado por curadores como visão utópi­
ca realmente pode ser considerado como tal etc. Mesmo assim, o fato
de que um projeto de curadoria que era claramente iconoclasta pudes­
se ser apresentado numa das mais velhas exposições internacionais de
arte me parece muito mais importante que as considerações acima. Ele
era iconoclasta porque empregou obras de arte como ilustrações, como
documentos da procura pela utopia social, sem enfatizar seu valor au­
tônomo. Ele se entregou à radical abordagem iconoclasta da clássica
vanguarda russa, que considerava a arte como documentação da bus­
ca por um “novo homem” e uma “nova vida” . Mais importante ainda,
“Estação Utopia” era um projeto de curadoria, não artístico. Isso signifi­
cou que o gesto iconoclasta não pôde ser acompanhado - e dessa forma
invalidado - pelo atributo de valor artístico. No entanto, ainda é possível
assumir que, nesse caso, abusaram do conceito de utopia, porque ele
foi estetizado e colocado num contexto elitista de arte. E pode-se dizer,
igualmente, que abusaram da arte: elã serviu como ilustração da visão
do curador sobre a utopia. Portanto, em ambos os casos, o espectador

69
deve confrontar um abuso - seja um abuso da arte ou pela arte. Aqui, no
entanto, abuso é apenas mais uma palavra para iconoclastia.
O curador independente é um artista secular radical. Ele é um ar­
tista porque faz tudo o que um artista faz. Mas ele é um artista que
perdeu essa aura, que não tem mais à sua disposição poderes mágicos
transformadores, que não pode dar o status de arte a objetos. Ele não
usa objetos - inclusive objetos de arte - pela arte, mas abusa deles,
transforma-os em profanos. Contudo, é exatamente isso o que torna
a figura do curador independente tão atraente e essencial para a arte
atual. O curador contemporâneo é o herdeiro do artista moderno, ape­
sar de ele não sofrer as anormalidades mágicas de seu antecessor. Ele
é um artista, mas ateísta e “normal” da cabeça aos pés. O curador é o
agente da profanação da arte, de sua secularização, de seu abuso. Po-
de-se obviamente afirmar que, ao curador independente, bem como
ao curador de museu antes dele, resta apenas depender do mercado
da arte - e até mesmo construir os alicerces para ele. O valor de uma
obra de arte aumenta quando esta é apresentada num museu, ou atra­
vés de seu frequente aparecimento nas diversas exposições temporá­
rias organizadas por curadores independentes - e então, como antes,
a iconofilia dominante prevalece. Esta pode ser realizada para que seja
compreendida e reconhecida - ou não.
O valor de mercado de uma obra de arte não corresponde exa­
tamente à sua narrativa, ou ao seu valor histórico. O tradicional “va­
lor de museu” de uma obra de arte jamais é o mesmo do mercado de
arte. Uma obra de arte pode agradar, impressionar, incitar o desejo de
possuí-la - tudo isso sem ter relevância histórica específica e, portanto,
permanecendo irrelevante para a narrativa do museu. E inversamen­
te: várias obras de arte podem parecer incompreensíveis, entediantes
e depressivas para o público, mas recebem um lugar no museu, porque
são “historicamente novas” , ou pelo menos “relevantes” para um pe­
ríodo específico e, então, podem receber a tarefa de ilustrar certo tipo
de história da arte. A difundida opinião de que uma obra de arte no
museu está “morta” pode ser compreendida com o significado de que
lá elã perde o status de ídolo; ídolos pagãos eram venerados por esta­
rem “vivos” . O gesto iconoclasta do museu consiste exatamente em
transformar ídolos “vivos” em ilustrações “mortas” da história da arte.

70
Pode-se então afirmar que o curador tradicional de museu sempre
sujeitou imagens ao mesmo abuso duplo que o curador independente.
Por um lado, as imagens no museu são estetizadas e transformadas em
arte; por outro, são rebaixadas a ilustrações da história da arte e, por­
tanto, perdem o status de arte.
Esse abuso duplo das imagens, esse gesto iconoclasta duplicado,
apenas recentemente tem sido explicitado, porque, em vez de narrar
o cânone da história da arte, curadores independentes começaram a
contar uns aos outros suas próprias histórias contraditórias. Além dis­
so, essas histórias têm sido contadas através de exposições temporárias
(com suas próprias limitações de tempo) e registradas por documen­
tação incompleta e, frequentemente, até mesmo incompreensível.
O catálogo da exposição para um projeto de curadoria que já apresen­
ta um abuso duplo pode apenas produzir ainda mais abuso. Entre­
tanto, obras de arte tornam-se visíveis apenas como resultado desse
abuso múltiplo. Imagens não emergem no D a se in conforme sua pró­
pria conveniência, onde sua visibilidade original fica então ofuscada
pelo “negócio da arte” , como Heidegger descreve em A origem da obra
d e arte. Isso vai muito além do fato de que esse abuso as torna visíveis.

(“On the Curatorship” , originalmente publicado como “ The Curator as Iconoclast” ,


em Steven Rand e Heather Kouris (eds.), C a u tio n a r y Tales: Critical Curating,
New York, Apexart, 2007, p. 46-55. Tradução para o inglês de Elena Sorokina.)

71
A A R T E

N A E R A D A

B I O P O L Í T I C A

D A O B R A D E

A R T E À

D O C U M E N T A Ç Ã O

D E A R T E
Em décadas recentes, torna-se cada vez mais evidente que o mundo
da arte deslocou seu interesse da obra de arte para a documentação de
arte. Esse deslocamento é sintoma, principalmente, de uma transfor­
mação mais ampla pela qual a arte passa hoje em dia e, por esse motivo,
ele merece uma análise detalhada.
A obra de arte, como é tradicionalmente compreendida, é o que
materializa a arte, que a torna imediatamente presente e visível. Quando
vamos a uma exposição, normalmente pressupomos que o que vere­
mos lá - pinturas, esculturas, desenhos, fotografias, vídeos, ready­
m ad es ou instalações - seja arte. Obras de arte podem, obviamente,

73
referir-se, de uma forma ou de outra, a algo para além de si - a objetos
reais, digamos, ou a assuntos políticos específicos - mas não podem
se referir à arte, porque eles são arte. Mas essa pressuposição tradicio­
nal acerca de o que será encontrado na exposição ou no museu mos-
tra-se cada vez mais ilusória. De modo crescente, hoje, nos espaços de
arte, somos confrontados não só com obras de arte, mas também com
documentação de arte. Esta pode também tomar a forma de pintu­
ras, desenhos, fotografias, vídeos, textos e instalações - ou seja, todas
as formas e mídias pelas quais a arte é tradicionalmente apresentada.
No entanto, no caso da documentação de arte, essas mídias não apre­
sentam arte, mas meramente a documentam. A documentação de
arte, por definição, não é arte, apenas r e fe r e -s e a elã e exatamente
dessa forma deixa claro que a arte, nesse caso, não está mais presente
e imediatamente visível, mas ausente e escondida.
A documentação de arte se refere à arte de duas formas pelo me­
nos. Elã pode referir-se a performances, instalações temporárias ou
acontecimentos, documentados da mesma forma que as performances
teatrais. Nesses casos, pode-se dizer que esses são eventos artísticos
que estiveram presentes e visíveis num dado momento, e que a docu­
mentação posteriormente exposta tem a mera intenção de relembrá-
-los. Obviamente, é uma questão em aberto o fato de essas lembranças
serem realmente possíveis. Desde o advento da desconstrução, se não
antes dele, temos estado atentos para o fato de que qualquer afirmação
de que eventos passados podem ser relembrados de forma direta deve,
no mínimo, ser considerada problemática. Entretanto, enquanto isso,
há cada vez mais documentação de arte sendo produzida e exibida que
não alega tornar presente qualquer evento artístico do passado. Exem­
plos incluem intervenções artísticas variadas e complexas no cotidia­
no, longos e complicados processos de discussão e análise, a criação
de circunstâncias incomuns de vida, a exploração artística na recep­
ção da arte em várias culturas e meios e ações artísticas politicamente
motivadas. Nenhuma dessas atividades artísticas pode ser apresentada
senão por meio da documentação de arte, já que desde o início essas
atividades não servem para produzir uma obra de arte através da qual
a arte como tal pode se manifestar. Consequentemente, essa arte não
aparece em forma de objeto - elã não é produto ou resultado de uma

74
atividade “criativa” . Ao passo que a própria arte é essa atividade, é
a prática de arte como tal. Por conseguinte, documentar a arte não
é tornar presente uma arte do passado, nem a promessa de uma obra
de arte por vir, mas é a única possível referência a uma atividade artís­
tica que não pode ser representada de qualquer outra maneira.
No entanto, classificar a documentação de arte como “simples”
obra de arte seria compreendê-la mal, negligenciando sua originalidade,
sua característica identificadora, que é exatamente o fato de documentar
a arte em vez de apresentá-la. Para quem se dedica à produção de do­
cumentação de arte e não às obras de arte, a arte é idêntica à vida, por­
que esta é, em essência, uma atividade pura que não tem resultado final.
A apresentação de qualquer que seja o resultado final - na forma de obra
de arte - implicaria num entendimento da vida como mero processo
funcional cuja duração é negada e extinta pela criação do produto fi­
nal - o que equivale à morte. Não é coincidência que os museus sejam
tradicionalmente comparados a cemitérios: ao apresentarmos a arte
como resultado final da vida, oblitera-se a vida de uma vez por todas.
A documentação de arte, ao contrário, indica a tentativa de usar a mídia
artística dentro de espaços de arte para referir-se à vida, propriamente
dita, ou seja, a uma atividade pura, à prática pura, a uma vida artística
como seria, sem apresentá-la diretamente. A arte toma-se uma forma
de vida, enquanto a obra de arte toma-se não arte, mera documentação
dessa forma de vida. Pode-se até dizer que a arte se tomou biopolítica,
porque começa a utilizar meios artísticos para produzir e documentar
a vida como atividade pura. De fato, a documentação de arte como for­
ma de arte somente poderia se desenvolver sob as condições da atual
era biopolítica, na qual a própria vida se tomou objeto de intervenção
técnica e artística. Dessa forma, confronta-se a questão sobre a relação
entre arte e vida - e, de fato, num contexto completamente novo, defi­
nido pela aspiração da arte atual em tomar-se vida elã mesma, não para
meramente retratar a vida e oferecer a elã produtos de arte.
Tradicionalmente, a arte foi dividida em “belas” artes, puras
e contemplativas, e artes aplicadas, isto é, desig n . A primeira não se
preocupou com a realidade, mas com imagens da realidade. As artes
aplicadas constroem e compõem elas mesmas as coisas da realidade.
Nesse sentido, a arte assemelha-se à ciência, que também pode ser

75
dividida numa versão teórica e numa aplicada. A diferença entre be­
las artes e ciências teóricas, no entanto, é que a ciência tem tentado
tornar as imagens da realidade que cria tão transparentes quanto pos­
sível, para julgar a realidade propriamente dita com base nessas ima­
gens, enquanto que a arte, tomando outro caminho, tem como tema
sua própria materialidade e falta de clareza, a obscuridade e, portanto,
a autonomia de imagens e a inabilidade resultante destas em reprodu­
zir a realidade adequadamente. Imagens artísticas - do “fantástico” ,
do “irreal” , como exemplo do surreal e, assim por diante, até o abstra­
to - têm intenção de abordar a lacuna existente entre arte e realidade.
E até mesmo a mídia que, pensa-se, reproduz fielmente a realidade -
tal como a fotografia e o filme - também é utilizada no contexto da arte
de modo a tentar diminuir a confiança de que a reprodução é capaz de
ser fiel à realidade. A arte “pura” , portanto, se estabelece no ní­
vel do significante. Aquilo a que o significante se refere - realidade,
sentido,significado foi, em contrapartida, tradicionalmente inter­
pretado como pertencente à vida e, assim, removido da esfera onde
a arte é válida. Mas não pode também ser dito sobre a arte aplicada que
elã se preocupa com a vida. Ainda que nosso ambiente seja amplamen­
te moldado pelas artes aplicadas, como, por exemplo, a arquitetura,
o urbanismo, o d esig n de produtos, a propaganda e a moda, fica a car­
go da vida encontrar a melhor forma de lidar com todos esses produ­
tos de d esig n . A vida, propriamente dita, como pura atividade e dura­
ção puras, é, logo, fundamentalmente inacessível às artes tradicionais,
que permanecem direcionadas para produtos ou resultados, de uma
forma ou de outra.
Em nossa era de biopolítica, entretanto, a situação está mudando,
porque a principal preocupação desse tipo de política é o próprio tem­
po de vida. A biopolítica é frequentemente confundida com estratégias
científicas e técnicas de manipulação genética que, pelo menos poten­
cialmente, têm por objetivo reformar o corpo vivo individual. Entre­
tanto, essas próprias estratégias são ainda questão de desig n - apesar
daquelas do organismo vivo. O verdadeiro alcance das tecnologias bio-
políticas está mais na formação do tempo de vida - na formação da vida
como atividade pura que ocorre no tempo. Desde a criação de planos de
saúde vitalícios como meio de regular o relacionamento entre tempo

76
de trabalho e tempo livre, até a morte supervisionada ou até mesmo
causada pelo plano de saúde, o tempo de vida de uma pessoa, atual­
mente, está sendo constantemente moldado e artificialmente melho­
rado. Vários autores, de Michel Foucault e Giorgio Agamben a Antonio
Negri e Michael Hardt, escreveram sobre a biopolítica como a verdadei­
ra esfera na qual o desejo político e o poder da tecnologia de moldar as
coisas são manifestados hoje. Isso quer dizer que se a vida não é mais
entendida como evento natural, destino, sorte, mas como tempo arti­
ficialmente produzido e moldado, então elã é automaticamente politi­
zada, pois as decisões técnicas e artísticas que dizem respeito ao molde
do tempo de vida são, sempre, decisões políticas também. A arte que é
feita sob essas novas condições da biopolítica - sob as condições de um
tempo de vida artificialmente moldado - não pode fazer nada além de
encarar essa artificialidade como tema explícito. Agora, tempo, dura­
ção e, portanto, vida não podem também ser apresentados diretamente,
mas apenas documentados. O meio dominante da biopolítica moderna
é, assim, documentação burocrática e tecnológica, o que inclui plane­
jamento, decretos, relatórios, pesquisas de estatística e projetos. Não é
coincidência que a arte também use o mesmo meio de documentação
quando quer se referir a elã própria como vida.
De fato, uma característica da tecnologia moderna é que não
somos mais capazes de fazer uma distinção exata, por meios visuais
apenas, entre processos produtivos naturais e orgânicos, artificiais ou
tecnológicos. Isso é demonstrado a partir de alimentos geneticamente
modificados, mas também através de inúmeras discussões - particular­
mente intensas hoje em dia - sobre os critérios para se decidir quando
a vida começa e quando elã acaba. Em outras palavras, como alguém
pode distinguir um início de vida tecnologicamente facilitado - atra­
vés da inseminação artificial, por exemplo - de uma continuação “na­
tural” da vida; ou ainda, distinguir essa continuação natural de meios
igualmente dependentes da tecnologia de estender a vida para além
da morte “natural” ? Quanto mais essas discussões duram, menos os
participantes conseguem chegar a um acordo quanto onde exatamente
a linha entre vida e morte pode ser desenhada. Quase todos os filmes
recentes de ficção científica apresentam como tema central essa inabili­
dade de distinguir o natural do artificial: a superfície de um ser humano

77
pode esconder uma máquina; da mesma forma, a superfície de uma má­
quina pode esconder um ser humano - um alienígena, por exemplo.1
A diferença entre uma criatura genuinamente viva e seu substituto ar­
tificial é considerada um mero produto da imaginação, uma suposição
ou suspeita que não pode ser nem confirmada nem refutada a partir
da observação. Mas, se a coisa viva pode ser reproduzida e substituída
à vontade, elã perde então sua inscrição única e irrepetível no tempo -
seu tempo de vida único e irrepetível que, no final, é o que faz de um ser
vivo um ser vivo. É exatamente nesse ponto que a documentação se tor­
na indispensável, produzindo a vida do ser vivo como tal: a documenta­
ção inscreve a existência de um objeto na história, dá um tempo de vida
a essa existência e dá ao objeto vida como tal - independente do fato
de esse objeto ter sido “originalmente” vivo ou artificial.
A diferença entre vivo e artificial é, portanto, uma diferença ex-
clusivamente narrativa. Elã não pode ser observada, mas somente dita,
documentada: um objeto pode receber uma pré-história, uma gênesis,
uma origem por meio de uma narrativa. A documentação técnica, in­
cidentalmente, jamais é construída como história, mas sempre como
sistema de instruções para produzir objetos específicos, em dadas
circunstâncias. A documentação de arte, seja elã real ou fictícia, é, ao
contrário, primeiramente narrativa e, portanto, evoca a irrepetibilida-
de do tempo da vida. O artificial pode, assim, tornar-se vivo, natural,
por meio da documentação de arte, ao narrar a história de sua origem,
de sua “feitura” . A documentação de arte é, portanto, a arte de fazer
coisas vivas a partir das artificiais, uma atividade viva a partir da téc­
nica: é uma bioarte que é, simultaneamente, biopolítica.
Essa função básica da documentação de arte foi notavelmente
demonstrada por Ridley Scott em B lade R un ner. No filme, os huma­
nos artificialmente produzidos, denominados replicantes, recebem
documentação fotográfica no momento em que são produzidos, o que
supostamente certifica sua “origem natural” - fotografias falsas de
família, residências etc. Apesar de essa documentação ser fictícia, elã
lhes dá vida - subjetividade - o que os torna indistinguíveis entre os
seres humanos “naturais” , tanto em seu interior quanto no exterior.
Por serem inscritos na vida e na história por meio dessa documenta­
ção, os replicantes podem continuar essa vida de maneira ininterrupta

78
e completamente individual. Em consequência, a busca do herói por
uma distinção real e objetivamente determinável entre o natural e o
artificial, em última análise, prova-se fútil, porque, como vimos, essa
distinção pode ser estabelecida apenas através de uma narrativa artisti­
camente documentada.
O fato de que a vida é algo que pode ser documentado, mas não
imediatamente experimentado, não é uma nova descoberta. Alguém
poderia até mesmo afirmar que esta é a definição da vida: elã pode ser
documentada, mas não mostrada. Em seu livro H om o sa cer, Giogio
Agamben destaca que a “vida nua” ainda precisa atingir uma represen­
tação política e cultural qualquer.2 Agamben sugere que olhemos para
o campo de concentração como uma representação cultural da vida nua,
porque seus prisioneiros têm todas as formas de representação política
roubadas - a única coisa que pode ser dita sobre eles é que estão vivos.
Eles só podem ser mortos, não sentenciados por um tribunal ou sacrifi­
cados através de um ritual religioso. Agamben acredita que esse tipo de
vida além de todas as leis, mas ainda ancorada na lei, é paradigma
da vida propriamente dita. Mesmo que haja muito a ser dito para essa de­
finição de vida, deve-se lembrar que a vida num campo de concentração
é, geralmente, tida como além de nossos poderes de observação ou ima­
ginação. A vida num campo de concentração pode ser relatada - pode ser
documentada - , mas não pode ser apresentada para ser vista.3A docu­
mentação de arte, portanto, descreve a esfera da biopolítica ao mostrar
como um ser vivo pode ser substituído por um artificial e como o artifi­
cial pode ser transformado em vivo por meio de uma narrativa. Alguns
exemplos ilustrarão as diferentes estratégias de documentação.
No final da década de 1970 e início da década de 1980, o grupo
de Moscou, Kollektivnye Deystviya (Grupo de Ação Coletiva) organi­
zou uma série de performances, em sua maioria concebida pelo artista
Andrey Monastyrsky, ocorridas fora de Moscou somente com membros
do grupo e poucos convidados presentes. Essas performances foram
colocadas à disposição de uma audiência mais ampla somente através
de documentação na forma de fotografias e textos.4 Os textos não des­
creviam as performances em si tanto quanto as experiências, pensa­
mentos e emoções dos que participavam delas - como resultado, eles
tinham fortes características narrativas e literárias. Essas performances

79
altamente minimalistas aconteciam em um espaço branco, coberto de
neve - uma superfície branca que relembrava o pano de fundo branco
das pinturas do Suprematismo de Kazimir Malevich, que se tomaram
a marca registrada da vanguarda russa. Ao mesmo tempo, o significado
desse pano de fundo branco que Malevich introduziu como símbolo da
“não objetividade” radical de sua arte, símbolo de uma radical ruptura
com toda natureza e toda narrativa, foi completamente transformado.
Ao equiparar o pano de fundo branco “artificial” do Suprematismo com
a neve russa “natural” a arte “não objetiva” de Malevich é transporta­
da de volta à vida - , especificamente por usar um texto narrativo que
atribuía outra genealogia (ou melhor, impunha essa genealogia) para
o branco do Suprematismo. Assim, as pinturas de Malevich perdem o
caráter de obra de arte autônoma e, por sua vez, são interpretadas como
documentação de uma experiência vivida - na neve da Rússia.
Essa reinterpretação da vanguarda russa é ainda mais direta no
trabalho de outro artista de Moscou desse período, Francisco Infante,
que, em sua performance P o sv ya sh ch en ie (Dedicação) espalhou uma
das composições suprematistas de Malevich na neve - mais uma vez
substituindo o pano de fundo branco por neve. Uma genealogia viva,
fictícia, é atribuída à pintura de Malevich e, como resultado, elã é con­
duzida para fora da história da arte e para dentro da vida - assim como
os replicantes em B lade R unner. Essa transformação da obra de arte em
documentação de um evento de vida abre um espaço onde todos os ti­
pos de genealogia poderiam ser igualmente descobertos ou inventados,
sendo que vários deles eram bastante plausíveis historicamente; por
exemplo, o pano de fundo branco das pinturas suprematistas também
pode ser interpretado como o pedaço de papel branco que serve como
pano de fundo para todo tipo de documentação burocrática, tecnológi­
ca, ou artística. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a documentação
tem a neve como pano de fundo - e, dessa forma, o jogo de inscrições
narrativas pode ser prolongado cada vez mais.
Tal drama das inscrições narrativas também está representa­
do nas instalações L es aveugles (Os cegos) e Blind Color (Cor cega), de
Sophie Calle. L es aveugles , de 1986, documenta uma pesquisa conduzida
pela artista em que pedia a pessoas nascidas cegas que descrevessem
sua concepção de beleza. Várias respostas se referiam a obras de arte

80
figurativas sobre as quais essas pessoas cegas ouviram e que eram des­
critas como sendo representações do mundo real e visível de maneira
especialmente impressionante. Em sua instalação, a artista confronta as
descrições dessas obras de arte feitas pelos cegos com reproduções das
pinturas descritas. Em Blind Color, de 1991, Calle pediu apessoas cegas que
descrevessem o que viam, então escreveu suas respostas em painéis, que
justapôs com textos em pinturas monocromáticas escritos por artistas
tais como Kazimir Malevich, Yves Klein, Gerhard Richter, Piero Manzoni
e Ad Reinhardt. Nessas documentações de arte, apresentadas como re­
sultado de pesquisa sociológica, a artista consegue atribuir genealogia
desconhecida a exemplos relativamente familiares de arte tradicional,
figurativa e mimética, bem como aos exemplos de pinturas modernas
que são normalmente entendidas como artificiais, abstratas e autôno­
mas. Para os cegos, pinturas miméticas e figurativas tomam-se cons­
truções totalmente ficcionais, artificiais - pode-se até dizer, autônomas.
Em oposição, os modernistas monocromáticos mostram-se como ver­
dadeiras representações da visão do cego. Aqui, toma-se óbvio até que
ponto nossa compreensão de uma obra de arte em particular é depen­
dente de sua função como documentação de certa situação de vida.
Finalrnente, devemos mencionar aqui a performance de Carsten
Hõller, T h eB a u d o u in /B o u d ew ijn E x p erim en t:A L a rg e-S ca le, N o n -F ata listic
E xperim en t in D eviation, que aconteceu no Atomium, em Bruxelas, em
2001. Um grupo de pessoas foi fechado no interior de uma das esferas
que formam o Atomium, onde passaram um dia inteiro isoladas do
mundo externo. Hõller frequentemente se envolve em transformar es­
paços “abstratos” , minimalistas, de arquitetura modernista radical, em
espaços de experiência de vida - outra forma de transformar arte em
vida por meio de documentação. Nesse caso, ele escolheu para sua per­
formance um espaço que materializa um sonho utópico e não sugere
imediatamente um ambiente doméstico. Entretanto, a priori, a obra faz
alusão a programas de televisão comercial tais como B ig Brother, com a
sua representação de pessoas forçadas a passar um longo tempo juntas
em um espaço fechado. Mas, aqui, a diferença entre uma documenta­
ção de televisão comercial e uma documentação de arte toma-se espe­
cialmente clara. Exatamente porque a televisão, repetidas vezes, exibe
imagens de pessoas enclausuradas, o espectador começa a suspeitar

81
de manipulação e constantemente se pergunta o que provavelmente
acontece no espaço atrás daquelas imagens da vida “real” . Por outro
lado, a performance de Hõller não é exibida, apenas documentada - es­
pecificamente por meio de narrativas dos participantes que descrevem
exatamente aquilo que não pôde ser visto. Aqui, então, a vida é entendi­
da como algo narrado e documentado, mas incapaz de ser mostrado ou
apresentado. Isso empresta à documentação a plausibilidade de repre­
sentar a vida, o que uma apresentação visual direta não possui.

(“Art in the Age of Biopolitics: From Artwork to Art Documentatio” , originalmente


publicado como “Kunst im Zeitalter der Biopolitik. Vom Kunstwerk zur
Kunstdokumentation” , em Okwui Enwesor et al. (eds.), K a ta lo g , Documenta 11_
Plattform 5, Hatje Cantz, 2002, p. 107-113. Tradução para o inglês de Steven Lindberg.)

82
T O P O L O G I A

D A A U R A

Alguns dos exemplos acima são especialmente relevantes para a aná­


lise da documentação de arte porque mostram como obras de arte
famosas, que são bem conhecidas na história da arte, podem ser usa­
das de forma diferente - não como arte, mas como documentação.
Ao mesmo tempo, elas também revelam os procedimentos pelos quais
a documentação de arte é produzida, juntamente com a diferença en­
tre obra de arte e documentação de arte. Mas uma pergunta impor­
tante permanece sem resposta: se a vida é apenas documentada pela
narrativa e não pode ser mostrada, como pode tal documentação ser
mostrada, então, num espaço de arte sem deturpar sua natureza?
A documentação de arte é normalmente mostrada no contexto de uma
instalação. A instalação, no entanto, é uma forma de arte em que não
somente imagens, textos ou outros elementos de que é composta, mas
também o próprio espaço representam papel decisivo. Esse espaço não
é abstrato ou neutro, mas é, ele mesmo, uma obra de arte e, ao mesmo
tempo, um espaço para a vida. Colocar uma documentação em uma
instalação como ato de inscrição num espaço particular não é, por­
tanto, um ato neutro de exibição, mas um ato que atinge, no espaço,
o que a narrativa atinge no tempo: inscrição na vida. A forma como

83
esse mecanismo funciona pode ser mais bem descrito através da con­
cepção de aura de Walter Benjamin, que ele apresentou exatamente
com a intenção de distinguir o espaço de vida da obra de arte e seu
substituto técnico que não tem lugar, nem contexto.
O texto de Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibili-
dade técnica” ficou famoso, primeiramente, por seu uso do conceito
de aura. Desde então, esse conceito teve uma longa carreira na filoso­
fia, especialmente na célebre expressão “perda de aura” , que caracteriza
o destino do original na era moderna. Essa ênfase na perda de aura é, por
um lado, legítima, e está claramente em conformidade com a intenção
global do texto. Por outro lado, elã levanta a questão de como a aura se
origina antes de poder, ou dever, ser perdida. Aqui, obviamente, falamos
de aura não no sentido genérico, religioso ou teosófico, mas no senti­
do específico usado por Benjamin. Uma leitura cuidadosa do texto de
Benjamin toma claro que a aura se origina apenas em virtude da tecno­
logia moderna da reprodução - ou seja, elã emerge no mesmo momento
em que é perdida. E emerge pelo mesmo motivo pelo qual foi perdida.
Nesse artigo, Benjamin começa com a possibilidade da reprodu­
ção perfeita, na qual não é mais possível distinguir material, visual
e empiricamente o original da cópia. Repetidas vezes, em seu texto,
Benjamin insiste nessa perfeição. Ele fala de reprodução técnica como
“a mais perfeita reprodução” que é capaz de manter intactas as qua­
lidades materiais da obra de arte propriamente dita.1 Hoje, estamos
certamente abertos à dúvida se as técnicas de reprodução existen­
tes naquele tempo, ou até mesmo as atuais, nunca atingiram, de fato,
um grau de perfeição tal que seja impossível distinguir o original da
cópia. Entretanto, para Benjamin, a possibilidade ideal dessa repro-
dutibilidade perfeita, ou uma clonagem perfeita, é mais importante
que as possibilidades técnicas que realmente existiram em seu tempo.
A questão que ele levanta é: a extinção da distinção material entre ori­
ginal e cópia significa a extinção da distinção propriamente dita?
Benjamin responde a essa questão na negativa. O desaparecimen­
to de qualquer distinção material entre o original e a cópia - ou, pelo
menos, seu potencial desaparecimento - não elimina outra distinção,
invisível, mas não menos real, entre eles: o original tem uma aura que
a cópia não tem. Assim, a noção de aura torna-se necessária como

84
critério de distinção entre original e cópia, apenas porque a tecnologia
da reprodução tornou inútil todo critério material. Isso significa que
o conceito de aura e a própria aura pertencem exclusivamente à mo­
dernidade. Aura é, para Benjamin, o relacionamento da obra de arte
com o local onde é encontrada - o relacionamento com seu contexto
externo. O espírito da obra de arte não está em seu corpo, mas o corpo
da obra de arte é encontrado em sua aura, em seu espírito.
Essa outra topologia do relacionamento entre espírito e corpo tra­
dicionalmente tem seu lugar na gnose, na teosofia e em escolas simila­
res de pensamento, sobre as quais não seria apropriado discorrer aqui.
A percepção importante é que, para Benjamin, a distinção entre original
e cópia é exclusivamente topológica - e, como tal, é totalmente indepen­
dente da natureza material da obra. O original tem um lugar particular
- e por esse lugar particular o original é inscrito na história como objeto
único. A cópia, em contraste, é virtual, sem lugar, sem história: desde o
começo, elã surge como potencial multiplicidade. Reproduzir algo é re-
movê-lo de seu local, é “desterritorializá-lo” - a reprodução transpõe
a obra de arte para uma rede de circulação topológica indeterminada.
As formulações de Benjamin são bem conhecidas: “Até mesmo na mais
perfeita reprodução de uma obra de arte falta um elemento: seu aqui
e agora, sua existência única no lugar onde por acaso está.”2 Ele conti­
nua: “Esses ‘aqui’ e ‘agora’ do original constituem o conceito de sua au­
tenticidade e estabelecem as bases para a noção de tradição que, até os
dias presentes, passou esse objeto para frente como algo que possui ego
e identidade.”3 A cópia, portanto, não tem autenticidade; não por ser
diferente do original, mas porque não tem localização e, consequente­
mente, não está inscrita na história.
Para Benjamin, assim, a reprodução técnica como tal não é, de for­
ma alguma, a razão para a perda de aura. A perda de aura é introduzida
apenas com um novo gosto estético - o gosto do consumidor moder­
no que prefere a cópia, ou uma reprodução do original. O consumidor
atual prefere que a arte lhe seja trazida - entregue. Esse consumidor
não quer sair, viajar para outro lugar, ser inserido em outro contexto
para experimentar o original como original. Em vez disso, ele quer que
o original chegue até ele - como de fato chega, mas somente como cópia.
Quando a distinção entre original e cópia é topológica, a movimentação

85
topologicamente definida do espectador define essa distinção. Se for­
mos até a obra de arte, então será um original. Se forçarmos a obra
de arte a vir até nós, então será uma cópia. Por essa razão, a distin­
ção entre original e cópia tem, no trabalho de Benjamin, dimensão de
violência. Na verdade, Benjamin fala não só da perda de aura, mas de
sua destruição.4 E a violência dessa destruição da aura não é diminu­
ída pelo fato de que elã é invisível. Pelo contrário, a violência material
contra o original é bem menos violenta, do ponto de vista de Benjamin,
porque elã, ainda assim, inscreve-se na história do original ao deixar
nele certos traços no corpo. A “desterritorialização” do original ao tra-
zê-lo para perto representa, em contraste, um invisível e, portanto, um
emprego de violência ainda mais devastador, porque não deixa para
trás traços materiais.
A nova interpretação de Benjamin para a distinção entre original
e cópia abre, portanto, a possibilidade não somente de fazer uma cópia
a partir de um original, mas também de fazer um original a partir de
uma cópia. De fato, quando a distinção entre original e cópia é mera­
mente topológica e contextuai, torna-se possível não somente remover
um original de seu local e “desterritorializá-lo” , mas também “reter-
ritorializar” a cópia. O próprio Benjamin chama a atenção para essa
possibilidade quando escreve sobre a figura da iluminação profana e
se refere às formas de vida que podem levar a elã: “O leitor, o pensa­
dor, o ocioso, o flâ n e u r são tipos de ülum inati tanto quanto o opiófago,
o sonhador, o extasiado.”5 Um é atingido pelo fato de que essas figuras
de iluminação profana são também figuras de movimento - princi­
palmente o flâ n e u r. Este não exige que as coisas venham a ele; ele vai
até as coisas. Nesse sentido, o flâ n e u r não destrói a aura das coisas, ele
as respeita. Ou ainda, somente através dele a aura emerge novamente.
A figura da iluminação profana é a inversão da “perda de aura” que
advém de colocar a cópia em topologia de circulação indeterminada,
apesar da mídia de massa moderna. No entanto, agora está claro que
a instalação pode ser contada entre as figuras de iluminação profana,
porque transforma o espectador e m flâ n e u r.
A documentação de arte que, por definição, consiste de imagens
e textos reproduzíveis, adquire através da instalação uma aura de ori­
ginal, vivo, histórico. Na instalação, a documentação ganha um local -

86
o aqui e agora de um evento histórico. Devido à distinção entre original
e cópia ser inteiramente topológica e situacional, todos os documentos
colocados na instalação se tornam originais. Se a reprodução faz cópias
a partir de originais, a instalação faz originais a partir de cópias. Isso
significa que o destino da arte moderna e contemporânea não pode, de
forma alguma, ser reduzido à “perda de aura” . Ao contrário, a (pós)
modernidade desempenha o complexo papel de remover de locais
e colocar em novos locais, de “desterritorialização” e “reterritorializa-
ção” , de remover e restaurar a aura. Nisso, o que distingue a era moder­
na de períodos anteriores é simplesmente o fato de que a originalidade
de uma obra moderna não é determinada por sua natureza material,
mas por sua aura, por seu contexto, por seu local histórico. Confor­
me Benjamin enfatiza, a originalidade não representa um valor eterno.
Na era moderna, a originalidade não desapareceu simplesmente - elã
se tornou variável. Do contrário, o valor eterno de originalidade sim­
plesmente teria sido trocado pelo (não) valor eterno da não originalida­
de - como de fato ocorre em algumas teorias de arte. Da mesma forma,
cópias eternas não podem existir mais que eternos originais. Ser origi­
nal, possuir uma aura, significa o mesmo que estar vivo. Mas a vida não
é algo que o ser vivo tem “dentro de si” . É, ao invés disso, a inscrição de
certo ser num contexto de vida - num tempo e espaço de vida.
Isso também revela a razão mais profunda de a documentação
de arte agora servir como campo da biopolítica - e revela a dimen­
são mais profunda da biopolítica moderna em geral. Por um lado, a
era moderna constantemente substitui o artificial, o tecnicamente
produzido e a simulação pelo real ou (o que equivale à mesma coisa)
o reproduzível pelo único. Não é coincidência a clonagem ter se tornado
o emblema da biopolítica, pois é exatamente na clonagem - não im­
porta se jamais se tornará realidade, ou para sempre permanecerá
fantasia - que percebemos a vida ser removida de seu local, o que
é percebido como verdadeira ameaça da tecnologia contemporânea.
Em reação a essa ameaça, estratégias conservadoras e defensivas são
oferecidas, na tentativa de evitar essa remoção da vida de seu local
por meio de regulamentação e proibição, ainda que a futilidade desse
esforço seja óbvia até mesmo para aqueles em luta por aquelas estraté­
gias. O que é negligenciado nisso é que a era moderna tem, claramente,

87
estratégias para fazer algo vivo e original a partir do artificial e re­
produzido. As práticas de documentação de arte e de instalações, em
especial, revelam outro caminho para a biopolítica: em vez de lutar
contra a modernidade, elas desenvolvem estratégias de resistência e de
inscrição baseadas em situação e contexto, o que torna possível trans­
formar o artificial em algo vivo e o repetitivo em algo único.

