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PARA COMUNICAR O INCOMUM

Organização
Danielle Naves de Oliveira
Maurício Liesen

PARA COMUNICAR
O INCOMUM
Escritos em homenagem aos 70 anos
de Ciro Marcondes Filho
Direção Editorial
Claudiano Avelino dos Santos

Coordenação Editorial
Claudenir Módolo Alves

Produção Editorial
Editora Paulus

Capa
Mariane Roccelo

Diagramação
Gledson Zifssak – Kalima Editores

Revisão
Danielle Naves e Maurício Liesen

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Para comunicar o incomum: escritos em homenagem aos 70 anos de


P237 Ciro Marcondes Filho / Organizado por Danielle Naves de Oliveira
e Maurício Liesen. São Paulo: Paulus, 2018.
72p.; 21cm. (Cadernos de comunicação)

Vários autores
ISBN 978-85-349-4864-7

1. Comunicação –Teoria 2. Filosofia da comunicação 3. Metáporo


4. Marcondes Filho, Ciro I. Naves, Danielle II. Liesen, Maurício

CDU - 316.77
CDD - 302.2

Índice para catálogo sistemático:

1. Comunicação : Teoria 316.77 (CDU) – 302.2 (CDD)


2. Comunicação : Filosofia 316.77 (CDU) – 302.2 (CDD)

1ª edição, 2018

© PAULUS – 2018
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 – São Paulo (Brasil)
Tel.: (11) 5087-3700 • Fax: (11) 5579-3627
paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-4864-7
Sumário

Prefácio............................................................................................................................. 8
Danielle Naves e Maurício Liesen

I. In-flexão

Ciro Marcondes Filho: a comunicação


como obsessão....................................................................................................... 15
Gustavo Castro

Homenagem a um mestre............................................................................. 23
Alice Mitika Koshiyama

A chama da comunicação e um mar de fogueirinhas................... 27


Frederico Tavares

Carta a um dos últimos mestres................................................................ 34


Alex Galeno

Poema n. 3............................................................................................................. 41
Max Emiliano Oliveira

II. Re-flexão

Duas perguntas metodológicas à Teoria


do Acontecimento Comunicacional:
um diálogo em construção........................................................................... 43
Ângela C. S. Marques e Luís Mauro Sá Martino

Devir-comunicacional e atmosferas epistêmicas


do metáporo no pensamento de Ciro Marcondes Filho............... 65
Mariana Nepomuceno e Raquel do Monte
Enfim, um teórico brasileiro da comunicação face a face?....... 87
Ana Maria Dantas de Maio

Sobre os abalos, o novo e as lágrimas: um estudo sobre


a construção do conhecimento comunicológico.............................. 110
Deodato Rafael Libanio de Paula

Da incomunicação ao metáporo:
Para o retorno do humano à comunicação.......................................... 152
Míriam Cristina Carlos Silva, Paulo Celso da Silva
e Tarcyanie Cajueiro dos Santos

Voltar a sentir: nuances da nova teoria da comunicação............. 183


Vanessa Matos dos Santos

III. Re-fração

Uma concepção diferente do fenômeno comunicacional:


a percepção da realidade e do eu no budismo................................... 225

Ana Paula Gouveia

Televisão e ideologia: a violência a serviço


da dominação na ficção seriada................................................................. 283

Andrei Maurey

O encontro da Educomunicação com a


Nova Teoria da Comunicação.................................................................... 332
Eliany Salvatierra Machado

Mídia e metáporo no movimento armorial:


o (ser)tão nordestino num acontecimento comunicacional....... 365
Giselle Gomes
Os limites do modelo da opinião pública de Luhmann
e a proposição do contínuo atmosférico mediático........................ 395
Thiago Meneses Alves, Gustavo Said e Camila Calado

Os apoios da FAPESP e uma postura intelectual revelada........ 428


Rodrigo Gabrioti

IV. Di-fração

Palavra, número, imagem e som: esquema


e acontecimento.................................................................................................. 450
Dieter Mersch

Outras obras de Ciro Marcondes Filho................................................ 469


Prefácio

Comum tecer do incomum: comunicar


Incomum tecer do comum: acontecer

Há no espanto algo que nos comunica, que chega a nós


por atravessamentos, desvios, e nos lança ao Outro. Se esse lan-
ce pode ser vivenciado, pensado e investigado, também calado
e nomeado, deve-se a alguns espíritos impetuosos que circulam
em nosso meio acadêmico. Tais espíritos costumam assombrar
quem prefere andar nos trilhos, seguir cartilhas, obedecer. Ao
mesmo tempo, aos que querem crescer livres e pensar, são so-
pradores de travessuras. Ciro Marcondes Filho é um soprador
de travessuras. Pesquisador, educador e pensador da comuni-
cação, sua trilha está ligada a propostas desconcertantes, ideias
que balançam ordens estabelecidas e desfazem lugares-comuns.
Não, não é nada fácil manter-se distante disso que chamam de
zona de conforto, tão almejada e valorizada em nossas socieda-
des atuais. O espanto cansa, consome, mas é somente nele – já
diziam os velhos gregos – que se gera o saber.
Um sopro de espanto, portanto, é o que nos motiva nes-
te momento a homenagear um mestre, vivo, que acaba de com-
pletar 70 anos. Além da gratidão afetiva de discípulos, temos
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também o sentimento de que é preciso discutir, ver, rever, ler,
criticar e dialogar com a obra de um dos mais expressivos pen-
sadores da comunicação em nosso país, intelectual de fôlego
e autor de extensa obra. Ao longo de sua trajetória acadêmica,
Ciro Marcondes Filho percorreu grande variedade de temas:
ainda como jovem aluno de mestrado, optou por uma inves-
tigação sociológica pouco convencional, na qual propôs um
novo método a partir da leitura do então marginal Lima Bar-
reto (1976); em seguida, no doutorado pela Universidade de
Frankfurt (1981), posicionando-se criticamente a Habermas,
tratou dos media em suas implicações ideológicas e de domi-
nação. De volta ao Brasil, nos anos 80, deu início a uma ampla
produção, não só de textos, mas também de ambiente propício
às discussões mais atuais. Assim, além das respeitadas refle-
xões sobre televisão, política e público, surgiram no começo
dos anos 90 os experimentos coletivos do NTC (Núcleo de
Estudos de Novas Tecnologias da Comunicação), com calo-
rosos debates publicados, entre outros, nos cadernos Atrator
Estranho. De tais pesquisas sobre tecnologias, complexidade
e caos, abriu-se mais um espaço, destinado à concepção de
uma Nova Teoria da Comunicação, tendo como fio condutor a
filosofia e, mais recentemente, a literatura e as artes. É preciso
ainda ressaltar a preocupação metodológica e epistemológica,
que perpassa toda sua obra.
As universidades brasileiras, salvo exceções, não culti-
vam o hábito de homenagear ou mesmo discutir a obra de seus
quadros vivos. Preferem que a posteridade se encarregue de jul-
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gar tais legados, lançando-os ou à sombra ou ao reconhecimen-
to, muitas vezes tardio. Isso se deve talvez a um pudor típico das
culturas latinas, que merece nosso respeito, pois a cultura têm
motivos que a própria cultura desconhece. Por outro lado, mui-
tos ambientes acadêmicos da Europa do Norte – trazemos aqui,
mais precisamente, o exemplo da Alemanha, país no qual Ciro
Marcondes Filho teve boa parte de sua formação – organizam
sistematicamente os chamados colóquios de jubileu para come-
morar a maturidade de seus professores mais célebres: uma festa
de aniversário, na qual tomam parte companheiros de viagem,
parentes de espírito e de sangue, amigos, mestres e alunos, inter-
locutores convergentes e divergentes.
É bom termos motivos para celebrar. A alegria ainda
é a prova dos nove para nós, sobreviventes e resistentes, num
país onde a vida para o espírito é cada vez mais desprestigiada,
quando não massacrada por medidas políticas e econômicas
impiedosas. Nossas universidades têm sido alvo de um projeto
de desmonte dificilmente reversível. Entre as consequências
do desmonte, vemos a decadência da carreira acadêmica, cada
vez menos atrativa para jovens intelectuais que precisam, sob
enorme pressão, adequar simultaneamente exigências interna-
cionais de produção às condições nacionais precárias de tra-
balho. Mais do que nunca, nossos mestres devem ser reconhe-
cidos e festejados. Mais do que nunca, a formação de novos
pesquisadores e pensadores críticos deve ser fomentada.
Ciro Marcondes Filho começou sua carreira acadêmica
sob um regime de tutela de liberdade. Nos anos 1970, jovem
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professor, teve suas aulas frequentadas por “olheiros” da dita-
dura militar e foi fichado pelo DEOPS, o temido Departamento
de Ordem Política e Social. Vários de seus colegas foram per-
seguidos e presos. Em 1975, morria Vlado Herzog, professor da
ECA e jornalista na TV Cultura de São Paulo. A universidade
era lugar cerceado, onde a liberdade precisava ser conquistada a
cada dia, reinventada e criativamente comunicada – não raro por
cifras, poemas, hermetismos de todas as ordens.
Por este e muitos outros motivos, Ciro Marcondes Filho
é um educador libertário. Com os alunos de graduação desen-
volve continuamente experimentos autopoiéticos, enviando-
-os à vivência para, a partir disso, elaborarem um pensamento
próprio, numa germinação teórica coletiva como a que se deu
recentemente nos “Festivais Metapóricos”. Aos orientandos de
mestrado e doutorado, não raro ávidos por conseguirem repro-
duzir o ethos acadêmico, pode vez ou outra soltar frases do
tipo: “Esteja pronto para conceber você mesmo a sua teoria”.
Como mestre, Ciro Marcondes Filho quebra o espelho, lança
os aprendizes a outras margens, não quer ser repetido nem pri-
mariamente mimetizado. Se pudermos ou quisermos imitá-lo,
que seja na postura crítica e afiada diante de qualquer consen-
so, que seja na permissão a sermos aptos a pensar e produzir o
que nos for de direito, que seja na autorização à inventividade
na teoria e na vida, que seja na capacidade de incentivarmos
o Outro (nossos alunos e pares) a ser livre, a seguir a pró-
pria estrela como ele segue a sua. Estamos, assim, diante de
uma tarefa enorme e complexa, aparentada ao ensinamento de
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Nietzsche: “Paga-se mal a um mestre, permanecendo sempre
o aluno”.
A proposta do presente livro faz parte dessa tentativa,
bastante paradoxal, de mimetizar o metabolismo libertário de
nosso professor. Por isso, não se trata de um livro ortodoxo,
mas aberto a contribuições diversas: poesia, carta, ensaio, arti-
go. Neste espírito, os textos apresentados aqui foram reunidos
de acordo com seu grau de relação, de atração, afinidade ou de
estranhamento com a obra de Ciro Marcondes Filho.
Com isso, o primeiro momento desta coletânea é tra-
duzido como uma breve in-flexão, entendida aqui tanto como
uma alteração ou desvio tonal no formato tradicional do traba-
lho acadêmico, quanto como um flexionar ou um dobrar para
dentro da relação, rumo a um contato mais próximo com o
autor, produto íntimo e testemunhal da amizade ou da partilha
entre mentor e discípulo.
Já os textos selecionados para a segunda parte deste
livro compõem uma espécie de cenário de re-flexão, ou seja,
um momento de dobra, desdobra e redobra do pensamento. Os
artigos e ensaios apresentados neste capítulo, portanto, debru-
çam-se uma vez mais sobre os principais conceitos e figuras
da obra de Ciro Marcondes Filho, seja para explicá-los, lan-
çar-lhes nova luz ou mesmo para problematizá-los. Reflexão,
portanto, entendida como crítica em um sentido mais pleno: o
de criar ou exibir delimitações, marcas, distinções.
Na terceira parte desta coletânea, estão agrupados tra-
balhos nos quais fragmentos teóricos da obra de Ciro Mar-
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condes Filho são deslocados para outros campos de sentido
e investigação, atuando como produtores ou mediadores de
diálogos imprevistos. O momento de re-fração é aquele onde
a teoria, em sua errância que lhe é inerente, alcança outros
planos sobre os quais o seu autor não possui mais qualquer
agência. A refração, portanto, é ao mesmo tempo uma quebra
e um atrator – estranho e familiar.
Ao modo de um epílogo, um texto ainda inédito em
português do filósofo alemão Dieter Mersch é apresentado
como um ponto de di-fração, ou seja, a um só tempo uma bar-
reira e uma fenda, um ponto de contato entre duas tradições de
filosofia próximas, embora distintas – a Filosofia da Comuni-
cação e a Filosofia dos Meios.
Por fim, gostaríamos de agradecer a todos os autores
que gentilmente contribuíram para a realização dessa homena-
gem. Também reiteramos aqui o nosso desejo de que seja uma
obra de acesso livre e gratuito, por isso a opção pelo formato
eletrônico. Há quase duas décadas, a obra de Ciro Marcondes
Filho vem sendo cuidadosamente publicada pela Paulus, casa
editorial à qual expressamos igualmente nosso agradecimento.
Querido Ciro, receba nossa homenagem e nosso abra-
ço, com votos de vida longa na Gaia Ciência que lhe é típica.
Queridos leitores, que esta obra lhes traga frutos e inspiração.

Danielle Naves e Maurício Liesen,


Marburg e Curitiba, outubro de 2018
IN-FLEXÃO
CIRO MARCONDES FILHO:
A COMUNICAÇÃO COMO OBSESSÃO

Gustavo Castro1

A constituição de uma mentalidade acerca da filosofia


da comunicação não existia entre nós antes de Ciro Marcon-
des Filho (CMF). Refiro-me especificamente à filosofia e não
às teorias da comunicação. Nos dias de hoje, ainda encontra-
mos um deserto de ideias no campo comunicacional, e os es-
tudos de CMF acabaram se tornando esteio e posto político. E
o anúncio mais claro dessa política das ideias era a noção de
liberdade. CMF instituiu (arvorou-se ou devolveu) ao campo
comunicacional o exercício dos livre-pensadores.
Creio que estamos vivendo a era da mimese teórica.
Teorias descem em cascatas nas cabeças de mestrandos e dou-
torandos sem que uma palavra lhes seja dita sobre a possibili-
dade de ser um livre-pensador. Também não é fácil dizer isto
a mestres e doutores, como não é fácil admitir a dificuldade de
formular ideias entre nossos mestres e doutores, restando a fa-
cilidade das repetições de autores, escolas, teses, dissertações.
Quando vemos a repetição desenfreada e pouco criativa de au-
1 Gustavo Castro é poeta, escritor, jornalista e antropólogo. Professor de Estética na Faculda-
de de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Coordenador do Grupo Siruiz – Es-
tudos em Comunicação e Produção Literária (UnB/CNPq). Autor, entre outros, de O Enigma
Orides (Hedra, 2015).
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tores, teorias, métodos e produtos, todos eles sendo analisados,
às vezes, com evidente desinteresse filosófico, verdade teórica
e sinceridade metodológica, entendemos o motivo da dificul-
dade na formação de livres-pensadores.
A Filosofia e os filósofos, por sua parte, isolaram-se
em seus departamentos e fecharam o círculo hermenêutico em
torno de autores, temas e métodos endógenos. Os departamen-
tos de filosofia, pelo menos no Brasil, parecem repelir vee-
mentemente o campo comunicacional. O vesgo campo comu-
nicacional, por sua vez, flerta todo o tempo com professores,
autores e teorias bastante elitistas, especializadas na vigilância
do conceito, ou no dever de dizer ao outro que ele quem não
faz comunicação. CMF é um desses espíritos que não admite
vigilâncias e guardas-de-fronteira de conceitos e noções.
O pensamento de CMF, sua produção, seus textos, fler-
tam com o Aberto, não só a abertura metodológica, mas com a
novidade, a inquietação, a psicanálise, o oriente, a violência, a
juventude, o jornalismo e mais recentemente o cinema, a arte
e a literatura. O pensamento de CMF abre espaço ao incitar
e fomentar a liberdade e risco das ideias formadas, maduras,
meditadas, são ideias que contestam o bom mocismo da área
e seu status quo.
CMF rompe o movimento de silêncio e recusa a não
estabelecer as pontes entre a Filosofia e a Comunicação. Esta
é a meu ver a maior contribuição de CMF à área de comu-
nicação. O incentivo ao diálogo, a recusa ao não-diálogo, o
investimento em conversação presencial, no desarmamento de
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espírito no favorecimento das ideias. Sua insistência no diálo-
go e na alta conversação tornou-se um campo de resistência,
estranha ironia, justo no campo comunicacional. Suas buscas
pela comunicação entre os gregos, no oriente distante, na psi-
canálise e em outros campos do conhecimento, torna-o aquilo
que costumamos chamar hoje de pensador da complexidade
ou transdisciplinar.
Rótulos não são bem vindo ao Ciro. Acompanhar o
seu pensamento comunicacional é tarefa heraclitiana, dificí-
lima. Por vezes as possibilidades de abertura a estudos, ideias
e abordagens que utiliza e a “liberdade que ele se dá”, como
dizia Tom Zé sobre João Gilberto, é algo que confunde em
alguns momentos pela dissintonia, estilo e gigantismo. CMF
é o responsável por instituir entre nós uma imagem-ideia que
perdura até os nossos dias: o ano zero da comunicação, que
devido a seu alto grau de contradição, polêmica e verdade, si-
multaneamente, dividiu águas e territórios: abriu uma ferida
que nunca irá cicatrizar.
Ninguém quer partir do zero. Admitir que sequer co-
meçamos a conversar é bastante duro de ouvir em uma relação
madura. O peso, a contradição e a verdade deste “tempo zero”
da comunicação, revela justamente esta “liberdade que ele se
deu”, para expressar a inconsistência da área, mas também sua
profundidade, versatilidade, riqueza temática, abertura teóri-
ca e dialógica, além do conhecido vigor interpretativo. Em-
bora subutilizada. Em um país não acostumado à polêmica e
ao pensamento complexo, Ciro é um oásis e o Filocom um
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paraíso. Em uma área onde predomina a mediocridade e a re-
petição mimética de teorias, o campo aberto por ele e pela USP
representam ou decretam as condições de possibilidade de su-
peração das fronteiras disciplinares, o investimento na inter e
transdiciplinaridade, a sinalização da importância de investir
mais no pensamento e na arte e menos na miudeza teórico-me-
todológica dos nossos departamentos.
A meu ver, a proposta de CMF e do Filocom/USP, ao
longo dos anos, tem sido a proposta de superação de uma vi-
são da Teoria da Comunicação limitada, entre nós, por vezes a
uma ‘história do pensamento comunicação’ por uma proposta
epistemologia, especulativa, fenomenológica, ontológica, li-
bertária, poética e ensaística. CMF retoma e recupera a velha
noção de “logos”, não apenas no sentido aristotélico, de com-
preensão empírica do fenômenos, nem somente no sentido de
Heráclito, de dinâmica contínua, mas a partir de outro ponto,
confluente entre Aristóteles e Heráclito, próximo daquilo que
Novalis chamou de uma Logologia.
Trata-se de um pensamento simultaneamente lógico-
-matemático e mito-poético. Ao longo dos anos, vemos que
o pensamento de CMF se metaporizou. Tornou-se ele mesmo
metapórico. Daí a dificuldade em acompanhá-lo. Sua desor-
dem criativa tornou-se uma ordem interna, rica, retro-alimen-
tada por seu estilo e sua logologia. Sim, trata-se de pensamento
sólido que, no entanto, dança, navega, oscila e flutua. Trata-se
de um pensamento inquieto, caótico, crítico, polêmico, cruel,
analítico, insistentemente promotor do diálogo epistemológi-
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co, como aqueles que promoveu seguidamente nos encontros
da Rede dos Grupos de Pesquisa em Comunicação no Brasil.
Sua velha obsessão pela comunicação acabou crian-
do um polo catalisador de interessados em pensar, em ater-se
mais às ideias do que propriamente às práticas profissionais,
demandas de mercados etc. Como pólo catalisador, acabou se-
diando e atraindo grande número de interlocutores, críticos,
alunos e comentadores. CMF tem buscado sempre situar-se
em duas frentes, uma epistemológica e outra política. Ora
como crítico da postura intelectual e de práticas do jornalismo
em nosso tempo, ora como produtor de saberes e orientador de
experiências comunicacionais. CMF insiste nas ambiguidades
epistemológicas e fenomenológicas que põem em xeque qual-
quer ilusão de certeza a partir das medições (em laboratório
ou não).

Sobre a noção de “quase-método”

Gostaria de reservar algumas palavras para pensar seu


quase-método. Aprendemos que, em sua metodologia, CMF
apreende a abertura as ambiguidades. A ambiguidade metodo-
lógica remete necessariamente às “proposições indecidíveis”
de Kurt Gödel, segundo as quais nenhum sistema poderá ser
ao mesmo tempo completo e consistente. Ou seja, partindo da
ideia de que os sistemas matemáticos não podem dar conta de
todas as verdades matemáticas; haverá sempre um conjunto de
axiomas que estará fora de seu sistema.
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Transposto para o plano dos fenômenos comunicacionais,
CMF diz que nenhum método, se quiser ser preciso (consistente)
o poderá sê-lo se pretender ser capaz de explicar todas as coisas.
Há limites, ou seja, planos que estão logicamente acima desses
mesmos métodos e só estes têm condições de explicá-lo. Ao se
colocar a opção entre reducionismo e holismo cai-se fatalmente
no chamado “dilema da dupla escolha”, que força necessariamen-
te a opção, excluindo do campo dos prováveis todo o espectro de
situações intermediárias e mesmo sobrepostas.
Enfim, a noção de ambiguidade reside em uma lógi-
ca matemática e não cínica, “esquizo” ou oblíqua. O desen-
volvimento das ciências e as incapacidades epistemológicas
dos campos do saber, aqueles que pretendiam abarcar todo o
conhecimento ou, pelo menos, estabelecer regras válidas para
todo o saber, acabaram por reconhecer uma autonomia relativa
de seus objetos, de tal forma a vê-los dificilmente apreensíveis
em sua totalidade. E a Comunicação?
Ao que parece, a Comunicação permanece em seu au-
tismo teórico desconhecendo o que acontece na lógica vizinha.
CMF nos diz que os objetos escapam de nossas mãos, são fatos
e fetiches ao mesmo tempo. Qualquer objeto que pensamos
apreender escorrega-se entre nossos dedos em fuga. A ambi-
guidade fenomenológica, assenta-se também no exemplo dos
elétrons, personagens estranhos, dos quais mesmo só se co-
nhece o saltar de órbita em órbita, mas jamais eles próprios.
A ambiguidade nos leva a pensar um outro método.
CMF se pergunta como isso é possível se um método está sem-
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pre comprometido com uma visão de ciência? CMF percebe o
mesmo já apontado por Dietmar Kamper: as ciências humanas
têm um dilema bastante específico, o de tentar explicar proces-
sos que em sua natureza são incontroláveis e autônomos.
Ao considerar essas transformações no estatuto da
ciência, de sua lógica e de seu objeto, CMF dá a si mesmo a
liberdade de incorporar ao seu pensamento e investigação fa-
tos extracientíficos. Ele chama a estes procedimentos de quase
controle das escolhas, dos objetos e caminhos de “quase-méto-
do.” Nesta abertura, quase todos os procedimentos são a prio-
ri válidos e devem ser levados em consideração. Além disso,
CMF insiste na ideia de romper as fronteiras dos campos do
conhecimento. Lembra o andarilho de Nietzsche e a liberdade
de poder transitar por todas as áreas sem preocupação de fron-
teiras e de limites territoriais do saber.
Para ele, uma teoria científica é uma narrativa e nesse
sentido a ciência aproxima-se da ficção, da mesma forma, a
literatura pode apoiar às ciências exatas ou sociais. A ausência
ou déficit de diálogos incrementa a crise dos saberes.

A crise do humanismo, inicialmente sinalizada por


Nietzsche e posteriormente complementada pelo
discurso de Heidegger contra a despersonalização
da sociedade de massas, contra a técnica como
“nova metafísica”, representou uma posição menos
soberana do observador e um olhar mais igualitário
ao seu objeto de pesquisa. Propõe ao desenvolvi-
mento científico desfeito dos mitos de controle, de
dominação e de previsibilidade, que neste momento
precisa dar conta de outras lógicas e outras visões
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concorrendo pela investigação do mesmo fenôme-
no. Trata-se das ambiguidades que passam a fazer
parte também da observação científica e que preci-
sam ser consideradas se se quiser melhor conhecer
o real. (MARCONDES FILHO, 2014, p. 66).

Por fim, a ambiguidade assemelha-se àquilo que cha-


mamos de princípio com, ou “princípio Exu”, pela aproxima-
ção e combinação lógica e mitológica entre a contradição e a
coesão, entre o infinitesimal, a incompletude, o “terceiro in-
cluído”, a ambiguidade torna-se assim um desafio ao pensa-
mento, desafio de pensar pela inclusão e as convergência dos
contrários, e não por sua exclusão.
O desafio também é o de enfrentamento conosco, com
a própria crise do “real” que cerca nossa compreensão (não
expandida, infelizmente) de Comunicação. Devemos lidar
também com nossa incapacidade de escutar e de nos fazer co-
municar, de reconhecer a alteridade, de abrir-se para o outro,
nosso fascínio desmedido pelo mero dado informacional, en-
fim, nossa imensa dificuldade de entendimento e compreen-
são, tudo isso corrobora a ideia de que ainda não começamos
a bem trilhar o tempo-espaço justo, digno, à altura de nosso
serviço à Nossa Senhora da Comunicação.

Referência
MARCONDES FILHO, CIRO. A arte de envenenar dinossauros. Brasí-
lia: Casa das Musas, 2014.
HOMENAGEM A UM MESTRE

Alice Mitika Koshiyama1

Tenho contato com Ciro Marcondes Filho desde a gra-


duação em jornalismo, cursada na Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Via-o sem-
pre em busca de novos caminhos e aceitando desafios no cam-
po dos estudos de comunicação. Celebramos os seus setenta
anos como um marco de uma vida dedicada à pesquisa e à
formação de novos pesquisadores.
O que faz a diferença entre ele e muitos outros é a sua
competência para investir em jovens que se tornaram mestres
com luz própria. E que por sua vez constroem novas linhas de
pesquisa, e que se espalham no país e no mundo com novas
perguntas e outros caminhos nos estudos de comunicação.
Podemos avaliar sua produção acadêmica como um
processo de abertura de estradas, em diferentes datas da sua
prolífica história de vida. E cada um de nós que teve o privilé-
gio de ler as obras que ele produziu pode destacar aquelas mais
significativas para nossas atividades.
O texto que escrevi sinaliza a permanência de um tra-
balho dele, que talvez não tenha mais um lugar de destaque
no inventário da sua obra. Mas que para mim é importante
1 Docente Dra. Sênior de História do Jornalismo (ECA-USP)
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documento para a avaliação do momento das transformações
tecnológicas na comunicação da história recente do capitalis-
mo neoliberal. Convidei Snoopy, meu cãozinho interlocutor,
para me acompanhar no trabalho.

Snoopy busca um livro de Ciro Marcondes

Snoopy queria conhecer Comunicação e Jornalismo.


A Saga dos Cães Perdidos. (2ª. ed. São Paulo: Ed. Hacker,
2002). Mas não achou o livro para ler. Ele ficou curioso por
achar que poderia indicar trilhas alternativas para os seus ami-
gos que se perderam pelas estradas da vida. Expliquei que os
perdidos eram “jornalistas”. Snoopy insistiu que talvez pudes-
se ajudar. Ele leu os textos traduzidos e organizados por Ciro
Marcondes da obra do Dieter Prokop (São Paulo: Ática, 1986).
Snoopy sabe que é personagem da cultura e vive perguntando:
que mundo é este?
Snoopy é meu aliado. Pois uma das obras úteis para
compreender a história do jornalismo está fora do mercado.
Ciro descreve com respeitável bibliografia as transformações
trazidas pela tecnologia no modo de produção e consumo do
jornalismo. E atualiza o domínio da comunicação. Os jornalis-
tas deixaram de ser os cães de guarda do poder e viraram cães
perdidos.
É inegável a transformação na comunicação pelas mu-
danças do capitalismo neoliberal. A apropriação da tecnologia
pelos seres humanos, voltados para a defesa dos seus negócios,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

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permitiu a formação de complexas estruturas empresariais de
comunicação. Nesse sistema, a publicidade, as relações públi-
cas, a propaganda política e mesmo a imprensa atuam para
quem pode pagar pelos seus serviços.
Vivemos no mundo neoliberal. E jornalistas existem e
lutam para exercer um trabalho insubstituível: informar sobre
acontecimentos que envolvem poderosos que buscam ocultar
seus malfeitos. E noticiar ações de interesse público e denunciar
violações dos direitos de cidadania. Convivemos com jornalis-
tas que perseguem esses objetivos vitais para o jornalismo.
É exemplar a ação de uma mulher, Soledad Gallego-
-Díaz, atual diretora do EL PAÍS – el periódico global – cuja
edição brasileira na internet é fonte de informação imprescin-
dível sobre nosso país. Ela também ensina jornalismo e faz
palestras sobre o tema: “Si te van a matar, no te suicides. De
puro miedo a la muerte de los periódicos, los periodistas termi-
naremos pegándole un tiro al periodismo. La peor manera de
suicidarse es limitarse a vocear distintas versiones. Periodismo
es indagar y buscar la verdad.”2
Lembramos ainda o fundador da Pro Publica, Paul
Steiger, nos Estados Unidos, cujo jornalismo veiculado na in-
ternet tem conquistado leitores e prêmios pela qualidade do
trabalho. Ele explica suas idéias e detalhes do seu empreendi-
mento e as dificuldades enfrentadas: “Os poderes escondem o
mal cada vez melhor”.3
2 Disponível em: http://elpais.com/elpais/2012/03/15/opinion/1331836802_010235.html
Acesso em 20/02/2018.
3 Entrevista a Ana Carbajosa. EL PAÍS, 6 de março de 2016. Disponível em https://brasil.el-
pais.com/brasil/2016/03/03/internacional/1457024894_455179.html. Acesso em 20/02/2018.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

26
Luiz Cláudio Cunha, em Todos Temos que Lembrar,
discurso feito ao receber o título de doutor “honoris causa”
na Universidade Nacional de Brasília (UNB) em 2011, define
a necessidade essencial do trabalho do jornalista para o de-
senvolvimento da cultura e do estado democrático de direito.
Desvenda a relação entre ser jornalista, cujo trabalho é fazer
perguntas e obter respostas para descobrir o que acontece, e a
história da humanidade que se constrói a partir de dúvidas que
resultam em pesquisas e descobertas no tempo.4
No ensino da história do jornalismo levantamos pes-
quisas empíricas e interpretações sobre o nosso mundo contra-
ditório e em transformação constante. Por isso, Comunicação
e Jornalismo: A Saga dos Cães Perdidos é um texto básico
para avaliar o mundo em que jornalistas podem atuar.
Snoopy espera impaciente que o livro seja reeditado.

4 Luiz Cláudio Cunha. Todos temos que lembrar. Discurso proferido na cerimônia de diploma-
ção de notório saber do jornalista Luiz Cláudio Cunha, em 9 de maio de 2011. Disponível em
http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/todos-temos-que-lembrar/. Acesso
20/02/2018.
A CHAMA DA COMUNICAÇÃO
E UM MAR DE FOGUEIRINHAS

Frederico Tavares1

Segue-se um relato em que descrevo, por um lado, e


motivado por algumas coincidências significativas, a noção de
comunicação proposta por Ciro Marcondes Filho; por outro,
um acontecimento do cotidiano, quando descobri o que signifi-
ca uma “chama”; e, por outro ainda, a maneira como, em texto
de Eduardo Galeano, podemos pensar o mundo como um mar
de fogueirinhas. Se assim é o mundo, ou se somos nós outros
as tais fogueirinhas, proponho, aqui, em clima de homenagem
aos 70 anos de Ciro Marcondes Filho, que a comunicação seja
aquilo que nos dá uma “chama” mais importante, o que força
a nossa “chama” a pensar.
Importante, antes, faz-se a consideração de que a for-
mação bacharelesca de um “comunicador social” pode fazer
com que o futuro profissional da área saia de sua formação
com uma visão muito estreita, ou senão meramente instrumen-
tal do fenômeno ou da experiência da comunicação; tal estrei-
teza, em verdade, dista desse sentido fenomênico e experimen-
tal da comunicação que é proposto por Ciro Marcondes Filho.
E sobre esse sentido, a essa compreensão do que é comunica-

1 Frederico Tavares: Doutor em Comunicação e Práticas de Consumo pela Escola Superior de


Propaganda e Marketing (PPGCOM-ESPM) e bolsista Capes-PROSUP integral. Bolsista do Pro-
grama de Doutorado Sanduíche no Exterior (Capes-PDSE) junto à Université Sorbonne Paris Cité.
Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo (ECA-USP-PPGCOM) e bolsista CNPq. Atua como professor no curso de Comunica-
ção Social da Universidade Paulista. Integra o Grupo de Pesquisa Juvenália do PPGCOM-ESPM.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

28
ção, tenho me colocado, como professor, o dever de chamar a
atenção dos alunos.
Que é comunicação? O filósofo e teórico da comuni-
cação responde, começando pelo o que ela não é: não se con-
funde com sinalização, nem com informação, embora sinais
externos possam rebater sobre mim como informação e, tam-
bém, como comunicação. A comunicação tem a ver com uma
necessidade de coisas novas, de experiências novas, emoções
novas ou fatos que interfiram em nosso cotidiano criativa-
mente, arejando-o, renovando-o, refrescando-o, ventilando-
-o, de tal sorte que se pode descobrir, sobre isso que se cha-
ma de comunicação, algo novo. A comunicação tem a ver,
pois, com uma diferença radical de qualidade na participação
de um acontecimento em um mundo onde tudo sinaliza. Mas
o fenômeno da comunicação, insisto, não diz respeito sim-
plesmente à sinalização, nem à simples troca de informações,
às conversas que mantêm as coisas exatamente como estão.
O novo, da comunicação, tem chance de aparecer quando o
pensamento é provocado, forçado a pensar nas coisas, nos
outros, em nós mesmos, na nossa vida. Numa metáfora pro-
posta em texto de Eduardo Galeano – o que mostrarei mais
a frente –, se o mundo é um mar de fogueirinhas, ou se nós
outros é que somos um mar de fogueirinhas, é possível dizer,
em diálogo com Ciro Marcondes Filho, que a comunicação
seja aquilo que nos dá uma chama mais importante.
Este texto se pretende, então, a um relato comunica-
cional, um relato que visa mostrar como, no cotidiano, expon-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

29
do-me à “violência” urbana de São Paulo, pude descobrir algo
novo: que podemos ser, justamente, uma chama.
Dia 18 de maio de 2018. Estava no metrô indo à estação
Armênia, precisamente ao Departamento Estadual de Trânsito
de São Paulo (Detran), que está próximo a essa estação. Prepa-
rava-me para o caos, para a multidão, para a polifonia urbana;
sabia que, provavelmente, nem sequer conseguiria resolver os
problemas que a tal estrutura burocrática ou racional legal – a
forma de dominação mais adequada ao Estado e à empresa
moderna, como diria Max Weber – imputava sobre mim. De
fato, meio emputecido, não consegui resolvê-los. Mas a via-
gem valeu a pena, no sentido da comunicação. Nesta minha
preparação ao caos (e já desfrutando do que esse caos permi-
te enquanto criação), levei comigo um livro que já havia lido
alguns trechos em outras viagens criativas. Era “O livro dos
abraços”, de Eduardo Galeano. Metrô cheio. O caos já estava
lá. Show de saxofone. Bacana. As pessoas até aplaudiram. Ha-
via não só um mar, mas um ar de gente, ali, que estava fazendo
o possível para tirar um trocado. Mas a estrutura burocrática,
racional e legal do metrô não deixa o comércio ambulante cir-
cular... O show passou, veio um vendedor. Enquanto lia o livro
de Galeano, recordei daquela história de que somos fogueiri-
nhas (transcrita logo abaixo deste relato). O vendedor de cho-
colates anuncia: “Um é dois, três é cinco. É só chamar! Ó a
moça ali, já chamou! Opa, pera aí que o guarda tá vindo!”. Ele
se refere ao guarda como “cabeça de ovo”, algo assim. Minha
leitura é interrompida, “violentada”. O vendedor rapidamente
PARA COMUNICAR O INCOMUM

30
esconde uma caixa de chocolates em baixo do meu assento.
“Já pego, truta”. O guarda o enquadra. Ele devia estar com
umas poucas barras em mãos, ou na cintura, escondidas sob
a camiseta. “Só isso?”. “Só”. Já estávamos em Tiradentes e o
guarda resolve descer com o jovem na estação (momento em
que Weber poderia também falar sobre o processo de “desu-
manização” da burocracia no capitalismo avançado, e que cor-
responde à aplicação de critérios objetivos e racionais). Viva
o mundo oficial! Contudo, sem chamar a atenção do guarda,
o rapaz, antes de descer com ele, lança sobre mim uma fa-
gulha: “Me espera na próxima”, que era justamente a estação
Armênia. Viva o mundo oficioso! E viva a sincronicidade, ou
isto que Jung chamou de coincidência significativa (também
porque ele mexeu com o truta certo, logo eu, que estudei a
publicidade e a publicização no metrô, procurando apontar os
limites dessa noção em relação à condição de mercadoria ou
de “consumidor falho” do sujeito que também se anuncia, ou
que muitas vezes vende, emprega ou empresta o seu corpo ao
anúncio de outras mercadorias, marcas e serviços – à mendi-
cância). Pois eu pego a caixa sob o assento e vou me preparan-
do para desembarcar. Uma moça me aborda meio sem jeito,
aflita: “Você comprou?”, apontando para a caixa em minhas
mãos. “Não, ele pediu para esperar na próxima, vou esperar”.
Ela, então, aponta para uma caixa grande de papelão, cheia de
caixas de chocolate: “Ó, isso é dele também”. Eu pego toda
mercadoria e descemos juntos. Ela não viu o código dele pra
mim, não entendia se era certo descer comigo, não entendia
PARA COMUNICAR O INCOMUM

31
como as coisas poderiam estar em ordem naquele caos. E nem
eu havia visto que teria sido ela a chamar o rapaz pouco antes
da abordagem do guarda. Na Armênia, ela logo pergunta se
sou também vendedor. “Não”. Daí eu pergunto qual a relação
dela com ele. E ela, meio assustada, meio envergonhada, res-
ponde: “Eu sou a chama dele”. “O quê?”, não sabia ao certo
o que tinha ouvido. “Você não entende”, disse ela, e eu não
entendia mesmo, ainda mais naquele ruído de trem e gente,
naquele clima meio tenso e persecutório. “Então me explica”,
insisti. “Eu estou com ele, eu chamo. Sou namorada dele”.
Dali a pouco ele aparece, correndo, com cara de aventura. Deu
tudo certo. Sua mercadoria estava lá e a sua chama também.
Nos cumprimentamos. “Valeu”. Vou embora.
Diz o texto de Eduardo Galeano, intitulado “O mundo”:

Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Co-


lômbia, conseguiu subir ao céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contempla-
do, lá do alto, a vida humana. E
disse que somos um mar de fogueirinhas.
– O mundo é isso – revelou. Um montão de gente,
um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as
outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem
fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras
de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que
nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que en-
che o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não
alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a
vida com tamanha vontade que é impossível olhar
para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega
fogo (GALEANO, 2013, p. 13).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

32
Na proposta de compreensão da comunicação ofere-
cida por Ciro Marcondes Filho também aparece a metáfo-
ra do mar. Em diálogo com Georges Bataille (A experiência
interior), diz-se que a comunicação é uma sensação. “Cada
pessoa sai de si mesma numa explosão fácil, abrindo-se, ao
mesmo tempo, ao contágio da onda que repercute como as
ondas do mar, cuja unidade é igualmente indefinida e precá-
ria” (2014, p. 88).
E nesse mar, como disse aquele homem de Neguá, um
mar de fogueirinhas, o pensamento de Ciro Marcondes Filho
repercute com tamanha vontade – as suas ideias, a sua cha-
ma – que, sim, rebate em nós, que temos vontade de ouvi-
-lo atentamente, como comunicação. Enquanto descobrimos
algo novo com esse grande pensador e autor da Nova Teoria
da Comunicação, entendemos que o que ele chama de co-
municação está para uma espécie de coisas que, diferente das
que deixam o pensamento inativo ou lhe conferem apenas
aparência de atividade – fogos bobos, que não alumiam nem
queimam – incendeiam e fazem a nossa chama pensar. A co-
municação é o que dá à chama uma importância maior, o que
força a nossa chama a pensar. E por isso a minha crença de
que a chama da comunicação deva ser assim estudada em es-
colas, faculdades e pesquisas acadêmicas. Ao fogo grande de
Ciro Marcondes Filho, que repercute como ondas em um mar
de fogueirinhas, os parabéns pelos 70 anos e os agradecimen-
tos pelas tantas chamadas à comunicação, sempre capazes de
incendiar o pensamento.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

33
Referências
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 2 ed. Tradução de Eric Nepo-
muceno. Porto Alegre: L&PM, 2013.
MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação (verbete). MARCONDES FI-
LHO, C. (Org.). Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2014,
p. 86-89.
CARTA A UM DOS ÚLTIMOS MESTRES

Alex Galeno1

Caro amigo,
em tempos de ideias e homens sombrios, necessitamos
de mestres e ideias que perdurem e formem gerações. Como
certa vez afirmou Gilles Deleuze em homenagem a Sartre, você
Ciro, é um dos nossos últimos mestres. Tem sido paradigmáti-
co na área de comunicação e formador de pesquisadores e pro-
fessores pelo o Brasil afora. Quatro momentos são singulares
para mim. Em tempos ainda de graduação, um dia me deparei
com um dos seu livros: A violência das massas no Brasil. Um
pequeno livro lançado pela editora Global (1989) no qual você
faz uma espécie de arqueologia do conceito de massa e sua
produção simbólica ou comunicacional com a violência. Uma
das referências é o nazismo como forte movimento criador de
símbolos mobilizadores do imaginário humano. Além disso,
relembro da referência ao clássico Massa e Poder do Nobel de
literatura, Elias Canetti. Não sei exatamente se esta foi a razão,
mas até hoje é minha referência principal em disciplinas e cur-
sos ministrados. Já nos idos dos anos 2000, durante o doutora-
1 Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atualmente é coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da UFRN. Tem experiência nas
áreas de Sociologia e Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: Cibercultu-
ra, Complexidade, Literatura e Antonin Artaud.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

35
do, convidado por Rose Rocha, passei a frequentar o Filocom-
-ECA-USP. Grupo sob sua coordenação e de referência nos
estudos sobre comunicação. Naquela ocasião, tive o privilégio
de vivenciar fornalhas in natura da sua Nova Teoria. Relembro
bem que muitos dos textos de livros posteriores, primeiramen-
te, você nos apresentava como uma experimentação intensiva
de suas pesquisas. Destacadamente o livro, O escavador de
silêncios. As discussões me influenciaram para sempre. Re-
cordo-me que certa feita, fiquei responsável pela a exposição
da Carta sobre o humanismo de Heidegger. Confesso que me
senti muitíssimo inseguro na ocasião. Mas sua capacidade de
liderança e tolerância intelectual me deixaram agitadamente
sereno. Senti-me acolhido e certo que meu limite filosófico
não seria motivo para desqualificação pelo grupo. Ainda em
tempos de Filocom, destaco uma das discussões sobre comu-
nicação que foi gravada. Se me recordo bem, foi uma atividade
em Estúdio de Rádio na USP. Senti-me experimentando o belo
acaso objetivo apregoado pelos surrealistas, isto é, sem roteiro
prévio fomos soltando os fios dos argumentos que, ao final, ti-
vemos um belo tecido discursivo em conjunto. Outra passagem
pelo Filocom memorável para mim, foram as comemorações
dos seus 10 anos. O evento foi denominado 10 anos Filocom:
A Nova Teoria nos 44 anos de Eca. Compus uma mesa redon-
da com as professoras Rose Rocha e Paula Sibilia. Debatemos
sobre o impacto das imagens na sociedade contemporânea e os
desafios epistemológicos para a comunicação. Tentei estabele-
cer um diálogo com o seu texto-guia ao evento considerando o
PARA COMUNICAR O INCOMUM

36
papel das imagens literárias e a capacidade dos imaginadores
(Flusser) na sua produção. Além disso, mobilizamos referên-
cias filosóficas de Peter Sloterdijk quando compara o fenôme-
no midiático atual com o espetáculo ou teatro da crueldade das
arenas romanas. Para ele, na antiguidade e agora, o que temos
são vivências civilizatórias a partir de meios comunicacionais
desinibidores. É como se os espetáculos nas arenas, antecipas-
se a indústria hollywoodiana do presente. Sloterdijk destaca
que o impasse com a tradição humanista se dá exatamente com
a tensão entre media inibidoras (livro, o medium por excelên-
cia do humanismo) e desinibidores (TV, Internet, Cinema e
etc.). Discutimos também na ocasião, a noção de CsO (Corpo
sem Órgãos) artaudiano para pensar um corpo não aprisionado
ao “Juízo de Deus” da tecnociência e da moral ocidental cris-
tã, que o transformaram em um mero organismo ou em mera
espécie. Por último, fizemos referência a Edgar Morin e suas
distinções sobre a compreensão e a explicação, informação e
conhecimento, comunicação e incomunicação. O objetivo foi
tentar aproximar questões epistêmicas sobre o método da com-
plexidade moriniano e as do metáporo, conforme atestam você
e Danielle Naves como precursores desta nova forma de se
produzir pesquisa e de se conceber a comunicação. Disse que,
para Morin, informação não é conhecimento e que o mesmo
pressupõe contextualizar, situar e globalizar. Conhecimento é
a informação organizada; e, quando me referi a distinção entre
compreensão e explicação, você logo destacou as diferenças
ou discordâncias com a Nova Teoria. Disse você à época que,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

37
ao que pareceu, Morin se prendia ainda a pressupostos socio-
lógicos ao destacar as duas categorias. Tentei responder exata-
mente o contrário já que o próprio Morin faz esta crítica a Max
Weber em seu O Cinema e o Homem Imaginário, quando se-
parou a explicação dos processos subjetivos da compreensão.
Caro Ciro, acho que não fomos bem compreendidos. A luta
sísifa de Morin e das ciências da complexidade tem sido a de
religações, distinções, mas nunca a da separação. Aliás, sinto
que você tem uma implicância com fundamentos teóricos para
pensar a comunicação que não aqueles da filosofia. Ou ainda
quando insiste que a literatura mais adequada para a sua Nova
Teoria é a de Marcel Proust. Implica que Balzac é demasia-
damente sociológico. Ao meu ver se constitui numa redução
e incompreensão sobre a obra balzaquiana. Peço sua atenção
para releitura das passagens mencionadas por mim noutro lu-
gar e já de seu conhecimento: “Não teria Balzac, com a sua A
Comédia Humana, antecipado uma comunicação hipertextual,
na medida em que criou o método narrativo do reaparecimento
de personagens em romances distintos? Romances que se co-
nectam e ou se linkam infinitamente. O universo rizomático da
Comédia pode contribuir com uma nova epistemologia pelo
seu modelo recursivo e de religação entre saberes distintos?
(...) Balzac, sem dúvida, contribui para uma nova teoria da co-
municação e evoca estudos inovadores no campo da Teoria de
Redes pela conexão ou comunicação interativa presente em A
Comédia Humana. Tais evidências se comprovam pela quanti-
dade de personagens - 2472 segundo Marceau (1986). Desses,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

38
573 reaparecem em vários romances ou narrativas. Destacam-
-se: Rastignac, Bianchon, Nucingen e Henrique de Marsay. A
Comédia Humana como uma espécie de rede social interati-
va? Balzac, neste particular, não anteciparia Mark Zuckerberg
com a invenção do Facebook? Por esse recurso estilístico do
retorno de personagens, Balzac construiu o meio de unidade
e religação narrativa da sua obra máxima.” Desculpe-me por
insistir nisso, mas apenas gostaria de ver em sua Nova Teoria
uma ampliação epistemológica a partir da literatura balzaquia-
na. Após este evento, destaco a criação da Rede de Grupos
de Comunicação. Uma iniciativa fundamental para congregar
pesquisadores do Brasil e também estrangeiros (EUA, Alema-
nha, México). Agradeço pelo reconhecimento ao nosso grupo
de pesquisa Marginália-UFRN, que além do apoio recebido
para a ida de seus pesquisadores ao primeiro encontro da Rede
(2012), foi o responsável pela a organização do segundo en-
contro em Natal (2013). Um desafio, pois o grupo acabara de
ser criado naquele momento. Eu diria, Ciro, que você e Lauren
Colvara plantaram sementes de uma iniciativa que marcou a
área da comunicação no Brasil. Por enquanto, ao que parece, a
Rede parece adormecida tal como lava de vulcão, mas pronta
para uma erupção a qualquer momento. Oxalá! Amigo, agora
falemos de afetos. Da relação de amizade, gratidão e solidarie-
dade que você nos proporciona. O poeta Walt Whitman dizia
que um lugar para sabermos o valor de uma amizade é um
leito de hospital. Não estava em leito de hospital, mas quan-
do enfrentava há algum tempo atrás turbulências psíquicas e
PARA COMUNICAR O INCOMUM

39
físicas, tive sua solidariedade e atenção conjuntamente com
Lauren. Ganhei dois amigos durante uma travessia conturba-
da. Tive apoio incondicional quando do momento em Malta
(2014) e em Zurique (2015). Recupero aqui passagens de um
email nosso do período em Malta (16/12/2014). Encontrava-
-me exausto e inseguro para uma nova jornada, mas você teve
grandeza e paciência comigo:

Oi Ciro,
Como vai? Espero que esteja com saúde e tranquilo
com as coisas da vida.
Por aqui, estou concluindo uma etapa importante
tanto como improve no idioma qto na vida. Embora
exaustivo! Ciro, tenho pensado em não ir à Zuri-
que. Algumas razões para isso:
1. estou no limite das minhas energias. O curso tem
sido intensivo demais e acho que estava molar de-
mais para a velocidade de High Scholl. rss. Since-
ramente, não estou com disposição para outra jor-
nada intensiva e importante como será o encontro.

Resposta:
Relaxa, Alex, relaxa. Pense bem. Em Zurique es-
taremos todos lá, vai ser muito agradável e, parti-
cularmente, para seu currículo acadêmico, isso vai
render muito. Está tudo bem, você vai se recuperar,
vai agradecer por ter ido para lá, e vai voltar com
a bagagem de experiências muito ampliada. Pense
melhor.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

40
Amigo, muitíssimo obrigado por me proporcionar voos
profissionais e afetivos importantes. Michel Foucault afirmou
que um autor é aquele que funda discursividades, aquele que
nos herda ideias e obras que formam gerações e são sempre
revisitados. E você, Ciro, é este autor. Revisitaremos sempre
suas ideias. Vida longa, amigo.

Forte abraço,
Natal, 02 de outubro de 2018.
Alex Galeno
POEMA Nº 3
Max Emiliano Oliveira1

a ordem das coisas


menos verdade
caçar o direito à palavra

percorrer sua trama, fios


transformar o familiar em estranho
inverter a ordem das coisas
mudar o jogo

uma sintaxe original


não a uma razão cartesiana-newtoniana
não à ordem e progresso
mas uma gaia ciência

por uma nova teoria da comunicação


uma oc orrência, irrupção
o imprevisível

metáporo

1 Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da PUC Minas.


