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Análise de Ramifications de Ligeti utilizando Transformada Wavelet

Jônatas Manzolli, Andre Luiz Luvizotto


Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS)
Departamento de Musica, Unicamp
SPECS, Instituto Audiovisual
Universidade Pompeu Fabra, Barcelona, Espanha
jonatas@nics.unicamp.br

RESUMO

Este artigo apresenta um processo de análise com auxílio do computador da obra


“Ramifications” (1968-69) para orquestra de cordas ou 12 cordas solistas de Ligeti. A análise toma
como ponto de vista o automatismo no mecanismo variacional das alturas e o processo de
entrelaçamento temporal de camadas na obra de Ligeti. O objetivo do texto é mostrar que para
obras neste contexto textural, o uso da Transformada Wavelet pode desvendar aspectos da
complexa construção do compositor.
Palavras-chave: Ligeti, Análise, Textura, Wavelet

ABSTRACT

This article presents a computer assisted music analysis of Ligeti’s Ramifications (1968-69),
for string orchestra or 12 soloist strings. It takes as point of view the automatism applied to pitch
transformations and procedures for time nesting of layers in Ligeti’s works. The objective of the text is
to show that for textural pieces composed in this context, the use of Wavelet Transform could be a way
to reveal the composer’s complex build.
Keywords: Ligeti, Analysis, Texture, Wavelet

1 Introdução

A obra de György Ligeti (1923-2006) traz consigo o pensamento de um compositor


que demonstrou grande autonomia e autenticidade no contexto da música da segunda
metade do século passado até os nossos dias. Por não estar notadamente vinculado a
um movimento como o serialismo integral, a eletroacústica, a utilização do acaso ou
processos estocásticos, a sua linguagem parece transgredir os dogmas da transgressão
do Século XX. Figuram nas suas obras apenas duas composições eletroacústicas
“Glissandi” (1957) e “Artikulation” (1958), mas dialogou de forma contundente com
todos estes contextos. Ligeti foi um compositor que, ao desenvolver o complexo
sonoro, destacou-se na sua forma de lidar com o continuum, pois criou um discurso
textural peculiar. Nas próximas seções fazemos um levantamento de referências que
apontam para os dois aspectos importantes da obra de Ligeti que estão vinculados à
visão deste artigo, apresentamos um modelo de análise de complexidade textural e
discutidos o seu potencial ao analisarmos um breve trecho de “Ramifications”.

2 O Discurso Textural de Ligeti

Alguns autores, mencionados a seguir, apontam para duas características importantes


da linguagem composicional de Ligeti: o automatismo algorítmico com o qual
desenvolveu a sua escritura e a superposição de camadas na busca de textura
complexas. Numa primeira observação, podemos notar que estes dois pontos são
complementares, pois o automatismo cria os entrelaçamentos que constroem a
complexa teia de alturas que suporta as massas sonoras.

Em obras como o “Continuum” (1968) o desdobramento da complexidade da peça se


dá graças a forma como a técnica de interpretação do Cravo foi utilizada habilmente
por Ligeti. Com a repetição de padrões mecânicos no teclado desse instrumento,
Ligeti conecta a sonoridade discreta do cravo às nuances do continuum. Para isto, fez
uso de um processo iterativo, que pode estar associado a técnicas algorítmicas que
utilizam recursão (ou loops) para obter a aproximação numérica desejada. A
superposição de camadas, o mecanismo de defasagem e a articulação temporal são
processos que articulam simultaneamente o complexo de alturas e uma teia1 intricada
de figurações rítmicas em “Ramifications”. No que tange a hipótese analítica deste
artigo, estes mecanismos construtivos estão diretamente ligados a integração de
componentes de tempo e de freqüência que podem ser expressos pelo suporte da
Função Base da Transformada Wavelet que determina a resolução no domínio da
freqüência e a sua localização temporal que dá a resolução no domínio do tempo [vide
Luvizotto, 2007].