88
I C O N O C L A S T I A

C O M O

I N S T R U M E N T O

A R T Í S T I C O

E S T R A T É G I A S

I C O N O C L A S T A S

E M F I L M E S
O filme jamais habitou um contexto sagrado. Desde sua origem, o fil­
me transitou pelas profundezas sombrias da vida profana e comer­
cial, sempre um companheiro de cama do entretenimento de massa
barato. Até mesmo as tentativas dos regimes totalitários do século XX
de glorificá-lo nunca foram realmente bem sucedidas - o resultado
foi apenas o recrutamento de curta duração de filmes para as várias
necessidades de propaganda. As razões para isso não serão neces­
sariamente encontradas no fato de o filme ter caráter de meio: ele
simplesmente chegou muito tarde. Quando o filme emergiu, a cultu­
ra já havia mostrado seu potencial para a consagração. Portanto, dada

89
a origem secular do cinema, à primeira vista pareceria inapropriado
associar a iconoclastia ao filme. Na melhor das hipóteses, o filme se
mostra capaz somente de servir como cenário e ilustrar cenas histó­
ricas de iconoclastia, mas jamais de ser, ele mesmo, iconoclasta.
No entanto, o que pode ser afirmado é que, ao longo de sua história
como veículo, o filme empreendeu uma batalha mais ou menos aberta
contra outros como a pintura, a escultura, a arquitetura e até mesmo
o teatro e a ópera. Todos eles se vangloriam das origens sagradas que,
na cultura atual, ainda conseguem dar a eles status de “alta” arte aris­
tocrática. Ainda assim, é exatamente a destruição desses altos valores
culturais que tem sido retratada e celebrada repetidas vezes no filme.
Portanto, a iconoclastia cinematográfica atua menos em relação a uma
luta religiosa ou ideológica do que em termos de conflito entre diferen­
tes mídias; isso é uma iconoclastia conduzida não contra sua própria ge­
nealogia sagrada, mas contra outras mídias. Ao mesmo tempo, no curso
da longa história de antagonismo entre várias mídias, o filme adquiriu
o direito de agir como ícone da modernidade secular. Inversamente, ao
ser transferido para a esfera tradicional da arte, o filme, por sua vez, tem
se tomado cada vez mais o sujeito de gestos iconoclastas: por meio de
novas tecnologias tais como vídeo, computadores e DVDs, o movimento
da imagem do filme foi parado no meio do caminho e dissecado.
Em termos históricos, o gesto iconoclasta nunca funcionou como
expressão da atitude cética em relação à verdade da imagem. Essa ati­
tude está mais refletida na curiosidade imparcial acerca da abundância
de aberrações religiosas agravada pela conservação bem-intenciona­
da da evidência histórica destas por museus - e certamente não está
acompanhada da destruição dessa evidência. A profanação de ídolos
antigos acontece apenas em nome de outros deuses, mais recentes.
O propósito da iconoclastia é provar que os deuses antigos perderam
seu poder e, por conseguinte, não são mais capazes de defender seus
templos e imagens terrestres. Dessa forma, o iconoclasta demonstra
como leva a sério a reivindicação dos deuses pelo poder, ao contestar a
autoridade dos deuses antigos e ao confirmar seu próprio poder. Nes­
se veio, para citar apenas alguns exemplos, templos de religiões pagãs
foram destruídos em nome do Cristianismo, igrejas católicas foram es­
poliadas em nome de uma interpretação protestante do Cristianismo e,

90
mais tarde, todos os tipos de igrejas cristãs foram destruídas em nome
da religião da Razão - considerada mais poderosa que a autoridade
do velho deus bíblico. Em contrapartida, o poder da razão, como ma­
nifestado por uma imagem humana particular, humanisticamente
definida, foi mais tarde atacado, de modo iconoclasta, em nome da
cruzada financiada pelo Estado para maximizar forças produtivas, as­
segurar a onipotência da tecnologia e promover a total mobilização da
sociedade - pelo menos na Europa central e oriental. E recentemente
testemunhamos a cerimônia de destruição e remoção dos ídolos caí­
dos do socialismo, agora em nome da religião ainda mais poderosa do
consumismo desmedido. Parece que, em certo momento, o progresso
tecnológico foi realizado de forma a depender do consumismo, a se­
guir a máxima de que suprimento é gerado por demanda. Portanto, por
hora, as marcas de mercadoria permanecerão como nossos mais novos
deuses do lar, pelo menos até que uma raiva nascente e iconoclasta
surja contra elas também.
Pode-se, portanto, dizer que a iconoclastia funciona como um
mecanismo de inovação histórica, como meio de reavaliar valores
através de um processo de destruição constante dos antigos valores e
de introdução, no mesmo lugar, dos novos. Isso explica porque o ges­
to iconoclasta sempre parece apontar para a mesma direção histórica,
pelo menos enquanto a história fôr compreendida a partir da tradi­
ção nietzschiana, que a vê como escalada do poder. Nessa perspectiva,
a iconoclastia aparece como uma série de progressivos movimentos de
ascensão histórica, constantemente limpando o caminho de tudo o que
se tornou redundante, impotente e sem significado interior, para abrir
caminho para o que quer que o futuro possa trazer. É por isso que toda
crítica à iconoclastia tem, tradicionalmente, um ressaibo reacionário.
No entanto, uma conexão tão próxima entre iconoclastia e pro­
gresso histórico não é logicamente necessária, já que a iconoclastia
aborda não somente o velho, mas também o novo: nos estágios iniciais
de sua missão, os devotos de novos deuses sempre estiveram sujeitos
à perseguição e à profanação de seus símbolos, sejam eles os primei­
ros cristãos, revolucionários, marxistas ou até mesmo hippies, aqueles
mártires do consumismo e da moda. Na essência, em cada ocasião essa
perseguição é também sinal de que os novos deuses não são poderosos

91
o suficiente ou, pelo menos, não tão poderosos quanto os deuses anti­
gos. Em vários casos, esse gesto tem se provado efetivo: os novos movi­
mentos religiosos foram suprimidos e o poder dos antigos deuses rea­
firmado. Obviamente pode-se, se assim o desejar, inserir nele um giro
hegeliano e perceber um estratagema da razão, que oferece apoio rea­
cionário para a marcha do progresso. Entretanto, em vez desses gestos
de supressão e destruição nivelados a novos movimentos serem vistos
como iconoclastas, eles são, normalmente, vistos como o martírio da­
quilo que é novo. De fato, a maioria das religiões nutre cânones ico­
nográficos compostos por imagens que retratam seu martírio anterior.
A esse respeito, pode-se dizer que a iconografia de cada religião ante­
cipa qualquer gesto do qual elã possa ser vítima. O único fator que dis­
tingue essa antecipação da verdadeira destruição é que a sobrevivência
(no primeiro caso), em vez da queda (no segundo caso), confirma-se
como objeto de aspiração e celebração. Essa diferença pode ser igua­
lada às posições contrastantes de vencedor e subjugado, entre as quais
o observador está livre para escolher com qual das duas ele prefere se
identificar, tudo dependendo de sua visão pessoal da história.
A história é também feita mais de renovação que de inovação, em
que a maioria das inovações aparece como renovações, e a maioria das
renovações como inovações. Numa inspeção mais detalhada, perde-
-se gradualmente toda a esperança de determinar qual força histórica
é, no final, a vencedora para distinguir entre iconoclastia e martírio.
Pois, aqui, não pode haver pergunta sobre o “finalrnente” : a história se
apresenta como uma sequência de reavaliações de valores sem qual­
quer direção abrangente discernível. Além disso, realmente não temos
meios de saber se uma derrota significa declínio, ou se uma vitória
é crescimento no poder. Tanto a derrota quanto o martírio contêm a pro­
messa que falta na vitória. A vitória leva à sua “apropriação” pelo sta tu s
quo, enquanto a derrota pode, mais tarde, tornar-se uma vitória capaz
de reavaliar o sta tu s quo. De fato, pelo menos desde a morte de Cristo,
o gesto iconoclasta tem se provado falho, essencialmente porque ele
se revela, instantaneamente, como celebração de sua suposta vítima.
À luz da tradição cristã, a imagem de destruição deixada para trás
pelo gesto iconoclasta é quase automaticamente transformada na
imagem de triunfo da vítima, bem antes de a mais antiga ressurreição

92
ou reavaliação histórica “realmente” ocorrer. Condicionada pelo Cris­
tianismo por um tempo considerável, nossa imaginação iconográfica já
não precisa esperar para reconhecer a vitória na derrota: aqui, a derrota
é equacionada com a vitória desde o início.
A forma como esse mecanismo funciona no mundo moderno pós-
-cristão pode claramente ser demonstrada com exemplos da vanguarda
histórica. Pode-se dizer que a vanguarda não é nada além de um martírio
encenado da imagem que substituiu a imagem cristã de martírio. Afmal,
a vanguarda abusa do corpo da imagem tradicional, com todas as for­
mas de tortura totalmente retrospectivas à infligida no corpo de Cristo,
na iconografia do Cristianismo medieval.1 Em seu tratamento pela van­
guarda, a imagem é, tanto simbólica quanto literalmente, serrada, cor­
tada, fragmentada, furada, escavada, arrastada pela poeira e exposta ao
ridículo. Também não é por acaso que o vocabulário usado pela vanguar­
da histórica em seus manifestos reproduz a linguagem da iconoclastia.
Encontramos menções de descartar tradições, romper convenções, des­
truir a arte antiga e erradicar valores desatualizados. Isso, de forma algu­
ma, é impulsionado por uma necessidade cruel de maltratar os corpos
de imagens inocentes. Esses restos e essa destruição também não têm
a intenção de limpar o caminho para o surgimento de novas imagens
e para a introdução de novos valores. Longe disso, uma vez que as pró­
prias imagens de restos e destruição são os ícones dos novos valores. Aos
olhos da vanguarda, os gestos iconoclastas representam um instrumento
artístico, utilizado menos como meio de destruição de ícones antigos do
que como maneira de criar novas imagens ou, de fato, novos ícones.
Entretanto, essa possibilidade de empregar estrategicamente
a iconoclastia como instrumento artístico surgiu porque a vanguarda,
por sua vez, mudou o foco da mensagem para o veículo. A destruição
de imagens antigas que materializam mensagens específicas não tem
o objetivo de gerar novas imagens que materializam uma nova men­
sagem, mas destacar a materialidade do veículo escondido por trás de
qualquer mensagem “espiritual” . As coisas das quais a arte é feita so­
mente podem tornar-se visíveis uma vez que a imagem deixe de ser­
vir como manifestação de uma mensagem artística específica “cons­
ciente” . Assim, na prática artística da vanguarda, o gesto iconoclasta
é também, sem dúvida, destinado a ser um meio de remover o que

93
envelheceu e enfraqueceu e afirmar a supremacia do que é poderoso.
Todavia, isso não é mais praticado na busca de uma nova mensagem
religiosa ou ideológica, mas em nome do poder do próprio veículo.
É significante que Malevich, por exemplo, fale da “supremacia da pintu­
ra” que ele espera atingir com sua arte - o que significa pintar na forma
material pura, superiormente em relação ao espírito. Com isso, pode-se
dizer que a vanguarda celebrou a vitória da poderosa - na qualidade de
material - mídia artística sobre o impotente e anulado veículo “espi­
ritual” ao qual há muito tempo a mídia tem estado subordinada. Con­
sequentemente, o processo de destruir antigos ícones toma-se idênti­
co ao processo de gerar novos - nesse caso, os ícones de materialismo.
A imagem é, assim, transfigurada em local para a epifania da matéria
pura, abandonando seu papel como local para a epifania do espírito.
No entanto, essa transição do espiritual para o material dentro das
artes tradicionais, como a pintura e a escultura, permaneceu em últi­
ma análise além da compreensão de uma audiência mais ampla - ne­
nhum dos veículos foi considerado poderoso o suficiente. O verdadeiro
ponto de virada surgiu com o filme. Nesse contexto, Walter Benjamin já
destacou que as práticas de fragmentação e colagem - em outras pa­
lavras, o martírio não mitigado da imagem - foram rapidamente acei­
tas quando foram apresentadas em filme, mas aplaudidas pela mes­
ma audiência com ultraje e rejeição no contexto das artes tradicionais.
A explicação de Benjamin para esse fenômeno é que, como novo veí­
culo, o filme é culturalmente livre: desse modo, a mudança de veículo
justifica a introdução de novas estratégias artísticas.2
Além disso, o filme também parece ser mais poderoso que a mídia
antiga. A razão para isso não está só em sua reprodutibilidade e no sis­
tema para sua distribuição comercial em massa: o filme também parece
ter a mesma classificação do espírito, porque ele também se movimenta
no tempo. Assim, o filme atua analogamente à forma como a consciência
trabalha e nisto prova que é capaz de substituir o movimento da cons­
ciência. Como Gilles Deleuze corretamente observa, o filme transforma
seus espectadores em autômatos espirituais: ele se desenrola dentro da
cabeça do espectador, no lugar de seu próprio fluxo de consciência.3Isso
ainda revela a característica fundamental do filme de ser profundamen­
te ambivalente. Por um lado, o filme é uma celebração do movimento,

94
a prova de sua superioridade sobre todas as outras mídias; por outro,
ele coloca sua audiência em estado de inigualável imobilidade física
e mental. É essa ambivalência que dita a variedade de estratégias fílmi-
cas, incluindo as de iconoclastia.
De fato, como veículo de movimento, o filme frequentemente está
ávido por demonstrar sua superioridade em relação a outras mídias,
cujas maiores realizações são preservadas em forma de tesouro cultu­
ral imóvel, ao representar e celebrar a destruição desses monumen­
tos. Ao mesmo tempo, essa tendência também demonstra a adesão do
filme à fé tipicamente moderna na superioridade da vita activa sobre
a vita contem plativa. Todo tipo de iconofllia está, em última análise,
enraizado numa abordagem fundamentalmente contemplativa e em
uma predisposição geral para tratar certos objetos considerados sa­
grados exclusivamente como objetos para admiração à distância. Essa
disposição é baseada no tabu que protege esses objetos de serem to­
cados, de serem intimamente penetrados e, mais genericamente, da
profanidade de serem integrados às práticas cotidianas. No filme, nada
é considerado tão sagrado a ponto de poder, ou dever, ser salvaguarda­
do da absorção pelo fluxo genérico do movimento. Tudo o que o filme
mostra é traduzido em movimento e, portanto, profanado. Nesse sen­
tido, o filme manifesta sua cumplicidade com as filosofias da p rá x is, de
L eb en sd ra n g , de élan vital e de desejo; ele ostenta sua conivência com
ideias que, seguindo os passos de Marx e Nietzsche, capturaram a ima­
ginação da humanidade europeia do final do século XIX e princípio do
XX - em outras palavras, durante o próprio período em quem o filme
nasceu como mídia. Esse foi o período em que a atitude então predo­
minante de contemplação pacífica, que era capaz de moldar ideias ao
invés da realidade, foi deslocada pela bajulação de movimentos poten­
tes de forças materiais. Nessa atitude de adoração, o filme tem papel
central. Desde sua origem, o filme celebra tudo o que se move em alta
velocidade - trens, carros, aviões - mas também tudo o que está sob
a superfície - lâminas, bombas, munição.
Da mesma forma, desde o momento em que surgiu, o filme utiliza
a “comédia pastelão” para representar orgias autênticas de destruição,
demolindo qualquer coisa que apenas fica erguido ou pendurado, sem
movimento, incluindo tesouros culturais reverenciados, não poupando

95
nem mesmo espetáculos públicos como o teatro e a ópera, que mate­
rializaram o espírito da cultura antiga. Projetadas para provocar risada
geral nos espectadores, essas cenas de destruição, ruínas e demolição
nos filmes são reminiscências da teoria do carnaval de Bakhtin, que
tanto enfatiza quanto afirma o aspecto destrutivo e cruel do carnaval.4
De todas as formas de arte precedentes, não é surpreendente que o cir­
co e o carnaval tenham sido tratados com tal deferência positiva pelo
filme em seu começo. Bakhtin descreveu o carnaval como uma cele­
bração iconoclasta que exalava uma aura de alegria mais que de senti­
mentos sérios, emotivos ou revolucionários; em vez de fazer com que
os ícones da velha ordem fossem suplantados pelos ícones de alguma
nova ordem, o carnaval nos convidou ao deleite da queda do sta tu s quo.
Bakhtin também escreveu sobre como a carnavalização geral da cul­
tura europeia na era moderna compensa o declínio de práticas sociais
“reais” tradicionalmente oferecidas pelo carnaval. Apesar de Bakhtin
tirar seus exemplos da literatura, sua descrição da arte carnavalizada se
aplica da mesma forma às estratégias com as quais algumas das mais
famosas imagens na história do cinema foram produzidas.
Ao mesmo tempo, a teoria do carnaval de Bakhtin também enfati
za o quão inerentemente contraditório é o carnaval iconoclasta no fil­
me. Carnavais históricos eram participativos, oferecendo à população
inteira a oportunidade de ser parte de um tipo festivo de iconoclastia
coletiva. Mas, uma vez que a iconoclastia é usada estrategicamente
como instrumento artístico, a comunidade é automaticamente ex­
cluída - e toma-se audiência. Na verdade, enquanto o filme como tal
é celebração de movimento, ele paradoxalmente leva os espectadores
a novos extremos de imobilidade jamais alcançados por formas tradi­
cionais de arte. É possível mover-se com relativa liberdade enquanto
se está lendo ou vendo uma exposição, mas no cinema o espectador
é lançado ao escuro e colado na sua cadeira. A situação de quem vai ao
cinema, de fato, assemelha-se a uma grandiosa paródia de vita c o n ­
tem plativa que o próprio filme denuncia, porque o sistema do cinema
materializa exatamente a vita contem p lativa como certamente aparece
da perspectiva de sua crítica mais radical - uma nietzschiana des-
compromissada, digamos - isto é, como produto da luxúria viciada
pela vida e pela iniciativa pessoal diminuta, como símbolo de consolo

96
compensatório e sinal de inadequação individual na vida real. Esse é o
ponto de partida de qualquer crítica de filme que está se tornando um
gesto iconoclasta - uma iconoclastia por estar voltada contra o pró­
prio filme. A crítica à passividade da audiência primeiramente levou
a várias tentativas de usar o filme como meio de ativar uma audiência
de massa, de mobilizar politicamente ou de injetar o movimento nele.
Sergei Eisenstein, por exemplo, foi exemplar na forma como combinou
choque estético com propaganda política, empenhado em despertar
o observador e arrancá-lo de sua condição passiva e contemplativa.
Entretanto, com o passar do tempo, tomou-se claro que era exa­
tamente a ilusão do movimento gerado pelo filme que levou o espec­
tador à passividade. Essa percepção não foi mais bem formulada que
em A so cie d a d e d o esp etá cu lo , de Guy Debord, um livro cujos temas
e figuras retóricas ainda perpassam o debate atual sobre a cultura de
massa. Não sem razão, ele descreve a sociedade atual, definida pela
mídia eletrônica, como um evento de cinema. Para Debord, o mun­
do inteiro tornou-se uma sala de cinema onde as pessoas ficam in­
teiramente isoladas umas das outras e da vida real e, em consequên­
cia, são condenadas a uma existência completamente passiva.5 Como
ele vivamente demonstra em seu último filme, In girim im u s nocte et
co n su m im u r igni (1978), essa condição não pode mais ser remediada
com velocidade cada vez maior, mobilidade intensificada, agravamen­
to das emoções, choque estético ou mais propaganda política. O que
é exigido como alternativa é a abolição da ilusão do movimento gera­
da pelo filme; somente assim os observadores terão a oportunidade de
redescobrir a habilidade de se mover. Em nome da manifestação social
real, o movimento cinematográfico deve ser parado e imobilizado.
Isso marca o início de um movimento iconoclasta contra o filme e,
consequentemente, contra o martírio do filme. Esse protesto tem a mes­
ma raiz de todos os outros movimentos iconoclastas; ele representa uma
revolta contra um modo de conduta passivo e contemplativo, travado
em nome do movimento e da atividade. Mas no que concerne ao filme,
o resultado desse protesto pode, à primeira vista, parecer, de alguma
forma, paradoxal. Uma vez que as imagens do cinema são, na verdade,
imagens em movimento, o resultado imediato do gesto iconoclasta contra
o cinema é a petrificação e a interrupção do dinamismo natural do filme.

97
Os instrumentos do martírio do cinema são as várias novas tecnologias
como vídeo, computadores e DVDs. Essas novas tecnologias digitais tor­
nam possível deter o fluxo de um filme em qualquer momento, apre­
sentando a evidência de que o movimento do filme não é nem real, nem
material, mas simplesmente uma ilusão que pode, da mesma forma, ser
digitalmente simulada. A seguir, discutirei o gesto iconoclasta - a des­
truição de religiões prevalecentes e ícones culturais através do filme - e a
exposição do movimento do filme propriamente dito como ilusão.
Vamos ilustrar essas variadas estratégias cinematográficas por
meio de exemplos selecionados, os quais não podem, obviamente, es­
gotar todos os aspectos da prática iconoclasta, mas, ainda assim, ofe­
recem um entendimento acerca de sua lógica.
A imagem de um oIho lacerado em O çã o a n d a lu z (1929), de Luis
Bunuel, é um dos ícones cinematográficos mais famosos em seu gêne­
ro. A cena não somente anuncia a destruição de uma imagem específi­
ca, mas também a supressão da própria atitude contemplativa. O olhar
meditativo e teórico com a intenção de observar o mundo como um
todo, e então reíletir-se como entidade puramente espiritual e desen­
carnada, é remetido a seu estado material, fisiológico. Isso transfor­
ma o próprio ato de ver num material completo e, se assim quiserem,
numa atividade cega, processo que Merleau-Ponty, por exemplo, de­
nominou mais tarde, de apalpar o mundo com os olhos.6 Isso poderia
ser descrito como um gesto metaiconoclasta, que torna absolutamente
impossível buscar adoração visual a uma distância religiosa ou estéti­
ca. O filme mostra o oIho como matéria pura - e, portanto, vulnerável
ao toque, senão à destruição. Como a demonstração do poder da força
física e material de erradicar a contemplação, essa imagem de movi­
mento atua como uma epifania da materialidade pura do mundo.
Essa força cega, puramente material e destrutiva é materializada
— de certa forma mais ingenuamente - pela figura de Sansão, no fil­
me de Cecil B. DeMille, de 1949, Sansão e D alila. Na cena principal do
filme, Sansão destrói um templo pagão, junto com todos os ídolos ali
reunidos - apresentando assim o total colapso simbólico de uma or­
dem antiga. Mas Sansão não é representado como o portador de uma
nova religião ou de esclarecimento; ele é simplesmente um titã cego,
um corpo a manejar a mesma destruição cega de um terremoto. Agindo

98
convulsivamente em pé de igualdade com isso é a multidão revolucio­
nária e iconoclasta que encontramos nos íilmes de Sergei Eisenstein.
Na esfera da ação social e política, essas massas humanas represen­
tam as forças cegas e materiais que governam secretamente a história
humana conscientemente percebida - tal como a filosofia marxista
da história a descreve. Historicamente, essas massas se movem para
destruir aqueles monumentos projetados para imortalizar o individual
(em O utubro, de Eisenstein, é o monumento ao czar). Mas a satisfação
generalizada, com a qual esse trabalho anônimo de destruição é reve­
renciado como revelação da “loucura” material da cultura, é também
acompanhada pelo prazer sádico e voyeur de Eisenstein ao assistir tais
atos iconoclastas, como ele prontamente admite em sua autobiografia.7
Pode-se sentir esse componente erótico e sádico da iconoclas-
tia ainda mais vigorosamente na famosa cena em que a “falsa Maria”
é queimada em M etróp olis, de Fritz Lang (1926). No entanto, a fúria
cega da massa que entra em erupção aqui não é revolucionária, mas
sim contrarrevolucionária: apesar de a revolucionária e agitadora ser
queimada como bruxa, elã é claramente modelada a partir das figuras
femininas simbólicas que, desde a Revolução Francesa, materializaram
os ideais de liberdade, a república e a revolução. Entretanto, enquanto
queima, essa bonita e encantadora figura feminina capaz de “atrair”
as massas se revela um robô. As chamas destroem o ídolo feminino da
revolução, desmascarando-a como construção mecânica, não humana.
A cena inteira tem um aspecto completamente bárbaro, sobretudo no
começo, quando ainda não sabemos que a “falsa Maria” é um ser me­
cânico, insensível à dor e não humano. A morte desse ídolo revolu­
cionário também abre caminho para verdadeira Maria, cuja chegada
restaura a harmonia social ao reconciliar pai e filho, a classe superior
com a inferior. Portanto, em vez de servir à nova religião da revolução
social, a iconoclastia age, aqui, interessada na restauração de valores
cristãos tradicionais. Ainda assim, os meios cinematográficos de que
Lang lança mão para representar as massas iconoclastas não são dis­
tintos daqueles empregados por Eisenstein; em ambos os casos, a mul­
tidão funciona como elemento de força material.
Há uma conexão direta entre esses filmes mais antigos e as in­
contáveis produções mais recentes em que a própria Terra, atualmente

99
atuando como ícone da última religião da globalização, é destruída por
forças extraterrestres. Em A rm a ged on (1998, dirigido por Michael
Bay), estas vêm na forma de forças puramente materiais e cósmicas,
que atuam conforme as leis da natureza e permanecem totalmen­
te indiferentes à importância de nosso planeta e de toda a civilização
esquartejada. A destruição de ícones da civilização, como Paris, ilus­
tra, principalmente, a efemeridade de todas as civilizações humanas e
suas iconografias. Os alienígenas em In dep en d en ce D ay (1996, dirigido
por Roland Emmerich) podem ser representados como seres inteligen­
tes e civilizados, mas são impelidos a agir pela compulsão de aniqui­
lar todas as criaturas de origem diferente. Na cena principal do filme,
quando Nova Iorque é destruída, o espectador pode facilmente obser­
var a indireta polêmica de Emmerich contra a famosa cena de Steven
Spielberg, em C on tatos im ed ia tos d e terceiro grau, que retrata a chegada
de alienígenas. Enquanto Spielberg associa, automaticamente, a ele­
vada inteligência dos a lien s a uma natureza de paz e amor, a inteli­
gência superior dos extraterrestres em In dep en d en ce Day está aliada ao
insaciável apetite pelo mal total. Neste, o Outro é retratado não como
parceiro, mas como ameaça letal.
Essa inversão é buscada com ainda maior clareza e consistência
por Tim Burton. Em M arte a ta ca ! (1996), o chefe marciano lança sua
campanha de destruição com o gesto totalmente iconoclasta de ati­
rar na pomba da paz que foi solta como símbolo de boas vindas pelos
terráqueos crédulos e humanamente doutrinados. Para a humanidade,
esse gesto anuncia sua aniquilação física, em vez de uma nova onda de
esclarecimento. Não restrita à violência contra pombas, a mesma ame­
aça é também sinalizada pela violência contra imagens. Como o anti-
herói em B atm an , de Burton (1989), o Curinga é apresentado como
um artista de vanguarda, inclinado a destruir as pinturas clássicas
num museu ao pichá-las com certo estilo abstrato expressionista. Mais
além, a sequência da pichação é filmada como um alegre videoclipe
musical, uma m is e - e n - s c è n e de iconoclastia artística que tem grande
afinidade com a descrição de Bakhtin para o carnavalesco. Mas, em vez
de emprestar ao gesto iconoclasta importância cultural, e neutralizá-
lo ao inscrevê-lo na tradição de carnaval, o modo carnavalesco da
cena apenas enfatiza e radicaliza sua iniquidade.

too
O curta-metragem Artist, de Tracey Moffatt (1999), cita vários fil­
mes mais ou menos conhecidos que contam, todos eles, a história de
um artista. Cada uma dessas histórias começa com um artista desejan­
do criar uma obra-prima; em seguida, ele orgulhosamente apresenta
a obra de arte concluída e encerra com o trabalho sendo pessoalmente
destruído pelo próprio artista desapontado, desesperado. Ao final des­
sa sequência de imagens, Moffatt representa uma autêntica orgia de
destruição artística usando tomadas adequadas. Pinturas e esculturas
de vários estilos são destroçadas, queimadas, amassadas e explodidas.
Desse modo, a sequência oferece um resumo preciso sobre o tratamen­
to que o cinema tem dispensado às formas tradicionais de arte. Mas não
podemos deixar de mencionar que a artista também sujeita o próprio
filme ao processo de desconstrução. Elã fragmenta filmes individuais,
interrompe o movimento de cada um deles e corrompe seus temas para
além do reconhecimento, misturando os fragmentos desses filmes va­
riados e de estilos distintos para criar um corpo cinematográfico novo
e monstruoso. A sequência de imagens resultante não tem intenção de
ser projetada numa sala de cinema, mas de ser apresentada em espaços
de arte tradicionais, como galerias e museus. O filme de Tracey Moffatt
não somente reflete sobre o abuso que a arte sofre no cinema, mas, de
maneira sutil, também exige vingança para seu sofrimento.
Em filmes recentes, essas cenas de iconoclastia não são, de for­
ma alguma, ocasião para comemoração. O cinema atual não é revolu­
cionário, mesmo que ainda se alimente de iconoclastia revolucionária,
pois, como sempre, o filme nunca deixa de articular a intangibilidade
da paz, a estabilidade ou a calma num mundo irrequieto pelo movi­
mento e pela violência - e, ao mesmo tempo, a ausência de condições
materiais que nos garantiriam uma existência segura, contemplativa
e iconófila. Como nunca, o sta tu s q uo é rotineiramente apresentado em
decadência, bem como a ironia se derrama na confiança trazida pelas
formas tradicionais de arte no poder de suas imagens estáticas - afi­
nal de contas, até mesmo o símbolo da pomba da paz foi modelado
a partir de um quadro igualmente famoso de Picasso. A diferença ago­
ra é que a iconoclastia já não é mais considerada expressão da espe­
rança da humanidade na libertação do poder dos antigos ídolos. Já que
o atual domínio humanístico da iconografia colocou a humanidade

101
propriamente dita na linha de frente, o gesto iconoclasta agora é, ine­
vitavelmente, visto como expressão do mal radical e inumano, do
trabalho de alienígenas perniciosos, de vampiros e de máquinas hu-
manoides dementes. No entanto, a inversão da direção da iconoclastia
não é ditada apenas pela atual mudança na ideologia, mas é também
influenciada por desenvolvimentos imanentes no filme como veículo.
O gesto iconoclasta é agora, cada vez mais, atribuído ao campo do en­
tretenimento. Epopeias de desastres, filmes sobre extraterrestres e o
fim do mundo e suspenses de vampiro são, geralmente, percebidos
como campeões de bilheteria em potencial - exatamente porque eles
celebram, radicalmente, a ilusão cinematográfica de movimento. Isso
gerou uma crítica profunda e imanente do filme dentro da indústria
cinematográfica comercial, uma atitude crítica que aspira a imobilizar
o movimento cinematográfico.
Como expressão e clímax preliminar dessa crítica intrínseca, nós
apenas precisamos olhar para M a tr ix (1999, dirigido por Andy e Larry
Wachovski), um filme que, apesar de seu ritmo furioso e da prolifera­
ção de cenas rodadas em velocidade extrema, ainda assim representa
o fim de todo o movimento - incluindo o movimento cinematográfi­
co. Ao final do filme, o herói, Neo, ganha a habilidade para perceber
toda realidade visível como um só filme digitalizado; através da su­
perfície visual do mundo, ele vê o código, em movimento incessante,
escorrer como chuva. No que concerne à exposição desconstrutiva
do movimento cinematográfico, é mostrado, ao espectador, que esse
não é um movimento gerado por vida ou matéria, e nem mesmo um
movimento do espírito, mas simplesmente o movimento sem vida de
um código digital. Aqui, comparado aos antigos filmes revolucioná­
rios das décadas de 1920 e 1930, lidamos com uma suspeita diferente
e, por conseguinte, com um gesto iconoclasta diferentemente equi­
librado.8 Como herói neobudista e neognóstico, que aparece na cena
para assumir a luta contra os criadores do mal e m a lin s g é n ie s contro­
lando o mundo, Neo não mais se rebela contra o espírito em nome do
mundo material, mas é um agitador levantando-se contra a ilusão
do mundo material em nome da crítica à simulação. Próximo ao final do
filme, Neo é apresentado às palavras “Ele é o Escolhido” . A forma de
ele provar seu chamado como o Cristo novo e gnóstico é exatamente

102
parar o movimento cinematográfico, fazendo, assim, as balas que es­
tão prestes a atingi-lo pararem no ar.
Aqui, a crítica respeitável e difundida para a indústria do cinema
parece ter sido adotada por Hollywood como seu próprio tema - e, as­
sim, radicalizada. Como bem sabemos, os críticos acusaram a indústria
do cinema de criar uma ilusão sedutora e encenar um belo semblante do
mundo projetado para mascarar, esconder e negar a feia realidade.
Então M a trix aparece e diz basicamente a mesma coisa. A não ser pelo
fato de que, nesse caso, trata-se menos de uma “fachada bonita” - ci-
nematograficamente preparada, que desfila para nós como uma m is e -
-en -scèn e completa - do que um mundo “real” totalmente corriqueiro.
Em filmes como O show d e Trum an ou, de modo ainda mais abrangen­
te, M atrix, essa dita realidade é apresentada como se fosse um “reality
show” de longa duração, produzido a partir de técnicas quase cinema­
tográficas em algum estúdio transcendental escondido sob a superfície
terrestre. Os protagonistas de tais filmes são heróis do conhecimento,
críticos da mídia e detetives particulares num só, cuja ambição é expor
não somente a cultura em que vivem, mas também toda a sua vida
rotineira como uma ilusão artificialmente criada.
Apesar de suas qualidades metafísicas, M a trix também está funda­
mentalmente preso à arena do entretenimento de massa, e valores cris­
tãos certamente não oferecem nenhuma saída desse contexto - ideia
esta irônica e convincentemente ilustrada em A v id a d e B rian, de M onty
Python (1979). Esse filme não somente parodia e profana a vida de Cristo,
mas também retrata a morte de Cristo na cruz à moda carnavalesca de
um vídeo musical. Essa cena representa um gesto iconoclasta elegante,
que canaliza o martírio de Cristo para o veio do entretenimento (além
de ser, a seu modo, altamente divertida). Mas, na atualidade, formas
iconoclastas mais sérias direcionadas contra o filme são empreendidas
quando ele é transferido para o sóbrio contexto da alta arte - em outras
palavras, no próprio contexto que, anteriormente, o cinema revolucio­
nário desejou deixar aberto à animada destruição carnavalesca.
Em nossa cultura, temos dois modelos fundamentalmente diferen­
tes à nossa disposição, que nos dão controle sobre o tempo que gasta­
mos olhando para uma imagem: a imobilização da imagem no espaço
de exposição ou a imobilização do espectador na sala de cinema. Ainda

103
assim, ambos os modelos fracassam quando imagens em movimento
são transferidas para o museu ou para o espaço de exposição de arte.
As imagens continuarão a se mover - mas o espectador também. Nas
últimas décadas, a vídeo-arte fez várias tentativas de resolver o antago­
nismo entre essas duas formas de movimento. Hoje, como no passado,
uma estratégia bastante difundida é fazer o vídeo individual ou as
sequências de filmes tão curtas quanto possível, de forma a assegurar
que o tempo que um espectador gasta em frente a uma obra não exceda,
substancialmente, ao tempo que um espectador pode, em média, gastar
em frente a uma “boa” pintura, num museu. Apesar de não haver nada
censurável nessa estratégia, elã, ainda assim, representa uma oportuni­
dade perdida de abordar explicitamente a incerteza causada no especta­
dor ao transferir imagens móveis para um espaço de arte. Essa questão é
mais espantosamente abordada por filmes em que certa imagem muda
apenas minimamente - se é que muda - e, nesse sentido, coincide com
a tradicional apresentação de uma imagem solitária e imóvel num museu.
Um exemplo pioneiro de tais filmes “imóveis” (que certamente tem
efeito iconoclasta, dada a forma como paralisa a imagem cinematográ­
fica) é Em pire (1964), de Andy Warhol - o que é dificilmente surpreen­
dente, considerando-se que o autor do filme era muito atuante no mun­
do da arte. O filme consiste numa imagem estática que praticamente
não muda, por horas a fio. Diferente do sujeito que vai ao cinema, um
visitante de espaços de exposição veria esse filme como uma instalação
cinematográfica, poupando-o do risco de ficar entediado. Uma vez que
é permitido e esperado que o visitante de exposições se movimente pelo
espaço da exposição, ele pode sair da sala a qualquer momento e retor­
nar em seguida. Assim, em contraste com os espectadores do cinema,
o visitante do filme de Warhol em exibição não poderá, ao final, dizer
com certeza se o filme consiste numa imagem em movimento ou imóvel,
já que ele sempre terá que admitir a possibilidade de que pode ter perdi­
do certos acontecimentos no filme. Mas é exatamente essa incerteza que
traduz explicitamente a relação entre imagens móveis e imóveis den­
tro do contexto de exposição. O tempo acaba por ser vivenciado como
o tempo gasto pelo movimento demonstrado na imagem de um filme,
sendo, em vez disso, percebido como duração indefinida e problemática
da própria imagem cinematográfica.9

104
O mesmo pode ser dito a respeito do célebre filme B lu e (1993), de
Derek Jarman, assim como do filme F ea tu re F ilm (1999), de Douglas
Gordon, concebido desde o início como uma instalação cinematográ­
fica. Na obra de Gordon, a obra-prima de Hitchock, Um corp o qu e cai,
é totalmente substituída por um filme que não apresenta nada além da
música de Um corp o q u e ca i e, sempre que a música toca, de imagens
do maestro conduzindo a música. Pelo resto do tempo, a tela perma­
nece preta; aqui, o movimento da música substituiu o movimento da
imagem do filme. Consequentemente, a música atua como um código
cujo movimento é seguido pelo filme, mesmo que, em sua superfície,
ele crie a ilusão de movimento “real” vivenciado no mundo. Isso repre­
senta o ponto em que o gesto iconoclasta completou seu ciclo: enquanto,
no início de sua história, o filme era contemplação imóvel que foi ataca­
da, ao final, ele próprio perde seu movimento, tomando-se um retângu­
lo preto. Ao mesmo tempo em que um tenta sentir o caminho do outro
na escuridão do espaço da instalação, tentando ter um melhor senso de
orientação, é difícil não lembrar a imagem do oIho lacerado no filme
de Bunuel - um gesto que já prometia lançar o mundo na escuridão.

(“Iconoclasm as an Artistic Device: IconoclasticaStrategies inFilm” , originalmente


publicado em Bruno Latour e Peter Weibel (eds.), Ico n o cla sh , Cambridge, Mass., MIT
Press, 2002. Tradução para o inglês de Matthew Partridge.)

105
DA I M A G E M

A O A R Q U I V O

O E I M A G E M

E O E V O L T A

A A R T E

N A E R A D A

D I G I T A L I Z A Ç Ã O
A digitalização da imagem foi de início pensada como forma de escapar
do museu ou, mais genericamente, de qualquer espaço de exposição —
para libertar a imagem. Mas, em décadas mais recentes, temos visto
a crescente presença de imagens digitais no contexto de instituições
de arte tradicionais. Portanto, surge a pergunta: O que esse fato nos diz
sobre a digitalização e sobre as instituições?
Em ambos os lados da divisão digital, sente-se certo desconten­
tamento. Por um lado, a imagem digital libertada parece estar sujeita
a um novo aprisionamento, um novo confinamento dentro do museu
e das paredes da exposição. Por outro, o sistema de arte parece estar

107
comprometido ao expor cópias digitais em vez dos originais. Obviamente,
pode-se argumentar que fotografias ou vídeos digitais - bem como
rea d y -m a d es ou filmes e fotografias analógicos antes deles - exibidos
no espaço de exposição demonstram a perda da aura, o ceticismo pós­
-modemo em relação à noção modernista de originalidade. No entan­
to, pode-se duvidar de tal demonstração razão suficiente para produzir
e exibir a grande quantidade de imagens digitais que nos confrontam
nos atuais museus e espaços de exposição. Além do mais, por que de­
vemos exibir essas imagens - em vez de apenas deixá-las circular li­
vremente na rede de informação contemporânea?
A digitalização parece permitir à imagem tornar-se independente
de qualquer tipo de prática de exposição. Ou seja, as imagens digitais
têm a habilidade de originar-se, multiplicar-se e distribuir-se através
dos campos abertos dos meios de comunicação contemporâneos, tais
como redes de internet ou de celular, imediata e anonimamente, sem
qualquer controle de curadoria. A esse respeito, podemos falar das
imagens digitais como imagens genuinamente fortes - como imagens
capazes de se mostrar conforme sua própria natureza, dependendo so­
mente de sua própria vitalidade e força. Pode-se, obviamente, sempre
assumir que há certa prática de curador escondida e certos interesses
ocultos atrás de qualquer imagem forte e concreta - mas essa suposi­
ção permanece uma suspeita que não pode ser objetivamente prova­
da. Portanto, pode-se dizer que a imagem digital é verdadeiramente
forte - no sentido de que não necessita de nenhuma ajuda adicional
de curadoria para ser exibida, para ser vista. Mas surge uma questão:
A imagem digital é também forte no sentido de que consegue estabi­
lizar sua identidade através de todas as suas aparições? Uma imagem
forte pode ser percebida como verdadeiramente forte somente se pu­
der garantir sua própria identidade ao longo do tempo, do contrário,
lidamos novamente com uma imagem fraca que é dependente de um
espaço específico, o contexto específico de sua apresentação.
Pode-se argumentar que não é tanto a imagem digital quanto o
arquivo de imagem que pode ser considerado forte, porque o arquivo
digital permanece mais ou menos idêntico ao longo de seu processo
de distribuição. No entanto, o arquivo de imagem não é uma imagem
- o arquivo de imagem é invisível. Somente os heróis do filme M a trix

108
puderam ver os arquivos de imagem, o código digital como tal. A re­
lação entre o arquivo de imagem e a imagem que surge como efeito
da visualização desse arquivo de imagem - como efeito de sua de­
codificação por um computador - pode ser interpretada como uma
relação entre original e cópia. A imagem digital é uma cópia visível
do arquivo de imagem invisível, dos dados invisíveis. Nesse sentido,
a imagem digital funciona como um ícone bizantino - como uma có­
pia visível de um Deus invisível. A digitalização cria a ilusão de que
já não há diferença entre original e cópia e que tudo o que temos são
cópias que se multiplicam e circulam nas redes de informação. Mas
não pode haver cópias sem original. A diferença entre original e cópia
é obliterada no caso da digitalização apenas pelo fato de que os dados
originais são invisíveis: eles existem no espaço invisível atrás da ima­
gem, dentro do computador.
Portanto, surge a pergunta: Como podemos alcançar essa con­
dição específica da imagem digital, dos dados, dentro da imagem
propriamente dita? O espectador comum não tem pílulas mágicas
que o permitirão, assim como os heróis de M a tr ix , adentrar o espaço
da invisibilidade por detrás da imagem digital - para ser diretamen­
te confrontado pelos próprios dados digitais. E esse espectador não
tem técnicas que lhe permitam transferir os dados diretamente para
o cérebro e experimentá-los na forma de sofrimento puro e invisível,
como acontece em outro filme: Johnny M n em o n ic, o cy b o rg d o fu tu r o .
(Aliás, o puro sofrimento é, como sabemos, a mais adequada expe­
riência do Invisível.) Nesse caso, a forma como religiões iconoclas­
tas lidaram com a imagem provavelmente poderia ajudar. De acordo
com essas religiões, o Invisível se mostra no mundo não através de
imagens individuais específicas, mas através de toda sua história de
aparições e intervenções. Tal história é necessariamente ambígua:
elã documenta aparições ou intervenções individuais do Invisível
(biblicamente falando: sinais e maravilhas) no âmbito da topogra­
fia do mundo visível - mas, ao mesmo tempo, elã os documenta de
forma a relativizar todas as aparições e intervenções, o que evita
a armadilha de reconhecer uma imagem específica como a imagem
do Invisível. O Invisível permanece invisível exatamente pela multi­
plicação de suas visualizações.