Nos últimos anos coorganizou quatro livros e publicou artigos em periódicos do campo.
RE-FLEXÃO
DUAS PERGUNTAS METODOLÓGICAS À TEORIA
DO ACONTECIMENTO COMUNICACIONAL:
UM DIÁLOGO EM CONSTRUÇÃO

Ângela C. S. Marques1
Luís Mauro Sá Martino2

Na obra de Ciro Marcondes Filho, em uma aproxima-


ção inicial, seria possível encontrar quatro temáticas distintas.
A primeira, cronologicamente, são relações entre comunicação
e política, que parecem ter ocupado o autor no início de sua
produção. Paralelamente, estudos sobre jornalismo encontra-
ram um lugar de destaque, sobretudo em termos de uma crítica
dos processos de produção e circulação da notícia. O terceiro
eixo temático é uma aproximação crítica da mídia e da tecno-
logia, iniciada ainda nos anos 1980 em estudos sobre a televi-
são e prosseguindo, posteriormente, nos livros “Superciber” e
“Fascínio e miséria da comunicação na cibercultura”.
1 Professora Adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Mi-
nas Gerais. Doutora em Comunicação Social pela UFMG (2007) e mestre em Comunicação
Social pela mesma instituição. Realizou pós-doutorado em Comunicação e em Ciências Sociais
em Grenoble (França). Foi professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Fa-
culdade Cásper Líbero. Integra os grupos de pesquisa: MARGEM - Grupo de Pesquisa em De-
mocracia e Justiça (UFMG) e Teorias e Processos da Comunicação (Faculdade Cásper Líbero).
2 Formado em Jornalismo pela Cásper Líbero, fez Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais na
PUC-SP, com pós-doutorado na Universidade de East Anglia (Norwich, UK) em 2008. Na Cásper
Líbero, é professor de Comunicação Comparada no Curso de Jornalismo desde o ano 2000. É pro-
fessor e pesquisador do Mestrado, vinculado à Linha de Pesquisa “Processos Midiáticos: Tecno-
logia e Mercado”, e lidera o Grupo de Pesquisa “Teorias e Processos da Comunicação”. Autor dos
livros Teoria das Mídias Digitais (Vozes, 2014), The Mediatization of Religion (Ashgate, 2013),
Teoria da Comunicação (Vozes, 2009) e Comunicação e Identidade (Paulus, 2010).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

44
No entanto, é uma quarta modalidade de temas que
concentra as atenções deste capítulo: a elaboração do que de-
nomina “Nova Teoria da Comunicação” ou “Teoria do Acon-
tecimento Comunicacional”, e reúne os trabalhos publicados
desde “O espelho e a máscara” (2002) até “O rosto e a máqui-
na” (2013).
Ao longo dos anos de formulação da teoria, o autor pu-
blicou nove livros, em um total de quase duas mil e quinhentas
páginas, apresentando e discutindo aspectos da proposição de um
conceito de Comunicação. Além disso, aspectos pontuais foram
apresentados ao debate em eventos – em particular, no GT Epis-
temologia da Comunicação, da Compós – e artigos acadêmicos.
Neste trabalho, o objetivo é bastante delimitado: diante
das apresentações de vivências da teoria em pelo menos dois
textos, “De repente, o prédio falou comigo” e “Pequenas Per-
cepções, Grandes Mudanças”, apresentados por Marcondes
Filho (2011; 2018), endereçamos duas perguntas voltadas para
as dimensões metodológicas de seu conceito de Comunicação.
Nos dois textos, o autor apresenta relatos de experiências reali-
zada por alunos de graduação. A partir de vivências dos jovens
em circunstâncias diferentes, o autor observa a eclosão de fe-
nômenos comunicacionais entendidos segundo sua definição
do conceito. De certa maneira, trata-se de uma “pesquisa de
campo” ou, antes, uma “vivência de campo” da Teoria da Co-
municação, desenvolvida por Marcondes Filho.
Essa experiência viva da teoria e, mais ainda, do que o
autor denomina em suas obras como o “acontecimento comu-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

45
nicacional”, é relatada pelos participantes em primeira pessoa,
como fruto direto de suas impressões e observações, e tema-
tizada por Marcondes Filho em seus artigos como exemplos
empíricos do ato de “comunicação” tal como entendido em sua
formulação específica. Esses textos, de caráter “prático”, permi-
tem observar algumas questões de método que dizem respeito
não apenas à teoria, mas também à pesquisa em Comunicação.
Neste texto, as perguntas são endereçadas às deriva-
ções metodológicas da Teoria do Acontecimento Comunica-
cional, não ao seu argumento central. Primeiro, porque um
diálogo com a teoria exigiria um espaço consideravelmente
maior, e vem sendo realizado por vários outros pesquisadores
– cf. Braga (2011) e Marcondes Filho (2014). Segundo, por-
que esses dois artigos de Marcondes Filho trazem, entre outras
coisas, uma questão metodológica prática derivada da teoria a
partir da qual destacamos este diálogo. A discussão, por isso,
não é dirigida à Nova Teoria em todos os seus aspectos, mas
com o recorte do método. A partir da leitura, tomando-se como
pressuposto de crítica dialógica a suspensão de considerações
a respeito do núcleo conceitual da teoria, foram levantadas al-
gumas interrogações de ordem metodológica.
Entendemos, e é nesse sentido a construção deste texto,
que esses as proposições da Teoria do Acontecimento Comu-
nicacional levantam questões a respeito de três aspectos: (1)
a formulação do conceito de comunicação dentro das pesqui-
sas em Teoria da Comunicação; (2) o problema da inscrição
da experiência comunicacional no campo da linguagem como
PARA COMUNICAR O INCOMUM

46
pressuposto para seu compartilhamento; e (3) o conceito de
ciência e as possibilidades de construção e validação de um
conhecimento a partir dos pressupostos da Teoria do Aconteci-
mento Comunicacional.
Este texto se estrutura em torno desses três eixos. An-
tes, a título de contextualização, vale indicar brevemente a po-
sição da discussão do conceito de Comunicação – e a proposta
de Marcondes Filho – no âmbito da pesquisa da Área.

A dimensão conceitual da comunicação

As discussões a respeito do conceito de Comunicação


parecem ter vivido um momento especial entre 2010 e 2014,
sobretudo a partir do espaço de trabalhos apresentados, ou ao
menos originados, do GT Epistemologia da Comunicação da
Compós. Esses anos viram a apresentação e publicação suces-
siva dos textos de Braga (2010, 2011, 2012), respostas de Ciro
Marcondes Filho (2011, 2012), tréplicas (BRAGA, 2012) e
proposições de Ferrara (2012; 2013; 2014) e França (2012).
Esses textos se debruçaram, cada um com sua espe-
cificidade e ponto de vista, sobre o próprio conceito de “Co-
municação”, uma discussão que, paradoxalmente, não parece
ocupar um lugar central na produção da Área, nem mesmo no
âmbito das discussões sobre Teoria da Comunicação.
No âmbito das Teorias da Comunicação, aliás, encon-
tra-se uma gama formidável de definições atreladas ao con-
ceito de “comunicação”, uma elasticidade que coloca diversos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

47
problemas para quem pesquisa – cf. L. C. Martino (2007) ou
L. M. Martino (2008; 2011).
A primeira, não necessariamente em ordem de impor-
tância, diz respeito a um problema prático: como saber se uma
pesquisa é “de comunicação” no momento de ingressar em um
Programa de Pós-Graduação (PPG)? Nas reuniões de orienta-
ção, no diálogo com pesquisadoras e pesquisadores, notamos
muitas vezes uma dúvida em relação à extensão do conceito:
se há uma certa percepção de que estudar “mídia” – no sentido
estrito dos “meios de comunicação” – é “estudar comunica-
ção”, essa certeza logo se esvai no momento em que é neces-
sário desatrelar um conceito do outro, como propõe Ferrara
(2016), “mídia não tem nada a ver com Comunicação”.
Esse problema de ordem prática parece estar funda-
mentado em outro, mais profundo, de viés epistemológico: a
indefinição dos limites do conceito de comunicação dificulta
a construção de olhares próprios da área, de cânones específi-
cos ou mesmo de um consenso mínimo em torno do que seria
possível estudar. Dessa maneira, como coloca Signates (2013),
a pergunta pelo “especificamente comunicacional” em um tra-
balho acadêmico se torna difícil de responder.
Finalmente, um terceiro problema, delineado no senti-
do inverso dos anteriores: em que medida a definição de um
conceito de “comunicação” não significaria um engessamento
da dinâmicas e atividades de uma Área de pesquisa que vem
construindo sua autonomia relativa como campo do saber há
décadas? Em termos institucionais, se um conceito de Comu-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

48
nicação não foi necessário para o delineamento da Área em
torno de temáticas e abordagens responsáveis pela formação
de um “cânone” do qual fazem parte várias perspectivas teóri-
cas (digamos, Semiótica, Teoria do Discurso ou Estudos Cul-
turais), qual seria a importância de sua definição? Seria dese-
jável, aliás, formular um conceito de Comunicação? Ou isso
não poderia significar um problema epistemológico de igual
monta, em certa tradição heideggeriana de pensar que o nome
mata a coisa?
O triplo debate entre Braga, Marcondes Filho e Ferrara
sugere, no entanto, a necessidade de se compreender melhor
a questão da Comunicação não no sentido de encontrar uma
definição fechada, mas de balizar alguns elementos a partir dos
quais se possa encontrar, ao menos, um terreno comum para a
discussão.
Em sua configuração atual, em linhas bastante gerais e
com o risco presente da generalização, talvez não seja de todo
errado afirmar que, exceto pela presença da “mídia” como ob-
jeto empírico – nas circunstâncias de indefinição mencionadas
– nas pesquisas, muito do que se produz em nossa área poderia
ser absorvido pela Sociologia, Filosofia ou Lingüística. Não
por acaso, aliás, as principais áreas de origem das Teorias da
Comunicação – valeria recordar, nesse sentido, a provocação
clássica de Bennett (1982), questionando se “Teorias da Mídia
ou Teorias da Sociedade?”.
A Nova Teoria da Comunicação, ou, como também já
foi formulada, Teoria do Acontecimento Comunicacional, vem
PARA COMUNICAR O INCOMUM

49
sendo lapidada por Marcondes Filho em mais de uma dezena
de livros e artigos publicados desde o início dos anos 2000 a
respeito de discussões realizadas pelo Núcleo de Estudos Fi-
losóficos da Comunicação, o FiloCom, sediado na ECA-USP.
Em linhas bastante gerais, a ideia central da Teoria do
Acontecimento Comunicacional parte da ideia de que “comu-
nicação” é uma transformação no ser que irrompe em con-
dições raras, bastante específicas. A ideia de “comunicação”
não está ligada, nesse sentido, nem a “transmitir”, “passar” ou
“compartilhar”, na medida em que comunicação não é uma
“coisa” (no sentido de “vou te comunicar algo”), mas uma
produção fenomênica que irrompe na esfera do ser indepen-
dentemente das circunstâncias de uma intencionalidade do ato
informativo.
Com isso, Marcondes Filho procura circunscrever o
fenômeno comunicacional em relação a elementos próximos,
muitas vezes vistos como correlatos, ou mesmo sinônimos,
como “informação” e “mídia”. A comunicação, em sua pers-
pectiva, é um “acontecimento” que se produz no ser a partir de
circunstâncias nem sempre definidas, muitas vezes desconhe-
cidas do próprio indivíduo, como algo de inesperado, dentro
da esfera de um possível que não necessariamente se realiza.
Trata-se, ao que parece, de um abandono radical de
qualquer modelo transmissivo da Comunicação, mas também
da possibilidade de formulações constitutivas de um elemen-
to intersubjetivo, uma vez que a localização do fenômeno
comunicacional no indivíduo parece deixar de lado a inten-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

50
cionalidade de uma formulação com vistas à construção de
uma articulação relacional – em seu debate com Braga (2011),
Marcondes Filho (2012) nega a ideia de que o ato de comuni-
cação pode constituir uma “comunhão” – na raiz etimológica
do “communio” – com o outro, mas se trata de um fenômeno
individual, adstrito à singularidade do sujeito no qual a expe-
riência da comunicação tem lugar.
É possível localizar aí uma dimensão estética do fe-
nômeno comunicacional, na medida em que se procura uma
compreensão da ideia de uma “estética da comunicação” apre-
sentada em outros textos (Martino, 2007; 2009; 2016; Marques
e Martino, 2016; 2018), ressaltando uma dimensão produtiva
da aesthesis como elemento muito mais do que reativo, mas
propriamente constitutivo da experiência vivida. No entanto,
em relação a este, o conceito de Marcondes Filho parece ser
consideravelmente mais localizado no âmbito das possibilida-
des do sujeito, desconhecidas muitas vezes dele mesmo.
Parecem existir, no entanto, condições para que a co-
municação aconteça. Dentro dessa dimensão que entendemos
como “estética” e afetiva, há uma necessidade de abertura para
a “experiência do fora”, no que poderia também ser conside-
rado a expectativa de uma alteridade radical a partir da qual
se daria o fenômeno comunicacional. Essas circunstâncias po-
dem ser constituídas em determinados momentos nos quais há
um exercício de percepção, em circunstâncias específicas – a
vivência do comunicacional, embora em alguns momentos pa-
reça independente do ato da vontade do sujeito (não parece
PARA COMUNICAR O INCOMUM

51
haver a possibilidade de um “eu quero comunicar”, mas, antes,
de um acaso), a predisposição para a realização da comunica-
ção, para deixar que essa irrupção tenha lugar, parece ser um
dos possíveis do acontecimento comunicacional.
A partir daí são propostas e construídas as vivências
relatadas nos textos, e também se delineiam os três problemas
com os quais gostaríamos de iniciar um diálogo. Primeiro, em
que medida é possível relatar uma experiência a partir de tal
modo subjetivo; segundo, qual concepção de “ciência” ancora
esse tipo de vivência; finalmente, a possibilidade de uma vali-
dade – ou validação? – para além da narrativa da experiência
realizada para além de erros e acertos.

Como ver a experiência do comunicar nos limites da lin-


guagem?

Os limites do dizível parecem estar na raiz de um dos


problemas relacionados ao percurso teórico-metodológico da
Teoria do Acontecimento Comunicacional. A irrupção do fe-
nômeno da comunicação no indivíduo tem dimensões que cer-
tamente escapam ao âmbito da linguagem, ou mesmo das lin-
guagens. A experiência tem uma dimensão não apenas maior,
mas sobretudo mais complexa do que a linearidade de uma
língua ou mesmo das possibilidades de uma linguagem artís-
tica. A inscrição da experiência na linguagem necessariamen-
te implica perdas na medida em que se trata da redução de
um fenômeno multidimensional e inapreensível mesmo para
PARA COMUNICAR O INCOMUM

52
quem tem a vivência: essa redução provoca um pensamento a
respeito dos limites de relato da comunicação.
Como descrever uma situação? De que maneira trans-
por em linguagem aquilo que é inefável se a própria ideia de
algo assim escapa, recorda Wittgenstein (2010), aos limites do
dizível? O que está para além da borda das palavras na expe-
riência? Essa questões se colocam de saída para pensar uma
metodologia do conceito de comunicação. As experiências de
estranhamento vivenciadas podem ser concebidas em que me-
dida? Ao falarmos de uma cena, quais são seus elementos?
Não há descrição detalhada, imersiva, que nos permita sentir
ou apreender as texturas e as sinestesias da cena em análise.
Ao relatar a experiência da Comunicação, a descrição
densa dos detalhes não figura como ornamento do texto, mas
como intenção, força poética para dizer as singularidades, esca-
pando aos encarceramentos das fórmulas prontas, inventando
uma voz na qual vibram outras, evocando um grito, um alerta,
como a “literatura menor” de Deleuze e Guattari (1978), que
confere uma sintaxe ao grito e vice-versa. Só assim de pode
trazer na escrita as múltiplas dimensões, intensidades, afetos,
espaços, práticas, materialidades e memórias que definem as
existências (Moriceau, 2018).
Marcondes Filho propõe que os conceitos surgem a
partir da própria experiência dos sujeitos, não como dados de
antemão, mas como parte mesma do processo de produção
metapórica. A teoria do acontecimento comunicacional parece
buscar na empiria um modo de fazer falar as pequenas percep-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

53
ções, as formas, forças e movimentos que pulsam nos relatos.
A questão central da teoria não é um problema de justa ade-
quação entre teoria e método, mas as possibilidades de ver aí o
florescimento de uma teoria, de uma epistemologia que inclua,
mais do que a explicação, a percepção da vivência performada
no acontecimento e no texto.
O exercício de reflexividade pode ser feito em meio ao
burburinho do caos urbano e do tráfego digital. Essa possibili-
dade aponta também para as possibilidades de construir-se e
criar-se nas heterotopias que fabulamos para nós mesmos.
Os limites do relato estão relacionados ao fato de ele
frequentemente ser tomado como representação do vivido e
não como possibilidade de construção do vivido. Toda repre-
sentação nunca conseguirá abarcar a complexidade do fenôme-
no experimentado no padecer, mas se tomarmos o relato como
trabalho reflexivo de escritura que tem como base a descrição,
a montagem, a bricolagem, a inventividade, as metáforas e as
camadas de sentidos, aí temos que o problema não se restrin-
gem aos limites do relato, da linguagem, mas ao modo como o
autor do texto trabalha sua própria linguagem permitindo que
a linguagem dos outros também persista no texto como uma
polifonia que não necessariamente é unívoca.
Como uma das premissas do texto, Marcondes Filho
(2018a, p. 2) indica o problema da produção de sentido como
“parte da comunicação”. Certamente isso vem de encontro ao
nosso argumento: há um problema que remete às próprias raí-
zes da linguagem e em sua possibilidade de expressão. Limi-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

54
tes, aliás, bastante estreitos quando comparados com a riqueza
da experiência. No entanto, na medida em que a linguagem é
o suporte necessário para o relato das experiências, não seria
possível observar a ocorrência de um paradoxo?
Se a experiência estética se limita em espaços de si-
lêncio, de um lado, por outro lado metodologicamente é ne-
cessário recorrer ao relato, à expressão – no caso, dos jovens
que participaram das vivências – sobre sua experiência comu-
nicacional, o que, de certa forma, já as inscreve em um campo
linguístico de significado.
Em última análise, por sua natureza vinculada ao sujei-
to e sua transformação, o acontecimento comunicacional seria
de certa maneira incomunicável. Indo além reductio ad absur-
dum, seria possível argumentar que esses limites estariam des-
tinados a produzir certo efeito de alienação do próprio sujeito
da comunicação em relação à experiência, uma vez que sua
compreensão, no aspecto cognitivo, comporta uma dimensão
discursiva sem a qual não é possível dar sentido ao fenômeno.
O trabalho de escritura solicitado pela descrição dos
dados qualitativos requer a invenção de uma escrita própria,
uma poética do saber que coloca o autor em igualdade com
as vozes dos relatos e documentos diante dos quais ele se
dispõe. A descrição não é uma coleção e articulação de falas
e dados, mas a imersão em um mundo pela via da fabulação
e do sobressalto.
A escrita não pode ser tomada como algo que só apa-
rece no final, depois da pesquisa feita, só para reportar, co-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

55
municar o que já foi vivido e refletido antes. Ela tem que ser
tomada como problema e como recurso, de modo a produzir
um texto que leva tempo para ser escrito e lido, sem entregar
de pronto ao leitor uma premissa e uma conclusão que a rea-
firma (o leitor vira espectador do argumento e não seu co-pro-
dutor). A escrita do qualitativo se distancia da representação e
se configura no verdadeiro trabalho de pesquisa, não só o seu
prolongamento ou valorização. Assim, a necessidade de deter-
-se mais nos relatos dos jovens desarmaria o dispositivo que
transforma tudo em uma análise na qual todos os depoimentos
são muito facilmente explicados e reduzidos à traços de sofri-
mento e negação.
A experiência estética da comunicação se produz no
sentido de um incomunicável, ignorado ao próprio sujeito –
“estranho a nós mesmos”, na expressão feliz e provocadora de
Julia Kristeva (2006). A comunicação, se essa premissa pode
ser trabalhada, criaria no indivíduo um elemento de estranha-
mento em relação ao que se é ou era antes da irrupção do fenô-
meno, como um familiar que se transforma em algo estranho
exatamente por sua familiaridade – o argumento do unheimli-
ch, em Freud (1917), parece caminhar em alguma via paralela
a esse aspecto.
É possível observar um caminho rumo à uma subjetivi-
dade que esbarra no problema da expressão: em quais condi-
ções a estética da experiência vivida pode ser enunciada? Não
seria o estético impossível de ser enunciável na medida em
que está além do dizível, residindo no “inefável” – e é possível
PARA COMUNICAR O INCOMUM

56
recorrer à Wittgenstein nesse ponto – e portanto situado além
da linguagem?
Finalmente, um aspecto temporal: se existe, para a
produção desse sentido, um “tempo de incubação da vivência
comunicacional”, como argumenta Marcondes Filho (2016;
2018), antes da irrupção do ato, em que medida seria possível
indicar uma inscrição maior do acontecimento comunicacional
no sujeito? A comunicação, nesse sentido, se constituiria em
uma duração, ou estaria destinada a se diluir no conjunto inin-
terrupto de informações e sinais do cotidiano – ou mesmo por
outras experiências? Qual a perenidade e o tempo da vivência?
Em outras palavras, ao “tempo de incubação” não correspon-
deria um “tempo de dissolução” da experiência comunicacio-
nal, sobretudo por sua dificuldade ontológica de inscrição no
campo da linguagem, a partir da qual poderia ser reelaborada?
Sobre a temporalidade, é possível indagar também
acerca do caráter suspensivo necessário à experiência estética:
a suspensão implica mais uma desaceleração do tempo (para
dar lugar à contemplação aurática) e à produção de momen-
tos de repouso para que a vivência possa se produzir (Dewey)
organizando reflexivamente as ações de ter e fazer uma ex-
periência. Mas a suspensão da rotina coloca desafios à meto-
dologia: em que medida a percepção de uma experiência não
circunscreve o espaço para o inefável emergir?
A experiência estética emerge, dentre outros lugares,
nos fluxos constantes da vida vivida, causando uma ruptura,
uma quebra, uma descontinuidade. O problema da suspensão
PARA COMUNICAR O INCOMUM

57
total da rotina cotidiana é a perda de referência do real. Berger
e Luckmann (2003) já falavam isso: o real é uma construção e
só temos a sensação de que compartilhamos uma realidade por
causa do cotidiano que nos assegura rotinas e iterações de nor-
mas e condutas. Se suspendemos a familiaridade do cotidiano,
qualquer um vai se desorientar – ao mesmo tempo, essa condi-
ção parece ser fundamental para a emergência da Comunicação.
Essa perspectiva leva a um outro aspecto: em que me-
dida a experiência do acontecimento comunicacional, se não
pode ser compartilhada pela linguagem, pode ser entendida e
avaliada? Isso parece requerer uma outra concepção de ciência
– o que nos leva à próxima pergunta.

Qual noção de ciência contempla a experiência e o relato?

Qual concepção de ciência fundamenta o estudo da Co-


municação? Marcondes Filho (2011; 2018a) indica a neces-
sidade de deixar para trás a pergunta por um objeto empírico
palpável, concreto, que possa ser medido no âmbito de um sis-
tema positivista de atribuição de significados a partir de gran-
dezas mensuráveis e apreensíveis dentro de uma racionalidade
em seu sentido estrito. É necessário, retomando o argumento
de Kuhn (1995) elaborado por Braga (2014), observar os pa-
râmetros e possibilidades da constituição de uma “ciência nor-
mal” em Comunicação. No entanto, conforme já foi possível
indicar em diálogo com Braga (2014), “não há ciência normal
em Comunicação”.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

58
No âmbito das vivências de campo apresentadas no ar-
tigo, a ruptura com o que poderia ser entendido como o mo-
dus operandi de uma concepção comum de “ciência”, com
medidas e análises retorna ao universo da intencionalidade
do sujeito, em uma dimensão da consciência comunicacional
do indivíduo no qual acontece a comunicação. Os relatos das
vivências são, nesse ponto, a única fonte de contato possível
com as experiências do sujeito. E, nesse sentido, vale a pena
retomar o problema do indizível afirmado no item anterior,
desta vez pensando nas condições cognitivas presentes em
uma narrativa.
Diante das vivências nas quais tem lugar o aconteci-
mento comunicacional, sua transformação em relato, como
visto, é a paradoxal maneira de encapsular o inapreensível de
maneira a torná-lo inteligível, ao menos de modo fragmentá-
rio, para todos os outros quantos não viveram a experiência.
Se, de um lado, isso já pressupõe a existência de uma
diferença, um intervalo entre o vivido e o narrado, quando
pensamos em termos da produção de um conhecimento “cien-
tífico” – as aspas indicam a instabilidade do significante – o
problema ganha outra dimensão, uma vez que passamos, a ri-
gor, por pelo menos três narrativas, ou três planos de narrati-
vas: o sujeito que teve a vivência, o pesquisador que a ouve e
reelabora, a apresentação dentro dos formatos institucionais
de “artigo científico”. O método, assim, parece se constituir
na configuração de um circuito entre três planos: o sujeito que
teve a experiência teve sua fala recortada pelo pesquisador,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

59
que extrai dela o material empírico dentro de um dispositivo
textual. O problema da representação emerge enquanto possi-
bilidade – ou dificuldade – de compartilhar essa experiência
após esse múltiplos filtros.
Neste momento, a questão do fazer científico parece
convergir para a perspectiva de pensar as relações entre narra-
tiva e conhecimento. Isso requer, no entanto, observar alguns
outros pontos relacionados a essa noção.
A elaboração das vivências do acontecimento comuni-
cacional na forma de relatos de pesquisa, marcados por uma
ideia de cientificidade qua mensuração, ou ao menos descri-
ção, encontra um desafio no momento em que é necessário
retomar as vivências do comunicacional.
Nesse sentido, é questionável em que medida existe al-
guma possibilidade de leitura crítica e avaliação do que está
sendo contato. Em última instância, isso poderia gerar uma
pergunta: como é possível errar em uma pesquisa metapórica?
Certamente é possível argumentar, de antemão, que a noção de
“erro” pode estar calcada na raiz de uma ciência “normal” ou
“positiva”. A ideia de “erro” indicaria, por derivação, a exis-
tência de um “acerto”, argumento de sustentação problemática
na medida em que, em termos gnosiológicos, pressupõe em
última análise uma ideia objetiva de “verdade”, indicada nos
termos de uma proposição revestida de validade universal – o
que certamente não é o caso.
Nesse sentido, se não há possibilidade de “erro” no
sentido comum da palavra, mas torna-se igualmente comple-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

60
xo qualquer tipo de valoração – mesmo ética – da experiência
vivida. Pode-se perguntar, a partir daí, quais as possibilida-
des de objetivação, ou mesmo compartilhamento, do saber
produzido pela experiência da Comunicação – e, de certa
maneira, quais seriam as possibilidades de sua inclusão em
um campo científico, ao menos em seus contornos e configu-
rações atuais.
Parece ser difícil, pensando em Bachelard (2008, p.
126), a possibilidade de uma “retificação” de uma experiência
de tal maneira pessoal, o que, em última instância, não permi-
te também uma crítica: mesmo neste texto, que toma o artigo
original para diálogo e comentário, encontra-se dificuldades
em dirigir qualquer crítica ao relato dos jovens uma vez que,
na narrativa, não há contraditório possível – o risco do subje-
tivismo, mencionado anteriormente, pode significar também
certa impossibilidade de apropriação “agonística”, para usar
um termo de Braga (2011), da proposta.
A dimensão metodológica da Teoria do Acontecimento
Comunicacional parece colocar também o problema epistemo-
lógico da criação de condições de desenvolvimento da pes-
quisa em Comunicação. Outras ciências são possíveis, certa-
mente, mas seria possível trabalhar com essas alternativas em
termos institucionais?
Ainda dentro dessa perspectiva metodológica, pode-
-se perguntar em quais circunstâncias seria possível criar uma
“situação de comunicação”, nas palavras de Muchielli (1998),
para a ocorrência do fenômeno – não se trataria, nesse sentido,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

61
de uma elaboração artificial de abertura e estranhamento com
vistas à irrupção da comunicação no sujeito?

Considerações finais

A dimensão metodológica da Teoria do Acontecimento


Comunicacional se apresenta como um formidável objeto de
reflexão epistemológica uma vez que permite dimensionar as-
pectos do conceito de Comunicação proposto por Marcondes
Filho. Voltada para algo além da perspectiva de um estudo de
mídia, o conceito de comunicação proposto parece enfeixar
paralelos estéticos no sentido de algo em fluxo, dinâmico, ina-
preensível mas próximo da compreensão.
Isso demanda, inclusive, outra aproximação com os
modos de escrita acadêmica consagrados, com vistas a um
maior entendimento das várias dimensões da experiência – in-
clusive a perspectiva das fronteiras que caminham da dinâmi-
ca do dizer à permanência do dito.
Sem isso, lembra Moriceau (2018, p. 60), a “voz do ou-
tro tende a ser acolhida como expressão de uma condição, uma
descrição em primeira mão de uma situação, mas a teorização,
a última palavra interpretativa, permanece como monopólio
do pesquisador, que não vê abaladas suas certezas iniciais”.
É preciso criar uma atmosfera descritiva que envolva o
leitor num livre jogo que se distancia do roteiro pré-estabelecido
de interpretação forjado pelo argumento racional que almeja a
representação da experiência e sua legibilidade a qualquer cus-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

62
to: fazer trabalhar o leitor é tarefa que o emancipa e o coloca em
relação com os demais protagonistas da intriga na qual irrom-
pem pequenas percepções e se produzem grandes mudanças.
De modo geral, essas impressões sobre o texto se ar-
ticulam em torno do modo como as experiências metapóricas
distintas dão origem a relato. Para este texto, optou-se pelo
questionamento epistemológico de algumas questões metodo-
lógicas no sentido de trabalhar, mais do que com a crítica per
se, com a possibilidade de desenvolvimentos e caminhos.

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DEVIR-COMUNICACIONAL E ATMOSFERAS
EPISTÊMICAS DO METÁPORO NO PENSAMENTO
DE CIRO MARCONDES FILHO

Mariana Nepomuceno1
Raquel do Monte2

Como pensar e aproximar-se de fenômenos comunica-


cionais a partir de uma relação sujeito-objeto que se institui
na fratura? Esse é o ponto de partida para compreendermos as
raízes epistemológicas da proposta metodológica do pesqui-
sador Ciro Marcondes Filho, intitulada metáporo. Para tanto,
visamos perceber este procedimento a partir da aproximação
com o pensamento filosófico contemporâneo, especialmente
no que se refere ao aspecto ontológico e no vinculado ao con-
ceito de afecção. Feito isso, vamos às bordas do conhecimento
trafegando por uma epistemologia que pensa a imagem e sua
dimensão pórica, movimento que, simultaneamente, materia-
liza e reverbera o procedimento metapórico.

1 Raquel do Monte é professora de Audiovisual do Curso de Comunicação Social da Univer-


sidade Federal de Alagoas. Doutora em Comunicação, pesquisa há 10 anos o cinema contem-
porâneo e as suas interfaces com a Filosofia. Coordena o grupo de pesquisas Linguagens e
culturas visuais (UFAL) e é integrante do Narrativas Contemporâneas (UFPE).
2 Mariana Nepomuceno é doutoranda em Comunicação na Universidade Federal de Pernam-
buco. Pesquisa tragédia e imaginário em imagens do contemporâneo. É pesquisadora do Gru-
po Narrativas Contemporâneas (UFPE).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

66
Pensar a Comunicação no seu sentido ontológico, li-
gado ao campo filosófico, é um exercício que demanda um
movimento específico daqueles que mergulham em seu lago.
Vislumbrar os inúmeros fenômenos comunicacionais que
transpassam o mundo ordinário requer uma costura entre em-
piria e pensamento teórico. Tal gesto, no nosso caso, o de es-
tudiosos do campo, possibilita perceber a atmosfera conceitual
que envolve este universo tão múltiplo e amplo.
É neste sentido que nos deparamos com Teoria da Co-
municação no Brasil, contemporaneamente, e com o trabalho
epistêmico do pesquisador Ciro Marcondes Filho. O autor,
em fricção com a Filosofia, busca refletir acerca da Comuni-
cação, no seu estatuto teórico. Sendo assim, cartografar filo-
soficamente o conceito de comunicação e evidenciar os fios
de Ariadne que constituem a epistemologia metapórica rever-
beram uma construção de sentido que se dá processualmente
quando a dimensão empírico-conceitual do nosso objeto de es-
tudo é evidenciada. Desta feita, aqui, sujeito (teoria) e objeto
(fenômenos sob o qual lançam-se olhares) interpenetram-se,
num movimento permanente de instabilidade. Diante do ex-
posto, propomos nesse artigo responder a seguinte questão:
Como pensar e aproximar-se de fenômenos comunicacionais
a partir de uma relação sujeito-objeto que se institui na fratura,
partindo do que propõe a Nova Teoria da Comunicação cir-
cunscrita por Ciro Marcondes?
Para tanto vamos percorrer alguns caminhos para ten-
tar cartografar as raízes epistemológicas da Nova Teoria da
PARA COMUNICAR O INCOMUM

67
Comunicação proposta por Marcondes, considerando, antes
de mais nada, como já dito anteriormente, que o seu traçado
envolve uma tessitura formada pela convergência entre Co-
municação, Filosofia e Estética, campos do conhecimento que
iluminam a percepção acerca do que vem a ser o fenômeno co-
municacional contemporâneo. Neste trajeto, tal qual um trem
que visa chegar a um destino final, realizaremos algumas pa-
radas em estações distintas com vistas ao flerte com o mundo
científico, o da ciência da comunicação, mais especificamente.
Deste modo, para pensar o que vem a ser “o princípio da razão
durante” apresentada por Marcondes Filho vamos descer na
plataforma chamada Fenomenologia, a próxima estação será
o pensamento deleuziano e nele vamos mergulhar no bloco de
sensações ligado ao conceito de afecção. Após tais paradas,
continuaremos em circulação para lançar vistas no pensamen-
to comunicacional que estamos evidenciando. Um outro mo-
vimento que também iremos realizar aqui é o do mapeamento
do procedimento metapórico. Ele, que serve de método para
nossa relação com os objetos, que serão analisados nosso ter-
ceiro gesto, apresenta as ferramentas necessárias para fraturar
as relações instituídas com vistas a atualização do olhar, da
experiência sensível em torno da comunicação, a partir do
substrato afectivo.

O princípio da razão durante: afetos e perceptos

Quando falamos que a comunicação é uma afecção


que desestabiliza a função cerebral de acoplamen-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

68
to a uma memória anterior, tranquilizante, que ela
cria memória, isso poderia sugerir que estamos no
campo das ciências cognitivas, que operam com
sensações, afecções e percepções de forma abstra-
ta, puramente lógica, fisiológica ou informacional.
Mas não é o caso. Nosso modelo é antes filosófi-
co, apoiado em Bergson e atualizado por Deleuze.
(MARCONDES FILHO, 2012, 265)

A premissa de Ciro Marcondes para pensar a comunica-


ção enquanto fenômeno, se estabelece a partir do diálogo entre
Filosofia e Estética, sobretudo. A Nova Teoria da Comunicação
mapeada por ele realiza um mergulho ontológico no processo
comunicacional, articulando uma epistemologia que percorre o
pensamento ocidental, mas que, aqui, nos deteremos no campo
fenomenológico que envolve tal teorização. Desta feita, a lin-
guagem, substância fundamental, é pensada em convergência
com a técnica e com a percepção, favorecendo deste modo um
processo cognoscente, ou seja há uma equalização, e não uma
sobreposição, como havia antes. Nessa atmosfera a costura se dá
com o objetivo de evidenciar um mundo sensível que erupciona
no fenômeno comunicacional. É assim que o conceito de afec-
ção deleuziano se torna consoante. Epistemologicamente o con-
ceito de comunicação perscrutado pelo pesquisador brasileiro
se constrói pela via filosófica, pensada como fenômeno estético.
Aqui estamos expondo rizomaticamente o campo sensível para
pensar o nosso objeto central: a comunicação pela via do afeto.
Dentre os vários conceitos apresentados nos sete li-
vros que trazem a nova teoria da comunicação nos deteremos,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

69
inicialmente, em dois que lançam as bases para a nossa car-
tografia em torno da proposição teórica de Ciro Marcondes:
Acontecimento e Duração. Sobre o primeiro há claramente um
desejo de aproximação entre o pensamento estóico e a leitura
de Gilles Deleuze, Martin Heidegger e Jacques Derrida. Aqui
nosso olhar recai sobre o primeiro autor.

Conceber a comunicação como um acontecimento


(movimento, fluxos e vetores), assim como a ques-
tão do sentido enquanto extra-ser, exprimível e sua
investigação no contexto das tecnologias atuais, é
certamente o problema filosófico mais sério com o
qual hoje o mundo se depara. (MARCONDES FI-
LHO, 2010, p. 66)

Partindo do pensamento grego ligado ao estoicismo o


autor aproxima-se de Gilles Deleuze e abarca uma torção do
conceito de Acontecimento, tendo em vista que o mesmo ar-
queologizada o termo, no qual haveria duas séries distintas: a
dos seres (dos corpos) e a dos acontecimentos (dos incorpos).
Em Lógica do Sentido o autor relaciona o acontecimento ao
sentido. “Macieira-enquanto-percebida”, é o exemplo utiliza-
do pelo pós-estruturalista para pensar os corpos e os incorpó-
reos. Podemos considerar também que o Ereignis heidegge-
riano, no qual o Acontecimento enquanto sentido assume um
caráter triplo: acontecer, apropriar-se de, captar com o olhar,
anda em paralelo ao événement deleuziano. O acontecimento,
para Ciro, sustenta-se em dois níveis no pensamento de De-
leuze: 1. condição sob a qual o pensamento pensa (encontro
PARA COMUNICAR O INCOMUM

70
com um fora que força a pensar, corte do caos por um plano de
imanência); 2. objetividades especiais do pensamento (o plano
é povoado apenas por acontecimentos ou devires, cada con-
ceito é a construção de um acontecimento sobre o plano). Há
ainda no pensamento deleuziano uma face do acontecimento
que se conecta à temporalidade. Ela existe na ambiguidade,
existência que simultaneamente é parte do mundo e capaz de
se distanciar dele. Está no coração do ser-no-mundo.

Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem


ou subsistem no tempo. Em lugar de um presente
que reabsorve o passado e o futuro, um futuro e um
passado que dividem a cada instante o presente, que
o subdividem ao infinito em passado e futuro, em
ambos os sentidos ao mesmo tempo. Ou melhor, é o
instante sem espessura e sem extensão que subdivi-
de cada presente em passado e futuro, em lugar de
presentes vastos e espessos que compreendem, uns
em relação aos outros, o futuro e o passado. (DE-
LEUZE, 2009, 173)

Considerar esta compreensão metafísica e fenomeno-


lógica do tempo e entrecruzá-la com o resgate deleuziano do
mito de Aion, possibilitará, para a compreensão da comunica-
ção na Nova Teoria, costurar uma possível imersão do acon-
tecimento tendo como ponto de partida a ação da consciência
sobre o real e o aspecto ontológico que vincula a temporalida-
de ao acontecimento. Só que nesse processo o tempo assume
sua feição aiônica, conforme consideração grega apropriada
por Deleuze.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

71
Já a duração, do ponto epistemológico e, consequen-
temente, metodológico, assume também uma centralidade no
percurso que empreendemos para a compreensão do aspecto
metapórico da comunicação. Constituída a partir da tradição
do pensamento de Heráclito, nos aponta Marcondes Filho, essa
ideia alimenta-se do instante, dotando-se de uma qualidade que
indica aspectos fundamentais do ser, como a transitoriedade, a
impermanência e a instabilidade. A forma de conhecer o mun-
do passa pelo contingencial. O inesperado e o fluxo são as suas
substâncias, as que estão na gênese do acontecimento. Nisso é
que reside a potência do fenômeno da comunicação. Ele é uma
fratura, vai do centro às bordas do caos, não obedecendo uma
causalidade pré-constituída. Razão durante é a interpretação
da comunicação como fenômeno que ocorre enquanto esta-
mos vivendo. Ela acompanha nossa vida, é paralela, contígua,
sincrônica. Nós participamos junto. (MARCONDES FILHO,
2010, p. 92).

Razão durante é o princípio segundo o qual o acon-


tecimento comunicacional tem sua existência, seu
efeito e sua força na fração de tempo exata de sua
realização, nesse instante, há uma coincidência de
linhas intencionais que se cruzam permitindo, com
isso, que a dinâmica dos agentes construa o efeito
comunicação. (ibid., p. 91).

Pensar a razão durante enquanto operador cognitivo


que reflete conhecimento e procedimentos em torno dos obje-
tos é um gesto que dialoga com a filosofia de Henri Bergson,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

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fundamentalmente. Para Ciro Marcondes Filho, o legado do
pensamento acerca da duração bergsoniana vincula-se à per-
cepção que reverbera a centralidade do movimento como mo-
tor para a dotação de sentido do que vem a ser a comunicação
nesta perspectiva construída pelo pesquisador brasileiro. Desta
feita, considerando o fluxo permanente que envolve o proces-
so comunicacional, vimos brotar uma relação com o mundo
respaldada na movência, modificação incessante que traduz a
experiência sensível vinculada ao ato comunicacional. É nisso
que reside uma das especificidades essenciais da comunicação.
Na sua processualidade. Na impossibilidade de retalhamento
e de decomposição do seu acontecimento. É esse dinamismo
que acentua a duração, pois, se a única coisa permanente no
processo comunicacional é o seu eterno movimento, a impres-
são de passagem marca a sua existência. Deste modo, o ser
em si da comunicação é respaldada por uma epistemologia e
ontologia singulares.

Sob o sol do afeto: metaporicamente

A partir deste panorama sensível composto no fluxo e


no desejo de presentificação, próprio da comunicação, é que
surgem as inúmeras possibilidades de aproximação nas dinâ-
micas postas em evidência na contemporaneidade. Sendo as-
sim, entre o intuitivo e o rizomático, sendo o primeiro, aquele
que pretende dar centralidade à intuição como porta de entrada
ao fragmento de mundo que se constitui através da relação cor-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

73
po e espírito e o segundo diz respeito ao rizomático, no sentido
que este modelo epistemológico contribui para perceber o fe-
nômeno que estamos desenhando narrativamente.
No percurso teórico-conceitual inscrito aqui é inte-
ressante fixar a esta altura do texto o pensamento de Gilles
Deleuze e a possível aproximação com a Fenomenologia hus-
serliana. Para nós, esta rede epistêmica que concilia o pós-es-
truturalismo com a abordagem fenomenológica interessa-nos
à medida que os dois movimentos apontam em linhas gerais
para a problematização dos limites do conhecimento e voltam
o olhar para os fenômenos fronteiriços, rompendo com as esta-
bilidades que envolvem os processos de significação e referen-
cialidade. Tal gesto nos lembra muito a constelação conceitual
reverberada na Nova Teoria da Comunicação para apresentar
as bases epistêmicas do metáporo.
Em relação ao mapeamento das raízes filosóficas que
nutrem o pós-estruturalismo e que historicamente dialoga com
a tradição aberta por Edmund Husserl ao absorver, por exem-
plo, o método fenomenológico de buscar a verdade ou a es-
sência, via uma intencionalidade ou uma subjetividade. Sendo
assim, poderia inferir que nesse sentido houvesse uma ruptura
com uma tradição vinculada a um determinismo causal que
instituía a regularidade das relações sujeito-objeto na constru-
ção e no acesso ao conhecimento. Sinteticamente, poder-se-ia
afirmar que há uma compreensão do sujeito, da intersubjeti-
vidade e do Eu dentro de um contexto histórico, linguístico e
experiencial mais ampliado. É como se a existência e a lingua-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

74
gem cotidianas levassem para além das fronteiras, do sujeito e
da consciência, mas mesmo assim, continuassem a operar den-
tro desses limites. Nessa reflexão sobre a experiência humana
e sobre os modos como as coisas se apresentam ao mundo, via
ela mesma, ou seja, na centralidade do problema dos apareci-
mentos, é importante notar também o enraizamento no método
kantiano transcendental.
Pensar o sujeito no mundo e o modo como ele tem
acesso ao conhecimento através da experiência fenomênica
permite conectar e talvez transferir para o campo da comunica-
ção algo que informa a singularidade da relação sujeito-objeto
que se estabelece no processo comunicacional e, ao mesmo
tempo, algo que incide sobre a constituição existencial do ser,
formando uma espécie de devir-mundo, pois a base para este
diálogo é o tempo todo atualizada e nesse percurso ocorre dele
ora se atualizar, ora se virtualizar.
São essas as condições de aparecimento do metáporo,
definido por Ciro Marcondes Filho como um tipo de metodo-
logia, um “quase-método”, que busca adaptar-se às característi-
cas dinâmicas, moventes, permanentemente em transformação
do fenômeno comunicacional (MARCONDES FILHO, 2010,
p.10). Esse nomadismo apresentado por Marcondes Filho apro-
xima-se da proposta de Deleuze e Guattari no ensaio intitulado
“Tratado de nomadologia: a máquina de guerra” (DELEUZE e
GUATTARI, 2008), no qual os autores abrem uma discussão
acerca do fazer científico e de como este foi apropriado belica-
mente pelo Estado. Em contrapartida, ele apresenta o que chama
PARA COMUNICAR O INCOMUM

75
de Ciência Nômade, aquela que se interessa pelos fluxos, que se
organiza através da forma espiralar e que tem como modelo o
devir, pois vai de encontro ao estável, ao idêntico e ao constan-
te. Este nomadismo prioriza os fenômenos fronteiriços, aqueles
que escapam da máquina do Estado.

Se o nômade pode ser chamado de o Desterritoria-


lizado por excelência, é justamente porque a reter-
ritorialização não se faz depois, como no migrante,
nem em outra coisa, como no sedentário... Para o
nômade, ao contrário, é a desterritorialização que
constitui sua relação com a terra, por isso ele se
reterritorializa na própria desterritorialização. (DE-
LEUZE E GUATTARI, 2008, p. 53)

Neste sentido, metáporo enquanto processo de relação


com os objetos da Comunicação prescinde desta materialidade
consciente e cognoscente que é ressignificada durante o pro-
cesso errático, indicando a mobilidade da sua relação com o
mundo e também a forma como apreende os objetos. O seu
nomadismo se dá em dois sentidos: externamente – através do
movimento constante que indica um eterno trânsito – e inter-
namente – no modo como se preenche de sentido o que me é
dado através da experiência sensível.
Um outro aspecto relevante do metáporo está localiza-
do na instrumentalidade da intuição enquanto modo de apreen-
são e mergulho no sensível comunicacional. É a intuição sen-
sível no sentido bergsoniano do termo o operador cognitivo
que facilitará a exteriorização das impressões, descrições e
PARA COMUNICAR O INCOMUM

76
constatações dos fenômenos estudados. Esse gesto indica ain-
da a aproximação com um movimento inscricional, no qual se
considera a presença do objeto no sujeito, ou seja, ocorre aqui
uma ruptura da estabilidade da relação sujeito objeto, ancoran-
do-se antes de mais nada no subjetivismo que compõe o ser. O
quase-método portanto assume aqui também a sua inspiração
processual que se alimenta da passagem, do fluxo. É nessa fric-
ção com o mundo que emerge o afeto. Compreendendo que os
afetos são precisamente estes devires não humanos do homem,
como os perceptos (entre eles a cidade) são paisagens não hu-
manas da natureza infere-se que ao ser colocado na duração, o
metáporo dispara a produção de um devir, visto que nasce uma
sensação que excede as bases da racionalidade e encontra-se
no plano do sentido. Aqui cabe, uma ressalva sobre o que se
entende pelo termo afeto: variações da potência de ser e agir
dos corpos (objetos) ante o mundo.

Páthos como percurso da investigação estética

Recentemente, a partir da publicação de textos de


Georges Didi-Huberman recuperando o legado do historiador
da arte alemão Aby Warburg, o campo de pesquisa em Co-
municação encontrou frentes teóricas abertas a partir de uma
perspectiva histórica e, por que não?, afetiva da cultura. Além
da edição brasileira do livro A Imagem Sobrevivente, escrito
por Georges Didi-Huberman, Warburg aparece como figura
central no trabalho sobre artes visuais e cinema de Philippe Al-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

77
lain-Michaud. Warburg desenvolveu pesquisas de caráter an-
tropológico durante viagens à América do Norte e inaugurou a
noção de páthos como operador conceitual para investigações
estéticas. Páthos, uma intensa comoção, pertencente ao domí-
nio do inominável, mas possível ser percebida, reconhecida. A
pulsão que desencadeia o percurso metodológico warburguia-
no deve ser vista como a oferta de um caminho irregular e es-
piralado – pois estamos no âmbito das emoções e da memória.
A questão-problema que se coloca pela indagação: “onde vi
esta imagem antes?”. Percebemos um diálogo frutífero entre a
proposição metodológica de Ciro Marcondes Filho que sugere,
no seu Princípio da Razão Durante (2010) um “quase-método”
– “mais um caminhar do que um caminho” (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 264).
O resgate de Warburg nas pesquisas de Comunicação,
principalmente naquelas que colocam a Estética como cerne
de seus debates, teve seu percurso esmiuçado por Maurício
Lissovsky (2014), que refez os passos do primeiro livro a abor-
dar questões metodológicas relativas às dinâmicas patéticas
nos estudos de imagens: o texto do também historiador da arte
Carlo Ginzburg (2007). Alguns riscos devem ser colocados
em vista quando a pesquisa se debruça com metodologias que
incluem a dimensão afetiva em seus métodos de trabalho. Lis-
sovsky, junto com Ginzburg, apontam alguns deles: o risco da
circularidade das informações e a simples confirmação (sem
inquietação e sem interrogação) dos pressupostos colocados
pela pesquisa. Quando falamos em risco, não os valoramos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

78
como obstáculos ao percurso da investigação mas os grifamos
como sinais que indicam alerta, que pedem constância na re-
flexão acerca da práxis teórica – o que consideramos bastante
instigante, por sinal.
Tanto Ginzburg, quando Didi-Huberman e também
Giorgio Agamben se interessam por Warburg a partir da pre-
missa metodológica que integra a percepção de Warburg que
esfumaça as divisões entre a forma e o conteúdo percebido nas
imagens do Renascimento. Como aponta Ginzburg, interessa-
va a Warburg a comoção presente nas formas que indicava a
permanência de um páthos dionisíaco em paralelo ao classi-
cismo apolíneo. Percebe-se, então, Nietzsche em Warburg, que
circunscreve desta forma a noção de Páthosformeln: “As re-
presentações dos mitos legados pela Antiguidade eram enten-
didas como “testemunhos de estados de espírito transformados
em imagens”, nas quais “as gerações posteriores (...) procura-
vam os traços permanentes das comoções mais profundas da
existência humana”, (WARBURG apud GINZBURG, 2007, p.
45). Seriam fórmulas do patético, observadas na Antiguida-
de Clássica e percebidas novamente em obras da Renascença
pelo movimento e pela paixão dos corpos, estabelecendo, en-
tão, “um laço indissolúvel entre carga emocional e fórmula
iconográfica” (AGAMBEN, 1999, p. 90). O flagrante apelo da
torção gerada pela emoção, o que nos permite a interpelação
direta, o reconhecimento possível que corre pelo atalho da sen-
sação e do sentimento.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

79
Warbug dilata as concepções da História da Arte para
que seja perceptível também enquanto História da Cultura: se
observamos as imagens, então, a partir deste lugar complexo,
envolto pela dimensão não apenas temporal mas também polí-
tica e social que é a cultura, com seus rastros simbólicos perce-
bemos uma confluência que aproxima as perspectivas warbur-
guianas dos interesses de investigações de vários autores. Não
é por acaso que Didi-Huberman além de se interessar por Aby
Warburg deixa a marca de Walter Benjamin em seus escritos
assim como podemos identificar matrizes foucaultianas nos
apontamentos de Giorgio Agamben: os autores contemporâ-
neos perceberam nos que lhes antecederam o valor cultural do
rastro, do vestígio, da ruína, da margem. Estamos cercados por
imagens e há algo nessas imagens que escoa, que é inapreensí-
vel pelas metodologias e esquematismos tradicionais como os
lançados por perspectivas que se concentram na materialidade
da imagem centrando-se em esquemas que privilegiam a di-
mensão formal de seus objetos de pesquisa. Há a reivindicação
expressa de olharmos para as imagens pelas suas bordas e pelo
que essas bordas produzem de conhecimento ao serem friccio-
nadas com as bordas de outras imagens. Warburg deixou, em
seus escritos após o contato com os índios pueblos da América
do Norte, um posicionamento epistemológico bem definido:

Eis o que deve ficar à vista como problema mais ín-


timo: a catarse dessa compulsão ontogeneticamente
opressora em direção a uma definição sensível das
causas. Não quero que se encontro o mínimo traço
PARA COMUNICAR O INCOMUM

80
de cientificismo blasfêmico nesta busca comparati-
va pela natureza imutável do índio em meio à alma
humana desamparada. As imagens e as palavras de-
vem servir de auxílio aos pósteros na tentativa da
reflexão própria, para opor resistências à tragédia
da cisão entre a magia impulsiva e a lógica con-
frontadora. A confissão de um esquizóide incurável,
arquivada pelos médicos da alma. (WARBURG,
2013, p. 256)

A última frase desse atestado de Warburg contra o


domínio do racionalismo sobre a produção do conhecimento
revela não só a profunda relação pessoal do historiador com
aquilo que pesquisa mas também a potência da arte e do pen-
samento de raízes estéticas. A base epistemológica deixada por
Galileu para as investigações acerca das Ciências da Nature-
za envolveu as Ciências Humanas, de acordo com Ginzburg,
diante de um dilema: “assumir um estatuto científico frágil
para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto
científico forte para chegar a resultados de pouca relevância”
(GINZBURG, 2007, p. 178). As questões metodológicas pro-
postas por Warburg indicam uma trajetória mais singular, um
percurso que envolve o que Ginzburg anuncia como funda-
mentais nas buscas de índices: faro, golpe de vista, intuição
(GINZBURG, 1989, 179). Itens necessários a um ofício que
se aprimora pela própria prática, com a coragem de adotar um
rigor flexível. Uma sugestão de percurso que poderia até ser
considerada indesejável caso estivesse não estivesse inserida
no campo epistemológico complexo com o qual a Comuni-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

81
cação lida, em que um conhecimento transdisciplinar se faz
necessário – lidamos com fenômenos que surgem a partir da
tecnologia e das plataformas para texto e imagem que surgem
rotineiramente. De acordo com Ginzburg:

(...) o mesmo paradigma indiciário usado para ela-


borar formas de controle social sempre mais sutis
e minuciosas pode se converter num instrumento
para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez
mais, obscurecem uma estrutura social como a do
capitalismo maduro (...) a existência de uma pro-
funda conexão que explica os fenômenos superfi-
ciais é reforçada no próprio momento em que se
afirma que um conhecimento direto de tal conexão
não é possível. Se a realidade é opaca, existem zo-
nas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem
decifrá-la (GINZBURG, 2007, p. 177).