2.1 Automatismo Algorítmico

Clendinning (1993) destaca na sua análise o que chama composições baseadas em


padrões mecânicos. Ela também descreve as características de Ligeti relacionadas
com simultaneidade de camadas, cada uma delas com espaço intervalar pequeno,
repetição de padrões melódicos e variação gradual do material no decorrer da obra. A
peça “Continuum” (1968) é analisada em detalhes e a autora também mostra como
Ligeti desenvolveu esta técnica em outras composições como “Ramifications” (1968-
69). Para sua análise, Clendinning (1993) utiliza-se de gráficos que descrevem os
parâmetros variacionais aplicados por Ligeti à tessitura, à interação entre diferentes
padrões mecânicos, as respectivas taxas de variação e os pontos de transformação.
Outros autores também discutem as características da linguagem de Ligeti como
[Reiprich, 1978] que analisa a obra “Lontano” (1967) sob a ótica de que há um

1
Ligeti descreve um sonho quando criança e vincula a sua construção textural com a metáfora de uma teia de
aranha [Bernard, 1993; Saraiva, 2008].
pensamento canônico na peça devido a complexidade rítmica de cada uma das
camadas e o grande número de linhas canônicas que soam simultaneamente.
[Morrison, 1985-1986] analisa também aspectos relacionados a manipulação das
alturas nas Dez Peças para Quinteto de Sopros (1968) de Ligeti. Mais uma vez, estes
dois autores destacam a combinação do complexo das alturas com o entrelaçamento
do processo rítmico.

2.2 Complexo de Altura como Teia

Um dos aspectos mais estudados da obra de Ligeti é a utilização, na sua escritura, de


uma densa teia de estruturas intervalares denominada de micropolifonia. Ligeti
(Bernard, 1993) descreve sua técnica da seguinte forma:

"Complexa polifonia imbricada num fluxo harmônico-musical, no qual as harmonias não


mudam repentinamente, mas fundem-se uma nas outras; onde pode-se discernir
claramente que a combinação de intervalos é gradualmente desfocada e, a partir dessa
nebulosidade é possível discernir uma nova combinação intervalar tomando forma".

Como apresentado em [Roig-Francoli, 1995], nas obras micropolifônicas de Ligeti,


após a década de 60, não há mais neutralidade harmônica, mas sim uma
transformação intervalar progressiva dirigida a certas regiões de alturas. Este autor
denomina estas regiões de constelações e destaca que Ligeti desenvolve um processo
de construção de redes (net-structure) e usa para isto técnicas composicionais
baseadas num processo sistemático de iteração e transformação de um determinado
conjunto de parâmetros musicais. Exemplos podem ser encontrados em obras como
“Ramifications” (1968-69) e o Segundo Quarteto de Cordas (1968).

Nota-se nestas obras uma morfologia muito característica de Ligeti, são processos que
geram flutuações cromáticas vinculadas a microestruturas melódicas, transformação
do conteúdo harmônico por expansão e contração intervalar, transformação cromática
de tríades e no contexto geral as texturas resultantes sofrem transformações de
dinâmica, articulação e figuração rítmica. No tratamento rítmico, Ligeti cria um
processo de conexão de camadas com figuração rítmica variada. As alturas são
conectadas em rede e defasadas no tempo para produzir uma maior articulação da
textura da obra. Este aspecto da técnica de Ligeti aponta para uma composição que
insere mudanças tanto no domínio tempo (articulação rítmica em rede) quanto da
freqüência (transformação micro-intervalares) e, portanto, levou-nos a indagar sobre a
possibilidade de analisar este material com uma ferramenta computacional que
apontasse para mesma direção.

3 Análise por Transformada Wavelet

A Transformada Wavelet utilizada neste artigo foi alvo de estudo em [Luvizotto,


2007] onde verificou-se o potencial desta metodologia na representação de sinais
musicais. Como ampliação deste trabalho, utilizamos neste artigo a mesma
metodologia como ferramenta de análise aplicada às características texturais de
“Ramifications (1968-69)”.

3.1 Modelo Sonoro


Fazemos aqui uma introdução ao processo de análise utilizando o “Poème
Symphonique” (1962) para 100 metrônomos de Ligeti. Essa obra evidencia o modo
de operar sobre estruturas temporais desenvolvido em diversas das suas composições.
No “Poème” há superposição de 100 camadas temporais, cada uma relacionada com
um pulso diferente que é controlado individualmente por cada metrônomo. A medida
em que a peça se desenvolve, a sonoridade resultante gradualmente vai perdendo
camadas da massa sonora. Como se o compositor utilizasse um filtro para retirar
gradualmente o conteúdo de cada camada. Na análise com a Transformada Wavelet,
realizam-se operações matemáticas que se comportam de forma similar ao processo
sonoro do “Poème” .