109
Da mesma forma, ao olharmos para imagens digitais, também
somos, a toda hora, confrontados com um novo evento de visualiza­
ção de dados invisíveis. Portanto, podemos dizer que a imagem digital
é uma cópia - mas o evento de sua visualização é original, porque
a cópia digital é uma cópia que não possui um original visível. Isso sig­
nifica, mais ainda, que uma imagem digital, para ser vista, não deveria
ser meramente exibida, mas encenada, representada. Aqui, a imagem
começa a funcionar análoga a uma música cuja partitura, como ge­
ralmente é sabido, não é idêntica à peça musical - a partitura mesmo
é silenciosa. Para a música ressoar, elã precisa ser executada. Assim,
pode-se dizer que a digitalização transforma a arte visual em perfor-
mática. Entretanto, executar algo é interpretá-lo, traí-lo, destruí-lo.
Toda performance é uma interpretação, e toda interpretação é traição,
uso indevido. A situação é especialmente difícil no caso do original
invisível: se o original fôr visível, ele poderá ser comparado à cópia -
portanto, a cópia pode ser corrigida e o sentimento de traição, redu­
zido. Mas se o original fôr invisível, tal comparação não será possível
- qualquer visualização permanece incerta. Aqui, a figura do curador
aparece novamente - e torna-se ainda mais poderosa, porque ele pas­
sa a ser não somente o expositor, mas o p erform er da imagem. Ele não
simplesmente mostra a imagem que originalmente estava ali, mas não
foi vista; o curador contemporâneo transforma o invisível em visível.
Ao fazer isso, o curador faz escolhas que modificam a imagem
executada de maneira substancial. O curador faz isso, primeiramen­
te, ao selecionar a tecnologia que deverá ser utilizada para visualizar
os dados de imagens. A tecnologia da informação está em constante
mudança, atualmente - hardware, software - simplesmente tudo
está em fluxo. Por isso, a imagem já é transformada a partir de todo
ato de visualização, utilizando-se de diferentes e novas tecnologias.
A atual tecnologia pensa em termos de gerações - falamos de ge­
rações de computadores, de gerações de equipamentos fotográficos
e de vídeo. No entanto, onde há gerações, há também conflitos de
gerações, lutas edipianas. Qualquer um que tentar transferir seus
textos antigos, ou arquivos de imagem, utilizando um software novo
vivenciará o poder do complexo de Édipo sobre a atual tecnologia
- muitos dados são destruídos, perdidos na escuridão. A metáfora

no
biológica explica tudo: não somente a vida, que é notória nesse sen­
tido, mas também a tecnologia, que supostamente se opõe à natu­
reza, tornou-se meio para a reprodução não idêntica. Mas mesmo
que a tecnologia pudesse garantir a identidade visual das diferentes
visualizações dos mesmos dados, eles permaneceriam não idênticos
devido à mudança de contexto de suas aparições.
Em seu famoso artigo, “A obra de arte na era de sua reprodutibi-
lidade técnica” , Walter Benjamin admite a possibilidade de uma re­
produção idêntica tecnicamente perfeita que não mais permite a dis­
tinção material entre original e cópia. Ainda assim, ao mesmo tempo,
alguma distinção entre original e cópia permanece válida. De acor­
do com Benjamin, a obra de arte tradicional perde sua aura quando
é transportada de seu lugar original para um espaço de exposição ou
quando é copiada. Mas isso significa que a perda da aura é especial­
mente importante no caso da visualização de um arquivo de imagem.
Se um original tradicional e analógico é removido de um lugar para
outro, ele permanece parte do mesmo lugar, da mesma topografia -
o mesmo mundo visível. Em contraste, o original digital - o arquivo
de dados digitais - é removido, por sua visualização, do espaço da
invisibilidade, do estado de “não imagem” para o espaço da visibi­
lidade, para o estado de “imagem” . Consequentemente, temos aqui
uma verdadeira perda massiva de aura, porque nada tem mais aura
que o invisível. A visualização do invisível é a forma mais radical de
sua profanação. A visualização de dados digitais é um sacrilégio -
comparável à tentativa de visualizar, ou retratar, o Deus invisível do
Judaísmo ou do Islamismo. Esse ato de profanação radical não pode
ser compensado por uma série de regras que reforçaria a iterativi­
dade do visual no resultado dessa profanação, como, por exemplo,
aconteceu no caso dos ícones bizantinos. Conforme já foi dito, a tec­
nologia moderna não é capaz de estabelecer tal homogeneidade.
A hipótese de Benjamin de que a tecnologia avançada pode ga­
rantir a identidade material entre original e cópia não foi validada por
maior desenvolvimento tecnológico. O desenvolvimento tecnológico
efetivo andou na direção oposta - na direção da diversificação das
condições em que a cópia é produzida e distribuída e, consequente­
mente, a diversificação das imagens visuais resultantes. A principal

ui
característica da internet está, precisamente, no fato de que, na rede,
todos os símbolos, palavras e imagens recebem um endereço: eles são
colocados em algum lugar, “territorializados” , inscritos em certa topo­
logia. Isso significa que, mesmo além das permanentes diferenças de
geração e mudanças correspondentes, o destino dos dados digitais na
internet é essencialmente dependente da qualidade de equipamentos
específicos, servidor, software, navegador e assim por diante. Arqui­
vos individuais podem ficar distorcidos, ser interpretados de forma
diferente ou até mesmo tornar-se ilegíveis. Podem também ser ataca­
dos por vírus de computador, ser acidentalmente deletados ou podem
simplesmente ficar velhos e perecer. Assim, arquivos na internet tor­
nam-se heróis de sua própria história, que, como qualquer história, é
primariamente uma perda possível ou real. De fato, essas histórias são
constantemente contadas: como certos arquivos não podem mais ser
lidos, como certos w eb site s desaparecem e assim por diante.
Os espaços sociais onde as imagens digitalizadas - fotografias,
vídeos - circulam hoje em dia também são um espaço extremamen­
te heterogêneo. Podem-se visualizar vídeos com a ajuda de grava­
dores, mas também como projeções na tela, na televisão, dentro de
um contexto de instalação de vídeo, no monitor do computador, no
celular e por aí vai. Em todos esses casos, o mesmo arquivo de vídeo
parece diferente mesmo na superfície - sem mencionar os diferen­
tes contextos sociais dentro dos quais é mostrado. A digitalização, ou
seja, a escrita de uma imagem, ajuda a imagem a se tornar reproduzí­
vel, a circular livremente, a distribuir-se. É, portanto, o remédio que
cura a imagem da passividade herdada. Ao mesmo tempo, porém,
a imagem digitalizada fica ainda mais infectada pela não identidade
- pela necessidade de apresentar a imagem como dessemelhante de
si mesma, o que significa que a cura suplementar da imagem, sua
própria cura, torna-se inevitável.
Ou de outra forma: toma-se inevitável trazer a imagem digital
de volta para o museu, de volta ao espaço de exposição. E aqui, cada
apresentação de uma imagem digitalizada toma-se uma “re-criação”
dela. Somente o espaço de exposição tradicional abre a possibilidade
para que reflitamos não apenas sobre o software, mas também sobre
o equipamento, sobre o lado material dos dados de imagem. Para falar

112
em termos tradicionalmente marxistas: o posicionamento do digital no
espaço de exibição toma possível para o espectador refletir não só sobre
a superestrutura, mas também sobre a base material da digitalização.
Isso é principalmente relevante para o vídeo, porque ele vem se
tomando o veículo líder na comunicação visual. Quando imagens de
vídeo são colocadas no espaço de exposição de arte, elas imediatamen­
te subvertem as expectativas que geralmente associamos a esse espaço.
No tradicional espaço de arte, o espectador - pelo menos na situação
ideal - tem controle total sobre a duração de sua contemplação: ele, ou
elã, pode interromper a contemplação de uma imagem em particular
a qualquer hora para, posteriormente, retomar a elã e voltar a observá-
-la do mesmo ponto em que foi interrompida. Enquanto o espectador
está ausente, a imagem estática permanece idêntica. A produção da
identidade da imagem ao longo do tempo constitui o que, em nossa cul­
tura, chamamos “alta arte” . Em nossa vida regular, “normal” , o tempo
dedicado à contemplação é claramente dedicado por nossa própria vida.
No que diz respeito a imagens da vida real, nós não possuímos supre- -
macia e poder administrativo sobre o tempo de contemplação; na vida,
somos sempre e apenas testemunhas acidentais de certos eventos e de
certas imagens, cuja duração não podemos controlar. Toda arte, por­
tanto, começa com o desejo de se segurar a um momento para que ele
permaneça por tempo indeterminado. Assim, o museu - e geralmente
qualquer espaço de exposição de arte em que, por via de regra, imagens
estáticas são expostas - obtém sua verdadeira justificativa: ele garan­
te a habilidade do visitante de administrar a duração de sua atenção.
No entanto, a situação muda drasticamente com a introdução, no mu­
seu, de imagens móveis, já que estas começam a ditar o tempo que o es­
pectador precisa para vê-las - e roubar dele sua tradicional supremacia.
Em nossa cultura, temos dois diferentes modelos que nos permi­
tem ter controle do tempo: a imobilização da imagem no museu e a
imobilização da audiência na sala de cinema. Ambos os modelos, no
entanto, falham quando imagens móveis são transferidas para o es­
paço de um museu. Nesse caso, as imagens continuam a se mover -
mas os espectadores também continuam se movendo. Uma pessoa não
fica sentada, ou em pé, por qualquer que seja o tempo, em um espaço
de exposição; em vez disso, elã traça seus passos repetidas vezes pelo

113
espaço, fica em pé em frente a um quadro por um tempo, aproxima-
-se, ou afasta-se dele, olha para ele de diferentes perspectivas, e assim
por diante. O movimento do espectador dentro do espaço de exposi­
ção não pode ser arbitrariamente impedido, pois ele é constitutivo do
funcionamento da percepção no sistema de arte. Além disso, uma ten­
tativa de forçar um visitante a assistir a todos os vídeos ou filmes no
contexto de uma exposição maior desde o começo até o final estaria
condenada ao fracasso desde o início - a duração de uma visita média
à exposição simplesmente não é longa o suficiente.
Obviamente, isso gera um conflito entre as expectativas de uma
visita à sala de cinema e uma visita a um museu. O visitante de uma
instalação de vídeo basicamente não sabe mais o que fazer: Deveria
ele parar e assistir às imagens movendo-se diante de seus olhos como
numa sala de cinema ou, como num museu, continuar confiante de
que, com o tempo, as imagens móveis não mudarão tanto quanto pa­
rece possível? Ambas as soluções são claramente insatisfatórias - na
verdade, elas não são soluções reais de forma alguma. Uma pessoa
é rapidamente forçada a reconhecer, no entanto, que não é possível
haver qualquer solução adequada, ou satisfatória, nessa situação sem
precedentes. Cada decisão individual, de parar ou continuar, conti­
nua a ser um compromisso intranquilo - e mais tarde deverá ser re­
visto repetidas vezes.
É exatamente essa incerteza fundamental, que resulta dos mo­
vimentos das imagens e do espectador ocorrendo simultaneamente,
que cria o valor estético adicional de trazer as imagens digitalizadas
em movimento para o espaço de exposição. No caso de uma instala­
ção de vídeo, surge uma luta entre o espectador e o artista pelo con­
trole da duração da contemplação. Em consequência, essa duração
deve ser continuamente renegociada. Assim, o valor estético de uma
instalação de vídeo consiste em, principalmente, abordar de forma
explícita a latente invisibilidade da imagem e a falta de controle do
espectador sobre a duração de sua atenção ao espaço de exposição,
local onde anteriormente prevalecia a ilusão de completa visibilidade.
A incapacidade de o espectador ter completo controle visual é ainda
mais agravada pela velocidade, cada vez maior, em que, atualmente,
é possível produzir imagens móveis.

114
Para o espectador, anteriormente, o investimento em termos de
trabalho, tempo e energia exigidos pra consumir uma obra de arte tra­
dicional tinha uma relação extremamente favorável com a duração da
produção de arte. Depois de o artista ter que dedicar um longo tempo
e muito esforço para criar uma pintura ou escultura, era permitido ao
espectador consumir essa obra sem esforço, com apenas uma olhada.
Isso explica a tradicional superioridade do consumidor, do espectador
e do colecionador sobre o artista-artesão como fornecedor de pintu­
ras e esculturas que deveriam ser produzidas através de trabalho físico
árduo. Foi após a introdução da fotografia e da técnica de rea d y -m a d e
que o artista se colocou no mesmo nível do espectador em termos de
economia temporal, já que isso também permite ao artista produzir
imagens quase imediatamente. Mas agora a câmera digital, que pode
produzir imagens móveis, também pode gravar e distribuir essas ima­
gens automaticamente, sem que o artista tenha que gastar seu tempo
fazendo isso, o que lhe dá tempo livre excedente. O espectador, então,
terá que passar mais tempo assistindo às imagens que o artista para
produzi-las. E de novo: isso não é um aumento intencional da duração
de contemplação necessária para o espectador “compreender” a ima­
gem, já que ele tem completo controle da duração da contemplação
consciente. Em vez disso, é o tempo que um espectador precisa para
até mesmo ser capaz de assistir ao material em vídeo na sua totali­
dade - e a técnica contemporânea permite produzir, em curtíssimo
tempo, uma obra em vídeo de considerável duração. É por isso que
a experiência básica tida por um espectador de uma instalação de vídeo
é, portanto, a experiência da não identidade e mesmo da não invisibi­
lidade do trabalho exposto. Cada vez que alguém visita uma exposição
de vídeo, ele ou elã é potencialmente confrontado com outro clipe do
mesmo vídeo, o que significa que, em cada vez, o trabalho é diferente e,
ao mesmo tempo, ilude o olhar do espectador, faz-se invisível.
A não identidade de imagens de vídeo também se apresenta num
outro nível tecnológico mais profundo. Como já foi dito, se alguém
muda certos parâmetros técnicos, muda também a imagem. Poderia
alguém, talvez, preservar algo da antiga tecnologia de forma que a ima­
gem permaneça idêntica a si mesma por todas as instâncias de sua ex­
posição? Mas, para preservar o original, a tecnologia altera a percepção

115
de uma imagem propriamente dita para as condições técnicas sob as
quais foi produzida. Inicialmente reagimos à tecnologia antiga do re­
gistro fotográfico ou em vídeo, o que se toma evidente quando olha­
mos para fotografias ou vídeos antigos. O artista não teve a intenção de
produzir esse efeito, já que não lhe era possível comparar sua obra com
produtos de desenvolvimento tecnológico posterior.
Assim, é possível que a própria imagem seja deixada de lado se
fôr reproduzida através da tecnologia original. Então, torna-se com
preensível a decisão de transferir essa imagem para uma nova mí­
dia tecnológica, para novos software e equipamentos, a fim de
parecer fresca, de tornar-se interessante, não meramente em retros­
pecto, mas que também pareça uma imagem contemporânea. Com
essa linha de argumentação, no entanto, alguém pode viver o dile­
ma do qual, conforme geralmente se sabe, o teatro contemporâneo é
incapaz de se desenredar, pois ninguém sabe o que é melhor: revelar
a época ou a individualidade da peça através de sua encenação. É, no
entanto, inevitável que toda encenação revele um desses parâmetros
ao obscurecer o outro. Entretanto, pode-se também utilizar, produ­
tivamente, as restrições técnicas - pode-se brincar com a qualidade
técnica de uma imagem digital em todos os níveis, incluindo-se a qua­
lidade material do monitor ou da superfície de projeção, bem como
a luz externa, que, como sabemos, altera substancialmente a percep­
ção do espectador de uma imagem de vídeo. Assim, cada apresentação
de uma imagem digital é sua própria recriação.
Isso, mais uma vez, demonstra que, não há essa coisa chamada
cópia. No mundo de imagens digitalizadas, lidamos apenas com origi­
nais - somente com apresentações do original digital ausente e invi­
sível. A exposição faz com que o copiar seja reversível, ao transformar
a cópia em original. Mas este permanece parcialmente invisível e não
idêntico. Fica claro, assim, porque faz sentido aplicar as duas curas à
imagem - digitalizá-la e curá-la, exibi-la. Essa medicina dupla não
é mais efetiva que as duas curas, separadamente; elã não toma a ima­
gem verdadeiramente forte. É bem o contrário: ao aplicar essa medi­
cina dupla, fica-se ciente das zonas de invisibilidade, da falta de con­
trole visual, da impossibilidade de estabilizar a identidade da imagem
- da qual é possível não estar tão ciente no caso de lidar somente com

116
objetos no espaço de exposição ou imagens digitais que circulam li­
vremente. Mas isso significa que a prática contemporânea e da pós-
- curadoria digital pode fazer alguma coisa que a exposição tradicional
só poderia fazer metaforicamente: expor o Invisível.

(“From Image to Image File - and Back: Art in the Age of Digitalization” , palestra
não publicada realizada na Bienal de Sydney, originalmente intitulada “Art in the
Digital Age” , 2006.)

117
A U T O R I A

M Ú L T I P L A
T a lvez n ã o h a ja m o r te d a fo r m a c o m o a c o n h e c e m o s ;

A p e n a s d o c u m e n to s q u e m u d a m d e m ã o s. D o n D e L illo , Ruído branco

Por muito tempo, a função social da exposição foi firmemente fixada:


o artista produzia obras de artes que eram, então, selecionadas e expostas
pelo curador de uma exposição ou rejeitadas. O artista era considerado
um autor autônomo. O curador da exposição, pelo contrário, era alguém
que mediava, entre o autor e o público, mas não era, ele mesmo, um
autor. Assim, os papéis do artista e o do curador, respectivamente, eram
claramente distintos: o artista se ocupava da criação; o curador, da se­
leção. O curador podia escolher apenas a partir do estoque de obras que
vários artistas já tivessem produzido. Isso significava que a criação era
considerada primária e a seleção, secundária. Em consequência, o inevi­
tável conflito entre artista e curador era visto e tratado como um conflito
entre autoria e mediação, entre indivíduo e instituição, entre primário
e secundário. Essa época, porém, chegou agora a seu fim definitivo.
O relacionamento entre artista e curador passou por uma mudança fun­
damental. Esta, apesar de não ter resolvido os velhos conflitos, fez com
que eles assumissem uma forma completamente diferente.

119
É simples afirmar porque essa situação mudou: a arte, hoje em dia,
é definida por uma identificação entre criação e seleção. Pelo menos
desde Duchamp, selecionar uma obra de arte é o mesmo que criá-la.
Isso, obviamente, não significa que toda arte, desde então, tenha se tor­
nado arte rea d y -m a d e. Mas significa que o ato criativo tomou-se o ato
de selecionar: desde Duchamp, produzir um objeto já não é suficiente
para seu criador ser considerado artista. Deve-se também selecionar
o objeto feito por alguém e para si mesmo e declará-lo obra de arte. Por
conseguinte, desde Duchamp já não há mais qualquer diferença entre
um objeto que alguém produz e um objeto produzido por outra pes­
soa - ambos devem ser selecionados para serem considerados obras
de arte. Hoje em dia, um autor é alguém que seleciona, que autoriza.
Desde Duchamp, o autor tornou-se um curador. O artista é, antes de
tudo, curador de si mesmo, porque seleciona sua própria arte. E tam­
bém seleciona outros: outros objetos, outros artistas. Pelo menos desde
os anos 1960, os artistas têm criado instalações para demonstrar suas
práticas pessoais de seleção. As instalações, no entanto, não são nada
mais que exposições curadas pelos artistas, nas quais objetos feitos por
outros podem ser - e são - representados tão bem quanto aqueles fei­
tos pelo artista. Assim, os curadores também estão livres da obrigação
de exibir somente os objetos pré-selecionados pelos artistas. Os cura­
dores, hoje, sentem-se livres para combinar objetos de arte selecio­
nados e assinados por artistas com objetos retirados diretamente da
“vida” . Resumindo, uma vez que a identidade entre criação e seleção
estiver estabelecida, os papéis do artista e do curador também se tor­
nam idênticos. Uma distinção entre a exposição (curada) e a instalação
(artística) ainda é comumente feita, mas é essencialmente obsoleta.
A velha questão deve, portanto, ser novamente levantada: O que é
uma obra de arte? A resposta que as práticas artísticas atuais oferecem
para essa pergunta é direta: a obra de arte é objeto exposto. O objeto
não exposto não é uma obra de arte, mas meramente um objeto para ser
exposto como tal. Não é por acaso que hoje falamos da arte como “arte
contemporânea” . É a arte que deve, no momento, ser exposta para que
seja considerada algum tipo de arte. A unidade elementar da arte atual
não é mais uma obra de arte como objeto, mas um espaço artístico em
que objetos são expostos: o espaço de uma exposição, de uma instalação.

120
A arte do presente não é a soma de coisas específicas, mas a topologia
de lugares específicos. A instalação estabeleceu, portanto, uma forma de
arte extremamente voraz que assimila todas as outras formas tradicionais
de arte: pinturas, desenhos, fotografias, textos, objetos, ready-m ades, fil­
mes e gravações. Todos esses objetos de arte são organizados por um ar­
tista, ou curador, no espaço, conforme uma ordem que é puramente pri­
vada, individual e subjetiva. Assim, o artista, ou curador, tem a chance de
demonstrar publicamente sua estratégia privada e autônoma de seleção.
A instalação tem o status de obra de arte frequentemente nega­
do, pois surge a questão sobre qual é seu veículo. Essa questão apare­
ce porque as mídias de arte tradicionais são todas definidas conforme
o suporte específico do veículo: tela, pedra ou filme. O veículo de uma
instalação é o próprio espaço; isso significa que a instalação não é, de
forma alguma, imaterial. É bem o contrário: a instalação é, de toda for­
ma, material, porque é espacial. Elã demonstra o material da civili­
zação em que vivemos particularmente bem, já que instala tudo que,
do contrário, simplesmente circula em nossa civilização. Assim, a ins­
talação demonstra o equipamento civilizacional que, de outra forma,
permanece despercebido por trás da superfície de circulação na mídia.
E elã também demonstra a soberania do artista no trabalho; como essa
soberania define e pratica suas estratégias de seleção. É por isso que
a instalação não é uma representação do relacionamento entre coisas,
como é regulamentada pela economia e outras ordens sociais; é bem
o contrário: a instalação oferece uma oportunidade de utilizar a intro­
dução explícita de ordens e relações subjetivas entre coisas, para trazer
à tona pelo menos as ordens que se supõe existir “lá fora” , na realidade.
Devemos aproveitar essa oportunidade para esclarecer um mal-en­
tendido que, recentemente, reapareceu diversas vezes na literatura mais
relevante. Tem sido discutido, com certa insistência, que a arte chegou ao
seu fim e que, por isso, um novo campo - estudos visuais - deveria tomar
o lugar da história da arte. Espera-se que os estudos visuais expandam
o campo da análise pictórica: ao invés de considerar imagens exclusiva­
mente artísticas, eles devem abordar o espaço supostamente mais amplo
e mais aberto de todas as imagens existentes e, corajosamente, transgre­
dir os limites do antigo conceito de arte. A coragem para transgredir ve­
lhos limites é, certamente, sempre impressionante e bem-vinda. Nesse

121
caso, entretanto, o que parece uma transgressão de limites acaba sendo
não uma extensão, mas sim uma diminuição de espaços relevantes. Con­
forme notamos, a arte não consiste em imagens, mas em todos os objetos
possíveis, incluindo-se objetos utilitários, textos e assim por diante. E não
há “imagens artísticas” distintas; qualquer imagem pode ser usada num
contexto artístico. Transformar a história da arte em estudos visuais não
é, dessa forma, uma extensão de seu campo de estudo, mas uma redução
drástica deste, uma vez que restringe a arte ao que pode ser considera­
do “imagem” no sentido tradicional. Em contraste, tudo o que pode ser
apresentado num espaço de instalação pertence à esfera das artes visu­
ais. Nesse sentido, uma imagem individual também é uma instalação;
é, simplesmente, uma instalação que foi reduzida a uma única imagem.
A instalação não é, portanto, uma alternativa para a imagem, mas precisa-
mente, a extensão do conceito da imagem que é perdida se o seu conceito
tradicional fôr adotado novamente. Se quisermos estender o conceito de
imagem, a instalação é exatamente o que devemos discutir, pois elã defi­
ne as regras universais para espaço, a partir das quais toda imagem e não
imagem devem funcionar como objeto espacial. Em mais de um aspec­
to, a transição para a instalação como orientação na arte contemporânea
modifica a definição do que definimos como obra de arte. A mudança
mais significante e abrangente é, a nosso ver, na autoria artística.
Hoje, cada vez mais, protestamos contra o culto tradicional da
subjetividade artística, contra a figura do autor e contra a assinatura
autoral. Essa rebelião, normalmente, se vê como uma revolta contra
as estruturas de poder do sistema de arte, que encontra sua expressão
visível na figura do autor soberano. Repetidamente, críticos tentam
demonstrar que não há um gênio artístico e, consequentemente, que
a condição autoral do artista em questão não pode derivar do suposto
fato de ele ser um gênio. Ao contrário, a atribuição de autoria é vista
como uma convenção utilizada pela instituição, mercado e críticos de
arte para, estrategicamente, construir estrelas e, então, lucrar comer­
cialmente com elas. A luta contra a figura do autor é, assim, compre­
endida como a luta contra um sistema antidemocrático de privilégios
arbitrários e hierarquias infundadas que, historicamente, represen­
tou interesses comerciais básicos. Naturalmente, essa rebelião contra
a figura do autor termina com os críticos à autoria sendo declarados

122
autores famosos, exatamente porque eles destituíram a figura tradi­
cional do autor de seu poder. À primeira vista, é possível que enxer­
guemos isso apenas como o bem conhecido processo de regicídio em
que o assassino do rei torna-se o novo monarca. Mas não é tão simples
assim. Essa polêmica reflete sobre processos reais do mundo da arte
que, contudo, precisam ainda ser adequadamente analisados.
De fato, a autoria tradicional e soberana de um artista indivi­
dual desapareceu; por isso, não faz muito sentido se rebelar con­
tra elã. Quando confrontados com uma exposição de arte, nós lida­
mos com autorias múltiplas. E, na verdade, toda exposição exibe
algo que foi selecionado por um ou mais artistas - de sua própria
produção e/ou da massa de rea d y -m a d es. Esses objetos selecionados
por artistas são, por sua vez, selecionados por um ou mais curadores
que, assim, também compartilham a responsabilidade autoral para
a seleção definitiva. Além disso, esses curadores são selecionados
e financiados por uma comissão, uma fundação ou uma instituição;
assim, essas comissões, fundações e instituições também possuem
responsabilidade autoral e artística pelo resultado final. Os objetos
selecionados são apresentados num espaço escolhido para a finali­
dade; a escolha desse lugar, que pode ser dentro ou fora dos espaços
de uma instituição, frequentemente tem papel crucial no resultado.
A escolha do lugar, portanto, também é parte do processo artístico
criativo; o mesmo vale para a escolha da arquitetura do espaço pelo
arquiteto responsável e a escolha deste pelos comitês responsáveis.
Pode-se estender à vontade a lista de decisões autorais artísticas que,
juntas, resultam numa exposição que tem uma forma ou outra.
Se a escolha, a seleção e a decisão no que se refere à exposição de
um objeto são destinadas a ser reconhecidas como ações de criação ar­
tística, logo, cada exposição individual é o resultado de vários processos
de decisão, escolha e seleção como este. Essa circunstância resulta em
autorias múltiplas, discrepantes e heterogêneas que se combinam, se
sobrepõem e se cruzam sem que seja possível reduzi-las a uma autoria
individual e soberana. Essa sobreposição de múltiplas camadas de au­
torias heterogêneas é característica de qualquer grande exposição dos
últimos anos e, com o tempo, toma-se cada vez mais clara. Por exem­
plo, numa Bienal de Veneza recente, vários curadores foram convidados

123
a apresentar sua própria exposição dentro da estrutura de uma exposi­
ção maior. Portanto, o resultado foi uma forma híbrida entre exposição
curada e instalação artística: os curadores convidados apareceram para
o público como artistas. Mas também é frequente acontecer de artis­
tas individuais integrarem trabalhos de seus colegas em suas próprias
instalações e, assim, eles aparecem para o público como curadores. Em
consequência, a p rá xis autoral, como funciona no contexto atual da arte,
é cada vez mais como a de filmes, músicas e teatro. A autoria de um fil­
me, de uma produção teatral ou de um concerto também é múltipla; elã
é dividida entre escritores, compositores, diretores, atores, operadores
de câmeras, condutores e vários outros participantes. E os produtores,
de forma alguma, devem ser esquecidos. A longa lista de participantes
que aparece ao final do filme, enquanto os espectadores gradualmente
se levantam e saem da sala, manifesta o destino da autoria em nosso
tempo, do qual o sistema de arte não consegue escapar.
Nesse novo regime de autoria, o artista já não é mais julgado
pelos objetos que tenha produzido, mas pelas exposições e projetos
de que participou. Conhecer um artista, hoje, significa ler seu cur­
rículo, não apreciar suas pinturas. Presume-se que sua autoria seja
apenas parcial. Consequentemente, ele é avaliado não por seus pro­
dutos, mas por sua participação em exposições importantes, como
um ator é julgado pelos papéis que desempenha e pelas produções e
filmes dos quais faz parte. Mesmo quando alguém visita o estúdio de
um artista para conhecer sua obra, um CD-ROM lhe é mostrado com
o registro das exposições e eventos de que o artista participou, bem
como documentando as exposições, eventos, projetos e instalações
que foram planejadas, mas nunca realizadas. Essa experiência típica
de uma visita a estúdio hoje em dia demonstra o quanto a condição
da obra de arte mudou em relação à nova determinação de autoria.
A obra de arte não exposta parou de ser obra de arte; em vez disso,
tornou-se documentação artística. Essas documentações se referem
tanto a uma exposição que realmente aconteceu quanto a um projeto
para uma exposição futura. Este é o aspecto crucial: a obra de arte,
hoje em dia, não manifesta a arte; elã apenas a promete. A arte só se
manifesta na exposição, como, de fato, o título M a n ifesta já afirma.
Enquanto um objeto não fôr exposto e tão logo deixe de sê-lo, não

124
poderá ser considerado uma obra de arte. Pode ser a memória de arte
do passado ou a promessa de arte do futuro, mas por qualquer uma
dessas perspectivas, é simplesmente documentação de arte.
O papel do museu é, assim, modificado. Anteriormente, o museu
funcionava exatamente como nos dias de hoje, ou seja, como arquivo
público. Mas era um arquivo especial. O arquivo histórico típico con­
tém documentos que se referem exclusivamente ao passado; ele pre­
sume a efemeridade, a mortalidade da vida que documenta. E, de fato,
o imortal não precisa ser documentado, apenas o mortal precisa. A su­
posição sobre o museu tradicional, ao contrário, era que ele continha
obras de arte que possuem valor artístico eterno, que materializa a arte
da mesma forma para todos os tempos e que pode, também, fascinar
e convencer o espectador atual. Isto é, eles não somente documen­
taram o passado, mas puderam manifestar e emanar a arte como tal,
aqui e agora. O museu tradicional, portanto, funcionou como um ar­
quivo paradoxal de presença eterna, de imortalidade profana e, assim,
era bastante distinto dos outros arquivos históricos e culturais. Os su­
portes materiais da arte - telas, papel e filme - podem ser considera­
dos efêmeros, mas a arte em si é etemamente válida.
O museu atual, ao contrário, torna-se gradualmente similar aos
outros arquivos, pois a documentação de arte que ele coleciona não
aparece para o público necessariamente como arte. A exposição per­
manente do museu já não é mais - ou pelo menos é com menos fre­
quência - apresentada como estável e inintermpta. Em vez disso,
o museu é, cada vez mais, um lugar onde exposições temporárias são
mostradas. A unidade entre coleção e exposição que definia a nature­
za particular do museu tradicional desmoronou. A coleção de museu,
hoje, é vista como material cm de documentação que o curador pode
utilizar em combinação com um programa de exposição que ele tenha
desenvolvido para expressar sua atitude individual, sua estratégia par­
ticular para lidar com a arte. Junto com o curador, no entanto, o ar­
tista também tem a oportunidade de moldar espaços de museu, como
um todo, ou em parte, conforme seu gosto pessoal. Nessas condições,
o museu é transformado em depósito, em arquivo de documentação
artística que não é mais essencialmente diferente de qualquer outra
forma de documentação e, também, em local público para a execução

125
de projetos artísticos privados. Como esse lugar, o museu difere de
qualquer outro principalmente por seu desig n , por sua arquitetura.
Não é coincidência que, recentemente, a atenção tenha sido desviada
da coleção do museu para sua arquitetura.
Contudo, o museu hoje em dia não abandonou totalmente sua pro­
messa de imortalidade profana. A documentação de arte que é colecio­
nada em museus e outras instituições de arte pode sempre ser exposta
novamente como arte. Isso distingue os projetos de arte colecionados
em museus de projetos de vida documentados em outros arquivos:
perceber arte como arte significa exibi la. E o museu pode fazê-lo.
É notória a possibilidade de apresentar como novo um projeto de
vida na realidade fora do museu, mas somente se ele, fundamental­
mente, fôr relativo a um projeto artístico. Esse tipo de redescoberta
da documentação de arte só é possível, no entanto, porque continua
a concentrar-se na autoria múltipla. Documentos antigos de arte são
restaurados, transferidos para outra mídia, reorganizados, instalados
e apresentados em outros espaços. Nessas condições, não faz sentido
falar de autoria individual, intacta. A obra de arte, como documenta­
ção de arte em exposição, é mantida viva porque sua autoria múltipla
continua a se multiplicar e a proliferar; e o local para essa proliferação
e multiplicação da autoria é o museu da atualidade.
A transformação da obra de arte em documentação de arte por
meio de seu próprio arquivamento também permite que a arte, hoje
em dia, explore, num contexto artístico, o imenso reservatório de do­
cumentação de outros eventos e projetos que nossa civilização cole­
cionou. E, de fato, a elaboração e documentação de vários projetos
é a atividade principal do homem moderno. O que quer que alguém
queira empreender em negócios, política, ou cultura, a primeira coi­
sa a fazer é elaborar um projeto correspondente a fim de apresentar,
para uma ou mais autoridades responsáveis, a aplicação da aprovação
ou do financiamento. Se esse projeto fôr rejeitado em sua forma origi­
nal, ele será modificado para ser aceito. Se fôr definitivamente rejeita­
do, não restará opção senão propor um novo projeto para substituí-lo.
Em consequência, todo membro de nossa sociedade está constante-
mente ocupado com rascunhos, discussões e rejeições de novos pro­
jetos. Avaliações são escritas, orçamentos são precisamente calculados,

126
comissões são formadas, comitês são reunidos, decisões são toma­
das. Enquanto isso, não é pequeno o número de nossos contempo­
râneos que não leem nada além de propostas de projetos, relatórios
e orçamentos. A maioria desses projetos, entretanto, nunca é realizada.
O fato de que parecem pouco promissores, difíceis de serem financiados
ou, em geral, de não interessarem a um ou mais especialistas é suficiente
para que todo o trabalho de elaboração do projeto tenha sido em vão.
Esse trabalho não é, de forma alguma, insubstancial, e a quantida­
de de trabalho associada a ele aumenta com o tempo. A documentação
de projeto apresentada para vários comitês, comissões e autoridades é,
cada vez mais, preparada com eficácia e formulada com uma riqueza
de detalhes para impressionar os potenciais avaliadores. Como resul­
tado, a elaboração de projetos está se transformando numa arte autô­
noma, cuja importância para nossa sociedade ainda há de ser adequa­
damente compreendida. Independente de ser, ou não, realizado, todo
projeto apresenta uma visão única do futuro que é, por si só, fascinan­
te e instrutivo. Frequentemente, no entanto, várias das propostas de
projetos que nossa civilização constantemente produz estão perdidas,
ou simplesmente foram jogadas fora depois de terem sido rejeitadas.
Essa abordagem descuidada da forma artística de elaboração de pro­
jetos é bastante lamentável na realidade, porque frequentemente evi­
ta que analisemos e compreendamos as esperanças e visões do futuro
que são depositadas nessas propostas, e isso pode falar mais do que
qualquer outra coisa sobre nossa sociedade. No sistema de arte, a ex­
posição de um documento é suficiente para dar-lhe vida, bem como
o arquivo de arte é especialmente adequado para ser o arquivo desses
tipos de projetos que foram realizados em algum tempo no passado ou
que serão no futuro, mas acima de tudo para ser o arquivo de projetos
utópicos que jamais poderão ser completamente realizados. Estes, fa­
dados ao fracasso na atual realidade política e econômica, podem ser
mantidos vivos na arte, à medida que a documentação desses projetos
muda constantemente de mãos e de autores.

(“Multiple Authorship” , originalmente publicado em The M a n ife sta D e ca d e: D e b a te s

on C on tem porary A r t E x h ib itio n s a n d B ien n ia ls in P o s t-W a ll E urope. A Roomade Book,


Cambridge, Mass., MIT Press, 2005. Tradução para o inglês de Steven Lindberg.)

127
A C I D A D E

N A E R A D A

R E P R O D U Ç Ã O

T U R Í S T I C A

As cidades surgiram, originalmente, como projetos para o futuro: as


pessoas mudaram do interior para os centros urbanos a fim de escapar
das antigas forças da natureza e construir um novo futuro, que elas
pudessem moldar e controlar por conta própria. Todo o curso da his­
tória da humanidade, até o presente, foi definido por esse movimento
do campo para a cidade - uma dinâmica à qual a história deve seu
direcionamento. Apesar de a vida no interior ter sido repetidamente
estilizada como os tempos áureos de harmonia e contentamento “na­
tural” , essas memórias embelezadas de uma vida passada na natureza
nunca impediram as pessoas de continuar em seu caminho históri­
co escolhido. A esse respeito, a cidade, per se, possui uma dimensão
intrinsecamente utópica, em virtude de estar situada fora da ordem
natural. A cidade está localizada no o u -to p o s. Muros outrora delinea­
ram o lugar onde a cidade foi construída, designando, claramente, seu
caráter utópico. De fato, quanto mais uma cidade fosse apontada como
utópica, mais difícil era para alcançá-la e adentrá-la, fosse a cidade
tibetana de Lhasa, a Jerusalém Celestial ou a Shambala na índia. Tra­
dicionalmente, as cidades se isolavam do resto do mundo para fazer
seu próprio caminho em direção ao futuro. Uma cidade genuína não é,

129
então, apenas utópica; é também antiturística: elã se dissocia do espaço
à medida que se move no tempo.
A luta com a natureza, obviamente, não acabou dentro da cidade.
No início do D iscu rso do m étodo, Descartes já observara que, por não se­
rem completamente imunes à irracionalidade da ordem natural, cida­
des historicamente evoluídas deveriam, na verdade, ser completamen­
te demolidas se uma cidade nova, racional e perfeita fosse levantada no
local desocupado.1 Mais tarde, Le Corbusier convocou a demolição de
Paris para dar lugar a uma nova cidade racional a ser construída naque­
le local. Em consequência, o sonho utópico da racionalidade, da trans­
parência e do controle totais de um ambiente urbano desencadeou um
dinamismo histórico que se manifestou na constante transformação de
todos os veios da vida urbana: a busca por utopia força a cidade a se
superar e se destruir - o que explica a característica natural da cidade
de ser o local para revoluções, levantes, recomeços constantes, modas
passageiras e mudanças incessantes de estilos de vida. Construída como
refúgio de segurança, a cidade logo se tornou palco para criminalidade,
instabilidade, destruição, anarquia e terrorismo. A cidade apresenta-
-se, então, como uma mistura de utopia e distopia, por meio da qual
a modernidade, sem dúvida, estima e aplaude seus aspectos distópicos
no lugar dos utópicos - decadência urbana, perigo e medo que assom­
bram. Essa cidade de efemeridade eterna é frequentemente retratada
na literatura e representada no cinema: é a cidade que conhecemos, por
exemplo, em B lade R unner, ou em E xterm inador do fu tu r o I e II, onde
constantemente dá-se permissão para que as coisas sejam explodidas
ou arrasadas, simplesmente porque as pessoas não se cansam de se es­
forçar em abrir espaço para o que se espera ser o próximo acontecimen­
to ou futuros desenvolvimentos. E, cada vez mais, a chegada do futuro é
impedida e atrasada porque os restos da estrutura urbana anteriormen­
te construída não podem ser totalmente removidos, tornando etema­
mente impossível completar a atual fase preparatória. Se qualquer coisa,
de qualquer que seja a duração, existir em nossas cidades, é, no fim das
contas, para que seja encontrada nessa incessante preparação para a
construção de algo que promete durar por muito tempo; está na cons­
tante postergação de uma solução final o infindável julgamento, os eter­
nos reparos e a constante e fragmentada adaptação a novas restrições.