Estudar as margens dos registros da Cultura requer co-


locar-se também à margem, pelo menos dos métodos tradicio-
nais de pesquisa. Observemos que os interesses de Warburg e
de Ginzburg, enquanto historiadores, estão nos vestígios e nas
sobrevivências, nas recorrências que acompanham a produção
de imagens desde a Antiguidade. As imagens que estudamos a
partir do campo da comunicação e da estética são imagens do
cinema, da televisão, da fotografia, da publicidade, das mídias
sociais etc. As imagens de hoje obedecem, em sua forma de
produção e de fruição, à dinâmica instaurada pela sociedade
industrial, cujo efeito na cultura foi alvo das reflexões da Es-
cola de Frankfurt, referência inaugural para a confluência entre
PARA COMUNICAR O INCOMUM

82
os estudos de comunicação, estética e política. A perspectiva
metodológica que inclui a dimensão patética da relação entre
pesquisador e fenômeno comunicacional destina-se também a
inclusão da “contundência afetiva” (WARBURG, 2015, p. 97).
Isso aponta para uma desaceleração - sabemos que por mais
súbita que nos surja, a paixão nos rouba tempo e o tempo é a
chave para qualquer ritual, seja ele mágico ou científico. Cada
etapa de um processo é uma negociação temporal, um proce-
dimento de abertura e fechamento, de reordenamento daquilo
que se esvai por entre os ponteiros do relógio. Uma tentativa de
abertura de uma fresta de tempo em imagens costumeiramente
categorizadas como técnicas, tal qual é a do cinema, a partir da
relação afetiva estabelecida entre pesquisa e fenômeno.
Ciro Marcondes Filho propõe, a partir de Bergson e de
Merleau-Ponty, a imersão do pesquisador e no objeto de pes-
quisa. Parafraseia Merleau-Ponty: “o granizo é tanto o próprio
granizo como meu espanto diante desses grãos que caem do
céu” (MARCONDES FILHO, 2010, p. 251). É a própria imer-
são em um fenômeno que se torna acontecimento – acontecer
em partilha com o que é investigado. Este movimento pressu-
põe também a construção de uma relação temporal com o ob-
jeto de pesquisa. Adentrar na dimensão, no corpo, nas ranhuras
do fenômeno. Se levarmos essa dinâmica para a prática da ob-
servação, deslocamos as imagens de seu status já instrumenta-
lizado e permitimos realocá-las no espaço do simbólico. Pode-
mos articular, então, um traçado de evocação por semelhança.
Não apenas “onde vi isso antes”, mas também “que imagem
PARA COMUNICAR O INCOMUM

83
semelhante a esta pôde também me comover? E de que modo
me comove? E como aquilo que me comove, comove também
outras pessoas”. Perguntas que parecem, a princípio, banais
mas se circunscrevemos as imagens de nossa investigação a
imagens que são difundidas pelos diversos suportes, meios e
campos artísticos que adentram o campo da Comunicação fa-
lamos da dimensão simbólica dessas imagens que estão a todo
momento presentes na esfera social.

Considerações finais

A narrativa do poeta que perde a auréola escrita por


Charles Baudelaire inspirou Walter Benjamin a desenhar a no-
ção de aura. Baudelaire versa sobre a sagacidade do poeta que
se vê reconhecido pelo seu interlocutor em um mundo em que
palavras como anonimato, velocidade e tédio começam a mol-
dar as mentalidades. Mas o que nos importa aqui não é exata-
mente a perda da experiência ritualística de contemplação de
uma obra. É o que o narrador de Baudelaire aponta em algu-
mas frases: “E eis-me aqui, igual a você, como você vê”;“veja,
só você me reconheceu”. A distância entre poeta e interlocutor
é eliminada. Se há um espanto nisso, há também uma alegria
vinda da possibilidade de algum mau poeta usar a auréola e,
quem sabe, diminuir ainda mais as chances de unicidade do
narrador e aumentar a possibilidade de reconhecimento, quem
sabe? É nesta aposta, do conhecimento que surge pela partilha
da emoção, da comoção, que seguimos. Na pista, no índice,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

84
do que de mais íntimo podemos encontrar em nós mesmos e
que pode ser alinhavado por fenômenos da mídia. Os vestí-
gios do que foge à lógica e permite que nos reconheçamos e
adentremos pelas vias dos objetos forjados na cultura e que
nos contaminam e nos aproximam com o que está em nosso
passado e nosso presente. Este talvez seja o gesto disparador e
atmosfera que faz nascer a experiência metapórica no sensível
comunicacional. É assim que a nova ontologia se descortina. É
na fratura da relação com os objetos e na desestabilização das
posições sujeito-objeto.
Ao ter em vista o constante devir dos objetos, o primeiro
passo, considerando os procedimentos metapóricos3, será inserir
o observador, aquele que lança o olhar, no contínuo, assumindo
que a partir da suspensão de uma objetividade pura, irrestrita, há
uma adesão a uma espécie de desejo de impregnar-se do objeto
a partir de uma vidência que tem, de algum modo, uma ancora-
gem teórico-metodológica, no qual há a inscrição enquanto su-
jeito, criando e acionando uma alteração no cosmo apreendido.
Esta apreensão leva em conta as diversas subjetividades coloca-
das em jogo na nossa relação com a empiria. No acontecimento
se produz um conhecimento que transpassa, que é elaborado (ao
considerarmos o nosso papel como construtores de um mundo)
e que é modificado, é afetado, no sentido deleuziano do termo.
Neste território/platô a natureza fluídica do objeto investigado
convida o sujeito observador a se misturar à observação, for-
3 Os três momentos na pesquisa, segundo Ciro Marcondes Filho, são: no estabelecimento das
condições de possibilidades da mesma e de sua observação, no ato da própria observação (o
caminhar nômade) e na apresentação final dos seus resultados. (Ibidem, p. 265)
PARA COMUNICAR O INCOMUM

85
mando uma espécie de olhar vivencial que se constitui enquanto
experiência na duração. Esses elementos são fundantes para que
possa estabelecer uma relação de afetação com os fenômenos
comunicacionais. Sendo assim, os nossos rizomas foram apre-
sentados para que se pudesse desenvolver a reflexão, a ancora-
gem nas dimensões ontológicas e fenomenológicas e o respaldo
num pensamento estético produzido pelo próprio contato com
os objetos da Comunicação.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg e a ciência sem nome. Revista Arte &
ensaios, v. 1, n. 19, p. 132-143, 2009.
BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Trad. Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira. Poesia e prosa. Rio De Janeiro: Nova Agui-
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ENFIM, UM TEÓRICO BRASILEIRO
DA COMUNICAÇÃO FACE A FACE?

Ana Maria Dantas de Maio1

Ciro Marcondes Filho não me conhece. Só o vi uma


vez, de longe, em um dos congressos que participei durante
o doutorado, o Ibercom 2015, na USP (Figura 1). Eu pes-
quisava, então, a comunicação face a face nas organiza-
ções e já tinha lido diversas obras dele que acrescentaram
muito ao meu trabalho. Queria tê-lo convidado para minha
banca de defesa, mas por motivos circunstanciais, não foi
possível. Porém, naquele 22 de fevereiro de 2016, à frente
de uma banca formada por pares igualmente respeitáveis,
certamente me referi a Marcondes Filho por várias vezes.
Entendo que se trata de uma referência nacional para os
estudos sobre interações face a face.

1 Currículo: Ana Maria Dantas de Maio, doutora em Comunicação Social pela Universidade
Metodista de São Paulo, onde defendeu a tese “O papel da comunicação face a face nas orga-
nizações no contexto da sociedade midiatizada” em fevereiro de 2016. Mestre em Comunica-
ção pela Unesp (Universidade Estadual Paulista); jornalista formada pela UEL (Universidade
Estadual de Londrina-PR). Jornalista do Núcleo de Comunicação Organizacional da Embra-
pa, tendo atuado de 2007 a 2017 na Embrapa Pantanal (Corumbá-MS) e a partir de novembro
de 2017 na Embrapa Pecuária Sudeste (São Carlos-SP).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

88
Figura 1 – Registro da única vez em que vi Marcondes Filho,
no Ibercom, 2015

Foto: Ana Maio

A busca por concepções epistemológicas, teóricas e


metodológicas envolvendo relações presenciais frustra es-
tudiosos brasileiros, que, como eu, necessitam garimpar tra-
balhos de maior profundidade no país. No mundo, cientistas
como Dominique Wolton, Zygmunt Bauman, Erving Goffman
e Alfred Schutz se dispuseram a analisar o fenômeno de forma
crítica, cada um em seu ambiente, em sua época e consideran-
do suas realidades.
No Brasil, não hesito em dizer que esse espaço foi ocu-
pado com propriedade por Ciro Marcondes Filho, ainda que
essa conexão entre o autor e as interações face a face seja pou-
co explorada pela academia. Não é cabível, contudo, reduzir
PARA COMUNICAR O INCOMUM

89
a expressiva obra do professor à comunicação face a face – o
conceito de comunicação que ele introduz com a Nova Teoria
fundamenta estudos dessa área, mas não se limita a ela.
Neste artigo, tentarei defender esse ponto de vista me
apropriando de reflexões do autor aqui homenageado e rela-
cionando-as a outros estudiosos da área. Me sinto à vontade
para bisbilhotar sobre o pensamento de Ciro – desculpe-me
tratá-lo pelo primeiro nome, mas isso me faz sentir mais pró-
xima –, especialmente por enxergar a comunicação da forma
como ele propõe. O professor argumenta que a comunicação
se concretiza a partir de uma decisão do receptor, e não do
emissor. Os sinais disponibilizados o tempo todo em todos os
lugares podem se converter em informação a partir do momen-
to em que recebem a atenção do receptor; e, potencialmente,
se transformam em comunicação se o outro percebe, entende,
sente e reage ao que foi informado.
Essa concepção é fundamental para mergulhar no uni-
verso proposto por Ciro Marcondes Filho. Se sentir tocado,
modificado, sensibilizado por uma mensagem, um conteúdo, é
condição sine qua non para que a comunicação, de fato, acon-
teça. Entendido isso, creio que posso seguir adiante. Será um
prazer ter você, interlocutor, me acompanhando.

O passo-a-passo para construir uma perspectiva

Um caminho pouco original para trilhar a obra propos-


ta por Ciro é, obviamente, ler o que ele pesquisou e escreveu.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

90
O nome dado pela ciência a esse processo é pesquisa biblio-
gráfica. Mas entendo que vai além. Ler o que os colegas da
academia publicam é relevante para a construção do conhe-
cimento, mas o mais desafiador é processar essa informação,
deixa que ela me comunique algo, resgatar na memória o que
outros pesquisadores abordaram sobre o mesmo assunto e, aí
sim, elaborar um novo pensamento.
Uma analogia com receitas culinárias não seria de todo
ruim. Você vai misturando os ingredientes indicados e, deva-
gar, com ou sem o calor do fogo, cria um produto diferente.
A ciência é, assim, uma possibilidade de avançar sobre o que
pesquisadores já descobriram antes de você. Para se fazer o
bolo, foi preciso que alguém inventasse a farinha.
Esse trabalho também pode ser considerado explora-
tório, na medida em que busco me aproximar de dois objetos
distintos – a comunicação face a face e Ciro Marcondes Filho
–, criar, justificar e defender uma conexão entre eles. A pes-
quisa exploratória apresenta-se como adequada para esse tipo
de estudo, pois “implica um movimento de aproximação ao
fenômeno concreto a ser investigado buscando perceber seus
contornos, suas especificidades, suas singularidades” (BO-
NIN, 2011, p. 39).
Por se tratar de um artigo sobre a obra de um pesqui-
sador, considero que este trabalho tem ainda um toque bio-
gráfico. Não falo de uma biografia no sentido estrito – relatar
a vida de Ciro Marcondes Filho –, mas de uma pitada de co-
nhecimento sobre parte de sua produção científica que tentarei
PARA COMUNICAR O INCOMUM

91
perenizar e que, sim, poderá se transformar em subsídio para
futuras biografias.

Ciro e os sinais na copresença

Entendo que o legado de Ciro para pesquisas críticas


ligadas aos diálogos face a face inclui reflexões sobre o silên-
cio, as intencionalidades, as sinalizações e a sensibilização do
outro. Para começar, o autor se inspira em Gregory Bateson e
colaboradores para constatar que “a lógica do corpo não per-
mite mal-entendidos; a pura presença da pessoa, queira ou não,
já comunica” (MARCONDES FILHO, 2004, p. 77). Em texto
posterior, com o avanço de suas pesquisas e o amadurecimento
de seu conceito sobre comunicação, o professor explica por-
que prefere a expressão “sinalizar”, em vez de “comunicar”,
contestando um dos principais axiomas da Escola de Palo Alto.

Todos somos, em princípio, emissores. O tempo


todo estamos emitindo sinais. Os pesquisadores da
Faculdade Invisível, em torno de Gregory Bateson,
chamam isso de comunicar, “tudo comunica, não
dá para não comunicar”, quando, mais apropria-
do – diríamos nós – seria dizer que tudo sinaliza,
não dá para não sinalizar. Comportar-se é sinalizar;
se eles dizem que comunicação, assim como com-
portamento, não tem negativo, dizemos nós que o
sinalizar não possui negativo: não dá para não si-
nalizar. (MARCONDES FILHO, 2010, p. 15, grifo
do autor).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

92
Estar presente ou ausente em determinada situação es-
tabelece um sentido, assim como a atenção dispensada durante
a presença. O compartilhamento do mesmo espaço físico e do
exato momento permite que os interlocutores observem a si
próprios em busca de indicadores sobre o andamento do pro-
cesso comunicacional, ainda que permaneçam em silêncio. É
perceptível, por exemplo, que a pessoa que te ouve demonstra
certo desinteresse ao desviar o olhar repetidas vezes em busca
de uma informação mais interessante. É um sinal não-verbal,
não uma premissa.
Essa discussão conduz ao controle sobre a comuni-
cação não-verbal e, consequentemente, sobre a comunicação
presencial. Segundo Marcondes Filho (2010, p. 330), as ex-
pressões corporais e situacionais auxiliam na compreensão do
enunciado propriamente dito, porém “não significa que iremos
entender exatamente o que o outro está querendo dizer, mas
que controlamos mais variáveis. Mesmo assim, esse entendi-
mento, esse deciframento ainda é sujeito a erros”.
Em relação à intencionalidade da comunicação, o im-
passe entre o pensamento de Marcondes Filho e estudiosos do
Colégio Invisível persiste. Um dos expoentes do grupo criado
na Universidade de Stanford, Paul Watzlawick defende que a
comunicação pode ocorrer mesmo em “uma total ausência de
intencionalidade”. Foi o que declarou em uma entrevista con-
cedida a Carol Wilder (1978). Para esse estudioso, ela não se
concretiza em apenas uma situação: se não houver pelo menos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

93
outra pessoa atuando como interlocutora2. Já para o pesqui-
sador brasileiro, no entanto, a aceitação da comunicação sem
intenções deve ser vista com ressalvas, pois “mesmo negando
que se queira comunicar, do ponto de vista do inconsciente, há
intenções, mesmo na postura, no silêncio e no não-comunicar”
(MARCONDES FILHO, 2011, p. 112).

Experiências vividas (face a face) e mediadas

Quando se mergulha no universo da comunicação face


a face, uma dimensão que naturalmente se apresenta é a ques-
tão das experiências efetivamente vividas em ambientes reais
e as situações mediadas por tecnologias. O debate acadêmico
sobre realidade virtual, terceira e quarta dimensões e mesmo
sobre o processo de midiatização na sociedade fomenta uma
discussão que decidi incluir em minha tese e que também teve
importante contribuição de Ciro Marcondes Filho. Procurei
compreender melhor como os espaços mediados pela mídia
tentam reproduzir os espaços de vivência.
Nesse debate, Marcondes Filho (2008a, p. 77) aler-
ta para uma espécie de fechamento do universo imaginário
oriundo desse abastecimento midiático:

Os produtos culturais que trabalham com imagens


(filmes, televisão) trazem um imaginário já pronto.
Quando eu assisto a uma cena da Índia, do Alasca,
de Ruanda, eu já não fabrico mais na minha cabe-
2 Como exemplo, Watzlawick questiona: “a árvore que cai na floresta faz barulho se ninguém
estiver lá para ouvir?” (WILDER, 1978, p. 42, tradução nossa).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

94
ça esse imaginário, eu apenas instalo essas imagens
em meu repertório e elas passam a ser as imagens
referência desses temas, elas se sobrepõem às mi-
nhas fantasias, se eu já as tinha anteriormente.

Ao se tornarem referência, os discursos ou imagens


mediados pelos veículos de comunicação permitem que o in-
terlocutor que não conhece ou vivencia os objetos apresenta-
dos estabeleça um tipo diferente de experiência – o sujeito se
aproxima do conteúdo mediado sem se afastar do contexto em
que se encontra: uma sala de cinema ou TV, uma biblioteca,
uma redação, um escritório, um carro, etc.
Ciro avalia essa experiência tecnologicamente media-
da em uma reflexão que faz sobre o ensino a distância. Embora
admita que a comunicação possa se concretizar por meio do
uso de instrumentos tecnológicos, ele afirma que a situação
de sala de aula (real) produz uma cena particularmente eficaz.

Para conseguir uma prática efetivamente comunica-


cional a distância, no ensino, eu já não posso contar
com o face a face, o olho no olho de uma relação
presencial, que me fornecem muitos dados além da
imagem propriamente dita e veiculada no vídeo: a
expressão do olhar, os movimentos do rosto, o hu-
mor da pessoa, a fala de seu corpo diante de mim,
a importância da própria presença física em nosso
encontro, seu estado de calma ou tensão, ansiedade
ou torpor, alegria ou tristeza, que só se apreendem
devidamente numa situação de presença. (MAR-
CONDES FILHO, 2008a, p. 54).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

95
Para ele, ainda que professor e alunos estejam em con-
tato online, “a qualidade da troca é reduzida por causa da me-
diação eletrônica. O computador e a tela digitalizam uma rela-
ção pessoal que, em classe, é direta (MARCONDES FILHO,
2008a, p. 95). Perde-se o que ele chama de atmosfera de aula e
o clima da interação social produzido em situação face a face
acaba desaparecendo. A mesma lógica vale para situações de
diálogos entre pessoas:

Uma conversa de duas pessoas não é apenas A fa-


lando com B, mas é A falando com B numa cena
presencial X. Essa cena presencial faz toda a dife-
rença. Em carne e osso, as pessoas não só se falam,
elas percebem sutilezas da expressão, da pulsação,
do brilho dos olhos, da postura, dos perfumes, da
temperatura, do clima do momento. Elas se tocam,
podem ficar à vontade, se entregar. O presencial
sempre pode ser visto como início de outros relacio-
namentos. As trocas íntimas, as revelações secretas,
as insinuações, as alusões, tudo isso só acontece na
presença física direta. Não se pode jamais confiar
num computador, pois se sabe que tudo que é falado
pode ser registrado, denunciado, usado contra qual-
quer uma das partes. Portanto, no presencial ainda
se mantém o clima da reserva, da cumplicidade, do
segredo. (MARCONDES FILHO, 2008a, p. 95, gri-
fo do autor).

As descrições que Ciro faz sobre a prática da comuni-


cação face a face podem parecer corriqueiras, já que as situa-
ções de conversas presenciais fazem parte de nosso cotidiano
PARA COMUNICAR O INCOMUM

96
e pouco são avaliadas sob a perspectiva da ciência da comu-
nicação. Porém, a compreensão desse tipo de contato ganha
relevância quando se constata que “[...] está havendo uma
grande migração das formas de relacionamento pessoais para
as formas mediadas por sistemas eletrônicos” (MARCONDES
FILHO, 2008a, p. 99).
O professor não chega a desqualificar as interações
tecnicamente mediadas, mas reconhece que é mais difícil
existir comunicação quando há aparelhos conduzindo o pro-
cesso. Ciro chama a atenção para a importância da “atmos-
fera circundante”, configurada pelo ambiente onde ocorre a
cena comunicacional, exclusiva dos encontros face a face. A
descrição abaixo é uma das que considero mais expressivas
do autor:

Na nova realidade medial, a comunicação inter-


subjetiva, tetê-à-tête, direta, é substituída pelos
meios de comunicação socialmente abrangen-
tes. Desaparece a mística do olhar, da percepção
do rosto, da atmosfera circundante, criadora do
evento comunicacional, da noção de sentido; sai
de cena a magia das múltiplas linguagens que
[Gregory] Bateson chamava de “jogo da comu-
nicação”, essa arte de desvendar a fala do outro
não pelas palavras propriamente ditas, mas pelo
ar, pelo jeito, pela postura, pela situação, pelo
contexto, por sinais invisíveis e meramente sen-
soriais, pela intuição, pelo “sexto sentido”. Todo
um campo do relacionamento humano passa agora
a competir com uma nova situação em que tudo
isso é convertido em sinal técnico, registrado, fixa-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

97
do, eternizado. Ora, para dar conta da necessidade
comunicacional das pessoas, é preciso, então, que
a nova realidade medial crie um substituto para a
cena comunicacional do face a face. Algo tem que
fazer o papel da atmosfera, da hecceidade, do cam-
po de sensações e de forças visíveis e invisíveis
que constituíam a relação direta. É a emergência
do contínuo atmosférico de sentido da sociedade
de massa. (MARCONDES FILHO, 2010, p. 109,
grifos do autor).

Com suas análises, Ciro parece desafiar a tecnologia


o tempo todo a criar essa energia circulante, indicando que
conseguirá no máximo uma simulação, “uma tênue sensação
dela” (MARCONDES FILHO, 2010, p. 332). De certa forma,
essa atmosfera a que ele se refere parece acolher os sujeitos
em interação.
Abro aqui um parênteses para ilustrar uma situação em
que essa atmosfera fez muita falta. E que máquinas não conse-
guiram criar uma situação acolhedora. Pelo contrário. Era 19
de setembro de 2017 quando eu e meu namorado chegamos a
Bergen, uma simpática cidade norueguesa. Havíamos reser-
vado um hotel sem saber que ficava afastado do centro e que
a cidade estaria com diversas vias interditadas por conta de
um campeonato mundial de ciclismo de rua. Utilizando metrô
e táxi, conseguimos chegar ao endereço indicado e tentamos
entrar no prédio. Foi minha primeira experiência apenas com
máquinas, sem nenhuma intermediação humana.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

98
Figura 2 – Máquinas de check-in e de chamar táxi no hotel
em Bergen, 2017

Foto: Ana Maio

Para entrar no hotel era preciso digitar um código. O


check-in deveria ser feito digitando outra combinação numé-
rica em outra máquina, parecida com um caixa eletrônico, e
que emitia cartões que funcionavam como chave para o apar-
tamento (Figura 2). Dentro do quarto, até tentamos contato
telefônico com algum funcionário, que pudesse nos indicar a
senha do wi-fi para tentarmos contato com o mundo estando
ali. Ninguém atendeu. Decidimos ir embora e outro desafio se
apresentou: uma máquina para chamar o táxi – na qual deveria
ser digitado um número de telefone local, que não tínhamos.
Não houve interação, tampouco a presença da atmosfera cir-
cundante. Do ponto de vista da comunicação, foi uma expe-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

99
riência marcante em que o contato exclusivamente com má-
quinas me fez refletir sobre o quanto o atendimento humano é
imprescindível. Fecha parênteses.
Ciro apresenta ainda o lado “sombrio” da comunicação
face a face, com características que incomodam uma geração
desacostumada aos contatos presenciais e que está perdendo a
habilidade de reconhecer as emoções humanas em função do
uso intensivo da comunicação tecnologicamente mediada e da
consequente falta de tempo dedicado às interações face a face
(UHLS et al, 2014). Para o teórico brasileiro, não há compro-
vações de que o simples fato da co-presença signifique maior
comunicabilidade.

Também o face a face tem problemas e, possivel-


mente, mais entraves do que os encontros virtuais.
O face a face inibe, o olho no olho deixa pessoas in-
comodadas, a aproximação do outro é sempre algo
ambíguo porque seres humanos jogam com os ní-
veis da linguagem, escamoteiam, encobrem, dissi-
mulam, dizem não dizendo, e toda essa malícia cria
situações embaraçosas, incomodantes, desastrosas.
Por isso o face a face constrange. (MARCONDES
FILHO, 2012, p. 46).

Outros estudiosos que se debruçaram sobre o tema tive-


ram a mesma percepção. Cada vez mais, os diálogos presenciais
tornam-se desafiadores diante de uma sociedade que aprendeu a
se proteger por trás de telas. Bauman e Wolton têm muito a nos
ensinar sobre a difícil arte de conviver com a alteridade.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

100
O que diz a literatura sobre a comunicação face a face

Prefiro começar a discussão sobre o que pensam outros


teóricos sobre a comunicação face a face pelo conceito de co-
municação explicitado por Ciro, por entender que ele estabe-
lece uma base para a definição. Em vários textos, o professor
apresenta o que entende por comunicação e eu poderia ter se-
lecionado qualquer um deles. Optei por este:

Comunicação é uma relação entre pessoas, um cer-


to tipo de ocorrência em que se cria uma situação
favorável à recepção do novo. [...] Comunicação é
exatamente isso: o fato de eu receber o outro, a fala
do outro, a presença do outro, o produto do outro e
isso me transformar internamente. (MARCONDES
FILHO, 2008a, p. 8).

Para Ciro, a comunicação está nas mãos do receptor,


pois é ele quem decide dar atenção, absorver, ignorar ou in-
corporar um conteúdo. Emissores (de sinais) disputam essa
atenção continuamente. Eu e você, meu interlocutor, somos
emissores. Filtro apenas o que me interessa. Com isso, sele-
ciono conteúdos e demarco limites para os sinais que recebo,
as informações que me chamam a atenção e a comunicação
que mexe comigo. Esse processo constrói a forma como me
relaciono e convivo com os outros.
Bauman (2001, 2004, 2008, 2011) aposta na metáfo-
ra do “líquido” para descrever a época atual3. Nesses tempos
3 “Um líquido é algo que ganha novas formas sem perder seus componentes. Mas, como todo
fluido, não tem nenhum tipo de forma, está sempre se reestruturando” (MARTINO, 2009, p. 234).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

101
de modernidade líquida, “[...] o contato face a face é substi-
tuído pelo contato tela a tela dos monitores; as superfícies é
que entram em contato. [...] O que se perde é a intimidade, a
profundidade e durabilidade da relação e dos laços humanos”
(BAUMAN, 2011, p. 27, grifo do autor).
O sociólogo acrescenta que não vê sentido na multi-
plicação das possibilidades de conexão e a proporcional soli-
dão causada pela falta de engajamento e de interesse. Na visão
dele, ainda que involuntariamente, os prejuízos subjacentes à
profunda automatização das relações humanas devem superar,
e muito, suas aparentes vantagens.
Pensamento semelhante é compartilhado por Wolton.
Para ele, “nenhuma técnica de comunicação, por mais eficiente
que seja, jamais alcançará o nível de complexidade e de cum-
plicidade da comunicação humana” (WOLTON, 2004, p. 35).
Em várias obras (WOLTON, 2004, 2006, 2007, 2010), o autor
pontua que o maior desafio na comunicação contemporânea é
compreender a alteridade:

Porque na comunicação o mais complicado é sem-


pre o outro. Quanto mais fácil é entrar em contato
com alguém, de um lado ao outro do mundo a qual-
quer instante, mais rápido percebemos os limites
da compreensão. As facilidades de comunicação
não bastam para melhorar o conteúdo da interação.
(WOLTON, 2004, p. 37, grifo do autor).

Para esse pensador, há equívocos envolvendo a ques-


tão da comunicação mediada por computador; um deles é que
PARA COMUNICAR O INCOMUM

102
“não há relação direta entre multiconexão e capacidade de se
relacionar com o outro” (WOLTON, 2006, p. 86); outro enga-
no seria a confusão entre comunicação e informação. Diz Wol-
ton (2006, p. 86) que “o progresso técnico permite produzir e
distribuir uma grande quantidade de informações. No entanto,
isso é comunicação?”, questiona. Ciro responderia que não.
Enquanto Bauman, Wolton e Marcondes Filho indicam
perdas de alguns valores que comprometeriam a humaniza-
ção no processo de comunicação mediada, pesquisas recen-
tes apontam para outros tipos de prejuízos, de um ponto de
vista mais pragmático. É o caso do norte-americano Charles
Berger, para quem os efeitos contabilizados pela comunicação
tecnologicamente mediada não seriam tão recentes. “Desde a
invenção da imprensa, cada vez mais da realidade que os hu-
manos experimentam têm se tornado simbolicamente media-
da” (BERGER, 2005, p. 434, tradução nossa). A leitura que o
pesquisador faz é clara: como os meios de comunicação se de-
senvolveram bastante, as pessoas estão cada vez menos expos-
tas à informação natural, direta, proveniente do mundo físico.
Um teórico pouco explorado no Brasil pelos estudos so-
bre comunicação face a face é Alfred Schutz, que traz conceitos
interessantes como o “relacionamento do nós” e o “envelhecer
juntos”. Austríaco, ele problematiza a comunicação face a face
numa época em que não existiam redes de computadores e con-
cebe o mundo estruturado em termos do alcance real, isto é, do
aqui e do agora. Os conceitos que estabeleceu, no entanto, per-
manecem atuais e têm conexões com o pensamento de Ciro.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

103
Digo que outra pessoa está ao alcance da minha ex-
periência direta quando ela compartilha comigo um
tempo comum e um espaço comum. Ela comparti-
lha comigo um espaço comum quando está presen-
te, pessoalmente, e estou consciente dela como tal
e, além disso, quando estou consciente dela como
essa pessoa ela própria, esse indivíduo em parti-
cular, e do seu corpo como o campo no qual estão
em jogo os sintomas de sua consciência interior. Ela
compartilha comigo um tempo comum quando sua
experiência flui lado a lado com a minha, quando
posso, a qualquer momento, buscar e captar seus
pensamentos conforme eles passam a existir, em
outras palavras, quando estamos “envelhecendo”
juntos. Pessoas assim, ao alcance da experiência di-
reta uma da outra, estão no que chamo de situação
“face a face”. A situação face a face pressupõe, en-
tão, uma simultaneidade real de cada uma das cor-
rentes de consciência distintas (SCHUTZ, 1979, p.
180, grifos do autor).

Para Schutz, assim como para Ciro, a comunicabilida-


de não se estabelece se os comunicantes não se perceberem,
não dispensarem atenção um ao outro, não criarem uma co-
nexão real, não “envelhecerem juntos”. Não basta ocupar o
mesmo espaço. Schutz chama de semelhantes as pessoas com
as quais há convivência direta e de contemporâneos aqueles
que sabemos que existe, mas que só estão acessíveis indireta-
mente e cujas experiências subjetivas só podem ser conhecidas
na forma de tipos gerais de experiência subjetiva (SCHUTZ,
1979, p. 217).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

104
O austríaco trata o contato presencial como “relacio-
namento do Nós”, situação que requer dos participantes uma
“orientação para o Tu” – diferente da comunicação mediada
em que a orientação é para Eles. No entanto, as maiores con-
tribuições deste autor para o conceito de comunicação face a
face são os ingredientes que ele considera indispensáveis para
que o relacionamento do Nós, de fato, se concretize. São eles:
uma linguagem comum, capaz de permitir a interpretação de
significados compartilhados; a reciprocidade de motivações e
a descoberta dos motivos do sujeito com o qual se interage; um
sistema de relevâncias similar entre os atores; e, em especial, a
atenção dispensada durante o encontro, já que “o participante
precisa tornar-se intencionalmente consciente da pessoa que o
confronta” (SCHUTZ, 1979, p. 181).
Outro autor que se destaca nos estudos sobre comuni-
cação face a face é o canadense Erving Goffman. De acordo
com ele, a simples presença de outros indivíduos no ambiente
altera substancialmente o modo de agir de um sujeito. Suas
obras apresentam os comportamentos de fachada (o que se
quer mostrar aos outros) e de fundo (os bastidores, que muitas
vezes se pretende esconder). São pesquisas originais do ponto
de vista das obviedades e das manipulações dentro do universo
das interações face a face.
Goffman introduz métodos da pesquisa antropológi-
ca em seus estudos e recorre à dramaturgia como narrativa
teórica em sua obra mais conhecida, A representação do eu
na vida cotidiana: o livro é constituído de termos associados
PARA COMUNICAR O INCOMUM

105
à representação teatral4. “Um indivíduo pode ser sua própria
plateia ou imaginar um público presente”, afirma Goffman
(2011a, p. 80), ao indicar que a ação humana está vinculada
às expectativas alheias. Em outro livro, Ritual de interação,
o pesquisador avaliza, mais uma vez, a ideia da troca de pa-
péis no processo interativo:

Todas as pessoas vivem num mundo de encontros


sociais que as envolvem, ou em contato face a face,
ou em contato mediado com outros participantes. Em
cada um desses contatos a pessoa tende a desempe-
nhar o que às vezes é chamado de linha – quer dizer,
um padrão de atos verbais e não verbais com o qual
ela expressa sua opinião sobre a situação, e através
disto sua avaliação sobre os participantes, especial-
mente ela própria. Não importa que a pessoa preten-
da assumir uma linha ou não, ela sempre o fará na
prática. Os outros participantes pressuporão que ela
assumiu uma posição mais ou menos voluntariamen-
te, de forma que se ela quiser ser capaz de lidar com
a resposta deles a ela, ela precisará levar em conside-
ração a impressão que eles possivelmente formaram
sobre ela. (GOFFMAN, 2011b, p. 13, grifo do autor).

Em outras palavras, esse indivíduo terá que se projetar


perante a alteridade para compreender suas reações e planejar
sua conduta. Para isso, é relevante que exercite a perceptivida-
de, termo que Goffman associa à habilidade social para des-
vendar os comportamentos dos interlocutores.
4 Na última página o autor explica que o trabalho não está interessado nos aspectos do teatro
propriamente dito. “Diz respeito à estrutura dos encontros sociais – a estrutura daquelas en-
tidades da vida social que surgem sempre que as pessoas entram na presença física imediata
umas das outras” (GOFFMAN, 2011a, p. 231).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

106
O canadense traz para este trabalho uma perspecti-
va diferente, mais próxima da psicologia social e da mi-
crossociologia, mas que enriquece o repertório de quem se
dispôs a acompanhar este texto até aqui. Eu arriscaria dizer
que Ciro torceria o nariz para essa abordagem, por consi-
derar que vertentes sociológicas não apreendem o fenôme-
no comunicacional. Tenho essa visão depois de conhecer
as críticas que ele faz ao avaliar os impasses de uma teoria
da comunicação latino-americana proposta por Jesus Mar-
tín-Barbero, Néstor Canclini e Orozco-Gómes (MARCON-
DES FILHO, 2008b.).

Considerações finais

Ciro Marcondes Filho é leitura obrigatória para quem


pretende entender melhor o fenômeno da comunicação face a
face. É teórico com visão crítica e consistente. Sua Nova Teo-
ria da Comunicação considera o processo comunicacional res-
trito ao momento em que ele ocorre – podendo ser no instante
da co-presença ou da captação de algum conteúdo midiático
via tecnologia, desde que provoque reação no interlocutor.
“O processo comunicacional é o acontecimento ocorri-
do no instante – único – da recepção, da audiência, da leitura,
da participação num evento ou numa instalação. Ele ocorre ou
não ocorre” (MARCONDES FILHO, 2008b, p. 77). E prosse-
gue: “Ou a telenovela me capturou, ou a representação teatral
me envolveu e me emocionou, ou o filme me fez pensar, ou
PARA COMUNICAR O INCOMUM

107
não. Eu não recupero mais tarde aquilo que a comunicação não
me passou”, coloca Marcondes Filho (Idem).
Da mesma forma, as conversas presenciais são mo-
mentos únicos, não reprodutíveis, que se desenvolvem em
uma cena comunicacional singular e cujas reações só podem
ocorrer no momento da recepção. Constituem uma forma de
comunicação pouco valorizada pela sociedade midiatizada e
pela comunidade científica – sendo poucos os pesquisadores
que se dedicam a estudar o tema.
Ciro parece desafiar a comunicação tecnologicamente
mediada a criar um contínuo atmosférico de sentido, algum
mecanismo que consiga reproduzir no ambiente virtual a cena
comunicacional dos encontros face a face. Nesse aspecto, sua
obra é original. Assume uma postura crítica ao reconhecer as
perdas que o uso exagerado de tecnologias impõe aos diálogos
entre pessoas.
Como estudiosa da comunicação face a face, especial-
mente em ambientes organizacionais, reconheço na obra de
Ciro um avanço para a ciência. O Brasil, enfim, produz conteú-
do de peso para essa área. Aqui me despeço de vocês, leitores,
e reitero o desejo de um dia poder conhecer pessoalmente Ciro
Marcondes Filho.
Em tempo: para quem ficou curioso, depois de deixar o
estranho hotel das máquinas na periferia de Bergen, consegui-
mos uma outra hospedagem, no centro, onde fomos atendidos
por pessoas – que falavam, olhavam, escutavam, acolhiam. A
viagem voltou a ter sentido.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

108
Referências

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epistemologia metapórica: nova teoria da comunicação III: tomo V. São
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PARA COMUNICAR O INCOMUM

109
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SOBRE OS ABALOS, O NOVO E AS LÁGRIMAS:
UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO
DO CONHECIMENTO COMUNICOLÓGICO

Deodato Rafael Libanio de Paula1

o que ameaça o trabalho de


pensar (ou de escrever) não é
ele permanecer episódico, é ele
fingir-se completo.

Jean-François Lyotard, em
Peregrinações: lei, forma, acontecimento.

Introdução

Ciro Marcondes Filho busca transformar por completo


os estudos de comunicação no Brasil, propondo a Comunicação
como um campo autônomo do conhecimento, mais próxima à
Filosofia como grande área do que das Ciências Sociais ou da
Linguística. Para o autor, a Comunicação possui uma ontologia
e uma epistemologia próprias2, que são capazes de produzir um
saber efetivamente novo, distinto das demais ciências.
1 Graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso,
membro do Grupo de Pesquisa FiloCom da Escola de Comunicação e Artes da Universidade
de São Paulo e membro do Grupo de Pesquisa sobre a Filosofia da Diferença da Universidade
Federal de São Paulo.
2 Essa discussão é feita na abertura do segundo volume da Nova Teoria da Comunicação
(MARCONDES FILHO, 2004b).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

111
Neste trabalho é discutida a formação de um conheci-
mento no campo da Comunicação a partir de uma pesquisa,
seguindo as propostas de Marcondes Filho. Para isso, será dis-
cutida a ontologia e a epistemologia da comunicação, abor-
dando alguns dos aspectos fundamentais da Nova Teoria da
Comunicação, para depois apresentar a aplicação destas ideias
e seus efeitos. O foco principal do texto é a epistemologia,
relacionando a teoria e a vivência3 na tentativa de saber como
é formado o conhecimento. A pesquisa em comunicação, se-
gundo Ciro Marcondes Filho, deve se centrar no sensível, nas
pequenas percepções que afetam o sujeito, que podem gerar
um envolvimento e levar a uma transformação completa.
Essa forma de pensar a comunicação se sustenta na pro-
posição de comunicação como acontecimento, que é diferente
das ideias de transmissão, emissão, efeitos, media, mass me-
dia etc. Ela também é distinta da ideia de comunicação como
processo, muitas vezes direcionado como meio ou final de um
fato social, que geralmente é estudado posteriormente a sua
ocorrência. Para Marcondes Filho, a comunicação é estudada
no durante, no momento de sua ocorrência, na tentativa de se
perceber as intensidades e as qualidades das afecções.
Marcondes Filho entende o acontecimento comunica-
cional como um fenômeno raro, pois ele é um evento transfor-
mador, que faz surgir o novo. Portanto, há uma crítica à ideia
de comunicação como algo fácil, rápido ou dinâmico. Para o
autor, a comunicação não depende apenas de uma relação, de
3 É importante ressaltar que Marcondes Filho não utiliza as palavras empiria e dados, no que
diz respeito à pesquisa em comunicação.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

112
uma troca simbólica, ou de uma simples interação, mas sim
de uma mudança efetiva a partir da relação de um sujeito com
uma alteridade.
A preocupação de Ciro Marcondes Filho com a comuni-
cação se revela também no âmbito social. Aparentemente está se
vivendo em uma Sociedade da Comunicação e da Informação4.
Nesta sociedade, as máquinas são partes integrantes do viver,
aparelhos envolvem cada vez mais as mãos humanas na execu-
ção de tarefas, não há apenas uma integração dos aparelhos na
vida, mas na própria carne, corpo e máquina passam a ser in-
dissociáveis5. Além disso, as máquinas provocaram a derrocada
efetiva do humanismo, se tornando o centro do mundo e das coi-
sas, algo religioso e divino6. E, com as máquinas, a mobilidade e
a acessibilidade ao outro aparentemente se tornaram mais fáceis
e dinâmicas, o que sugere um pensamento de que a comunica-
ção está aí, basta pegar o celular e mandar uma mensagem via
Whatsapp, comentar uma foto no Instagram, mandar um e-mail,
dentre outras coisas. Mas, será que tudo isso é comunicação? O
que é a comunicação? Em quais circunstâncias ocorre a comuni-
cação? Até que ponto, de fato, se comunica com alguém?7 O que
acontece na inter-relação para que ela seja uma comunicação? O
que difere informação e comunicação?
4 Sobre esse evento ver: CASTELLS, 1999.
5 Esse debate foi realizado na monografia “O social, um lugar da técnica e da comunicação
sob a perspectiva do continuum histórico” (LIBANIO, 2017), que tem como proposta a for-
mulação e a sustentação do conceito de “empatia maquínica”, que aponta para a relação do
homem com as máquinas no mundo contemporâneo.
6 Essas questões percorrem todo o trabalho monográfico feito por Libanio (2017), em especial
o capítulo dois “O revelar da empatia maquínica”. Esses temas foram discutidos anteriormen-
te por Marcondes Filho (2009) e por Erick Felinto (2005).
7 Referência à obra de Marcondes Filho (2004a) “Até que ponto, de fato, nos comunicamos?”.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

113
Para tentar dar conta das discussões propostas, este
trabalho foi divido da seguinte forma: primeiro é discutida a
ontologia da comunicação; depois a epistemologia, no tocante
ao que é o conhecimento na Nova Teoria e também quais são
as formas necessárias para se adquirir esse saber, tratando das
práticas de pesquisa; no terceiro momento é apresentado um
relato de uma pesquisa metapórica; por fim, são feitas algumas
considerações sobre a construção do conhecimento.
Vale ressaltar que não será discutida a questão da me-
diologia, que é a área da comunicação que estuda a produção
de sentido pelos meios de comunicação, que são capazes de
criar um “espírito de um tempo”, de mobilizar a opinião pú-
blica, incitar a população, ou seja, ela trabalha com o que está
na esfera das massas, do macrossocial8. Este texto trata espe-
cificamente da área da comunicologia9, que discute a questão
da comunicação âmbito do sujeito, no tocante a produção de
conhecimento a partir da vivência do acontecimento.

A comunicação como acontecimento

Devido à amplitude de temas que perpassam a Nova


Teoria da Comunicação, optou-se por dividir as discussões em
dois blocos, começando pela fundamentação da ontologia da
comunicação, entendendo-a como problemática do ser e de

8 O conceito cunhado pelo autor para discutir essa questão é o contínuo mediático atmosfé-
rico. Para maior aprofundamento ver o capítulo 11 “Comunicação irradiada e espectral” em:
MARCONDES FILHO, 2010.
9 Sobre a questão da comunicologia ver: MARCONDES FILHO, 2017a.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

114
seus desdobramentos no mundo dos entes, discutindo o que
provoca o acontecimento. Na sequência é trabalhada a episte-
mologia, buscando saber o que é o conhecimento comunica-
cional e como é possível construí-lo.

Ontologia

Para Ciro Marcondes Filho a comunicação é um acon-


tecimento, um evento raro que produz sentido, através de um
atrito casual dos corpos. A força motriz deste evento está no
sensível, nas afecções, no que transborda a língua, no “toque”
da pele, na presença do Outro. A relação pode gerar um pico
de êxtase, em decorrência da violência do encontro com a dife-
rença, provocando efeitos, reverberações no sujeito, fazendo-o
pensar e mudar suas formas de ser e estar.
Vale ressaltar, que o acontecimento não está apenas no
campo do face a face, ele também pode ocorrer nos eventos
estéticos, ao assistir um filme, uma apresentação musical, um
encontro com uma obra de arte; em relações à distância, me-
diadas por um aparelho tecnológico como um telefone celular;
até mesmo em um grande evento mediático que mobiliza e
transforma toda a opinião pública. Esses eventos têm algo em
comum, a produção de sentido, que é a geração de algo novo
que transforma a vida dos sujeitos. Por isso, pode-se dizer que
a comunicação para Marcondes Filho é um fenômeno estético,
pois suas reflexões estão centradas nos aspectos do sensível,
na qualidade da relação.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

115
Para dar conta dos diversos aspectos e diferenças quali-
tativas das relações, o conceito de comunicação não é isolado,
ele dialoga com os conceitos de informação e sinalização. Os
três conceitos buscam contemplar a esfera das relações huma-
nas que permeiam as vivências do cotidiano, indo além das
ideias de recepção e transmissão, sendo dada a ênfase no su-
jeito que sente e percebe o mundo, sofrendo ou não os abalos
da comunicação. Por isso, antes de se discutir mais a fundo
o acontecimento comunicacional se mostra necessário ir aos
conceitos de sinalização e informação.
A sinalização para Marcondes Filho (2010, p. 15) está
ligada ao existir, pois tudo sinaliza, viver é estar sinalizando,
emitindo, emanando signos como diz Deleuze (2003, p. 04).
As coisas ao nosso redor também emanam sinais, uma árvore,
uma cor, uma roupa, uma pessoa do outro lado da rua. Isso
são sinais, sendo que, o que caracteriza esse processo é o fato
do sinal simplesmente passar pelo sujeito, mas não “captá-lo”,
não fazer a sua intencionalidade se voltar ao objeto. O fato de
se emitir sinais de forma não intencional mostra a face passiva
da sinalização, a face ativa ocorre quando existe uma intenção
em falar algo ao outro, quando há o desejo de fazer com que
sujeito volte a sua atenção para o sinal, ou seja, a sinalização é
ativa quando há uma efetiva emissão.
A sinalização ativa tem como exemplo a publicidade
(MARCONDES FILHO, 2010, p. 16, 17), quando ela organiza
e monta estratégias para que o outro volte a sua atenção à men-
sagem publicitária; outro exemplo são os meios de comunica-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

116
ção de massa, que inundam a esfera pública com sinais sobre
um único tema, “exigindo” de alguma forma que as pessoas
prestem atenção em uma notícia ou em um fato; e também há
a simples emissão em um encontro, quando uma pessoa deseja
que a outra volte a sua atenção para ela e, para isso, utiliza
diversas táticas de sedução para que a outra pessoa dê aten-
ção, olhe e converse com ela. Todas essas práticas têm como
intenção a realização de uma efetiva relação com o “receptor”,
provocando uma mudança do sinal em informação ou comuni-
cação. Por isso, o que existe efetivamente são sinais, a comuni-
cação e a informação não existem em si, elas são efeitos possí-
veis de uma relação, formas que possuem qualidades distintas
no campo das afecções, pois dependem de um contexto, se o
sinal irá afetar um sujeito ou não e também se ele impulsionará
um acontecimento. Portanto, não há processo comunicacional,
não há otimização da comunicação, não há uso prático10. O que
existe são encontros que podem causar transformações quali-
tativas no sujeito, e o comunicólogo estuda essas relações e as
suas possíveis reverberações que ocorrem no plano individual
(comunicologia) ou social (mediologia).
Em síntese, um sinal se torna informação quando um
sujeito se volta para ele, criando um vínculo. O vínculo pode
ser construído pela intencionalidade do sujeito quando ele de-

10 Por essas características, que a comunicação é algo não técnico. Observando as influências
de Heidegger no pensamento de Marcondes Filho (LIBANIO; MOREIRA, 2017), se percebe
o esforço do autor para pensar a comunicação fora da esfera da racionalidade técnica, que é
caracterizada como norteadora da racionalização visando sempre uma aplicabilidade, um uso
prático das reflexões, buscando uma otimização das ações. Sobre a racionalidade técnica ver:
(HEIDEGGER, 2007).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

117
cide se voltar ao sinal (MARCONDES FILHO, 2010, p. 16),
e também quando estruturas e organizações macrossociais que
atuam no plano inconsciente ou “no plano das composições
e das adaptações espontâneas” influenciam diretamente ou
decisivamente a intencionalidade individual (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 18).
O que irá diferir a relação com o sinal em informação
ou comunicação é a qualidade da relação. Informação e comu-
nicação dizem respeito a relações diametralmente opostas. A
informação não transforma o sujeito, ela é aditiva, consonante
às suas opiniões e crenças, não provoca mudanças efetivas.
Ela é importante porque dá elementos para agir no mundo, for-
mar opiniões, tomar decisões e criar o imaginário (MARCON-
DES FILHO, 2013, p. 26). A diferença se estabelece porque
ao contrário da informação que é consonante cognitivamente,
a comunicação é dissonante, provoca abalos no sujeito, o faz
pensar em suas formas de ser e estar. Essas mudanças são fru-
tos da violência da comunicação, que ao invés de somarem
aos elementos comuns das vivências, do cotidiano, provocam
o surgimento de algo efetivamente marcante e novo, criando
memória, tornando possível dizer que há um sujeito antes e um
depois da comunicação11.
O fator chave para a virada da relação em aconteci-
mento comunicacional é o choque da violência, o encontro

11 Quando o novo dado altera nossos padrões anteriores, refaz nossa visão das coisas, cria
sentido; então, aí e somente aí, realiza-se a comunicação. Assim, comunicação é uma afecção
que desestabiliza a função cerebral de acoplamento a uma memória anterior, que seria tran-
quilizante. Ela cria memória. (MARCONDES FILHO, 2013, p. 22, 23)
PARA COMUNICAR O INCOMUM

118
do “bisturi com a carne” (MARCONDES FILHO, 2010, p.
95), momento irreversível da afecção incorpórea provoca-
da pela presença da diferença do diferente, que causa as
necessárias reverberações no sujeito que estão atreladas à
produção de sentido. Nessa interpretação da Nova Teoria,
a violência não é apenas um aspecto qualquer do aconte-
cimento, mas o aspecto fundamental para que a comunica-
ção exista, pois sem a violência não há o novo, a produção
de sentido12.
A marca dessa diferença está nas coisas que fazem com
que a comunicação aconteça, que segundo Marcondes Filho,
alicerçado na ideia de “violência do signo” de Gilles Deleuze
(2003), diz que existem coisas que fazem pensar.

Quando recebo sinais externos, eles podem re-


bater sobre mim como informação, mas também
como comunicação. Trata-se da diferença estabe-
lecida por Platão, no livro VII da República, onde
ele fala que há duas espécies de coisas no mun-
do: as que deixam o pensamento inativo ou lhe
dão apenas aparência de atividade e as que fazem
pensar, que nos forçam a pensar. A respeito dessa
observação de Platão, Gilles Deleuze diz que as
primeiras são objetos de recognição: “isto é um
dedo”, “isto é uma maçã”, enquanto as outras, ao
contrário, nos forçam a pensar, não se trata mais
de um objeto que eu reconheço, mas de “coisas
que violentam”. (MARCONDES FILHO, 2010,
p. 20, 21).

12 A questão da violência também foi discutida e enfatizada no acontecimento comunica-


cional no artigo “Das coisas que fazem pensar: o problema da violência da comunicação”
(LIBANIO, 2017).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

119
Quando Deleuze está fazendo essa discussão13, ele
está preocupado com a sua “teoria dos signos” e também
com a origem do pensamento no plano da imanência, e não
no acontecimento comunicacional. Marcondes Filho está
partindo dessa ideia de Deleuze para dizer que há coisas
que violentam, que fazem surgir a comunicação, provocam
o pensar. Por ter essa característica da violência é que a
comunicação faz o sujeito pensar nas coisas, nos outros, em
si mesmo e sobre a vida. Assim, a comunicação se mostra
de forma distinta das falas triviais (MARCONDES FILHO,
2010, p. 22), das mensagens mediadas por aparelhos, de
simples transmissões, de diálogos corriqueiros. Ela se re-
vela no abalo da diferença e pela diferença no momento da
abertura à alteridade.
Não existe a comunicação sem a presença do Outro,
alteridade radical que provoca a diferença. O Outro é um “mis-
tério”, não há como conhecê-lo e esta alteridade é o que torna
possível a percepção do “diferente e da diferença”. Para o Ou-
tro o Eu também é uma alteridade, ou seja, ambos reagem às
diferenças que surgem no encontro, e há a comunicação quan-
do essa relação provoca o surgimento de algo novo em cada
um (MARCONDES FILHO, 2010, p. 34). O acontecimento
provoca uma desconstrução e uma reconstrução “a partir da
interferência detonadora do outro” (MARCONDES FILHO,
2010, p. 280). Por isso, a comunicação não é um processo, não
13 Ver: (DELEUZE, 2003, p. 93, 94).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

120
é meio ou final, ela é um encontro sensível com a diferença
que não se reduz a nenhum pressuposto lógico.
Para a comunicação se realizar é necessária a abertura
para o mundo e para o Outro, mas essa abertura pode ser evita-
da segundo Marcondes Filho. A informação, por exemplo, é li-
gada ao fechamento, porque diz respeito a algo que não muda,
não transforma, que está vinculada às seleções que o sujeito
faz no momento em que lê as notícias, ouve as opiniões com
as quais concorda etc., mantendo-se fechado, no reino feliz
do seu ego (MARCONDES FILHO, 2010, p. 21). A atenção,
a precaução, o medo e a insegurança não permitem a abertura
a novas experiências, por isso elas são mecanismos de defesa,
modos de fechamento (MARCONDES FILHO, 2010, p. 38).
O atrito dos corpos e a revelação irruptiva da diferença podem
fazer o sujeito abandonar a relação, se fechar a ela, se privando
da comunicação.

O atrito provoca faísca, e esta detém um potencial


explosivo. Ou um potencial disruptivo. Diante da
faísca provocada pelo atrito, eu posso me defen-
der, me esquivar, armar meus escudos, minha pro-
teção, minhas armaduras na presença daquilo que
pretende me provocar, frente àquilo que potencial-
mente poderá abalar minha estabilidade. Estarei
vivenciando-a como informação. (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 96).