3.2 Transformada Wavelet

Existem pelo menos duas maneiras de abordar a Teoria sobre Wavelets: uma é através
das Transformadas Contínuas e outra através de Análise em Multi-Resolução (MRA).
Sendo que a segunda é a abordagem utilizada neste trabalho. A MRA possibilita
decompor um sinal f(t), com t ∈ R, em aproximações sucessivas de resolução cada
vez menor, numa sequência de processos de filtragem consecutivos. Na MRA duas
funções são utilizadas: a Wavelet e a Função de Escala, que são ortogonais entre si. A
função Wavelet é utilizada para gerar um filtro passa-altas2 que dá origem aos
chamados Coeficientes de Detalhes (CD) do sinal; a função de escala, com oscilações

2
A expressão “passa-alta” descreve o comportamento de um filtro que dada uma freqüência de corte deixa passar
somente as componentes do espectro com valor frequencial acima deste valor.
em baixas frequências, é utilizada para criar um filtro passa-baixas responsável pelos
chamados Coeficientes de Aproximação (CA) [vide Luvizotto, 2007].

4 Análise

Para a implementação da análise foi escrito um programa em linguagem Matlab, as


wavelets escolhidas foram as da família Daubechies [vide Luvizotto, 2007] e o
arquivo digital de áudio (PCA, 44.1 Khz, 16 bits) foi a gravação da obra da Deutsches
Grammophon executada pelo Ensemble Intercontemporain, sob a regência de Pierre
Boulez em março de 1982 no IRCAM, Paris, com produção de Rudolf Werner. As
informações básicas sobre a peça são: “Ramifications” (1968-69) foi escrita para
orquestra de cordas ou 12 cordas solistas; a peça é constituída por dois grupos de seis
instrumentos de cordas: Grupo I (Violinos 1, 2, 3 e 7, Viola 1 e Cello 1) e o Grupo II
(Violinos 2, 4, 6 , Viola 2 e Cello 2 e Contrabaixo); o Grupo I deve ser afinado um
quarto de tom acima.

4.1 Descrição do Trecho Analisado

Nos compassos (1 e 2) da fig. 01 vê-se que os violinos do Grupo I articulam um


padrão de alturas em torno da nota Lá3 (440 Hz). A figuração rítmica foi construída
com a superposição de grupos de 6, 5, 4 e 3 notas por unidade de tempo. Para
manipular internamente a interação entre as camadas, Ligeti utiliza-se também de
pausas dentro das figurações rítmicas de cada instrumento. O Grupo II tem a mesma
construção, todavia a entrada dos instrumentos se dá um tempo depois do Grupo I.
Outro aspecto que podemos verificar na fig. 01 é que a Viola 1, Cello 1 e o Cello 2
executam notas pedais (tenuto senza vibrato). Há um padrão automático de alturas
em torno da nota Lá3 (440 Hz), mas ao mesmo tempo vê-se pela partitura que há uma
intricada figuração rítmica. Portanto, de um lado Ligeti traz estabilidade fixando a
nota de referência e do outro instabilidade através da figuração rítmica.

4.2 Ajustando Camadas e Coeficientes

Como apresentado em 3.2 são os valores dos dois tipos de coeficientes que vão
descrever o conteúdo espectral da obra em análise. Em cada nível de resolução, seja
para os detalhes (CD) ou a aproximação (CA), a sonoridade encontrada é única, pois é
consequência da ortogonalidade entre as Wavelet e a Função de Escala. Desta forma,
geramos novas camadas associadas a Transformada Wavelet e podemos, então,
comparar o seu conteúdo espectral com as camadas criadas por Ligeti. Dada a
extensão do artigo, analisamos apenas o trecho inicial de “Ramifications”, ou seja, os
24 segundos iniciais da peça que refletem o desdobramento dos elementos iniciais
apresentados no trecho da partitura da fig. 01.

Fig. 01 – Partitura de “Ramifications” mostrando a instrumentação, a divisão dos grupos instrumentais,


a figuração rítmica e os padrões intervalares automáticos.