130
Em tempos modernos, contudo, esse impulso utópico, a busca por
uma cidade ideal, ficou progressivamente mais fraco e tem sido gra­
dualmente suplantado pela fascinação pelo turismo. Hoje, quando não
estamos mais satisfeitos com a vida que nos é oferecida em nossa pró­
pria cidade, paramos de lutar por sua mudança, revolução ou recons­
trução e, em vez disso, simplesmente nos mudamos para outra cidade
- por um curto período ou para sempre - em busca do que sentimos
falta em nossa cidade natal. A mobilidade entre cidades, em todas as
formas de turismo e migração, já alterou radicalmente nossa relação
com a cidade, bem como alterou as próprias cidades. A globalização
e a mobilidade fundamentalmente levaram o caráter utópico da cidade
a ser questionado, ao reinscreverem a o u -to p o s urbana na topografia
do espaço globalizado. Não é coincidência que McLuhan, em suas re­
flexões acerca desse mundo globalizado, tenha criado o termo “aldeia
global” em oposição à cidade global. Tanto para o turista quanto para
o migrante é a região onde se localiza a cidade que, mais uma vez, tor-
nou-se a questão central.
Foi principalmente a primeira fase do turismo moderno - a que
denominarei turismo romântico - que gerou uma atitude antiutópica
distinta em relação à cidade. O turismo romântico, em seu disfarce
de século XIX, lança certa paralisia sobre a cidade, que se tornou co­
mumente vista como um agregado de atrações turísticas. O turismo
romântico não está à procura de modelos universais utópicos, mas de
diferenças culturais e identidades locais. Seu olhar não é utópico, mas
conservador - direcionado não para o futuro, mas para sua proveni­
ência. O turismo romântico é uma máquina projetada para transfor­
mar a temporalidade em permanência, a fugacidade em atemporali-
dade, a efemeridade em monumentalidade. Quando um turista passa
por uma cidade, o local fica exposto ao seu olhar como algo que não
tem história, que é eterno, que corresponde ao total de edifícios que
sempre estiveram lá e sempre permanecerão como são no momento
de sua chegada, pois o turista é incapaz de ter o controle das trans­
formações históricas da cidade, ou de perceber o impulso utópico que
a lança para o futuro. Portanto, pode-se dizer que o turismo romântico
abole a utopia exatamente ao nos fazer vê-la realizada. O olhar turís­
tico romantiza, monumentaliza e eterniza tudo aquilo a seu alcance.

131
A cidade, por sua vez, adapta-se a essa utopia materializada, ao olhar
de medusa do turista romântico.
Os monumentos de uma cidade, afinal de contas, nem sempre
estiveram lá, de pé, para que os turistas pudessem observá-los; foi
o turismo que criou esses monumentos. É o turismo que imortaliza
a cidade; o olhar do turista de passagem transforma a vida urbana, im­
placavelmente fluida e constantemente em mudança, em monumental
imagem da eternidade. O aumento crescente do turismo também ace­
lera o processo de monumentalização.
Nós somos, agora, testemunhas de uma explosão pura de eter­
nidade ou, de forma mais sucinta, de eternização, em nossas cidades.
Já não são mais apenas monumentos famosos como a Torre Eiffel ou
a Catedral de Colônia que parecem clamar por preservação, mas qual­
quer coisa que acenda o sentido de familiaridade dentro de nós, afinal,
é assim que as coisas sempre foram e é assim que sempre serão. Mesmo
quando você fôr, por exemplo, a Nova Iorque e visitar o Bronx, e vir um
tiroteio entre traficantes de drogas (ou pelo menos como se estivessem
prestes a atirar), essas cenas estão embebidas da aura digna da imor­
talidade. A primeira coisa que lhe ocorrerá é: sim, as coisas sempre
foram assim e sempre serão; todos esses tipos coloridos, as pitores­
cas ruínas da cidade e o perigo surgindo em cada esquina. Dias depois,
você provavelmente lerá nos jornais que esse distrito será pacificado,
e sua reação seria a de choque e tristeza, semelhante ao que sentiria
ao ouvir que a Catedral de Colônia ou a Torre Eiffel seriam demolidas
para dar lugar a lojas de departamentos. Você pensa: aqui está um pe­
daço de vida autêntica, única e diferente que será destruída e, mais
uma vez, tudo está prestes a tornar-se insípido e banal; o que um dia
foi monumental e eterno estará, em breve, irrevogavelmente perdido.
Mas esse luto seria prematuro, pois em sua próxima visita à zona paci­
ficada, você diz: que maravilhosamente insípido, feio e banal está tudo
aqui, claramente sempre foi tão insosso assim e sempre será. Com isso,
a área é instantaneamente remonumentalizada, porque, nas viagens
de alguém, as coisas corriqueiras e banais são sempre experimentadas
como sendo tão monumentais quanto aquelas esteticamente excep­
cionais. Em vez de ser guiado por algum tipo de qualidade intrínse­
ca pertencente a um monumento, nosso senso de imortalidade deriva

132
do inexorável processo de monumentalização, desmonumentalização
e remonumentalização desencadeado pelo olhar do turista romântico.
A propósito, foi Kant - na sua teoria do sublime em C rítica d a f a c u l­
dade do ju íz o - quem, pela primeira vez, analisou filosoficamente a figu­
ra do turista que vaga pelo mundo à procura de experiências estéticas.
Ele descreve o turista romântico como alguém que percebe até mesmo
sua própria morte como destino de viagem e é capaz de vivenciá-la
como evento sublime. Como exemplo de excelência matemática, Kant
cita montanhas ou oceanos, fenômenos que diminuem as proporções
normais de um ser humano. Como instâncias de sublimidade dinâmica
ele oferece eventos naturais colossais, como tempestades, erupções vul­
cânicas e outras catástrofes cuja força avassaladora ameaça nossa vida
diretamente. Contudo, como destinos visitados por turistas românticos,
essas ameaças não são, em si, sublimes - assim como monumentos ur­
banos não são intrinsecamente monumentais. Segundo Kant, a subli­
midade não está em “qualquer coisa da natureza” , mas na “capacidade
que temos dentro de nós” de julgar e aproveitar sem medo as coisas
que nos ameaçam.2Daí o sujeito das ideias infinitas de Kant quanto à
razão ser o turista, que embarca repetidamente em jornadas em busca
da enormidade e do perigo extraordinários para confirmar sua própria
superioridade e sublimidade em relação à natureza. Porém, em outro
setor desse tratado, Kant também destaca que os habitantes dos Alpes,
por exemplo, que passaram a vida inteira nas montanhas, não as veem
como sublimes de forma alguma e, “sem hesitação” , consideram bobos
“todos os adoradores dos picos gelados” .3 De fato, no tempo de Kant,
o olhar do turista romântico ainda diferia radicalmente daquele do mo­
rador da montanha. Com seu olhar globalizado, o turista vê a figura do
camponês suíço, por exemplo, como elemento da paisagem - dessa for­
ma, a figura não o perturba. Para o camponês suíço, mantido ocupado
nos arredores, o turista romântico é simplesmente um tolo, um idiota
que não se pode levar a sério. Mas, ao longo do tempo, como bem sabe­
mos, essa situação, mais uma vez, mudou completamente. Mesmo que
os habitantes de qualquer região ainda considerem os turistas interna­
cionais errantes uns bobos, eles, mesmo assim, sentem cada vez mais
a necessidade - sem dúvida por questões econômicas - de assimilar
o olhar globalizado a eles lançado e de ajustar seu próprio modo de vida

133
às predileções estéticas de seus visitantes, viajantes e turistas. Além do
mais, os moradores das montanhas também começaram a viajar e estão
se tornando, da mesma forma, turistas.
O tempo em que vivemos é, portanto, uma era de Pós-Roman-
tismo, em que o turismo confortável e completo marca a nova fase na
história das relações entre a o u -to p o s urbana e a topografia do mun­
do. Essa nova fase não é, na verdade, difícil de caracterizar: ao invés
do turista romântico individual, agora todo tipo de gente, coisa, sinal
e imagem retirados de todo tipo de cultura local deixam suas origens e
enfrentam jornadas ao redor do mundo. A rígida diferença entre os via­
jantes românticos do mundo e a população local e sedentária está rapi­
damente se desfazendo. As cidades já não esperam mais pela chegada
do turista - elas também estão começando a juntar-se à circulação
global, a reproduzir-se em escala mundial e a expandir-se em todas
as direções. Ao fazê-lo, seu movimento e sua proliferação acontecem
em ritmo bem mais acelerado do que aquele que o turista romântico
individual jamais conseguiu. Esse fato incita o clamor generalizado de
que todas as cidades se assemelham cada vez mais, se parecem umas
com as outras e começam a se homogeneizar, de modo que, ao che­
gar a uma nova cidade, o turista acaba por ver as mesmas coisas que
encontrou em todas as outras. Essa experiência de semelhança entre
todas as cidades contemporâneas leva o observador a considerar, fre­
quente e erroneamente, que o processo de globalização está apagando
idiossincrasias, identidades e diferenças locais. A verdade não é que
essas distinções desapareceram, mas que elas, por sua vez, embarca­
ram numa jornada, começaram a se reproduzir e a expandir.
Por bastante tempo, fomos capazes de aproveitar as delícias
da cozinha chinesa não somente na China, mas também em Nova
Iorque, Paris e Dortmund. Ao especular em que região a comida
chinesa é mais gostosa, a resposta não é, necessariamente, “China” .
Se formos para a China e não conseguirmos vivenciar as cidades chine­
sas como exóticas, isso não será, de forma alguma, simplesmente por­
que esses lugares foram radicalmente moldados pela arquitetura inter­
nacional de origem ocidental, mas porque muito do que se experimenta
lá como “autenticamente chinês” há muito se tornou familiar aos vi­
sitantes vindos da América ou da Europa, onde tais atributos chineses

134
podem ser encontrados em qualquer vila ou cidade. Então, longe de
serem extintas, as características locais, na verdade, tornaram-se
globais. As diferenças entre cidades variadas tornaram-se diferenças
intraurbanas. O resultado é uma cidade do mundo globalizado que
substituiu a aldeia global. Essa cidade mundial funciona como uma
máquina reprodutiva que multiplica, de maneira relativamente rápida,
qualquer atributo local de uma cidade específica por todas as outras
cidades ao redor do mundo. Dessa forma, ao longo do tempo, cida­
des bastante diferentes começam a se parecer sem que uma cidade em
especial sirva de protótipo para todas as outras. Assim que uma nova
linhagem de música rap surge em algum recanto de Nova Iorque, elã
rapidamente começa a influenciar o cenário musical de outras cidades
- bem como cada nova seita indiana multiplica e espalha seu ashram
por todo o mundo.
São, sobretudo, os artistas e intelectuais de hoje que gastam gran­
de parte de seu tempo em trânsito, correndo de uma exposição à pró­
xima, de um projeto a outro, de uma palestra à próxima, ou de um
contexto cultural local a outro. Espera-se que todos os participantes
no mundo cultural de hoje ofereçam sua produção criativa a uma au­
diência global, preparem se para estar constantemente de mudança
de um local ao próximo e que apresentem seu trabalho com a mesma
persuasão, independente de onde estiverem. A vida em trânsito, dessa
forma, está conectada aos mesmos graus de esperança e medo. Por um
lado, para os artistas existe agora a possibilidade de evadir-se da pres­
são de dominar os gostos locais de forma relativamente indolor. Graças
aos meios modernos de comunicação, eles podem sair à procura de
associados de todo o mundo que compartilham da mesma opinião, em
vez de ter que se ajustar aos gostos e orientações culturais de seus arre­
dores. Isso, incidentalmente, explica também a condição despolitizada
da arte contemporânea, que é tão frequentemente deplorada. Em tem­
pos passados, os artistas compensavam a falta de reação a seu trabalho
por parte dos membros de sua própria cultura ao projetar suas aspi­
rações para o futuro, ao sonhar com mudanças políticas que, um dia,
gerariam pessoas mais apreciadoras de seu trabalho. Hoje, o impulso
utópico mudou de direção - o reconhecimento já não é procurado no
tempo, mas no espaço: a globalização substituiu o futuro como local

135
de utopia. Portanto, em vez de praticar políticas vanguardistas base­
adas no futuro, nós agora abraçamos políticas de viagem, migração
e vida nômade, paradoxalmente reacendendo a dimensão utópica
que aparentemente morreu na era do turismo romântico.
Isso significa que, como viajantes, somos agora observadores, não
tanto de ambientes locais como nossos amigos viajantes, todos pre­
sos a uma permanente jornada global que se tornou idêntica à vida na
cidade do mundo. Além disso, a arquitetura urbana atual começou
a mover-se mais rápido do que seus observadores. Essa arquitetura,
quase sempre, já está lá antes de os turistas chegarem. Na corrida en­
tre os turistas e a arquitetura, é o turista quem perde. Apesar de ficar
aborrecido por encontrar a mesma arquitetura onde quer que vá, ele
também fica impressionado ao ver o sucesso de certo tipo de arquite­
tura numa vasta gama de ambientes culturais distintos. Agora estamos
preparados para sermos atraídos e persuadidos, especialmente por
estratégias artísticas capazes de produzir arte que alcança o mesmo
grau de sucesso, independentemente do contexto cultural e das condi­
ções em que é vista. O que nos fascina, hoje em dia, são exatamente as
diferenças e identidades culturais que não são definidas em seu local,
mas formas artísticas que conseguem afirmar, com persistência, sua
própria identidade e integridade, onde quer que sejam apresentadas.
Já que todos nós nos tornamos turistas capazes apenas de observar ou­
tros turistas, o que nos impressiona sobre todas as coisas, costumes
e práticas é, principalmente, sua capacidade de reprodução, dissemina­
ção, autopreservação e sobrevivência nas mais diversas condições locais.
Com isso, as estratégias do turismo pós-romântico e completo
estão atualmente suplantando as velhas estratégias de utopia e ilumi-
nismo. Estilos arquitetônicos e artísticos redundantes, preconceitos
políticos, mitos religiosos e costumes tradicionais não são mais des­
tinados a transcender em nome da universalidade, mas a serem re­
produzidos turisticamente e disseminados globalmente. As cidades do
mundo atual são homogêneas sem serem universais. Já se acreditou
que, para alcançar a universalidade de ideias e criatividade, depen­
dia-se de o indivíduo transcender suas próprias tradições locais em
nome da valorização universal. Consequentemente, a utopia consagra­
da pela vanguarda radical era redutiva: era esperado que se aspirasse,

136
primeiramente, à forma pura e elementar, livre de todos os traços his­
tóricos e locais a fim de reivindicar seu valor universal e global. Essa
também foi a forma como a arte moderna clássica procedeu - primeiro,
reduzir algo à sua essência; depois, espalhá-lo pelo mundo. A arte e a
arquitetura atuais, em contraste, são disseminadas globalmente sem ao
menos se preocupar primeiro com qualquer tipo de redução a alguma
essência universalmente válida. As possibilidades de rede global, de
mobilidade, reprodução e distribuição levaram as chamadas tradicio­
nais à universalidade de forma ou conteúdo a serem consideradas bas­
tante obsoletas. Atualmente, qualquer fenômeno cultural pode se pro­
liferar sem ser solicitado que reivindique sua própria universalidade.
O pensamento universal está sendo substituído pela disseminação na
mídia universal de qualquer tipo de ideia local. A universalidade da
forma artística está sendo deslocada pela reprodução global de qual­
quer tipo de forma local. Como resultado, enquanto os observadores de
hoje são constantemente confrontados com ambientes urbanos seme­
lhantes, é impossível dizer se o caráter desses ambientes é, de alguma
forma, “universal” . No período pós-modernista, toda arquitetura que
seguisse a Bauhaus era criticada por ser monótona e redutiva - como
arquitetura que primeiro nivelava e depois apagava todas as identida­
des locais. Mas hoje a pletora de estilos locais se espalha no mesmo
ritmo global que o estilo internacional certa vez fez sozinho.
Portanto, como efeito do turismo total, testemunhamos agora o
surgimento da privação homogênea de toda universalidade, como um
desenvolvimento totalmente novo e atualizado. Em consequência, no
contexto de turismo total, encontramos mais uma vez uma utopia, mas
que difere radicalmente da utopia estática e imóvel da cidade, que se
delimita ao se separar da topografia restante e ao se segregar do resto
do país. Com isso, todos nós vivemos numa cidade mundial onde viver
e viajar se tornaram sinônimos, onde já não há mais qualquer diferença
perceptível entre os residentes da cidade e seus visitantes. A utopia de
uma ordem universal eterna foi substituída pela utopia da mobilidade
global constante. Por sua vez, a dimensão distópica dessa utopia tam­
bém mudou - células terroristas e drogas desenvolvidas atualmente
proliferam em cidades ao redor do mundo no mesmo ritmo, digamos,
do das boutiques Prada.

137
Curiosamente, no início do século XX, vários utópicos radicais da
vanguarda russa avançaram em planos para cidades futuras em que
todos os edifícios e casas fossem, em primeiro lugar, uniformes quan­
to ao projeto e, em segundo lugar, móveis. Incrivelmente, os projetos
tornaram a jornada turística sinônimo de destino. Em semelhante veio,
o poeta Velimir Khlébnikov propôs que todos os habitantes da Rússia
ficassem hospedados em células de vidro montadas sobre rodas, per­
mitindo que viajassem livremente para todo e qualquer lugar e que
vissem tudo, mas sem, de forma alguma, obstruir sua visibilidade para
o outro. Com isso, o turista e o habitante da cidade tornam-se idên­
ticos - e tudo o que o turista é capaz de ver é outro turista. Por aca­
so, Kazimir Malevich levou o projeto de Khlébnikov um passo à frente
quando sugeriu colocar cada pessoa dentro de um receptáculo cós­
mico individual para mantê-lo flutuando constantemente no espaço
e para permitir-lhe voar de um planeta para outro. Sua proposta ir-
revogavelmente tornaria, então, o sujeito humano um eterno turista
numa jornada sem fim, na qual - isolado em sua célula própria, mas
sempre idêntica - ele mesmo se tornaria um monumento. Encontra­
mos uma visão análoga na popular série de TV Jornada n a s estrelas, na
qual a nave espacial E nterprise tornou-se um espaço constantemen­
te móvel, utópico e monumental que nunca muda ao longo de todos
os incontáveis episódios da série, ainda que - ou exatamente porque
- sempre se movimente na velocidade da luz. Nesse sentido, a utopia
busca a estratégia de transcender o antagonismo entre imobilidade
e viagem, entre as vidas sedentária e nômade, entre conforto e peri­
go, entre a cidade e o interior - como criação de um espaço completo
onde a topografia da superfície da Terra torna-se idêntica ao o u -to p o s
da cidade eterna.
De forma marcante, tal transcendência utópica da natureza já
vinha sendo considerada no período do romantismo alemão. Evidên­
cias disso podem ser encontradas em uma passagem de Ästetik des
(A estética do feio, 1853), escrito pelo discípulo de Hegel,
H ä sslich en
Karl Rosenkranz:

Tome, por exemplo, nossa Terra que, para ser bonita como um corpo, pre­
cisaria ser uma esfera perfeita. Mas não é. Elã é achatada em ambos os polos

138
e inchada ao redor do equador, além de as elevações de sua superfície se­
rembastantes irregulares. De um ponto de vista puramente estereométrico,
o perfil da crosta terrestre revela-nos a maior confusão casual de eleva­
ções e depressões com todo tipo de contorno incalculável. Assim, no que
se refere à superfície da lua, com sua desordem de altura e profundidade,
somos igualmente incapazes de afirmar se é bonita etc.4

Quando isso foi escrito, a humanidade estava muito distante, tec­


nologicamente, da possibilidade de uma viagem espacial. Aqui, junto
com o espírito de uma utopia vanguardista ou de um filme de ficção
científica, o agente da contemplação estética global é, no entanto, re­
tratado como um alienígena que acabou de chegar do espaço e, então,
observando de uma distância confortável, formou um julgamento es­
tético da aparência de nossa galáxia. Obviamente, imputa-se a esse
extraterrestre diferentes gostos clássicos, o que justifica o fato de ele
não considerar nosso planeta e seus arredores particularmente bonitos.
Mas, independente do julgamento final do alienígena, uma coisa é cla­
ra: essa é a primeira manifestação do olhar do residente urbano con­
sumado que, em movimento constante na o u -to p o s do espaço cósmico
negro, espia a topografia do mundo de uma distância turística estética.

(“the City in the Age of Touristic Reproduction” , originalmente publicado em Alfons


Hug (org.), C id a d es, p. 44-55. XXV Bienal de São Paulo, 2002.)

139
R E F L E X Õ E S

C R Í T I C A S
Há algum tempo o crítico de arte parece ser um representante legí­
timo do mundo da arte. Assim como o artista, o curador, o dono de
galeria e o colecionador, quando um crítico de arte aparece na abertu­
ra de uma exposição ou em outro evento do mundo da arte, ninguém
se pergunta “o que ele está fazendo aqui?” . O fato de que algo deve
ser escrito sobre a arte é considerado autoevidente. Quando obras de
arte não são acompanhadas de texto - num panfleto anexo, catálogo,
revista de arte ou qualquer outro meio - elas parecem ter sido entre­
gues, sem proteção, perdidas e nuas, ao mundo. Imagens sem texto
são constrangedoras, como uma pessoa sem roupa em local público.
Em última hipótese, elas precisam de um biquíni textual na forma de
inscrição com nome do artista e o título (na pior das hipóteses, pode
estar escrito “sem título” ). Somente a intimidade doméstica de uma
coleção particular permite o nu completo de uma obra de arte.
A função do crítico de arte - “comentarista de arte” talvez seja
uma forma melhor de denominá-lo - consiste em preparar tais rou­
pas-texto protetoras para obras de arte. Esses são, a princípio, textos
que não são necessariamente feitos para serem lidos. O papel do co­
mentarista de arte é completamente mal interpretado se fôr esperado

141
que ele seja claro e compreensível. Na verdade, quanto mais hermé­
tico e mais compacto fôr o texto, melhor; textos muito transparentes
deixam obras de arte parecer nuas. Claro, eles são de uma transpa­
rência tão absoluta que o efeito é especialmente opaco. Tais textos
oferecem a melhor proteção, um truque bem conhecido dos estilis­
tas de moda. De qualquer forma, seria ingenuidade de qualquer um
tentar ler comentários de arte. Por sorte, poucos no mundo da arte
tiveram essa ideia.
Assim, o comentário de arte encontra-se hoje em posição confusa:
simultaneamente indispensável e supérfluo. Além de sua pura presen­
ça material, não se sabe o que esperar ou desejar dele. Essa confusão
tem origem na genealogia da crítica contemporânea: o posicionamen­
to do crítico no mundo da arte é nada mais do que autoevidente. Como
em geral se sabe, a figura do crítico no mundo da arte surgiu no final
do século XVIII e começo do XIX, junto com o gradual aumento de
público amplo e democrático. Naquele tempo, ele certamente não era
considerado representante do mundo da arte, mas estritamente um
observador de fora, cuja função era julgar e criticar obras de arte em
nome do público, exatamente como faria qualquer observador com
boa formação, tempo e facilidade literária. Bom gosto era visto como
expressão do “senso comum” estético. O julgamento do crítico de arte
deveria ser incorruptível, ou seja, não dever obrigação ao artista. Para
um crítico abrir mão da distância, significava se corromper pelo mun­
do da arte e negligenciar suas responsabilidades profissionais: essa de­
manda pela crítica de arte desinteressada em nome da esfera pública é
a afirmação da terceira crítica de Kant, o primeiro tratado verdadeira­
mente importante da modernidade.
O ideal judicial, no entanto, foi traído pela crítica de arte da van­
guarda histórica. A arte de vanguarda retirou-se conscientemente do
julgamento público; elã não abordou o público como era, mas conver­
sou com uma nova humanidade como deveria - ou ao menos poderia
- ser. A arte de vanguarda pressupôs uma humanidade diferente e nova
para recebê-la, que fosse capaz de captar o significado oculto das cores
e formas (Kandinsky), de sujeitar sua imaginação e até mesmo sua vida
cotidiana às rígidas leis da geometria (Malevich, Mondrian, os cons­
trutivistas, Bauhaus), de reconhecer um mictório como obra de arte

142
(Duchamp). A vanguarda, portanto, introduziu uma ruptura na socie­
dade, não redutível a qualquer diferença social previamente existente.
A diferença nova e artificial é a verdadeira obra de arte vanguar-
dista. Agora não é o observador que julga a obra de arte, mas a obra de
arte que julga - e frequentemente condena - seu público. Essa estraté­
gia não raramente foi denominada elitista, mas sugere uma elite tanto
igualmente aberta a qualquer um quanto excludente de todos. Ser es­
colhido não significa, automaticamente, domínio, nem mesmo maes­
tria. Todo indivíduo está livre para se colocar contra o resto do público,
do lado da obra de arte, entre aqueles que constituem a nova humani­
dade. Vários críticos da vanguarda histórica fizeram exatamente isso.
No lugar da crítica em nome da sociedade, surgiu a crítica social em
nome da arte: a obra de arte não forma o objeto de julgamento, mas é,
ao contrário, levada ao ponto de partida para uma crítica direcionada
à sociedade e ao mundo.
A crítica de arte de hoje herdou o ofício público mais antigo, jun­
tamente com a traição da vanguarda a ele. A tarefa paradoxal de julgar
a arte em nome do público enquanto se critica a sociedade em nome
da arte abre uma brecha profunda no discurso crítico contemporâneo.
E pode-se ler o discurso crítico de hoje como uma tentativa de resu­
mir, ou ao menos dissimular, essa fenda. Por exemplo, há a demanda
do crítico para que a arte aborde diferenças sociais existentes e se po­
sicione contra a ilusão da cultura homogênea. Isso certamente parece
bastante vanguardista, mas o que se esquece é que a vanguarda não
abordou diferenças já existentes, mas introduziu as que não existiam
previamente. O público estava igualmente aturdido diante do supre­
matismo de Malevich e do dadaísmo de Duchamp, e essa incompreen­
são - perplexidade independente de classe, raça ou gênero - é, na ver­
dade, o momento democrático de vários projetos vanguardistas. Estes
não estavam na posição de suspender as diferenças sociais existentes
e com isso criar unidade cultural, mas foram capazes de introduzir
distinções tão radicais e novas que puderam determinar, com exces­
so, as diferenças existentes.
Não há nada de errado com a demanda para que a arte desista da
“autonomia” modernista e se torne veículo de crítica social, mas o que
continua sem ser mencionado é que a postura crítica está embotada,

143
banalizada e finalrnente impossibilitada por essa exigência. Quando
a arte renunciar à sua habilidade autônoma de produzir artificialmente
suas próprias diferenças, elã também perderá sua habilidade de sujei­
tar a sociedade, como tal, a uma crítica radical. Tudo o que resta à arte
é ilustrar a crítica na qual a sociedade já se nivelou ou que já produziu
por conta própria. Exigir que a arte seja praticada em nome das dife­
renças sociais existentes é, na verdade, exigir a afirmação da estrutura
social existente disfarçada de crítica social.
Em nosso tempo, a arte é geralmente compreendida como uma
forma de comunicação social; o fato de que todas as pessoas que­
rem se comunicar e lutam por reconhecimento comunicativo é visto
como autoevidente. Mesmo que o discurso contemporâneo da crítica
de arte entenda o famoso “outro” não no sentido de identidade cul
tural particular, mas como o desejo, o poder, a libido, o inconsciente,
o real, a arte ainda é interpretada como tentativa de comunicar esse
outro, de lhe dar voz e forma. Mesmo que a comunicação não seja
alcançada, o desejo por elã é suficiente para assegurar a aceitação.
Também a obra da vanguarda clássica é aceita quando compreendida
como subordinada à intenção diligente de expressar o inconsciente e
a alteridade: a incompreensão da arte para o observador mediano é
justificada em virtude da impossibilidade de qualquer mediação co­
municativa do “outro radical” .
Mas esse “outro” , que deseja incondicionalmente transmitir-se,
que quer ser comunicativo, obviamente não é um “outro” suficiente.
O que tornou a vanguarda clássica interessante e radical foi exata­
mente ter conscientemente evitado a comunicação social convencio­
nal: elã se autoexcomungou. A “incompreensibilidade” da vanguarda
não era apenas o efeito da falha de comunicação. A linguagem, in­
clusive a linguagem visual, pode ser usada não somente como meio
de comunicação, mas também como meio de não comunicação es­
tratégica ou até mesmo autoexcomunhão, ou seja, a saída voluntária
da comunidade de comunicação. E essa estratégia de autoexcomu­
nhão é absolutamente legítima. Pode-se até desejar construir uma
barreira linguística entre si e o outro para ganhar distância crítica da
sociedade; a autonomia da arte não é nada além desse movimento de
autoexcomunhão. É uma questão de ganhar poder sobre diferenças,

144
uma questão de estratégia: em vez de superar ou comunicar velhas
diferenças, novas diferenças são produzidas.
A saída da comunicação social praticada repetidamente pela arte
moderna foi frequente e ironicamente descrita como escapismo. Mas
todo escapismo é seguido de retorno, por isso, o herói de Rousseau pri­
meiro deixa Paris e vaga pelas florestas e campos simplesmente para re­
tomar a Paris, armar uma guilhotina no centro da cidade e sujeitar seus
superiores e colegas de outrora a uma crítica radical, isto é, ter a cabe­
ça decepada. Toda revolução que se preze tenta substituir a sociedade
existente por uma nova e artificial. O impulso artístico sempre exerce
um papel decisivo aqui. Que tantas tentativas de produzir uma nova
humanidade tenham até agora encontrado tantas frustrações explica
várias apreensões de críticos ao depositar muita esperança na vanguar­
da. Em vez disso, eles querem trazer a vanguarda de volta à estabilidade
dos fatos, cercá-la e acorrentá-la à realidade, às diferenças existentes.
Contudo, a pergunta permanece: O que são essas diferenças re­
ais existentes? A maioria é totalmente artificial. A tecnologia e a moda
geram as diferenças importantes de nossos dias. E onde são conscien­
temente e estrategicamente produzidas - seja na alta arte, no design,
no cinema, na música popular ou na nova mídia - a tradição vanguar-
dista permanece (o recente entusiasmo pela internet, reminiscência
do tempo da vanguarda clássica, é um exemplo). Críticos de arte so­
cial não têm interesse em diferenças técnicas ou de moda, mesmo que
tenham que agradecer ao sucesso dessas diferenças artificiais o fato
de seu tipo de discurso estar em voga (ou ao menos esteve, até bem
recentemente). Portanto, vários anos após o despontar da vanguarda,
o discurso da arte contemporânea continua a sofrer, porque diferenças
produzidas artificial e conscientemente ainda permanecem despri-
vilegiadas. Como na era da vanguarda histórica, artistas introduzindo
diferenças estéticas artificiais são reprovados por serem motivados ex-
clusivamente por interesses comerciais e estratégicos. Reagir à moda com
entusiasmo e esperança, ver nisso a chance de uma diferença social nova
e interessante, é considerado “inapropriado” em teorias “sérias” .
A má vontade do crítico em identificar-se com posições artísti­
cas específicas está atrelada, teoricamente, à opinião de que alcança­
mos o final da história da arte. Arthur Danto, por exemplo, afirma em

145
“Após o fim da arte” que os programas de vanguarda que tinham a in­
tenção de definir a essência e a função da arte finalrnente se tornaram
insustentáveis. Logo, não é mais possível privilegiar teoricamente um
tipo específico de arte, como críticos de pensamento vanguardista -
no contexto americano, o paradigma permanece Clement Greenberg
- tentaram incessantemente fazer. O desenvolvimento da arte nes­
te século terminou num pluralismo que relativiza tudo, torna tudo
possível a todo o tempo e não mais permite julgamentos de ordem
crítica. Essa análise certamente parece plausível. Mas o pluralismo
atual é, ele mesmo, completamente artificial - um produto vanguar­
dista. Uma única obra de arte moderna é uma enorme máquina de
diferenciação contemporânea.
Se, assim como fez Greenberg, os críticos não tivessem tomado na
ocasião obras de arte específicas para definir novas linhas de demar­
cação na teoria e na política da arte, nós não teríamos pluralidade hoje,
porque essa diversidade artística certamente não pode ser reduzida
à pluralidade social já existente. Até mesmo os críticos da arte social
podem fazer sua distinção entre o “natural” e o “socialmente codifi­
cado” , relevante para a crítica de arte somente porque colocam essas
distinções (artificiais), como rea d y -m a d es no contexto da diferenciação
modernista. Danto faz o mesmo movimento de Greenberg, quando ten­
tou extrair todas as consequências das Brillo B o xes de Warhol e quando
tentou pensar nessa obra de arte como o começo de uma era totalmen­
te nova. A pluralidade de hoje significa, decisivamente, que nenhuma
posição pode ter, inequivocamente, mais privilégios do que outra. Mas
nem todas as diferenças entre duas posições têm o mesmo valor; algu­
mas diferenças são mais interessantes do que outras. Isso vale para fazer
alguém se preocupar com diferenças tão interessantes - independente
de qual posição essa pessoa apóia; vale ainda mais para criar diferenças
novas e interessantes, que fazem avançar a condição de pluralismo. E já
que essas diferenças são puramente artificiais, um fim natural e históri­
co não pode ser atribuído ao processo de diferenciação.
Talvez a verdadeira razão para o fato de que os atuais críticos
de arte não mais defendam apaixonadamente uma atitude específica
em arte e sua relevância para a teoria e para a política cultural seja mais
psicológica que teórica. Primeiramente, ao fazê-lo, o crítico defensor

146
se sente abandonado pelo artista. Supõe-se facilmente que, depois de
o crítico passar para o lado do artista, ele ganharia sua gratidão e se
tomaria seu confidente. Mas não funciona assim. O texto do crítico - a
maioria dos artistas acredita nisso - parece, mais do que proteger a
obra de detratores, isolá-la de seus admiradores em potencial. Uma
rigorosa definição teórica é mim para os negócios. Por isso, muitos ar
tistas se protegem de comentários teóricos na esperança de que uma
obra de arte nua seja mais sedutora que uma vestida por um texto. Na
verdade, os artistas preferem elaborações que sejam tão vagas quanto
possível: a obra é “carregada de tensão” , “crítica” (sem qualquer in­
dicação de como, ou por que); o artista “desconstrói códigos sociais” ,
“questiona nossa maneira habitual de ver” , “pratica elaboração” de
uma coisa ou outra. Ou os artistas preferem falar eles mesmos, con­
tar sua história pessoal e demonstrar como tudo, até mesmo os mais
triviais objetos que são captados por seu olhar, assumem para eles um
significado profundo e pessoal (em várias exposições, o observador
tem a sensação de ser colocado no lugar de um assistente social ou de
um psicoterapeuta, sem receber qualquer ajuda financeira para tanto;
efeito frequentemente parodiado em instalações de Ilya Kabakov e, de
forma diferente, nos vídeos de Tony Oursler).
Por outro lado, a tentativa do crítico de se voltar para o público
e se oferecer como defensor de suas reivindicações legítimas não leva
a nada: a antiga traição não foi perdoada. O público ainda considera
o crítico um sujeito do meio, um relações públicas para a indústria da
arte. Ironicamente, o crítico detém o menor poder entre todos nessa
indústria. Quando um crítico escreve para um catálogo, tudo é arran­
jado e pago pelas mesmas pessoas que estão expondo o artista que ele
está resenhando. Quando ele escreve para algum jornal ou periódico,
ele está cobrindo uma exposição que o leitor assume valer a pena men­
cionar. O crítico, portanto, não tem chance real de escrever sobre um
artista se este já não fôr consagrado, se alguma outra pessoa no mun­
do da arte já tiver decidido que o artista merece uma mostra. Alguém
poderia contestar afirmando que um crítico pode, ao menos, produ
zir uma resenha negativa. Isso é, certamente, verdade - mas não faz
diferença. Através dessas décadas de revolução artística, movimentos
e contramovimentos, o público, neste século, finalrnente se deu conta

147
de que uma resenha negativa não difere em nada de uma positiva.
O que importa numa resenha é quais artistas são mencionados, onde
e por quanto tempo são discutidos. O resto é resto.
Como reação a essa situação, um tom amargo, desapontado e nii­
lista impregna a crítica de arte hoje em dia e claramente arruina seu
estilo. Isso é uma vergonha, porque o sistema de arte ainda não é um
mau lugar para um escritor. É verdade que a maioria desses textos não
é lida, mas por essa razão mesmo pode-se, a princípio, escrever o que
quer que se queira. Com o pretexto de expor diferentes contextos de
uma obra de arte, as mais diversas teorias, afirmações intelectuais, es­
tratégias retóricas, acessórios de estilo, conhecimento emdito, histórias
pessoais e exemplos de todas as jornadas de vida podem ser combi­
nados, à vontade, no mesmo texto - de uma forma impossível nas
duas outras áreas abertas a escritores em nossa cultura: a academia e
a mídia de massa. Quase em lugar algum a pura textualidade do texto
se mostra tão claramente quanto na crítica de arte. O sistema de arte
protege o escritor tanto da demanda de que ele transmita certo tipo
de “conhecimento” à massa de estudantes quanto da competição por
leitores entre aqueles cobrindo o julgamento de O.J. Simpson. O pú­
blico dentro do mundo da arte é relativamente pequeno: falta pressão
por um amplo fórum público. Portanto, o texto não precisa estar de
acordo com a competição desse público. Obviamente, a moda surge
como uma consideração - às vezes deve-se sentir autenticidade numa
obra de arte, outras vezes perceber que elã não existe, algumas vezes
enfatizar sua relevância política e por vezes cair em obsessões particu­
lares - , mas não rigorosamente. Há sempre aqueles que não gostam da
moda predominante, ou porque gostavam de uma anterior, ou porque
esperam pela próxima ou por ambas as razões.
Mas, acima de tudo, o crítico de arte não pode errar. É claro,
a crítica tem sofrido repetidas acusações de ter realizado um mau jul­
gamento ou má interpretação de uma forma de arte específica. Mas essa
reprovação é infundada. Um biólogo pode se equivocar, por exemplo,
ao descrever um jacaré de forma diferente, porque estes não leem tex­
tos críticos e, portanto, não terão o comportamento influenciado por
eles. O artista, ao contrário, pode adaptar seu trabalho ao julgamento
e à abordagem teórica de um crítico. Quando surge um abismo entre

148
a obra de um artista e o julgamento de um crítico, não se pode, ne­
cessariamente, dizer que o crítico julgou mal o artista. Quem sabe não
foi o artista quem leu mal o crítico? Mas isso não é tão ruim também:
pode ser que o próximo artista o leia melhor. Seria falso pensar que,
de alguma forma, Baudelaire tenha superestimado Constantin Guys ou
Greenberg, Jules Olitski, porque o excesso teórico que ambos produzi­
ram tem seu próprio valor e pode estimular outros artistas.
Também não é assim tão importante qual obra de arte o crítico
utiliza para ilustrar as diferenças teóricas geradas. A diferença, em si,
é importante - e não aparece nas obras, mas em seu uso, inclusive em
sua interpretação - mesmo que várias imagens pareçam adequadas
para fins de crítica. Não há escassez de ilustrações úteis; observamos,
hoje, uma tremenda superprodução de imagens. (Artistas, cada vez
mais, reconhecem isso - e começaram a escrever eles mesmos. A pro­
dução de imagens serve para eles mais como uma cobertura do que
um objetivo verdadeiro). A relação entre imagem e texto mudou. An­
tes, pareceria importante fornecer um bom comentário para uma obra.
Hoje, parece importante fornecer uma boa ilustração para um texto, o
que demonstra que a imagem comentada não mais nos interessa tanto
quanto o texto ilustrado. Ao trair o critério do gosto público, o crítico
de arte se transformou em artista. Nesse processo, qualquer reivindi­
cação por um metanível de julgamento foi perdida. Ainda assim, a crí­
tica de arte, há muito tempo, tornou-se arte do seu próprio jeito; com
a linguagem como seu veículo e ampla base de imagens a seu dispor,
move-se tão autocraticamente quanto passou a ser habitual em arte,
cinema ou desig n . Por isso a rasura gradual da linha entre artista e crí­
tico de arte se completa, enquanto a tradicional distinção entre artista
e curador e crítico e curador tende ao desaparecimento. Somente os
limites novos e artificiais em cultura e política são importantes, os que
são desenhados em casos individuais, com intenção e estratégia.

(“Critcal Reflections” , originalmente publicado em A r tfo r u m , Oct. 1997.)