De modo diferente a relação acontece quando o sujeito


percebe a irrupção da diferença, mas se abre para a experiên-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

121
cia, busca o novo, deseja o Outro. Ou seja, ao invés de se fe-
char para a faísca, o sujeito toma a iniciativa passional, se abre
para a diferença, recebe-a, entra em contato14.
A questão da abertura se revela como parte fundamen-
tal da proposta ontológica da comunicação. Marcondes Filho
nas trilhas de Heidegger em Ser e Tempo, discute o ente como
parte do mundo, sendo o homem o único que questiona sobre
o ser e o seu sentido, por isso ele é possibilidade de abertura
ao Ser. O Ser para Heidegger é um “estar-sendo”, um modo
de estar do ente, pois ele não é predicado real. O ente por sua
insuficiência, sua solidão, sua ex-sistência15 pode sair e buscar
o que ele não é, buscar o novo, porque ele necessita do Outro.
E, esta capacidade de se abrir para o novo e para a diferença é
o que Marcondes Filho (2010, p. 38, 39) denomina de “poten-
cialidade para a comunicação”. Esse problema é muito im-
portante, pois todo o “enigma da comunicação” se sintetiza na
capacidade de se livrar do solipsismo e da autopoiese para aco-
lher o diferente, a alteridade (MARCONDES FILHO, 2010, p.
42). E, a questão da alteridade leva a outro ponto fundamental
da comunicação, a ética.
Para discutir sobre a ética Marcondes Filho vai à
Lévinas. O filósofo Emmanuel Lévinas provoca uma trans-
formação no campo da Filosofia ao estruturar a ética como
filosofia primeira. Nesse pressuposto, a ética sustenta a onto-
14 Nas palavras de Ciro Marcondes Filho (2010, p. 96): “sentir sua carga e seu potencial in-
flamatório, combinar esse afrontamento com minhas próprias articulações internas e, a partir
disso, revê-las, reformulá-las, alterá-las. Estarei praticando a comunicação”.
15 Na tradução de Marco Aurélio Werle de Heidegger (2007), o mesmo termo aparece grafado
como ek-sistência.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

122
logia, e não o contrário como é comum na História da Filoso-
fia, como pode ser notado em Platão, Aristóteles, Kant, He-
gel, por exemplo. Ou seja, Lévinas inverte a forma de pensar
que foi estruturante em boa parte da história do pensamento
ocidental; tendo como problema fundamental a relação com
a alteridade, ele a coloca como responsável pela formação do
sujeito e de sua subjetividade16.
A alteridade para Lévinas é representada pelo femini-
no , que diz respeito ao poder de acolher, de receber o Outro,
17

que é quem provoca o Eu a se abrir para a diferença do diferente.


Assim, ele rompe com as teorias que apostam em um Eu uni-
lateral, autossuficiente ou racionalmente isolado. Ao contrário,
o Eu se submete à presença do Outro, o que revela uma pos-
tura ética em relação ao plano da imanência (MARCONDES
FILHO, 2007, p. 57).
Esse acolhimento pressupõe o esvaziamento do Eu
para que seja possível o recebimento da alteridade em sua ple-
nitude (MARCONDES FILHO, 2010, p. 42, 43). O caráter
dessa relação não faz com que o Eu torne o Outro um Mesmo,
ou seja, torne o Outro algo que o Eu determina e não o que ele
efetivamente seja, e vice versa. Essa relação de mútuo aco-
lhimento é erótica, pois ambos os sujeitos se interpenetram,
porém nunca alcançam o absoluto da alteridade, o seu âmago,
perpetuando o desejo, a busca, elemento que move a relação.

16 Ver: LÉVINAS, 2014.


17 Marcondes Filho (2010, p. 42, 43), diz que para Lévinas a “feminilidade é a alteridade
absoluta, total. Feminino, para ele, é a própria alteridade, tanto no sentido da mulher como
‘acolhimento hospitaleiro do outro’, como na relação erótica”.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

123
Por esta conjectura, o erotismo leva o Eu e o Outro no ato de
acolher a alcançar o infinito18.
Essa relação erótica também é discutida por Marcon-
des Filho a partir da obra de Georges Bataille, que assim como
Lévinas pensa na relação assimétrica ente o Eu e o Outro. Se-
gundo Bataille (1984), o erotismo é uma transgressão dentro
da linearidade imposta pela sociedade do trabalho, uma efetiva
afronta à racionalidade técnica das ações. Erotismo é fruição, é
estar livre das amarras da razão, puro sentir, uma afecção que
faz com que os sujeitos da relação se abram, permitindo um
momento de continuidade entre eles. Essa continuidade pode
ser expressa por um momento de alegria, quando os sujeitos
são tomados pelo riso simultâneo mostrando o surgimento de
uma “brecha escancarada” em cada um deles, fazendo-os se
misturarem uns nos outros, diluindo a fronteira do Eu e do
Outro, uma espécie de morte, que dá a sensação única e mais
potente da vida (MARCONDES FILHO, 2008, p. 211).
As discussões de Bataille e Lévinas se complementam,
mas o ponto mais relevante entre as duas é que elas contribuem
com a proposta de Marcondes Filho de que a comunicação é
algo não técnico, não racionalizado, processado, otimizado. O
erotismo mostra que a comunicação está no campo do sen-
sível, nas afecções, nas pequenas percepções, no desejo, no
sensual e na sensualidade.
18 O fenomenólogo Emmanuel Lévinas é comentado esparsamente por Marcondes Filho em
diversas obras. Em “Comunicação e Revelação” (MARCONDES FILHO, 2017b) os princi-
pais temas do filósofo são discutidos, em especial o conceito de acontecimento, que é compa-
rado ao conceito de acontecimento comunicacional proposto na Nova Teoria. Ver: Marcondes
Filho (2007; 2010; 2017b).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

124
A questão do sentir e das percepções dizem respeito ao
estar no mundo, à imanência. Dando sequência às discussões,
a imanência discute o estrato vida vivida, as pulsões vivas dos
entes, que passam uns pelos outros, estabelecendo vínculos ou
não. É nesta esfera que os corpos se chocam produzindo incor-
póreos, energia nos encontros.
Os incorpóreos são fundamentais na discussão de
Marcondes Filho porque dizem respeito a um campo da lin-
guagem que está na esfera do sensível, mostrando que a co-
municação está para além dos aspectos racionais e formais
do discurso e da linguagem. A teoria dos incorpóreos foi de-
senvolvida inicialmente pelos estóicos e depois retomada por
Deleuze, nesse ponto, Marcondes Filho se distancia da Fe-
nomenologia de Husserl, Heidegger e Lévinas e se aproxima
do campo dos contatos, das pulsões da vida, do estrato da
imanência, discutida pelos estoicos, por Spinoza, Nietzsche,
Deleuze e Guattari.
Para a escola estóica a linguagem está no campo da
imanência, sendo que, a palavra não é algo imaterial, ela é um
corpo, porque também age ao chegar ao Outro após ser enun-
ciada. Os próprios objetos e as palavras que os representam
são corpos, diferentemente ao atributo dado à palavra, o signi-
ficado, que é incorpóreo. O atributo surge a partir do atrito dos
corpos, porém ele não pode ser confundido com a ideia mo-
derna de significado que se atrela à palavra, pois o incorpóreo
surge na relação, no contexto, de forma única (MARCONDES
FILHO, 2004b, p. 37).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

125
O incorpóreo é gerado a partir do atrito dos corpos, e
para Marcondes Filho (2010, p. 61) é a partir desse ponto que
o sentido pode ser produzido. A produção de sentido depende
da relação e do contexto do encontro, que cria uma interliga-
ção específica entre os sujeitos em relação produzindo uma
atmosfera. Esse momento único da relação é denominado por
Deleuze e Guattari como “regime de signos”. O “regime de
signos” interfere em todo o processo relacional, reorganizando
toda a linguagem, fazendo surgir combinações sempre novas
entre “expressões e conteúdos”. O atrito dos corpos incide so-
bre o pensamento realizando transformações incorpóreas, dan-
do vitalidade e energia na “produção da linguagem”. Porém,
o incorpóreo está para além do “plano de contato dos entes”
de Heidegger, pois esse elemento possui um caráter impessoal
e está em um “plano superior”, um novo estrato que surge na
relação e que afeta diferentemente cada corpo na cena. Aqui,
segundo Marcondes Filho (2010, p. 74), Deleuze e Guattari
estão reinterpretando os estóicos.
A partir dessas ideias de Deleuze e Guattari, dos es-
tóicos e também da ideia de “élan vital” de Bergson, Marcon-
des Filho constrói o seu conceito de sentido. Para o autor, o
contato dos corpos faz surgir um “entre-ser” (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 96), criando uma atmosfera comum, incor-
pórea, que afeta de forma singular cada sujeito que compõe
a cena da relação, introduzindo neles uma “energia” (élan),
causando um choque e uma emoção, que violenta, produzindo
uma transformação no âmago de cada um, fazendo surgir o
PARA COMUNICAR O INCOMUM

126
novo. Assim, ele irá definir o conceito de produção de senti-
do como acontecimento. Ou seja, só há comunicação quando
ocorre a produção de sentido, quando um incorpóreo violenta
o sujeito provocando intensas vibrações no seu corpo, no seu
pensamento e na sua vida.
O sentido é algo que se constrói no decorrer da relação
e não é acoplado a ela.

Os acontecimentos não possuem um sentido, eles


são o sentido [...] Quer dizer, sentido não é um
algo que faz parte inerente à coisa, um compo-
nente de sua própria constituição, mas algo pro-
duzido, construído no momento de sua realiza-
ção. O conceito principal aqui, em realidade, não
é a materialidade do objeto mas as forças que o
mobilizam, o incorpóreo que o atravessa. Nada é
estável, a marca é a diferença, não a identidade;
o sentido não existe por si mesmo, ele é apenas
derivação de uma força que preenche o objeto.
(MARCONDES FILHO, 2010, p. 85).

Em síntese, o acontecimento comunicacional surge


pela produção de sentido a partir de uma relação, de um atri-
to dos corpos. Mas, como se estudar a comunicação se ela é
algo tão intenso e momentâneo? Como pensar, pesquisar esse
acontecimento?
PARA COMUNICAR O INCOMUM

127
Epistemologia

Para responder a essas questões o autor se alicerça no-


vamente em Deleuze, e aborda o seu conceito de “empirismo
transcendental19”. Esse conceito diz respeito ao pensar sobre
o pensamento no momento em que ele está acontecendo, em
outras palavras, há que se pensar no pensamento e sobre o que
está fazendo ele surgir no momento do seu acontecer, no mo-
vimento, no durante da relação. Aqui é sustentada a ideia de
Princípio da Razão Durante, que move toda a Nova Teoria da
Comunicação. Portanto, não devemos pensar a comunicação
antes ou depois que ela acontece, mas sim pensá-la durante
o momento de sua fulguração, sentindo as suas intensidades,
vivendo o acontecimento, se comunicando efetivamente.
Segundo Marcondes Filho, as interpretações posterio-
res ao acontecimento já não se configuram como estudos de
comunicação, pois se enquadram em teorias interpretativas
dos efeitos da comunicação, investigações sociológicas, teo-
rias políticas, linguísticas, psicológicas etc. (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 91). Além disso, não há como “decupar”,
“decifrar”, “compreender”, “interpretar” o acontecimento. O
pesquisador tem que sentir, viver, e depois narrar a natureza
selvagem daquilo que lhe aconteceu.
19 “Deleuze fabrica um conceito paradoxal: empirismo transcendental. Transcendental, por-
que, como em Kant, trata-se do exercício do pensamento no exato momento em que esse
pensamento se dá. Princípio da razão durante. É experiência vivida na psicologia, na estética,
no pensamento, mas, ultrapassando todas, mergulhando no inconsciente, capturável agora
num campo transcendental. O transcendental é o dos acontecimentos, não apenas dos “fatos”.
Nada a ver com consciência, mas experiência sem consciência nem sujeito”. (MARCONDES
FILHO, 2010, p. 75).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

128
Comunicação não é um fenômeno que precisamos
domesticar; ao contrário, é de seu caráter “selva-
gem” que iremos extrair a experiência do novo. É
um aprender junto, um conviver com, um sentir os
efeitos e deixá-los repercutir em nós. Mantê-la viva
para que possamos identificar as mudanças, as re-
percussões, as transformações que ela promove em
nós. Trabalhar com a comunicação é operar com a
força e a energia que nos altera; é ceder a elas, é
permitir que elas nos invadam e provoquem em nós
seus efeitos. (MARCONDES FILHO, 2010, p. 94).

Por isso, que a Nova Teoria da Comunicação funda


uma nova ontologia e uma nova epistemologia. A ontologia da
comunicação se sustenta na sua “incapturabilidade”, o seu ser
é um “evento-enquanto-ocorrência”, de caráter contingente,
fugaz, um encontro casual em que os corpos entram em atrito
e produzem sentido. E, a epistemologia é inovadora porque
rompe com a relação de “sujeito-objeto”, não sustenta uma
ideia rígida de método e resultado, e também assume a suges-
tão de autoanálise na pesquisa, da primeira psicanálise Freud
(MARCONDES FILHO, 2010, p. 95). Justamente por essas
características é que não se pode responder a questão: “o que
é a comunicação?”. A resposta objetiva dessa pergunta reme-
te a uma conceituação fixa da comunicação, algo que destoa
da ideia de acontecimento, que pressupõe que ela seja sempre
nova, então, cabe discutir as circunstâncias e modos de sua
revelação enquanto fenômeno. Assim, se consolida uma forma
fenomenológica de se entender o problema, pois para entendê-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

129
-lo é necessário ir até ele, se livrar de conceitos pré-estabeleci-
dos, ter uma vivência e aprender com ela.
As propostas ontológicas da comunicação se mostra-
vam incompatíveis com a ideia moderna de método, o que
levou Marcondes Filho a criar uma epistemologia sustentada
por um “quase-método” ou metáporo, que é a forma de se
produzir conhecimento em comunicação a partir da pesquisa
na vivência do fenômeno.
A ideia de metáporo vem para dar conta das ideias de
acontecimento e razão durante, para isso ela se opõe à concepção
de método, tradicional nas ciências humanas. O método (meta +
odos) tem como princípio um caminho a ser seguido, construído
previamente à pesquisa; o metáporo (meta + poros) possui outro
princípio, o pesquisador segue o caminho caótico dos poros, que
são aberturas de uma passagem, que produzem vias, dimensões
possíveis, em que o pesquisador pode percorrer quando vai “à
campo”. Da parte do pesquisador não cabe controlar o que irá
acontecer ou reduzir a sua percepção a uma só coisa, cabe a ele
apenas a intenção de se expor a um encontro. Essa exposição não
possui nada previamente traçado, o próprio pesquisador vai tri-
lhando o seu caminho no durante da pesquisa, vendo as passa-
gens, perpassando os poros, criando autonomia, sentindo, viven-
do o acontecimento comunicacional ou sentindo que a relação a
qual ele se expôs não produziu sentido, se configurando como
informação (MARCONDES FILHO, 2010, p. 261, 262).
No metáporo o pesquisador se abre para um evento
em que ele mesmo deve perceber o que está lhe afetando,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

130
quais foram as mudanças que ele está sentindo, como é a
energia da atmosfera, como é a relação dos corpos na cena
e quais são os caminhos que se abrem. Nesse encontro pode
ocorrer um pico de êxtase, percebido pela intuição intelectual
do pesquisador, que sente o novo e nota a temporalidade es-
pecífica deste acontecimento. Se o pesquisador pôde captar
essas nuances, então aconteceu a comunicação. Depois que o
encontro acabou20, não há mais como captar o que foi senti-
do, há apenas as reverberações do acontecimento no corpo do
pesquisador, no seu pensamento e na sua vida (MARCON-
DES FILHO, 2010, p. 255).
Essa forma de realizar a pesquisa em comunicação
possui três fases distintas, sendo elas: o “estabelecimento das
condições” da pesquisa e de sua “observação”; o próprio ato
de “observação” do pesquisador; e a apresentação final dos
resultados da pesquisa, que é a narrativa do acontecimento
(MARCONDES FILHO, 2010, p. 265).
Em outras palavras, o metáporo é “um caminho que
se desbrava a si mesmo”, como a passagem de uma embar-
cação, que corta a água “em dois flancos e segue sem traçado
demarcado”, ele é uma passagem “livre e inesperada”, mas
não é qualquer caminhar e sim verdadeira “passagem para o
conhecimento, matáporo, epistemologia momentânea do saber
comunicacional” (MARCONDES FILHO, 2010, p. 263). A

20 Os encontros podem ser de diversas naturezas na experiência de pesquisa metapórica. Eles


podem ser um longo diálogo com uma pessoa, o ato de assistir determinado filme, de se abrir
a uma experiência nova, como ir a um show de uma banda que não se conhece, assistir uma
palestra, enfim. Diversos problemas podem ser pesquisados dessa forma.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

131
ideia de Marcondes Filho (2010, p. 200) é propor uma “ciência
mutante”, que está em constante transformação, mas que não
perde o seu “rigor” e que leva a um conhecimento novo.
Esta forma de investigação considera quatro caracte-
rísticas básicas do acontecimento comunicacional: “novidade,
efemeridade, movimento e imprevisibilidade”. A primeira é de
que ele não é um “objeto” no sentido convencional do termo,
pois ele está em constante mudança, é dinâmico, ágil e co-
bra do investigador a capacidade de acompanhá-lo em suas
nuances. A segunda é que deve ser legitimada a mobilidade
da pesquisa e do objeto devido à sua natureza transitória. A
terceira é que o pesquisador deve acompanhar o movimento
do acontecimento para sentir e captar as suas intensidades. A
quarta é que o acontecimento não se revela por antecedência,
ele pode acontecer ou não, cabendo ao pesquisador sentir a
sua fulguração e tomar a iniciativa de acompanhá-lo (MAR-
CONDES FILHO, 2010, p. 192). Por isso, que o metáporo tem
como princípio uma apreensão do real pelo pesquisador, de
forma instantânea, sem conceitos prévios e de ordem sensível
(MARCONDES FILHO, 2010, p. 251).
Todo acontecimento possui uma duração, que diz res-
peito ao antes, o durante e o depois do momento de pico de
êxtase. Esse fenômeno pode ocorrer de forma mais lenta até o
momento de pico, na leitura de um livro, por exemplo, como
também pode ser no instante do encontro, na experiência vi-
sual de uma obra de arte. Nas palavras do autor:
PARA COMUNICAR O INCOMUM

132
a apreensão instantânea resgata também a importân-
cia da intuição intelectual no processo, ou seja, dos
fatos que antecedem e que sucedem a intuição sen-
sível. Por exemplo, a atividade educacional opera
por acréscimos constantes, faz-se um bombardea-
mento sucessivo de novas informações (ou sinais)
com vistas a minar uma verdade constituída naque-
le a quem se dirige a operação. Num certo momen-
to, ocorre a virada, a transformação, a revelação.
Deu-se um fato sensível que justifica o fenômeno
da comunicação. A mudança se efetivou. O proces-
so é semelhante ao da literatura [...] Mas há aqueles
fenômenos que provocam o choque sem condições
prévias e cujos efeitos se fazem sentir a posteriori.
O cinema, a música, a contemplação estética em ge-
ral, a paixão, provocam o choque, o êxtase, o tran-
se, em suma, os elementos que me transportam para
o outro mundo e que me permitem, através deles,
realizar essa “apropriação metafísica”, de que fala
Bergson, isto é, o sentido. Nesse caso, a intuição
intelectual é posterior, o tratamento daquilo que me
transformou se dá em mim no após. (MARCON-
DES FILHO, 2010, p. 254).

Dadas essas características, a atenção e o acompanha-


mento do pesquisador devem ser completos, exigindo uma en-
trega total à experiência para que seja possível a percepção da
intuição intelectual, e de toda a atmosfera do antes, do durante
e das reverberações do acontecimento. Porém, essas passagens
não devem apenas ser acompanhadas e sentidas, elas também
devem ser densamente apresentadas no relato metapórico, que
é o momento posterior à vivência do acontecimento em que o
pesquisador irá narrar o que lhe aconteceu. Essa escrita deve
PARA COMUNICAR O INCOMUM

133
ser a mais minuciosa possível, mas também não pode ser lau-
datória, ela tem que ser poética, no sentido de tentar transpor
algumas energias e intensidades do que foi vivido para o texto.
Além disso, a percepção das pequenas coisas, dos detalhes,
do “peso do ar” devem fazer parte da pesquisa e constar no
relato, pois o que gera a comunicação são essas afecções, que
provocam desestabilizações, trancos existenciais. Assim, o
pesquisador consolida documentalmente o encontro a que ele
se expôs e também torna possível a percepção da geração de
conhecimento pela pesquisa.
Segundo Marcondes Filho (2010, p. 266), existem três
formas de realização da pesquisa metapórica, que se carac-
terizam pela forma distinta de exposição do pesquisador ao
fenômeno. A primeira é a sugestão da primeira psicanálise, a
auto-observação, em que o pesquisador se expõe ao fenômeno
e “se observa”, “analisa” os efeitos do encontro nele mesmo.
Na segunda forma, o pesquisador se coloca junto a uma ou
mais pessoas que estarão sendo estudadas, observando as suas
mudanças ao se exporem ao fenômeno, suas reações, fazendo
uma “leitura” do contexto e até perguntando o que eles senti-
ram na vivência do fenômeno. Na terceira forma, o pesquisa-
dor é mais analítico, situando-se mais distante do fenômeno,
analisando os múltiplos investimentos dos meios de comuni-
cação de massa e percebendo se há a comunicação pela produ-
ção de sentido no contínuo mediático atmosférico.
As duas primeiras formas dizem respeito à comunico-
logia, focando na produção de sentido no campo do sujeito. A
PARA COMUNICAR O INCOMUM

134
última ideia de pesquisa diz respeito a apreensão do sentido
à distância, formado pelas máquinas sociais de alarme, ma-
nutenção e operação, que de tempos em tempos invadem o
espaço público e criam uma espécie de “espíritos do tempo”.
Porém, esta forma de estudos do campo da Comunicação diz
respeito à mediologia, que não é o foco deste texto.

Pesquisa metapórica – Um encontro com a música clássica

Na tentativa de descobrir novos caminhos da pesqui-


sa em comunicação, o autor deste texto se propôs a utilizar o
metáporo como meio para construir um conhecimento novo
em comunicação. A ideia veio ao acompanhar a disciplina de
“Pesquisa em Comunicação”, ministrada pelo professor Ciro
Marcondes Filho aos estudantes de Jornalismo no segundo se-
mestre de 2017.
Como condição de pesquisa, o autor se propôs ao ca-
minho da autoanálise, pois acredita ser a forma de se pesqui-
sar a comunicação mais próxima ao fenômeno, tendo maiores
chances de garantir as apreensões das intensidades, dependen-
do apenas de sua percepção como pesquisador para captar a
intuição intelectual do pico de êxtase, notando se houve ou não
o acontecimento comunicacional. O autor deste texto acredita
que ao coletar o discurso do Outro, ele sempre estará preso a
um discurso e a algumas reações sobre o acontecimento, e ao
utilizar esses elementos para fazer a sua narrativa metapórica
PARA COMUNICAR O INCOMUM

135
ele estará produzindo um discurso sobre o discurso21. Em sín-
tese, acredita-se que a exposição do pesquisador ao encontro
e as suas reverberações são intraduzíveis em discurso, porém
elas estarão mais próximas na narrativa de quem sofreu inte-
gralmente o abalo.
Como segundo passo no estabelecimento das condi-
ções, o autor optou por uma exposição a um concerto de músi-
ca clássica, pois apesar do pesquisador ouvir esse gênero mu-
sical, ele nunca havia ido a um concerto e sentido a atmosfera
do lugar, o “toque” do som etc.. Então, foi decidido que seriam
feitas três exposições, ou seja, três encontros a concertos mu-
sicais distintos.
Na observação, o pesquisador procurou se abrir ao fe-
nômeno, captar as suas intensidades e, de certa forma, “es-
quecer” que estava lá fazendo “pesquisa”, pois isso poderia
atrapalhar a fruição das sensações e das percepções. No relato
metapórico, devido o caráter de autoanálise da pesquisa, foi
optado o discurso em primeira pessoa. Em suma, na descrição
ele buscou ser sensível e poético, tentando transpor à escrita as
múltiplas sensibilidades dos encontros. Na sequência apresen-
tam-se os relatos metapóricos.

21 Esta problematização da narrativa do acontecimento foi objeto de tese de Ana Paula Teixei-
ra (2013), em especial nos capítulos “Metáporo”, e “A escrita de si e o olhar do pesquisador”.
A autora julga que a construção mais pertinente do relato na pesquisa metapórica é na escrita
de si a partir do meio de pesquisa da autoanálise, pois quando se está pesquisando metaporica-
mente outro sujeito em uma situação, o relato de pesquisa passa a ser mais distante da intuição
intelectual, porque ele irá se constituir por um discurso sobre o discurso do outro.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

136
Primeiro encontro: as mãos que fazem chorar

Em uma tarde de domingo (08/10) desço na estação


Anhamgabaú do metrô, o clima está ameno, um pouco nubla-
do. Ando e olho os prédios da cidade, porém, tenho que me
apressar, o concerto começará em poucos minutos. Subo as
escadas do Viaduto do Chá e olho de longe aquele lugar que
nunca havia entrado, o Theatro Municipal.
Apertei o passo, e logo cheguei às escadas que levam à
entrada. Tive que pedir algumas informações, não sabia onde
era a bilheteria, tudo era novo. Ao comprar o meu bilhete, olhei
o meu celular e vi que marcavam 16h no relógio, o concerto já
iria começar e eu estava atrasado.
Acompanhei um grupo, peguei o elevador e fui guiado
por uma instrutora do Theatro. Quando cheguei no local indica-
do, logo percebi que o meu assento não era onde eu estava en-
trando, então, questionei a instrutora, e ela disse: - “A apresenta-
ção já começou, sua cadeira é no andar de baixo, mas é possível
que não deixem você entrar agora, é melhor sentar aqui”.
Fiquei na lateral esquerda da parte mais alta do Thea-
tro, um lugar horrível, eu tinha que me debruçar sob o parapei-
to para conseguir enxergar o palco. Caso sentasse na poltrona
em 90 graus só conseguiria enxergar o outro lado do Theatro,
sem ter nenhuma visão do palco.
Apesar de estar atrasado, não perdi nada do concerto.
Antes da execução musical, o maestro João Carlos Martins es-
tava apresentando um projeto nacional de música clássica, que
PARA COMUNICAR O INCOMUM

137
visa democratizar este estilo musical, primeiramente em São
Paulo e depois em todo o Brasil.
Depois da apresentação, que contava com a partici-
pação de diversos músicos do Estado de São Paulo, todos se
retiraram do palco, o maestro anunciou o cronograma que a
Bachiana Filarmônica SESI – SP iria apresentar: “Concerto
para piano e orquestra em Ré Maior”, de Haydn, e depois o
conto musical “Pedro e o Lobo” de Prokofiev.
Após o anúncio, foram dados os avisos, e eu me per-
guntava como iria reagir a este algo novo que estava a surgir e,
principalmente, como iria descrevê-lo. As perguntas martela-
vam em minha cabeça, o fato de nunca ter assistido um concer-
to, como que o meu corpo iria sentir aquele som, enfim, sabia
que iria ser muito diferente. Logo em seguida, os músicos to-
mam os seus lugares, e aparece o maestro João Carlos Martins
com duas munhequeiras, ele seria o regente do primeiro movi-
mento do concerto de Haydn. De repente, com um gesto firme
e rigoroso do maestro o som surge, as cordas passam a tocar
meu corpo, tudo se torna mágico, em poucos minutos surge
uma atmosfera, parecia que nada mais existia além da música.
Com os gestos do maestro, os músicos entram e saem de cena,
tudo aquilo me impressionava, pois até então eu não conseguia
compreender o impacto de um regente em um concerto.
A visão de cima passou a se tornar agradável, não sen-
tia mais o incômodo físico, os músicos se moviam dando a
sensação de uma imagem de “mar em movimento”, hora agita-
do, hora mais calmo. Porém, apesar de todas as impressões que
PARA COMUNICAR O INCOMUM

138
tive dos músicos naquele dia, o que mais me impressionava
era o maestro João Carlos, uma espécie de aura emanava dele
durante a apresentação, ele estava magnífico, e como fã do
maestro, vê-lo tão próximo era a realização de um sonho.
O concerto seguiu maravilhosamente bem, não esperava
que o som dos instrumentos sem o auxílio de materiais eletrôni-
cos tocaria o meu corpo daquela forma, era realmente impressio-
nante. Porém, ainda não havia me emocionado completamente,
como já havia acontecido quando assisti determinados concer-
tos pela internet; tudo era muito bom, mas faltava algo. Talvez,
o problema era eu, pois não conseguia relaxar completamente,
pois a ansiedade e a preocupação com relação a descrição me
deixavam com um olhar e postura de pesquisador, que pareciam
me afastar, de certa forma, do acontecimento.
Com o fim do primeiro movimento, as perguntas vol-
tavam a martelar em minha cabeça. João Carlos anunciou que
o segundo movimento seria regido por outro maestro e que o
piano seria tocado por João Pedro, um garoto que deveria ter
por volta de 14 anos.
Novamente os músicos tomaram os seus lugares, agora
com uma formação menor, porém com um novo astro em cena,
o piano. Sempre fui fascinado por este instrumento, é o que
mais me encanta entre todos. Com os músicos em seus lugares,
o segundo movimento se iniciou, porém sem a mística de João
Carlos Martins, o que me desmotivou um pouco, era tudo mui-
to bonito, mas não era a “mesma coisa”. De repente, o garoto
começou a tocar o piano, fiquei assombrado com o seu talento,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

139
ele foi realmente impressionante em tudo. Vou demorar para
esquecer o seu nome, se é que irei esquecer, João Pedro.
Senti o segundo movimento demorar mais que o pri-
meiro. Estava ansioso pelo conto musical, pois não sabia como
iria ser, e ao mesmo tempo decepcionado, pois nada havia me
tocado de uma forma “mágica”.
Poucos minutos depois os músicos voltaram com uma
nova formação, o regente era novamente João Carlos Martins,
e o narrador do conto era um garotinho, Davi Campolongo,
que atuou muito bem no seu papel.
Com cada movimento do conto narrado pelo garoti-
nho, a orquestra “transportava as letras para a música”, numa
espécie de “tradução”, e não ficou difícil de perceber que al-
guns instrumentos representavam algumas personagens mais
especificamente, como: as flautas representavam o passarinho,
Pedro era presentado pelas cordas, o pato pelo oboé, o gato
pelos clarinetes, o lobo pelas três trompas e os rifles dos caça-
dores representados pelos tímpanos. Era lindo. Eu, realmente,
não esperava que um conto feito especialmente para crianças
pudesse alegrar pessoas de todas as idades.
Algo me frustrou. A presença de João Carlos Martins
não me encantou novamente. Ele estava sem as munhequeiras,
pois precisava passar as páginas da partitura, enfim, a mística
da primeira regência não se repetiu.
De repente, o conto acabou, me alegrei bastante com o
que ouvi, e assim como todos que estavam no Theatro, levan-
tei e aplaudi de pé.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

140
Com o fim da apresentação, João Carlos Martins fa-
lou de outra apresentação que ele iria fazer no mesmo dia, e
chamou o narrador Davi Campolongo. O maestro disse que
Davi tocava piano igual “a um adulto”, e rapidamente o garoto
pegou o banco do piano, se sentou, e tocou uma música. O
garotinho mostrou ter muito talento.
Após a pequena apresentação de Davi, os músicos se
retiraram sob palmas, e quando quase todos já haviam saído,
a plateia começou a pedir mais uma música, e logo pararam.
Algumas pessoas já estavam se retirando, o casal que estava
ao meu lado já havia ido embora. De repente, o maestro João
Carlos volta sozinho, o palco estava vazio, já haviam baixado
as luzes, mesmo assim ele abre o piano e realiza o pedido da
plateia. Neste instante eu já estava de pé, quase me retirando, e
ao ver a cena fiquei paralisado. Com as suas mãos prejudicadas
pela sua doença, o maestro usou poucos dedos de cada uma das
mãos para tocar, eu já havia me desarmado, não estava mais
como “pesquisador”, e na terceira ou quarta nota algo surgiu em
meu corpo e não contive as lágrimas, as notas e os seus gestos
pareciam expressar dor e sofrimento, traduzindo o que ele sen-
te pela sua doença, por não poder mais tocar como antes; cada
gesto e movimento me impressionaram, o som era perfeito, ele
era místico, talvez um mágico, absolutamente. Fiquei chocado
ao ver alguém tocar piano em tais condições. Meu êxtase foi tão
forte que não consegui me sentar, assisti de pé. Instantes depois
o maestro parou de tocar e se retirou sob palmas, ninguém pare-
cia esperar ou imaginar o que havia acontecido.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

141
O som parecia ecoar em meu corpo e não só tocar a
minha pele, não havia reflexões ou pensamentos, apenas re-
verberações do que havia acabado de ocorrer. Fui me retirando
do local ainda extasiado. Ao sair do Theatro, o acontecimento
ainda reverberava em meu corpo, foi uma sensação única, pre-
feri andar um pouco, peguei o metrô mais longe, o da Praça da
República. Ao andar sentia algo diferente, algo balançava meu
corpo, fui cair em si quando me aproximei do cruzamento da
Avenida Ipiranga com a São João.
Quando “cai na real” me recordei mais uma vez da pe-
quena apresentação do maestro, foram poucos minutos, não
consigo ao menos mensurar, talvez três ou cinco, mas foram
minutos que marcaram a minha vida, talvez eu nunca mais es-
queça esse dia.

Segundo encontro: o contraste

A manhã de domingo (15/10) e o clima ameno fizeram


com que a minha viagem de trem até o centro da cidade de
São Paulo fosse bem agradável. Desembarco na estação Júlio
Prestes, rumo à Sala São Paulo.
Ao sair da estação o choque e o contraste da cidade,
diversos dependentes químicos, assistentes sociais faziam um
acompanhamento a diversas pessoas que lá estavam. Viro à
esquerda e caminho para a entrada do meu destino. Em pou-
cos passos surge outra realidade, pessoas completamente bem
vestidas, turistas falando em outro idioma, um lugar limpo e
PARA COMUNICAR O INCOMUM

142
muito bonito. Nem parece que estou a poucos passos dos de-
pendentes químicos que povoam a região central de São Paulo.
A cena e o contraste me impactaram um pouco. Desci
algumas escadas e fui à bilheteria retirar o ingresso. Subo as
escadas e vou em direção ao local da apresentação, procuro
o meu assento. Entro em uma das portas e me vejo atrás da
orquestra, no coro, posição que me deixava de frente para o
regente. E, só de pensar que iria ver a apresentação daquela
posição fiquei fascinado, seria uma perspectiva completamen-
te diferente da anterior, e o local em que eu estava acomodado
era muito confortável.
Poucos minutos depois, a Sala São Paulo já estava
cheia, a beleza do lugar me encantava, e os avisos já estavam
sendo passados, o espetáculo iria começar. Diferentemente
da primeira vez, não houve apresentação, os músicos da Or-
questra Sinfônica de Heliópolis entraram no palco e logo em
seguida a regente Marin Alsop. Para mim, isso era comple-
tamente novo, e me remeteu a uma questão de diferenciação
entre esta apresentação e a anterior, que era propositalmente
mais didática.
A primeira música da apresentação foi de Johannes
Brahms, que música potente. Consegui me concentrar bem na
apresentação, estar de frente para a regente me fazia notar cada
gesto dela e perceber como eles interferiam na execução da
música. Senti criar um leve clima durante a apresentação, pois
a música me encantou, mas não me emocionou.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

143
Tudo passou bem rápido, logo, os músicos trocaram de
formação, alguns se retiraram e a regente mantendo o protoco-
lo saiu e entrou novamente no palco.
Estava muito entusiasmado e animado para ouvir a se-
gunda música da apresentação, que foi a “Sinfonia nº 7 em Lá
Maior, Op. 92” de Ludwig van Beethoven. A música é compos-
ta por dois movimentos. No primeiro movimento esperei que
algo me impactasse, e com o decorrer da música a expectativa
criada foi se tornando frustração. De repente, o sono passou a
fazer parte da apresentação, ele tomou conta de mim e quando
eu percebia estava dando pequenas cochiladas, fiquei até enver-
gonhado. Não consegui mais me concentrar, tinha momentos de
lucidez, mas pouco a pouco o sono me embriagava novamente,
e logo em seguida eu estava lúcido, e depois novamente embria-
gado. Foi uma sensação ruim. A apresentação pareceu demorar
mais para passar, e quando se iniciou o segundo movimento,
que é o mais bonito, na minha humilde opinião, continuei sono-
lento e não consegui me concentrar novamente.
A apresentação acabou, vieram os gritos e as palmas,
os músicos se curvaram, e logo depois se retiraram. As pessoas
começaram a ir embora do local, levantei meio perplexo e me
retirei, pensava no que havia acontecido. Quando saí da Sala
São Paulo parecia que eu tinha “voltado” para a realidade, no-
vamente vi os dependentes químicos nas proximidades da es-
tação, aquilo me incomodou novamente. Sem muitas demoras
entrei na estação e me acomodei, agora era só esperar o trem e
curtir a frustração até a volta para casa.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

144
Terceiro encontro: a velocidade do tempo

O tempo é curto, tenho que me apressar para não per-


der o horário do concerto. Chego a tempo à Sala São Paulo,
não queria perder de jeito nenhum as “Danças Eslavas” de An-
tonín Dvorák. Este compositor em especial é um dos meus pre-
feridos. O caminho até o assento foi interessante, a beleza do
lugar, o clima agradável da manhã de domingo (29/10), dentre
outros pequenos detalhes me fizeram entrar em um “clima”
antes mesmo do início do concerto.
Ao chegar à entrada do rol principal, uma integrante
da organização me informa que é permitido se acomodar em
qualquer lugar vago, não precisaria procurar o número e a letra
correspondente ao ingresso22. No momento em que ouvi a in-
formação avistei um lugar perto do palco, eu iria ficar de frente
para a orquestra, apenas a umas dez cadeiras de distância, não
pensei duas vezes e fui direto para lá.
Mal deu tempo para pensar, os músicos já estavam to-
dos a postos e, logo em seguida, a regente Nathalie Stutzmann
entrou em cena e tomou o seu lugar, o espetáculo começou.
A vista era muito boa, estava muito entusiasmado, logo
nas primeiras notas me vem um arrepio dos pés à cabeça, uma
energia muito boa emana do lugar, sinto os instrumentos pul-
sarem em meu corpo, tudo era lindo e belo, minhas expectati-
vas estavam sendo atendidas.
22 Isso ocorreu porque o concerto era gratuito, e não havia uma delimitação correta do local
de assento, quem retirasse o ingresso poderia se acomodar onde achasse conveniente.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

145
As “Danças Eslavas” passaram rapidamente, foi tudo
muito lindo, mas não o suficiente para me arrancar as lágri-
mas. Sem dúvidas, foi o melhor concerto que eu havia assis-
tido até então.
Logo em seguida, a regente se retira, e algumas pessoas
começam a ir embora, eu não entendi aquilo, pareceu muito
desrespeitoso, pessoas saindo no meio do espetáculo sem ne-
cessidade aparente. Aquilo me incomodou. Quando a regente
retornou ao seu posto ainda havia algumas pessoas saindo, o
que tornou a situação ainda mais chata, a meu ver.
A regente tomou o seu posto, e antes de começar fa-
lou algo para os músicos e fez um gesto, erguendo os ombros,
abrindo os braços e pendendo a cabeça para o lado. Talvez, não
tenha sido só eu o incomodado com a saída das pessoas.
Problemas a parte, a música recomeça, novamente po-
tente, era a “Sinfonia nº 7 em Ré Menor, Op. 70”, de Dvorák.
Sinto uma forte energia nas músicas deste compositor. Apesar
da leve dor de cabeça não sentia sono, estava ligado à música.
Novamente a música passou rapidamente, porém não
tanto quanto a primeira. É estranho como em alguns momen-
tos não vemos a hora passar. Ao fim da música uma grande
salva de palmas, uma das maiores que já vi, não havia fim,
era muito potente, brindava os músicos pela bela apresentação,
sem dúvidas, magistral. As músicas de Dvorák transmitem em
mim um sentimento de dor, frio e sofrimento, ao mesmo tempo
um sentimento de esperança, talvez sejam os próprios senti-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

146
mentos vivido pelo autor, na virada do século XVIII para o
XIX na atual República Checa.
O fim não parecia ser fim, mas infelizmente acabou,
só restava agora sentir a energia dos instrumentos que ainda
ressoavam em meu corpo na volta para casa.

Considerações Finais

Apesar das fortes emoções sentidas em distintos mo-


mentos da pesquisa, o autor acredita que houve o acontecimen-
to comunicacional apenas no primeiro encontro, mais especifi-
camente no momento da pequena apresentação de João Carlos
Martins, ali ele sentiu um pico de êxtase, por algum momento
ele se sentiu “sem chão”, teve um encontro com o novo. Esse
encontro provocou um abalo, deslocou pilares, criou memória,
pois até o momento as cenas da apresentação ainda continuam
muito vivas em sua memória. Os demais encontros criaram
uma atmosfera, foi gerado um vínculo, mas não houve o abalo,
a produção de sentido e a revelação do novo, caracterizando-
-os como informação.
As reflexões sobre os encontros e a vivência do acon-
tecimento, provocaram o autor a pensar nas pequenas percep-
ções que ele teve e que o fizeram compreender de outra forma
a questão o acontecimento comunicacional, percebendo como
a teoria busca contemplar um elemento da vida que implode o
cotidiano, a monotonia do dia a dia. Além disso, com a vivên-
cia desse episódio tornou mais clara a diferença entre informa-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

147
ção e comunicação, notando que a violência é o pressuposto
principal para que exista a virada da relação em acontecimento
comunicacional, pois ela é quem provoca o abalo, que desesta-
biliza o sujeito, deixa-o “sem chão”, coisas que não acontecem
na informação.
Além disso, notou-se que a violência da comunicação é
intensa a ponto de criar memória, assemelhando-se a um “cor-
te” na pele, que cria uma marca profunda que jamais irá ser
apagada. A marca está ali, passa a fazer parte do corpo, que
já não é mais o mesmo. Assim, fez mais sentido a ideia de
“encontro do bisturi com a carne” que Marcondes Filho (2010,
p. 95) trabalha; após o corte tudo é novo, o bisturi violenta ao
cortar e a carne é nova após o corte, não tem mais como juntar
os pedaços. Talvez, esse seja o encontro efetivo com o novo,
que é violento por si mesmo, que deixa sem voz, sem andar, é
apenas sentir, diluindo qualquer ideia de ego.
A partir das discussões e da realização da pesquisa
criou-se um conhecimento novo. O primeiro ponto que pôde
ser percebido com a pesquisa é que o acontecimento comuni-
cacional é um evento efetivamente raro, ele desloca pilares e,
por isso, implode o cotidiano; o segundo é que a violência é o
principal ponto do acontecimento; e o terceiro é que a comu-
nicação acontece no plano do sensível, nas pequenas coisas,
nas afecções e nas pequenas percepções. Como contraposição,
acredita-se que a autoanálise seja a única forma de se conse-
guir captar as intensidades do fenômeno conforme a proposta
metapórica, as demais não são capazes de transpor à narrativa
PARA COMUNICAR O INCOMUM

148
a vivência da comunicação, porque estarão muito distantes das
energias do acontecimento, pois até na autoanálise é difícil ex-
pressar textualmente o que foi vivido.
Aqui, se estrutura a construção de um conhecimento co-
municológico, que faz compreender os pressupostos ontológi-
cos da comunicação, mas também faz o pesquisador repensar e
questionar alguns elementos da Nova Teoria da Comunicação.
Além disso, pela comunicação ser um acontecimento único,
ela proporciona um encontro com o novo e, por consequência,
o pesquisador ao apreender o fenômeno estará adquirindo um
conhecimento novo sobre a comunicação, isso faz com que
cada pesquisa traga um novo saber para a área. Assim, há uma
contribuição efetiva para a construção do conhecimento cien-
tífico, pois ela nunca será apenas aditiva ou confirmativa, ela
levará ao questionamento, a reflexão e a consequente produção
de uma nova proposição.
Como síntese da vivência desta pesquisa em comuni-
cação, pode-se dizer que a Razão Durante leva a novos ques-
tionamentos, caminhos e estudos da comunicação. Ao con-
trário de construir uma estrutura que dá conta de “todos” os
fenômenos e formas possíveis da comunicação, a Nova Teoria
propõe uma pesquisa sobre o novo, levando em conta a sua
efemeridade e singularidade, e por ter essa característica ela
não é estática. Além disso, ela também apresenta perguntas
fundamentais que todo o pesquisador da área de comunicação
deve se fazer ao estudar e pesquisar. Portanto, a Nova Teoria
deve ser uma porta para novos problemas, conceitos e ideias,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

149
para que o pensamento comunicacional vibre e se reinvente
em cada pesquisador.

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(Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicação e Ar-
tes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
DA INCOMUNICAÇÃO AO METÁPORO: PARA O
RETORNO DO HUMANO À COMUNICAÇÃO
Míriam Cristina Carlos Silva1
Paulo Celso da Silva2
Tarcyanie Cajueiro dos Santos3

Este texto aborda a contribuição de reflexões propostas


por Ciro Marcondes Filho para uma discussão singular sobre a
Comunicação, tanto em seus aspectos epistemológicos quanto

1 Miriam Cristina Carlos Silva: Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo (2004). Pós doutorado em Comunicação Social pela Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2012). Professora titular do Mestrado
em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, na linha de pesquisa Análise de
Processos e Produtos Midiáticos. Lidera o Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas –
NAMI – da Universidade de Sorocaba. Pesquisa, no âmbito da comunicação e das culturas,
as diversas estratégias do narrar, suas poéticas, sua produção de sentidos e as especificidades
que caracterizam as diferentes linguagens utilizadas nas narrativas comunicacionais, em dife-
rentes meios. Publicou “Comunicação e cultura antropofágicas: mídia, corpo e paisagem na
erótico-poética oswaldiana” (Sulina) e “A pele palpável da palavra” (Provocare).
2 Paulo Celso da Silva: Doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de
São Paulo (2000). Pós doutoramento pela Universitat de Barcelona (2001-2). Professor titular
da Universidade de Sorocaba, professor do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura
e minhas atividades estão inseridas na Linha de Pesquisa Mídias e Práticas Socioculturais. Em
2014 pesquisa com apoio FAPESP abordando as Smartcities e atualmente estudo um novo
projeto intitulado Mídia Territorial Resiliente: Levantamento e análise das políticas públicas
ambientais e de inclusão cidadã no âmbito da Smartcity Barcelona. Experiência nas áreas de
Comunicação, Geografia, Filosofia, com ênfase na Comunicação, atuando principalmente nos
seguintes temas: Smartcity, sociedade do conhecimento, comunicação e cidade, geografia da
comunicação, mídia e movimentos sociais urbanos.
3 Tarcyanie Cajueiro dos Santos: Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade
de São Paulo, com Pós-Doutorado pela mesma instituição. Bolsista Jovem Pesquisadora da
Fapesp no período de 2008 a 2012. Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (UNISO), Sorocaba/SP. Publicou
o livro Dos espetáculos de massa às torcidas organizadas. Tem capítulos de livros e artigos
publicados sobre os seguintes temas: sociologia da comunicação, teorias da comunicação,
narrativas midiáticas, subjetividades, futebol, esporte, consumo e do lazer.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

153
nos metodológicos. A partir dos conceitos de incomunicação,
acontecimento comunicacional e metáporo, pensamos sobre
outras possibilidades de compreensão do fenômeno comunica-
cional, sugeridas pelas seguintes questões: a) que conceito de
comunicação buscamos, e qual a relação deste conceito com a
subjetividade, a intersubjetividade, o corpo, o espaço, a noção
de poético e o fenômeno da morte?; b) a partir do conceito de
comunicação (e o de incomunicação) proposto por Ciro Mar-
condes Filho, é possível pensar sobre percursos mais abertos
para a pesquisa em comunicação? Buscamos, ainda, pontos
de convergência entre o pensamento comunicacional de Ciro
Marcondes Filho e de outros autores, tais como Norval Baitello
Junior, Vilém Flusser e Michel Serres. O território para essas
reflexões envolve a pesquisa de parte da bibliografia construída
por Ciro Marcondes Filho, bem como a revisão da produção
acadêmica dos autores do texto, que vem se tecendo em diálogo
com o pensamento de Marcondes Filho. Consideramos que os
conceitos de incomunicação e acontecimento comunicacional
são fundamentais para se restabelecer a centralidade do huma-
no, do corpo, da estética (e da poética), da subjetividade, nos
processos comunicacionais, o que promove o escapar de uma
perspectiva mediacêntrica ou informacional. A ideia do metápo-
ro insere a capacidade de abertura, de conexões mais complexas
e criativas, que permitem, por exemplo, a aproximação entre a
comunicação e a arte, encontro este que envolve um dos aspec-
tos mais humanos do acontecer comunicacional.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

154
Da incomunicação ao acontecimento comunicacional e o
metáporo

Os meios de comunicação de massa se tornaram o


grande tema do século XX, especialmente devido à importân-
cia do rádio, do cinema e da publicidade para a ascensão dos
movimentos fascistas em alguns países da Europa. Nos idos da
década de 1930, a chamada Escola de Frankfurt, na Alemanha,
debruçou-se sobre o impacto dos meios de comunicação, de-
nunciando a razão instrumental e o imperativo técnico sobre os
quais as sociedades passaram a se constituir. Algum tempo de-
pois, e sob o domínio da televisão e da sociedade de consumo,
novamente os media são objeto de estudo e muita discussão.
Em sua tese de doutorado, em 1967, o francês Jean Baudrillard
(2006) aponta para a disseminação de gadgets no cotidiano e
para como esses objetos, ao se proliferarem, constituem um
sistema, com uma lógica própria, modificando ambientes.
No final do século XX, com o advento da internet, das
chamadas novas tecnologias comunicacionais e informacio-
nais, a comunicação se torna a norma, palavra de ordem, cada
vez mais entrelaçada com a tecnologia, a tal ponto que as so-
ciedades se autodenominam sociedades de comunicação. No
início do século XXI, as redes sociais digitais, potencializa-
das pelo telefone celular, aparecem como o locus do encontro.
Neste “não lugar” (AUGÉ, 1994), as pessoas passam a inves-
tir expectativas, sonhos, criando e também mantendo antigos
relacionamentos. Revestidos da reprodutibilidade imagética
PARA COMUNICAR O INCOMUM

155
de si mesmos, tal qual as obras de arte na época da reprodu-
tibilidade técnica analisadas por Benjamin (1994), os perfis
pessoais se tornam séries repetidas de uma subjetividade cuja
singularidade se perde na serialidade de imagens do eu. Se as
pessoas, assim como as obras de arte, têm uma aura que as tor-
na singular, isso passa despercebido nas redes sociais digitais,
diante da proliferação de imagens.
Com isso, fica a denúncia de Sfez (1994), ao alertar
que, nas sociedades ditas da comunicação, se sofre da patolo-
gia do não comunicar. O que nos liga, o que faz a “liga” entre
as pessoas é a técnica, os gadgets dispostos em sistemas sedu-
tores. A comunicação surge, segundo o autor, aprisionada sob
a forma simbólica do tautismo:

neologismo formado pela contração de ‘tautologia’


(o ‘repito logo provo’ tão atuante na mídia) e o ‘au-
tismo’ (o sistema de comunicação torna-se surdo-
-mudo, isolado dos outros, quase autista), neologis-
mo que evoca um objetivo totalizante, na verdade
totalitário (o visgo que me cola à tela, a realidade
da cultura telística, realidade sempre mediada, ao
mesmo tempo que exibida como realidade primei-
ra). Em outras palavras, passo a tomar a realidade
representada como realidade diretamente expressa,
confusão primordial e fonte de todo delírio (SFEZ,
1994, p. 13).

Mas se, em sua ácida crítica, Sfez acerta quando de-


nuncia que sociedade de comunicação e sociedade Frankens-
tein não se opõem, por outro lado, surge o questionamento
PARA COMUNICAR O INCOMUM

156
sobre se a comunicação seria mesmo o termo mais adequado
para se referir à forma simbólica do tautismo, como faz este
autor ao relacioná-la às tecnologias mediáticas. Marcondes Fi-
lho dá um passo adiante e confere à comunicação um estatuto
próprio. Sem estar reduzida aos media e tampouco à tecnolo-
gia, a comunicação aparece como uma construção conceitual
sobre a qual não há nada a ser passado e repassado, mas uma
atmosfera que toma conta daquele que se permite ser invadido,
embevecido por ela. E mais: a comunicação não ocorre todo o
tempo, ela não é tão usual quanto pensa o senso comum e os
apologistas dos media; contudo, a comunicação também não é
um fenômeno impossível de ocorrer.
Marcondes Filho (2004), ao contrário de Luhmann, que
vê a comunicação como um fenômeno autorreferencial que
ocorre em sistemas isolados, concorda com Merleau-Ponty,
para o qual não há um vácuo entre o homem e o mundo. Mais
do que pelo intelecto, é pela própria experiência perceptiva do
eu, do corpo do eu (porque este eu não paira sobre ou além
do mundo), que o mundo, muito mais do que simplesmente
percebido, é vivenciado e sentido. É neste limiar, espaço entre
do ente, que há a possibilidade de se encontrar o ser num mo-
vimento que transcende dois termos isolados, criando-se uma
atmosfera comum. No entanto, ela “não funde duas pessoas
numa só, pois é impossível que o outro me veja a partir do
meu interior, mas é o fato de ambos participarem de um mes-
mo e único mundo no qual entram e que neles também entra”
(MARCONDES FILHO, 2004, p. 15). Marcondes Filho, ao
PARA COMUNICAR O INCOMUM

157
retomar o filósofo Merleau-Ponty, aponta para a importância
dos fios intencionais para a compreensão do fenômeno comu-
nicativo, que seria a atmosfera vivencial pela qual as pessoas,
em seus emaranhados de linhas, se ligariam em torno do en-
contro fortuito de múltiplos agentes.
Por isso, a comunicação não se reduz aos media; não é
uma coisa, um instrumento, um sinal que passa de um pólo a
outro, que precisa ser transmitido, representado, ressignifica-
do, desmascarado. A comunicação é uma irrupção, uma cha-
ma, um clarão, um acontecimento entre duas pessoas que se
permitem ser afetadas por uma atmosfera, na qual, ao mesmo
tempo que as transcende e as penetra, cria uma transforma-
ção profundamente sentida, vivenciada. “O acontecimento é a
passagem de uma dimensão a outra. As coisas deixam de ser
literais e passam a ser significativas” (MARCONDES FILHO,
2013, p. 43). Aí surge a grande questão: como então estudar
algo tão incorpóreo, que parece subsistir apenas no domínio do
sentir? O método da ciência tradicional pré-fabrica o caminho,
as etapas da pesquisa, e não permite a expansão da percepção
rumo ao sensório e à intuição, que diferentemente da lógica e
da razão, mistura-se ao fenômeno.
Para estudar algo que não é material e palpável, há de
se lançar mão do metáporo, que diferentemente do tradicio-
nal método científico, é aberto e flexível. Não há um caminho
pré-estabelecido, mas um campo de possibilidades que surge
na medida em que o pesquisador se coloca a caminho, no ca-
minhar e na descoberta que esse caminhar possibilita ao anda-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

158
rilho curioso. Ao sujeito da pesquisa, impõe-se o objeto, que
deve ditar a pesquisa sujeitando o pesquisador. Isso porque a
comunicação não se dá, a priori, em um determinado contexto
X ou Y. Não há um sujeito da comunicação, sejam coisas ou
pessoas, mas relações que se desenrolam e produzem transfor-
mações de ideias, percepções e sensações entre aqueles que
dela participam. A comunicação não tem hora marcada para
acontecer, muito menos local estipulado, porque ela é uma pro-
babilidade, uma remota possibilidade de “encontros de alma”
nos quais se permitem o toque do outro, o embevecimento do
encontro. Nas palavras do autor:

Essa é a particularidade desse saber: a apreensão


fenomenológica do fato no tempo específico de sua
ocorrência. Esse tempo é uma oportunidade única
em que ocorrem sincronicamente linhas, em que se
cruzam diferentes personagens, com suas tempora-
lidades próprias, dentro de um contexto específico,
num determinado espaço. É um acidente único, que
jamais ocorrerá outra vez. Por isso, não se pode re-
construí-lo em laboratório, não há repetição ou ite-
ração. Uma remontagem será necessariamente uma
representação, uma elaboração outra, uma ficção
(MARCONDES FILHO, 2013, p. 57).