4.2 Análise Wavelet


A resolução em freqüência da Função Wavelet utilizada foi dada em níveis de oitava,
sendo que a freqüência de corte mais alta foi de (CD1) 24KHz, seguido de (CD2)
12KHz, (CD3) 6KHz, (CD4) 3KHz, (CD5) 1,5KHz, (CD6) 750Hz, (CD7) 375Hz,
(CD8) 187,5Hz. Foi utilizado apenas um nível de aproximação (CA1) com freqüência
de corte 93,75Hz. A fig. 02 apresenta em todos os seus detalhes a complexidade da
sonoridade dos primeiros 24 segundos da peça, é pertinente perguntar se dentro destas
camadas o conteúdo da sonoridade da nota Lá3 continua presente. Queremos verificar
se o nível de detalhamento da wavelet é capaz de discriminar os transientes gerados
pela figuração rítmica (resolução no tempo) e a presença da nota pivô (resolução em
freqüência). Pela resolução em oitavas adotada, as camadas CD7 e CD6 devem conter
detalhamento do La3 (440Hz). Reiteramos que as duas camadas não contém somente
esse detalhamento, mas o seus conteúdos espectrais devem mostrar uma concentração
em torno desta freqüência. A fig. 03 apresenta os espectrogramas das camadas CD6 e
CD7, neles vê-se claramente que há um padrão de energia do espectro em torno da
nota pivô.

Fig. 02 – Analise wavelet do trecho de”Ramification”. Cada linha é uma camada de coeficientes, sendo
que, de cima para baixo, há 08 camadas de detalhamento e 01 de aproximação.

Fig. 03 –(esquerda) Conteúdo espectral da camada de detalhe CD6 de 375 a 750Hz; (direita) conteúdo
espectral da CD7 de 187,5 a 375Hz. (escala linear, freq. Na vertical e tempo na horizontal). Como
grifado nas duas imagens, em cada um dos dois gráficos há concentração da energia em torno da nota
La2 (220 Hz) e La3 (440Hz).
5 Discussão e Conclusão

A obra peculiar de Ligeti fomentou o método de análise apresentado neste artigo.


Dentro da diversidade que representa a sua produção, notam-se dois aspectos
invariantes: a construção de um complexo de altura dando origem a micropolifonia
(Roig-Francoli, 1995) e a utilização de padrões mecânicos para desdobrar massas
sonoras (Clendinning, 1993). Entendemos que Ligeti manipulou o complexo sonoro
criando transformações na freqüência e no tempo que foram associados neste artigo a
resolução da Transformada Wavelet. Pudemos então gerar oito camadas de
detalhamento e uma de aproximação. Ao associá-las às próprias camadas criadas por
Ligeti, visualizamos as transformações na textura do trecho inicial de
“Ramifications”. Para as próximas etapas do trabalho faremos uma análise
comparativa de outras trechos desta obra e para tanto necessitamos ampliar as rotinas
do programa do Matlab e verificar os pontos importantes para segmentar a obra.
Pretendemos estudar também composições de outros compositores com
características similares a Ligeti no que tange ao discurso textural.

Referências

BERNARD, Jonathan W. “States, Events, Transformations”. In: Perspectives of New Music.


Vol. 31:1, p. 164-171, 1993.

LUVIZOTTO, Andre Luiz. “Modelos de Representação de Sinais Musicais via Transformada


Wavelets”. Dissertação de Mestrado defendida no Faculdade de Engenharia Elétrica da
Unicamp, 2007.

CLENDINNING, Jane Piper. "The Pattern-Meccanico Compositions of Gyorgy Ligeti."


Perspectives of New Music 31 (1993): 193-234.

KINZLER, Hartmuth. "Gyorgy Ligeti: Decision and Automatism in Désordre, 1re etude,
Premier Livre." Interface: Journal of New Music Research 20.2 (1991): 89-124.

MORRISON, Charles D. "Stepwise Continuity as a Structural Determinant in György Ligeti's


Ten Pieces for Wind Quintet." Perspectives of New Music 24 (1985-1986): 158-182.

REIPRICH, Bruce. "Transformation of Coloration and Density in Gyorgy Ligeti's Lontano,"


Perspectives of New Music (Spring-Summer 1978): 167-180.

ROIG-FRANCOLI, Miguel. "Harmonic and Formal Processes in Ligeti's Net-Structure


Compositions," Music Theory Spectrum 17 (1995): 242-267.

SARAIVA, Lourdes. “O Coro dos Contrários em White on White de Gyorgy Ligeti: aspectos
da organização formal”. In: IV Jornada de Pesquisa e XVIII Seminário de Iniciação
Cientifica, 2008.
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/musica.htm.

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