149
2
A R T E E M

G U E R R A

A relação entre arte e guerra, ou arte e terror, sempre foi ambivalente,


para ser no mínimo gentil. É verdade que a arte precisa de paz
e tranquilidade para se desenvolver. E ainda, ao longo do tempo, elã
tem usado essa tranquilidade para louvar os heróis de guerra e cantar
seus feitos heroicos. A representação da glória e do sofrimento de
guerra foi, por muito tempo, um dos temas prediletos da arte. Mas
o artista da era clássica era apenas um narrador ou um ilustrador
dos eventos da guerra - no passado, o artista jamais competia com
o guerreiro. A divisão de trabalho entre guerra e arte era bastante
clara. O guerreiro participava da luta de verdade; o artista a repre­
sentava ao narrá-la ou retratá-la.
Com isso, o guerreiro e o artista eram mutuamente dependentes.
O artista precisava do guerreiro como tema de arte. Mas o guerreiro
precisava do artista ainda mais. Afinal de contas, o artista sempre po­
deria encontrar outro tema, mais pacífico, para sua obra. Mas somen­
te um artista era capaz de conceder fama a um guerreiro e assegurá-
-la nas gerações vindouras. De certa forma, a ação heroica do passado
era fútil e irrelevante sem o artista, que tinha o poder de testemunhar
esse feito heroico e inscrevê-lo na memória da humanidade. Mas em

153
nosso tempo, a situação mudou drasticamente: o guerreiro contem­
porâneo já não precisa de um artista para obter fama e inscrever-se
na memória universal. Por esse motivo, ele tem toda a mídia con­
temporânea imediatamente a sua disposição. Todo ato de terror e de
guerra é imediatamente registrado, representado, descrito, retrata­
do, narrado e interpretado pela mídia. Essa máquina de cobertura
midiática funciona quase automaticamente. Não exige intervenção
artística individual, nem decisão artística individual para que possa
ser colocada em movimento. Ao apertar um botão que explode uma
bomba, um guerreiro contemporâneo ou terrorista aperta um botão
que inicia a máquina da mídia.
De fato, a mídia de massa contemporânea surgiu como, de longe,
a maior e mais poderosa máquina de produzir imagens - imensa­
mente mais extensa e efetiva que nosso sistema contemporâneo de
arte. Somos constantemente alimentados por imagens de guerra, ter­
ror e catástrofes de todo tipo, num nível de produção e distribuição
de imagem com o qual o artista não consegue competir. Então, pa­
rece que o artista - esse último artesão da modernidade atual - não
tem chance alguma de se opor à supremacia dessas máquinas comer­
ciais de gerar imagem.
Além disso, os próprios terroristas e guerreiros estão começan­
do a agir como artistas. A videoarte, em especial, tornou-se o veícu­
lo de escolha dos guerreiros contemporâneos. Bin Laden se comuni­
cava com o mundo através desse veículo, principalmente: todos nós
o conhecemos, em primeiro lugar, como artista de vídeo. O mesmo
pode ser dito de vídeos representando decapitações, confissões de
terroristas e coisas do tipo: em todos esses casos, consciente e artisti­
camente, encenamos eventos com suas estéticas próprias, facilmente
reconhecíveis. Hoje, temos guerreiros que não esperam por um artista
para representar suas ações de guerra e terror. Em vez disso, o ato de
guerra propriamente dito coincide com sua documentação, com sua
representação. O funcionamento da arte como veículo de representa­
ção e o papel do artista como mediador entre realidade e memória são
completamente eliminados. O mesmo pode ser dito sobre as famosas
fotografias e vídeos da prisão de Abu-Ghraib, em Bagdá. Esses víde­
os e fotografias demonstram uma similaridade estética sinistra com

154
a arte e o cinema alternativo e subversivo europeu e americano das
décadas de 1960 e 1970. A similaridade iconográfica e estilística é, de
fato, impressionante (V ie n n e se A c tio n ism , Pasolini etc.). Em ambos os
casos o objetivo é revelar um corpo nu, vulnerável, desejoso, que é ha­
bitualmente coberto pelo sistema de convenções sociais. Mas, é claro,
a arte subversiva dos anos 1960 e 1970 tinha o objetivo de enfraquecer
o tradicional conjunto de crenças e convenções que dominavam a cul­
tura própria do artista. Na produção de imagem de Abu-Ghraib, esse
objetivo é, podemos seguramente dizer, completamente pervertido.
A mesma estética subversiva é utilizada para atacar e enfraquecer uma
cultura diferente, num ato de violência e humilhação do outro (ao in­
vés do autoquestionamento que inclui a auto-humilhação) - deixando
valores conservadores da cultura do criminoso completamente livres
de questionamento. Mas, em todos os casos, vale mencionar que em
ambos os lados da guerra ao terror, a produção e a distribuição de ima­
gem é efetuada sem qualquer intervenção de um artista.
Deixemos de lado todas as considerações éticas e políticas e ava­
liações desse tipo de produção de imagem; acredito que elas sejam
mais ou menos óbvias. No momento, para mim é importante afirmar
que, aqui, estamos falando de imagens que se tomaram ícones do ima­
ginário coletivo contemporâneo. Os vídeos terroristas e os da prisão de
Abu-Ghraib são plantados em nossa consciência e até em nosso sub­
consciente muito mais profundamente do que qualquer trabalho de
qualquer artista contemporâneo. Essa eliminação do artista da prática
de produção é dolorosa principalmente para o sistema de arte, por­
que, pelo menos desde o início da modernidade, os artistas quiseram
ser radicais, ousados, quebradores de tabus e sem limites de fronteiras.
O discurso da arte de vanguarda faz uso de vários conceitos da esfera
militar, incluindo-se a própria noção de vanguarda. Há conversas so­
bre a explosão de normas, destruição de tradições, violação de tabus,
prática de certas estratégias artísticas, ataque às instituições existentes
e coisas assim. Daí, podemos ver que a arte moderna não somente acom­
panha, ilustra, louva ou critica a guerra, como fez antes, mas também
a promove. Os artistas da vanguarda clássica se viram agentes da ne­
gação, destruição e erradicação de todas as formas tradicionais de arte.
De acordo com o famoso ditado “negação é criação” , inspirado pela

155
dialética hegeliana e propagado por autores como Bakunin e Nietzsche
sob o título “niilismo ativo” , artistas vanguardistas se sentiram capa­
zes de criar novos ícones através da destruição dos velhos. Uma obra
de arte moderna era medida a partir de quão radical elã era, quão longe
o artista tinha ido na destruição da tradição artística. Apesar de, nesse
meio tempo, a modernidade ter sido frequentemente declarada anti­
quada, até o dia de hoje esse critério de radicalismo não perdeu nada
de sua relevância para nossa avaliação da arte. A pior coisa que pode
ser dita sobre um artista continua sendo que sua arte é inofensiva.
Isso significa que a arte moderna tem uma relação mais que am­
bivalente com a violência, com o terrorismo. A reação negativa de um
artista diante do poder repressivo e controlador do Estado é algo que
praticamente nem precisa ser dito. Artistas que são comprometidos
com a tradição da modernidade se sentirão inequivocamente compe­
lidos por essa tradição a defender a autonomia do indivíduo contra a
opressão do Estado. Mas a atitude do artista em relação à violência in­
dividual e revolucionária é mais complicada, na medida em que tam­
bém pratica a afirmação radical da soberania do indivíduo sobre o Es­
tado. Há uma longa história por trás da profunda cumplicidade secreta
entre arte moderna e violência revolucionária, moderna e individual.
Em ambos os casos, a negação radical é equiparada com a criatividade
autêntica, tanto na área da arte quanto na da política. Essa cumplici­
dade resulta, cada vez mais, numa forma de rivalidade.
Assim, arte e política estão conectadas em pelo menos um aspecto
fundamental: ambas são áreas em que a luta por reconhecimento está
sendo promovida. Como definido por Alexander Kojève em seu co­
mentário sobre Hegel, essa luta por reconhecimento ultrapassa a luta
costumeira pela distribuição de bens materiais, que, na modernidade,
é geralmente regulada pela força do mercado. O que está em questão
aqui não é apenas o fato de que certo desejo seja satisfeito, mas que
também seja reconhecido como socialmente legítimo. Enquanto a po­
lítica é uma arena em que vários grupos de interesse, tanto no passado
quanto no presente, lutaram por reconhecimento, os artistas da van­
guarda clássica já brigaram pelo reconhecimento de todas as formas
individuais e procedimentos artísticos que não eram antes conside­
rados legítimos. Em outras palavras, a vanguarda clássica lutou para

156
alcançar reconhecimento de todos os signos visuais, formas e mídias
como objetos legítimos de desejo artístico e, portanto, também de re­
presentação em arte. Ambas as formas de luta estão intrinsecamente
ligadas uma à outra e ambas têm em mira uma situação em que todas
as pessoas, com seus interesses variados, bem como todas as formas
e procedimentos artísticos, irão finalrnente se beneficiar de direitos
iguais. E ambas as formas de luta são pensadas, no contexto da moder­
nidade, como intrinsecamente violentas.
Em conformidade com essas linhas, Don DeLillo escreve em seu
romance Mao II que terroristas e escritores estão envolvidos num
jogo de soma zero: ao negar radicalmente aquilo que existe, ambos
desejam criar uma narrativa que seria capaz de captar a imagina­
ção da sociedade e, assim, alterar a sociedade. Nesse caso, terroristas
e escritores são rivais - e, como DeLillo nota, o escritor hoje em dia
é facilmente vencido porque a mídia utiliza os atos terroristas para
criar uma narrativa poderosa contra a qual nenhum escritor pode lu­
tar. Mas, é claro, esse tipo de rivalidade é ainda mais óbvio no caso
do artista que no caso do escritor. O artista contemporâneo utiliza
a mesma mídia que o terrorista: fotografia, vídeo, filme. Ao mesmo
tempo fica claro que o artista não pode ir além do terrorista no campo
de gestos radicais. Em seu M a n ifesto su rrea lista , André Breton ficou
famoso ao proclamar que o ato terrorista de atirar numa multidão
pacífica é um gesto autenticamente surrealista e artístico. Hoje, esse
gesto parece ter sido esquecido devido aos acontecimentos recentes.
Em termos de troca simbólica, funciona como p o tla tch , como foi des­
crito por Marcei Mauss ou por Georges Bataille. Isso significa que, na
rivalidade do radicalismo de destruição e de autodestruição, a arte
está, obviamente, no lado perdedor.
Parece-me, no entanto, que essa maneira bastante popular de
comparar arte e terrorismo ou arte e guerra é, fundamentalmente,
fracassada. E, agora, vou tentar demonstrar onde vejo a falácia. A arte
vanguardista da modernidade era iconoclasta. Não resta dúvida a esse
respeito. Poderíamos então dizer que terrorismo é iconoclasta? Não.
O terrorista é, na verdade, iconófilo. A produção de imagem de um ter­
rorista ou de um guerreiro tem como objetivo produzir imagens for­
tes - imagens que tenderíamos a aceitar como “reais” , “verdadeiras” ,

157
“ícones” da realidade escondida e terrível que, para nós, é a realida­
de política global do nosso tempo. Eu diria que essas imagens são os
ícones da teologia política contemporânea que domina nosso ima­
ginário coletivo. Essas imagens retiram seu poder e persuasão de
uma forma bastante efetiva de chantagem moral. Depois de tantas
décadas de crítica moderna e pós-moderna da imagem, de mimetis­
mo, de representação, sentimo-nos envergonhados ao dizer que tais
imagens de terror ou tortura não são verdadeiras, não são reais. Não
podemos dizer que essas imagens não são verdadeiras, porque sabe­
mos que foram pagas pela perda real de vida - uma perda de vida
documentada pelas imagens. Magritte podia, facilmente, dizer que
uma maçã pintada não é uma maçã real, um cachimbo pintado não é
um cachimbo real. Mas como podemos falar que a filmagem de uma
decapitação não é uma decapitação real? Ou que a filmagem de um
ritual de humilhação na prisão de Abu-Ghraib não é um ritual real?
Assim, depois de muitos anos de crítica à representação direciona­
da à ingênua crença na verdade fotográfica e cinematográfica, esta­
mos agora, novamente, prontos a aceitar certas imagens fotografadas
e filmadas como inquestionavelmente verdadeiras.
Isso significa que o terrorista (o guerreiro) é radical, mas não
é radical no mesmo sentido do artista. Ele não pratica a iconoclas-
tia. Em vez disso, ele quer reforçar a crença na imagem, reforçar
a sedução iconófila, o desejo iconófilo. E ele toma medidas excepcio­
nais e radicais para terminar a história da iconoclastia; para terminar
a crítica da representação. Somos, aqui, confrontados por uma estra­
tégia historicamente bem nova. De fato, o guerreiro tradicional estava
interessado nas imagens que poderiam glorificá-lo, apresentá-lo de
forma favorável, positiva e atraente. E nós, claro, acumulamos uma
longa tradição de criticar e desconstruir tais estratégias de idealiza­
ção pictórica. Mas a estratégia pictórica do guerreiro contemporâneo
é de choque e admiração; é uma estratégia pictórica de intimidação.
E elã, obviamente, só é possível após a longa história da arte moderna,
que produz imagens de angústia, crueldade e desfiguração. A tradi­
cional crítica da representação era conduzida pela suspeita de que de­
veria haver algo feio e aterrorizante escondido por trás da superfície
da imagem convencional idealizada. Mas o guerreiro contemporâneo

158
nos mostra exatamente isso - essa feiura escondida, a imagem de
nossa própria suspeita, nossa própria angústia.
É exatamente por causa disso que nos sentimos imediatamente
obrigados a reconhecer essas imagens como verdadeiras. Vemos que
as coisas estão tão ruins quanto esperamos que estejam - talvez até
piores. Nossas piores suspeitas são confirmadas: a realidade escondida
por trás da imagem nos é mostrada tão feia quanto esperávamos que
fosse. Temos, então, a sensação de que nossa jornada crítica chegou ao
fim, que nossa tarefa crítica está completa, que nossa missão como in­
telectuais críticos foi cumprida. Agora, a verdade da política se revela
- e podemos contemplar os novos ícones da teologia política contem­
porânea sem precisar avançar muito, pois esses ícones já são bastante
terríveis. Então, é suficiente comentar sobre eles - não faz mais sentido
criticá-los. Isso explica a macabra fascinação que encontra expressão
em várias publicações recentes dedicadas às imagens de guerra ao ter­
ror que surgem em ambos os lados da frente invisível.
Por isso, eu não acredito que o terrorista seja um rival bem suce­
dido do artista moderno ao ser ainda mais radical que o artista. Prefiro
pensar que o terrorista, ou o guerreiro antiterrorista, com sua máquina
de produção de imagem incorporada, é inimigo do artista moderno,
porque ele tenta criar imagens que têm um apelo como verdade e reali­
dade - além de qualquer crítica da representação. As imagens de terror
e guerra foram, de fato, proclamadas por vários autores de hoje como
sinais de retorno do real - como prova visual do fim da crítica da ima­
gem como era praticada no século passado. Mas penso ser muito cedo
para desistir dela. É claro, as imagens às quais me refiro têm algumas
verdades elementares e empiricas: elas documentam certos eventos
e seu valor documental pode ser analisado, investigado, confirmado
ou rejeitado. Há meios técnicos de definir se uma dada imagem é em­
piricamente verdadeira ou se é simulada, modificada ou falsificada.
Mas precisamos diferenciar essa verdade empírica do uso empírico de
uma imagem como, digamos, evidências judiciais e seu valor simbóli­
co dentro da economia da troca simbóüca da mídia.
As imagens do terror e as contra o terror que circulam permanen­
temente nas redes da mídia contemporânea e se tornam praticamen­
te inevitáveis para o telespectador não são mostradas, primeiramente,

159
no contexto de uma investigação empírica e criminal. Sua função é
mostrar algo mais que esse ou aquele incidente concreto, empírico;
elas produzem imagens universalmente válidas do sublime político.
A noção de sublime é associada para nós, em primeiro lugar, à análi­
se de Kant, que usava como exemplo de sublime imagens das monta­
nhas suíças e tempestades no mar. Elã também é associada ao artigo
de Jean-François Lyotard sobre a relação entre a vanguarda e o subli­
me. Mas, na verdade, a noção de sublime tem origem no tratado de
Edmund Burke sobre as noções de sublime e de beleza - lá, Burke uti­
liza como exemplo de sublime a decapitação pública e as torturas co­
muns durante séculos anteriores ao Iluminismo. Porém, não devemos
esquecer também que o domínio do Iluminismo propriamente dito foi
introduzido pela exposição pública de decapitações em massa em gui­
lhotinas no centro da Paris revolucionária.
Em sua F en om enologia do espírito, Hegel escreve sobre a revelação
de que a verdadeira igualdade entre os homens foi criada porque se
tornou perfeitamente claro que ninguém pode afirmar, mais do que
o outro, que sua morte tem mais sentido. Durante os séculos XIX e XX,
a despolitização em massa do sublime aconteceu. Agora vivemos o re­
torno não do real, mas do sublime político - em forma de repolitiza-
ção do sublime. A política contemporânea já não se apresenta como
bela - como até mesmo os Estados totalitários do século XX fizeram.
Em vez disso, a política contemporânea se representa como subli­
me novamente - ou seja, feia, repulsiva, insuportável e aterrorizante.
E mais: todas as forças políticas do mundo contemporâneo estão en­
volvidas no aumento de produção do sublime político - ao competir
pelas imagens mais fortes, mais aterrorizantes. É como se a Alema­
nha nazista, para fazer sua própria propaganda, utilizasse imagens de
Auschwitz, e a União Soviética de Stalin, imagens do Gulag. Tal estra­
tégia é nova. Mas não tão nova quanto parece.
A questão que Burke originalmente tentou levantar é exata­
mente esta: uma imagem aterrorizante e sublime de violência ainda
é uma simples imagem. Uma imagem de terror também é produzida,
encenada - e pode ser esteticamente analisada e criticada em ter­
mos de crítica da representação. Esse tipo de crítica não indica qual­
quer falta de senso moral. O senso moral vem onde há relação com

160
o evento individual e empírico que é documentado por certa ima­
gem. Mas, no momento em que uma imagem começa a circular na
mídia e adquire o valor simbólico de representação do sublime polí­
tico, elã pode ficar sujeita à critica de arte juntamente com qualquer
outra imagem. Essa crítica de arte pode ser teórica. Mas elã pode se
manifestar por meio da própria arte - como passou a ser tradição
no contexto da arte modernista. Parece-me que esse tipo de críti­
ca já faz parte do mundo da arte, mas eu preferiria não dar nomes
aqui, porque me desviaria do objetivo principal deste texto, que é
diagnosticar o regime contemporâneo de produção e distribuição de
imagem enquanto ele tem lugar na mídia contemporânea. Eu gosta­
ria, apenas, de ressaltar que o objetivo da crítica contemporânea da
representação deveria ser duplo. Primeiramente, essa crítica deveria
ser direcionada a todos os tipos de censura e supressão de imagens
que nos impediria de sermos confrontados com a realidade da guer­
ra e do terror. E esse tipo de censura é, claro, ainda existente. Esse
tipo de censura, que se legitima como “defesa de valores morais”
e “direitos de família” pode, obviamente, ser aplicado à cobertura
das guerras que acontecem hoje - e exigir a higienização de sua re­
presentação na mídia. Entretanto, ao mesmo tempo, necessitamos
da crítica que analise o uso dessas imagens de violência como no­
vos ícones do sublime político e que analise a competição simbólica
e até mesmo comercial pela imagem mais forte.
E me parece que o contexto artístico é apropriado, principal­
mente, para esse segundo tipo de crítica. O mundo da arte parece
ser bastante pequeno, fechado, e até mesmo irrelevante se compara­
do com o poder dos mercados midiáticos de hoje. Mas, na realidade,
a diversidade de imagens circulando na mídia é altamente limitada
se comparada à diversidade daquelas circulando na arte contempo­
rânea. De fato, para serem efetivamente divulgadas e exploradas na
mídia de massa comercial, as imagens precisam ser facilmente reco­
nhecíveis para um amplo grupo de espectadores-modelo, que fazem
da mídia de massa praticamente uma tautologia. A variedade de ima­
gens circulando na mídia de massa é, portanto, bem mais limitada
que a diversidade de imagens preservadas em museus de arte moder­
na ou produzidas pela arte contemporânea.

161
Desde Duchamp, a arte moderna tem praticado a promoção de
“meras coisas” ao status de obra de arte. Esse movimento para cima
criou a ilusão de que ser obra de arte é algo superior e melhor que
ser simplesmente real, ser simplesmente uma coisa. Mas, ao mesmo
tempo, a arte moderna passou por um longo período de autocríti­
ca em nome da realidade. O nome “arte” era usado nesse contex­
to mais como acusação, como forma de denegrir. Dizer que algo é
“mera arte” é um insulto ainda maior que dizer que é mero objeto.
O poder equalizador da arte moderna e contemporânea funciona de
ambas as maneiras - valoriza e desvaloriza ao mesmo tempo. Isso
significa: dizer que imagens produzidas pela guerra e pelo terro­
rismo em nível simbólico são meramente arte não é elevá-las ou
santificá-las, mas sim criticá-las.
A fascinação por imagens do sublime político, que agora podemos
ver em quase todo lugar, pode ser interpretada como caso específico de
nostalgia pela obra-prima, pela imagem verdadeira e real. A mídia - e
não o museu, não o sistema de arte - parece agora ser o lugar onde se
espera que tamanha expectativa por uma imagem poderosa, imedia­
tamente persuasiva e genuinamente forte seja satisfeita. Temos aqui
certa forma de reality show que alega ser representante da realidade
política propriamente dita - em suas formas mais radicais. Mas essa
declaração só pode ser sustentada pelo fato de que não somos capazes
de praticar a crítica da representação no contexto da mídia contem­
porânea. O motivo para isso é bastante simples: a mídia nos mostra
somente a imagem do que está acontecendo agora. Em contraste com
a mídia de massa, as instituições de arte são locais de comparação his­
tórica entre passado e presente, entre promessa original e realização
contemporânea dessa promessa e, assim, elas possuem meios e habi­
lidade para serem locais de discurso crítico - porque cada discurso
desse tipo precisa de comparação, necessita de estrutura e técnica de
comparação. Dado nosso atual clima cultural, as instituições de arte
são praticamente os únicos lugares onde podemos, de fato, recuar do
nosso próprio presente e compará-lo com outras épocas históricas.
Nesses termos, o contexto da arte é quase insubstituível, porque é es­
pecialmente ideal para a análise crítica e para desafiar as alegações do
z e itg e ist orientado pela mídia. As instituições de arte servem como um

162
lugar onde somos lembrados de toda a história da crítica da represen­
tação e da crítica do sublime - de forma que podemos medir nosso
próprio tempo a partir desse passado histórico.

(“Art at War” , originalmente publicado como “ The Fate of Art In the Age of Terror” ,
Bruno Latour and Peter Weibel (eds.), M a k in g T h in g s P u b lic : A tm o s p h e r e s o f

D e m o cra cy , Cambridge, Mass., MIT Press, 2005, p. 970-977.)

163
0 c 0 R P 0

D O H E R Ó I

A T E O R I A

D A A R T E O E

A D O L F H I T L E R
Hoje em dia, qualquer um que fale de heróis e heroísmo dificilmen­
te consegue evitar pensar em fascismo, Nacional Socialismo e Hitler.
O fascismo elevou a produção do heroico a um programa político. Mas
o que é um herói? O que o distingue de um não herói? O ato heroi­
co transforma o corpo do herói de veículo em mensagem. Nesse sen­
tido, o corpo do herói é distinto daquele do político, do cientista, do
empreendedor ou do filósofo, corpos esses de pessoas escondidas por
trás da função social que exercem. Quando um corpo, no entanto, se
manifesta diretamente, quando explode a crosta das regras sociais que
normalmente representa, o resultado é o corpo do herói. Tais corpos ex­
plosivos eram exaltados e expostos, por exemplo, por futuristas italia­
nos. Eles abandonaram o papel tradicional do artista como fornecedor
para o mercado de arte, como produtor de imagens e, como alternativa,
transformaram o próprio corpo em imagem. E estes não eram corpos
em descanso; eram corpos em batalha, entusiasmados, emocionados,
vibrantes e explosivos, ou seja, heroicos. Os heróis da antiguidade ti­
nham corpos assim, quando eram tomados por uma paixão desenfre­
ada e estavam prontos para destruir ou serem destruídos. O Fascismo

165
italiano e o Nacional Socialismo alemão adotaram o programa artístico
de fazer do veículo corpo uma mensagem, e tomaram a mensagem po­
lítica. Eles assumiram uma posição não a partir de convicções, teorias
e programas, mas com corpos - de atletas, lutadores e soldados.
Fazer do corpo uma mensagem exige, acima de tudo, tuna arena, um
palco - ou, como alternativa, requer repercussão moderna, um público
criado pela mídia. É por isso que hoje experimentamos um amplo retomo
do heroico, mesmo que não seja explicitamente declarado, porque vive­
mos em um mundo teatral em que tudo, ultimamente, depende totalmen­
te do corpo. Nesse mundo teatral, todos os discursos são reduzidos a efei­
tos sonoros, slogans e exclamações. As estrelas da mídia atual tomam-se
estrelas por meio do corpo, não pelo que dizem ou fazem. São corpos de
atletas que tomam evidente o fato de que se esforçam demais, corpos que
são envolvidos em luta, corpos sujeitos ao perigo, mas também os corpos
de estrelas do rock que vibram com a paixão que os toma, os corpos de
modelos, atores, políticos - e os corpos de homens-bomba que explodem
com os corpos de outros. Documentados, comentados e celebrados pela
mídia, todos esses corpos dominam nosso imaginário coletivo.
O fascismo introduziu a era do corpo e nós continuamos a vivê-la,
mesmo que, como programa político, o Fascismo tenha sido retirado
da principal corrente cultural. Na verdade, esse seu deslocamento da
posição de programa político é sinal de que somos incapazes de acei­
tar a realidade de nossa própria mídia. Sobretudo, temos vergonha de
perguntar as questões cruciais: o que distingue o corpo heroico de uma
estrela da mídia de um corpo não heroico da audiência? Onde está
a fronteira mágica que separa o herói do não herói num plano pura­
mente corpóreo? Essas questões surgem porque, no plano ideológi­
co, uma igualdade democrática para todos é postulada como se não
existisse de fato na realidade da mídia, pois, na democracia orientada
pela mídia atual, todas as ideologias, teorias e discursos são iguais - e,
dessa forma, irrelevantes. Ainda assim, os corpos são, por isso, iguais.
O Nacional Socialismo e Hitler, obviamente, tinham uma resposta
para tais questões: raça. Como Hitler disse:

Ao defender sua existência, toda raça age a partir do poder e de valores na­
turalmente outorgados a elã. Somente quem é adequado para ser heroico

166
pensa e age heroicamente. [...] Criaturas que são puramente prosaicas por
natureza - criaturas fisicamente não heroicas, por exemplo - também
apresentam características não heroicas em sua luta pela sobrevivência.
No entanto, assim como é possível para os elementos não heroicos de uma
comunidade treinar os heroicamente inclinados a serem não heroicos,
o enfaticamente heroico pode também, resoluto, subordinar outros ele­
mentos a sua própria tendência.

Com essa ideologia em mente, Hitler observou que o povo alemão,


porque composto de “variadas substâncias raciais” , não pode ser carac­
terizado incondicionalmente como heroico, pois se deve admitir “que
o alcance normal de nossas habilidades é determinado pela composição
racial inerente a nosso Volk” . Ainda assim, Hitler não estava satisfeito
com essa observação, e definiu o Nacional Socialismo como segue:

Ele quer que a liderança política e cultural de nosso Volk assuma a cara e a
expressão da raça cujo heroísmo, que está enraizado em sua natureza ra­
cial, primeiramente criou o Volk alemão a partir de um conglomerado de
seus vários elementos. O Nacional Socialismo, portanto, compromete-se
a um ensinamento heroico que leva em consideração o valor do sangue,
da raça e da personalidade, bem como das leis internas da seleção.1

Em consequência, Hitler se viu como um treinador para o povo


alemão. Como os guerreiros Jedi do épico Guerra n a s estrelas, ele procu­
rava forças escondidas, radicalmente determinadas pela raça, que pre­
cisavam ser descobertas e mobilizadas no corpo do Volk alemão. Filmes
mais recentes estão, sem dúvida, repletos dessas figuras de treinadores.
Incontáveis mestres de kung fu em todos os tipos de filmes - do mais
barato filme B a M a trix ou K ill Bill tentam fazer com que seu pupilo se
esqueça de tudo o que aprendera, ouvira e pensara e confie apenas nos
instintos inerentes e escondidos do seu próprio corpo, para descobrir
os poderes aos quais foram geneticamente destinados. Na vida real, da
mesma forma, milhares e milhares de conselheiros ensinam atletas,
políticos e empreendedores a acreditarem em si, a agirem espontanea­
mente e instintivamente e a descobrirem o próprio corpo. A descoberta
do próprio corpo, assim, tornou-se a maior arte de nossa época.

167
No Terceiro Reich, essa arte era declarada a arte oficial do Estado,
pois Hitler disse: “A arte é uma missão sublime que compele a pes­
soa ao fanatismo.”2 Além disso: “A arte jamais pode ser separada do
ser humano [...] Ainda que outros aspectos da vida possam ainda ser
aprendidos através de alguma forma de educação, a arte deve ser ina­
ta.”3 Para Hitler, a verdadeira arte consiste em revelar a raça heroica,
o corpo heroico, e levá-lo ao poder. Essa arte, é claro, somente é possí­
vel para aqueles que são, eles mesmos, dotados por natureza de heroís­
mo, porque esse tipo de arte verdadeira é, por si só, uma missão heroica.
O artista, portanto, torna-se um com o herói. Hitler viu a arte não sim­
plesmente como um retrato do heroico, mas como um ato que é, em si,
heroico, porque molda a realidade e a vida do Volk. E esse ato, que tam­
bém é um ato do corpo, por não poder ser separado do corpo da pessoa
que o realiza, é a obra de um artista-herói que poderia, e deveria ser
válido não somente no presente, mas por todo o tempo. Na visão de
Hitler, a arte “moderna” não heroica nunca poderá adquirir esse valor
eterno, porque não manifesta uma determinação heroica no nível do
corpo do artista, mas, ao contrário, tenta se apoiar numa teoria, num
discurso, em noções de estilo e moda internacionais. Em consequên­
cia, a arte moderna trai e falha em sua mais alta missão, já que teoria,
discurso e crítica são fenômenos superficiais, características apenas da
época que tende a negligenciar e esconder o corpo do artista.
É por isso que Hitler declarou que a liberação da arte de seu
aprisionamento pela crítica de arte, que argumenta a partir da teo­
ria pura, seria a principal tarefa de sua política de arte - e ele estava
comprometido a encarar essa batalha pela liberação tão impiedo­
samente quanto possível. Ele queria produzir uma arte heroica que
possuísse valor eterno. Pode-se admitir que essa ênfase constante no
valor eterno da arte era mera conversa, mera retórica com intenção
de justificar as atrocidades do regime. Essa visão, entretanto, perde
sua plausibilidade quando se nota que Hitler usou os mesmos argu­
mentos para influenciar membros de seu próprio partido a sacrificar
seus objetivos políticos imediatos para criar arte que pudesse ter va­
lor eterno, quando lhes perguntou: “Podemos nos permitir sacrifício
pela arte em tempos de tanta pobreza, escassez, miséria e desespe­
ro em todos os lugares ao nosso redor?”4 A resposta obviamente é:

168
“Sim, podemos e devemos” - e dessa forma Hitler denunciou a falta
de admiração pela arte por parte dos membros do Partido Socialista
Nacional, que não pretendiam mobilizar os meios e forças do Ter­
ceiro Reich não apenas para a economia e para o exército, mas tam­
bém para a arte. Hitler então argumentou que o Terceiro Reich podia
existir etemamente só se produzisse arte que possuísse valor eterno.
E não há dúvida de que Hitler viu a perspectiva da eternidade como
justificativa última do Estado. Por isso, a produção de arte com valor
eterno era a derradeira tarefa da política, se os políticos desejassem
passar pelo teste crucial - o teste da eternidade. O conceito de eter­
nidade era, portanto, o coração das reflexões de Hitler sobre a arte
heroica - da arte como ato heroico. O heroico era nada mais do que
o desejo de viver para uma fama eterna e existir na eternidade. O ato
heroico foi definido por sua transcendência de objetivos imediatos
e temporais, foi um modelo etemo para todos os tempos vindouros.
Dada sua centralidade e influência, faz sentido para nós olharmos,
em detalhes, para esse conceito de eternidade.
Antes de tudo, Hitler jamais falou de eternidade no sentido de
imortalidade da alma individual. A eternidade da qual ele falou era a
de uma eternidade Pós-Cristianismo, bastante moderna no sentido de
que era uma eternidade puramente material e corpórea - uma eterni­
dade de ruínas, de relíquias deixadas para trás por qualquer civilização
uma vez que tenha sido superada. Esses restos materiais, que duram
mais do que toda civilização, poderiam produzir fascinação e espanto
em observadores tardios, ao reconhecerem traços de um ato heroico,
artístico, criativo ou simplesmente causar desinteresse. Assim, Hitler
compreendeu o valor eterno da arte como a impressão de que elã deixa
num futuro observador. Foi esse olhar do futuro observador que Hitler
procurou agradar primeiro e antes de tudo - e disso esperou receber
um julgamento estético a favor dos monumentos do passado que eram
seu próprio presente. Portanto, Hitler viu seu próprio presente a par­
tir de uma perspectiva arqueológica - da perspectiva de um futuro
arqueólogo e flâ n e u r com interesse em arte - e dessa perspectiva an­
tecipou um reconhecimento estético definitivo. Essa percepção arque­
ológica de seu próprio presente o conectava a uma sensibilidade bas­
tante presente na sua época. A pergunta acerca de como seu próprio

169
presente poderia, no final, ser visto da perspectiva histórica, incenti­
vou vários escritores e artistas da modernidade.
Ao mesmo tempo, entretanto, Hitler rompeu com a principal
corrente do Modernismo artístico nesse ponto. O artista moderno tí­
pico é um repórter, um observador do mundo moderno que informa
os outros sobre suas observações. Nesse sentido, o artista moderno se
move no mesmo plano dos teóricos, críticos ou escritores. Hitler, ao
contrário, náo queria observar; ele queria ser observado. Além disso,
ele não queria ser só observado, mas também admirado e até mesmo
idolatrado como herói. Ele entendia a arte, os artistas e as obras de
arte como objetos de admiração - não como sujeitos de observação ou
análise. Para ele, observadores, espectadores, críticos, escritores e ar­
queólogos eram sempre outras pessoas. E assim, para Hitler, a questão
crucial passou a ser: Como poderia ele, como artista-herói, manter-
-se no controle contra o julgamento do futuro observador, do futuro
arqueólogo? O que poderia fazer para garantir que sua obra presente
pudesse ser admirada e idolatrada num futuro indeterminado e inde­
finido da eternidade? O futuro observador é um grande desconhecido
que, inicialmente, não tem nenhum acesso imediato à alma do artis­
ta; não conhece suas intenções e motivos e, assim, dificilmente pode
ser influenciado pelo discurso teórico ou pela propaganda política
do passado. Futuros observadores julgarão exclusivamente com base
na aparência externa, corpórea e material da obra de arte; seu signi­
ficado, seu conteúdo e sua estrutura interpretativa original não serão
necessariamente alheios para eles. Para Hitler, o reconhecimento da
arte como arte não é, portanto, uma questão de tradição espiritual, de
uma cultura transferida de um sujeito a outro, de uma geração a outra.
E somente por essa razão, Hitler deveria ser visto como produto da mo­
dernidade radical, porque ele já não acreditava que a cultura pudesse
ser “espiritualmente” herdada ao longo do tempo. Desde a morte de
Deus, do ponto de vista de Hitler, o espírito da cultura, da tradição e
assim qualquer sentido ou significado cultural possível se tornou finito
e mortal. A eternidade da qual Hitler falou não é, então, uma eterni­
dade espiritual, mas material - uma eternidade além da cultura, além
do espírito. Assim, a questão do valor eterno da arte passa a ser a da
constituição material, a do corpo de seu observador.

m
Dessa maneira, Hitler de forma alguma compreendeu a busca pelo
herói na arte como uma estilização superficial do passado glorioso. Ele
rejeitou veementemente uma imitação puramente exterior e formalista
do passado, que tentava aplicar estilos artísticos obsoletos emprestados
do vocabulário da história da arte em produtos da modernidade técnica.
Hitler reconheceu que essas tentativas eram, por si só, uma regressão
ao passado, o que levaria artistas a se desviarem do verdadeiro objetivo
de alcançar a perfeição artística adequada a seu próprio tempo histórico.
Hitler era cheio de ironia quando comentava certas tendências regres-
sistas. Em suas polêmicas contra elas, ele gostava de utilizar argumentos
que os representantes do Modernismo - em seu modo de ver, “os ju­
deus” - habitualmente usavam nesses casos. Ele, então, dizia:

O Estado Nacional Socialista deve defender-se contra o aparecimento


repentino daquelas pessoas nostálgicas que acreditam ter obrigação de
oferecer à revolução socialista nacional uma “ theutsche Kunst” com h
(isto é, “arte alemã” , em grafia arcaica), como legado em conexão com o
futuro herdado do mundo confuso com seus próprios conceitos român­
ticos. Eles jamais foram nacionais-socialistas. Ou eles viveram no isola­
mento de um sonho alemão, que os judeus sempre pensaram ser ridículo,
ou eles piedosa e ingenuamente seguiram entre as multidões sagradas da
Renascença burguesa [...] Por isso, hoje em dia, eles oferecem estações de
trem em genuíno estilo renascentista alemão, placas de ruas e fontes em
letras góticas, letras de músicas livremente adaptadas de Walther von der
Vogelweide, moda baseada em Gretchen e Fausto [...] Não, senhores! [...]
Assim como em outros aspectos da vida, nós deixamos a rédea livre para
o espírito alemão se desenvolver, nessa esfera da arte, também, não pode­
mos violentar a era moderna para favorecer a Idade Média.5

A própria questão acerca de qual estilo era mais apropriado para


a arte do Terceiro Reich é uma questão que Hitler considerou funda­
mentalmente errada, porque ele entendia o estilo como um ideal que
corrompia a arte tanto quanto o conceito de novo. Para Hitler, uma obra
de arte só é boa se atingir a perfeição em sua resposta a um desafio es­
pecífico, bastante concreto e atual - e não quando se apresenta como
um exemplo de estilo universal, velho ou novo. Mas como pode um

171
observador determinar que essa obra de arte concreta tenha atingido
um resultado específico e concreto com o máximo de perfeição possí­
vel? Como a arte pode ser produzida e apreciada se todos os critérios
conhecidos de julgamento estético, tanto os novos quanto os velhos,
“medievais” ou “modernos” , são considerados inválidos e até mesmo
prejudiciais para a arte? Para fazer o julgamento estético correto, o ob­
servador simplesmente precisa ter certo gosto - a saber: bom, correto e
preciso. Ou seja, para julgar adequadamente uma obra de arte sem uti­
lizar quaisquer explicações, teorias e interpretações adicionais, a pessoa
a julgá-la deve ter gosto “eterno” - um gosto que sobrevive ao tempo.
E os próprios artistas devem também possuir tal gosto, se quiserem que
suas obras continuem a ser consideradas válidas além de seu próprio
tempo. Nesse ponto, toma-se claro como a arte pode tomar-se eterna:
a arte válida ao longo dos tempos pode ser produzida somente quando,
em primeiro lugar, o artista tiver o mesmo gosto do observador e, em
segundo, quando fôr garantido que o gosto perdurará pelo tempo afora.
Todas as tentativas de escapar a essas exigências fundamentais de esta­
belecer o gosto estético que une tanto o artista quanto o observador são
categoricamente rejeitadas por Hitler. Nem o discurso, nem a educação
entram em questão para ele como possíveis mediadores entre artista
e observador, porque tais coisas são sempre superficiais, convencionais
e temporais. Somente uma identidade inerente, anterior a toda reflexão,
entre o gosto do artista e o de um possível observador pode garantir que
a obra de arte seja considerada perfeita.
Mas como pode alguém - artista ou observador - chegar a possuir
tal gosto inerente que une e envolve, se todo gosto depende de seu tempo?
Essa era a questão central na teoria da arte de Hitler, e sua resposta para
elã era raça. Somente o conceito de raça permitia que Hitler postulasse
a possibilidade de unidade puramente inerente, não teórica e não discur­
siva entre artista e observador. E, de fato, o curso da arte moderna tem
sido constantemente carregado de reclamações sobre sua dependência
ao comentário, sobre estar sobrecarregada de teoria. Mesmo hoje em dia,
há clamores frequentes para se dispensar todas as teorias, interpretações
e discursos para, finalrnente, se concentrar na percepção pura da obra de
arte. Em geral, no entanto, essas incessantes exigências de que nos dedi­
quemos à pura percepção da arte deixam sem resposta a questão sobre

172
qual garantia poderia haver de que esse tipo de percepção de arte possa
mesmo assumir algum lugar. Como pode alguém olhar para a arte e re­
agir a elã, se jamais foi informado, por nenhuma forma de discurso, da
existência de tal fenômeno? E como pode essa percepção não informada
levar a um julgamento estético sobre o valor de uma obra de arte quando
não há discurso que conecta a criação do artista à apreciação do observa­
dor a elã? Realmente parece que somente uma teoria de raça poderia nos
explicar como a arte pode ser percebida além de toda teoria.
A teoria da arte transpõe toda a análise do nível de discurso para
o nível do corpo. Na visão de Hitler, a obra de arte não é uma afirmação,
mas um corpo que deriva de outro corpo, a saber, o corpo do artista.
A apreciação da arte é, portanto, efeito de contato direto entre dois cor­
pos: o corpo da obra de arte e o do observador. Tudo o que se refere
à arte termina num nível puramente corporal. Pode-se dizer, portan­
to, que o observador é capaz de identificar a obra de arte do artista
e percebê-la adequadamente, independente de todos os discursos, so­
mente porque o corpo do observador é similar em estrutura ao do ar­
tista - e, consequentemente, é equipado com as mesmas reações pu­
ramente corpóreas a estímulos externos. E o gosto artístico consiste na
totalidade dessas reações instintivamente corpóreas. Por isso, pode-se
dizer que os seres humanos são capazes de identificar e apreciar a arte
humana somente porque produtor e consumidor pertencem à mesma
raça - a raça humana. Ao contrário, se dermos crédito a essa teoria,
os extraterrestres não estariam em condições de identificar, perceber
e apreciar a arte humana porque não possuem a afiliação necessária
com a raça, o corpo e o instinto humanos. É claro que Hitler não acre­
ditou que a humanidade fosse composta inteiramente por uma única
raça, já que havia diferenças factuais substanciais no julgamento de
valor feito por diferentes pessoas. Consequentemente, ele presumiu
que a humanidade era composta por diferentes raças e, assim, que as
pessoas têm diferentes gostos porque elas pertencem a diferentes ra­
ças. E isso significa que, para a arte ser eterna, o corpo propriamen­
te dito deve possuir um componente eterno. Esse componente eterno
do corpo, a eternidade imanente do próprio corpo, é a raça. Somente
o observador que é, a partir da raça, dotado de atitude heroica, pode
reconhecer o elemento heroico na arte do passado.