Aí é que reside o desafio do pesquisador: como captar


o desenrolar dessa atmosfera, desse momento único que não
se repete e que irrompe de uma vez? Como saber se existiu de
fato a comunicação? Antes de tudo, o problema da pesquisa é o
de se perguntar se na situação ou contexto a ser pesquisado irá
PARA COMUNICAR O INCOMUM

159
acontecer, de fato, a comunicação. Segundo Marcondes Filho,
é prioritariamente nessa busca que o pesquisador deverá se
mover, no momento mesmo de sua realização. Isso não é uma
tarefa simples. Diferentemente do método científico no qual o
delineamento da pesquisa já está estruturado em fases distintas
(e bem delimitadas), no metáporo, o pesquisador, inicialmente,
em uma atitude fenomenológica, deve se guiar intuitivamente
pela manifestação do próprio objeto, sem roteiros ou quais-
quer teorias que o manipulem e o enquadrem dentro de uma
estrutura a priori. A não ser a assunção de que a comunicação é
um acontecimento no qual há uma transformação entre os en-
volvidos, não existe evidência alguma, muito menos hipótese
de algo. “O pesquisador deverá instalar-se naquilo que muda,
a fim de obter uma apreensão pela intuição sensível, isto é, de
uma só vez e sem conceitos” (Ibidem, p. 57).
Essa captura por meio da intuição sensível e do olhar
do pesquisador deve vir acompanhada por sua capacidade nar-
rativa que, ao descrever o acontecimento comunicacional em
detalhes, narra o sentido no momento mesmo da realização do
acontecimento. Tal como a produção literária, o relato metapó-
rico busca um texto cuja qualidade estética e artística propicie
ao leitor mergulhar na tessitura da descrição do relato. À árida
descrição do método tradicional da ciência moderna, que bus-
ca apagar as marcas da subjetividade e das emoções, coloca-se
o metáporo, que investe no relato estético, no esmiuçamento
descritivo e acachapante da cena e do acontecimento em si. “A
preocupação é fazer o leitor sentir junto, na genuína acepção
PARA COMUNICAR O INCOMUM

160
do termo alemão sich einfùhlen, de ‘sentir a coisa por dentro’”
(MARCONDES FILHO, 2013, p. 64). Como relatar um fenô-
meno cuja intensidade se esvai num piscar de olhos, senão por
meio de recursos narrativos que se aproximam mais do sentir e
do vivenciar, presentes no poético? Como descrever o proces-
so de transformação do acontecimento comunicacional com
uma narrativa pretensamente objetiva e fria, se o fenômeno em
questão pressupõe a abertura do pesquisador na aventura do
sentir e do seu correlato, a intuição?
Tal como na etnografia praticada pelos antropólogos,
no metáporo, o pesquisador vivencia o acontecimento, ano-
ta, relatando-o em seguida. “O registro é dito, a vivência da
coisa é o dizer” (Ibidem, p. 68). Se o dito paralisa, pacifica,
condensa, o dizer é vivência pura, intransmissível, impenetrá-
vel. Entre o dito e o dizer, o etnógrafo acrescenta o interpretar,
buscando significados a partir da descrição. No metáporo, a
busca de interpretações e de sentidos subjacentes não passa de
uma fantasia, o sonho de um sujeito onipotente pretensamente
dotado de razão. No acontecimento comunicacional, não se in-
terpreta ou analisa. O processo de sua apreensão é baseado no
conhecimento intuitivo, cuja apreensão direta do objeto reve-
la-o em sua concretude e totalidade. Diversamente do discurso
da etnografia, que lança mão da interpretação, a intuição do
metáporo apoia-se no poético, numa narrativa cuja força tem
a capacidade de romper com a normalidade das superfícies,
mostrando sua densidade e sutileza. Esse processo de investi-
gação é irreverente e inédito, não porque o relato metapórico
PARA COMUNICAR O INCOMUM

161
intenciona descrever um acontecimento comunicacional, mas,
sobretudo, devido à possibilidade deste relato se tornar, ele
mesmo, um acontecimento comunicacional.
Nada impede que, como diz Marcondes Filho (2013),
“no entre-cruzamento entre relatante e relatado, que a descri-
ção da pesquisa crie ela também, uma comunicação” (p. 65).
E nada impediria, a nosso ver, que no entrecruzamento
entre autores da área, o acontecimento comunicacional se faça
no atrito e convergência, teia possível de diálogos, na acep-
ção de Flusser, diferentes da conversa fiada, pois que apontam
criativamente para um novo modo de pensar a comunicação,
da qual não se descarta o sentir.

No atrito entre corpos, o encontro

São recorrentes as discussões – e não tão frequentes os


diálogos – na área da Comunicação, na ânsia nem tanto por
compreendê-la, mas, sobretudo, por consolidá-la como ciência
autônoma (como se isso fosse possível); na tentativa de buscar
o seu reconhecimento, a sua identidade, paradigmas, episte-
mologias e métodos que a caracterizem. Trata-se de uma luta
política por espaço e reconhecimento. Contudo, no afã de deli-
mitar, definir, classificar e enquadrar, muitas vezes nos escapa
o que de mais potente o ato de comunicar é capaz de produ-
zir: experiências, encontros, transformações, vínculos e afetos.
Entre os pesquisadores que buscaram construir um conceito de
comunicação, destaca-se, por seu caráter genuíno e ousado, e,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

162
sobretudo, por um resgate do humano como fundamento do
fenômeno comunicacional, o pensamento de Ciro Marcondes
Filho, que, contrapondo-se às vertentes mediacêntricas e in-
formacionais, define a comunicação como evento raro, irrepe-
tível, único e transformador.
Ante à propagada ideia de que supostamente vivemos
em uma sociedade da comunicação, facilitada por tecnologias
e meios onipresentes, Marcondes Filho descreve o excesso
de informação como um engodo, amparado por recursos que
mascaram a nossa profunda incapacidade de fazer chegar ao
outro aquilo que sentimos e que desejamos expressar. São,
portanto, meios de incomunicação, mais do que aparatos para
comunicar. São tentativas de nos enganar sobre a dificuldade
de produção de sentido do que se conhece como ato comunica-
tivo, pois a comunicação de fato deve ser entendida como um
fenômeno que extrapola o verbal, a língua estruturada em uma
gramática, passando pelos sentidos.
Ao propor uma nova teoria da comunicação, Marcondes
Filho (2008) alerta para o fato de que a área da comunicação,
cercada por teorias desgastadas, vem repetindo as mesmas teses,
ensaios, autores e clichês (p. 51). Essa rigidez e sua repetição
não servem para dar conta da comunicação, descrita como volá-
til, subjetiva, fruto da aproximação entre corpos e seus sentidos;
entre mentes e suas capacidades e possibilidades de apreensão,
(in) compreensão, dissonância, discordância e reverberação.
A comunicação, envolta em um paradoxo, consistiria,
para o autor, em um fenômeno inapreensível, incapturável. Por
PARA COMUNICAR O INCOMUM

163
isso, para investigá-la, seria necessária a abertura de um quase-
-método, ou um metáporo, que leve em conta essa volatilidade
que atravessa os sentidos no corpo, antes de se chegar à razão,
à compreensão materializada em um discurso ordenado. Por
isso, afirmamos que é possível antever nas ideias de Marcon-
des Filho um retorno ao humano, em sua fragilidade de corpo
perecível e limitado, limites estes atrelados aos limites do per-
ceber, sentir, experimentar e compreender.
Em que se pese a imprevisibilidade e a impossibilidade
de segmentar a comunicação entre esses corpos, entre os cor-
pos e o mundo, entre o corpo singular e os objetos do mundo,
entre os corpos, a natureza e os produtos de outros corpos, tais
como a arte, o comunicar deve ser visto como processo social
e, sobretudo, como acontecimento, que se dá a partir da com-
binação de múltiplos vetores (sociais, históricos, subjetivos,
temporais, culturais). Nas palavras do autor, o acontecimento
comunicacional deriva do “atrito dos corpos e das expressões”,
gerando nos participantes “algo que não possuíam antes e que
altera seu estatuto anterior” (MARCONDES FILHO, 2008, p.
52). E o autor acrescenta que, se não houver essa mudança de
status, é porque a comunicação ficou presa nos rituais, nas re-
petições, em um movimento recursivo, mas vazio de sentido,
não necessariamente de significado como interpretação, mas
de um sentido possivelmente entendido como experiência sen-
sível, que por ultrapassar a linguagem verbal, pode estar até
mesmo nos silêncios, já que o comunicar, de fato, ultrapassa
a formalidade dos rituais cotidianos e a rigidez, a repetição e
PARA COMUNICAR O INCOMUM

164
a previsibilidade de sua gramática. Ao contrário, parece mais
fácil que o acontecimento comunicacional se dê fora das ins-
tâncias chamadas “comunicacionais” mais corriqueiras, como
cumprimentar o outro, ver o telejornal, ouvir o rádio, atender
a um anúncio.
Neste sentido, podemos tentar estabelecer um diálogo
entre o pensamento de Ciro Marcondes Filho e o de outro pes-
quisador brasileiro, Norval Baitello Junior. O primeiro, parte
principalmente da filosofia para pensar a comunicação, en-
quanto o segundo, da antropologia cultural, chegando à teoria
das mídias. Afeito ao ensaio, Baitello Junior, assim como Mar-
condes Filho, é capaz de nos provocar à reflexão, fazendo-nos
produzir mais perguntas a partir dos cenários que descrevem,
e sobre os quais nos fazem pensar – e sentir. Lembramos aqui
que, para Baitello Junior (2012), o outro é o que nos afeta,
desencadeando processos de vinculação. Para definir o corpo
como o fundamento do fenômeno comunicacional, Baitello
Junior ampara-se em Harry Pross, pesquisador alemão que
cunhou os conceitos de mídia primária, secundária e terciária.
A mídia primária envolve o contato entre os corpos, como no
exemplo de um diálogo ou uma aula presencial; a secundária
demanda um corpo, um aparato e outro corpo, como ocorre
com o uso do livro, do cartaz, etc. E a terciária é aquela em que
se necessita de um corpo, um aparato codificador, um aparato
decodificador e outro corpo, como, por exemplo, a TV ou a
internet. Com base em Pross, Norval Baitello Junior afirma
que todo processo de comunicação começa e termina em um
PARA COMUNICAR O INCOMUM

165
corpo. Para ele, em resumo, comunicação é afeto, que abar-
ca tanto sentimentos bons quanto ruins, e é responsável por
constituir vínculos. Para construir esses vínculos, é necessário
que haja o encontro de corpos, que irão despender tempo e
utilizar os espaços. A ponte entre Baitello Junior e Marcondes
Filho nos parece pertinente pelo fato de que, para Marcondes
Filho, o acontecimento comunicacional resulta do atrito entre
os corpos, de sua mistura – mas ele não é isso, o encontro em
si, e sim seu atributo incorpóreo, diferente para cada um que o
experimenta.
Marcondes Filho ressalta que no emaranhado de fluxos
em que se constitui a comunicação, interessa mapear os pontos
de contato, os interstícios, o meio, o que nos parece possível
aproximar à definição de Baitello Junior (2012), que designa
os meios como pontes que servem para superar o abismo que
nos separa uns dos outros.
A questão que se impõe, portanto, é: como apreender
esse fenômeno, o de uma comunicação efetiva, cujo caráter é
irrepetível e intransferível? Seria o fenômeno estético – pre-
sente, de modo especial, na arte - ou o poético, como dese-
jamos chamar, um fenômeno propício para o acontecimento
comunicacional?
A incomunicação parece atrelada à anestesia, a corpos
anestesiados, ao passo que a estesia, a apreensão sensível do
mundo por meio da percepção, da experiência que transforma
a subjetividade, poderia produzir o chamado acontecimento
comunicacional. Uma espécie de erotismo, na medida em que
PARA COMUNICAR O INCOMUM

166
o erótico (des) vela para (re) velar – retira os véus para velar
novamente, incitando o sensível, o sentir com todos os senti-
dos – sinestesia (SILVA, 2007; 2010). A arte, lugar privilegia-
do para o fenômeno estético, por sua complexidade e polisse-
mia, como experiência sensível, pode oferecer roteiros abertos
e produzir diferentes experiências no contato com a mesma
obra. Essas experiências podem fornecer pistas para a com-
preensão do metáporo e do acontecimento comunicacional.
Em Silva e Silva (2012), cogitamos que a arte talvez
pudesse propiciar um metáporo, ou um caminho aberto para
se experimentar o incorpóreo da comunicação, e que ao se co-
locar a arte e a comunicação em diálogo, opta-se por um pen-
samento nômade, movediço, atento às entrelinhas, às brechas,
aos possíveis, e não aos prováveis.
Outro pensador das mídias que, assim como Marcon-
des Filho, nos convida a repensar a comunicação e seus con-
ceitos, também a partir da descrição crítica de cenários que nos
fornecem uma compreensão fenomênica do mundo e dos me-
dia, é o pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser, que afirma
que a comunicação é um artifício criado para superar a brutal
falta de sentido de uma vida condenada à morte. A comunica-
ção, portanto, consiste na procura de sentido, ao negar a entro-
pia e tentar organizar o caos. Comunicar, concluímos a partir
de Flusser, é um lapso de eternidade, um momento de intensa
plenitude, que torna suportável a dor e a angústia geradas pela
consciência de nossa mortalidade. Flusser (2007) explica que
há duas formas fundamentais de comunicação: a discursiva
PARA COMUNICAR O INCOMUM

167
e a dialógica. Os discursos se caracterizam pela repercussão
de informações que são compartilhadas para que sobrevivam,
para que sejam preservadas. Já os diálogos consistem na jun-
ção de informações que, somadas, geram novas informações.
Não há diálogo sem discursos anteriores, mas Flusser alerta
que, quando os discursos predominam, ocorre o vazio da in-
comunicação. Já para Marcondes Filho, não nos comunica-
mos, por mais que achemos que sim. Porém, segundo ele, “...
a alma sofre, emite sinais, faz apelos, suplica. A alma está o
tempo todo querendo comunicar-se com as demais almas”. E
completa: “Em casos extremos, o suicídio acaba sendo a única
forma de dizer ao outro, de fazê-lo perceber nosso sofrimento,
de comunicar aquilo que pela linguagem não passava mais,
de forma alguma” (MARCONDES FILHO, 2004, p. 99). O
acontecimento comunicacional descrito por Marcondes Filho
parece oferecer esse lapso de eternidade, um instante fugaz,
mas transformador, em que o sentido é encontrado, algo seme-
lhante aos diálogos, raros, descritos por Flusser (SILVA; SIL-
VA, 2012). Flusser aponta a comunicação como uma discipli-
na interpretativa. Interpretar é um modo aberto de se entender
a comunicação – um metáporo, mais que um método (Ibidem).
Os dois autores parecem convergir quando apontam
para a falta de sentido e a incomunicação da sociedade da co-
municação, e para a necessidade de preencher-se um vazio.
Entretanto, se Flusser afirma a comunicação como um artifício,
e o mundo como codificado, Marcondes Filho avança quando
afirma que a comunicação vai além dos códigos, passando por
PARA COMUNICAR O INCOMUM

168
formas sensíveis, abstratas e não estruturadas, o que converge
em alguns aspectos para a afirmação de Baitello Junior de que
a comunicação é pathos, ou seja, afeto, que constitui vínculos
e abarca sentimentos tanto positivos quanto negativos (SILVA,
2018, p. 3).
O filósofo francês Michel Serres também é menciona-
do com frequência na obra de Ciro Marcondes Filho. Podemos
destacar: O princípio da razão durante (2010); O círculo Ci-
bernético: o observador e a subjetividade (2011); Paixão, ero-
tismo e comunicação. Contribuições de um filósofo maldito,
Georges Bataille (2008); Michel Serres e os Cinco Sentidos
da Comunicação (2005). Aqui nos debruçaremos na obra de
2005, na qual Marcondes Filho explora os sentidos e o ‘ro-
deio’ proposto por Serres, o que resulta em um diálogo filo-
sófico comunicacional com muitos frutos. Na obra de 2011,
por exemplo, Marcondes Filho reconhece que Serres nos traz
uma epistemologia mais maleável, aprofundada na vivência,
no movimento, naquilo que nos faz Ser.
Assim, na obra Cinco Sentidos, o que prevalece não é
a representação do mundo pelas linguagens, mas, e exatamen-
te, aquilo que está fora desse âmbito restrito de entendimen-
to do mundo, naquilo que ultrapassa o mero descrever para
compreender. Uma inversão necessária para continuar fazendo
ciência voltada para o homem, senão em sua totalidade, pelo
menos no mais perto de uma completude e concretude que fo-
ram dissimuladas pela ciência ocidental ao valorizar, ao extre-
mo, a razão em detrimento de todas as demais possibilidades
PARA COMUNICAR O INCOMUM

169
de conhecimento. O método, então, passa a ser o rodeio, flui-
dez necessária que não tenta conter o turbilhão, o movimento
que leva, também, ao desvio. Um método desviante na ciência
ocidental, em que consenso e regularidades são trocadas pela
raridade dos fenômenos.

A grande contribuição de Michel Serres, no nosso en-


tender, na construção de uma Nova Teoria da Comuni-
cação, assim como de um caminho para a investigação
de casos de comunicação, está em sua epistemologia,
que, segundo ele, é “menos sólida” e mais fluida,
apostando nos fluxos, sempre em busca do fugaz e do
fugidio (MARCONDES FILHO, 2005, p. 6).

Método difícil de convencer os mais tradicionalistas da


ciência rígida, mesmo àqueles autodenominados Críticos, o ro-
deio traz e faz o ir-e-vir para o pesquisador e o leva para além
de um objeto fechado e determinado a priori, na experiência
comunicacional, que por vezes é reduzida a um emissor e um
receptor que parecem estar direcionados em linha reta.
Talvez nomear o rodeio de método seja retirar de suas
entranhas o que mais caro o torna: o improviso. Esse deta-
lhe é o que imprime o brilho de poder descobrir, de caminhar
por direções sem que o resultado final seja um objetivo a ser
alcançado e fechado na conclusão. Ao contrário, e utilizando
uma imagem ao gosto de Serres, o rodeio é o tecer de Penélo-
pe durante o dia, iluminando uma tapeçaria aos olhos alheios
para, noturnamente, desfazer tudo, secretamente, esperando
por Ulisses que guerreava em Tróia.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

170
Nesse caminhar com rodeios, os sentidos livres tam-
bém libertam o conhecimento, hoje aprisionado pelos inúme-
ros discursos: “Quando o verbo, assim, domina e ocupa a car-
ne e a matéria, outrora inocentes, sobra sonhar com o tempo
paradisíaco em que o corpo, livre, poderia correr à vontade. A
única revolta virá dos Cinco Sentidos” (SERRES, 1993, p. 60
apud MARCONDES FILHO, 2005, p. 19)
O rodeio nos leva ao metáporo, única possibilidade
para se caminhar com o conceito de comunicação como acon-
tecimento, proposto pelo autor, que a define como um evento
improvável, nem sempre possível, porém único, e que, por-
tanto, não se repete e possui uma “força expressiva particular”
(MARCONDES FILHO, 2008, p. 151). Entendemos a comu-
nicação poética como possibilidade para essa força expressiva,
e por isso, como fenômeno capaz de promover o acontecimen-
to comunicacional.
E o que seria essa comunicação poética? Trata-se de
uma forma de comunicar que permite que a percepção se abra
para o múltiplo, o sensível, o polissêmico. Tomamos o concei-
to de poético de Octavio Paz, que distingue o poema da poesia,
tratando o poema como forma, uma estrutura, na qual pode
haver ou não a qualidade do poético. O poético, valendo-nos
de Paz, diferente do poema, é uma qualidade que extrapola o
verbal, uma potência capaz de produzir imagens, encantamen-
to, deslocamentos, estupefação. O narrar poético, mais do que
um modo de representar o mundo exterior e interior dos ho-
mens, é capaz de recriar o mundo, propondo, a partir dessa re-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

171
configuração – novos mundos criados – outros modos de olhar
para o real. Seria este um caminho metapórico, compreender o
mundo, poeticamente, e as coisas, todas como metáforas umas
das outras? Seria essa a chave para um olhar revestido de com-
plexidade ante as coisas e sensações que nos tomam?

Proposições para percursos mais abertos na pesquisa em


comunicação

Pensando na possibilidade de percursos mais abertos


para as pesquisas em comunicação, utilizamos dois artigos de
Marcondes Filho, de 2017, e um ensaio, de 2016, nos quais
o autor paulista oferece a oportunidade de refletir acerca da
comunicação, ou, como indica: “O ensaio em questão propõe
um procedimento de pesquisa para que se possa estudar a co-
municação em todas as suas modalidades” (MARCONDES
FILHO, 2016, p. 108).
No ensaio, a proposta não contempla e nem conjuga
com as teorias cognitivas e as teorias da recepção, ao contrá-
rio, seu componente é o filosófico e, para tanto, a metodologia
está dividida em três momentos: o vivenciar, o observar como
o fato comunicacional repercute no interior do vivente e, dessa
experiência única e profunda, construir um relato que possa
oferecer subsídios para fazer avançar a área da comunicação.
O leitor é convidado por Marcondes Filho a não apenas
assistir a um filme no cinema, mas ir além, deixar que o filme
se faça em seu interior, ao mesmo tempo em que também se
PARA COMUNICAR O INCOMUM

172
faz e refaz o filme e suas vibrações pelo corpo – e mais uma
vez destaca-se o corpo como lugar do acontecimento. “O fil-
me ficará instalado na minha memória como um estranho resi-
dente. E lá marcará sua morada. Passará a fazer parte de meu
repertório emocional. Terá produzido sentido” (2016, p. 110).
Esse filme que marcou e marca, trazendo algum senti-
do para o enredo e para a vida, não se abandonará mais. São
marcas internas e inteiras gravadas na memória presente e fu-
tura, talvez atemporal, já que também se insere no passado,
pela fruição de tempos vividos na película e no cotidiano do
espectador. “O filme falou comigo. Nesse momento, eu digo:
ele comunicou” (Ibidem, p. 112). A comunicação ocorreu jus-
tamente porque houve uma transformação impossível de ser
contida, de ser ignorada.

Se a questão é saber, afinal de contas, o que sig-


nifica efetivamente comunicar, a única resposta é
essa: me marcar de maneira definitiva, instalar-se
em mim de forma a desarranjar o que estava arran-
jado, propondo novas combinações, promover um
ato de reordenação interna, em que a nova inserção
poderá abrir novos percursos, novas possibilidades,
uma nova história dentro de mim. A isso se dá o
nome de devir (Ibidem, p. 113).

Essa comunicação foi tão intensa que compartilhar


análises e opiniões com amigos não convence ao espectador.
Contudo, isso seria uma maneira de desfazer a perturbação
transformadora que a imersão no filme possibilitou. Portanto,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

173
não há que se racionalizar, não denominar cenas e comporta-
mentos, mas manter as impressões iniciais sentidas no corpo,
recorrer à expectativa, entendida em sua origem exspectātum,
que se traduz como “olhado”, o “visto”, mas para além da vi-
são conservadora dos olhos. Ver com todos os sentidos é “ver
com olhos livres”, para aproveitar a sugestão/caminho propos-
to por Oswald de Andrade (2017). Assim poderia ser a pesqui-
sa em comunicação. E Marcondes Filho informa ao leitor:

Por isso, há que se defender a pesquisa dos resquí-


cios, a pesquisa daquilo que não deixou pistas, pelo
menos materiais, a pesquisa das sensações. E um
trabalho com esse intervalo, localizado entre o fim
de uma exibição de cinema, de uma representação
teatral, de um espetáculo de dança, e aquilo que se
instalou misteriosamente em mim, me constituin-
do. Esse movimento, esse conflito, essas quebras
de padrões e de regras, essa guerra de posições
que irá deixar, no final, muita coisa transformada.
Minha intenção aqui é fazer uma defesa radical da
investigação da comunicação nessas circunstâncias,
porque, ao que parece, é a única comunicação que
existe. Ou é essa ou é nenhuma (2016, p. 8).

Essa ou nenhuma. O pedido/exigência para dar conta


do evento comunicacional. Para tanto, há que se fazer uma
crítica necessária ao que nos foi proposto, até o momento, com
a denominação de fenomenologia. Ainda que seja necessário
estudá-la, os caminhos sugeridos por Husserl, Merleau-Ponty,
Deleuze, entre outros, não é o de Marcondes Filho. A fenome-
nologia é indicada como o único caminho possível para com-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

174
preender como o filme pode nos transformar, e nos levar ao
evento comunicacional, mas será preciso inovar e avançar no
que se pretende por fenomenologia.
O metáporo é uma teoria fenomenológica. Incorpo-
ra e é incorporado pelos fenômenos; comunica. Neste ponto,
os dois artigos de 2017 fornecem mais elementos para com-
preender como o metáporo pode ser considerado uma teoria
fenomenológica. No texto “Elemento para a construção de
uma comunicologia. De como melhor compreender a comuni-
cação considerando-a como um evento estético”, apresentado
na Compós, temos a retomada da ideia de evento, agora esté-
tico, para construir a comunicologia, que busca apreender os
processos que ocorrem em nossa mente diante do choque do
inusitado. “Ela captura o devir, descreve o acontecimento co-
municacional, fundando, com isso, um saber denso e rigoroso
na área” (MARCONDES FILHO, 2017a, p. 1).
Inicialmente, cabe pensar que evento e acontecimen-
to são utilizados como sinônimos por Marcondes Filho, já
que ambos os termos estão ligados a evēntūs-us, que tam-
bém tem o sentido da “saída feliz ou exitosa de uma si-
tuação”. Isso é importante, visto que evento/acontecimento
são diferentes; e isso porque “o fato distingue-se de acon-
tecimento na medida em que este último apenas se aplica
àquilo que acontece num tempo e num lugar particulares,
não aquilo que dura” (LALANDE, 1996, p. 389). Aqui,
também, Marcondes Filho busca o que marca, comunica,
porém não acontece a todo o momento e em todos os luga-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

175
res, mas quando ocorre uma “saída feliz ou exitosa de uma
situação”. Então, comunicou.
Assim, o evento estético pode ser pensado partindo do
seu vazio, lugar da pausa para compor imagens que se for-
mam ou formaram-se em seu interior, constituindo tal pausa
como relevante para o processo comunicacional. Situações
limites como o vazio, o nada, o acaso e novas imagens são
cruciais para o acontecimento operar internamente a comuni-
cação. Uma comunicação que se faz e se esvai para dar lugar,
não ao enfrentamento da intencionalidade hursserliana, que dá
sentido ao mundo, mas ao impacto que o novíssimo aporta ao
espírito; para Marcondes Filho, implica no entendimento de
que os “conceitos são usados em filosofia para transbordar as
opiniões correntes, na mesma medida que os afectos, nas artes,
transbordam as afecções e as percepções comuns” (2017a, p.
10). Voltando à comunicação:

Se nossa tese é a de que a comunicação revela-se


de forma mais contundente no evento estético, se é
este que tem mais condições de se apresentar diante
de nós como um estranho, uma alteridade provo-
cativa, um desafiador pleno capaz de desestabilizar
nossas certezas, de injetar ideias novas em nosso
universo de pensamento, de propor outros olhares
para o cenário à nossa frente, ou, dito de maneira
inversa, se o acontecimento estético é a forma mais
perceptível para se ilustrar o fato comunicacional,
uma pesquisa no campo da comunicação deve jo-
gar, ao mesmo tempo, com a necessidade de trans-
cender as opiniões e as afecções e percepções (Ibi-
dem, p. 10-11).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

176
Ao avançar nas reflexões, o caminho dado nos levará
para as noções de devir e de imanência. Devir – que Marcon-
des chama de comunicação – porque ocorre uma troca atômi-
ca (Atomic Swap), na qual o Eu e a coisa são modificados,
transformados, mas não um no outro. E tudo ocorre na ima-
nência: “lá se fundem corpos, movimentos, espaços físicos e
um espírito que povoa toda a cena. Tudo nasce e morre nessa
mesma cena” (Ibidem, p. 12). Conclui seu texto conformando
um modo de fazer a ciência da comunicação:

A ciência da comunicação constrói sua seriedade a


partir disso, de seu instrumental, de seu modo de
observação e da validade de sua exposição desta-
cando o que de “extra-humano” cabe num relato
sobre o Acontecimento comunicacional. Os atuais
pensadores da comunicação em sua maioria ainda
a veem segundo a formulação clássica e tradicio-
nal da primeira cibernética, um discurso metafísi-
co da comunicação, que a vê simploriamente como
“transmissão e recepção de mensagens”; negam
que mesmo a corrente cibernética abandonou esse
esquema e questiona a própria possibilidade da co-
municação. Ela não é transmissão de nada, porque
nada do que sentimos e sofremos pode ser transferi-
do a ninguém; ela é puro sentir, aisthesis, um sentir
que nos muda e que muda o mundo mas que exige
instrumentos e modos de captura absolutamente
próprios e precisos. Essa é a ciência que precisa flo-
rescer (Ibidem, p. 13).

O segundo texto de 2017, mais informal, foi publicado


na Revista Líbero: “Praticar o terceiro olho na pesquisa co-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

177
municacional: uma proposta de estudo vivencial da comuni-
cação”. É o texto introdutório das palestras da Mesa Redonda
de abertura da 6ª Aula Magna de Referência Interprogramas,
organizada pelo Fórum dos Programas de Pós-Graduação em
Comunicação de São Paulo e sediada pela Faculdade Cásper
Líbero, em 10 de agosto de 2016.
A informalidade, contudo, não implica em simplismos.
Marcondes Filho elege cinco momentos vivenciais que possi-
bilitaram encaminhá-lo para a teoria atual: o metáporo.
A primeira é que comunicação não é transmissão,
transferência de alguma coisa, como o senso comum conside-
ra: “nossa proposta é de que comunicação não é transferência
de algo de A para B, mas a recomposição interna que B faz a
partir do que recebeu de A” (MARCONDES FILHO, 2017b,
p. 5). A segunda é de que a comunicação é pessoal, e pode-se
considerar rara e marcante. Isso implica considerar a diferença
entre comunicação e informação como terceira vivência:

[...] comunicação seria o confronto com algo dife-


rente, estranho, novo, que desestabiliza, que trans-
forma a informação, que seria a de prover material,
base, elementos para nossa ação no mundo, para
aumentar nosso repertório e nossa segurança, em
suma, para o reforço das nossas próprias convic-
ções (Ibidem, p. 6).

O francês Gilles Deleuze possibilita que a quarta vi-


vência seja encarada como o fato de que a comunicação vio-
lenta a pessoa. Cabe a Emmanuel Levinas oferecer a quinta:
PARA COMUNICAR O INCOMUM

178
“para realizarmos a comunicação... seria preciso que nós abrís-
semos dentro de nós mesmos um lugar para acolher aquilo que
é novo, aquilo que não é nosso. Acolher a alteridade” (Ibidem,
p. 6). Essas cinco vivências seriam cruciais para desdobrar um
caminho reflexivo para tratar da comunicação vivencial. Con-
tudo, duas outras vivências – elas são sempre complementares
– possibilitariam trazer o novo, graças aos debates com uma
orientanda de Marcondes Filho, que oferece uma possibilida-
de a partir das reflexões da obra ‘Comment S’en sortir?’, de
Sarah Kofman, “em que esta autora propõe que o princípio de
pesquisar não deveria se basear em um caminho fixo e deter-
minado, em um método pronto, mas se construir enquanto se
vivenciava. Isso complementava nossa visão de comunicação
como acontecimento e sugeria uma forma específica de inves-
tigá-la” (Ibidem, p. 6).
Explica Marcondes Filho que Poros são senderos – pa-
lavra espanhola que sugere um caminho mais estreito que a
vereda, e aberto para a passagem de pessoas e gado, que geral-
mente não está sinalizado –, diferente de odos (de mét_odos),
que nos traz uma rua, ou estrada, construída e sinalizada. As-
sim deve ser a pesquisa científica em comunicação. Há que se
trilhar senderos e talvez vielas em construção, principalmente
aquelas que são destruídas em seguida à passagem da pessoa.
Nada está pré-determinado, fixo. Tudo está por trilhar.
“Na verdade, o que nós propomos é uma nova leitura
da fenomenologia” (MARCONDES FILHO, 2017b, p. 7). É
o vivido que interessa para a comunicação. Vivido que será
PARA COMUNICAR O INCOMUM

179
relatado de modo “denso, fiel, detalhado, preciso, testemunhal,
quase não humano, ao mesmo tempo fotográfico, em que se
considera a percepção interior de si e do outro, buscando aqui-
lo que é relativamente estável e independente do observador”
(Ibidem, p. 7).

Outros rodeios

Talvez, para o metáporo fenomenológico, o segredo


esteja no “quase não humano”. Isso sugere não robôs, apesar
de não os descartar, mas “outro humano”, aberto para a comu-
nicação, ou seja, ao novo, ao que violenta e arremessa para
longe, não necessariamente para frente; evento no qual não é
o local de chegada o interesse, mas o percorrer do lançamento.
Um humano em devir. Um antropófago que devore e se dei-
xe devorar, na perspectiva de Oswald de Andrade, um ente de
olhos livres e corpo presente. Um ser erótico, afeito a viver
uma experiência, bastante próxima da percepção estética – se
não possível apenas por ela.
Fica a reflexão sobre se o acontecimento comunicacio-
nal só pode ser estudado por aquele que o vivencia. Pois, nas
palavras de Marcondes Filho (2013, p. 57), “o pesquisador de-
verá instalar-se naquilo que muda, a fim de obter uma apreen-
são pela intuição sensível, de uma só vez e sem conceitos”.
Neste caso, o pesquisador metapórico é partícipe da descrição
do acontecimento. E desta forma, é um pesquisador que muda,
junto com a sua participação, torna-se outro.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

180
Ao contrário de pesquisas nas quais o pesquisador se
coloca fora do que é pesquisado, na comunicação, ele está
imerso no seu próprio acontecer. O pesquisador só sabe se
houve acontecimento comunicacional se ele participou do pro-
cesso, na medida em que a mudança entre os envolvidos é in-
corpórea e muitas vezes intersubjetiva, porque há uma abertu-
ra de nós em relação ao outro. Contudo, nem sempre, segundo
este pensador, o outro é uma pessoa, podendo a comunicação
emergir no contato com um objeto estético, por exemplo. Um
novo campo de estudo se abriria se os pesquisadores da área
pensassem a comunicação neste espaço entre presença/ausên-
cia do outro e realizassem estudos metapóricos, cuja intenção
fosse tão somente saber se neste contexto/local/situação houve
ou não a comunicação.
Neste sentido, o de buscar essa abertura na compreen-
são da comunicação como acontecimento e do metáporo como
caminho, terminamos, sempre provisoriamente, enquanto
prosseguimos em devires.

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VOLTAR A SENTIR: NUANCES DA NOVA TEORIA
DA COMUNICAÇÃO

Vanessa Matos dos Santos1

A concepção de territórios discursivos engendra luga-


res políticos e, ainda que de forma indireta, pressupõe uma
espécie de colonização cognitiva e epistêmica. Os estudos em
Comunicação no Brasil e na América Latina ainda são maci-
çamente marcados por contribuições teóricas e conceitos que
foram forjados levando em consideração contextos outros que
não os da Ibero-América. Objetivando apresentar um impor-
tante progresso alcançado no Brasil, este artigo apresenta a
Nova Teoria da Comunicação (NTC) e o conceito de comuni-
cação como ruptura e a consequente abertura ao Outro. Além
de consequente, tal abertura é necessária. Comunicar traves-
te-se, portanto, em algo maior que a mera troca de sinais para
dar lugar a uma perspectiva que evoca tanto o sensível quanto
à experiência vivenciada. Dada esta abertura, a NTC não tra-
balha com a rigidez metodológica e sim com o rigor em narrar
os acontecimentos através do metáporo. Busca-se demonstrar,

1 Doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela USP (2017), Doutora em Educação Es-
colar pela UNESP (2013) e Mestre em Comunicação Midiática pela UNESP (2007). Docente
Permanente do Programa de Pós-graduação em Tecnologias, Comunicação e Educação (PPG-
CE) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) com atuação da graduação em Jornalismo
na mesma instituição. Membro do FiloCom (USP).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

184
sobretudo, que pesquisar com os procedimentos metapóricos
enseja uma nova relação entre pesquisador e objeto de pes-
quisa que permite vislumbrar novos olhares num campo tão
complexo como o da Comunicação.
A História da Ciência atesta que, após anos de obscu-
rantismo, a humanidade experimentou, ainda que com ruptu-
ras, o gosto das inovações e nunca mais retrocederia ao que
fora um dia (ROSA, 2012; BACHELARD, 2006). Esse movi-
mento de transformação foi verificado nos mais diversos cam-
pos do Saber. O paradigma cartesiano-newtoniano exerceu do-
mínio no que se refere à forma como os homens enxergavam
o mundo até o final do século XIX, quando suas bases foram
abaladas em virtude de novas descobertas científicas que di-
taram a ruptura entre o mundo moderno e o contemporâneo.
Um novo pressuposto sobre a Ciência ditava regras baseadas
em experimentos, cálculos que deveriam ser constantemente
checados e dados que, reproduzidos em laboratório, deveriam
oferecer sempre o mesmo resultado como forma de atestar a
cientificidade do que se propunha.
A vertente comunicacional (embora ainda seja bastante
jovem se comparada à outras áreas do Saber como a Sociolo-
gia, a Matemática ou a Física, por exemplo) também sentiu
esta turbulência científica. Caracterizada essencialmente pela
contribuição oriunda de diversas áreas, a Comunicação foi
concebida, inicialmente, como área interdisciplinar no que se
refere ao estudo das teorias. Sobre este aspecto, é importante
destacar, apenas a título de exemplo, a teoria matemática da
PARA COMUNICAR O INCOMUM

185
comunicação (também chamada de Teoria da Informação), as
influências do interacionismo simbólico de Mead etc. A con-
cepção de que tudo deveria ser medido e calculado levou a
um ofuscamento do sujeito nos processos comunicacionais.
Prova disso é o fato de que durante muito tempo, nos estudos
da área de Comunicação, principalmente nos relacionados às
Teorias da Comunicação, as teorias administrativas receberam
frequentemente diversas críticas por defenderem a ideia de um
receptor passivo, cristalizado, incapaz de emitir uma resposta
diante do poder avassalador exercido pelos meios de comuni-
cação de massa.
Posteriormente, assistiu-se, ainda no campo comuni-
cacional, a emergência da perspectiva qualitativa. Este foi,
sem dúvida, um avanço para as pesquisas na área. Mas, ainda
assim, a perspectiva qualitativa trabalhou (e ainda trabalha)
essencialmente com aquilo que o sujeito verbaliza, demonstra
etc (tal como acontece nas pesquisas envolvendo a análise dis-
cursiva, por exemplo). Ignora-se que por muitos anos a socie-
dade vivencia o império da linguagem verbal em detrimento
de outras possibilidades. Ignorar essas outras possibilidades
(não verbais), ou ainda considerá-las inferiores, é também uma
forma de silenciar o Outro, transformando-o, em última ins-
tância, em algo que ele efetivamente não é: receptor passivo.
No escopo das teorias comunicacionais, o Brasil se
destacou por diversas contribuições que ajudaram a pensar a
comunicação como ciência. Para tanto, apresenta-se, inicial-
mente, um cenário das transformações que possibilitaram o
PARA COMUNICAR O INCOMUM

186
surgimento desta nova forma de olhar a comunicação. Em
seguida, apresentam-se seus pressupostos, alicerce, estatuto
epistemológico e forma de investigação.

Antecedentes: o mundo em transformação

No campo da Biologia, Darwin introduziu uma nova


forma de compreender o mundo vivente. Em sua obra A origem
das espécies, de 1859, Darwin defendeu que o meio ambiente
era capaz de exercer pressões sobre as espécies, forçando-as à
adaptação e, consequentemente, selecionando os mais fortes
e adaptáveis. Deste modo, pela primeira vez a ideia de que o
homem domina a natureza começa a ser questionada. No cam-
po da Física, a descoberta da Termodinâmica inaugurou uma
nova área de estudo. A teoria quântica inaugurada por Max
Planck demonstrou, na prática, que o mundo era mais com-
plexo do que Descartes e Newton haviam imaginado. Consi-
derado o pai da física quântica, Planck introduziu o conceito
de átomos de energia, demonstrando que toda matéria é com-
posta por partículas atômicas e subatômicas. Albert Einstein
também ofereceu um novo horizonte para os estudos da natu-
reza ao apresentar sua Teoria da Relatividade, que revelou que
a condição espaço-temporal é relativa. O tempo, para ele, era
muito diferente daquilo que nós vivenciamos cotidianamente.
O cotidiano, portanto, como queria a ciência moderna (que, até
então, se ancorava no pressuposto experimental de Francis Ba-
con), não é algo fixo que pode ser facilmente controlado e ex-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

187
perimentado diversas vezes em laboratório oferecendo sempre
o mesmo resultado; ele depende de uma série de coordenadas
e dimensões de análise. A partir de Einstein, Bachelard (1996)
começou a falar de um novo espírito científico, posto que as
antigas fronteiras epistemológicas que delimitavam a ciência
como algo fixo e estático, estavam passando por revisão.
Soma-se a isto o Princípio da Incerteza, de Heisenberg,
criado em 1927. De acordo com os estudos de Heisenberg, não
seria possível prever simultaneamente a posição e a velocida-
de de uma partícula, visto que seu comportamento sofre altera-
ções e essa mesma partícula pode apresentar-se também como
onda. Esse aspecto dual faz com que nada mais possa ser visto
com parâmetros de certeza e sim por meio de probabilidades.
Esse princípio demonstra que, no nível subatômico, os objetos
não são sólidos, uma vez que são constituídos por partículas
que podem se comportar como ondas e, como tal, descreverem
movimentos ondulatórios. Nesse sentido, “os materiais sólidos
apresentam padrões ondulatórios de probabilidade, traduzidos
como probabilidades de conexão” (MORAES, 2000, p.61), ou
seja, tudo depende do olhar e do padrão de conexão vigen-
te. Em linhas gerais, o princípio da Incerteza demonstra que
o mundo não obedece a uma lógica determinística, fechada.
Nesse sentido, a física quântica descortina um mundo que
não pode ser definido com segurança se suas conexões não
forem levadas em conta. Desta forma, a divisão não é mais
feita em grupos de objetos, mas sim em função das conexões
que esses objetos estabelecem em um determinado contexto.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

188
Mais recentemente, o físico-químico Ilya Prigogine apresen-
tou a teoria das estruturas dissipativas, que toma por base a
ideia de sistemas abertos. Ao contrário da física clássica, que
se alicerçava em sistemas deterministas e fechados, Prigogine
entende que o universo é formado por sistemas abertos. Para
ele, as leis fundamentais da física devem conduzir a uma base
evolutiva, mas, para que isso seja possível, é preciso incorpo-
rar elementos como o indeterminismo, a assimetria do tempo
e a irreversibilidade. Para Prigogine, o primeiro elemento diz
respeito não à ausência da previsibilidade, mas sim aos seus
limites. Além disso, é preciso levar em consideração a exis-
tência de uma “quebra de simetria temporal, ou seja, a direção
do tempo é comum ao aparelho de medida e ao observador”
(MASSONI, 2008, p.7).
A irreversibilidade, por sua vez, pode ser expressa pelo
fato de que as transformações são irreversíveis e sempre con-
duzem a novos estados. Prigogine desenvolve a ideia de estru-
turas que estão em desequilíbrio e que, portanto, apresentam
instabilidade. Sobre esse aspecto, Massoni (2008, p.3) explica
que a ausência de equilíbrio é capaz de tornar possível o apare-
cimento do complexo e, de acordo com ela, “as estruturas bio-
lógicas, a auto-organização, a vida só é possível longe do equi-
líbrio. Isso mostra que o caos assume um papel construtivo”.
Por essa razão, Prigogine busca a generalização do conceito de
caos, visto que este não significa a desordem, mas sim a possi-
bilidade de alcançar um novo estágio evolutivo. Nesse sentido,
“estruturas dissipativas são próprias de processos irreversíveis
PARA COMUNICAR O INCOMUM

189
e revelam que ocorre a criação de ordem longe do equilíbrio
termodinâmico” (MASSONI, 2008, p.3). As estruturas dissi-
pativas, constituintes da maior parte do Universo, são assim
chamadas porque dissipam energia e têm seu funcionamento
calcado em uma lógica aleatória. Não se trata, portanto, de um
princípio mecânico. O princípio aleatório, por seu turno, é que
permite saltos de criatividade, novidade e que conduz a um
contexto mais pluralista. De uma forma, geral, Prigogine intro-
duziu a ideia de que um universo está em constante transfor-
mação e de que o caos, embora possa parecer paradoxal, pode
conduzir a estados de ordem. Do ponto de vista da organização
social, a teoria de Prigogine abre as possibilidades de inova-
ção ilimitada, decorrente de que “tanto as moléculas como as
ondas cerebrais, os indivíduos e as sociedades possuem um
potencial ilimitado de transformação cujos limites desconhe-
cemos” (MORAES, 2000,p. 69).
A Ciência evoluiu e, aos poucos, o homem passou do
paradigma cartesiano-newtoniano para o paradigma quântico,
mas, paradoxalmente, isso não significou uma melhora da qua-
lidade de vida psíquica do ser. Ao contrário, diversos autores, a
exemplo de Bauman e Chomsky, têm declarado a liquidez das
relações humanas na contemporaneidade e os estragos que a
estrutura das sociedades atuais tem ocasionado na humanidade.
O pano de fundo dessas críticas talvez seja o “vazio” sentido
pelo ser mesmo diante de tantas tarefas cotidianas. Agamben
(2005, p.22) afirma que “o homem moderno volta para casa
à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – diverti-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

190
dos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes –,
entretanto nenhum deles se tornou experiência”. Na concep-
ção do autor, é justamente essa incapacidade de se transformar
em experiência que tem tornado o cotidiano das pessoas algo
“insuportável” na contemporaneidade. Tal aspecto, no entanto,
não quer dizer que a vida esteja sem importância ou carente de
qualidades significativas. Na verdade, nunca o homem esteve
tão cercado de situações significativas. O que ocorre é que,
além da questão do entorpecimento dos sentidos ocasionado
justamente pelo excesso de conteúdos (como veremos adian-
te), o correlato da experiência não é o conhecimento e sim a
autoridade (expressa pela palavra e pelo conto). Neste cenário,
a comunicação tem se transformado em mera troca de sinais
e não como algo significativo, capaz de alterar a vida do ser
humano. Trata-se de uma espécie de acúmulo, mas de vazios.

O sensível e a experiência

A dimensão do sensível na comunicação atravessa di-


ferentes instâncias que se relacionam com o fenômeno da per-
cepção. Neste ponto, convém destacar que o discurso do senso
comum normalmente estabelece relações entre o sensível e o
afeto e a sensibilidade. Não raro, a ligação também aparece
com a emoção e as paixões como se o sensível fosse sinônimo
de todos esses termos. É salutar que entendamos – ainda que de
forma breve – essa miscelânea de termos com o objetivo
de tornar nossas ideias mais claras. Além disso, o estudo da Co-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

191
municação, em seu aspecto mais genuíno, se faz também, e so-
bretudo, por meio desses termos, conforme verificaremos adiante.
Em grande medida, como ressalta Brinkema (2014), o
interesse recente pelo tema (o afeto, o sensível) é, na verdade,
uma espécie de retorno a uma questão que o projeto iluminista
ignorou em nome da racionalidade. Trata-se, portanto, de uma
virada afetiva nas Humanidades, de um “re-visitar” que pres-
supõe a valorização daquilo que, até bem pouco tempo, era si-
nônimo de anticientífico, oposto à razão e, de forma bastante
pejorativa, até mesmo piegas. Embora a valorização do tema
esteja ocorrendo novamente (num novo movimento da Histó-
ria), não se pode afirmar tratar-se de algo novo. Platão, Aristó-
teles e Tomás de Aquino, por exemplo, já haviam desenvolvi-
do longamente esse tema. Platão, por exemplo, compreendia o
pathos como estranhamento, sofrimento, ou ainda a capacidade
de um ser de despertar tais sentimentos. De acordo com Telles
e Conter (2015), o pathos adquiriu diferentes conotações nas
traduções latinas e inglesas. Nestas, o pathos transformou-se em
passiones, ligando-se à ideia de sofrimento e passividade. Essa
concepção deu origem ao termo patológico que, por sua vez,
está ligado ao sofrimento e à passividade. Tais transformações
prosseguem: perturbationes, em Cícero, affectio e affectus, em
Galeno. O affectus conservará o sentido original do pathos gre-
go, enquanto affectio assumirá o sentido de stérgo, “tornando-se
o verbo amar e o substantivo afeição, sobretudo no sentido do
amor dos pais” (TELLES & CONTER, 2015, p.2-3), aproxi-
mando-se do sentido corrente em língua portuguesa.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

192
Aristóteles, por sua vez, foi resgatado pelos intelec-
tuais europeus na perspectiva de que o pathos também poderia
significar sensium (uma sensação ou sentimento) e sensatio
(forma ou maneira pela qual se sente algo). O primeiro termo,
de acordo com Telles e Conter (2015), deu origem ao termo
jurídico “sentença” e o segundo ao termo “sentido”, tal como
o concebemos hoje.
A paixão, por sua vez, é oriunda de passio, que desig-
na, no latim tardio, o sofrimento e também o movimento da
alma. Desta concepção, advém a explicação para a Paixão de
Cristo, ou seja, o sofrimento de Cristo. Na medicina, por sua
vez, o mesmo termo (passio) adquiriu o sentido de doença. A
paixão, portanto, é algo que afeta alguém e, de alguma forma,
imprime sofrimento, descontrole, doença. A paixão deve, por
esse motivo, ser evitada a todo custo. Ela lança o ser numa
dimensão nebulosa, obscura, desconhecida. A paixão afeta o
ser – aqui o sentido remonta ao século XVII, quando o termo
passio era sinônimo de affectus (FIORIN, 2007).
Daí conclui-se que o passional é oposto ao racional.
O passional adquire o sentido daquilo que é impensado, não
amadurecido, ou seja, imaturo (FIORIN, 2007). A palavra
sentimento, por seu turno, vai aparecer apenas no século XIV
para indicar “estado afetivo, bastante estável e durável, ligado
a representações, emoção, paixão” (FIORIN, 2007, p.10). Ao
buscar estabelecer as diferenciações existentes entre sensação
e sentimentos, o autor destaca que enquanto o primeiro vocá-
bulo implica a instância sensória, pontual, repentina, imediata,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

193
o segundo está relacionado a uma instância superior da alma e,
portanto, tem caráter durativo.
O vocábulo emoção vai surgir, numa primeira instân-
cia, como sinônimo de paixão. De acordo com Fiorin (2007,
p.12), o termo é oriundo de e(x)movere, que significa mover
para fora. A concepção de movimento (Tomás de Aquino, por
exemplo, entende que a paixão é um movimento da alma) im-
plica que a emoção pode ir de um corpo para outro, indicando
uma ideia de transferência e compartilhamento. Partindo des-
ses pressupostos, Telles e Conter (2015) desenvolvem o ra-
ciocínio de que, se a emoção implica um movimento de algo
que será posto para fora do corpo (e, consequentemente, para
dentro de outro corpo), o pathos pressupõe a existência de algo
externo, capaz de impactar o corpo no sentido oposto, qual
seja, de fora para dentro. Sendo assim, um corpo é impactante
e impactado ao mesmo tempo. Resgatando Spinoza, Telles e
Conter (2015) preferem o termo afecção para designar o cho-
que que ocorre entre os corpos e afecto para indicar as mudan-
ças de estados nos corpos envolvidos no processo.
Neste ponto, é importante destacar o sentido de afe-
to e afecção para Spinoza, posto que suas contribuições são
bastante utilizadas para pensar a comunicação na perspectiva
epistemológica, que adotamos nesta investigação, a da comu-
nicação como afecção (MARCONDES FILHO, 2010). Pri-
meiramente, é importante destacar que a filosofia de Spinoza
pode ser caracterizada pelas rupturas. No momento em que
se desenvolveu, ela abalou os pilares da religião e da política
PARA COMUNICAR O INCOMUM

194
(CHAUÍ, 2005). Spinoza compreendia que, diferentemente do
que postulava a tradição, não existe superioridade da alma em
relação ao corpo. Para ele, ambos são parte (expressões) de
uma mesma substância. Lê-se, na proposição XXI de sua prin-
cipal obra, Ética (p.30): “a Mente e o Corpo são um só Indiví-
duo, que é concebido ora pelo atributo Pensamento, ora pelo
atributo Extensão. Donde a idéia da Mente e a própria Mente
são uma só coisa que é concebida por um mesmo atributo, o
Pensamento”. Nesta perspectiva, Spinoza entende que o atri-
buto Pensamento está voltado para as questões da mente, en-
quanto o atributo Extensão está ligado à materialidade física.
No entanto, sublinhe-se, não há uma real separação entre esses
atributos. Spinoza os entende como atributos ou instâncias de
uma mesma coisa, mas não apregoa a separação entre tais as-
pectos. A base de sua filosofia é o afeto, mas é praticamente
inviável discutir esse vocábulo sem passar pela concepção de
ideia. Para Spinoza, o sentido de ideia é simples: trata-se de um
“modo de pensamento que representa alguma coisa. Um modo
de pensamento representativo” (DELEUZE, 2009, p.20). Afe-
to (affectus), por sua vez, refere-se a um modo de pensamento
que não representa nada, ou seja, “todo modo de pensamento
não representativo será denominado afeto” (DELEUZE, 2009,
p.21). Como exemplo, Deleuze cita o fato de uma pessoa que-
rer algo; este algo (objeto, coisa) implica uma representação
e, portanto, uma ideia. O fato de querer este algo, no entanto,
não implica uma representação. Trata-se, por conseguinte, de
um afeto. Tais definições são, no entanto, apenas nominais.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

195
Do ponto de vista de uma definição real, Spinoza entende que
todos os seres são autômatos espirituais e, como tal, as ideias
perpassam os seres a todo o momento (elas sucedem-no, des-
dobram-se sobre eles). Desta forma, nessa “sucessão de ideias,
nossa potência de agir ou nossa força de existir é aumentada
ou diminuída de uma maneira contínua (...) e isto é o que nós
chamamos afeto, o que nós chamamos existir” (DELEUZE,
2009, p.28-29). O affectus é, então, a variação (resultante das
ideias) da força de existir de alguém. Spinoza trabalha com a
ideia de dois afetos fundamentais (polos): a alegria e a triste-
za. Quando a potência de agir aumenta, o ser experimenta um
affectus de alegria. O contrário faz com que o ser experimente
um affectus de tristeza.
A afecção (affectio), por sua vez, é a situação ou estado
de um corpo enquanto sofre uma ação proveniente de outro
corpo. Aqui o importante é destacar a palavra “enquanto”. A
afecção se dá no durante, no atrito dos corpos, no contato. A
mistura entre os corpos é também denominada por Spinoza
como afecção. Normalmente, a afecção indicará a natureza do
corpo afectado muito mais que a natureza do corpo afectante.
Spinoza explica que a afecção indica mais a natureza do corpo
modificado que a do corpo modificante. Pensemos no exemplo
utilizado por Deleuze, o sol e as demais coisas terrenas. O sol
(corpo afectante) tem uma mesma natureza, mas seu impacto
sobre as coisas terrenas tem diferentes aspectos. Diante do sol,
a argila, por exemplo, endurece. A pele do ser humano aquece
quando exposta aos raios solares. Os corpos modificantes (ar-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

196
gila, pele) têm naturezas diferentes e isso implicará movimen-
tos (resultados) distintos. O que ocorre é que, muitas vezes, os
corpos (podem também ser seres) não se dão conta do que ge-
rou a afecção. Desta forma, permanecem num primeiro nível
(muito baixo) de conhecimento acerca do mundo, que Spinoza
denomina de ideias-afecções.
Para ele, as ideias-afecções nada mais são do que as
representações das ideias desprovidas das causas. O filóso-
fo também utiliza a expressão “ideias inadequadas” para se
referir a elas. Trata-se “das ideias de mistura separadas das
causas da mistura” (DELEUZE, 2009, p.32). Ao permanecer
nesse nível, vive-se ao acaso dos encontros. Eis aqui um as-
pecto curioso da filosofia de Spinoza: os encontros (situação
que possibilita o atrito entres os corpos, o contato) é que per-
mitem que existam misturas que agradem ou desagradem o
ser/o corpo. Para Spinoza, dizer que algo qualquer não agrada
equivale a dizer que a mistura desse algo com meu corpo, com
minha alma, não gera em mim uma boa impressão, sensação.
A mesma coisa acontece com os alimentos; quando uma pes-
soa afirma não gostar de um determinado alimento, tem-se que
a mistura de seu corpo com aquele alimento a modifica (a pes-
soa) de forma desagradável. Spinoza explica que essa mistura
é confusa porque, nesse nível, já não se sabe absolutamente
nada; tudo ocorre ao acaso. O conhecimento de si só é pos-
sível mediante as afecções causadas pelos corpos exteriores,
ou seja, não é possível furtar-se a eles. O corpo, por sua vez, é
algo que deve ser compreendido por meio do conjunto de re-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

197
lações que o compõem ou, dito em outras palavras, pelo poder
de ser afetado.
Deleuze (2009) faz uma leitura bastante salutar de Spi-
noza ao afirmar que muito se fala a respeito da alma e do es-
pírito, mas nada se sabe a respeito do corpo. Desconhecem-se
os afetos de que um homem é capaz. Para Spinoza (2005),
a divisão em gênero, espécie e raça simplesmente não faz o
menor sentido. O que distingue uma rã de um homem, por
exemplo, não é a espécie. É o fato de que rã e homem não
são capazes das mesmas afecções. Aprofundando, os homens
também não são capazes das mesmas afecções, visto que, con-
forme Deleuze (2009, p.39), existem diferenças culturais, so-
ciais e até biológicas entre eles. O maior exemplo disso, citado
pelo autor, é justamente a estratégia usada pelos europeus para
infectar os nativos da América do Sul com o vírus da gripe.
Os nativos não estavam preparados para esse afeto. Por essa
razão, Spinoza entende que seria importante propor um mapa
dos afetos para que se possa saber de que afecções o homem é
capaz (DELEUZE, 2009).
De fato, o conhecimento desse mapa dos afetos (resga-
tando Spinoza) pode auxiliar na discussão da experiência esté-
tica, mas, por si só, não responde à complexidade do fenômeno
que se estabelece quando um ser se depara com algo que efeti-
vamente o transforma e que possibilita o mergulho nos sentidos
da experiência. Sobre este aspecto, ainda que de forma breve,
cabe ressaltar que o termo “Experiência” é, de modo geral, en-
tendida como ligada à autoridade ou ainda à prática incansável
PARA COMUNICAR O INCOMUM

198
de alguma atividade (exemplo: o exercício constante de algo
leva à experiência). Aqui, fica exposta a ideia de uma prática
(muitas vezes mecânica) que pode levar à melhor forma de de-
senvolver uma atividade. Fica claro, portanto, o elo racional e
tecnicista que se liga ao termo. Ainda que este seja um ponto de
vista comum, o conceito de experiência é bastante complexo e
variável, de acordo com a vertente teórica adotada.
Do ponto de vista filosófico, por exemplo, a expe-
riência invoca aquilo que é transmitido pelos sentidos e se
conecta à apreensão sensível da realidade externa. Em Pla-
tão, por exemplo, a distinção entre mundo sensível e mun-
do inteligível, de certa forma, “equivale à distinção entre
experiência e razão” (MEINERZ, 2008, p.20). De acordo
com Meinerz, o mito da caverna, por exemplo, resgata jus-
tamente essa distinção. As sombras projetadas na parede da
caverna pareciam reais e eram fruto da sensibilidade e da
experiência dos que ali viviam. A razão – ou a iluminação
– estava reservada apenas àqueles que fossem capazes de
superar a experiência restrita. Interessa-nos, no entanto, a
forma como Benjamin entende a experiência. Trata-se da
contínua multiplicidade do conhecimento, é algo que não
se controla, não se mede pela lógica matemática ou mes-
mo pela metafísica porque é inconstante e heterogênea. Em
suma, a experiência só se desenvolve por intermédio do co-
nhecimento (MATOS, 1993, p.132). Nesse sentido, Benja-
min propõe o alargamento do conceito de experiência para
dar lugar aos aspectos espirituais, transcendentais. O alar-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

199
gamento desse conceito se faz como força vetorial contrária
ao empreendimento iluminista, racional.
No ensaio “Experiência e Pobreza”, um dos mais clássi-
cos relacionados ao tema escritos pelo filósofo, é possível ob-
servar a preocupação com os efeitos da modernidade. Se quin-
ze anos antes o autor entendia que a experiência se fazia com
distintas possibilidades de existência, agora o que se verifica
é que a verdade da experiência está relacionada à pobreza im-
plicada na modernidade. Nesse ensaio, o conceito adotado não
chega a, necessariamente, contradizer o sentido trabalhado nos
textos anteriores, mas é distinto. Experiência adquire o sentido
dos saberes acumulados pelas gerações e que pode ser transmi-
tido por meio de provérbios, fábulas etc. Diferentemente das
sociedades tradicionais, as sociedades modernas padecem pela
ausência de laços que são criados pelo compartilhamento face
a face, pela linguagem oral. O homem moderno, na concepção
de Benjamin, desconhece o peso do saber acumulado pelas an-
tigas gerações. A tradição perde seu espaço para ceder lugar a
uma lógica calcada no cotidiano frio, entulhado de “vazios”.
O ponto fatal dessa situação foi ressaltado por Benjamin como
sendo a Primeira Guerra Mundial, que evidenciou, entre ou-
tros aspectos, como o corpo humano era frágil e pequeno.

Na época, já se podia notar que os combatentes


voltavam silenciosos do campo de batalha. Mais
pobres em experiências comunicáveis, e não mais
ricos. […] Porque nunca houve experiências mais
radicalmente desmentidas que a experiência estra-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

200
tégica pela guerra de trincheiras, a experiência eco-
nômica pela inflação, a experiência do corpo pela
fome, a experiência moral pelos governantes (BEN-
JAMIN, 2012, p. 124).

Os horrores da guerra ressoaram como mutismo por


parte dos soldados. Já não havia algo que se quisesse falar. O
impacto técnico aniquilou a perspectiva meramente humana
na guerra e elevou a barbárie a um nível nunca antes experi-
mentado; já não se lutava mais corpo a corpo no chão, pois a
guerra se alastrava por água, terra e céus. Tal situação gerou o
empobrecimento da sociedade como um todo, mas principal-
mente do homem indivíduo. O desenvolvimento tecnológico
gerou uma nova forma de miséria: a miséria espiritual, o va-
zio da alma, a pobreza de experiência, de laços e ligação. Não
por acaso, o próprio Benjamin cita “uma angustiante riqueza
de ideias que se difundiu entre as pessoas com a renovação
da astrologia, da ioga, da Christian Science, da quiromancia,
do vegetarismo, da gnose, da escolástica e do espiritualismo”
(BENJAMIN, 1986, p.115). Desta forma, tem-se assistido à
proliferação de igrejas nos últimos anos, num movimento que
demonstra o quanto o homem carece de autoconhecimento.
Benjamin observa que esse movimento reflete, na verdade,
uma tentativa de encobrir superficialmente o que internamente
já demonstra claros sintomas de desgaste. Trata-se, portanto,
de uma “galvanização” que esconde os impactos internos da
experiência moderna à qual o homem tem se submetido. A
ausência de história, de lastro familiar, tem causado no ser a
PARA COMUNICAR O INCOMUM

201
sensação de desenraizamento crônico. Neste sentido, o ensaio
de Benjamin se mostra bastante atual, principalmente quando
questiona: “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural
se a experiência não mais o vincula a nós?”. Entende-se que
aqui o cerne da discussão seja realmente a questão do vínculo,
posto que sem ele a existência tem se tornado praticamente
insuportável. Diante desse cenário e distante de assumir um
tom catastrófico, Benjamin argumenta que a saída está na bar-
bárie. Não se trata, no entanto, de qualquer barbárie. Trata-se
de assumir essa pobreza e de observar o que é possível re-
sultar dela. Não se fala, por exemplo, na construção de novas
experiências, mas sim em assumir-se como tal: com defeitos,
desvios, pobreza.
Interessante observar que, de fato, esse cenário tam-
bém é bastante familiar. Acessa-se tudo, extasia-se, mas nada
permanece. Nada passa a fazer parte efetivamente do ser. De
forma análoga, de nada adianta teoricamente observar as expe-
riências se o ser não as vive, não as vivencia. O que ocorre é a
construção de uma falácia ou ainda a perpetuação da pobreza.

A Nova Teoria da Comunicação

Neste cenário de acúmulo de vazios, a Nova Teoria da


Comunicação (NTC) surge com a proposta de libertar o pes-
quisador e, ao mesmo tempo, de expor uma nova dimensão
do que vem a ser comunicação. A concepção de que “tudo é
comunicação” ou ainda de que “é impossível não se comu-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

202
nicar” levou a dois cenários importantes e que merecem des-
taque neste estudo porque ambos exercem grande influência
no cotidiano. O primeiro apregoou a óptica de que não há
especificidade alguma na comunicação, posto que “tudo” é
comunicação. De acordo com essa lógica, se todos os seres
se comunicam, não há nada de especial nisso e, por extensão,
não se trataria sequer de uma área de estudos. Esse ponto
de vista, embora superado por diversos estudos, ainda gera
debates veementes. Prova maior disso é o fato de que, até
hoje (2017), a obrigatoriedade do curso superior de Jornalis-
mo ainda continua sendo questionada pela Justiça brasileira,
que ainda insiste em desconsiderar a diferença existente entre
liberdade de expressão e liberdade de imprensa. A segunda
concepção, ou seja, a de que “é impossível não se comuni-
car”, levou ao que Berger (2007) chama de “perambulações
interdisciplinares”. Em grande medida, isso se deve também
à assunção de que tudo (e todos, por extensão) é comunica-
ção. Não por acaso, as pesquisas conduzidas no contexto dos
Mass Media Research foram também chamadas de pesquisas
administrativas (MARCONDES FILHO, 2010). Ao longo do
tempo, outras áreas também ofereceram suas contribuições e
influências: a Linguística, a Sociologia, a Psicologia, a Ma-
temática, a Engenharia. Para cada uma dessas áreas, a comu-
nicação assume um conceito diferente e, como tal, também
pressupõe um conjunto de técnicas que respaldam a pesqui-
sa desenvolvida com tais conceitos (LITTLEJOHN, 1978;
MARTINO, 2009; SODRÉ, 2014).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

203
Se, por um lado, tal aspecto denota a importância e per-
meabilidade da comunicação, por outro, este parece ser também
seu calcanhar de Aquiles na busca por maioridade científica. O
lugar da Comunicação – como ciência, daí a inicial maiúscu-
la – segue em constante debate em meio a um cenário cada vez
mais fluido. Na tentativa de compreender esta nova ciência, So-
dré (2014) entende que se trata de uma ciência que se respalda
no comum humano (indo desde que as questões subjetivas até as
relações midiáticas). A busca do autor em estabelecer o estatuto
epistemológico da Comunicação como ciência o faz admitir que
o método comunicacional aponta para o problema do comum e
se apoia veementemente na questão metodológica. O ponto de
vista deste respeitado expoente dos estudos de Comunicação no
Brasil se alinha à ideia comumente disseminada de que uma ciên-
cia exige, necessariamente, um método para que possa ser assim
reconhecida entre seus pares. Aqui, é praticamente impossível
não recordar de Kuhn (1977) e o desenvolvimento do conceito de
comunidade científica. Nesta perspectiva, de uma maneira bas-
tante objetiva, a ciência é uma atividade coletiva e depende do
reconhecimento dos pares para provar sua legitimidade.
Quando se fala da Comunicação, no entanto, a rigi-
dez dos métodos oriundos de outras áreas, especialmente das
ciências chamadas duras, tem levado a cenários de verdadeira
prisão metodológica. Historicamente, tal herança está relacio-
nada à busca incessante por experimentos que pudessem ser
reproduzidos em laboratório sempre com a obtenção do mes-
mo resultado.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

204
[...] ainda hoje, o senso comum, a imprensa e até
mesmo as agências de fomento à pesquisa não
sabem muito bem o que fazer com as chamadas
“ciências humanas”, a Literatura e as Artes, impon-
do-lhes critérios exógenos e injustificados. Por sua
vez, a investigação sobre a comunicação – situada
nesse limbo epistemológico que são as chamadas
“ciências sociais aplicadas” – vive, desde seu iní-
cio, um dilema esquizofrênico entre análise obje-
tiva e a interpretação pragmática orientada (VAL-
VERDE, 2010, p.58).

As tentativas de um encaixe forçado levaram a um em-


pobrecimento dos estudos em Comunicação. Muitos estudos
de recepção, por exemplo, ainda insistem em desconsiderar o
Outro em detrimento de um receptor passivo quando, em ver-
dade, já se sabe, há muito, que o receptor nunca foi passivo.
A própria concepção de passividade sofreu transformações ao
longo dos anos. Ainda é possível encontrar estudos que buscam
“prever” comportamentos por meio de estímulos quando hoje já
se sabe que o homem é um Ser muito complexo, de modo que o
que o estimula hoje pode não exercer o mesmo fascínio amanhã
(SANTOS, 2017). Os critérios duros de pesquisa (principalmen-
te no que se refere ao método) praticamente soterraram aquilo
que a Comunicação tinha (e tem) de mais particular (o sentir, a
percepção) em nome de um pseudocientificismo.
Bachelard (2006) apresenta um outro ponto de vista no
que se refere ao conhecimento científico que parece libertar a
Comunicação das amarras das ciências duras. Sobre a discussão
sobre o método, Bachelard (2006, p.136) o “espírito científico
PARA COMUNICAR O INCOMUM

205
vive na estranha esperança de que o próprio método venha a fra-
cassar totalmente. Porque um fracasso é facto novo, uma ideia
nova”. A reprodução incessante do mesmo conduz a uma clare-
za forçada que impede a visualização do que de fato é o novo, o
interessante, o surpreendente. Muitas vezes a pesquisa científica
exibe algo que as lentes metodológicas não permitem dar relevo.
O próprio Goethe chegou a afirmar, durante um Congresso de
Filosofia que “quem perseverar na sua pesquisa é levado, mais
tarde ou mais cedo, a mudar de método” (BACHELARD, 2006,
p. 136). A Nova Teoria da Comunicação (NTC) surge como algo
radicalmente novo, principalmente no que se refere aos procedi-
mentos de investigação ensejados por ela que negam, veemente-
mente, a aplicação de um método comunicacional.
No escopo da NTC, comunicar não deve se confundir
com sinalizar ou informar. Tudo o que existe (pedras, seres hu-
manos, animais etc.) emite sinais, ou seja, recebe-se e emite-se
sinais cotidianamente, ainda que não se queira. Alguns sinais
podem ocorrer de forma deliberada enquanto outros podem se
dar de forma não intencional. Entretanto, como bem destaca
Marcondes Filho (2013, p.5-26), a emissão de um sinal não
pressupõe, necessariamente, a recepção. Uma ação não se liga
à outra segundo uma relação de causa e efeito. Cabe a cada
um decidir a quais sinais dará atenção. É importante frisar que
muitos sinais captam a atenção das pessoas à revelia da von-
tade delas. É o caso, por exemplo, de um anúncio publicitário
que chama a atenção mesmo que não se esteja inicialmente
interessado nele. Quando as pessoas percebem, já leram (ouvi-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

206
ram, assistiram) o anúncio porque foram atraídas pelas luzes,
pelas sensações despertadas, pela chamada textual etc. Tam-
bém as falas podem ser meros sinais. Prova maior disso é o
fato de que todos os dias as pessoas ouvem muitas coisas, mas
pouco ou nenhuma importância dão a tudo que ouvem. Quan-
do ocorre o interesse por algo que está sendo dito, exibido,
ouvido, então esse sinal se converte em informação, cujo ob-
jetivo maior é possibilitar ao ser mais e melhores condições de
se adaptar, de agir e de estar no mundo. Trata-se de uma ação
deliberada que implica uma escolha, ou seja, cada um vai em
busca das informações de que necessita e as incorpora ao seu
repertório numa ação de seleção consciente (MARCONDES
FILHO, 2010).
A Comunicação, por seu turno, pressupõe mudança
qualitativa de um estado para outro. Isso significa que algo
precisa mudar no ser para que se possa afirmar que ocorreu
a comunicação. Comunicar é um fenômeno que, a despeito
do que apregoa o senso comum, não acontece com tanta fre-
quência, e tampouco pode ser reproduzido em laboratório. Por
resgatar a importância do Outro (praticamente negligenciado
nas teorias tradicionais e considerado mero receptor), a NTC
parte do ponto de vista de criar sentido, de gerar mudança,
ruptura. O único ser que é capaz de perceber isso é aquele
que vivenciou o fenômeno comunicacional. Comunicação, por
essa óptica, é algo muito maior, livre de materialidade. Ela se
estabelece, entre outros aspectos, na relação com o outro, no
princípio da alteridade, e é por essa razão que o Outro recebe
PARA COMUNICAR O INCOMUM

207
especial atenção por parte de Ciro Marcondes Filho, (2010), o
pai da NTC. Também Buber (2001) faz uma importante refle-
xão (resgatada por Marcondes Filho, 2010) a respeito do tu e
do isso. A relação eu-tu é distinta da relação eu-isso. Enquanto
a primeira pressupõe o encontro essencial do homem numa
atitude de reciprocidade (posto que reconheço o tu), a segunda
é calcada na atitude objetivante (o isso deve servir para ser
investigado, transformado). Aqui não se fala necessariamente
de pessoas, posto que o isso pode se transformar em tu, a de-
pender da atitude que o ser tem diante dos fatos, das pessoas
(MARCONDES FILHO, 2010, p.35).
A postura diz muito sobre o tipo de relação que se es-
tabelece, posto que “tratar uma pessoa como objeto de estudo
é vê-la como ‘isso’”. Transformar o isso em tu pressupõe uma
nova atitude, um novo comportamento, em que o eu se torna
permeável ao outro (tu), pois, como destaca Buber (2001, p.56)
“a alteridade essencial se instaura somente na relação EU-TU;
no relacionamento EU-ISSO o outro não é encontrado como ou-
tro em sua alteridade”. Ao basear-se na óptica de Lévinas, Mar-
condes Filho defende que o Outro, no fenômeno comunicacio-
nal, é tal como é em Lévinas: impenetrável, insondável, aquele
que está fora de mim. Não necessariamente está-se falando de
uma pessoa, mas sim daquilo que o ser não é e, exatamente por
isso, é aquilo que rompe o ego e possibilita ver além de si mes-
mo. A comunicação pressupõe, desta forma, o reconhecimento
do Outro, mas não apenas isso. É preciso romper a barreira que
há em mim para acolher, hospedar o Outro que me choca (por
PARA COMUNICAR O INCOMUM

208
ser tão diferente de mim) e que pode até mesmo me agredir dada
a sua estranheza. É preciso abrir-se. Essa abertura, no entanto,
não acontece sempre numa situação dialógica (como queria Bu-
ber); ela pode ocorrer pelo atrito, pelo radicalmente oposto, pela
formação de ranhuras e fissuras na alma.

Comunicação como ruptura

Nem sempre a opção por acolher o Outro ocorre sem


atrito. Mas é justamente a formação dessas ranhuras que vai
possibilitar uma guinada, uma transição, um salto qualitativo.
Marcondes Filho defende que a comunicação genuína deve
romper algo internamente dentro do ser; aquilo que era, de re-
pente já não é mais. Essa transformação acontece de “um só
golpe”, nas palavras do autor. Não é um fenômeno de raciona-
lização, mas de intuição, de apreensão sensível. A linguagem,
por sua vez, também não consegue dar conta de todo o fenô-
meno porque é limitada; assim sendo, a comunicação está fora
de seu domínio. Não há como expressar, por exemplo, a dor
para alguém. A palavra dor pode até ser compreendida pelo
receptor, mas ele nunca será capaz de compreender com exa-
tidão a dimensão da dor que alguém sente. E na possibilidade
(ainda que utópica) de compreendê-la, jamais saberia exata-
mente como essa dor impacta o ser que a sente. O interior, os
recônditos de um ser, pertence a ele e somente a ele.
Livre de materialidade, o sentido da comunicação se
estabelece num momento específico e sempre é mutável por-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

209
que o ser está em constante transformação. Marcondes Filho
explica que se trata de algo irrepetível, que só ocorre uma vez,
num instante oportuno, sob o cruzamento de forças e vetores
inexplicáveis. Mesmo que as condições ideais sejam as mes-
mas, o sentido gerado será completamente distinto porque
depende do Outro que foi, é, e sempre será um mistério. Se-
guindo esse raciocínio e buscando permitir que a Comunica-
ção – como ciência – alcance a maioridade, como diz Mar-
condes Filho (2011), é necessário entender que o específico
da comunicação só é possível mediante a realização de um
“acontecimento” capaz de realizar um corte, uma ruptura que,
paradoxalmente, introduza vida na relação ao encaminhar uma
mudança radical no que éramos e no que nos tornamos após
essa “quebra”. Os acontecimentos são também únicos e impli-
cam situações singulares que ensejam verdadeiros movimen-
tos de liberdade.
Quando a comunicação ocorre tem-se, portanto, um
Acontecimento comunicacional, o ponto nodal da comuni-
cação, a pulsação, linhas propagadoras de luz. Aqui, estamos
tratando do sentido que se forma junto com o Acontecimen-
to comunicacional. Este, por seu turno, é único e nenhum ser
humano pode transferi-lo, pois apenas ele – sujeito que expe-
riencia a comunicação, a vivência com a alteridade – é capaz
de saber a amplitude da provocação que o acontecimento lhe
causou. Uma vez iniciado, não há ponto de retorno, ou seja,
uma vez experienciado o Acontecimento comunicacional, não
há mais como voltar ao que era antes. É importante destacar
PARA COMUNICAR O INCOMUM

210
que o Acontecimento comunicacional não ocorre num espaço
específico, numa determinação geográfica ou ainda “sob con-
dições ideais de temperatura e pressão”. Ele é um fenômeno
único, irrepetível. Em virtude de tais aspectos, Marcondes Fi-
lho defende que a comunicação está no entre, no durante (de
onde o Princípio da Razão Durante). Conceitualmente, a ra-
zão durante corresponde ao “princípio segundo o qual o acon-
tecimento comunicacional tem sua existência, seu efeito e sua
força na fração de tempo exata de sua duração” (MARCON-
DES FILHO, 2011, p.91). É importante deixar claro de que
duração está-se falando. Como é produto de uma série de for-
ças, vetores, energias, vivências e situações, o Acontecimento
comunicacional tem uma duração específica não determinável.
Não há sequer como localizar a mudança, a guinada qualitati-
va, justamente porque a comunicação se dá, conforme já dito,
no entre, no durante. Isso significa dizer que o acontecimento
se dá no espaço entre os interlocutores e durante um período
muito especial. Não se trata de algo domesticável e que possa
ser parado, congelado para ser pesquisado, desmembrado.
A comunicação é inesperada, surpreendente, selvagem
e indomável. Não há como ditar regras para que ela ocorra.
Para apreender o fenômeno, é preciso que o pesquisador se
instale na mudança enquanto ela ocorre. Merleau-Ponty (1994)
fala da necessidade de sentir, de dissolver-se na carne do mun-
do. Para o filósofo, o sentir está relacionado à instalação do
ser no mundo porque, em estando nesse local de vivência, é
impossível ao ser agir como se não estivesse em tal situação. O
PARA COMUNICAR O INCOMUM

211
acompanhamento do fenômeno pressupõe, primeiro, o seu re-
conhecimento. Reconhecendo-o, é preciso que o pesquisador
entenda que tudo se move porque o mundo não cessa seu mo-
vimento simplesmente porque alguém iniciou uma pesquisa
científica. De acordo com Bergson (2006, p.167), o movimen-
to não pode ser decomposto em estados sucessivos ou ainda
em uma série de posições concatenadas, uma seguida da outra.
O movimento é um todo e não deve se confundir com
a trajetória. As tentativas – ainda que frustradas – de paralisar
o mundo ou mesmo de tentar controlá-lo faz com que diversos
pesquisadores da área de comunicação lancem mão de artifícios
como controle de variáveis. Nos projetos de pesquisa enviados
para as agências de fomento isso aparece como variáveis de-
pendentes e variáveis independentes. Em verdade, é impossível
exercer esse tipo de controle em ciências humanas e ciências
sociais aplicadas. Essas áreas, pelo menos na maior parte das
vezes, investigam o “vivo” e não o “morto” que será aberto e
investigado sob diversos aspectos. O “vivo” da comunicação
corresponde a um ser que é, em verdade, um “evento-enquan-
to-ocorrência, um acontecimento casual enquanto atrito, pela
fricção, pelo impacto, pelo encontro do bisturi com a carne, do
fogo com a madeira, da palavra com o ser” (MARCONDES
FILHO, 2011, p.95, grifo do autor). A relação que se estabelece
nesse espaço entre uma coisa e o ser é tão umbilical que não há
mais como distinguir (e nem se busca isso) quem é o tocado e
quem é o tocante, o vidente e o visível. Estabelece-se uma amál-
gama que dispensa reflexões e problematizações racionalizadas.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

212
Tudo aquilo que existe como conhecimento em nossa consciên-
cia passou, antes, pela nossa percepção (MERLEAU-PONTY,
1994). A sensação não obedece às normas, às regras do intelec-
to, os atos inconscientes predominam sobre os conscientes, de
modo que não e reflete sobre tudo a todo o momento. Percebe-
-se, antes de pensar. Sente-se; o ser abre-se para o mundo.

A pesquisa sob uma nova perspectiva

Investigar o “vivo” pressupõe abrir-se para ele, insta-


lar-se nele, banhar-se em seu contexto para efetivamente sentir
a ocorrência da comunicação e mover-se com ela e com todos
que a ela se relacionam. Dadas as especificidades do objeto de
estudo (que, na pesquisa fundada na NTC é um ser com quem
o pesquisador estabelece uma relação do tipo eu-tu e não eu-
-isso), fica claro que a concepção de método tradicional não
oferece respaldo suficiente para captar as nuances das trans-
formações ocorridas no Acontecimento comunicacional. Ele é
a base e, por sua vez, pode ser observado dadas as suas carac-
terísticas de novidade, efemeridade, movimento e imprevisi-
bilidade. Tais características ficam mais evidentes quando são
expostas aplicadas ao foco da pesquisa: “o objeto não é conhe-
cido, nem conceituado; não permanece por muito tempo; não
está parado, estacionado ou ‘congelado’ e não avisa quando irá
acontecer novamente” (MARCONDES FILHO, 2011, p.192).
Os métodos tradicionais de pesquisa não conseguem
corresponder à fruição do Acontecimento, mesmo porque, não
PARA COMUNICAR O INCOMUM

213
raro, tais métodos buscam entender, compreender, analisar, dar
sentido a ele. Diferentemente da pesquisa clássica ou tradicio-
nal, a pesquisa que assume a comunicação como um Aconteci-
mento pressupõe a necessidade de “re-escrever” os caminhos e
de revisitar os temas em função do novo contexto, mas, sobretu-
do, em função do momento. Assim, a ideia de métodos preesta-
belecidos e constantemente aplicados, facilmente reproduzíveis,
não cabe na perspectiva da Nova Teoria da Comunicação. O
“vivo” está justamente na ausência de um método fixo, defini-
tivo, fechado, asséptico. Ao pesquisador cabe descobrir formas
de olhar e estudar o objeto que, nesta perspectiva, não será es-
gotado ou dissecado. O pesquisador não precisa (e não deve)
buscar conhecer todas as nuances do objeto. A compreensão do
objeto reside em um momento, em um contexto. Ao invés de
seguir um caminho pré-determinado (método), o pesquisador
embrenha-se no acontecimento, por meio de seus poros. Daí
a razão porque a pesquisa que assume a NTC não pressupõe
um método específico e sim o metáporo (caminho pelos poros).
Quantas vezes se olhe para o mesmo objeto, tantas vezes será
preciso reconstruir e redescobrir formas distintas de observá-lo.
A mente precisa estar aberta para os movimentos constantes do
mundo. Tais movimentos são únicos e irreprodutíveis, passíveis
de percepções que também serão únicas. Ao trabalhar a lógica
da pesquisa científica, Popper (1974, p.61-62) afirma que as teo-
rias são redes “lançadas para capturar aquilo que denominamos
“o mundo”: para racionalizá-lo, explicá-lo, dominá-lo” e, de
acordo com tal princípio, quanto mais estreita a rede, melhor. O
PARA COMUNICAR O INCOMUM

214
método serviria para captar aquilo que os sentidos falseiam, ou
seja, aquilo que é captado pelo sentido deve ser constantemente
submetido à prova.
De forma diametralmente oposta e assumindo a epis-
temologia metapórica, a NTC está assentada na perspectiva
de que o pesquisador se torna a rede (grifo meu). Ele deixa de
ser o sujeito que lança a rede e apenas observa para se tornar a
própria rede. Embora exista proximidade com a pesquisa par-
ticipante e também com a pesquisa-ação, é importante desta-
car que o pesquisador que assume a Nova Teoria sente o que
se passa ao seu redor e se coloca na cena do Acontecimento.
Existe, na Nova Teoria, a valorização do sentir e do percepcio-
nado. De forma semelhante, também existe proximidade entre
a pesquisa metapórica e a pesquisa cartográfica. O ponto de
convergência está no fato de que ambas trabalham com a pre-
missa de que pesquisador e pesquisado compartilham a mesma
realidade (o comum). Por outro lado, o ponto de distanciamen-
to está no fato de que, no segundo tipo de pesquisa citado, “o
pesquisador sai da posição de quem – em um ponto de vista de
terceira pessoa – julga a realidade do fenômeno estudado, para
aquela posição – ou atitude (o ethos da pesquisa) – de quem se
interessa e cuida” (KASTRUP & PASSOS, s/a, p.10). Obser-
va-se aqui, ainda que de forma sutil, que o pesquisador ainda
assume o papel do cuidador.
A pesquisa metapórica, por sua vez, abre espaço para
que o pesquisador seja, em muitos casos, o cuidado e não o
PARA COMUNICAR O INCOMUM

215
cuidador. Isso ocorre porque o metáporo pressupõe olhar para
si mesmo. Ele habilita o pesquisador a ser, antes de tudo, um
ser humano que sente. Nesse sentido, mais que a mera recep-
ção de conteúdos por meio dos órgãos dos sentidos – visão
típica do empirismo – interessa ao pesquisador do metáporo
destacar a percepção no sentido defendido por Merleau-Ponty
(1994). Para ele, a percepção não é uma representação fria
apreendida pelos órgãos dos sentidos. Igualmente, a percepção
em Merleau-Ponty é um acontecimento da existência com ca-
racterísticas corpóreas. A percepção está calcada na experiên-
cia de um Sujeito que olha para o objeto e sente, torna-se parte
dele. O corpo, por sua vez, realiza a percepção no movimento.
A imobilidade o deixa confuso, atrofiado, preso (MERLEAU-
-PONTY, 1994). Viver é habitar o mundo e mover-se nele. Ao
direcionarmos nosso olhar para o objeto, colocamo-nos na po-
sição de quem deseja habitá-lo, de forma que “as sensações
aparecem associadas a movimentos e cada objeto convida à
realização de um gesto, não havendo, pois, representação, mas
criação, novas possibilidades de interpretação” (NÓBREGA,
2008, p.142). A obra de arte, neste sentido, é o local que pos-
sibilita frestas para experiências perceptivas mais intensas. O
pesquisador do metáporo precisa, também, despir-se de um
pensamento preestabelecido e estar aberto para observar os
movimentos do novo, assumindo um papel de espectador do
mundo (DANTAS, 2012). Esse espectador, em sendo parte do
mundo, também é o mundo e atravessado por linhas, vetores
e sensações únicas em situações únicas. O conhecer seus pa-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

216
râmetros. A relação constrói o objeto e não o contrário (como
apregoam as teorias clássicas).
Se, por um lado, a acepção do metáporo possibilita
pesquisas antes impossíveis sem essa visão, por outro, também
impõe desafios a um objeto que não é controlado. É cômodo
(e até mais seguro) para o pesquisador que ele se debruce so-
bre um objeto estático. O metáporo impõe a necessidade de
acompanhar o movimento, o que nem sempre é confortável
para pesquisadores que, por mais que se esforcem, ainda car-
regam a herança de uma ciência calcada em métodos rígidos.
Trata-se, portanto, de uma rebeldia acadêmica necessária:
libertar-se das amarras e perceber-se no mundo. O pesquisa-
dor que não se percebe não será capaz de desenvolver uma
pesquisa metapórica porque ela depende, necessariamente, da
sensibilidade dele. O pesquisador não visa apreender, captu-
rar ou dissecar algo. Ele busca vivenciar e sentir o fenômeno.
Um pesquisador “morto” tampouco será capaz de sentir algo
vivo, porque nele não haverá mais fôlego intelectual, vontade,
desejo. Há aqui também um ponto importante: o pesquisador
do metáporo precisa despir-se da autoridade, tão cara a pesqui-
sadores conservadores.
O metáporo opera pelos poros, um espaço, uma passa-
gem que me permite visualizar o Acontecimento comunicacio-
nal que, por sua vez, deixa-se ver. O pesquisador do metáporo
não conta, portanto, com um método específico, o que não signi-
fica ausência de cientificidade. Ainda que não partilhe exatamen-
te do ponto de vista defendido por Marcondes Filho, Valverde
PARA COMUNICAR O INCOMUM

217
(2010, p.59) entende que: “é preciso criticar e rejeitar a rigidez
metodológica sem cair na apologia do relativismo, respeitando
a especificidade de cada objeto de investigação, mas assumindo
as responsabilidades que todo trabalho conceitual exige”. E é
justamente assumindo tais responsabilidades que o pesquisador
do metáporo conta com formas de operacionalização que se tra-
duzem, em essência, em linhas mestras que norteiam sua pos-
tura mediante o objeto em questão (passos metapóricos). Sua
busca não é o significado, mas sim o sentido, o sensível, que só
é despertado diante de uma comunicação de ruptura.
O Acontecimento, condição essencial para que isso
ocorra, não tem um sentido, ele é o sentido, isto é, ao estudá-lo,
estamos colocando em cena o acontecimento como um todo, no
momento em que ocorre, independentemente de sua duração. É
requerido do pesquisador do metáporo uma grande habilidade
para narrar e registrar os acontecimentos. A linguagem, nesse
caso, pode ser um entrave, uma vez que nem tudo que se vi-
vencia pode ser expresso em palavras ou textos, mas é preciso
buscar formas para transmitir o clima, a pulsação, a vibração
experimentados. É preciso estar aberto para a apreensão instan-
tânea do fenômeno. Essa necessidade repõe a importância da in-
tuição intelectual, ou seja, “fatos que antecedem e que sucedem
a intuição sensível” (MARCONDES FILHO, 2010, p.254). A
intuição intelectual pode ocorrer antes ou após a intuição sensí-
vel, de acordo com objeto em questão, o que vai depender da
temporalidade metapórica definida por Marcondes Filho (2010,
p.254) como “uma temporalidade estendida marcada pelos picos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

218
de êxtase”. Esses picos correspondem à intuição sensível e ao
momento da virada, da ocorrência do fenômeno que justifica a
afirmação de ocorrência da comunicação genuína, capaz de pos-
sibilitar a ruptura e a marca de algo que atravessa o Sujeito, que
rompe, que violenta, que choca. Essa virada, a transformação
que choca e violenta, pode acontecer nos primeiros instantes da
relação, como no caso de uma emoção forte ou mesmo no cine-
ma, e os efeitos serão sentidos em momentos posteriores. Nesse
caso, a intuição intelectual se processa no depois, de modo que
algo permanece ressoando no sujeito, transformando o após a
exibição de uma obra cinematográfica, por exemplo. Mas, em
situações educacionais, o sentido é diferente: “...as informações
são jogadas formando a intuição intelectual, até que num mo-
mento ocorre a intuição sensível, que cria o sentido, portanto, o
pico intuitivo ocorre no final…” (DANTAS, 2012, p.12).
Ao pesquisador que assume esta nova vertente de teo-
ria, cabe observar o fenômeno comunicacional, senti-lo e rela-
tá-lo. Parte-se aqui do ponto de vista de que uma nova teoria
sempre abre novos horizontes ou ainda novas formas de enxer-
gar o mesmo horizonte.

Considerações finais ou como fazer...

Como fazer isso? Após todo este caminho, só há uma


resposta: vivendo, lançando-se no mar dos Acontecimentos sem
medo de se perder. Aliás, a resposta só virá junto com a sensação
de estar perdido. A luz só se faz presente quando há escuridão.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

219
Não há como ser diferente. Qualquer elemento fora disso será
repetição. Finalmente, talvez alguém questione: qual a impor-
tância de uma pesquisa desta natureza? Resposta: além de ofe-
recer estudo acerca da valorização da pesquisa que se produz na
América Latina, este tipo de pesquisa liberta o Ser da visão há
muito viciante de que só existe uma forma “correta” de fazer
ciência (aquela apregoada pelos críticos e especialistas). Este
tipo de investigação tem como fundo a democratização do Saber
sem culpa por não ver aquilo que todos achavam que deveria ser
visto. É a derrubada do (bom) gosto ou da metodologia dura. Em
Crítica muda e cega (conto constituinte da obra Mitologias), Ro-
land Barthes (2001, p.28) afirma: “a cultura é permitida com a
condição de proclamar periodicamente a vaidade dos seus fins e
os limites do seu poder”. Não importa o que dizem os críticos ou
manuais; importa apenas aquilo que toca, aquilo que faz mover.
E isso não é errado! Ademais, o movimento de libertação não
cessa aqui. Estudar a Nova Teoria da Comunicação pressupõe
a valorização da Ciência que é feita no Brasil. Destaca-se, por
outro lado, que em nenhum momento propõe-se que se esqueça
todo o resto. Muito pelo contrário: é preciso agregar. Adotar a
Nova Teoria da Comunicação não significa esquecer tudo o que
já foi construído até aqui, mas vislumbrar novas possibilidades.
No extremo, a NTC propõe que, de maneira simples, o homem
volte a experienciar a vida e efetivamente se abra para sentir,
permitindo-se ser afetado pelos seres e objetos a sua volta.
Este é talvez o maior exercício de liberdade propos-
to e executado aqui: a desvinculação do colonialismo acadê-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

220
mico – aquele que aprisiona nos tradicionalismos e que não
responde às ansiedades e necessidades, mas que se consagrou
em virtude de uma autoridade arcaica há muito instituída nas
Universidades. Diante disso, a rebeldia é necessária para se
encontrar no meio disso tudo. O respeito a uma nova visão é
também uma luta. Existem espaços claramente definidos e de-
limitados, mas é preciso ter esperanças. Ter esperanças de que,
um dia, diferente de Núnez, do conto de Herbert George Wells,
denominado Em terra de cegos, os adeptos de novas formas de
ver a Ciência não precisarão fugir para manterem os olhos e a
visão alternativa da realidade.

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RE-FRAÇÃO
UMA CONCEPÇÃO DIFERENTE DO FENÔMENO
COMUNICACIONAL: A PERCEPÇÃO
DA REALIDADE E DO EU NO BUDISMO

Ana Paula Gouveia1

Há cerca de um mês atrás, em julho de 2018, recebi


uma mensagem inesperada de Danielle Naves. Apesar de pou-
co termos conversado, quase nunca termos nos visto e termos
feito apenas uma troca de livros, há um universo de interesses
muito profundo que nos liga, ainda que não o tivéssemos ex-
plorado em uma aventura conjunta.
A mensagem trazia um convite para participar de uma
publicação coletiva em homenagem aos septuagésimo aniversá-
rio do nosso prezado Professor Ciro Marcondes Filho, que tanto
fez pelos estudos da comunicação e da filosofia, no Brasil, no
mundo, e para cada um que teve o privilégio de conhecê-lo.
Evidentemente não poderia deixar de participar de
um evento como este, tanto pela bela iniciativa de Danielle,
quanto pela gratidão que sinto pelo Prof. Ciro, sem o qual
toda a minha vida teria seguido um rumo completamente di-

1 Ana Paula Gouveia é mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela USP, com estágio
de pesquisa na Universidade South Roehampton (Inglaterra), e pós-doutorado pela Univer-
sidade da Califórnia (2012) e em Paris pela Sorbonne (2014). Morou durante sete anos no
Mosteiro Tibetano Khadro Ling, no sul do Brasil. É autora do livro Introdução à Filosofia
Budista, pela Editora Paulus, 2016.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

226
ferente desde que deixei o monastério budista em que vivi
durante sete anos. Ele acreditou no trabalho que eu queria de-
senvolver e, graças a isto, dei início a uma nova trajetória em
minha vida acadêmica, que foi espontaneamente frutificando
e que contribuiu para estabelecer a base que tornou possível
a alegria que sinto hoje por poder fazer e viver daquilo que
gosto… Não há palavras para agradecer…. Mas vou tentar,
ainda que em um nível superficial, até onde o discurso é ca-
paz de expressar…
Com este duplo intuito, de participar desta homenagem
e tentar retribuir um pouco daquilo que o Professor Ciro pro-
porcionou a tantas pessoas como eu, decidi contribuir com o
texto que havia preparado a pedido do próprio Ciro, para uma
apresentação que fiz na USP compartilhando parte da pesquisa
feita durante o meu pós-doutorado como membro do Núcleo
de Estudos Filosófico da Comunicação (FiloCom).
Apesar do “meio de comunicação” ser diferente, e
a maneira de expressão em uma apresentação oral e escrita
serem distintas, mantive o sabor espontâneo do discurso, e
espero conseguir demonstrar um pouco das magníficas tri-
lhas e não-trilhas que pude percorrer graças a você, Ciro
Marcondes, a quem tanto admiro! Obrigada e Feliz Aniver-
sário! Que a sua vida seja muito longa, e que você continue
a servir de inspiração para tantas e tantas pessoas, que cada
vez mais começam a desfrutar dos “efeitos comunicacio-
nais”, das tácitas transformações que se estabelecem atra-
vés dos sentidos…
PARA COMUNICAR O INCOMUM

227
E (quase) assim foi a apresentação realizada na USP em
outubro de 2015

Em primeiro lugar, e não por mera formalidade, gosta-


ria de agradecer ao Prof. Ciro Marcondes que foi o supervisor
do pós-doutorado onde pude trabalhar de forma aprofundada
sobre com o assunto sobre o qual vou falar aqui.
Mas eu gostaria de agradecê-lo não apenas por isso, ou
mesmo pela generosidade que ele demonstra conosco ao com-
partilhar as suas descobertas, mas principalmente pelo exem-
plo que dá a todos nós, ao ser um pesquisador incansável, que
não se acomoda (repetindo as mesmas coisas por anos e anos,
por exemplo), mas que está em constante questionamento de
todas as coisas; que sinceramente, e de forma extremamen-
te competente, consegue se reciclar sempre e fazer com que
nós, os privilegiados que podemos acompanhar o seu trabalho,
também sejamos quase que “obrigados” a sair das nossas zo-
nas de conforto para buscarmos novas formas de compreensão
do mundo e de nós mesmos, buscando transformações, bus-
cando a verdadeira comunicação, se é que esta é possível. Mas
colocar isso em causa é fundamental, e acho que muitos de nós
aqui devemos muito ao Ciro neste sentido.
Desde que entrei para o FiloCom em 2010, a minha
admiração pela competência e talento profissional dele foi se
ampliando e, sem dúvida, esta oportunidade de ver mais de
perto o trabalho que ele desenvolve, colocou-me em contato
com uma pessoa muito pouco comum, cuja curiosidade ver-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

228
dadeira engrandece e dá ainda mais brilho ao seu trabalho e
personalidade. Devo a ele alegria de finalmente ter entendido
que é possível ser rigoroso sem perder a generosidade, e que
o interesse sincero pelo saber ainda é possível, e trás muitos
frutos, mesmo em paradigmas muitas vezes pouco flexíveis
como os da academia.
No budismo existe um ensinamento que se chama “as
seis perfeições”, estas seis perfeições são: a generosidade, a
disciplina, a paciência, a perseverança jubilosa, a concentra-
ção e a sabedoria, praticar estas “perfeições” nos coloca cada
vez mais próximos do que pode ser a liberdade, sendo que para
mim, e neste contexto, liberdade significa adquirir uma capaci-
dade ilimitada de beneficiar os outros. Com certeza ainda não
tenho liberdade, mas sem dúvida devo também ao Ciro ter a
chance de estar caminhando em direção a ela...
Por tudo isso: Obrigada novamente Professor Ciro, que
venham os setenta, os oitenta, os noventa, os cem anos, e que
você continue a se transformar, a aprender, a compartilhar…

Introdução

Imagino que a maioria das pessoas que estão lendo


este texto tem alguma idéia do que seja a chamada Nova
Teoria da Comunicação. De qualquer forma, e espero que
o autor me perdoe por qualquer deturpação, farei uma bre-
víssima apresentação da mesma, mas ciente de que é uma
perspectiva bastante pessoal sobre o assunto, baseando-me
PARA COMUNICAR O INCOMUM

229
apenas em alguns dos pontos que dialogam com aquilo que
irei tratar aqui.
Rompendo com muitos dos moldes contemporâneos,
ligados a uma noção de comunicação que estava mais inte-
ressada nos “meios comunicacionais”, i.e., que se perguntava
prioritariamente como a comunicação acontece, mais do que
o que é efetivamente a comunicação, ou o comunicar - o co-
municar-se, o ser comunicado, etc -, a Nova Teoria dedica-se
prioritariamente a entender o que é de fato a comunicação. Ao
colocar o foco da nossa atenção no acontecimento comunica-
cional, ela se preocupa fundamentalmente com o Ser envolvi-
do no processo.
Ao propor esta Nova Teoria, Ciro Marcondes põe em
cheque a maneira como muitos dos estudos em comunicação
vinham acontecendo até então, e nos remete a um universo mui-
to mais subjetivo, que se preocupa com o poder transformador
do comunicar, com o acontecimento comunicacional, onde algo
realmente “acontece”! Onde a metamorfose é enaltecida.
De alguma forma, a nova teoria, “em si mesma”, nos
provoca, nos obriga a “tirar o traseiro do sofá” e a buscar uma
nova compreensão dos nossos atos cotidianos. Ciro nos impul-
siona a pensar, mas especialmente a agir, e ele não está mais
focado apenas nas formas de transmissão, mas em entender se
estávamos de fato presentes quando interagimos com os ou-
tros, com o meio em que estamos, com os fenômenos que nos
cercam. Nos questiona não só se de fato estávamos presentes
(quando refletimos sobre os acontecimentos do passado), mas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

230
também se estamos presentes (agora), se estamos atentos aos
estímulos sensoriais aos quais estamos frequentemente expos-
tos. Ele nos remete ao aqui e agora, ao hic et nunc – sem assu-
mir uma postura existencialista - e enfatiza a nossa liberdade,
ao mesmo tempo em que ressalta a responsabilidade de cada
um de nós, enquanto Seres. Mas se trata de um “aqui e ago-
ra”, manifesto através de uma experiência estética, que não
se limita apenas a um “aqui e agora”, como poderia ressaltar
Walter Benjamin, mas sim que eleva o cotidiano à condição de
um fazer artístico, onde a comunicação, se de fato acontece,
estende-se para além das limitações espaço-temporais.
E quando falo em fazer artístico neste contexto, me re-
firo a todos os envolvidos em um processo criativo, o fazer arte
no sentido de ser permeado por um universo sensível e ser ca-
paz de expressar e/ou penetrar nele. Isso envolve não só aquele
que produz um “objeto”, por exemplo, mas também os que se
relacionam com ele e se transformam, são comunicados…
Como um exemplo no universo das artes que poderia
ilustrar um pouco este tipo de situação, eu penso no trabalho
de Thomas Hirschhorn. Artista suíço atualmente radicado em
Paris, que fez uma espécie de instalação interativa, chamada
Flamme Éternelle, no Palais de Tokyo em Paris, onde todos
eram convidados a fazer aquilo que quisessem, desde partici-
par de uma das palestras que aconteciam diariamente, escre-
ver poemas, por exemplo, nos papéis ou nas paredes, dançar,
tomar uma cerveja/vinho, fazer esculturas de isopor, ou o de
qualquer material que estivesse disponível, e assim por diante.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

231
Hirschhorn, ao tirar a arte do pedestal e coloca-la como algo
de livre acesso a todos, nos incita a um tipo de “presença”, em
que, o que quer que façamos naquele contexto, está “oficial-
mente” registrado em uma atmosfera de fazer artístico, o que,
necessariamente, implica em um certo senso de responsabili-
dade, e atribui um sentido especial ao nosso cotidiano.
Elevar o cotidiano a este “estatuto” implica em criar
um estado de atenção constante em nossas vidas, fazendo com
que ela (a nossa vida), possa se tornar ainda mais significativa,
a cada instante. E este aspecto, a meu ver, faz da proposta de
Ciro, assim como a de Hirschhorn, algo ainda mais revolucio-
nário, e muito similar aquilo que se propõe na forma de pen-
samento budista, no sentido de nos colocar em xeque, nos de-
safiar a estar presentes, ao invés de constantemente distraídos
e não focados em nossas ações, nas nossas palavras e mesmo
nos nossos pensamentos.
Quando me referi anteriormente a uma noção de: “um
processo de transformação que estende-se para além das limi-
tações espaço-temporais”, quis dizer que tal processo acaba
por nos remeter a um outro aspecto da consciência, a qual é
permeada por este movimento transformador do acontecimen-
to, que é a própria memória.
Como se sabe, através dos diversos estudos recentes so-
bre a memória, não existe uma memória, mas sim uma memó-
ria sobre a memória, como em um jogo de espelhos, em que o
reflexo do reflexo cria inúmeras camadas, até que não se possa,
ou mesmo que não faça sentido, tentar identificar uma possí-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

232
vel figura original, a “primeira memória”… Esta fluidez dos
pensamentos, e dos possíveis resgates do pensamento ligadas
aos processos de memória, fazem com que qualquer processo
comunicacional esteja sujeito a forma como percebemos e nos
relacionamos com o mundo, e de como estas informações vão
sendo plantadas e desenvolvidas em nosso fluxo de consciência.
A nossa forma de perceber o mundo, que é fundamen-
tada em nossos hábitos e tendências comportamentais, são ine-
vitavelmente pessoais e prioritariamente estéticas. A percep-
ção mais imediata do mundo se dá através da consciência da
visão, do tato, do paladar, do olfato, da audição e a consciência
mental (como se expõe na perspectiva budista), e todas estas
consciências estabelecem uma conexão com a realidade perce-
bida (os objetos da percepção) através do contato. Mas falare-
mos especificamente sobre este assunto mais a frente, ao nos
referirmos aos doze elos de originação dependente (sânscrito
transliterado: pratītyasamutpāda – tibetano fonético: tendrel
yenlak chuni), que é uma forma de compreensão da manifesta-
ção de nós mesmos e dos fenômenos muito particular à filoso-
fia budista, que será vista em mais detalhes.
Mas antes de entendermos um pouco mais sobre o prin-
cípio de originação dependente e sobre como os hábitos men-
tais, as consciências, o contato e assim por diante “trabalham”
sobre a nossa percepção, fazendo com que aquilo que chama-
mos de comunicação, mesmo neste contexto, seja necessaria-
mente algo condicionado (e aqui entramos em uma questão
particularmente delicada que deve abrir margem para discus-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

233
sões). Vamos primeiro tentar expor, de maneira extremamente
simplificada, dois aspectos importantes para esta discussão: o
que é esta “comunicação” da qual se fala, dentro da perspecti-
va da Nova Teoria, e qual é a importância de refletirmos sobre
este “eu” que se comunica.