173
Assim, na visão de Hitler, a teoria racial e a teoria da arte formam
uma unidade inerente e indivisível. No final, as raças existem porque
elas são necessárias para explicar como a arte pode ser “trans-históri­
ca” - isto é, porque futuras gerações podem apreciar a arte do passado.
A teoria racial é uma teoria da autonomia da arte em relação à história,
à cultura e à crítica de arte. Na verdade, a fé que, no caso da arte, acaba
por se resumir ao corpo, é de fato completamente moderna. Elã é a
ampla resposta de nossa época para a morte de Deus - entendida como
a morte do espírito, da razão, da teoria, da filosofia, da ciência, da his­
tória. A referência a esse tipo de resposta corpórea imediata para a arte
normalmente serve, hoje, também como motivo para rejeitar qualquer
discurso que interprete a arte como falsificação da arte, ou seja, como
falsificação da reação espontânea do corpo do espectador à obra de
arte. E muitos autores modernos e contemporâneos concordariam com
a introdução de um dos discursos de Hitler, feito em 1937: “Um dos si­
nais da decadência da cultura que experimentamos no passado recente
é o crescimento anormal da escrita sobre a teoria da arte.”6
Para Hitler, estabelecer o valor eterno da arte só seria possí­
vel ao se estabilizar a herança racial que garantiria a reação correta
do corpo do futuro espectador à arte. Aqui está a verdadeira origi­
nalidade da teoria da arte de Hitler: ele moveu a discussão do nível
da produção do artista para o nível da produção do espectador. Para
ele, portanto, a questão era mais a da produção da massa de obser­
vadores que reagiriam corretamente à arte, mesmo num futuro dis­
tante, que a de produzir arte de qualidade - que, por sinal, já existe.
A verdadeira obra de arte que o Terceiro Reich queria produzir era um
espectador de arte que estivesse em posição de reconhecer e apreciar
o elemento heroico na arte. Porque, mais uma vez, Hitler, de forma
alguma, entendeu uma obra de arte como retrato passivo do herói.
Para ele, e nesse sentido ele é filho da modernidade, o artista é herói.
O ato de criação artística é em si um ato heroico ativo, não importa
se é a criação de uma obra de arte ou a criação de um Estado. Quanto
mais magnífico esse ato criativo fôr, mais evidente é o heroísmo de seu
criador, pois esse ato é, como dissemos, não espiritual, mas puramente
corpóreo. A criação de uma raça heroica pode ser observada e admi­
rada nos monumentos produzidos pelos corpos que pertencem a elã.

174
A obra de arte definitiva, no entanto, é o observador feito membro da
raça heroica pelos políticos heroicos. A verdadeira arte da política é,
para Hitler, a arte da produção contínua de corpos heroicos.
As consequências práticas dos esforços artísticos de Hitler nessa
direção são bem conhecidas e pouco precisa ser dito a respeito. Pro­
vavelmente isto será suficiente: em termos de arte, seu trabalho se
apresentou exclusivamente como trabalho de redução, de destruição,
de regressão. Em outras palavras, tão logo ele teve a oportunidade de
operar com o corpo do Volk e com o Estado de forma artística, ele ime­
diatamente começou a seguir o próprio programa que, em um plano
teórico, polemicamente culpou a arte moderna e degenerativa. A ver­
dadeira atividade do Terceiro Reich consistiu numa constante aniqui­
lação de seres humanos ou sua redução contínua ao nível da “vida nua” ,
como Giorgio Agamben definiu. Todas as intenções construtivas, todos
os programas de séculos de melhoramento racial que, supostamente,
produziriam uma raça heroica, permaneceram, no final, pura teoria.
Historicamente, Hitler é a personificação exemplar da figura de
um perdedor, incapaz de concluir qualquer coisa que tenha começado
- nem mesmo o trabalho de redução e aniquilação. Espantosamente,
Hitler conseguiu perder por completo não apenas nos níveis político e
militar, mas também no nível moral - algo quase único como realiza­
ção histórica, pois na vida real, a derrota é geralmente equilibrada pela
vitória moral e vice-versa. Como um derrotado absoluto, nesse senti­
do, Hitler é responsável por certa fascinação em nosso tempo, porque
a arte moderna sempre celebrou a figura do perdedor - é exatamente
por essa tendência que Hitler condenou com veemência a arte moder­
na. Aprendemos a admirar a figura do poeta maldito e do a rtiste raté
que ganharam seu espaço como heróis da imaginação moderna, não
pela vitória, mas pela espetacular derrota. E nessa competição entre
perdedores, oferecida pela cultura moderna, Hitler foi excepcional­
mente, talvez inadvertidamente, bem-sucedido.

(“The Hero’s Body: Adolf Hitler’s Art Theory” , originalmente publicado como
“The Hero’s Body” , em (my priva te) H ero es, catálogo da exposição no MARTa (Museu
de Arte e Design), Herford, 2005.)

175
E D U C A N D O

A S M A S S A S

A A R T E D O

R E A L I S M O

S O C I A L I S T A
Do começo da década de 1930 até a queda da União Soviética, o Realis­
mo Socialista foi o único método criativo oficialmente reconhecido por
todos os artistas soviéticos. A pluralidade de programas estéticos com­
petitivos que caracterizavam a arte soviética na década de 1920 acabou
abruptamente quando o Comitê Central aprovou um decreto, em 23 de
abril de 1932, dissolvendo os grupos artísticos existentes e declarando
que todos os trabalhadores criativos soviéticos deveriam se organizar,
conforme sua profissão, em “sindicatos criativos” de artistas, arquite­
tos e assim por diante. O método do Realismo Socialista foi proclamado
obrigatório no primeiro Congresso do Sindicato de Escritores em 1934 e,
em seguida, foi expandido para abarcar todas as outras artes, incluindo-
-se as artes visuais, sem qualquer modificação substancial em seu for­
mato inicial. Conforme a definição oficial padrão, uma obra de arte do
Realismo Socialista deve ser “realista na forma e socialista no conteúdo” .
Essa definição aparentemente simples é, na verdade, altamente enig­
mática. Como pode uma forma, como tal, ser realista? E o que significa,
na verdade, “conteúdo socialista” ? Traduzir essa definição vaga em
uma prática artística concreta não foi uma tarefa fácil e as respostas

177
para essas perguntas definiram o destino de todos os artistas soviéticos
individuais. Elas determinaram o direito do artista de trabalhar - e em
alguns casos, seu direito de viver.
Durante o período inicial e estalinista do Realismo Socialista,
a quantidade de artistas, bem como artifícios e estilos artísticos que
foram excluídos do cânone realista socialista, expandiu-se continua­
mente. Desde a metade da década de 1930, métodos oficialmente acei­
táveis eram definidos de forma cada vez mais limitada. Essa política
de interpretação estreita e de exclusão rigorosa durou até a morte de
Stalin, em 1952. Depois do chamado degelo e da desestalinização par­
cial do sistema soviético, iniciados no final da década de 1950 e que
continuaram até a dissolução da União Soviética, a interpretação do
Realismo Socialista tornou-se mais inclusiva. Mas a política inicial de
exclusão nunca permitiu surgir uma homogeneidade verdadeira ou até
mesmo uma estética realista socialista coerente. E a subsequente po­
lítica de inclusão jamais levou à verdadeira abertura e ao pluralismo
artístico. Após a morte de Stalin, um cenário artístico não oficial surgiu
na União Soviética, mas não foi aceito pelas instituições oficiais de arte.
Ele era tolerado pelas autoridades, mas obras desses artistas jamais
eram expostas ou publicadas, demonstrando que o Realismo Socialista
nunca foi inclusivo o suficiente.
O Realismo Socialista Soviético tinha intenção de ser um estilo ar­
tístico rigorosamente definido, mas também tinha intenção de ser um
método unificado para todos os artistas soviéticos, até mesmo aqueles
trabalhando em diferentes mídias, inclusive a literatura, as artes visuais,
o teatro e o cinema. Obviamente, essas duas intenções eram mutua­
mente contraditórias. Se um estilo artístico não pode ser comparado
a outros no mesmo meio, sua especificidade estética, bem como seu
valor artístico, permanece obscuro. Para artistas soviéticos, o principal
ponto de referência era a burguesia ocidental. A principal preocupação
das autoridades ideológicas soviéticas era a arte socialista soviética não
se parecer com a arte do capitalismo ocidental, que era vista como uma
arte decadente e formalista, que rejeitava valores artísticos do passado.
Ao contrário, os soviéticos formularam um programa que apropriava
a herança artística de todas as épocas passadas: em vez de rejeitar a arte
do passado, os artistas deveriam usá-la a serviço da nova arte socialista.

178
A discussão referente ao papel da herança artística no contexto da nova
realidade socialista, que assumiu seu lugar no final da década de 1920
e começo dos anos 1930, era decisiva em termos do futuro desenvolvi­
mento da arte realista socialista. Elã marcou uma mudança essencial
da arte dos anos 1920, ainda dominada por programas modernistas
e formalistas, para a arte realista socialista, que, primeiramente, se pre­
ocupava com o conteúdo de uma obra de arte individual.
A atitude de artistas teóricos vanguardistas em relação à herança ar­
tística era fortemente expressa, por exemplo, em um pequeno, mas im­
portante, texto de Kazimir Malevich: “On the Museum” , de 1919. Naquele
tempo, o novo governo soviético temia que os antigos museus e coleções
de arte mssos fossem destruídos pela guerra civil e que houvesse um co­
lapso geral das instituições estatais e da economia. O partido comunista
respondeu tentando salvar essas coleções. Em seu texto, Malevich protes­
tou contra essa política pró-museu ao pedir que o estado não interviesse
em nome das coleções de arte, porque sua destruição poderia abrir cami­
nho para a arte verdadeira e viva. Em particular, ele escreveu:

A vida sabe o que faz, e se elã batalha para destmir, não se deve interfe­
rir, pois ao impedi-la, diflcultá-la, bloqueamos o caminho para uma nova
concepção da vida que nasce de nós. Ao queimar um cadáver, obtemos
um grama de pó: dessa forma, milhares de cemitérios poderiam ser aco­
modados numa única estante de um químico. Podemos fazer uma con­
cessão aos conservadores ao oferecer-lhes que queimem todas as épocas
passadas, já que estão mortas, e organizem uma botica.

Posteriormente, Malevich dá um exemplo concreto para o que


ele quis dizer:

O objetivo (dessa botica) será o mesmo, ainda que as pessoas examinem


o pó de Rubens e toda sua arte - um amontoado de ideias surgirá nas pes­
soas e frequentemente será mais vivo que a representação atual (e ocupa­
rá menos espaço).1

Malevich acreditava que os tempos novos e revolucionários de­


veriam ser representados por formas de arte novas e revolucionárias.

179
Essa opinião era, obviamente, compartilhada por vários outros ar­
tistas da “frente de esquerda” , na década de 1920. Mas seus críticos
argumentavam que a verdadeira revolução acontece não no nível das
formas artísticas, mas no de seu uso social. Ao serem confiscadas
da antiga classe reguladora, apropriadas pelo proletariado vitorioso
e colocadas a serviço do novo Estado socialista, as antigas formas ar­
tísticas tornaram-se intrinsecamente novas, porque elas foram pre­
enchidas com um novo conteúdo e usadas num contexto completa­
mente diferente. Nesse sentido, essas formas aparentemente antigas
tornaram-se ainda mais novas que as formas que foram criadas pela
vanguarda, mas usadas no mesmo contexto pela sociedade burgue­
sa. Essa crítica proto-pós-modernista de “tendências formalistas na
arte” foi formulada por um crítico de arte influente daquele tempo,
Yakov Tugendkhofd, da seguinte forma:

A distinção entre arte proletária e não proletária por acaso é encontrada


não na forma, mas na ideia de uso dessa forma. Locomotivas e máqui­
nas são as mesmas aqui e no Ocidente; essa é nossa forma. A diferença
entre a nossa industrialização e a do Ocidente, no entanto, está no fato
de que, aqui, o proletariado é mestre dessas locomotivas e máquinas;
esse é nosso conteúdo .2

Durante a década de 1930, esse argumento foi repetido várias ve­


zes. Os artistas e os teóricos da vanguarda russa foram acusados de
assumirem uma postura niilista em relação à arte do passado, o que
preveniu o proletariado e o Partido Comunista de usarem a herança ar­
tística a favor de seus próprios objetivos políticos. Consequentemente,
o Realismo Socialista foi, inicialmente, apresentado como uma opera­
ção emergente de resgate direcionada contra a destruição de tradições
culturais. Anos depois, Andrei Zhdanov, membro do P olitbureau, que
era, naquele tempo, responsável por políticas culturais oficiais, disse
num discurso dedicado a questões de arte:

O comitê central agiu “conservadoramente” sob a influência do “tradi­


cionalismo” ou “epigonismo” quando defendeu a herança clássica em
pintura? Isso é bobagem pura! [...] Nós, bolcheviques, não rejeitamos

180
a herança cultural. Ao contrário, estamos assimilando criticamente a he­
rança cultural de todas as nações e de todos os tempos, a fim de escolher
dela tudo o que inspira o povo trabalhador da sociedade soviética a gran­
des explorações no trabalho, na ciência e na cultura.3

A discussão sobre o papel da herança artística estabeleceu a estru­


tura para o desenvolvimento da estética do Realismo Socialista, por­
que indicou alguns critérios formais que uma obra realista socialista
deve satisfazer para ser tanto socialista quanto realista. A introdução
do Realismo Socialista iniciou uma longa e dolorosa batalha contra
o formalismo na arte em nome do retorno a modelos clássicos de cria­
ção. Nesse sentido, a arte realista socialista ficava, cada vez mais, puri­
ficada de todos os traços de “distorções” modernistas da forma clássica
- tanto que, ao final desse processo, elã se tomou facilmente distinguí­
vel da arte burguesa ocidental. Os artistas soviéticos também tentaram
tematizar tudo que parecia especialmente socialista e não ocidental -
paradas e demonstrações oficiais, reuniões do Partido Comunista e sua
liderança, trabalhadores felizes construindo a base material da nova
sociedade. Nesse sentido, o aparente retomo à clássica imagem mi­
mética efetuada pelo Realismo Socialista foi bastante ilusório. Não se
esperava que o Realismo Socialista retratasse a vida como elã é, pois
esta era interpretada pela teoria realista socialista como estando num
fluxo e em desenvolvimento constantes - especificamente em “desen­
volvimento revolucionário” , como foi oficialmente formulado.
O Realismo Socialista foi direcionado ao que ainda não chegara
a ser, mas que era visto como algo que deveria ser criado, destinado
a tomar-se parte do futuro comunista. Ele era visto como um método
dialético. Stalin escreveu: “O que é mais importante para o método
dialético não é o que está estável no presente, mas já começa a morrer,
e sim o que está emergindo e se desenvolvendo, já que para o método
dialético só o que está emergindo e se desenvolvendo não pode ser su­
perado.”4 Obviamente, era o Partido Comunista que tinha o direito de
decidir o que morreria e o que emergiria.
A mera representação dos fatos estava oficialmente condena­
da como “naturalismo” , que deveria ser diferenciado do “realis­
mo” como uma habilidade implícita de alcançar, como um todo,

181
o desenvolvimento histórico, de reconhecer no mundo presente os
sinais do mundo comunista vindouro. A habilidade de fazer a sele­
ção correta e socialista de fatos atuais e históricos era considerada
a mais importante qualidade de um artista socialista. Boris Ioganson,
um dos artistas oficiais líderes do período estalinista, disse em seu
discurso para a primeira Convenção de Artistas Soviéticos, em 1930:
“Um fato não é toda a verdade; é simplesmente a matéria-prima da
qual a verdade real da arte deve ser fundida e extraída - a galinha
não deve ser assada com suas penas.”5 E acrescentou que o ló cu s de
criatividade na arte do Realismo Socialista não é a técnica de pin­
tura, mas o “cenário da figura” - o que significa dizer que a obra
do pintor não difere essencialmente da obra do fotógrafo. Uma pin­
tura realista socialista é um tipo de fotografia virtual - destinada
a ser realista, mas a abranger mais que uma mera reflexão de uma
cena que realmente tenha ocorrido. O objetivo era dar à imagem do
mundo futuro, onde todos os fatos seriam os fatos da vida socialis­
ta, uma espécie de qualidade fotográfica, que tornaria essa imagem
visualmente verossímil. Afinal, o Realismo Socialista deveria ser re­
alista apenas na forma, não no conteúdo.
O aparente retorno ao clássico também era ilusório. A arte rea­
lista socialista não foi criada para museus, galerias, colecionadores
particulares ou conhecedores. A introdução do Realismo Socialista
coincidiu com a abolição do mercado livre, inclusive do mercado
de arte. O Estado socialista tornou-se o único consumidor restante
de arte. E ele estava interessado somente num tipo de arte - a arte
socialmente útil que apelava para as massas, que as educava, inspira­
va, direcionava. Consequentemente, a arte realista socialista era feita,
afinal de contas, para reprodução, distribuição e consumo em mas­
sa - e não para contemplação concentrada e individual. Isso explica
por que pinturas ou esculturas que pareciam muito boas ou muito
perfeitas, conforme o critério tradicional de qualidade, eram também
consideradas “formalistas” pelos críticos de arte soviéticos. A obra
de arte realista socialista precisava se referir esteticamente a algum
tipo aceitável de herança, mas, ao mesmo tempo, deveria fazer isso
de forma que a abrisse para uma audiência de massa, sem criar uma
distância muito grande entre obra de arte e público.

182
Obviamente, vários artistas tradicionais que se sentiram deixados
de lado pela vanguarda russa dos anos 1920 sem dúvida exploraram
a mudança de ideologia política para atingir reconhecimento para seu
trabalho. Vários artistas soviéticos ainda pintavam paisagens, retratos
e pinturas de gênero na tradição do século XIX. Mas as pinturas desses
artistas realistas socialistas, tais como Alexander Deineka, Alexander
Gerassimov ou até mesmo Isaak Brodsky, referiam-se, primeiramente,
à estética do pôster, da fotografia colorida ou do cinema. De fato, as
bem sucedidas gravuras feitas por esses artistas poderiam ser vistas
ao redor do país, reproduzidas em inúmeros pôsteres e em incontáveis
livros. Elas eram populares, uma “sensação” - e estaria fora de cogi­
tação criticar uma música popular por sua letra não ter poesia. A ca­
pacidade para distribuição em massa tornou-se a principal qualidade
estética na Rússia estalinista. Mesmo que a pintura e a escultura domi­
nassem o sistema das artes visuais, ambas eram produzidas e reprodu­
zidas em escala comparável somente a produções fotográficas e cine­
matográficas no Ocidente. Milhares de artistas soviéticos repetiram os
mesmo temas, figuras e composições realistas socialistas oficialmente
aprovados, permitindo-se apenas as mais sutis variações desses mo­
delos oficialmente estabelecidos, variações estas que permaneceram
quase imperceptíveis para o observador desinformado. A União Sovi­
ética, portanto, ficou saturada de imagens pintadas e esculpidas que
pareciam ter sido produzidas pelo mesmo artista.
O Realismo Socialista surgiu num tempo em que a cultura comer­
cial de massa global avançou decisivamente e se tornou a força deter­
minante que é até hoje. A cultura oficial na era estalinista era parte
dessa cultura de massa global e se alimentava das expectativas que
criou no mundo todo. Um aguçado interesse pela nova mídia, que po­
dia ser facilmente reproduzida e distribuída, era largamente difundi­
do na década de 1930. De suas variadas formas, o Surrealismo francês,
o Realismo Mágico belga, a Nova Objetividade alemã (N eu e S a ch lich k e it ),
o Novecento italiano e todas as outras formas de Realismo daquele tem­
po exploraram imagens e técnicas derivadas da vasta mídia de massa
em expansão. Mas, a despeito dessas semelhanças, a cultura estali­
nista era estruturada de forma diferente de seu equivalente ocidental.
Enquanto o mercado dominava, até mesmo definia, a cultura de massa

183
ocidental, a cultura estalinista era não comercial, quem sabe até mes­
mo anticomercial. Seu objetivo não era agradar o grande público, mas
educá-lo, inspirá-lo, guiá-lo. (Em outras palavras, a arte deveria ser
realista na forma e socialista no conteúdo.) Na prática, isso significava
que a arte deveria ser acessível às massas no que diz respeito à forma,
apesar de seu conteúdo e objetivos serem ideologicamente determina­
dos e direcionados à reeducação das massas.
Em um artigo de 1930, “Avant-garde and Kitsch” , Clement
Greenberg tentou definir a diferença entre a arte de vanguarda e a cul­
tura de massa (que ele chamou de “kitsch” ). O k itsch de massa, ele
afirmou, utiliza os efeitos da arte, enquanto a vanguarda investiga os
artifícios artísticos.6 Dessa forma, Greenberg colocou o Realismo So­
cialista de Stalin, bem como outras formas de arte totalitária, ao lado da
cultura de massa comercial do Ocidente. Ambos, ele declarou, tinham
por objetivo exercer o máximo de efeito em sua audiência, ao invés
de se engajar criticamente com práticas artísticas propriamente ditas.
Para Greenberg, o eth o s vanguardista, portanto, envolvia uma atitude
crítica e distante em relação à cultura de massa. Mas, de fato, os artis­
tas da vanguarda clássica europeia e russa eram bastante atraídos pe­
las novas possibilidades oferecidas pela produção e disseminação em
massa de imagens. A vanguarda, na verdade, desaprovou apenas um
aspecto da cultura de massa comercial: o fato de ceder à preferência da
massa. Todavia, os artistas modernistas também rejeitavam o “bom”
gosto elitista da classe média. Os artistas de vanguarda desejavam criar
um novo público, um novo tipo de ser humano que compartilhasse seu
próprio gosto e olhasse o mundo através de seus olhos. Eles procura­
vam mudar a humanidade, não a arte. O derradeiro ato artístico não
seria a produção de novas imagens para um público antigo ver com
velhos olhos, mas a criação de um novo público com novos olhos.
A cultura soviética estalinista herdou a crença vanguardista de
que a humanidade poderia ser mudada e, portanto, era guiada pela
convicção de que os seres humanos são maleáveis. A cultura soviética
era para massas que ainda teriam de ser criadas. Não era exigido dessa
cultura que se afirmasse economicamente - em outras palavras, que
fosse lucrativa - porque o mercado fora abolido na União Soviética.
Por isso, os gostos das massas eram completamente irrelevantes para

184
as práticas de arte do Realismo Socialista, ainda mais irrelevantes que
para a vanguarda, pois os membros da vanguarda ocidental, por toda
desaprovação crítica, tinham que operar dentro das mesmas condi­
ções econômicas que a cultura de massa. A cultura soviética como um
todo deve, portanto, ser compreendida como uma tentativa de abo­
lir a separação entre vanguarda e cultura de massa, diagnosticada por
Greenberg como o principal efeito da arte quando sob as condições
do capitalismo ocidental.7 Por conseguinte, toda oposição relacionada
a essa oposição fundamental - entre produção e reprodução, original
e cópia, qualidade e quantidade, por exemplo - perdeu sua relevân­
cia na estrutura da cultura soviética. O principal interesse do Realismo
Socialista não era a obra de arte, mas o observador. A arte soviética era
produzida dentro da convicção relativamente firme de que as pesso­
as poderiam vir a gostar dela quando se tornassem melhores, menos
decadentes e menos corrompidas por valores burgueses. O observador
era concebido como parte integrante de uma obra de arte realista so­
cialista e, ao mesmo tempo, como seu produto final. O Realismo Socia­
lista era a tentativa de criar sonhadores que teriam sonhos socialistas.
A fim de promover a criação de uma nova humanidade, e espe­
cialmente de um novo público para sua arte, artistas uniram forças
com aqueles com poder político. Isso foi, sem dúvida, um jogo peri­
goso a ser jogado por artistas, mas as recompensas, no começo, pare­
ceram enormes. O artista tentou alcançar liberdade criativa absoluta
ao livrar-se de toda contenção moral, econômica, institucional, legal
e estética que, tradicionalmente, limitava seu desejo artístico. Mas,
depois da morte de Stalin, toda aspiração utópica e todos os sonhos
de um poder artístico absoluto tomaram-se imediatamente obsoletos.
A arte do Realismo Socialista oficial passou a ser simplesmente parte da
burocracia soviética - com todos os privilégios e restrições referentes
a essa condição. A vida artística soviética depois de Stalin transfor­
mou-se em um palco em que a luta contra a censura era encenada. Essa
peça teve vários heróis que conseguiram ampliar as estruturas de o que
era permitido para fazer “boa arte” ou “obras de arte verdadeiramente
realistas” ou até mesmo “obras de arte modernistas” limítrofes com
o que oficialmente era possível. Esses artistas e críticos de arte que os
apoiavam ficaram conhecidos e foram aplaudidos pelo grande público.

185
É claro que essa luta envolveu muito risco pessoal, que em muitos
casos gerou consequências muito desagradáveis para os artistas. Mas
ainda é seguro dizer que, dentro da arte pós-estalinismo do Realismo
Socialista, um novo sistema de valor se estabeleceu. A comunidade de
arte valorizou não as obras de arte que definiram a mensagem central e
a estética específica do Realismo Socialista, mas as obras de arte capa­
zes de esticar as fronteiras da censura, de quebrar paradigmas, de dar
a outros artistas mais espaço de ação. Ao final desse processo de ex­
pansão, o Realismo Socialista perdeu, quase que completamente, suas
fronteiras e desintegrou-se, junto com o Estado soviético.
Em nosso tempo, o grosso da produção de imagem realista-so­
cialista tem sido reavaliado e reorganizado. Os critérios prévios sob os
quais essas obras de arte foram produzidas tornaram-se irrelevantes:
nem a luta por uma nova sociedade, nem a briga contra a censura ain­
da são critérios. Resta apenas esperar para ver qual utilidade o sistema
contemporâneo de museu e o mercado contemporâneo de arte verão
na herança do Realismo Socialista - nessa imensa quantidade de obras
de arte que foram iniciadas fora das instituições de arte ocidentais
e até mesmo contra elas.

(“Educating the Masses: Socialist Realist Art", originalmente publicado em R u ssia !,

New York, Guggenheim Museum, 2005, p. 318-323.)

186
A L É M D A

D I V E R S I D A D E

E S T U D O S

C U L T U R A I S

E S E U O U T R O

P Ó S - C O M U N I S T A
Pode-se seguramente dizer que a situação cultural nos países da Eu­
ropa oriental pós-comunista ainda é um ponto cego para os estudos
culturais contemporâneos. Isto é, os estudos culturais têm algumas
dificuldades fundamentais para descrever e teorizar as condições
pós-comunistas. E, francamente, não acredito que um simples ajuste
da estrutura teórica e do vocabulário dos estudos culturais conforme
a realidade da Europa oriental - sem reconsiderar algumas pressupo­
sições fundamentais da disciplina - seria suficiente para permitir que
seu discurso descreva e discuta a realidade pós-comunista. Vou tentar
explicar porque esse ajuste parece ser tão difícil.
O discurso teórico atualmente dominante no campo dos estudos
culturais tende a ver o desenvolvimento histórico como o caminho
que leva o sujeito de um universo particular, de comunidades, ordens,
hierarquias, tradições e identidades culturais pré-modernas fechadas

187
em direção ao espaço aberto da universalidade, da livre comunicação
e da cidadania num Estado moderno democrático. Os estudos culturais
contemporâneos compartilham essa imagem com a venerável tradição
do Iluminismo europeu - ainda que aquele olhe para essa imagem de
maneira diferente e, em consequência, chegue a diferentes conclusões
a partir de análises dessa imagem. A questão central que surge a par­
tir dessas pressuposições é a seguinte: Como podemos lidar com uma
pessoa individual a viajar por essa estrada - aqui e agora? A resposta
tradicional da teoria política liberal, cuja origem está no Iluminismo
francês, é bastante conhecida: a pessoa nessa estrada precisa mover-se
para frente e tão rápido quanto possível. E, se virmos que certa pessoa
não está indo rápido o suficiente - e talvez ainda descanse antes de se­
guir em frente - então as medidas cabíveis devem ser tomadas contra
essa pessoa, porque elã está atravancando não somente sua transição,
mas também a de toda a humanidade, para o estado de liberdade uni­
versal. E a humanidade não pode tolerar esse movimento lento, porque
elã quer ser livre e democrática, assim que possível.
Essa é a origem do modo liberal de coerção e violência em nome
da democracia e da liberdade. É bastante compreensível que os es­
tudos culturais da atualidade queiram rejeitar esse tipo de coerção
e defender o direito do sujeito individual de ser devagar, diferente
e de trazer sua identidade cultural pré-moderna para o futuro como
bagagem legítima que não deve ser confiscada. E, de fato, se a de­
mocracia absoluta e perfeita não só não foi realizada, mas também
é irrealizável, o caminho que leva a elã é infinito - e não faz senti­
do forçar a homogeneidade e universalidade desse futuro infinito na
heterogeneidade das identidades culturais do aqui e agora. Em vez
disso, é melhor apreciar a diversidade e a diferença, tornar-se mais
interessado em de onde vem o sujeito do que em para onde ele ou elã
vai. Então podemos dizer que o presente interesse em diversidade
e diferença é ditado, em primeiro lugar, por certas considerações mo­
rais e políticas - a saber, pela defesa das ditas culturas subdesenvol­
vidas contra sua marginalização e supressão por Estados modernos
dominantes em nome do progresso. O ideal de progresso não é com­
pletamente rejeitado pelo pensamento cultural contemporâneo. Este,
ao contrário, luta para encontrar abrangência entre as exigências

188
da ordem democrática moderna uniforme e os direitos das identida­
des culturais pré-modernas situadas nessa ordem geral.
Mas há também um aspecto em tudo isso que eu gostaria de res­
saltar. O discurso sobre diversidade e diferença pressupõe certa es­
colha estética - quero dizer, aqui, a preferência puramente estética
pelo heterogêneo, pela mistura, pelo cruzamento. Esse gosto estético
é, de fato, muito característico da arte pós-moderna do final da dé­
cada de 1970 e dos anos de 1980 - ou seja, durante o tempo em que
a disciplina de estudos culturais surgiu e se desenvolveu em sua forma
atual. Esse gosto estético é ostensivamente aberto e muito inclusivo
- e, nesse sentido, genuinamente democrático. Mas, como sabemos,
o gosto pós-modemo náo é, de forma alguma, tão tolerante quanto
parece ser à primeira vista. A sensibilidade estética pós-modernis­
ta, na verdade, rejeita qualquer coisa universal, uniforme, repetiti­
va, geométrica, minimalista, ascética, monótona, entediante - tudo
o que é cinza, homogêneo e reducionista. Não gosta da Bauhaus, da
burocracia e do técnico; a vanguarda só é aceita agora com a condi­
ção de que suas exigências universais sejam rejeitadas e que se torne
parte de uma figura heterogênea geral.
Além disso, é claro, a sensibilidade pós-moderna desgosta forte­
mente - e d eve desgostar - do cinza, do monótono, do visual não ins­
pirador do comunismo. Acredito que isso seja, na verdade, o porquê
de o mundo pós-comunista de hoje continuar a ser um ponto cego.
Espectadores ocidentais treinados em certa estética e condicionados
por certa sensibilidade artística simplesmente não querem olhar para
o mundo pós-comunista, porque não gostam do que veem. As úni­
cas coisas de que os espectadores ocidentais gostam no oriente pós-
-comunista - quem sabe ainda comunista - são coisas como pago­
des chineses, igrejas russas antigas ou cidades do Leste Europeu que
parecem ser um retorno direto ao século XIX - todas as coisas não
comunistas ou pré-comunistas que parecem diversas e diferentes no
sentido em geral aceito dessas palavras e que cabem bem na estrutura
do gosto ocidental contemporâneo por heterogeneidade. Ao contrário,
a estética comunista parece não ser diferente, diversa, regional, nem
colorida suficiente - e, portanto, confronta o gosto ocidental pós-mo­
demo pluralista dominante com seu Outro universalista, uniforme.

189
Mas, se agora nos perguntarmos: Qual é a origem desse gosto
pós-modemo dominante pela diversidade colorida? - haverá ape­
nas uma possível resposta: o mercado. É o gosto fo rm a d o p e lo merca­
do contemporâneo, é o gosto p e lo mercado. Nesse sentido, deve-se
lembrar de que o surgimento do gosto por diversidade e diferen­
ça estava diretamente ligado à origem dos mercados de informa­
ção globalizada, de mídia e de entretenimento na década de 1970,
e a expansão dos mercados nos anos de 1980 e 1990. Todo mercado
em expansão, como sabemos, produz diversificação e diferenciação
das mercadorias oferecidas. Assim, acredito que o discurso e as po­
líticas de diversidade cultural e de diferença não podem ser vistos
e interpretados corretamente sem serem relacionados a práticas de
diversificação e diferenciação conduzidas pelo mercado nas últimas
décadas do século XX. Essa prática abriu uma terceira opção para
lidar com a identidade cultural de alguém - além de suprimi-la ou
de encontrar representação para elã no contexto das instituições po­
líticas e culturais existentes. Essa terceira opção é vender, mercanti-
lizar, comercializar essa identidade cultural na mídia internacional
e em mercados turísticos. É essa cumplicidade entre o discurso da
diversidade cultural e a diversificação dos mercados culturais que
faz certo discurso crítico contemporâneo pós-modernista tão ime­
diatamente plausível e, ao mesmo tempo, tão profundamente ambí­
guo. Apesar de extremamente crítico em relação ao espaço homogê­
neo do Estado moderno e de suas instituições, ele tende a ser pouco
severo na crítica às práticas do mercado heterogêneo contemporâ­
neo, pelo menos ao não levá-las a sério demais.
Ao ouvir o discurso crítico pós-modemo, tem-se a impressão de
ser confrontado a escolher entre, por um lado, certa ordem univer­
sal incorporada pelo Estado moderno e, por outro, “realidades sociais”
fragmentadas, desconectadas e diversas. Mas, de fato, tais realidades
diversas simplesmente não existem - e a escolha é completamente
ilusória. As realidades culturais aparentemente fragmentadas estão,
na verdade, implicitamente conectadas por mercados globalizados.
Não há escolha verdadeira entre universalidade e diversidade. No en­
tanto, há escolha entre dois tipos diferentes de universalidade: entre
a validade universal de certa ideia política e a acessibilidade universal

190
obtida através do mercado contemporâneo. Ambos - o Estado mo­
derno e o mercado contemporâneo - são igualmente universais. Mas
a universalidade de uma ideia política é abertamente manifestada,
articulada, visualizada e imediatamente se demonstra pela uniformi­
dade e repetitividade de sua imagem externa. Por outro lado, a uni­
versalidade do mercado é escondida, não explícita, não visualizada
e obscurecida pelas diversidade e diferença mercantilizadas.
Então podemos dizer que a diversidade cultural pós-moderna
é meramente um pseudônimo para a universalidade dos mercados
capitalistas. A acessibilidade universal de produtos culturais hetero­
gêneos, garantida pela globalização do mercado de informação con­
temporânea, substituiu os projetos políticos universais e homogêneos
do passado europeu - desde o Iluminismo até o comunismo. No pas­
sado, ser universal era inventar uma ideia ou um projeto artístico que
pudesse unir pessoas de diferentes conhecimentos, que transcendes­
se a diversidade de suas identidades culturais já existentes, a que to­
dos pudessem se juntar - se ele ou elã decidisse fazer parte dele. Essa
noção de universalidade estava conectada ao conceito de mudança
interior, de ruptura interior, de rejeição do passado e aceitação do
futuro à noção de m eta n o ia - da transição de uma identidade antiga
para uma nova. Hoje em dia, no entanto, ser universal significa ser
capaz de estetizar a identidade de alguém da forma como elã é - sem
qualquer tentativa de mudá-la. Em consequência, essa identidade já
existente é tratada como um tipo de r e a d y -m a d e no contexto univer­
sal da diversidade. Sob essa condição, tornar-se universal, abstrato
e uniforme é tornar-se esteticamente não atraente e comercialmente
ineficiente. Como já disse, para gostos contemporâneos, o univer­
so parece muito cinza, monótono, nada espetacular, nada divertido
e não é bom para ser esteticamente sedutor.
Por isso o gosto pós-modemo é fundamentalmente antirradi
cal. A estética política radical situa-se sempre no “grau zero” (degré
zéro) da retórica literária e visual, conforme Roland Barthes a defi­
niu1 - e isso significa também no grau zero da diversidade e da dife­
rença. Isso também é o motivo de a vanguarda artística - Bauhaus
etc. - parecer tão fora de moda hoje. Esses movimentos artísticos
materializam uma sensibilidade estética para o mercado político,

191
não para o comercial. Não há dúvida sobre isso: todo gosto utópi­
co e radical é uma preferência pelo ascético, uniforme, monótono,
cinza e entediante. De Platão às utopias da Renascença a utopias da
vanguarda moderna - todo projeto político e estético radical sem­
pre se apresentou no grau zero da diversidade. Isso significa que se
deve ter certa preferência estética pelo uniforme - em oposição ao
diverso - para estar pronto a aceitar e endossar projetos políticos ra­
dicais e artísticos. Esse tipo de gosto deve ser, obviamente, bastante
impopular, bastante desinteressante para as massas. Essa é uma das
fontes do paradoxo bem conhecido para os historiadores de utopias
modernas e políticas radicais. Por um lado, essas políticas são ver­
dadeiramente democráticas, porque são verdadeiramente universais,
verdadeiramente abertas a todos - de forma alguma são elitistas ou
exclusivistas. Mas por outro lado, elas recorrem, como disse, a um
gosto estético relativamente raro. É por isso que políticas radicais
democráticas se apresentam, frequentemente, como exclusivistas
e elitistas. Deve-se estar compromissado com a estética radical para
aceitar políticas radicais - esse senso de compromisso produz co­
munidades relativamente fechadas, unidas por um projeto idêntico,
por uma visão idêntica, por um objetivo histórico idêntico. O cami­
nho da arte e da política radicais não nos leva das fechadas comuni­
dades pré-modernas para sociedades e mercados abertos. Ao invés
disso, ele nos leva de sociedades relativamente abertas a comunida­
des fechadas baseadas em compromissos comuns.
Sabemos, através da história da literatura, que todas as utopias
passadas estavam situadas em ilhas remotas ou montanhas inaces­
síveis. E temos conhecimento de quão isolados e fechados os movi­
mentos vanguardistas foram - ainda que seus programas artísticos
fossem genuinamente abertos. Dessa forma, temos aqui um paradoxo
de uma comunidade ou movimento universalista, mas fechada - um
paradoxo verdadeiramente moderno. E isso significa, no caso de pro­
gramas políticos radicais e artísticos, que temos que caminhar numa
estrada histórica diferente da descrita por estudos culturais padrões:
elã não é um caminho da comunidade pré-moderna até uma socie­
dade de comunicação universal aberta. Elã é, contudo, um caminho
de mercados abertos e diversos até comunidades utópicas baseadas

192
num compromisso comum a certo projeto radical. Essas comunida­
des artificiais e utópicas não são baseadas no passado histórico, não
estão interessadas em preservar seus traços, em continuar uma tradi­
ção. Ao contrário, essas comunidades universalistas são baseadas na
ruptura histórica, em rejeição da diversidade e da diferença em nome
de uma causa comum.
Em nível político e econômico, a Revolução de Outubro causou
exatamente esse rompimento total com o passado, uma destruição
absoluta da herança de todos os indivíduos. Essa ruptura com todo
tipo de herança foi introduzida pelo poder soviético, de forma prá
tica, ao abolir a propriedade privada e transferir toda herança indi­
vidual para a propriedade coletiva. Encontrar traços da herança de
alguém nessa massa indiferenciada de propriedade coletiva se tomou
tão impossível quanto traçar objetos individuais incinerados na mas­
sa coletiva de cinzas. Essa ruptura completa com o passado constitui
a vanguarda política, assim como a artística. A noção de vanguarda
é frequentemente associada com a noção de progresso. Na verdade,
o termo vanguarda sugere tal interpretação, devido a sua conotação
militar - a v a n t-g a rd e, inicialmente, referia-se à tropa avançando na
linha de frente de um exército. Mas, para a arte revolucionária russa,
essa noção começou a ser aplicada com frequência na década de 1960.
Os próprios artistas russos nunca usaram o termo a v a n t-g a rd e .
Ao invés dele, usavam nomes como Futurismo, Suprematismo ou
Construtivismo - o que significava não se mover progressivamente
em direção ao futuro, mas já estar situado no futuro, porque a ruptu­
ra radical com o passado já havia acontecido e estava no final ou até
mesmo além do fim da história, compreendida em termos marxistas
como a história da luta de classes, ou como a história de diferentes
formas, estilos e movimentos de arte. O famoso Q u a d ra d o negro de
Malevich, em especial, era compreendido como o grau zero tanto
da arte quanto da vida - e por isso, como ponto de identidade entre
vida e arte, entre artista e obra de arte, entre espectador e objeto de
arte, e assim por diante.
O final da história não é compreendido, aqui, da mesma forma
que Francis Fukuyama o compreende.2O final da história é provocado,
não pela vitória final do mercado sobre todo projeto político universal

193
possível, mas, ao contrário, pela derradeira vitória de um projeto po­
lítico, o que significa uma rejeição definitiva do passado, uma ruptura
final com a história da diversidade.
É o fim radical e apocalíptico da história - não o tipo de final de
história como descrito pela teoria liberal contemporânea. É por isso
que a única herança verdadeira do sujeito pós-comunista de hoje -
seu verdadeiro local de origem - é a completa destruição de todo tipo
de herança, uma ruptura radical e absoluta com o passado histórico
e com qualquer tipo de identidade cultural distinta. Até mesmo
o nome do país, “Rússia” , foi apagado e substituído por um nome neu
tro, sem qualquer tradição cultural: União Soviética. O russo contem­
porâneo, cidadão pós-soviético, portanto, vem de lugar nenhum, do
grau zero ao final de todas as histórias possíveis.
Agora, torna-se claro porque é tão difícil para os estudos culturais
descrever o caminho que países e populações pós-comunistas fizeram
após a morte do comunismo. Por um lado, esse caminho da evolução
parece ser o familiar e bem merecido caminho de uma sociedade fecha­
da para uma sociedade aberta, de uma comunidade para uma sociedade
civil. Mas a comunidade comunista era, de muitas maneiras, muito
mais radicalmente moderna em sua rejeição ao passado que os países
do Ocidente. E essa comunidade não era fechada devido à estabili­
dade de suas tradições, mas ao radicalismo de seus projetos. E isso
significa: o sujeito pós-comunista viaja na mesma rota que foi des­
crita pelo discurso dominante dos estudos culturais, mas ele ou elã
faz esse caminho na direção oposta, não do passado para o futuro, mas
do futuro para o passado; do final da história, do tempo pós-histórico,
pós-apocalíptico, de volta para o tempo histórico. A vida pós-comunista
é vivida de trás para frente, um movimento contra o fluxo do tempo.
Obviamente essa não é uma experiência histórica única. Sabemos de
várias comunidades modernas apocalípticas, proféticas e religiosas
que foram sujeitadas à necessidade de retornar no tempo histórico.
O mesmo pode ser dito de alguns movimentos artísticos vanguardis-
tas e também de algumas comunidades politicamente motivadas que
surgiram nos anos 1960. A principal diferença é a magnitude de um
país como a Rússia, que deve, agora, tomar o caminho de volta - do
futuro para o passado. Mas é uma diferença importante. Várias seitas

m
apocalípticas cometeram suicídio, porque foram incapazes de voltar
no tempo. Mas um país tão grande como a Rússia não tem a opção do
suicídio, ele precisa proceder de trás para frente, seja qual fôr o senti­
mento que tenha a esse respeito.
Não é necessário dizer que a abertura dos países comunistas sig­
nificou para a população, em primeiro lugar, não a democratização
em termos políticos, mas a repentina necessidade de sobreviver sob
uma nova pressão econômica ditada pelos mercados internacionais.
Isso também significa um retorno ao passado, porque todos os países
comunistas do Leste Europeu, inclusive a Rússia, tiveram seu passado
capitalista. No entanto, até muito recentemente, o mais próximo que
a população russa chegou do capitalismo foi principalmente por meio
de literatura russa pré-revolucionária do século XIX. Todo o conhe­
cimento das pessoas sobre bancos, empréstimos, apólices de seguro
ou empresas particulares foi adquirido a partir da leitura de Tolstoi,
Dostoiévski e Chekhov, na escola - deixando impressões não diferen­
tes das que pessoas sentem ao ler sobre o Egito antigo. É claro que
todos estavam cientes de que o Ocidente ainda era um sistema capi­
talista, mas também estavam, da mesma forma, cientes de que eles
próprios não viviam no Ocidente, mas na União Soviética. Então, de
repente, todos esses bancos, empréstimos e apólices de seguros co­
meçaram a germinar dos túmulos literários e tornar-se realidade:
para os russos comuns parecia que as múmias do Egito antigo tinham
se levantado das tumbas e estavam restituindo todas suas antigas leis.
Além disso - e provavelmente essa é a pior parte da história - os
mercados culturais ocidentais contemporâneos, assim como os estu­
dos culturais contemporâneos, exigem que os russos, os ucranianos
e os demais redescubram, redefinam e manifestem a identidade cul­
tural que alegam ter. São obrigados a demonstrar, por exemplo, suas
especificidades russas ou ucranianas, que, como tentei demonstrar,
esses sujeitos pós-comunistas não possuem e não podem possuir, por­
que mesmo que se essas identidades culturais tenham existido de ver­
dade, elas foram completamente apagadas pelo experimento soviético
social universal. A singularidade do comunismo está no fato de que
é a primeira civilização moderna que historicamente pereceu - com
exceção, talvez, dos regimes fascistas de vida curta, nas décadas de

195
1930 e 1940. Até aquela época, qualquer outra civilização que tenha pe­
recido foi pré-moderna, portanto, ainda fixaram identidades que pu­
deram ser documentadas por poucos monumentos marcantes, como
as pirâmides do Egito. Mas a civilização comunista usou apenas essas
coisas que são modernas e utilizadas por todo o mundo e que, de fato,
não têm origem russa. O clássico emblema soviético era o marxismo
soviético. Mas não faz sentido nenhum apresentar o marxismo para
o Ocidente como sinal de identidade cultural russa, porque ele tem, ob­
viamente, origem ocidental e não russa. O significado e o uso soviético
específicos do marxismo poderiam funcionar e ser demonstrados so­
mente no contexto específico do Estado soviético. Agora que esse con­
teúdo específico foi dissolvido, o marxismo retornou para o Ocidente
- e os traços de seu uso soviético simplesmente desapareceram. O su­
jeito pós-comunista deve sentir-se como uma garrafa de coca-cola de
Warhol trazida de volta do museu para o supermercado. Nos museus,
essa garrafa de coca-cola era uma obra de arte e tinha identidade,
mas, de volta ao supermercado, a mesma garrafa de coca-cola é como
qualquer outra garrafa de coca-cola. Infelizmente, essa ruptura com­
pleta com o passado e a resultante rasura da identidade cultural são
tão complicadas de explicar para o mundo externo quanto descrever
a experiência de guerra ou prisão para alguém que nunca esteve em
guerra ou na prisão. E, por isso, em vez de tentar explicar a falta de
identidade cultural de alguém, o sujeito pós-comunista tenta inventar
uma - agindo como Zelig no famoso filme de Woody Allen.
Essa busca pós-comunista por uma identidade cultural que pare­
ce ser tão violenta, autêntica e intemamente orientada é, na verdade,
uma reação histérica às exigências dos mercados culturais internacio­
nais. Os europeus orientais, agora, querem ser tão nacionalistas, tra­
dicionais e culturalmente identificáveis quanto todos os outros, mas
ainda não sabem como fazer isso. Assim, seu aparente nacionalismo
é, primariamente, uma reflexão e uma acomodação na busca pela al­
teridade característica do gosto cultural do Ocidente contemporâneo.
Ironicamente, essa acomodação às exigências do mercado internacio­
nal atual e ao gosto cultural dominante é, na maioria das vezes, inter­
pretada pela opinião pública ocidental como um “renascimento” do
nacionalismo, um “retorno do reprimido” , como uma prova adicional

19 6
corroborando a atual crença na alteridade e na diversidade. Um bom
exemplo desse efeito espelho - o Leste refletindo as expectativas oci­
dentais de “alteridade” e confirmando-as ao simular artificialmente
sua identidade cultural - é a remodelação da arquitetura de Moscou,
que aconteceu imediatamente depois da morte da União Soviética.
No período relativamente breve desde que a União Soviética foi
dissolvida, Moscou - uma vez capital soviética, agora russa - já havia
passado por uma transformação espantosamente rápida e minucio­
sa na arquitetura. Muito foi construído nesse curto período de tempo,
e os prédios e monumentos novos redefiniram a cara da cidade. A ques­
tão certamente é: De que forma? A resposta mais recente em textos
de observadores ocidentais e em alguma das críticas mais diligentes de
arquitetura é que a arquitetura de Moscou é k itsch , restauradora, e,
acima de tudo, ansiosa por apelar para sentimentos regressivos do
nacionalismo russo. Ao mesmo tempo, esses comentaristas afirmam
haver certa discrepância entre o fato de a Rússia ter adotado o capita­
lismo e as estéticas regressivas e restauradoras agora evidentes na ca­
pital russa. A razão mais frequentemente apresentada para essa alega­
da contradição é que, diante da atual onda de modernização e a grande
pressão social despertada, essas estéticas restauradoras são medidas
compensatórias através de sua evocação do passado glorioso da Rússia.
Sem dúvida, o perfil estático da Moscou contemporânea é, ine­
quivocamente, restaurador; apesar de serem encontrados alguns em­
préstimos da arquitetura contemporânea ocidental, essas referências
estão sempre situadas em um contexto historicista, eclético. Em es­
pecial, os edifícios mais típicos da arquitetura nova de Moscou são os
que indicam uma rejeição programática do idioma contemporâneo
internacional. Ainda assim, na Rússia, como já antes mencionado,
o capitalismo já é vivido como restaurador, ou seja, como o retorno
do futuro socialista do país de volta a seu passado pré-revolucionário
e capitalista. Isso, por sua vez, significa que a arquitetura restaura­
dora, ao invés de contradizer, é, na verdade, cúmplice do espírito
capitalista russo. De acordo com a cronologia russa, o Modernismo
é uma característica do futuro socialista, que agora pertence ao pas­
sado, em vez de fazer parte do passado capitalista, que, agora, é o
futuro. Na Rússia, o Modernismo é associado ao socialismo - e não,

197
como é no Ocidente, ao capitalismo progressivo. Isso não é só porque
artistas modernistas frequentemente verbalizaram pontos de vista
socialistas, mas é também resultado da conformidade do Moder­
nismo com um período em que o socialismo prevalecia na Rússia -
o que significa, na verdade, no século XX inteiro. Por essa razão,
a nova arquitetura de Moscou quer sinalizar o retorno do país a um
tempo pré-revolucionário, por exemplo para o século XIX, ao aban
donar o Modernismo do século XX.
Além disso, os russos associam o Modernismo, acima de tudo,
à arquitetura soviética dos anos de 1960 e 1970 que, em geral, eles
detestam. Durante essas décadas, vastas zonas urbanas surgiram por
toda a União Soviética repletas de edifícios residenciais enormes, al­
tamente geométricos, padronizados, de aparência cinza, monótona e
completamente destituídos de talento artístico. Isso era a arquitetura
mais simples. O Modernismo nessa roupagem é, agora, rejeitado, já
que parece combinar monotonia e padronização, além de materiali
zar características socialistas a despeito do gosto pessoal. Enquanto
isso ocorre, argumentos semelhantes podem ser ouvidos hoje na re­
jeição à cultura dissidente dos anos de 1960 e 1970, com inclinação
ao Modernismo, cujos proponentes encontram aprovação, na maioria
das vezes, só no Ocidente. Na Rússia, a cultura dissidente anterior é
dispensada por ainda ser “muito soviética” - em outras palavras, por
ser muito arrogante, intolerante, doutrinadora e modernista. Como
alternativa, a atual c a u s e célèb re na Rússia é o Pós-Modernismo.
Assim, o retorno ao ecletismo e ao historicismo do século XIX é atu­
almente celebrado na Rússia como sinalização do advento do verda­
deiro pluralismo, da abertura, da democracia e do direito ao gosto
pessoal - como a confirmação visual imediata de que o povo russo se
sente finalrnente livre dos sermões moralistas da ideologia comunis­
ta e do terror estético do Modernismo.
No entanto, contrário a essa retórica da diversidade, inclusão
e liberação do gosto pessoal, o novo estilo de Moscou é, na verdade,
totalmente produto de planejamento centralizado. Os edifícios típicos
e influentes de hoje sucederam à iniciativa do prefeito pós-soviético de
Moscou, Yuri Luzhkov, e seu escultor predileto, Zurab Tsereteli. Como
também sempre foi o caso com a arquitetura estalinista, que, da mesma

198
forma, foi resultado da cooperação entre Stalin e uma pequena coterie
cuidadosamente selecionada de arquitetos, esse é exemplo do fenôme­
no russo mais típico - um caso de pluralismo planejado e centralizado.
O atual estilo de Moscou se distanciou da monotonia modernista das
décadas de 1960 e de 1970 no mesmo grau que a arquitetura estalinista
se despia do rigor da vanguarda russa. O estilo de Moscou é um revival
de um revival. Mais importante ainda, esse retorno ao gosto popular e
ao pluralismo estético afinal provou ser, em ambos os casos, uma m is e ­
-en -scè n e patrocinada pelo Estado.
A forma como esse tipo de pluralismo controlado funciona é bem
ilustrada por um exemplo concreto: a reconstrução da Catedral de
Cristo Salvador, projeto recentemente concluído. Essa catedral recons­
truída já é contada como o monumento arquitetônico pós-soviético
mais importante na Moscou atual. Mais que qualquer outra pessoa,
Luzhkov priorizou a reconstrução da catedral como o mais prestigiado
projeto da cidade. Alguns detalhes históricos devem apontar para as
implicações da restauração do projeto.
A Catedral de Cristo Salvador original foi construída pelo arqui­
teto Konstantin Ton entre 1838 e 1860 como símbolo da vitória da
Rússia contra o exército napoleônico; foi demolida sob o comando
de Stalin, em 1931. Imediatamente após sua conclusão, a catedral
desproporcionalmente grande foi bastante criticada e ridicularizada
como sendo um monumento k itsch . A visão original foi comparti­
lhada por todas as opiniões arquitetônicas subsequentes, o que foi,
provavelmente, a razão da decisão final de detoná-la - simplesmente
acreditava-se ser de pequeno valor artístico. Ao mesmo tempo, essa
demolição significou um ato político intensamente simbólico, já que,
apesar de - ou, talvez, exatamente por isto - sua característica k itsch ,
a catedral era imensamente popular, bem como era a mais viva ex­
pressão do poder da igreja ortodoxa russa na Rússia pré-revolucio­
nária. Por isso, sua demolição veio como clímax da campanha anti­
clericalismo travada no final dos anos 1920 e 1930, motivo pelo qual
deixou um traço tão indelével na memória popular.
Dada sua condição simbólica, Stalin projetou a praça, limpa pela
demolição da catedral, para ser o local de construção do Palácio dos
Sovietes, previsto para ser o monumento supremo para o comunismo

199
soviético. O Palácio dos Sovietes jamais foi construído - exatamen­
te como o futuro comunista que supostamente celebraria nunca foi
concretizado. Ainda assim, o projeto do palácio, desenhado por Boris
Iofan na metade da década de 1930 e somente após inúmeras revi­
sões e aprovação de Stalin, ainda é considerado - justamente - como
o mais notável projeto arquitetônico da era estalinista. Ainda que
o Palácio dos Sovietes jamais tenha sido erguido, o projeto em si, serviu
como protótipo para toda a arquitetura estalinista subsequente. Isso é
especialmente conspícuo nos notáveis arranha-céus construídos nos
anos do pós-guerra e que, até hoje, dominam o horizonte de Moscou.
Enquanto a ideologia oficial daquele tempo afirmava que o comu­
nismo estava sendo preparado e prefigurado pela cultura estalinista,
os arranha-céus de Stalin eram construídos ao redor do inexistente
Palácio dos Sovietes a fim de anunciar seu advento. Entretanto, no cur­
so da desestalinização durante os anos de 1960, esse local foi cedido
para a construção de uma gigantesca piscina a céu aberto, a Moskva,
em substituição ao palácio; como a Catedral de Cristo Salvador, elã
logo teve uma enorme popularidade. A piscina era mantida aberta no
inverno e, por vários meses, todo ano, grandes nuvens de vapor po­
diam ser vistas ao redor, o que dava à paisagem um aspecto de inferno.
Mas essa piscina também pode ser vista como lugar onde a população
de Moscou podia se limpar dos pecados de seu passado estalinista. De
uma forma ou de outra, é exatamente sua memorável localização que
faz da piscina a personificação mais dramática da consciência cultural
modernista dos anos de 1960 e 1970: elã representa uma renúncia radi­
cal a qualquer estilo arquitetônico, é como nadar livre sob o céu limpo,
o “grau zero” da arquitetura.
Seguindo a dissolução da União Soviética, a piscina foi esvaziada
e substituída por uma réplica exata da Catedral de Cristo Salvador.
O quão fiel à original a cópia é de fato tornou-se tema altamente de­
batido e contencioso na Rússia. Mas, afinal, o que vale é a verdadei­
ra intenção, que sem dúvida era construir uma réplica, mais próxi­
ma possível, da igreja demolida - o que funciona, simbolicamente,
como uma cópia exata do passado histórico e da identidade cultu­
ral russa. Longe de tornar-se um monumento ao novo nacionalismo
russo ou um sintoma da ressurreição de sentimentos antiocidentais,

200
a reconstrução da catedral foi projetada para celebrar a derrota do
passado universalista, modernista e vanguardista soviético e o re­
torno à identidade russa folclorista, identidade essa facilmente ins­
crita na nova ordem capitalista internacional. E, à primeira vista, tal
retorno simbólico à identidade nacional parece ser especialmente
leve, nesse caso: durante todo o período soviético, o local da catedral
permaneceu nulo, um espaço em branco - como uma folha de papel
em branco que poderia ser preenchida com todo o tipo de escrita.
Assim, para reconstruir a velha catedral em seu antigo local, não ha­
via necessidade de remover ou destruir qualquer edifício existente.
O momento soviético se manifesta, aqui, como interrupção estática
do tempo histórico, como pura ausência, como o nada materializado,
o vazio, o espaço em branco. Então, parece que se esse nada desa­
parecer, nada mudará: a rasura será rasurada e uma cópia se tornará
idêntica ao original - sem qualquer perda histórica adicional.
Mas, na verdade, essa reconstrução demonstra que o movimen­
to em direção ao passado - como antes o movimento em direção
ao futuro - só leva o país, repetidas vezes, ao mesmo ponto. E esse
ponto, do qual um panorama histórico russo pode ser visto em sua
totalidade, tem nome: estalinismo. A cultura, no tempo de Stalin, já
era tentativa de se reapropriar do passado depois da completa rup­
tura revolucionária com ele - para encontrar, jogadas fora pela revo­
lução na lixeira histórica, certas coisas que poderiam ser úteis para a
construção de um novo mundo depois do fim da história. O princípio
chave do materialismo dialético estalinista, desenvolvido e selado
na metade da década de 1930, é personificado na conhecida lei da
u n id a d e e luta d o s co n trá rio s. De acordo com esse princípio, duas afir­
mações contraditórias podem, simultaneamente, ser válidas. Longe
de serem mutuamente excludentes, “A” e “não A” devem estar en­
volvidos num relacionamento dinâmico: em sua estrutura interior,
uma contradição lógica reflete o conflito real entre forças historica­
mente antagonistas, que é o que constitui a dinâmica central da vida.
Assim, somente afirmações que anunciam contradições internas são
consideradas “vitais” e, consequentemente, verdadeiras. É por isso
que a era Stalin, pensando automaticamente, patrocinou a contradi­
ção em detrimento da afirmação consistente.

201
Essa grande ênfase nas contradições foi, obviamente, um legado
herdado pelo materialismo dialético da dialética hegeliana. Ainda assim,
no modelo leninista estalinista, ao contrário dos postulados hegelia-
nos, essa contradição jamais poderia ser historicamente transcendi­
da e retrospectivamente examinada. Todas as contradições estavam
constantemente em jogo, permaneciam constantemente em desacor­
do uma com a outra e constantemente formavam um todo unificado.
A insistência rígida numa única declaração escolhida era considerada
crime, como um ataque pérfido a essa unidade de contrários. A dou­
trina da unidade e da luta dos contrários constitui o motivo subjacente
e o mistério interior do totalitarismo estalinista - porque essa varian­
te do totalitarismo reivindica a unificação de absolutamente todas as
contradições concebíveis. O estalinismo não rejeita nada: abarca tudo
e atribui a tudo a posição a que faz jus. A única questão que o pensa­
mento estalinista considera totalmente intolerável é a adesão intran­
sigente à consistência lógica do argumento de alguém à exclusão de
qualquer posição contraditória. Nessa atitude, a ideologia estalinista
vê uma recusa de responsabilidade em relação à vida e ao coletivo,
a qual só poderia ser ditada por intenções maliciosas. Pode-se dizer
que a estratégia básica dessa ideologia opera da seguinte forma: se
o estalinismo já conseguiu unificar todas as contradições sob a prote­
ção de seu próprio pensamento, qual poderia ser o objetivo de advogar
partidariamente para apenas uma dessas várias posições contrárias?
No final das contas, não há explicação racional para esse comporta­
mento, já que a posição em questão já está bem cuidada dentro da to­
talidade da ideologia estalinista. A única razão para essa provocação
teimosa deve, consequentemente, estar no ódio irracional da União
Soviética e num ressentimento pessoal de Stalin. Uma vez que é im­
possível argumentar com alguém tão cheio de ódio, o único remédio
disponível, lamentavelmente, é a reeducação ou a eliminação.
Esse breve desvio para dentro da doutrina do materialismo dialético
estalinista nos permite formular critérios que, intrinsecamente, deter­
minaram toda a criatividade artística durante a era Stalin: cada obra de
arte se esforçou para incorporar o máximo de contradições estéticas inte­
riores. Esse mesmo critério também apontou estratégias críticas daquele
período, que reagia alergicamente sempre que uma obra de arte parecia

202
expressar uma posição estética claramente definida, consistentemen­
te articulada e indubitavelmente identificável - a verdadeira natu­
reza dessa posição era considerada secundária. Contrária à estética
explícita e agressiva da vanguarda artística, a estética da era Stalin
jamais se definiu em termos positivos. Nem a ideologia estalinista,
nem a arte política estalinista são, de qualquer forma, “dogmáticas” .
Ao contrário, o poder estatal estalinista age como uma mão invisível
por trás da heterogeneidade, da diversidade e da pluralidade de proje­
tos artísticos individuais - censurando, editando e combinando esses
projetos conforme sua própria visão da mistura ideologicamente apro­
priada. Isso significa que o vazio simbólico onde a nova-velha catedral
foi construída não é tanto um espaço em branco, no final das contas.
É um espaço de poder invisível e interno, escondido atrás da diversida­
de das formas artísticas. É por isso que, no presente contexto, tomou-
-se tão fácil coordenar - senão identificar - essa mão invisível do po­
der estatal estalinista com a mão invisível do mercado. Ambas agem
no mesmo espaço atrás da superfície diversa, heterogênea e plural.
Longe de significar um renascimento da identidade cultural russa,
a cópia da catedral no centro de Moscou simboliza a renovação de
práticas culturais estalinistas sob as novas condições do mercado.
Esse exemplo da renovação da estética estalinista soviética como
efeito do gosto pós-modernista, que tentei, até certo ponto, elaborar,
ilustra um determinado aspecto na relação entre arte e política. A arte
é, obviamente, política. Todas as tentativas de definir a arte como
autônoma e de situá-la acima, ou além, do campo político são total­
mente ingênuas. Dito isso, não devemos nos esquecer de que a arte
não pode ser reduzida a um campo específico entre vários outros que
funcionam como arenas para decisões políticas. Não é suficiente di­
zer que a arte é dependente da política; é mais importante tematizar a
dependência por atitudes, gostos, preferências e predisposições esté­
ticas do discurso, das estratégias e das decisões políticas. Como tentei
demonstrar, a política radical não pode ser dissociada de certo gosto
estético - o gosto pelo universal, pelo grau zero da diversidade. Por ou­
tro lado, a política liberal, orientada pelo mercado, está correlacionada
à preferência por diversidade, diferença, abertura e heterogeneidade.
Hoje, o gosto pós-modemo ainda prevalece. Projetos políticos radicais

203
quase não têm chance, atualmente, de serem aceitos pelo público, por­
que não se correlacionam com a sensibilidade estética dominante. Mas
os tempos estão mudando; é bem possível que uma nova sensibilidade
pela arte e pela política radicais surja novamente.

(“Beyond Diversity: Cultural Studies and Its Post-Communist Other” , originalmente


publicado em Okvvui Enwesor et al. (eds.), D e m o cra cy U n rea lised , Documenta 11 _
Plattform 1, Hatje Cantz, 2002, p. 303-319.)

204
P R I V A T I Z A Ç Õ E S

OU P A R A Í S O S

A R T I F I C I A I S

D O P Ó S -

- C O M U N I S M O
O termo que, sem dúvida, melhor caracteriza os processos que acon­
tecem desde o término do regime comunista da Rússia, e no Leste Eu­
ropeu em geral, é p riv a tiza çã o . A completa abolição da propriedade
privada dos meios de produção era vista, por teóricos e participantes
do bolchevismo russo, como pré-requisito crucial para construir, pri­
meiro, uma sociedade socialista, e, depois, comunista. A nacionalização
total de todas as propriedades privadas era a única coisa que poderia
atingir toda a plasticidade social que o Partido Comunista precisava
para obter um poder completamente novo e sem precedentes para for­
mar uma sociedade. Acima de tudo, no entanto, isso significava que era
dada à arte primazia acima da natureza - da natureza humana e da na­
tureza em geral. Somente quando os “direitos naturais” da humanidade,
inclusive o direito à propriedade privada, foram abolidos, e as conexões
“naturais” com origem, herança e tradições culturais próprias foram de­
cepadas, pessoas puderam se inventar de uma maneira completamen­
te livre e nova. Somente quem não mais possui propriedade está livre
e disponível para todas as experiências sociais. A abolição da proprieda­
de privada, assim, representa a transição do natural para o artificial, do

205
âmbito da necessidade para o âmbito da liberdade (política e artísti­
ca), do estado tradicional para a G esa m tk u n stw erk (obra de arte total).
Os grandes utópicos da história, como Platão, More e Campanella, vi­
sualizaram a abolição da propriedade privada e de interesses privados
associados a elã como pré-requisito necessário para a busca desemba
raçada por um projeto político coletivo.
Dessa forma, a reintrodução da propriedade privada representa um
pré-requisito igualmente crucial para se dar fim ao experimento comu­
nista. O desaparecimento de um Estado governado pelo comunismo
não é, portanto, um mero evento político. Sabemos, através da história,
que governos, sistemas políticos e de relações de poder mudararm fre­
quentemente sem causar efeitos substanciais no direito à propriedade
privada. Nesses casos, a vida social e econômica continuou a ser es­
truturada conforme leis civis, até mesmo quando a vida política estava
sendo radicalmente transformada. Com a queda da União Soviética, ao
contrário, já não havia um contrato social válido. Vastos territórios se
tomaram desertos selvagens abandonados, no concernente a direitos -
assim como na época do Velho Oeste dos Estados Unidos - e precisaram
ser reestruturados. Isto é, precisaram ser divididos, distribuídos e aber­
tos à privatização, seguindo regras que não existiam ou não poderiam
existir. O processo de deixar de ser comunista vivido pelo antigo Leste
Europeu deve, assim, ser visto como o drama da privatização que acon­
teceu naturalmente além de todas as convenções usuais da civilização.
Sabe-se bem que esse drama atiçou várias paixões e resultou em várias
vítimas. A natureza humana, anteriormente suprimida, manifestou-se
com violência ema na luta pela aquisição particular de bens coletivos.
Essa luta não deveria, no entanto, ser entendida simplesmente
como uma transição que leva (de volta) de uma sociedade sem pro­
priedade privada para uma sociedade com propriedade privada. Afinal,
a privatização comprovou ser uma construção política artificial tanto
quanto a o nacionalização foi. O mesmo Estado que outrora se nacio­
nalizou para construir o comunismo agora se privatiza para construir
o capitalismo. Em ambos os casos, a propriedade privada está subor­
dinada, no mesmo grau, ao interesse nacional - e, assim, manifesta-
-se como artefato, como produto de planejamento estatal. Portanto,
a privatização como (re) introdução da propriedade privada não leva

206
de volta à natureza - à lei natural. O Estado pós-comunista é, como
seu predecessor comunista, um tipo de instalação artística. Por isso,
a situação pós-comunista é tal que revela a artificialidade do capita­
lismo ao apresentar seu aparecimento como puro projeto político de
reestruturação social (em russo: p erestro ik a ), e não como resultado
de um processo “natural” de desenvolvimento econômico. O estabe­
lecimento do capitalismo no Leste Europeu, inclusive na Rússia, não
foi, realmente, nem consequência da necessidade econômica, nem de
uma transição histórica gradual e “orgânica” . Em vez disso, uma deci­
são política foi tomada para passar da construção do comunismo para
a do capitalismo e, para esse fim, produzir artificialmente uma classe
de donos de propriedades privadas, os quais passariam a ser os prin­
cipais protagonistas desse processo. Assim, não havia retorno ao mer­
cado como “estado natural” , mas uma revelação do caráter altamente
artificial do mercado por si só.
Por essa razão também, privatização não é transição, mas um
estado permanente, já que é exatamente através desse processo que
o privado descobre sua dependência fatal do Estado: espaços privados
são, necessariamente, formados por sobras do monstro Estado. É um
violento desmembramento e uma apropriação privada do corpo morto
do Estado socialista, em que os dois relembram banquetes sagrados do
passado, nos quais membros de tribos consumiam juntos um animal
totêmico. Por um lado, esse banquete representa a privatização do ani­
mal totêmico, já que todos receberam um pedaço pequeno e privado
dele; por outro lado, no entanto, a justificativa para a festa era exata­
mente a criação da identidade supraindividual da tribo.
Essa identidade comum que toma possível experimentar a priva­
tização como projeto coletivo é especialmente manifestada, de forma
clara, na arte produzida, hoje, em países pós-comunistas. Antes de tudo,
todo artista, em qualquer área anteriormente sob o comunismo, ainda
se encontra na sombra da arte do Estado que foi derrotado. Hoje, não
é fácil para um artista competir com Stalin, Ceausescu ou Tito - as­
sim como deve ser difícil para artistas egípcios, agora mais que nun­
ca, competir com as pirâmides. Ademais, a propriedade coletiva, sob
as condições do “socialismo real” , continuou com uma grande reserva
de experiências coletivas. Isso ocorreu porque as inúmeras medidas

207
políticas tomadas pelo Estado socialista para moldar a população como
uma nova humanidade comunista a afetou como um todo. O resultado
foi um território mental coletivo cujo soberano era o Estado. Controlada
pelo Partido Comunista, toda psique privada era subordinada e nacio­
nalizada pela ideologia oficial. Assim como o Estado socialista, quando
de sua morte, fez uma imensa área econômica disponível para apro­
priação privada, a abolição simultânea da ideologia soviética oficial, da
mesma forma, deixou como legado o enorme império de emoções cole­
tivas que foi colocado à disposição para apropriação privada, para que
fosse produzida uma alma individualista, capitalista. Para os artistas
de hoje, isso representa uma grande oportunidade, pois quando eles
entram nesse território de experiências coletivas, são imediatamente
compreendidos por seu público. Mas isso também esconde um grande
risco, já que a privatização artística prova ser tão incompleta e depen­
dente do compartilhamento, hoje mais do que nunca.
Seja como fôr, entretanto, a arte pós-comunista de hoje é larga­
mente produzida por meio da privatização do território mental e sim­
bólico que tem sido deixado para trás pela ideologia soviética. Reco­
nhecidamente, nesse sentido, elã não é diferente da arte ocidental do
Pós-Modernismo; porque a apropriação, ou se preferir, a privatização,
continua a funcionar como o principal método artístico no contexto
da arte contemporânea internacional. A maioria dos artistas de hoje
se apropria de vários estilos históricos, símbolos religiosos ou ideo­
lógicos, mercadorias produzidas em massa e propaganda vastamente
divulgada, mas também obras de certos artistas famosos. A arte da
apropriação se vê como arte após o fim da história; elã não é mais
sobre a produção individual do novo, mas sobre as lutas da distribui­
ção, sobre o debate sobre direitos de propriedade, sobre a oportuni­
dade do indivíduo de acumular capital privado simbólico. Todas as
imagens, objetos, símbolos e estilos apropriados pela arte ocidental
de hoje originalmente circularam como mercadorias no mercado que
sempre foi dominado por interesse privado. Por isso, nesse contexto,
a arte de apropriação parece agressiva e subversiva - uma espécie
de pirataria simbólica que transita no limite entre o permitido e o
proibido e explora a redistribuição do capital - pelo menos do capital
simbólico, senão do capital real.

208
A arte pós-comunista, ao contrário, apropria-se de um enor­
me estoque de imagens, símbolos e textos que não mais pertencem a
ninguém e que não mais circulam, mas simplesmente fazem parte da
pilha de lixo histórico, como um legado compartilhado dos dias de co­
munismo. A arte pós-comunista passou por seu próprio final de histó­
ria: não o final de mercado livre e capitalista da história, mas seu final
socialista e estalinista. A verdadeira impudência do socialismo real em
sua forma estalinista, afinal, foi sua afirmação de que a União Soviéti­
ca marcou o final histórico da luta de classes, da revolução e até mes­
mo de todas as formas de crítica social - que a salvação do inferno da
exploração e da guerra já havia acontecido. As reais circunstâncias da
União Soviética foram proclamadas como idênticas às circunstâncias
ideais depois da vitória final do bem contra o mal. A localização real em
que o campo socialista se estabeleceu foi decretada local da utopia con­
cretizada. Não requer - e, até mesmo naquele momento, não requereu
- grande esforço ou perspicácia para demonstrar que isso era uma afir­
mação contrafactual, que o idílio oficial foi manipulado pelo Estado,
que a luta continuava, fosse elã para a própria sobrevivência de alguém,
contra a repressão e manipulação ou uma revolução permanente.
E, no entanto, isso seria tão impossível quanto banir a famosa afir­
mação mundial “foi cumprido” , simplesmente destacando as injusti­
ças e inadequações do mundo. Fala-se do final da história, ou seja, da
identidade entre antiutopia e utopia, de inferno e paraíso, de dana­
ção e salvação, quando se escolhe o presente em detrimento do futuro,
pois este, acredita-se, não mais trará nada de novo além do que já foi
visto no passado. Acima de tudo, acredita-se nisso quando se teste­
munha uma imagem ou um evento que assume ser um radicalismo
incomparável, que pode ser no máximo repetido, mas nunca ultra­
passado. Isso pode ser uma imagem de Cristo na cruz ou do Buda sob
a árvore ou, no caso de Hegel, Napoleão montado num cavalo. Poderia
ser também a experiência do Estado estalinista - do Estado que criou
a forma mais radical de expropriação, de terror, de igualdade total,
porque era igualmente direcionado contra todos. Era exatamente esse
o argumento das famosas palestras parisienses de Alexandre Kojève,
na década de 1930, sobre a filosofia da história de Hegel, quando ele de­
clarou explicitamente o estalinismo como o fim da história. No período

209
pós-guerra, os sucessores de Kojève começaram a falar novamente so­
bre o fim da história ou pós-história e Pós-Modernismo. Nessa época,
porém, já não era mais o estalinismo, mas a vitória do capitalismo de
livre-mercado, na Segunda Guerra Mundial e depois na Guerra Fria,
que conduziria ao estágio final da história. E, mais uma vez, foi feita
a tentativa de refutar o discurso sobre o fim da história ao apontar para
o seu contínuo progresso na atualidade. Mas a escolha do presente em
detrimento do futuro não pode ser refutada por argumentos factuais,
já que esta implica no fatual e em todos os argumentos que se referem
a ele como mera recorrência eterna do mesmo - e, assim, daquilo que
já foi historicamente superado. Não há nada mais fácil que dizer que
a luta continua, já que isso é obviamente a verdade da razão humana
saudável. É mais difícil reconhecer que os envolvidos na luta não estão,
na verdade, lutando de forma alguma, mas simplesmente ossiíicados
em posição de batalha.
Assim, a arte pós-comunista é a arte que passa de um Estado após
o fim da história, para outro, também após esse fim: de socialismo real
para capitalismo pós-modemo; ou do idílio da expropriação univer­
sal, que segue o final da luta de classe, para a resignação definitiva
em relação ao infinito depressivo no qual as mesmas lutas por distri­
buição, apropriação e privatização são permanentemente repetidas.
A arte ocidental pós-moderna, que reflete sobre essa infinitude ao
mesmo tempo em que a saboreia, quer algumas vezes parecer com­
bativa, algumas vezes cínica, mas quer ser em todos os casos crítica.
A arte pós-comunista, ao contrário, comprova ser profundamente an­
corada no idílio comunista - elã o privatiza e o expande em vez de re­
nunciar a ele. É por isso que a arte pós-comunista parece ser tão ino­
fensiva, isto é, nem crítica, nem radical o suficiente. E elã, de fato, busca
a lógica utópica da inclusão, não a lógica realista da exclusão, da luta
e da crítica. Isso equivale à extensão da lógica da ideologia comunista,
que lutou para ser universalista e se empenhou na direção da unidade
dialética de todas as oposições, mas no final das contas, ficou presa
aos confrontos da Guerra Fria, porque resistiu a todos os símbolos do
capitalismo ocidental. A arte independente e não oficial do socialismo
tardio queria analisar o íim da história mais rigorosamente e expan­
dir a utopia de uma coexistência pacífica de todas as nações, culturas

210
e ideologias, tanto para o Ocidente capitalista quanto para a história
pré-comunista do passado.
Artistas russos dos anos de 1960 e 1970, tais como Vitali Komar
e Alexander Melamid e, mais tarde, o grupo esloveno de artistas Irwin,
ou o artista checo Milan Kunc, seguiram essa estratégia rigorosa de in­
clusão. Eles criaram espaços de idílio artístico em que símbolos, ima­
gens e textos percebidos como incompatíveis com a realidade política
da Guerra Fria poderiam coexistir pacificamente. Também nas déca­
das de 1960 e 1970, outros artistas, como Ilya Kabakov ou Erik Bulatov,
misturaram imagens sombrias do dia a dia na União Soviética com
alegres imagens de propaganda oficial. As estratégias artísticas de re­
conciliação ideológica além das trincheiras da Guerra Fria anuncia­
ram, naquele tempo, uma utopia extensa e radical, que tinha intenção
de incluir seus inimigos também. Essa política de inclusão era seguida
por vários artistas russos e do Leste Europeu, mesmo depois do rompi­
mento do regime comunista. Pode-se dizer que é a extensão do para­
íso do socialismo real em que tudo que fora outrora excluído é aceito;
é, portanto, uma radicalização utópica da demanda comunista pela in­
clusão total de um e de todos, inclusive daqueles geralmente conside­
rados ditadores, tiranos e terroristas, mas também capitalistas, mili­
taristas e beneficiários da globalização. Esse tipo de inclusão utópica
radicalizada era frequentemente confundido com ironia, mas é, na ver­
dade, um idílio pós-histórico, que buscou analogias em vez de diferenças.
Até mesmo a pobreza pós-comunista é retratada como sendo
utópica por artistas russos atuais, porque a pobreza une enquanto
a riqueza divide. Boris Mikhailov, principalmente retrata a vida coti­
diana na Rússia e na Ucrânia de forma tanto impiedosa quanto amável.
A mesma nota idílica pode ser vista nos vídeos de Olga Chemyshova,
Dmitri Gutov e Lyudmila Gorlova; para esses artistas, a utopia vive na
rotina diária do pós-comunismo, ainda que, oficialmente, tenha sido
substituída pela competição capitalista. O gesto de protesto político
coletivo, ao contrário, é apresentado como uma teatralização artística
que não tem mais espaço na vida diária indiferente e completamen­
te privatizada do pós-comunismo. Em uma performance do grupo
Radek, por exemplo, uma multidão de pessoas atravessando a rua numa
interseção no movimentado centro de Moscou é interpretada como

211
demonstração política ao colocar os artistas, como revolucionários
líderes do passado, em frente a essa multidão passiva com seus pôs­
teres. Uma vez que a rua tenha sido atravessada, no entanto, cada um
segue seu próprio caminho. E Anatoly Ozmolovsky projetou sua ação
política em Moscou como citação direta de eventos de 1968, em Paris.
A imaginação política se apresenta, aqui, como armazém de (pré)ima­
gens históricas disponíveis para apropriação.
Essa caracterização não se aplica, obviamente, a toda arte feita em
países da antiga União Soviética. A reação à utopia universalista, in-
ternacionalista e comunista não consiste sempre, nem primariamente,
na tentativa de pensá-la de forma mais radical de como era feito nas
condições do socialismo real. Ao contrário, as pessoas frequentemente
reagiam a essa utopia com uma demanda por isolamento nacionalista,
para a criação de uma identidade nacional e cultural fixa. Essa reação
também podia ser claramente notada já na fase mais tardia do socia­
lismo, mas foi bruscamente intensificada depois da criação dos novos
Estados nacionais no território das antiga União Soviética, Iugoslávia
e Bloco do Leste - e a busca por identidades culturais nacionais se
tornou a principal atividade daqueles Estados. Reconhecidamente, es­
sas identidades culturais nacionais eram, elas mesmas, remendadas
a partir de restos apropriados do império comunista, mas como regra,
esse fato não é admitido abertamente. O período comunista, na ver­
dade, é interpretado como interrupção traumática de um crescimento
histórico orgânico da identidade nacional em questão.
O comunismo é, assim, exteriorizado, desintemacionalizado e re­
tratado como a somatória dos traumas que um poder estrangeiro su­
jeitou à identidade de alguém que agora precisa de terapia para que
possa, novamente, tornar-se intacta. Para os povos não russos da an­
tiga União Soviética e Leste Europeu, o tempo de domínio dos parti­
dos comunistas é, consequentemente, apresentado como momento de
ocupação militar russa, sob a qual os povos em questão simplesmente
sofreram passivos. Para os teóricos do nacionalismo russo, por sua vez,
o comunismo foi, inicialmente, obra de estrangeiros (judeus, alemães,
letões etc.), mas havia sido amplamente superado durante o estalinis­
mo e substituído pelo glorioso império russo. Dessa forma, os naciona­
listas de todos esses países concordam plenamente com o diagnóstico

212
histórico e estão preparados para mais luta, mesmo que se encontrem
repetidamente em lados diferentes dessa batalha. A única coisa que
escapa a esse consenso fortuito é a arte pós-comunista, ou melhor,
a arte pós-dissidente, que se apega ao universalismo pacífico como
uma utopia idílica além de qualquer luta.