Comunicação

Como foi dito, a comunicação sobre a qual pensamos


aqui, é um fenômeno capaz de transformar a nós e aos outros,
esta própria transformação é um indício de que a comunicação
de fato aconteceu. Assim sendo, não estamos mais focados so-
mente nas formas de transmissão de informações, mas sim na-
quilo que acontece com aquele que é tocado, que passa por al-
terações. Brevemente, de acordo com esta teoria, existem três
níveis diferentes relativos ao envolvimento comunicacional:
– O primeiro seria a sinalização, que tem efeito me-
ramente emissor, havendo ou não uma resposta; a sinalização
ocorre o tempo todo, a princípio somos todos emissores, esta-
belecemos contatos. Nós, e as coisas a nossa volta, produzimos
sinais que podem ou não serem convertidos em componentes
do processo comunicacional; todavia, nesta primeira etapa de
sinalização, ainda não há níveis diretos de alteração, ou trans-
formação, significativos para os agentes.
– O segundo nível da informação, tem caráter aditi-
vo, ou mesmo “confirmativo”, sobre um assunto ou algo que
já temos um conhecimento prévio; neste segundo momento, a
PARA COMUNICAR O INCOMUM

234
sinalização pode tornar-se informação quando voltamos a nos-
sa atenção para ela, i.e., há uma intencionalidade. A informa-
ção tem um caráter aditivo, uma pessoa recebe determinadas
informações e, em geral, adiciona a conhecimentos prévios e
re-arranja aquele conhecimento, mas sem grande significado
em termos de transformação sobre informações previamente
adquiridas e que já fazem parte do modo de pensar daquele que
se relaciona com a informação.
– E o terceiro nível, que finalmente poderia ser cha-
mado de comunicação, se dá quando algo se transforma em
nós, onde não nos mantemos iguais antes e depois daquele
acontecimento, seja ele qual for, uma conversa, uma apresen-
tação teatral, a leitura de um livro, uma palestra científica, etc.
Durante o acontecimento comunicacional algo muda em nós,
e saímos alterados. Neste terceiro nível, o contato com o agen-
te comunicacional provoca uma reação na pessoa, a qual se
transforma; ela passa a pensar e a refletir de forma diferente do
que fazia anteriormente, não apenas por ter adicionado mais
uma informação ao que já sabia, mas por ter se deparado com
o diferente, com algo que causa um impacto em certo sentido
violento, e este novo elemento é capaz de transformar o modo
de pensar da pessoa e a levar a reflexão, é somente neste ter-
ceiro nível que poderíamos dizer que a comunicação efetiva-
mente aconteceu. A comunicação, neste caso, é diretamente
proporcional ao transformar-se.
É particularmente este último nível de efetiva comu-
nicação, onde saímos alterados (as), que gostaria de explorar
PARA COMUNICAR O INCOMUM

235
um pouco mais, ainda que os outros dois níveis não estejam
ausentes desta discussão.

A importância de refletirmos sobre este “eu” que se comu-


nica e é comunicado

Em uma área de pesquisas em que o “eu”, ou mesmo o


“eu” do outro, é o foco central do trabalho de observação e en-
volvimento proposto (e aqui caberia falar sobre a metodologia,
o metáporo, mas voltaremos a este tópico mais a frente), pare-
ce ser inevitável e basilar tentarmos entender o que é este “eu”,
sem o assumirmos como algo “dado a priori”. Acreditar que
existe um “eu” apenas por acontecer a percepção de um “eu”
que, de certa forma, pode parecer relativamente estável, único
e independente, é restringir, de imediato, o potencial de desco-
bertas que podem ser realizadas a partir de uma investigação
profunda sobre a “plataforma de trabalho” (o “eu”) relativa à
área de pesquisa aqui apresentada, a comunicação, mas não só,
pois, como parece evidente, o entendimento do “eu” é funda-
mental para qualquer conhecimento no reino humano. Todo os
dias nos levantamos e pensamos, “eu farei isto ou aquilo” …
Mas raramente nos questionamos se há de fato um agente, um
objeto da ação, ou a própria ação que os liga… Se estas “três
esferas” são “verdadeiramente existentes”, ou se assumimos
como verdade a mera percepção, que não pode ser sustentada
por qualquer base que a confira uma verdadeira realidade, em
termos últimos, àquilo que é percebido.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

236
Algumas considerações preliminares

É claro que se colocarmos em questão a “existência”


ou “não existência” de um “eu”, provavelmente algumas pes-
soas vão se entreolhar e pensar, mas esta pessoa está maluca,
como ela pode levantar “suspeita” com relação à nossa “exis-
tência”, se eu estou aqui! Por isso, quando vamos fazer este
tipo de questionamento, é fundamental compreendermos que
não se está questionando a sensação de existência de um “eu”,
em outras palavras, ninguém nega que nós tenhamos a per-
cepção de nós mesmos enquanto pessoas relativamente “está-
veis”; estáveis no sentido de podermos acordar todos os dias e
nos reconhecer, dizer que temos um nome com o qual somos
identificados, uma determinada idade, características, e assim
por diante. Mas apenas estas constatações não são suficientes
para estabelecer um “eu” como algo verdadeiramente existen-
te em termos últimos, em termos de uma acepção inequívoca
da realidade.
Mas todas estas idéias devem ser melhor examinadas
para começarem a fazer algum sentido.
Por exemplo, na Nova Teoria da Comunicação é utili-
zado também o pensamento heideggeriano para se pensar so-
bre o “Ser”. Ao lermos a proposta da NT, percebemos que há,
de imediato, um enaltecimento do Ser em relação ao Ente, tan-
to enquanto universo de interesse, quanto em termos de uma
proposição comportamental relativa ao nosso estar no mundo.
Heidegger diz que não podemos caracterizar o Ser, sequer po-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

237
demos usar a forma verbal “é” para nos referirmos a ele, pois o
Ser, diferente da materialidade e da finitude do Ente, deve ser
pensado antes como verbo do que como substantivo, daí sua
vitalidade e a sua transcendência. O Ser por vezes é concebido
apenas como um “horizonte de significação” que deixa entre-
ver, contudo, a realidade do Ente e Ciro Marcondes afirma que
é exatamente a pesquisa desse Ser do Ente (este Ser relativo ao
Ente) que cabe ser entendida.
(Poderíamos aproveitar para fazer uma rápida observa-
ção com relação ao jogo de palavras: o “Ser do Ente” e “Ser
Doente”, pois esta noção de Sermos/Estarmos Doentes é uma
das analogias empregadas no pensamento budista, mas isso es-
tará implícito na apresentação).
É justamente em prol de um entendimento profundo do
“eu” – que neste contexto poderíamos traçar um paralelo com
o Ser em sua possível “transcendência”; e com o Ente, em sua
materialidade percebida e em sua finitude relativa – que os
filósofos budistas vêm se empenhando há mais de 25 séculos.
Analisando então os comentários com relação as no-
ções de Ser e de Ente feitos acima. Primeiro, com relação a
transcendência do Ser; a utilização da palavra transcendência
me parece sempre delicada, e precisa ser bem compreendida
em cada contexto. Se pensarmos em uma acepção metafísica
(que também é outro “grande” e complexo conceito) da trans-
cendência, estaríamos nos referindo ao caráter inerente a um
princípio ou um ser divino que ultrapassa radicalmente a reali-
dade sensível, e com a qual se mantém uma relação de distân-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

238
cia. Já no pensamento kantiano, podemos ver a transcendência
como a qualidade apresentada por ideias que, embora perten-
centes ao âmbito da especulação racional humana, caracteri-
zam-se por ultrapassar os dados oferecidos pela experiência,
sendo por isso inapropriadas para o conhecimento. Para os
teístas, ela seria a qualidade de Deus em relação ao mundo e
aos seres que ele criou. Já na fenomenologia, que apresenta
uma concepção de transcendência mais próxima aquilo que é
proposto por Heidegger, ela é a ação por meio da qual a exis-
tência humana ultrapassa a sua realidade imediata, e que pode
levar a liberdade, por exemplo. Há muito o que dizer sobre
estes conceitos, mas este não é o objetivo desta apresentação.
De qualquer forma, o motivo que leva-me a trazer estas
idéias, é que todos estes conceitos de transcendência se afas-
tam da perspectiva budista indo-tibetana (sobre a qual falamos
aqui, pois existem muitos “budismos”) em suas investigações
sobre a realidade. E é importante esclarecer que, assim como
este conceito, grande parte da terminologia empregada para
nos referirmos a este universo filosófico deve ser entendida em
seu próprio contexto, e aplicada e também traduzida e elabo-
rada de maneira condizente, o que muitas vezes não acontece
por não especialistas no chamado “ocidente”; e por vezes até
no “oriente” (os conceitos de oriente e ocidente também são
extremamente complexos, mas não vamos nos ater sobre isso).
E é por isso que temos que ser extremamente cautelosos para
evitar distorções. O próprio conceito de consciência menciona-
do anteriormente é muito diferente da acepção contemporânea
PARA COMUNICAR O INCOMUM

239
utilizada pelas ciências cognitivas, por exemplo. Por isso, deve
ficar claro que conclusões precipitadas sobre aquilo que é dito
neste contexto particular podem levar a muitas deturpações.
Além disso, quando nos referimos ao Ente, nós disse-
mos que sua materialidade era percebida (e não simplesmen-
te admitimos o caráter “material” em “si mesmo”); e que a
sua finitude era relativa, pois a finitude, tal qual, em geral, a
compreendemos, implicaria em um “fim” que, na concepção
filosófica do budismo, poderia ser entendido como niilista. E
uma compreensão niilista do mundo é enfaticamente contes-
tada nesta perspectiva. Esta questão será mais elaborada ao
longo desta exposição.
Partamos então para a compreensão do “eu” neste
contexto.

Redefinindo o Conceito de “Eu”, de Pessoa


Por mais que ao longo do tempo tenhamos nos acos-
tumado a nos referir à noção de “eu”, ou de pessoa, como
um conceito relativamente acessível, ou de fácil compreen-
são, é justamente este aspecto de “obviedade assumida” que
pode nos conduzir a aceitação de tal noção sem questiona-
mentos. Se retornarmos a textos clássicos, como é o caso de
Marcel Mauss, por exemplo, em suas investigações antro-
pológicas, podemos notar que este conceito do que vem a
ser uma pessoa também era questionado por ele. O antropó-
logo francês escreve:
PARA COMUNICAR O INCOMUM

240
(...) trata-se de nada menos que de vos explicar
como uma das categorias do espírito humano –
uma dessas idéias que acreditamos inatas – len-
tamente surgiu e cresceu ao longo dos séculos e
através de numerosas vicissitudes, de tal modo
que ela ainda é, mesmo hoje, flutuante, delica-
da, preciosa, e passível de maior elaboração. É a
idéia de “pessoa”, a idéia do “eu”. Todos a con-
sideram natural, bem definida no fundo da sua
própria consciência, perfeitamente equipada no
fundo da moral que dela se deduz. Trata-se então
de substituir essa visão ingênua de sua história
e de seu atual valor, por uma visão mais precisa
(Mauss, 2003).

Para que possamos fazer tal investigação - que, para


além da antropologia, vem sendo trabalhada de formas distin-
tas por diversas áreas do conhecimento humano, como a pró-
pria comunicação, mesmo quando não de forma direta, etc.,
– tomarei como base o pensamento prático-filosófico prove-
niente de fontes budistas indo-tibetanas. Esta maneira de pen-
sar – que por vezes é tida como terapêutica – em certo sentido
é similar à maiêutica Socrática, pois é capaz de nos ajudar a
“dar a luz” aos nossos conhecimentos e sabedoria. A idéia da
maiêutica, de “dar a luz”, ligada a um método dialético, muitas
vezes envolve uma discussão em que a defesa de um ponto de
vista é questionada; um participante poderá levar outro a con-
tradizer-se, de alguma forma, enfraquecendo assim ponto do
defensor, e assim por diante.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

241
E neste contexto, vale traçar também uma distinção
entre os processos de saber e conhecer. Segundo Fontanille e
Zilberberg (como também já se via em Greimas), o saber e o
conhecimento se distinguem pela profundidade de seu alcan-
ce, sendo que o primeiro, o saber, está conectado ao sentido
mais “primordial”, que vai em direção a uma “verdade última”
(usando uma terminologia própria a filosofia budista, como
veremos mais a frente) e o segundo, o conhecimento, a um
tipo de aquisição de informação que, em geral, se encontra em
extratos moldados pela “verdade relativa” - e em certo senti-
do limitado pela própria “finitude da razão” (ou do discurso),
como vemos em Kant, de acordo com a própria crítica feita por
Schopenhauer.
De qualquer forma, é importante apontar estas distin-
ções pois elas são bastante relevantes para o assunto aqui trata-
do. Penetremos então mais um pouco neste universo.

O Filosofar Budista

Talvez seja importante entender um pouco sobre o que


é esta filosofia budista a que me refiro, e o porquê de haver me
referido à ela como sendo um “pensamento prático-filosófico”.
Muito embora a filosofia budista tenha um universo de
questões fundamentais que em muito se aproxima, e por vezes
chega a ser idêntico, ao da filosofia ocidental, os motivos que
levam a tal especulação são, dentro do contexto predominante
na filosofia contemporânea, em geral bastante distintos. Muito
PARA COMUNICAR O INCOMUM

242
embora, particularmente no período helenístico2, mas não só, o
filósofo ocidental também tivesse uma preocupação de ordem
bastante prática em relação à aplicabilidade na vida de suas
possíveis investigações filosóficas, no caso da filosofia budis-
ta, esta é uma condição sine-qua-non3.
A filosofia propriamente budista só tem e teve o seu
desenvolvimento em função da aplicabilidade e utilidade que
possui em beneficiar aqueles que se utilizam desta forma in-
telectual de pensamento e lógica para poder atingir o objetivo
último do filosofar, o qual se encontra vinculado ao princípio
soteriológico da iluminação. A liberação daquilo que em sâns-
crito é chamado de saṃsāra (ciclo de existência condicionada),
o qual é decorrente do nosso desconhecimento (ou da nossa
ignorância) em relação a verdadeira natureza dos fenômenos.
Assim sendo, tal filosofar (em seu próprio contexto) só
existe em função daquilo que ele pode trazer, em termos práti-
cos, para aquele que se engaja em tal processo.
De acordo com tal linha de pensamento, para que isso
aconteça, em geral, passamos por três etapas fundamentais,

2 Sobre a filosofia helenística e as suas vertentes de aplicabilidade prática, ver: Martha Nuss-
baum, The Therapy of Desire: Theory and Practice in Hellenistic Ethics (Princeton: Princeton
University press, 1992).
3 Para um exemplo contemporâneo deste tipo de proposta filosófica, podemos pensar no aci-
ma citado Pierre Hadot. Tendo falecido em 2010, o filósofo francês passou muitas décadas
se empenhando em reler a tradição da filosofia clássica, a qual, segundo Matthew Kapstein
(2001: 47), tenta restaurar a relação entre pensamento e ser, dentro do universo filosófico ini-
cialmente proposto pelos gregos. Ao criar o conceito de “exercício espiritual”, Hadot sugere
que a filosofia vista por esta perspectiva reaparece em seus moldes originais, não como uma
construção teórica, mas sim como um método para treinar as pessoas a viverem e a verem o
mundo de uma nova maneira, a filosofia serviria então como uma tentativa de transformar a
humanidade. Ele afirmava ainda que um filósofo deveria ser avaliado pela maneira como vive,
mais do que por aquilo que simplesmente escreve (Hadot, 1995: 418-19)
PARA COMUNICAR O INCOMUM

243
que podem, de alguma forma, se relacionar aos três níveis de
envolvimento comunicacional anteriormente mencionados.
A primeira etapa, que pode ser vista como uma primei-
ra “sinalização”, é a de nos colocarmos em contato com os en-
sinamentos e textos; um primeiro contato, preferencialmente
feito da maneira presencial, em contato com alguém que tenha
de fato conhecimento sobre este assunto, e não apenas de for-
ma teórica, mas também prática.
Na segunda etapa, deve haver intencionalidade e dedi-
cação, e poderíamos traçar um paralelo com relação ao nível
informativo. Temos que nos dedicar à análise daquilo que foi
ouvido ou lido, chegarmos às nossas próprias conclusões sobre
os pontos através dos processos investigativos e analíticos, tor-
namos-nos capazes de identificar aquilo que aceitamos ou não,
e aprendemos a argumentar sobre aquilo, i.e., nos esforçarmos
para entender em profundidade.
A terceira etapa, onde deveria acontecer de fato uma
transformação, uma espécie de realinhamento interno ligado a
nossa percepção, a nossa forma de ver o mundo, é justamente a
da contemplação, a qual, em um certo sentido, se equipararia a
uma verdadeira comunicação, tal qual descrita anteriormente,
pois implica, necessariamente, e um processo de transforma-
ção profundo. E não sei até que ponto isso se aplicaria ao de-
senvolvimento filosófico tal qual estabelecido, particularmente
nas universidades, no ocidente. Mas este é assunto para um
outro debate, em um outro momento.
Porto isso, pensemos então na noção de “eu”, de “pessoa”.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

244
Do Conceito de Pessoa – As Duas Verdades

A noção que de pessoa, ou de nós mesmos, como sen-


do um todo, de alguma forma contínuo, que se movimenta, que
age, que é dotada de um corpo, que se emociona, que elabora
pensamentos e assim por diante, por mais que tenha, em termos
das nossas experiências e sensações, uma certa realidade perce-
bida, ou uma perspectiva de realidade que pode ser vivenciada
em sua relatividade, é bastante diferente da noção de realidade
última, não conceitual e não dual, e portanto indescritível, da
verdadeira natureza do fenômenos, i.e., as coisas tal qual elas
são, “cho nyi” em tibetano, e “dharmatā” em sânscrito.
Para que possamos entender tais conceitos em seu pró-
prio contexto, se faz importante mencionar que a maioria das
escolas filosóficas budistas4, postula que existem dois níveis de
verdade, a verdade relativa ou convencional (s. saṃvṛti-satya
/ t. kun dzo ten pa) e a verdade última ou sublime (s. paramār-
tha-satya / t. ton dam ten pa). Muito embora, em geral, quando
se fala em verdade, acredita-se que esta deva ser desprovida
de tudo aquilo que é “não-verdadeiro”, como parece lógico,
dentro do pensamento filosófico apresentado, uma vez que a
verdade última está além do discurso e é indescritível, para
que se possa atingir níveis mais profundos de compreensão,
4 Para mais detalhes sobre a questão das duas verdades, vale a pena ver a exposição de Candrakīrti
in, Introduction of the Middle Way. Boston, London: Shambhala Publications, 2004: 165-187.
Vale lembrar que esta é uma questão fundamental dentro do contexto budista, e foi tratada pela
maioria de seus filósofos. Para uma explicação mais focada na tradição Yogācāra, vale verificar
o artigo de Dan Lusthaus, The Two Truths in Early Yogācāra. In: Journal of Buddhist Studies,
vol. VII, 2010. p. 101-152. O qual também pode ser encontrado na internet, in: www.academia.
edu/225209/The_Two_Truths_Sa_v_ti-satya_and_Paramartha-satya_in_Early_Yogacara.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

245
ou realização, de algo não conceitual como a verdadeira na-
tureza dos fenômenos, se faz necessária a utilização de alguns
instrumentos lógicos e conceituais5 que sejam capazes de nos
induzir a apreensão da verdade última; tais meios de argumen-
tação intelectual são entendidos, então, em sua relatividade e,
por isso, chamados de verdades relativas ou convencionais. De
acordo com um ditado popular budista, a verdade relativa seria
como um dedo que aponta para a lua, e não a própria lua, é um
indicador que pode, no nível relativo, sugerir, ou literalmente
apontar, como se pode chegar ao nível da verdade última, a
qual está além da linguagem discursiva.
De acordo com tal perspectiva, muito embora o próprio
entendimento do que se compreende por pessoa seja, em si
mesmo, além dos conceitos, para que se possa tentar esclare-
cer, ou para que possamos tentar nos aproximar daquilo que se
quer transmitir, em um primeiro estágio, se torna necessário o
processo descritivo, que depois deveria passar por suas fases
de análise e contemplação.

O Conceito de Pessoa

Neste primeiro estágio, poderíamos descrever “pessoa”


como uma imputação conceitual baseada em um continuum de
constantes transformações dos processos psicofísicos. A noção
5 Talvez aqui possamos pensar que tal compreensão em termos intelectuais se aproxime
àquilo que Kant denominou de “Verstand” enquanto a compreensão mais geral estaria ligada
“verstehen”. Mas é importante ressaltar, que a noção de verdade última se coloca sempre a
nível do inexprimível, no contexto budista. Ver: Nāgārjuna. Exame do Ser e do Não Ser.
Campinas. Editora Phi, 2018.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

246
de pessoa seria a de um continuum de fenômenos mentais e fí-
sicos condicionados sem uma essência subjacente, desprovida
de um “eu”, ou “self”6.
Este continuum é dependente dos chamados cinco
agregados (s. pañcaskandha - pungpo nga), cinco categorias,
que são: forma (s. rūpa t. zuk), sensações ou sentimentos (s.
vedanā / t. tsorwa), percepções (s. samjñā / t. du she), as forças
volitivas ou formações (s. samskāra / t. dutche) e a consciência
(s. vijñāna / t. nam she). A pessoa é então considerada como
sendo uma corrente de processos que são interdependentes.
Dentro de tal abordagem, se faz necessário o abandono da no-
ção de um “eu” real, que a primeira vista poderia ser entendido
como uma essência imutável, independente das causas e con-
dições que o levam a ser percebido como tal, e a adoção da
noção de condicionalidade e dos aspectos composicionais da
pessoa, ou do “eu”.
Dentro desta perspectiva, sem o abandono da idéia de
um “eu”, ou de “pessoa”, como sendo uma entidade “real”, em
termos últimos, os processos que poderiam levar a uma com-
preensão daquilo que é chamado de “a verdadeira natureza dos
fenômenos”7, tornam-se inviáveis. E por isso que se pretende
aqui, através da exposição de determinados conceitos, particu-

6 Ver: Edelglass,William e Garfield, Jay L. (editores). Buddhist Philosophy. Essential Readin-


gs. New York: Oxford University Press, 2009: 261-369.
7 Para uma compreensão mais profunda do que vem a ser a “natureza dos fenômenos” e o
“espaço básico” em que tudo isso se dá, assim como o entendimento de nós mesmos enquanto
um processo eminentemente vazio, vale verificar a tradução para o inglês (a edição é bilingue,
tibetano – inglês) de Richard Barron de um dos mais importantes trabalhos sobre o tema:
Rabjam, Longchen. The Precious Treasury of the Basic Space of Phenomena. Califórnia:
Padma Publishing, 2001.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

247
larmente do entendimento de “pessoa”, criar bases para uma
reavaliação da noção da própria comunicação, posto que esta,
quando acontece, acontece no próprio “eu”.
De acordo com a maneira como vejo a nova teoria da
comunicação, o acontecimento comunicacional, que é decor-
rente de uma série de causas e condições, efetivamente se rea-
lizaria no “eu”. A comunicação estética, que se fundamenta no
universo dos sentidos, tem como a sua própria base, e forma de
manifestação, a “pessoa”.
Para compreendermos isso melhor, e também para nos
situarmos um pouco mais com relação ao próprio berço onde
estas idéias sobre o “eu” surgiram, se faz necessário penetrar
ainda mais neste universo aparentemente tão abstrato de um
“eu” condicionado e dependente.
Para tanto, vamos tentar entender o conceito de não-es-
sência do “eu” …

O Conceito de Não-Essência

O termo sânscrito ātman8 (p. attā / t. dag), literalmente


significa “respiração” ou “espírito”, e é frequentemente tradu-
zido como o “eu”, ou “ego”, ou, para alguns, “alma”. Etimolo-
gicamente, anātman (p. anattā / t. dag me) consiste de um pre-
fixo de negação mais ātman (isto é, sem ātman) e é traduzido
como o “não-eu”, “não-ego” ou “não-self”. Estes dois termos

8 Ver: Sarao. K. T. S., Anātman/Ātman (No-self/Self), p. 18-20. In: BUSWELL, Robert E.


(editor-chefe). Encyclopedia of Budism. New York: Macmillan Reference USA, 2004.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

248
têm sido empregados na escrita filosófica da Índia como uma
referência a um substrato essencial dos seres humanos. A ideia
de ātman foi desenvolvida pelos pensadores que escreveram
os Upanissades (ou Vedantas - os quais constituem os princi-
pais textos filosóficos hinduístas) e sugerem que há em cada
ser um “algo” que é permanente, imutável, onipotente e inte-
ligente, uma essência, ou alma, que é desprovida de sofrimen-
to e que deixa o corpo no momento da morte. O Upanissade
Chandogya9, por exemplo, afirma que o ātman não passa por
estados de decadência, morte ou sofrimento. Da mesma forma,
no Bhagavadgita o ātman é chamado de “eterno”, “não-nasci-
do”, “imortal”, “imutável”, “primordial” e “ominipenetrante”.
Alguns Upanissades sustentam que o ātman pode ser separado
do corpo, assim como uma espada pode ser separada de sua
bainha, e que pode viajar à vontade, longe do corpo. Mas o bu-
dismo afirma que, uma vez que tudo é condicionado e, portan-
to, sujeito a impermanência (s. anitya / t. mi ta pa), a questão
do ātman como uma entidade auto-subsistente não pode ser
considerada como verdadeira. No Budismo se coloca que tudo
o que é impermanente e não pode constituir um “eu” perma-
nente e independente de suas causas e condições.
Segundo a filosofia budista, os seres e objetos inani-
mados do mundo são construídos (s. sáṃskṛta), e distintos
do nirvana que é “não-constituído” (s. asáṃskṛta)10. Os ele-
9 Um dos textos mais antigos dentre os Upanissades, calcula-se que tenha sido escrito entre
os séculos VIII e VII AEC.
10 Ver: MURTI, T. R. V. The Central Philosophy of Budism: A Study of the Madhyamika
System. 2ª Edição. London: Allen and Unwin, 1960.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

249
mentos constituídos são compostos pelos cinco agregados (s.
skandhas), que foram mencionados acima: o corpo físico, as
sensações, as percepções sensoriais, as tendências ou hábitos
volitivos, e a consciência. Os quatro últimos desses skandhas
são também conhecidos coletivamente em sânscrito como
nāma (“nome”), e denotam os constituintes não-materiais ou
mentais do ser. Rūpa representa a materialidade, e objetos ina-
nimados estão, portanto, incluídos também no termo rūpa.
Um ser vivo sendo composto pelos cinco skandhas
(elementos) está em um estado contínuo de fluxo, cada grupo
precedente de skandhas dá origem a um grupo subseqüente de
skandhas. Este processo acontece momentaneamente e inces-
santemente na existência atual assim como continuará também
no futuro até a erradicação da ignorância (s. avidyā / t. ma ri-
gpa). Assim, a análise filosófica budista da natureza dos seres
centra-se na constatação de que o que parece ser um indivíduo
é, de fato, uma continua transformação da combinação dos
cinco agregados. Estes agregados se combinam para formar o
que é experimentado como uma pessoa. Uma analogia que é
tradicionalmente usada neste contexto é a de um carro - na ver-
dade de uma carruagem, em épocas mais distantes. É dito que
uma vez que o carro é construído de várias partes, a medida
em que os seus elementos constituintes vão sendo separados,
ele desaparece; da mesma forma, a pessoa também desaparece
com a segregação dos skandhas (elementos). Nesta medida, o
que nós experimentamos ser uma pessoa é um processo, não
há ser humano em “si mesmo”, mas sim o tornar-se.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

250
Quando perguntado, na ausência de um “eu”, quem
é que tem sentimentos e sensações, Buda responde que esta
é uma questão mal formulada: A questão não é “quem sen-
te”, mas sim “sob que condições o sentimento ocorre”. E a
resposta é: “contato”, demonstrando novamente a natureza
condicionada de toda a experiência e a ausência de qualquer
substrato permanente do ser. A existência é na verdade “exis-
tência dependente”. Estando no âmbito deste tipo de regime,
o indivíduo é inteiramente fenomênico, regido pelas leis da
causalidade.
Mas, na ausência de um ātman, poderíamos nos per-
guntar como a filosofia budista lida com a questão da existên-
cia dos seres humanos, sua identidade, continuidade e, por fim,
os seus objetivos. O budismo aceita que, no transitório mundo
cotidiano, os seres humanos podem ser percebidos como pes-
soas mais ou menos estáveis. Todavia, essa unidade e estabili-
dade de pessoa, é apenas uma construção baseada nos sentidos.
Mas é importante compreender que, aquilo que foi encorajado
por Buda, não foi uma aniquilação imediata do sentimento de
“eu”, mas a eliminação da crença (e a palavra crença aqui é
importante) em um “eu” que seja permanente, independente e
singular. E eu enfatizei aqui a palavra crença, pois, em geral,
nós assumimos esta “percepção” de “eu” como algo verdadei-
ro, sem nos questionarmos, e tudo aquilo que acreditamos sem
nos questionarmos, só pode estar fundado em um sistema de
valores não comprovados, o que nada mais é do que uma defi-
nição de crença.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

251
Para colaborar então com algumas “ferramentas” que
possam nos ajudar a questionar esta crença em um “eu”, tal qual
ele é percebido atualmente pela maioria de nós, farei uma bre-
víssima exposição daquilo que é chamado o princípio dos doze
elos de originação dependente, dvādaśāṅga-pratītyasamutpāda,
(t. tendrel yenlak chuni), baseando-me na perspectiva do budis-
mo tibetano de uma forma geral, e em alguns especialistas con-
temporâneos em particular, como é o caso de Khenchen Thran-
gu Rinpoche (1933) e Tenzin Gyatso (1935), ligados a escola
Prāsaṅgika Madhyamaka, ou ainda de um dos mais importantes
expoentes do budismo tibetano do século XX, Kyabje Kangyur
Rinpoche (1898-1975). O objetivo desta apresentação é apenas
o de instigar a curiosidade de alguns, para que possa ser estabe-
lecida uma discussão (agora ou no futuro).

Sobre a Originação Dependente

O princípio dos doze elos de originação dependente


(s. dvādaśāṅga-pratītyasamutpāda – t. rten ‘brel yan lag bcu
gnyis – tendrel yenlak chuni) é um dos temas mais originais e
importantes de toda a filosofia budista, e a sua compreensão
pode nos levar a perceber como esta noção de “eu” que coti-
dianamente reiteramos, faz parte de um processo cíclico que,
de muitas formas, nos aprisiona. Compreender esta noção da
originação condicionada do “eu”, e de todos os fenômenos,
pode nos levar a erradicação completa de toda a ignorância,
mas temos que entender o que é ignorância neste contexto.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

252
As diferentes escolas budistas, ainda que tenham pers-
pectivas distintas, sempre se remetem a tal princípio, o qual se
propõe a descrever o funcionamento dos fenômenos e trazer
respostas para as questões humanas mais prementes, como:
– nascimento,
– morte
– “existência”
Este modelo foi considerado como revolucionário jus-
tamente pela sua originalidade em relação às outras perspec-
tivas que vinham sendo desenvolvidas no contexto indiano
na época de Buda. Outras questões como o sofrimento, a im-
permanência, a ausência de existência inerente, etc, já faziam
parte do universo reflexivo nas mais variadas correntes filosó-
ficas; todavia, a elaboração e descrição do funcionamento de
como relações de dependência, onde uma coisa se conecta a
outra e serve como elemento detonador capaz de tornar possí-
vel todo o universo percebido, i.e., a maneira como as coisas
se manifestam, tal qual ali elaborada, foi algo inédito naquele
momento e, para a maioria de nós ocidentais, e mesmo em seu
próprio berço asiático, continua a ser um grande desafio.

Exposição

Comecemos então pela representação iconográfica dos


12 elos de Originação Dependente que é retratado na Roda da
Vida/Existência/Existência Condicionada/Saṃsāra, o bhava-
cakra – srid pa’i ‘khor lo – sipe korlo
PARA COMUNICAR O INCOMUM

253
– De acordo com o Divyāvadāna, antologia de narra-
tivas budistas, o próprio Buda teria concebido este esquema
simbólico, no qual os 12 elos são representados em um círculo
fechado. Buda teria dado esta ilustração ao rei Rudrāyaṇa.
– Se trata de um dos símbolos mais antigos da tradição
budista e funciona como uma espécie de cosmologia psico-
lógica, é um mapa dos nossos processos internos e dos seus
efeitos externos.
– Uma das razões pela qual a “Roda da Existência Con-
dicionada” é pintada na parede de fora dos mosteiros, é que,
desde aquela época, ela serve como um instrumento visual
para ensinar de forma muito simples aspectos profundos da
filosofia budista para um público que, em geral, tem um acesso
muito restrito a eles, como é o caso da maioria das pessoas
que vão aos mosteiros para visitar, e assim por diante. Assim
sendo, as imagens desta Roda têm a função de estabelecer uma
comunicação com o público geral.
– Existem várias formas e níveis de compreender os
ensinamentos, e esta representação pode também ser lida de
muitas maneiras.
– Ao ilustrar as causas por detrás da situação em que
nos encontramos (limitada e de sofrimento – tem que ser en-
tendido o que é o sofrimento no contexto budista), a roda da
existência nos revela como, através da prática dos antídotos
para estas causas, nós podemos superar o sofrimento que é o
seu efeito (destas causas).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

254
– Ela nos mostra uma proposta essencialmente altruís-
ta, através de uma descrição inquietante dos passos de como
somos aprisionados neste ciclo, e isso serve como um chama-
do a ação, ao agir.

Descrição

1) No centro desta roda estão representados os chama-


dos três venenos, que são a ignorância (porco), apego (pássa-
ro) e a aversão/raiva (serpente), pois estes são o seu cerne, ou
força motriz, desta roda. Estes animais se abocanham um ao
outro pelo rabo formando um círculo que constantemente se
auto-propulsiona, a não ser que este ciclo venha a ser inter-
rompido.
2) A segunda camada representa karma (ações positi-
vas e negativas).
3) A terceira camada representa os seis reinos do
saṃsāra (a partir das nossas ações são geradas condições de
existência).
4) A quarta camada representa então os doze elos da ori-
ginação dependente (sobre os quais vamos falar brevemente).
5) A figura feroz segurando a roda representa a imper-
manência:
Yama, o senhor da morte, significa que todo o processo da
existência cíclica é transitório, tudo está fadado a impermanência.
– Coroa de cinco crânios que simbolizam os cinco
agregados (igualmente impermanentes) que compõem o “eu”
PARA COMUNICAR O INCOMUM

255
que são a forma, as sensações, as percepções, as volições e a
consciência.
– Olho central na testa simboliza a sabedoria de com-
preender a impermanência.
– Os quatro membros (que se agarram à roda) simbo-
lizam os sofrimentos do nascimento, velhice, doença e morte.
6) A lua acima da roda representa a libertação da exis-
tência cíclica ou saṃsāra.
7) Buddha apontando à lua indica que a libertação é
possível.

Contexto: Percepção dos Fenômenos

Dentro das perspectivas filosóficas da maioria das es-


colas budistas, ainda que, em termos últimos, a verdadeira na-
tureza de todos os fenômenos seja inefável e esteja além de
qualquer possibilidade de elaboração (sendo que alguns po-
dem argumentar que a própria afirmação de que ela é inefável
seja, em si mesma, uma elaboração/afirmação sobre a natureza
dos mesmos, mas não vamos nos delongar sobre este ponto)
existe, em termos relativos, um universo que se manifesta e é
apreendido e experienciado, pela maioria das pessoas, como
sendo real. É a partir deste mundo experienciado, ligado à ma-
neira como nós percebemos os fenômenos, que se concebeu a
teoria dos doze elos de Originação Dependente, onde se des-
creve a forma como as coisas se manifestam e de como isso
acontece em dependência. Podemos dizer que é o processo de
PARA COMUNICAR O INCOMUM

256
originação dos fenômenos (e de nós mesmos, enquanto seres
fenomenais/fenomênicos) que é descrito, examinado e expli-
cado nesta teoria, segundo a qual não existe nenhum fenôme-
no que não seja efeito de uma originação dependente, todos
os fenômenos surgem em decorrência de uma série de fatores
causais, de condições. Um momento de consciência precede o
outro, e o ciclo constantemente se perpetua.

Devemos ressaltar ainda rapidamente que, a Origina-


ção Dependente é subdividida em dois tipos:
1) a dos fenômenos externos (Tchi‘i Tchö), ligados a
natureza externa, como é o caso, por exemplo, de uma semente
que se desenvolve até se tornar uma flor.
2) E dos fenômenos internos (Nang Ki Tchö) – os agre-
gados que surgem de acordo com o processo descrito pelos
doze elos.
É sobre este segundo tipo que vamos nos focar aqui.
De acordo com Kyabje Kangyur Rinpoche, tradicio-
nalmente o princípio da originação dependente é explicado
em cinco pontos: a necessidade deste princípio; a definição de
cada um dos doze elos; as diferentes maneiras de apresentá-lo;
o tempo necessário para um ciclo completo; e o método de
contemplação sobre esta perspectiva.
Todavia, aqui me preocuparei particularmente com o
primeiro e o segundo ponto, que são a necessidade a descrição
dos doze elos, apenas mencionando rapidamente os outros três
pontos. Para quem tiver interesse, estes aspectos são expostos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

257
de maneira detalhada no Śalistamba Sūtra - o Sūtra do Germi-
nar do Arroz. Ou, no texto do próprio Kyabje Kangyur Rinpo-
che já mencionado.
Mas se faz importante esclarecer que há mais de uma
maneira de descrever e mesmo de ordenar os doze elos e, além
disso, em alguns sūtras, podemos encontrar até mesmo um nú-
mero de elos diferentes, como 10 ou 15 etc.
A descrição aqui apresentada, todavia, segue a maior
parte dos textos relativos à escola Mahāyāna do budismo e de
sua filosofia.
Além disso, apesar de tratarmos de elos que vão sendo
tecidos ao longo do tempo, de acordo com a mesma escola,
também é possível pensá-los de forma tal que todos estes elos
acontecem simultaneamente, em um único instante.

1. Da Necessidade:
A necessidade deste princípio (de originação depen-
dente) jaz particularmente no fato de que, ao sermos capazes
de compreendê-lo, naturalmente e gradualmente nos torna-
remos aptos a perceber a tessitura dos fenômenos da forma
como eles vão sendo fabricados – neste caso como a sensação
de “eu” é fabricada – e também de, através deste próprio es-
clarecimento, nos livrarmos do sofrimento, ao aplicarmos os
métodos que são subjacentes a tal compreensão. Além disso,
este entendimento nos torna capazes de ajudarmos as outras
pessoas. O simples fato de compreendermos o mecanismo de
PARA COMUNICAR O INCOMUM

258
funcionamento daquilo que se manifesta, nos torna aptos a ex-
perienciar e compartilhar, sem engano, tal sabedoria.
Em suma:
– Compreensão da natureza dos fenômenos tal qual ela
é
– Libertação do sofrimento (através da remoção da Ig-
norância – quando se aplica os antídotos)
– Capacidade de beneficiar (os seres)

2. Da Definição de Cada um dos Doze Elos de Origi-


nação Dependente:
Estes serão rapidamente nomeados, fazendo apenas al-
gumas observações sobre os mesmos
– Primeiro Elo – avidyā – ma rig pa
Ignorância: A palavra ignorância é aqui entendida no
sentido de estar ligada a uma acepção errônea de nós mesmos
e da natureza dos fenômenos.
São apontados dois tipos principais de ignorância:
– A inerente/co-emergente e a intelectualmente adqui-
rida.
– Este segundo tipo, a intelectualmente adquirida, é
uma ignorância adventícia, e não é comum a todos os seres;
não sendo comum a todos os seres, ela não pode ser a raiz do
ciclo da existência.
– O primeiro tipo, a ignorância inerente/co-emergente,
é comum a todos e, assim sendo, é ela que encabeça os doze
elos de originação dependente.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

259
– Segundo Elo – saṁskāra – ‘du byed
A palavra dutche é também passível de várias tradu-
ções, mas aqui falamos sobre as nossas volições ou formações
mentais.
Devido à ignorância, primeiro elo, os seres acreditam
em uma noção distorcida de “eu”, e assim acumulam três tipos
de ação: positivas, negativas ou neutras.
Estas são responsáveis pelas formações mentais que
dão origem às nossas tendências, aos nossos hábitos, às cir-
cunstâncias da nossa vida.
Estas ações plantam sementes que irão condicionar
tanto as nossas experiências futuras, quanto levar ao desenvol-
vimento de hábitos mentais.

– Terceiro Elo – vijñāna – nampar shepa


Consciência: Devido à ignorância (1º elo) nós pratica-
mos uma ação e esta ação planta uma semente (2º elo) em nosso
fluxo mental, i.e., imprime uma condição na consciência. Futu-
ramente, através do condicionamento, ou seja, da semente que
foi plantada em virtude das nossas ações anteriores, uma certa
experiência irá ocorrer e uma certa tendência habitual terá um
efeito. Temos então, tanto um potencial para passarmos por de-
terminado tipo de experiência, quanto um potencial para agir-
mos de certa maneira. Estas impressões latentes são semeadas
em nosso fluxo de consciência; e esta “consciência condiciona-
da” é então o terceiro elo da cadeia, onde o termo “condiciona-
da” se refere aqui ao fato de haver causas anteriores.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

260
– Quarto Elo – nāma-rūpa – ming tang zuk
Nome e Forma: Aquilo que percebemos como “eu”/“-
si”/“si mesmo”, é composto pelos chamados cinco agregados,
nomeadamente: forma, sensações, percepção, fatores condi-
cionantes (volições/fabricações), e a consciência.
A Forma: é o nosso corpo
O Nome: é o nome dado ao agrupamento dos outros 4
agregados que são tidos como mentais.
Os cinco agregados criam as condições para os seis
sentidos que são o quinto elo.

– Quinto Elo – āyatana – kye tche


Os Campos da Percepção: são os seis órgãos dos senti-
dos, que servem como um meio para que a percepção sensorial
possa surgir.
Mas eles não são as causas da percepção, mas sim as
condições que possibilitam que esta aconteça.

– Sexto Elo – sparśa – reg pa


Contato (sobre o qual já havíamos falado): É neste elo
da cadeia que se estabelece a união dos objetos externos com
a consciência, tendo como agente intermediário as bases da
percepção.
Temos então três “ingredientes” para que haja o contato:
(1) os órgãos da percepção,
(2) os fenômenos externos
(3) consciência que surge
PARA COMUNICAR O INCOMUM

261
– Sétimo Elo – vedanā – tsorwa
Sensação/o Sentir: Quando, através do contato, perce-
bemos os objetos/coisas/fenômenos, estes nos provocam uma
sensação; que pode ser agradável, desagradável ou neutra.
Neste sétimo elo são geradas as diferentes experiências
relativas aos sentidos. Quando temos estas sensações quere-
mos dar continuidade ou evitar aquilo, e isso leva ao oitavo
elo, que é o anseio, o envolvimento, o desejo.

– Oitavo Elo – tṛṣṅā – sepa


Anseio/envolvimento/desejo: Este elo trata do envolvi-
mento que temos com o mundo que é por nós experienciado.
As sensações fazem com que surja o desejo de perpe-
tuar aquilo que é prazeroso, e evitar aquilo que é desagradável.
Graças a este envolvimento inicial com este mundo
subjetivo, esta sensação de desejar alguma coisa, que é o oi-
tavo elo, acaba por nos impulsionar de forma intensa a buscar
aquilo que ansiamos, e é neste momento que começa o nono
elo, o apegar-se.

– Nono Elo – upādāna – lenpa


Apegar-se/apropriar-se: Uma vez que nós ansiamos
(oitavo elo) pelas coisas, o impulso de tentar “agarrar” aquilo,
de obter o objeto de desejo, é aqui chamado de apropriar-se.
Embora ambos os elos, oitavo e novo, estejam ligados
à noção de desejo, cada um deles tem a sua própria função. O
oitavo elo favorece o amadurecimento das sementes kármicas,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

262
enquanto o nono leva estas sementes à sua completude, e nos
conecta ao elo seguinte que é o tornar-se.

– Décimo Elo – bhava – sipa


Vir a ser/Existência/Tornar-se/devir: Este décimo elo
é chamado “tornar-se”, pois, nesta fase, nós de fato agimos
baseados nas coisas que desejamos. Nesta fase se realizam as
ações físicas, verbais e mentais.
O oitavo elo, do anseio, se refere ao desejo, que nos
leva ao nono elo, do apegar-se, onde de fato fazemos os pla-
nos para obter o que queremos. No décimo elo, esta decisão é
executada.
Uma vez que o 10º elo é um elo de ação, ele cria karma,
e é nesta sequência de eventos que surge o 11º elo, o nascimento.
A palavra karma, literalmente significa ação e, neste
contexto, está relacionada as relações de causa e efeito que
criam as circunstâncias da nossa vida.

– Décimo-primeiro Elo – jāti – kyewa


Nascimento: O karma que foi gerado pelas nossas
ações de corpo, de fala e de mente criará as condições para um
novo ciclo de existência.
Iremos nascer, nossos corpos se desenvolverão, e nos-
sas vidas irão se manifestar de acordo com as ações que foram
acumuladas.
Este nascimento refere-se tanto ao nascimento físico,
quanto à renovação constante do fluxo da consciência.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

263
– Décimo-segundo Elo – jarā-maraṇa – ga shi
Envelhecimento e morte (s. jarā-maraṇa): Neste elo,
tratamos de duas situações específicas, o processo de envelhe-
cimento e da morte. Onde o período de envelhecimento cor-
responde a toda a extensão da vida, ainda que se morra jovem.
A temática principal aqui abordada é justamente a do
sofrimento, o qual, por mais que seja multifacetado, percorre
todo o processo do viver. O sofrimento faz parte do constan-
te envelhecer – e de tudo o que acontece em decorrência dos
nascimentos nos ciclos de existência. Este elo novamente cria
as condições para a ignorância inerente/co-emergente, tal qual
tratada no 1º dos elos e, assim, o ciclo se perpetua.

Maneiras de Apresentar o Princípio da Originação Dependente

Existem algumas maneiras tradicionais de apresentar


as teorias e princípios que fazem parte do cânone budista e de
sua filosofia, assim sendo, os doze elos da Originação Depen-
dente também se encaixam nesta tradição.
O foco desta apresentação não é a descrição destas ma-
neiras,
Apenas passamos por este ponto como uma forma de
respeitar a maneira de exposição deste princípio, e tentar fazer
com que vocês pudessem ter acesso a esta forma de pensa-
mento da maneira como ela é mais frequentemente apresen-
tada pelos próprios filósofos budistas, e não apenas os seus
comentadores.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

264
De qualquer forma: só para termos uma ideia do que
se trata, as formas de apresentação estão ligadas a 1) como os
diversos elos se agrupam entre si e 2) como se interrelacionam
ao longo do tempo.

4. O Tempo Necessário para um Ciclo Completo:


Dentre os tópicos ligados a forma de apresentação dos
doze elos, este talvez seja um dos de mais difícil compreensão
para aqueles que não estão devidamente familiarizados com
este tema, pois a noção de tempo, e mesmo como este “aconte-
ce” no nosso fluxo mental, é bastante sofisticada. De qualquer
forma, como foi dito, estamos apenas passando brevemente
por uma maneira tradicional de exposição.
E assim como no tópico anterior, o tempo para um ci-
clo completo está relacionado a maneira como os elos atuam
ao longo da vida. Mas para os interessados, há muito material
de pesquisa.
Vale também mencionar que, como já foi dito no co-
meço desta apresentação, apesar de tratarmos de elos que vão
sendo tecidos ao longo do tempo, também é possível pensá-los
de forma tal que todos estes elos acontecem simultaneamente,
em um único instante.
5. O Cultivo Contemplativo sobre o Princípio da Ori-
ginação Dependente:
O aspecto do cultivo contemplativo é um condicio si-
ne-qua-non na proposta epistemológica e hermenêutica deste
filosofar.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

265
De acordo com Longchen Yeshe Dorje, há duas formas
principais de se contemplar sobre os doze elos de Originação
Dependente, uma em ordem direta e a outra em ordem inversa.
Em ordem direta: Contempla-se que a ignorância dá
origem a volição (os fatores condicionantes); a volição dá ori-
gem à consciência, a consciência dá origem ao nome e forma
e assim por diante.
Em ordem inversa: Contempla-se que o envelhecimen-
to e a morte surgem do nascimento e, ao interrompermos o
nascimento, envelhecimento e morte também são interrompi-
dos; O nascimento surge do “tornar-se” / vir a ser e, assim, ao
interrompermos o “vir a ser”, o nascimento também é inter-
rompido, e assim por diante.
Estas são apenas duas entre as várias possibilidades de
contemplação analítica dos doze elos.
Um dos propósitos de se contemplar assim é que, a par-
tir de tal reflexão, podemos ter uma maior compreensão, não
apenas intelectual, mas também experiencial, sobre a realidade
ou sobre aquilo que até então acreditávamos ser a realidade.
Na proposta aqui apresentada, só é possível saber até
que ponto tal princípio é válido se, de fato, formos capazes de
averiguar, por nós mesmos, aquilo que está sendo proposto.
E é fundamental reconhecer que a ignorância – que é
um apegar-se iludido a uma existência tida como verdadeira –
é o nosso verdadeiro e inequívoco inimigo.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

266
Ainda que tal ignorância tenha efeitos poderosos, ela
não passa de um estado mental distorcido, e existem antído-
tos para tal distorção.
Como escreveu Nāgārjuna, um dos mais renomados fi-
lósofos budistas – no texto intitulado Os Versos Fundamentais
do Caminho do Meio (mūlamadhyamakakārikāḥ) - o que quer
que seja dependentemente originado, é explicado como sendo
vacuidade.
Ao contemplarmos o funcionamento dos ciclos de
existência através dos doze elos, nos tornamos capazes de re-
conhecer que a existência no saṃsāra (i.e., ciclos de existência
condicionada) é ilimitada e que a base de tudo isso é justamen-
te a ignorância.
Todavia, como disse Je Tsongkhapa (1357–1419), um
dos mais importantes filósofos tibetanos, sem a compreensão
da natureza vazia de todas as coisas, da vacuidade, inclusive de
cada um destes elos, mesmo as nossas atitudes mais virtuosas
podem servir como combustível para a continuidade dos ciclos.
O indiano Nāgārjuna escreve que: Os não-sábios
são agentes; e os sábios, capazes de entender a vacuidade,
não o são.
É dito ainda que não é possível cessar a ignorância
apenas através de uma contemplação apoiada unicamente na
mente convencional, somente com o uso do intelecto. Esta
compreensão, como dito acima, quando fizemos um paralelo
a Nova Teoria da Comunicação, se dá através dos chamados
“três métodos”:
PARA COMUNICAR O INCOMUM

267
– Ter contato, i.e., ouvir/ler os ensinamentos,
– Refletir de forma crítica
– Contemplar, i.e., usar o cultivo contemplativo como
uma forma de ampliação do nosso conhecimento experiencial.
É necessária a averiguação da natureza vazia dos fenô-
menos a partir de uma experiência direta dos mesmos.