(“Privatizations, or Artificial Paradises of Post-Communism” , originalmente publicado


em P riv a tiza tio n s, catálogo de exposição para o KW Instituto de Arte Contemporânea,
Berlin, Frankfurt, 2004. Tradução para o inglês de Steven Lindberg.)

213
A E U R O P A

E S E U S

O U T R O S
Recentemente, ouvimos políticos dizer, repetidas vezes, que a Europa
não é apenas uma comunidade de interesses econômicos definidos,
é algo mais - uma advogada de certos valores culturais que devem ser
afirmados e defendidos. Mas, é claro, sabemos que em linguagem po­
lítica, “algo a mais” significa, via de regra, “algo a menos” . E, de fato,
o que os políticos europeus realmente querem dizer é que a Europa não
pode e não deveria expandir-se ilimitadamente, mas deve parar onde
seus valores culturais pararem. O conceito de cultura define, de fato,
as fronteiras impostas da expansão econômica e política, pois a aplica­
bilidade da cultura europeia é, assim, definida como a área de interes­
ses econômicos europeus. A Europa, então, se diferenciará em relação
à Rússia, à China, à índia e aos países islâmicos, mas também em rela­
ção a seu aliado, os Estados Unidos, e, ao mesmo tempo, se apresentará
como uma comunidade intemamente homogênea de valores que pos­
suem uma identidade cultural específica com a qual aqueles que vêm
à Europa devem se conformar, graças a Deus. A questão que eu gostaria
de levantar aqui não é se essa diferenciação, essa definição de valores
culturais europeus é desejável ou não. Ao invés disso, gostaria de per­
guntar como, exatamente, os valores culturais europeus são definidos

215
hoje por políticos europeus e se são definidos com sucesso. Em segun­
do lugar, o que me interessa é o efeito produzido por essa demanda por
uma identidade cultural europeia na arte da Europa.
O desejo de situar a própria cultura num contexto internacional
é, certamente, bastante legítimo. A questão é simplesmente o quan­
to essa tentativa funciona bem no caso da Europa. Agora, como re­
gra, os valores europeus são definidos como valores humanistas cuja
origem está no legado judaico-cristão e na tradição do Iluminismo
europeu. Geralmente, acredita-se que valores europeus incluam res­
peito aos direitos humanos, democracia, tolerância ao estrangeiro
e abertura para outras culturas. Em outras palavras, os valores que
são proclamados especificamente europeus são, na verdade, univer­
sais e seria certo exigir que não europeus os respeitassem também.
Aí está toda a dificuldade com que, inevitavelmente, se confronta
os que gostariam de definir a identidade cultural europeia por meio
de tais valores ou outros análogos: estes são muito genéricos, mui­
to universais para definir uma identidade cultural específica e para
diferenciá-la de outras culturas. Por outro lado, o catálogo desses va­
lores é muito escasso para fazer justiça à imensa riqueza da tradição
cultural europeia. No discurso sobre a identidade cultural europeia já
circula esse paradoxo há décadas. Por um lado, essa circulação evoca
o sentimento de uma enorme dinâmica intelectual, mas, por outro,
o discurso correspondente permanece no mesmo ponto, o tempo todo.
O projeto de se definir a identidade cultural da Europa apelando para
valores universais e humanistas não conseguirá ser bem sucedido sim­
plesmente porque é incoerente no que se refere à lógica simples.
Toda definição logicamente coerente de uma identidade cultu­
ral presume que outras culturas sejam diferentes, mas de igual valor.
Se, no entanto, os valores particulares europeus forem definidos
como universais e humanistas, isso só pode significar que outras
culturas não europeias devem ser consideradas anti-humanistas por
natureza, ou seja, inerentemente desumanas, antidemocráticas, in­
tolerantes etc. Tendo em vista esse diagnóstico, fica claro que a sen­
sibilidade cultural e política da Europa é, necessariamente, ambígua.
Na medida em que os direitos humanos e a democracia podem ser
reconhecidos como valores universais, os europeus, como advogados

216
desses valores, sentem-se moralmente obrigados a espalhá-los pelo
mundo. Nesse processo, eles se encontram, assertivamente, con­
frontados com a acusação de que estão em busca de uma antiga
política europeia de expansão imperialista sob o disfarce de defesa
e apoio aos direitos humanos. No entanto, na medida em que os direi­
tos humanos podem ser reconhecidos como valores particularmente
europeus, os europeus sentem-se obrigados a se proteger dentro da
Europa, ou seja, isolar a esfera cultural europeia e defendê-la de es­
trangeiros anti-humanistas. Dessa forma, a política europeia oscila
entre Imperialismo e Isolacionismo - refletindo o caráter universal
particular de valores a se rem afirmados como próprios.
Fica bastante claro que tal definição particular-universal da cultu­
ra europeia, para se justificar, coloca outros países sob imensa pressão.
Ou eles devem provar que já se europeizaram a ponto de terem assimi­
lado os valores universais e humanistas ou devem provar que têm suas
próprias tradições humanistas cuja origem não está necessariamente
na tradição judaico-cristã, mas sim no Budismo, Confucionismo ou
Islamismo. Como justificativas, ambas as estratégias, no entanto, es­
tão condenadas à situação em que os valores humanistas são “terri-
torializados” , desde o início, dentro da esfera cultural europeia. Essa
“territorialização” também é um fardo para os europeus, porque como
resultado, sentem-se obrigados a caracterizar culturas não europeias
como anti-humanistas, o que parece contradizer a abordagem huma­
nista, desde o começo. Eles só podem fazer isso se não mais acredi­
tarem na dimensão universal desses valores e se estiverem prepara­
dos para aceitá-los como especificamente europeus. Como resultado,
os europeus que se definem como advogados dos valores humanistas
sentem-se envergonhados por dois motivos: por um lado, eles se sen­
tem obrigados a espalhar esses valores pelo mundo, à força se necessário,
o que, na verdade, contradiz o ideal humanista; mas, por outro lado, eles
tendem a duvidar da universalidade desse ideal humanista à medida
que concebem esses valores como meras particularidades da Europa.
Consequentemente, os europeus típicos oscilam entre fanta­
sias de onipotência e um complexo crônico de inferioridade. Quando
eles declaram o humanismo como uma verdade universal, parecem
ter o mundo a seus pés, porque eles personificam toda a humanidade.

217
No momento em que concebem o humanismo como um valor espe­
cificamente europeu, no entanto, eles se veem fracos, inaptos para
o combate, facilmente machucados, desprotegidos, cercados por um
mar de violações de direitos humanos, injustiças, horrores - abando­
nados, indefesos, frente a frente com os estrangeiros anti-humanistas.
Seu próprio humanismo de alto valor se transforma em fraqueza estru­
tural, desvantagem crucial nas guerras entre culturas, pois o discurso
dominante sobre a identidade europeia declara ambas as coisas, que os
valores humanistas são universais e que são particularidades da Euro­
pa - a psique europeia está incuravelmente dividida entre superiori­
dade moral e medo paranoico do Outro. Eu não sei dizer até que ponto
esse tumulto interno beneficia a política europeia, mas, sem dúvida,
é a melhor pré-condição para a arte na Europa.
O destino do humanismo europeu está profundamente conectado
ao da arte europeia em, pelo menos, dois aspectos. Primeiramente, ao
manter convenções dominantes sobre o entendimento europeu sobre
arte, no qual apenas o que é feito por mãos humanas pode ser consi­
derado arte. Em segundo lugar, obras de arte são fundamentalmente
distintas de outras coisas somente pelo fato de serem exclusivamen­
te contempladas e interpretadas, mas não utilizadas de forma prática.
O tabu de utilizar e consumir uma obra de arte é a base de todas as
instituições de arte europeias, inclusive os museus e o mercado de arte.
A fundamental máxima do humanismo de que o ser humano somente
pode ser visto como o fim e nunca como meio já sugere que o huma­
nismo europeu o vê, primeiramente e antes de tudo, como uma obra de
arte. Os direitos humanos são, na verdade, direitos de arte, mas aplica­
dos aos seres humanos. De fato, no despertar do Iluminismo, o ser hu­
mano não é definido, essencialmente, como mente e alma, mas como
um corpo entre outros corpos e, em última análise, como uma coisa
entre outras coisas. No que diz respeito a coisas, no entanto, não há um
conceito além do conceito de arte que permita dar precedente a certas
coisas acima de todas as outras, ou seja, emprestar-lhes uma digni­
dade específica de inviolabilidade física não garantida a outras coisas.
É por isso que a pergunta sobre o que é arte, no contexto da
cultura europeia, não é uma questão específica da arte. Os critérios
que utilizamos para distinguir obras de arte de outras coisas não são,

218
pode-se assim dizer, dessemelhantes dos critérios aplicados para
distinguir o humano do desumano. Ambos os processos - o reco­
nhecimento de certas coisas como obras de arte e o reconhecimento
de certos corpos e suas posturas, ações e atitudes como humanos -
estão inseparavelmente conectados um ao outro na tradição euro­
peia. Assim, não é surpresa que o conceito de biopolítica, introduzido
por Michel Foucault na discussão em décadas recentes e ampliado
por outros autores, especialmente Giorgio Agamben, tenha tido tom
crítico desde o começo. Compreender os seres humanos como uma
espécie animal - mais precisamente como gado - é, quase automa­
ticamente, desmerecer sua dignidade. Isso também é verdade - es­
pecialmente verdade - quando esse entendimento torna mais fácil
tomar mais cuidado com o bem-estar físico desse animal humano.
Seres humanos somente podem ser verdadeiramente dignos se pude­
rem ser concebidos como obras de arte - ou melhor, como obras de
arte que eles próprios produzem enquanto artistas. Esse conceito do
ser humano é a base para todas as utopias humanistas, que compre­
endem seres humanos individuais e, em última instância, a comu­
nidade e o Estado como obras de arte. Surge, pois, a questão: o que
estamos prontos para aceitar como arte e quais critérios existem para
aceitarmos certas coisas como tal? Poderia parecer que, somente ao
responder que a arte é local para tornar-se humano, elã nos permi­
tirá ver o que seres humanos realmente são - ou seja, aqueles seres
humanos aos quais se garantem direitos humanos e que podem ser
considerados os sujeitos da democracia.
Sabemos, no entanto, que, ao formularmos a questão dessa forma,
não haverá uma resposta clara para elã. Principalmente sobre o curso
da arte moderna, todos os critérios que poderiam claramente distin­
guir uma obra de arte de outras coisas foram colocados em questão.
Pode-se dizer que a arte europeia seguiu rigorosamente o caminho de
sua própria desculturalização. Todos os mecanismos tradicionais para
identificar a arte profundamente ancorada na cultura europeia foram
criticados, questionados e declarados inadequados. Uma depois da
outra, ondas da vanguarda europeia declararam haver obras de arte
que não haviam sido identificadas como tal. Isso não era, como muitos
pensam, uma questão de expandir o conceito de arte. Não é que, no

219
curso do desenvolvimento da arte, um conceito de arte cada vez mais
compreensível e mais universal tenha sido formulado, e aos quais con­
ceitos de arte mais antigos e parciais talvez tenham sido subordina­
dos. Nem era uma questão de refutar ou superar os antigos critérios
supostamente ultrapassados para identificar a arte, nem era o caso de
substituí-los por outros novos; era uma questão de diversidade, dife­
renciação e multiplicação desses critérios.
Algumas vezes uma coisa era declarada obra de arte porque era
bonita, outras porque era particularmente feia; algumas vezes, a es­
tética não exercia papel algum, certas coisas estão em museus porque
foram criadas para tanto ou porque eram típicas de seu tempo; por­
que registram personalidades históricas importantes, ou porque seus
autores se recusaram a retratar personalidades e eventos históricos
importantes; porque elas correspondem ao gosto popular ou porque
o rejeitam; porque foram concebidas desde o começo como obras de
arte ou porque só se tornaram assim ao serem colocadas em um mu­
seu; porque eram especialmente caras ou especialmente baratas etc.
E, em vários casos, tais obras de arte são encontradas em coleções de
museu somente porque foram parar lá por acaso, e os curadores de
hoje não têm nem o direito nem a energia para eliminá-las. Tudo isso,
e muito mais, é arte para nós hoje. As razões que temos disponíveis
para reconhecer alguma coisa como arte não podem, assim, ser re­
duzidas a um conceito. É por isso também que a arte europeia não
pode ser claramente diferenciada daquela de outras culturas. Quando
os museus europeus começaram a se desenvolver no final do século
XVIII e no princípio do século XIX, eles aceitaram obras de arte que
eram tanto de origem europeia quanto não europeia - mais uma vez,
com base nas analogias, oposições, semelhanças e diferenças que co­
nectavam todos esses objetos. Nossa compreensão da arte é, portan­
to, determinada por vários tropos retóricos, por inúmeras metáforas
e metonímias que estão constantemente atravessando fronteiras entre
a nossa própria e a do outro, sem eliminá la ou desconstruí-la. Todos
os motivos para reconhecer algo como obra de arte são parciais, mas
sua retórica geral é, inequivocamente, europeia.
Essa retórica, como bem sabemos, era aplicada repetidamente
à área do humano também. De Flaubert, Baudelaire e Dostoiévski,

220
passando por Kierkegaard e Nietzsche, Bataille, Foucault e Deleuze,
o pensamento europeu reconheceu como uma manifestação do hu­
mano muito do que, anteriormente, era considerado mau, cruel e de­
sumano. Assim como no caso da arte, esses autores e vários outros
aceitaram como humano não somente aquilo que se revela humano,
mas também aquilo que se revela desumano - e exatamente porque
se revela desumano. A questão, para eles, não era incorporar, integrar
ou assimilar o estrangeiro dentro do próprio mundo, mas, ao contrá­
rio, entrar no estrangeiro e tornar-se conforme a sua própria tradição.
Em minha opinião, não é necessário demonstrar aqui que esses au­
tores, assim como incontáveis outros na tradição europeia, não po­
dem ser facilmente integrados no discurso dos direitos humanos e da
democracia. No entanto, esses autores, talvez como nenhum outro,
pertencem, por esse motivo, à tradição europeia, porque manifestam
uma solidariedade interna com o outro, com o forasteiro, até mes­
mo com o ameaçador e cruel, que está muito mais fundo e nos leva
mais além que um simples conceito de tolerância. A obra de todos
esses autores é uma tentativa de diagnosticar, no interior da cultura
europeia, as forças, os impulsos e as formas de desejo que são, em
terras estrangeiras, territorializadas. Assim, esses autores mostraram
que a característica verdadeiramente única das culturas europeias
consiste em tornar alguém permanentemente estrangeiro ao anular,
abandonar e negar esse alguém - e fazê-lo de forma mais radical que
qualquer cultura que conhecemos jamais conseguiu fazer. De fato,
a história da Europa é nada além da história de rupturas culturais,
uma constante rejeição às tradições de alguns.
Isso certamente não significa que o discurso sobre direitos huma­
nos e democracia seja deficiente por natureza ou que não deva ser apro­
fundado. Isso significa, simplesmente, que esse discurso não deveria
servir ao objetivo de diferenciar a cultura europeia de outras culturas
como, infelizmente, acontece cada vez mais frequentemente hoje em
dia. Os outros, os estrangeiros, são identificados primeiramente como
aqueles que, necessariamente, não têm respeito pelos direitos huma­
nos nem habilidade para a democracia e a tolerância, apenas porque
esses valores são considerados especificamente europeus por defini­
ção. Assim, esses forasteiros que chegam à Europa são conduzidos pelo

221
caminho infinito da chamada integração, que jamais poderá levar a seu
objetivo, pois o reconhecimento público dos valores europeus pelos es­
trangeiros é inevitavelmente suspeito, e pode sempre ser interpretado
como aprovações da boca para fora, que esconde a convicção interna
verdadeira em vez de revelá-la. Espera-se de forasteiros, hoje, que não
somente aceitem abertamente o catálogo de valores supostamente eu­
ropeus, mas que também o internalizem - um processo cujo sucesso
jamais poderá ser julgado “objetivamente” e, por isso, deve permane­
cer inacabado por toda a eternidade.
Se o discurso sobre direitos humanos e democracia não pode
trazer justiça para o estrangeiro, então ele também é injusto em
relação à verdadeira tradição europeia, porque, como mostramos,
ignora tudo o que não cabe nele. Essa parte “maldita” da tradição
cultural europeia é, portanto, geralmente dispensada por ser “mera
arte” . A tendência, na política, de tratar a arte como uma das be­
las irrelevâncias e de ignorar sua relevância política é bastante co­
nhecida. Essa tendência até aumentou significativamente, hoje em
dia, o que é especialmente implausível, porque vivemos, agora, num
tempo em que a maioria das informações é comunicada por meios
visuais, inclusive a informação política. Foi exatamente em conexão
com os debates sobre o Islã político que, recentemente, se tornaram
agudos, que o papel do visual aumentou. Problemas politicamente
explosivos são detonados quase exclusivamente por imagens: dese­
nhos animados dinamarqueses, mulheres por trás de véus, vídeos de
Bin Laden. Fundamentalistas islâmicos abordam o mundo externo
principalmente através do veículo vídeo - apesar da suposta hos­
tilidade islâmica contra imagens. Mas até mesmo um exemplo bem
mais simples demonstra o que acontece hoje: quando a questão sobre
o multiculturalismo é discutida na TV, o visual é, inevitavelmente,
de uma cidade europeia dominada por pedestres cujas cores de pele
diferem daquelas da população “original” europeia. Isso dá a im ­
pressão de que a cultura, de fato, funciona aqui como um pseudôni­
mo de raça. Como resultado, simplesmente transferir certo discurso
para o visual o torna racista - ainda que isso não seja explicitamente
seu interesse. Assim, a dependência da política atual em imagens
com as quais elã trabalha é óbvia.

222
É parte do repertório tradicional da arte europeia retratar al­
guém como um estrangeiro perigoso e cruel. Foi assim que Nietzsche
se apresentou como enviado da Ü b erm en sch , e Bataille como um ad­
vogado de rituais astecas cruéis. Essa tradição de apresentar-se como
um estrangeiro começou, no mais tardar, com o Marquês de Sade e
se desenvolveu, durante o período gótico do Romantismo e seu cul­
to ao satanismo, como uma das principais tradições da arte europeia.
E elã não era sempre restrita à arte. Já no século XIX havia muitos artis­
tas e intelectuais que não somente simpatizavam com o terrorismo, mas
também participavam ativamente de atos terroristas. O fato de algumas
crianças e netos de famílias imigrantes de países islâmicos que cresce­
ram na Europa professarem uma variante radical e fundamentalista do
Islamismo é frequentemente interpretado como um sinal de que esses
jovens não foram adequadamente integrados à cultura europeia. Mas
questiona-se, na verdade, se não seria o contrário: eles se integraram
muitíssimo bem à cultura europeia - mas exatamente à tradição des­
sa cultura que pede para que se “viva perigosamente” . Se a tradição
da cultura e da arte europeias é compreendida em sua diversidade
e contradições internas totais, a questão de quem está ou não integrado
nessa cultura toma uma forma completamente diferente. Aqueles que
estão prontos para ver a herança cultural da Europa em sua totalidade
notarão que é bastante difícil e quase impossível escapar desse lega­
do e fazer algo genuinamente não europeu, genuinamente estrangeiro
para a cultura europeia. O poder da cultura europeia está, precisamen­
te, na produção constante de seu Outro. Se há alguma coisa que seja
única na cultura europeia é essa habilidade de produzir e reproduzir,
não somente a si, mas também a todas as alternativas possíveis de si.
É claro que, em tempos recentes, ouvimos o lamento de que a arte
europeia perdeu a habilidade de quebrar tabus culturais, de transcen­
der os limites da identidade cultural europeia e de influenciar a vida
política e a consciência pública. A subestimação, em nosso tempo, do
efeito da arte na consciência pública está relacionada, acima de tudo,
ao fato de que a arte é identificada, primeiro e principalmente, com
o mercado de arte e a obra de arte com a mercadoria. Não há dúvi­
da de que a arte funciona no contexto do mercado de arte e que toda
obra de arte é mercadoria; elã é, no entanto, além de mercadoria, uma

223
afirmação em espaço público. A arte também é feita e exposta para
aqueles que não querem comprá-la - na verdade, estes constituem
a grande maioria dos espectadores de arte. Visitantes típicos de uma
exposição de arte não veem a arte exposta como mercadoria, ou isso
acontece muito raramente. Ao contrário, eles reagem às ferramentas
por meio das quais os artistas individuais se posicionam no espaço
público como objetos de observação, porque, hoje, todos são obri­
gados, de uma forma ou de outra, a se apresentar no espaço público.
No processo, o número de exposições, bienais, trienais e assim por
diante, cresce constantemente. Essas inúmeras exposições, nas quais
muito dinheiro e energia são investidos, não são criadas, em primeiro
lugar, para os que compram arte, mas sim para as massas, para visi­
tantes anônimos que provavelmente nunca comprarão uma pintura.
Até mesmo as feiras de arte, que estão lá, a princípio, para compra­
dores, estão se transformando, mais e mais, em eventos em espaços
urbanos que atraem pessoas que não desejam ser compradores. Em
nosso tempo, o sistema de arte está bem no caminho de tornar-se par­
te da própria cultura de massa que ele, por tanto tempo, quis observar
e analisar de longe. Ele está se tornando parte da cultura de massa não
como produção de objetos individuais que são trocados no mercado
de arte, mas como uma exposição da prática que combina arquitetura,
d esig n e moda - exatamente como as figuras intelectuais orientado­
ras da vanguarda, tais como artistas da Bauhaus, Vkhutemas e outros
previram nas décadas de 1920 e 1930. Mas isso significa que a arte,
hoje, tornou-se completamente idêntica à cultura de massa e perdeu
completamente sua habilidade de transcender suas fronteiras e, con­
sequentemente, de refletir sobre si?
Não acredito nisso. A cultura de massa - ou de entretenimento -
tem uma dimensão normalmente ignorada, mas é extremamente rele­
vante para problemas de alteridade ou estranheza. A cultura de massa
aborda todo o mundo simultaneamente. Um show popular ou a exibi­
ção de um filme cria comunidades de espectadores. Essas comunidades
são transitórias; seus membros não se conhecem; sua composição é
arbitrária; permanece obscuro de onde todas essas pessoas vêm e para
onde vão; eles têm pouco ou nada a dizer um para o outro; eles não
possuem uma identidade compartilhada, uma pré-história comum que

224
poderia ter produzido memórias comuns que eles poderiam compar­
tilhar - e, apesar de tudo isso, eles são uma comunidade. Estas fazem
lembrar as comunidades de pessoas viajando de trem ou de avião. Em
outras palavras, são comunidades radicalmente contemporâneas - bem
mais contemporâneas que comunidades religiosas, políticas ou uniões
trabalhistas. Todas essas comunidades tradicionais surgiram histori­
camente e presumem que seus membros estejam conectados uns aos
outros desde o início por alguma coisa que deriva do passado compar­
tilhado - linguagem, fé, ideologia política e educação compartilhadas -
que lhes permite exercer certo trabalho. Tais comunidades sempre têm
fronteiras definidas - e elas se isolam de todos aqueles com quem não
compartilham o passado.
A cultura de massa, ao contrário, cria comunidades independen­
tes de qualquer passado compartilhado, comunidades sem pré-requi­
sitos, comunidades de um novo tipo. Essa é a fonte de seu enorme po­
tencial de modernização, que é muito frequentemente negligenciada.
Mas a cultura de massa propriamente dita normalmente não é capaz
de refletir sobre isso e desenvolver esse potencial por inteiro, porque as
comunidades que cria não se percebem suficientemente como comu­
nidades. O olhar dos espectadores de um show popular ou da exibição
de um filme é direcionado demasiadamente para a frente - em direção
ao palco ou à tela - para que eles sejam adequadamente capazes de
perceber e refletir sobre o espaço em que se encontram e sobre a co­
munidade da qual se tornaram parte. Isso, no entanto, é exatamente
o tipo de reflexão com a qual a arte avançada se preocupa hoje, seja
uma instalação de arte, seja uma prática de curadoria experimental.
Em todos esses casos, os objetos não são expostos em certo lugar; ao
contrário, o próprio espaço se torna o principal objeto de percepção,
a verdadeira obra de arte.
Nesse espaço, o corpo dos observadores individuais assume certa
posição, da qual estes estão, necessariamente, cientes, porque ao refle­
tirem sobre o espaço inteiro da exposição se sentem compelidos a refle­
tir, da mesma forma, sobre sua própria posição, sua própria perspectiva.
A duração de uma visita a uma exposição é, necessariamente, limitada
- e isso significa que as perspectivas individuais de observadores sem­
pre permanecem parciais, porque eles não têm tempo de experimentar

225
todas as posições e perspectivas possíveis que um local de exposição
os oferece. Observadores de uma instalação de arte que demanda de­
les um olhar que envolve tudo no espaço inteiro da instalação não se
sentem, portanto, dispostos para o desafio. A arte atual de exposições
e instalações não é, entretanto, direcionada a observadores indivi­
duais que observam obras de arte individuais uma após a outra, mas
a comunidades de observadores que podem assimilar a sala inteira,
simultaneamente, com o olhar. Assim, a arte hoje é social e política
num nível puramente formal, porque reflete sobre o espaço de mon­
tagem, sobre a formação da comunidade e faz isso independente -
mente de o artista individual ter em mente uma mensagem política
específica ou não. Mas, ao mesmo tempo, essa prática da arte con­
temporânea demonstra a posição do estrangeiro na cultura de hoje de
forma muito mais adequada que o discurso político padrão. Porque eu,
como indivíduo, não posso assimilar o todo; eu devo, necessariamen­
te, negligenciar alguma coisa que só pode estar evidente para o olhar
de outros. Esses outros, no entanto, de forma alguma estão cultural­
mente separados de mim: eu posso imaginá-los em meu lugar, assim
como posso me imaginar no lugar deles. Aqui, a intercambialidade de
corpos no espaço torna-se evidente e determina nossa civilização hoje
como um todo. O familiar e o estranho estão trocando constantemente
de lugar - e esse balé global não pode ser parado à vontade, porque
essa troca constante de lugares oferece a única maneira de diferenciar
o familiar do estranho que permanece aberta para nós.

(“Europe and Its Others” , não publicado. Tradução para o inglês de Steven Lindberg.)

226
NOTAS

INTRODUÇÃO 5 T. de Duve, Kant after D u cha m p, Cambridge,


Mass., MIT Press, 1998, p. 132-133.
1 Nova Política Econômica, implementada por
Lênin a partir de 1921 com a finalidade de 6 G. W. F. Hegel, Vorlesungen ü b er d ie Ä sth etik ,

restaurar algumas práticas capitalistas vigentes Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1970, v. 1, p. 25.
antes da Revolução de 1917 e, assim, estimular
7 Veja: B. Groys, Simulated Ready-mades por
a nascente economia soviética.
Fischli/Weiss, Pa rkett, n. 40/41, p. 25-39,1994.

A L Ó G I C A D OS D I R E I T O S
SOBRE CURADORIA
E S TÉ T I CO S IGUAIS
1 G. Agamben, Propfanierungen, Frankfurt,
1 A. Kojève, Introduction to the R ea d in g o f H egel,
Suhrkamp, 2005, p. 53.
org. Raymond Queneau, Ithaca, Comei University
Press, 1980, p. 5-6. 2 J. Derrida, La d issém in a tion , Paris, Editions du
Seuil, 1972, p. 108-109.
2 Ibidem, p. 258-259.
3 O. Pamuk, M y N am e Is Red, New York, Alfred
S O B R E 0 NOV O Knopf, 2001, p. 109-110.

1 K. Malevich, On the Museum, em E ssays on A rt,


A A R T E NA E R A DA B I 0 P 0 L Í T I C A
New York, George Wittenbom, 1971, v. 1,
p. 68-72. 1 Veja: B. Groys, Unter Verdacht: Eine
Phänomenologie der Medien, Munich, Carl
2 Idem, A Letter from Malevich to Benois, em
Hanser Verlag, 2000, p. 54.
E ssays on A rt, New York, George Wittenbom,
1971, v. 1, p. 48. 2 G. Agamben. H om o Sacer: Sovereign Power and
Baré Life, Stanford, Stanford University Press,
3 D. Crimp, O n the M useum ’s Ruins, Cambridge,
1998, p. 166. Originalmente publicado como
Mass., MIT Press, 1993, p. 58.
H om o sacer: Il potere sovrano e la nuda vita,
4 A. Danto, A fter th e End o f Art: Contemporary Art Turin, Giulio Einaudi Editore, 1995.
and the Pale of History, Princeton, Princeton
3 Veja também: J.-F. Lyotard, The Différend: Phrases
University Press, 1977, p. 13-14.
in dispute, Manchester, Manchester University

229
Press, Minneapolis, Minnesota University Press, Schocken Books, 1986, p. 190. Primeira
1988. Originalmente publicado como L e Différend, publicação como D er Surrealism us.

Paris, Editions de Minuit, 1983. D ie letzte M om en tau fna hm e d er eropäischen

Intelligenz, D ie Literarische W elt, 1929, p. 5-7.


4 Veja: Kollektivnye Deystviya: Pojezdki za gorod,
1977-1998, Moscou, Ad Marginem, 1998. Veja
IC0N0CLASTIA C0M0
também: H. Klocker, Gesture and the Object.
INSTRUMENTO ARTÍSTICO
Liberation as Aktion: A European Component
of Performative Art, em O u t o f Actions: 1 Conforme B. Groys, Das Leidende Bild/

Between Performance and the Object, 1949- The Suffering Picture, em D a s Bild n ach dem

1979 (catálogo da exposição), Los Angeles, L etzten Bild, ed. Peter Weibel und Christian

The Museum of Contemporary Art, Vienna, Meyer, Vienna/Cologne, W. König, 1991,

Österreichisches Museum für Angewandte p. 99-111.

Kunst, Barcelona, Museu d’Art Contemporani de 2 W. Benjamin, The Work of Art in the Age of
Barcelona, Tokyo, Museum of Contemporary Art, Mechanical Reproduction, em Uluminations,
1998-1999,p. 166-167. London, Fontana, 1992. Tradução de Harry Zohn.

T O P O L O G I A DA A U R A 3 Veja: G. Deleuze, C in em a 2; The Time-Image,


Minneapolis, Athlone, 1989.
1 W. Benjamin, The Work of Art in the
Age of Mechanical Reproduction, em 4 M. Bakhtin, R abelais an d H is World, Cambridge,

illuminations, London, Fontana, 1992, Mass, MIT Press, 1968.

p. 214-215. Tradução de Harry Zohn da 5 G. Debord, The S o ciety o f th e Sp ecta cle, New
segunda versão do artigo de Benjamin. York, Zone Books, 1995.

2 Ibidem , p. 214. 6 M. Merleau-Ponty, V isib le e t n o n -v isib le, Paris,

3 Idem , Das Kunstwerk im Zeitalter seiner Gallimard, 1973.

technischen Reproduzierbarkeit, em 7 S. M. Eisenstein, M em uary, Moscou, Trud, 1997,


G esa m m elte S chriften , Frankfurt am Main, v. 1, p. 47.
Suhrkamp Verlag, 1974, v. 1, pt. 2 p ,. 437.
8 Groys, U nter Verdacht. E ine Phänom enologie der
Tradução da primeira versão do artigo de
M ed ien , Munich, Hanser, 2000.
Benjamin, originalmente publicado em
tradução francesa alterado, em “ Z e its c h r iftfü r 9 Veja: Deleuze, C in em a 1: The Movement-Image,
S o zia lfo rsch u n g ’’ , Paris, v. 5,1936. Minneapolis, Athlone, 1986.

4 Idem , The Work of Art in the Age of Mechanical


A C I D A D E NA E R A DA
Reproduction, p. 217.
REPRODUÇÃO TURÍSTICA
5 Idem , R eflection s: Essays, Aphorisms,
1 R. Descartes, D isco u rse on M eth od and
Autobiographical Writings, ed. Peter Demetz,
M edita tion s, Mineola, Dover, 2003, p. 9.
tradução de Edmund lephcott, New York,

230
2 I. Kant, C ritique o f Judgm ent, Indianapolis, Culturais do Partido Social-Nacionalista
Hackett, 1987, p. 99. Alemão dos Trabalhadores), em Nürnberg,
7 de setembro de 1937, em R eden z u r K u n s t-u n d
3 Ibidem , p. 100.
K u ltu rp olitik 1 9 3 3 -19 3 9 , p. 145.
4 K. Rosenkranz, Ä ste tik d es H ässlichen, Leipzig,
Reclam Verlag, 1990, p. 20. E D U C A N D O AS M A S S A S

1 K. Malevich, On the Museum, em Essays on Art,


0 C O R P O DO H E R Ó I
New York, George Wittenbom, 1971, v. 1, p. 68-72.
1 A. Hitler, Die deutsche Kunst als stolzeste
2 Y. Tugendkhol’d, Isku sstvo oktia br’sk oi epokhi,
Verteidigung des deutschen Volkes, apresentação
Leningrad, 1930, p. 4.
para Kulturtagung des Parteitags der NSDAP
(Conferência sobre Politicas Culturais do Partido 3 A. A. Zhdanov, Essays on Literature, Philosophy,

Social-Nacionalista Alemão dos Trabalhadores) and M u sic, New York, 1950, p. 88-89, 96.
em Nürnberg, 3 de setembro de 1933, em Reden
4 Citado em: N. Dmitrieva, Das Problem des
zu r K u n st-u n d Kulturpolitik 19 3 3 -19 3 9 , Frankfurt,
Typischen in der bildenden Kunst und Literatur,
Revolver-Verlag, 2004, p. 44-45.
K u n st u n Literatur, n. 1, p. 100,1953.
2 Ibidem , p. 52.
5 B. Ioganson, O m erakh u lu chshen iia u

3 Ibidem , p. 47. ch eb n o -m eto d ich esk o i raboty v uchebnykh


zaved en iia kh A k a d em ii K h u d o zh estv S SSR , Sessii
4 Idem, Kein Volk lebt länger als Dokumente
Akademii Khudozhestv SSSR. Pervaia i vtoraia
seiner Kultur, apresentação para Kulturtagung
sessiia, 1949, p. 101-103.
des Parteitags der NSDAP (Conferência
sobre Politicas Culturais do Partido Social- 6 C. Greenberg, Collected Essays and Criticism,

-Nacionalista Alemão dos Trabalhadores), Chicago, University of Chicago Press, 1986, v. 1, p. 17.
em Nürnberg, Il de setembro de 1935, em
7 Sobre a relação entre a vanguarda
Reden zur Kunst-und K u ltu rp o litik 1 9 3 3 - 1 9 3 9 ,
russa e Realismo Socialista, veja: B. Groys, The
Frankfurt, Revolver-Verlag, 2004, p. 83.
Total A r t o f Stalinism : Avant-Garde, Aesthetic
5 Idem, Kunst verpflichtet zur Wehrhaftigkeit, Dictatorship, and Beyond, Princeton, Princeton
apresentação para Kulturtagung des Parteitags University Press, 1992.
der NSDAP (Conferência sobre Politicas
Culturais do Partido Social-Nacionalista A L É M DA D I V E R S I D A D E

Alemão dos Trabalhadores), em Nürnberg, 8


1 R. Barthes, L e D egré zero d e 1’écritu re, Paris,
de setembro de 1934, em R edenzur Kunst-und
Gouthier, 1965. Tradução para o inglês por
K u lturpolitik 1 9 3 3 - 1 9 3 9 , p. 75.
Annette Lavers e Colin Smith ( W ritin g D egree

6 Idem , Die grosse Kulturrede des Führers, Zero, London, Cape, 1967).

apresentação para Kulturtagung des Parteitags


2 F. Fukuyama, The End o f History a n d the L a st
der NSDAP (Conferência sobre Politicas
M an , New York, Free Press, 1992.

231
TÍTULO Arte, Poder

AUTOR Boris Groys

TIPOGRAFIA Família Knockout e Glosa Text

PAPEL Pólen Soft 80 g/m2

NÚMERO OE PÁGINAS 232

TIRAGEM 1.000

IMPRESSÃO E ACABAMENTO Imprensa Universitária UFMG

You might also like