Gostaria de fazer uma breve digressão com relação ao


que vem a ser esta natureza vazia dos fenômenos, pois este é
um tema extremamente complexo, e a forma como isso vem
sendo compreendido pelos primeiros ocidentais que começa-
ram a ter acesso a elas, é bastante controversa.
Citando rapidamente alguns exemplos de filósofos oci-
dentais que trataram do tema, como foi o caso de Hegel, Scho-
penhauer, Nietzsche, Heidegger, etc. todos eles ainda tinham
um acesso muito restrito a qualquer bibliografia considerada
“autêntica” sobre o assunto, entre muitas outras limitações.
Mas, justamente graças a esta falta de material de
consulta, eles se utilizaram daquilo que tinham à disposição
no momento e acabaram por fazer muitas generalizações e,
sem dúvida, chegaram a conclusões muito pouco acuradas
sobre o assunto.
No caso específico de Hegel, logo ao princípio do séc.
XIX, esta visão sobre o chamado “pensamento asiático” estava
muito ligada ao crescimento do imperialismo europeu; para
que essa supremacia imperialista pudesse ser capaz de atingir
certos objetivos, se fazia necessária uma ideologia correspon-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

268
dente; assim sendo, era importante que os asiáticos, particular-
mente os chineses e indianos (citados por Hegel), não fossem
vistos como povos “devidamente civilizados”, mas sim como
“primitivos” a serem tratados de forma “benevolente” por seus
“pais”, i.e., os europeus assumiriam uma posição de educado-
res em relação aos outros povos, incluindo a “velha civilização
asiática”. Desta forma, a historiografia Hegeliana se encaixa
perfeitamente a uma demanda ideológica calcada no imperia-
lismo europeu.
Tal imperialismo, em muitos sentidos, continua a “mol-
dar” grande parte dos nossos referenciais. Todavia, particular-
mente nos últimos 50 anos, a forma de pensar sobre a filosofia
asiática e budista vem se transformando, um grande número de
especialistas vêm sendo formado e atualmente temos um uni-
verso de entendimento sobre o assunto bem diferente daquele
descrito por Hegel. Seria de grande valia para a sociedade, que
as reminiscências deste pensar, já tão ultrapassadas em outros
lugares, pudessem ser também transformadas aqui no Brasil.

Voltando então ao entendimento da originação depen-


dente, para que se possa contemplar verdadeiramente sobre os
doze elos, se faz necessário um tipo muito particular de con-
templação, um modelo muito distinto daqueles aos quais a
maior parte de nós está acostumada.
Se queremos fazer estudos comparativos e nos dedicar a
verificar, por exemplo, pontos de contato ou afastamento entre
aspectos do pensamento de Śāntarakṣita (725-788), um filósofo
PARA COMUNICAR O INCOMUM

269
indiano que foi radicado no Tibete, e conceitos da psicologia, da
neurociência, da filosofia, da comunicação etc, parece natural
que alguém criado dentro dos moldes ocidentais queira fazê-
-lo a partir dos seus referenciais; mas para aqueles que de fato
querem tentar compreender a filosofia budista, “em si mesma”,
para poder então compará-la, talvez seja necessário fazermos
revisões profundas em relação à nossa maneira de ver e atuar
metodologicamente quando em contato com este universo.
E o cultivo contemplativo é, como foi dito, condicio
sine-qua-non deste filosofar, e tanto a originação dependente
dos fenômenos, quando a vacuidade e tantas outras temáticas
abordadas, foram pensadas a partir deste tipo de registro. Nos
parece ser então, fundamental, pelo menos, levar este tipo de
procedimento hermenêutico e epistemológico em considera-
ção. E não tentarmos fazer uma certa “higienização” do pen-
samento budista, como vemos algumas vezes, mesmo entre
pesquisadores.

Para finalizar então este tópico da Originação Depen-


dente, Buda disse:
Quando isto é, aquilo é;
Isto surge, aquilo surge
Pois assim é: devido à ignorância,
Surgem os fatores condicionantes e o resto…

Tanto o princípio de causa e efeito tal qual exposto nos


doze elos da Originação Dependente, quanto a noção de vacui-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

270
dade que é concomitante a ele, por mais que possam parecer
relativamente fáceis de compreender, são extremamente sutis,
e só podem ser “alcançados” /“realizados” por aqueles que de
fato tenham se dedicado intensamente a tentar compreendê-los.
Não adianta acreditar que compreendemos aquilo que
está sendo exposto pela nossa mera habilidade de memorizar,
de repetir, ou ainda discorrer sobre aquilo e demonstrar algu-
ma erudição sobre o tema, de acordo com os verdadeiros es-
pecialistas sobre o assunto, i.e., aqueles que têm experiência
(drugpa ou siddha), é preciso seguir cada um dos passos pro-
postos para que se possa transpassar o mero conhecimento e
tenhamos, de fato, sabedoria.
O Princípio dos doze elos da Originação Dependente
é considerado como um dos mais importantes ensinamentos
proferidos por Buda, e permeia toda a filosofia em questão e,
por este motivo, é dito que ele deve ser extremamente aprecia-
do e, principalmente, contemplado.

Importância para os Estudos sobre a Comunicação

Mas então, como tudo isso pode nos ajudar nos estudos
sobre a comunicação?
Em primeiro lugar, ao nos re-questionarmos, ou colo-
carmos em xeque aquilo que até então acreditávamos ser o
“eu”, particularmente aplicando o método de “desconstrução
da realidade percebida” a partir da contemplação dos doze elos
de originação dependente, dos cinco elementos constituintes
PARA COMUNICAR O INCOMUM

271
da sensação de “eu”, da natureza vazia dos fenômenos, etc.,
tudo isso, pode nos ajudar não só a compreender melhor a nós
mesmos, mas também a realidade que nos cerca, levando a
uma ampliação da nossa sensibilidade em relação ao mundo
e a nós mesmos; e esta ampliação da nossa sensibilidade em
relação ao mundo e a nós mesmos, que é obtida através da
remoção gradual daquilo que é chamado ignorância, pode nos
ajudar a identificar, com muito mais clareza e acuidade, os fe-
nômenos comunicacionais a nossa volta.
Ao mesmo tempo em que nos tornamos mais presentes
devido a demanda natural dos processos contemplativos, nós tor-
namos também mais aptos a lidar com as situações, pois começa
a ocorrer, sem qualquer outro esforço, um estado de presença
e uma maior compreensão da realidade, que naturalmente nos
torna mais aptos não somente a “estudar” os fenômenos comu-
nicacionais, mas também nos tornarmos cada vez mais abertos
a eles. E, como foi dito, a comunicação vista desta perspectiva
implica em estados de atenção e leva a transformações.
Mas a transformação que é proposta e almejada aqui,
não é qualquer transformação, pois só se transformar não im-
plica necessariamente em melhora, muitas pessoas chegam
a se transformar para “pior”, como se diz popularmente. Por
isso se faz necessário algum tipo de orientação, que possa nos
ajudar nos passos iniciais e servir como guia; e a busca de
uma compreensão da originação dependente dos fenômenos,
tal qual apresentada, se propõe justamente a nos fornecer al-
gumas ferramentas iniciais para começarmos este processo,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

272
assim como o faz o questionamento do “eu” enquanto uma es-
pécie de identidade “fixa”, ou mesmo a investigação profunda
da realidade percebida.

Os três níveis

Retomando então o paralelo feito com os três níveis


de envolvimento comunicacional. Como foi dito, dentro desta
forma de pensar a comunicação, juntamente com a perspectiva
apresentada no contexto filosófico budista, nós temos um pro-
cesso que propõe, ou expõe, três qualidades de envolvimento,
fazendo com que a conexão entre estas duas áreas ganhe um
significado ainda maior. Como vimos, elas são:
Em primeiro lugar, estabelecemos um contato com
uma nova proposta; mas ainda sem nos envolvermos direta-
mente, ou sem haver necessariamente uma intencionalidade,
onde ainda estaríamos no nível da sinalização.
Em segundo a análise crítica, que seria o empenhar-se
em entender e elaborar sobre aquilo que foi exposto, e efeti-
vamente ter a intenção de se relacionar com aquilo; aqui já
estaríamos no nível da informação.
E em terceiro a contemplação, que efetivamente teria
o poder de fazer com que o processo contemplativo atingisse
níveis mais profundos e transformativos.
A comunicação propriamente dita, em sua dimensão
mais profunda, só seria possível no terceiro estágio, o con-
templativo, onde através de um processo de “mergulho” não
PARA COMUNICAR O INCOMUM

273
só intelectual, mas principalmente imbuído no universo das
sensações/experiência – como propõe Marcondes ao entender
a “comunicação densa” como algo próximo a arte, “ambas
como formas de apreensão sensível do mundo” –, passamos
por transformações, com ou sem explicações inteligíveis, mas
que nos levam a penetrar em camadas de sentido até então
inapreensíveis, tácitas, opacas, que vão sendo descobertas,
reveladas, abrindo espaços, ampliando nossas dimensões per-
ceptivas. Enfim, um desvendamento de sulcos de sentidos, de
“mistérios”, até então encobertos, que se fazem presentes, cuja
latência trasborda, ao mesmo tempo em que evidenciam e su-
gerem, que é possível transpassar mais e mais camadas, densi-
dades, obscurecimentos...
Sendo assim, em termos de uma busca em direção a um
universo de sentido sensível, ao mesmo tempo que transforma-
dor, a nova teoria da comunicação e a proposta contemplativa
apontada pelo filosofar budista se abraçam, e propõem ao ser
uma nova forma de proceder e de estar no mundo, onde a mera
reprodução do mesmo e o contentamento com uma ideia já
estabelecida não são suficientes.
O transformar-se é quase que exigido, e uma atitude
passiva em relação ao conhecimento é vetada, pelo menos para
aqueles que se abrem para este novo processo, que acreditam
nele e, por isso, se engajam. Ou mesmo aqueles que são subi-
tamente, sem qualquer expectativa, chacoalhados ou desperta-
dos por algo, por um acontecimento…
PARA COMUNICAR O INCOMUM

274
O momento do acontecimento comunicacional “bem-
-sucedido”, teria uma força que, a meu ver, se equipararia ao
que Gaston Bachelard descreveu como instante poético, um
instante de quebra, de rachadura do “lugar comum”, onde a
poesia fecunda e é fecundada, que no contexto filosófico bu-
dista poderia ser visto como um momento de insight, onde
algo subitamente se revela para nós.

Sobre o Método

Penetrando então rapidamente na questão metodológica,


onde também se pode fazer alguns paralelos com a nova teoria.
Imagino que grande parte dos leitores tenham alguma
noção da proposta metodológica apresentada pela Nova Teoria
da Comunicação, o metáporo. O Professor Marcondes escreve
que: “o metáporo é uma opção de procedimento de pesquisa
que não se confunde com a rigidez de um método. Tradicio-
nalmente o saber ocidental utiliza-se de métodos (meta + odos)
como uma rota instituída, caminho pavimentado, autopista
marcada por seus guard rails, da qual não se pode evadir. Para
Heidegger, ele é tecnologia, ele é Descartes e é de essência tec-
nológica, vinculado a uma vontade prometeica de dominação.
Um ato investigativo que não observa o vivente mas o mata
para dissecá-lo.
Já o metáporo (meta + poros), ao contrário, é uma via
se faz e se desfaz o tempo todo, que escapa, que não tem exis-
tência prévia, que é geração contínua. Cada nova pesquisa
PARA COMUNICAR O INCOMUM

275
sugere uma recomposição de procederes. É a chance que os
fatos dão ao pesquisador de aparecerem, exigem a atenção do
observador”.
Ao explicar o metáporo Ciro nos fala da “falta” de uma
“razão prévia” e, quem sabe, até certo ponto, uma não tentativa
de racionalização do intangível. Um ponto também levantado
por Immanuel Kant que está em total acordo com as argumen-
tações do filósofo Nāgārjuna e do próprio Buddha; onde fica
evidente que a extensão da razão (pura) para além da esfera
empírica resulta não em conhecimento, mas em antinomias,
contradições.
Para refletirmos um pouco mais sobre este paralelo
com o pensamento budista, podemos salientar um aspecto
mencionado anteriormente, mas sobre o qual ainda pouco se
falou, a noção de vacuidade.

Da vacuidade

Segundo Yongey Mingyur Rinpoche, o termo vacuida-


de ou vazio, descritos como a base que torna tudo possível,
é provavelmente um dos conceitos mais mal-entendidos da
filosofia budista. Muitos dos primeiros tradutores, particular-
mente os ocidentais, interpretaram o termo sânscrito Śūnyatā,
como o “Nada” ou o “Vazio”, erroneamente relacionando a
vacuidade com a idéia de que nada existe. Nada estaria mais
longe da verdade de acordo com a percepção do termo dentro
do contexto filosófico budista.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

276
Quando Buda disse que a natureza da mente, assim
como a natureza de todos os fenômenos, é vacuidade, ou é
vazia de existência inerente, ele não quis dizer que a sua natu-
reza fosse vazia como, em geral, se pode entender este termo.
A palavra Śūnyatā significa vazio, mas somente no sentido de
algo além da nossa habilidade em perceber com os sentidos,
e da nossa capacidade de conceitualizar. Uma sugestão alter-
nativa de tradução seria “inconcebível” ou “que não pode ser
nomeado”. Além disso, esta palavra também transmite uma di-
mensão de “possibilidade”, no sentido de que tudo pode surgir,
de que tudo pode acontecer. Quando se fala sobre a vacuidade,
não é sobre o “nada”, mas sim sobre o potencial ilimitado que
as coisas têm de surgir, mudar e desaparecer. Como escreveu
o filósofo Künkhyen Longchen Rabjam (1308-1364), mais co-
nhecido como Longchenpa:

Da vastidão da presença espontânea, a base para tudo


o que surge.
Vazia em essência, incessante por natureza,
Não existindo como qualquer coisa que seja, ainda as-
sim, surge como todas as coisas.
Da vastidão dos três kāyas, o saṃsāra e o nirvāṇa sur-
gem por si,
Apesar disso não se distanciam do dharmadhātu, o es-
paço absoluto,
Assim é o campo de êxtase do dharmatā, a verdadeira
natureza dos fenômenos.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

277
Este pensamento apresenta algumas similaridades com
as teorias da física. Como já foi provado, mesmo no estado de
vácuo, partículas continuamente aparecem e desaparecem. As-
sim, apesar do aparente vazio, esse estado é, na verdade, muito
ativo, repleto de potencial para produzir algo. Neste sentido,
o vácuo compartilha certas características com a “qualidade
vazia da mente”. A mente é essencialmente “vazia” no sentido
de que desafia a descrição absoluta, entretanto, todos os pen-
samentos, emoções e sensações perpetuamente surgem a par-
tir dessa base indefinível e incompletamente conhecida para a
maioria de nós.
Dzongsar Jamyang Khyentse diz que por mais que Si-
ddhārtha tenha “realizado”, no sentido de entender completa-
mente, a vacuidade, esta não foi fabricada nem por ele nem por
ninguém mais. Vacuidade não é o resultado de alguma “reve-
lação”, nem o desenvolvimento de uma teoria para ajudar as
pessoas a serem felizes. Tivesse Siddhārtha ensinado sobre a
vacuidade ou não, a vacuidade sempre foi a vacuidade, ain-
da que paradoxalmente não possamos sequer dizer que a va-
cuidade sempre tenha existido, pois ela está além do tempo e
não tem qualquer forma. A vacuidade também não deveria ser
interpretada como uma negação da existência pois, para que
possamos negar alguma coisa, temos que assumir que existe
algo a ser negado, o que não é o caso. Mas isso não quer dizer
que este “mundo relativo” não exista, de alguma maneira, em
sua relatividade. A vacuidade não anula a nossa experiência
diária. Siddhārtha nunca disse que algo espetacular, melhor,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

278
mais puro, ou mais divino existia em lugar daquilo que nós
percebemos. Ele também não era um anarquista que refutava
a aparência ou a função das experiências do mundo. Ele não
disse que os objetos, ou mesmo um belo arco-íris, não surjam
no nosso campo de visão. Todos nós desfrutamos das nossas
experiências, mas o fato de podermos ter a experiência de al-
guma coisa, não implica que tal coisa seja verdadeiramente
existente. O que Siddhārtha fez, e que é tão explorado na filo-
sofia budista, foi simplesmente sugerir que examinássemos as
nossas experiências e considerássemos a possibilidade de que
talvez sejam apenas uma ilusão temporária, como um sonho.
Tanto faz se temos um sonho bom ou ruim, se ele dura duas
horas ou cem anos, ao acordarmos, tudo aquilo continua sendo
apenas um sonho.

Mas como tudo isso se relaciona ao metáporo?

Tanto a comunicação, quando o estudo relativo à ela


– que se funda em uma metodologia como a proposta do metá-
poro – “exige” do receptor uma abertura, um poros, não neces-
sariamente convencional, para que possa acontecer. Quando se
quer fazer um trabalho que envolve a percepção do sensível, é
inevitável também sermos “permeados” por este universo. As-
sim como a investigação da originação dependente pode nos
ajudar a compreender melhor a realidade dos fenômenos e de
nós mesmos. A investigação daquilo que é aqui denominado
de vacuidade, ou vazio de existência inerente, pode igualmen-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

279
te nos ajudar a compreender a realidade, mas a realização do
que de fato vem a ser esta vacuidade, este universo de possi-
bilidades já manifestos ou não, também nos ajuda a ficar mais
“permeáveis”. Se a nossa natureza é vazia de existência ine-
rente, se a forma é vacuidade, isso implica, e nos leva, a uma
percepção expandida dos fenômenos.
Na tradição filosófica budista é comum se fazer uma
analogia com um vaso para falar sobre a nossa capacidade de
nos deixar permear pelos agentes comunicacionais. Quando se
querer colocar água em um vaso; se o vaso está cheio, a água
imediatamente irá transbordar, mas quanto maior o espaço li-
vre, maior a capacidade de retenção da água. Quando menos a
pessoa estiver “preenchida” mentalmente por seus ininterrup-
tos fluxos de emoções, pensamentos, percepções, julgamentos,
maior será a capacidade de efetivamente absorver informações
provenientes das mais diversas fontes comunicacionais exter-
nas e mesmo internas. Esta expansão seria uma condição qua-
se que sine qua non do processo de comunicação.
Ciro Marcondes propõe uma expansão do universo per-
ceptivo do ser que se comunica e que é comunicado, quanto maior
esta expansão, maior a possibilidade de que o acontecimento co-
municacional efetivamente aconteça; relembrando que o que se
entende por acontecimento comunicacional o momento em que
algo se transforma naquele que foi tocado, que foi comunicado. A
“real” comunicação acontece no instante em que algo se modifica
na pessoa, o instante do insight, da metamorfose, do permitir que
algo nos permeie, de estar aberto, poroso, às trocas.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

280
A proposta metapórica, é nitidamente vinculada a pró-
pria noção de comunicação que utilizamos neste contexto, e
a compreensão da natureza vazia de existência inerente dos
fenômenos sem dúvida pode nos ajudar neste processo, assim
como em muitos outros.

Algumas Considerações Finais – Seguindo o fio de Ariadne

Muito embora esta breve exposição não pretenda “fe-


char”, ou concluir, uma determinada forma de pensamento –
mas apenas abrir mais alguns leques de possibilidades partindo
de referências não muito frequentes em nosso campo de estudo
–, espero poder ter conseguido deixar claro que, dentro do uni-
verso proposto, um questionamento sobre quem “somos” , so-
bre o que é “isto” que denominamos de “eu”, ou de “pessoa”,
torna-se fundamental para o entendimento de toda a realidade
que nos cerca e de nós mesmos.
Não se pode afirmar nem que este “eu” exista, nem que
não exista este “eu”. Existe uma percepção de “eu” que tem
uma aparência bastante concreta e, de certa forma, quase con-
tínua; mas que esta sensação de indivíduo, de um “eu” comu-
nicacional, não é a “realidade última” dos fenômenos, e que
esta precisa ser pessoalmente investigada, para que possamos
“cortar” através das aparências, das miragens, traspassar per-
cepções que, de tão reiteradas, se tornaram enrijecidas e tidas
como verdadeiras sem que fossem questionadas, é preciso es-
tremecer os alicerces de tudo aquilo que acreditamos ser.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

281
Pensando em um dos relatos da mitologia grega que
possa nos ajudar a ilustrar esta perspectiva, podemos fazer
uma analogia com o mito de Teseu e Ariadne. Como se sabe,
os antigos mitos gregos eram transmitidos através da tradição
oral, e há muitas versões. De acordo com uma versão atenien-
se da lenda, o Rei da cidade de Creta, Minos, atacou Atenas
depois de seu filho ter sido morto em uma batalha naquela ci-
dade. Os atenienses propuseram um acordo com o rei, e assim
foram obrigados a sacrificar, a cada sete ou nove anos, sete ra-
pazes e sete moças ao Minotauro. Estes jovens eram colocados
em um labirinto e, posteriormente, devorados pelo Minotauro.
Em uma destas ocasiões, Teseu, filho do rei Egeu, se ofereceu
para participar e matar o Minotauro. Ariadne (filha do rei de
Creta) se apaixonou imediatamente por ele, e decidiu ajuda-lo
dando-lhe uma espada e um novelo de linha para que ele pu-
desse matar o Minotauro e depois encontrar seu caminho para
fora do labirinto. Este fio, que o ajudou a sair dos imbricados
caminhos do labirinto, foi chamado de “fio de Ariadne”.
De acordo com a perspectiva aqui apresentada, a partir
do questionamento sobre quem de fato é o “eu” e sobre a ver-
dadeira natureza de todos os fenômenos, podemos tentar sair do
labirinto de confusões em que nos encontramos. Há um fio de
Ariadne (que de alguma forma também se encontra imerso em
nossas próprias memórias) que nos levará para fora do labirin-
to das confusões mentais, afetivas, intelectuais etc. Os motivos
que nos levaram ao labirinto são os mais diversos mas, uma vez
que já nos encontramos dentro dele, o mais importante é tentar
PARA COMUNICAR O INCOMUM

282
encontrar uma forma de sair dali (através dos processos comu-
nicacionais e contemplativos), sem que sejamos perpetuamente
devorados pelo Minotauro. Quando estivermos do lado de fora,
talvez tudo aquilo pareça ter sido apenas um sonho (uma vez
que fora construído por nossas projeções mentais), mas enquanto
estamos sonhando, tudo tem um aspecto extremamente real, tão
real que dificilmente conseguimos sequer pensar sobre ele sem
todas as dificuldades de alguém que está prestes a ser devorado.
Nossa situação hoje é como a de um ente aprisionado e
ameaçado por um perigo eminente; a prisão são as nossas pró-
prias confusões mentais derivadas de uma não compreensão da
verdadeira natureza dos fenômenos, o perigo é a nossa obsessão
em tentar nutrir e preservar um “eu” que ao se ver como distinto
do outro, age de forma egoísta e mesquinha. O fio de Ariadne,
capaz de nos tirar dali, são as indicações que podem nos ajudar
a questionar o nosso status enquanto “pessoa”, nossa própria
reflexão sobre o tema e um posterior entendimento profundo so-
bre a realidade. Mas sem um engajamento direto neste universo
de questionamentos, as paredes do labirinto continuarão sólidas,
o Minotauro continuará faminto e Ariadne poderá se esforçar ao
máximo em fazer com que sigamos o fio que leva à saída, mas
nada acontecerá sem a nossa vontade de liberação.

Feliz Aniversário Ciro! Longa vida e obrigada em


nome de todos os que se beneficiam com a sua presença. Que
venham mais e mais anos, e que você desfrute de todos eles
com muita alegria.
TELEVISÃO E IDEOLOGIA: A VIOLÊNCIA
A SERVIÇO DA DOMINAÇÃO NA FICÇÃO SERIADA

Andrei Maurey1

Como a classe operária assumirá o poder em uma


formação social em que o poder dominante está sutil
e difusamente presente em todas as práticas habi-
tuais diárias, intimamente entrelaçado com a pró-
pria “cultura”, inscrito na própria textura de nos-
sa experiência, da pré-escola ao salão do velório?
Como combatemos um poder que se tornou o “senso
comum” de toda uma ordem social em vez de um
poder que é amplamente percebido como alheio e
opressivo?

Terry Eagleton

Esse artigo é fruto de uma pesquisa que percebe a


evidente força e espaço ocupado pela mídia na vida social
contemporânea, onde os grandes conglomerados midiáticos
produzem mercadorias na forma de entretenimento e/ou infor-
1 Doutorando em Comunicação Social pela PUC-Rio, mestre em Comunicação Social pela
PUC-Rio (2018), pós-graduado em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio (2016), em His-
tória da Sociedade Brasileira pela UVA (2015) e em Roteiro para Cinema e TV pela UVA
(2013), também graduado em Cinema pela UNESA (2011). É integrante do Grupo de Pesquisa
do Laboratório de Movimentos Sociais e Mídia, da IUPERJ. É membro do corpo editorial da
Revista Entre-Meios, da PUC-Rio, e membro do corpo editorial da Revista Entropia, da IU-
PERJ. Tem experiência na área de estudos de Mídia, Ideologia e Televisão, Teoria da Ficção e
Ficções Seriadas, Análise da Estrutura Narrativa, Estrutura Dramática e Roteiro Audiovisual.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

284
mação. Como esses produtos audiovisuais são difundidos em
larga escala, visando primordialmente o lucro, acreditamos ser
razoável indagar: suas formas simbólicas carregam conteúdos
ideológicos? De que maneiras elas sustentam relações de do-
minação? Há estratégias e interesses por trás dessas narrativas
em atuar contra ou a favor da manutenção do status quo? Suas
narrativas legitimam interesses particulares da classe domi-
nante? Para tentar respondê-las, torna-se fundamental o exer-
cício da análise crítica, pois desse modo obtemos informações
precisas acerca do que é veiculado pela mídia com relação à
violência, ajudando-nos a desvelar os interesses defendidos
pela classe dominante. Sendo assim, com o objetivo de de-
monstrar essa reprodução ideológica, selecionamos quatro
ficções seriadas televisivas brasileiras, sob o eixo temático da
cidade do Rio de Janeiro, cujas formas simbólicas reproduzem
relações de dominação, utilizando a violência subjetiva para
produzir um consenso e, com isso, justificar e legitimar a or-
dem social estabelecida; e relegando a violência objetiva a um
patamar de pura naturalidade, escamoteando suas verdadeiras
raízes capitalistas.

Há uma cultura veiculada pela mídia, cujas ima-


gens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da
vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, mode-
lando opiniões políticas e comportamentos sociais,
e fornecendo o material com que as pessoas forjam
sua identidade. O rádio, a televisão, o cinema e ou-
tros produtos da indústria cultural fornecem os mo-
delos daquilo que significa ser homem ou mulher,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

285
bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impoten-
te. A cultura da mídia também fornece o material
com que muitas pessoas constroem o seu senso de
classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexuali-
dade, de “nós” e “eles” (Kellner, 2001, p.9).

O início do século XXI foi marcado, no campo da co-
municação, pela expansão da televisão, e da mídia em geral,
para novos territórios. Nos anos 1950, ela já demonstrava sua
força, chegando em grande quantidade a inúmeros lares euro-
peus e norte-americanos, tornando-se instrumento fundamen-
tal na reconfiguração das relações socioculturais. Com a virada
do milênio, ela desencadeou processos que foram responsá-
veis por marcas indeléveis para as sociedades ocidentais. As
enormes audiências, mantidas por décadas pelos grandes con-
glomerados, hoje em dia, são ainda mais vastas, pois seus con-
teúdos ultrapassam as barreiras impostas pelo próprio aparelho
físico e pela grade de horários, isto é, elas podem ser assistidas
tanto a qualquer momento como em qualquer dispositivo, am-
pliando a sua força dominante:

A cultura veiculada pela mídia transformou-se


numa força dominante de socialização: suas ima-
gens e celebridades substituem a família, a escola, a
Igreja como árbitros do gosto, valor e pensamento,
produzindo novos modelos de identificação (Kell-
ner, 2001, p.27).

O lugar ocupado pela mídia no âmbito social contem-


porâneo é, portanto, evidente, e seus efeitos são extensivos e
PARA COMUNICAR O INCOMUM

286
geram um profundo impacto para toda a sociedade. Não há mais
espaço exterior à mídia, ela está presente e atua determinando
as esferas da vida social. Nesse sentido, partindo do pressupos-
to de que o imaginário sociocultural de um povo forma-se e é
constantemente reformulado pelos textos midiáticos, sobretudo
a televisão (devido ao alcance e a grande disseminação de suas
informações), defendemos a importância do exercício da análise
crítica, a fim de nos tornarmos capazes de resistir à sua mani-
pulação. Afinal, através dela, dissecamos seus conteúdos e, com
isso, obtemos respostas concretas acerca da relação da mídia te-
levisiva com o modo de produção que a engendra, os aspectos
que constituem a produção de sentido no conteúdo televisivo,
os fenômenos representados e a relação com a sociedade, os
discursos que percorrem seus fluxos diários de programação (e
seus possíveis propósitos), os interesses particulares por detrás
da construção dessas narrativas, a espetacularização de assuntos
do cotidiano para fins político-ideológicos, etc.
Isto posto, partimos do pressuposto de que a mídia
opera dentro de uma lógica industrial; ou seja, suas merca-
dorias são regidas pelas normas da produção em massa, mol-
dando seus produtos audiovisuais conforme a demanda e com
alto grau de enfoque na propaganda maciça, tudo em prol da
acumulação de capital. Assim, o lucro exacerbado, adquirido
pelo investimento na forma de espetáculo, informação e en-
tretenimento (fundamentais para garantir maiores audiências)
é a diretriz número um dessas empresas, relegando a papéis
“secundários” as demais funções, como a de ser mediadora da
PARA COMUNICAR O INCOMUM

287
realidade, o compromisso de transmitir informações verídicas
e de qualidade ao público e estabelecer relações de cunho so-
ciocultural com as suas audiências.
Nosso artigo visa fazer uma análise das formas simbóli-
cas presentes em determinadas ficções seriadas televisivas, cujo
tema é sobre a cidade do Rio de Janeiro, buscando desvelar ele-
mentos que comprovam a reprodução ideológica de uma “vio-
lência urbana” carregada de equívocos do senso comum. Em
primeiro lugar, veremos questões sobre ideologia, discutidas e
expostas em Marcondes Filho (1994), as quais demonstram toda
uma relação com o comportamento e as atitudes que os indiví-
duos demonstram perante as formas de poder em uma socie-
dade. Em seguida, abordaremos os grandes conglomerados mi-
diáticos, cujas atividades participam na fabricação do consenso
como forma de assegurar a opinião pública, manter o status quo
e obter respaldo para medidas sociopolíticas que servem apenas
aos interesses de uma classe dominante. Desse modo, para que a
análise parta de evidências materiais e concretas, investigamos
o cenário do Rio de Janeiro, apontando as relações da grande
mídia com a violência política promovida por ela e identificando
como o medo e a insegurança se tornam estratégias cruciais nes-
se processo. Por último, exibimos exemplos de algumas ficções
seriadas no intuito de compreender como suas narrativas afigu-
ram-se como potentes ferramentas nessa legitimação do modo
de produção capitalista, esclarecendo as visões de mundo que
atuam num “engessamento” do imaginário, rebaixando as desi-
gualdades sociais a um patamar de caráter natural.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

288
Ideologia: A Relação dos Indivíduos com as Formas
de Poder em que Vivem

As ideias [Gedanken] da classe dominante são, em


todas as épocas, as ideias dominantes; ou seja, a
classe que é a força material dominante da socie-
dade é, ao mesmo tempo sua força espiritual do-
minante. (...) As ideias dominantes são, pois, nada
mais que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, são essas as relações materiais domi-
nantes compreendidas sob a forma de ideias; são,
portanto, a manifestação das relações que transfor-
mam uma classe em classe dominante; são dessa
forma, as ideias de sua dominação (Marx; Engels,
2010, p.78).

Pelo viés marxista, a história é compreendida como pro-


duto do homem. Ela é resultado da relação dos homens entre si
e deles com a natureza. É dessas relações sociais que se deve
partir para o entendimento de como e por quê os homens agem
e pensam de determinadas formas. “Da maneira como os indi-
víduos manifestam sua vida, assim são eles [...] O que os indi-
víduos são, por conseguinte, depende das condições materiais
de sua produção” (Marx; Engels, 2010, p.44-5). Desse modo, o
homem produz sua própria consciência através da produção de
sua vida material em determinados períodos históricos, ou seja,
a consciência, as representações e as ideias dos indivíduos estão
diretamente atreladas à sua atividade material:

A produção de ideias, de representações e da cons-


ciência está, no princípio, diretamente vinculada
PARA COMUNICAR O INCOMUM

289
à atividade material e o intercâmbio material dos
homens, como a linguagem da vida real. (...) São
os homens os produtores de suas representações, de
suas ideias, etc. (...) A consciência nunca pode ser
outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens
é o seu processo da vida real. (...) Não é a consciên-
cia que determina a vida, mas a vida é que deter-
mina a consciência (Marx; Engels; 2010, p.51-52).

Se por um lado, trabalho é o modo pelo qual nos fazemos


humanos; no capitalismo – o trabalho assalariado – é a expres-
são da exploração dos produtores pelos detentores dos meios
de produção. Isso faz com que os indivíduos não percebam as
reais condições de produção, ou seja, eles não se veem como os
reais produtores, e acabam por atribuir suas condições materiais
às forças alheias (não produzidas pelas relações sociais). Para
Marx, todos os fenômenos, incluindo os sociais, econômicos,
políticos, etc., são frutos da ação humana e, por esse motivo,
podem ser transformados. Não obstante, como garantir que os
operários de fábricas, os trabalhadores, enfim, o proletariado em
geral, não se revolte contra essa exploração efetivada pelo Ca-
pital? Por que aceitam essa divisão do trabalho e se submetem
a esse modelo econômico? De que maneiras são impedidos de
participarem da atividade revolucionária? Logo, é preciso mais
do que simplesmente deter o controle dos meios de produção,
é necessário reproduzir as condições de produção de uma de-
terminada formação social para que ela continue, efetivamente,
existindo. Em vista disso, torna-se primordial que certas ideias
e representações percorram as camadas do tecido social, refor-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

290
çando e sustentando a ordem social estabelecida e corroendo
quaisquer convicções de transformação da sociedade. Esse é o
papel principal da ideologia.
Segundo Marcondes Filho (1994), iniciou-se no sécu-
lo XX, uma chamada “integração” do operário na vida cul-
tural da sociedade. Com os trabalhadores ganhando maiores
salários, participando com mais frequência da vida burguesa,
adquirindo mais direitos e passando a habitar lugares menos
miseráveis, as ideias da burguesia começaram também a fazer
parte das ideias dos proletários, sendo fundamental para isso
o surgimento do cinema, do rádio, da televisão. A partir de en-
tão, os problemas político-econômicos, outrora tão visíveis e
concretos, diluíram-se pelas camadas da sociedade: “As coisas
se tornaram um pouco mais confusas, porque muitos trabalha-
dores estavam convencidos de que o mundo burguês poderia
trazer-lhes algum benefício” (Marcondes, 1994, p.18). Nessa
direção, a questão que envolve a ideologia nos dias atuais é,
portanto, bem mais complexa, necessitando um olhar mais
profundo e preciso sobre a relação dos indivíduos com as for-
mas de poder em que vivem. O autor lista seis itens que pro-
põem ao mesmo tempo uma investigação e uma caracterização
do que se pode entender hoje por ideologia (Marcondes, 1994,
p.20-30):
i) A ideologia e o grupo social (a ideologia pertence
sempre a um grande grupo de pessoas, nunca a um sujeito
separadamente): são espécies de “bolsões ideológicos, onde
há pessoas que dizem coisas em que nós também acreditamos,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

291
pelas quais também lutamos, que têm opiniões muito parecidas
com as nossas. Ideologia, não é, portanto, um fato individual,
não atua inclusive de forma consciente na maioria dos casos.
Quando pretendemos alguma coisa, quando defendemos uma
ideia, um interesse, uma aspiração, uma vontade, um desejo,
normalmente não sabemos, não temos consciência de que isso
ocorre dentro de um esquema maior, de um plano, de um pro-
jeto maior, do qual somos apenas representantes – repetimos
conceitos e vontades que já existiam anteriormente;
ii) O conteúdo simbólico (a ideologia vive fundamental-
mente de símbolos, ela trabalha com símbolos e é formada por
estereótipos): a ideologia não fala diretamente, mas representa
os fatos e interesses de forma simbólica. Ela reúne uma série
de símbolos e os organiza de maneira coerente. Assim, quando
as pessoas imaginam um projeto de vida ou um certo tipo de
sociedade, quando aspiram a determinados bens materiais a
serem obtidos num futuro, elas dão forma à ideologia por meio
desse conjunto de símbolos. O problema com os estereótipos é
que essas figuras não são reais, elas representam ideias que nós
temos na cabeça, ideias fixas, permanentes, imutáveis. A ques-
tão é que os estereótipos são os responsáveis pela criação de
preconceitos, isto é, racismos, segregações e comportamentos
desta natureza, como veremos adiante na estigmatização em
torno do ideal de bandido, traficante, criminoso, etc.;
iii) A ideologia como um conjunto de valores (valor é
alguma coisa que o indivíduo preza, algo pelo qual a pessoa
tem uma grande consideração): os valores são muito diferen-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

292
tes, muito diversificados e muito numerosos. Na prática, as
ideologias reúnem, agrupam certos valores (como fazem com
os símbolos);
iv) A ideologia como visão de mundo (ideologia é uma
forma de ver o mundo, ou seja, é uma “visão de mundo”):
a “visão de mundo” inclui uma postura da pessoa diante do
mundo, um certo desejo, uma certa aspiração de vida. Ela im-
plica uma determinada forma de se relacionar com os objetos,
com as pessoas, com a natureza, mas sempre considerando que
se trata de uma forma de tomar partido;
v) A ideologia mobilizadora (a ideologia possui tam-
bém uma grande capacidade de mobilizar as pessoas e as
massas): a ideologia não é somente esse conjunto de ideias,
procedimentos, etc.; ela tem uma poderosa força para acionar
indivíduos. Trata-se de uma energia que torna as pessoas ati-
vas em certas ideias e ideais, ativas na política, na religião, no
dia-a-dia. Esse componente da ação, de atividade e de propul-
são dos indivíduos é o mais importante da ideologia, porque
faz com que as pessoas produzam obras de arte, escrevam, tra-
balhem por alguma causa, explorem os outros, dediquem-se à
religião, cuidem da natureza, e assim por diante;
vi) A ideologia e a ação (a ideologia mostra-se como
progressista, avançada ou revolucionária, não pelas de-
clarações, pela ostentação, pelo que o sujeito fala; ela só
o é pela prática, pela ação do sujeito): uma ideologia, um
comportamento, uma posição ideológica será progressista,
inovadora, revolucionária, à medida que sua ação for dessa
PARA COMUNICAR O INCOMUM

293
natureza, não importa o discurso que tenha, o importante é a
prática.
Resumidamente, “ideologias são práticas que circu-
lam entre as pessoas, que convivem com elas, e as mesmas
compartilham ou não delas conforme os seus interesses. Elas
estão nos fatos que são vivenciados continuamente na vida co-
tidiana” (Marcondes, 1994, p.44). Assim, habitando a mente
dos indivíduos, mobilizando-os para a ação e sugerindo certas
visões de mundo compostas por valores específicos, a ideolo-
gia investigada nas ficções seriadas é a que reproduz conteú-
dos que servem à manutenção do status quo; que defendem
os privilégios da classe dominante, que legitima o modo de
produção capitalista (dotando-o, inclusive, de um caráter natu-
ral) e que também atua na obtenção de respaldo público para
medidas sociopolíticas cujos interesses são particulares, não
universais, isto é, para toda a população.

Os Meios de Comunicação e a Fabricação do Consenso

Junto com a lógica da política não se deve despre-


zar a função que passaram a ter os meios de co-
municação na atualidade, a qual se transformou ra-
dicalmente em relação à função que eles exerciam
antes. Hoje esses meios fazem parte de uma lógica
decisiva para a manutenção do poder (Marcondes,
1987, p.62).

Nos últimos anos, os meios de comunicação sofreram


crises e perderam rentabilidade. Os “menores” foram sendo
PARA COMUNICAR O INCOMUM

294
gradativamente comprados por grupos maiores, que dispu-
nham de maiores recursos para pagar as dívidas, ocasionando
na formação dos grandes conglomerados e fazendo surgir um
verdadeiro oligopólio midiático global:

Desde 1990, uma onda de acordos maciços e globa-


lização rápida deixou as indústrias de mídia ainda
mais centralizadas em nove conglomerados trans-
nacionais - Disney, AOL Time Warner, Viacom
(proprietário da CBS), Notícias Corporation, Ber-
telsmann, General Electric (proprietária da NBC),
Sony, AT&T-Liberty Media e Vivendi Universal.
Esses gigantes possuem todos os principais estú-
dios de cinema, redes de TV e empresas de música
do mundo, e uma fração considerável dos mais im-
portantes canais a cabo, sistemas de cabo, revistas,
estações de TV de grande mercado e editoras de li-
vros (Chomsky; Herman, 2002, p.XIII).

Nessa direção, “quando vamos a uma banca, vemos
uma infinidade de publicações, porém a maioria delas perten-
ce a três ou quatro grupos midiáticos que, evidentemente, têm
seus interesses” (Ramonet, 2013, p.61). O autor, inclusive, as-
sinala que, atualmente, a imprensa escrita não ganha dinheiro.
Mas, então por que a concorrência as compraria? “Para ganhar
influência, para ter um projeto ideológico, um projeto políti-
co, um projeto dominante” (Ibid., 2013, p.62); e, em segui-
da, faz uma interessante provocação: considerando o contexto
econômico em que vivemos hoje em dia, o neoliberalismo (a
ideia de que o mercado é mais importante que o Estado e deve
PARA COMUNICAR O INCOMUM

295
ter um espaço cada vez maior em detrimento deste), qual se-
ria o comportamento dos conglomerados midiáticos perante
o sistema neoliberal? Eles, como atores do mercado, seriam
críticos com a globalização e o neoliberalismo? (Ibid., 2013,
p.62-3). Para Marcondes Filho (1987), uma consequência vi-
sível dessas operações é a pequena variedade de empresas que
não somente controlam as informações como definem o que é
notícia, o que deve ser destacado do que não deve. “Sente-se
hoje, mais do que em qualquer outra época, um extremo cola-
boracionismo dos meios de comunicação com o próprio status
quo (a situação reinante, hegemônica, da sociedade)” (Ibid.,
1987, p.62-3). Desse modo, unindo os interesses por maior
influência e poder em uma mão e na outra, garantindo medi-
das sociopolíticas que continuem a defender suas atividades
lucrativas, a dispersão de todos os posicionamentos radicais
evidentemente é parte desse pacote, diluindo-se os discursos
e tornando as ideias políticas mais flexíveis, em mercadorias
altamente vendáveis, principalmente quando se rompe com as
relações da política editorial:

O leitor, hoje, não é capaz de obter uma identifica-


ção clara quando adquire este ou aquele jornal, ao
qual foi fiel durante muito tempo. Por quê? Não é
apenas que o leitor tenha mudado, pois ele também
variou em suas certezas, modificou suas próprias
convicções, tem mais dúvidas do que certezas em
muitos aspectos; mas, sobretudo, porque o meio de
comunicação é muito menos identificável política
ou ideologicamente. Em seu afã de seduzir o maior
número de pessoas possível, os meios de comuni-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

296
cação dispersaram sua identidade política, (...) Eles
pretendem seduzir o conjunto dos cidadãos, desvir-
tuando ou ampliando sua linha editorial (Ramonet,
2013, p.54).

Com isso, liquida-se a reflexão crítica, retirando dos


leitores o caráter de analisar se as informações veiculadas es-
condem propósitos particulares e/ou se estão de acordo com
suas próprias visões políticas:

No processo de reprodução ampliada do capitalis-


mo, (...) o sistema midiático desempenha um duplo
papel estratégico. O primeiro diz respeito à sua con-
dição peculiar de agente discursivo da globalização
e do neoliberalismo. Não apenas legitima o ideário
global, como também o transforma no discurso so-
cial hegemônico, propagando valores e modos de
vida que transferem para o mercado a regulação das
demandas coletivas. A doxa neoliberal procura neu-
tralizar o pensamento crítico, reduzir o espaço para
ideias alternativas e contestadoras, ainda que estas
continuem se manifestando, resistindo e reinven-
tando-se (MORAES, 2013, p.46).

Ademais, um modo significativo com que os meios de
comunicação exercem sua influência na sociedade, mantendo-se
numa posição desigual perante os outros poderes, é através de um
fenômeno que surgiu na metade do século XIX, como consequên-
cia de suas atividades – a “opinião pública”. Sobre isso:

Os processos políticos neoliberais nas décadas de


1980 e 1990 arrasaram os sistemas públicos de in-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

297
formação, com o apoio da direita e a indiferença da
esquerda, a qual, com razão, associava-os aos dita-
dores anteriores. Soma-se a isso o papel cada vez
mais sofisticado e potente que os meios de comu-
nicação adquiriram nas sociedades democráticas,
onde a formação da opinião pública é um elemento
essencial para o exercício do poder. (...) Diferen-
temente dos outros três poderes, o poder midiáti-
co não tem nenhuma legitimidade democrática.
Ninguém vota nele, ninguém o elege (SERRANO,
2013, p.72-3).

De lá para cá, muitos eventos ajudaram a configurar


a visão que se tem dela, inclusive seu papel na construção de
“pseudo-democracias”, vigentes em muitos países nos dias de
hoje. A assertiva de que a opinião pública não existe (Bour-
dieu, 1973), ou “é uma ficção mercadológica do sistema infor-
mativo, destinada a justificar o caráter de mercadoria da no-
tícia ou de quaisquer outros conteúdos informativos” (Sodré,
2001, p.34) ilumina pontos cruciais em nossa trajetória, afinal,
sabemos que os dados podem ser escamoteados pelas agências
de pesquisa e pelos meios de comunicação, sendo até mesmo
manipulados ou excluídos por questões adversas, a fim de fa-
zer valer seus interesses próprios:

A mídia hoje mente constantemente, manipula,


insulta e destrói o prestígio e a trajetória de quem
cruzar seu caminho. Sua intolerância a qualquer
poder legítimo e democrático que ousar tocar seus
privilégios é absoluta. Ela investiu duramente con-
tra os governos progressistas latino-americanos que
fundaram televisões públicas, concederam canais
PARA COMUNICAR O INCOMUM

298
de TV e emissoras de rádio para os movimentos
sociais, aprovaram leis que obrigam a garantir a ve-
racidade dos conteúdos (SERRANO, 2013, p.73).

Noam Chomsky (2013) ilustra como alguns teóricos
da democracia liberal, entre eles Walter Lippman, decano dos
jornalistas norte-americanos e importante crítico da política
interna e externa de seu país, concebem a sociedade, isto é,
através da divisão da democracia em duas classes de cida-
dãos. A primeira é constituída de uma pequena elite, a comu-
nidade intelectual, que está apta a compreender os interesses
gerais. A segunda, a grande maioria da população, considera-
da o “rebanho desorientado”, possui uma função de “especta-
dor” e não de participante da ação, tendo apenas, “de vez em
quando, a permissão para transferir seu apoio a um ou outro
membro da classe especializada” (Ibid., 2013, p.17). Pois
bem, para que esse “rebanho desorientado” seja devidamente
domesticado, ressalta o filósofo analítico, é necessária a “fa-
bricação do consenso”, ou seja, “a obtenção da concordância
do povo a respeito de assuntos sobre os quais ele não estava
de acordo por meio das novas técnicas de propaganda políti-
ca” (Ibid., 2013, p.14-5). Nesse sentido, a população precisa
ser desviada dos verdadeiros assuntos, recebendo somente
parcas e pálidas percepções da realidade. Do contrário, uma
grande massa articulada e organizada poderia conquistar es-
paço político, deixando sua função de espectadores para se
tornarem agentes da mudança.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

299
A elite, portanto, ao vislumbrar no horizonte toda a po-
tência devastadora de uma massa organizada e consciente de
sua posição de classe e dos seus direitos legítimos, trataram
logo de criar uma estratégia para minar quaisquer possibilida-
des disso vir a acontecer, e ela tem se mostrado bastante eficaz,
desde sua implementação, como primeiro teste, em 1937, du-
rante a greve dos operários da empresa Steel, em Johnstown,
Pensilvânia. Os empresários na época perceberam que os con-
frontos repressivos e violentos acabam em muita confusão e
transtornos, por isso optaram por uma nova forma de colocar
a população contra os grevistas e, assim, passaram a apresen-
tá-los como desordeiros, nocivos à população e contrários ao
interesse geral (Ibid., 2013). Essa “distração” é aplicada até
hoje, pois se os trabalhadores percebessem a real potência de
uma greve, ou se, pelo menos vissem na manifestação do ou-
tro, semelhanças com seus próprios interesses, poderiam gerar
problemas:

O rebanho desorientado representa um problema.


Temos de impedir que saia por aí urrando e piso-
teando tudo. Temos de distraí-lo. Ele deve assistir
aos jogos de futebol americano, às séries cômicas
ou aos filmes violentos. De vez em quando você
o convoca a entoar slogans sem sentido como
“Apoiem nossas tropas”. Você tem de mantê-lo bem
assustado, porque, a menos que esteja suficiente-
mente assustado e amedrontado com todo tipo de
demônio interno, externo ou sabe se lá de onde que
virá destruí-lo, ele pode começar a pensar, o que
é muito perigoso, porque ele não é preparado para
PARA COMUNICAR O INCOMUM

300
pensar. Portanto, é importante distraí-lo e margina-
lizá-lo (CHOMSKY, 2013, p.28).

Ao discutirmos a aplicabilidade desse modelo de pro-


paganda realizado pela mídia, é importante salientar que os
autores não defendem hipóteses “conspiratórias”, tampou-
co a ideia de uma mídia monolítica, vertical. Pelo contrário,
baseiam-se em textos cujas análises apontam para uma mídia
protetora do “livre mercado”, guiada pelo governo norte-a-
mericano, pelos líderes das comunidades corporativas, pelos
maiores proprietários da mídia e seus executivos, etc. Sendo
assim, eles nos oferecem os ingredientes desse modelo de pro-
paganda, que designa como o dinheiro e o poder são capazes
de filtrar as notícias, marginalizar a dissidência e permitir que
os interesses privados e do governo cheguem até o público
Segundo Marcondes Filho (1987), “os meios de comu-
nicação exercem uma função muito clara de controle de in-
formações, ou seja, de filtragem das notícias e de alteração do
conteúdo das emissões” (p.63). Esse controle de informações,
avança o autor, é realizada de duas maneiras: i) por meio da
neutralização de todas as oposições políticas, não lhes dando
cobertura ou lhes cobrindo de forma deficiente e puramente
criminalizadora (sua função é marginalizar qualquer desafia-
dor do poder político); ii) os meios de comunicação compen-
sam esse tipo de ação partidária por meio da redução da impor-
tância dos fatos e dos acontecimentos sérios da vida política a
“formas de espetáculo” (Ibid., 1987, p.63).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

301
Com isso em mente, compreende-se que os grandes
conglomerados midiáticos, dependentes dos interesses dos
anunciantes e sendo constantemente regulados pelas fontes ti-
das como confiáveis e imprescindíveis à prática, não obteriam
lucros se criticassem fortemente o modelo econômico do qual
fazem parte. Afinal, qual seria o proveito na divulgação de in-
formações contrárias aos interesses da classe dominante que
detém esses meios? Por que a grande mídia posicionar-se-ia
contra os processos e modelos que a tornam ainda mais pode-
rosa, tanto financeiramente quanto ideologicamente? A seguir,
veremos as questões referentes ao medo e a insegurança cons-
truídos mediante à dramatização da violência realizada pela
mídia jornalística brasileira.

Medo e Insegurança: Os Mecanismos de Manutenção da


Ordem Social Estabelecida

Quanto menos seguras estão as pessoas, mais elas


exigem e pedem um Estado policial e um Estado
forte. Um Estado forte e policial reduz o espaço da
democracia e instala-se para garantir, a qualquer
preço, a realização dos interesses e aspirações dos
sujeitos e classes que o controlam. A violência po-
lítica é arma de indivíduos e classes que detém o
poder e o direito ao uso da força, para permitir a
continuidade de seu domínio (MARCONDES FI-
LHO, 1987, p.56).

Primeiramente, é inegável que o medo e a violência


ocupam um notório espaço nas narrativas representadas pela
PARA COMUNICAR O INCOMUM

302
mídia em geral (televisão, rádio, internet, jornalismo). Sendo
pauta certa nas páginas do jornalismo impresso, nas imagens
de cobertura da televisão, nas fotos de revistas, nos textos dos
livros, nos roteiros das obras audiovisuais; enfim, a violência
constitui-se atualmente como um fenômeno intrínseco da vida
em sociedade. No entanto, a maneira como essas narrativas
são constantemente representadas, reforçando significados que
corroboram com práticas sociais e políticas, inclusive imbuí-
das de inúmeros valores e crenças, leva-nos a questionar: suas
formas simbólicas carregam conteúdos ideológicos? Há estra-
tégias e interesses por trás dessas narrativas em atuar contra ou
a favor da manutenção do status quo? Suas narrativas legiti-
mam interesses particulares da classe dominante? Quais delas
são tratadas com naturalidade, omitindo seu caráter imanente
da sociedade contemporânea? Para tentar respondê-las, iremos
recorrer a diversos tópicos que demonstram como são produ-
zidos o medo, a insegurança e a noção de violência na cidade
do Rio de Janeiro.
Atualmente, a expressão máxima da decadência social
frutifica-se em diversos problemas, como a habitação, o de-
semprego, o encarceramento em massa, as altas taxas de mor-
tes violentas (inclusive de letalidade e vitimização policial),
inúmeros óbitos em hospitais e clínicas por falta de infraestru-
tura, péssimos índices de qualidade na educação, etc. A misé-
ria se alastra pelas camadas populares e, ao que tudo indica,
sem sinais de recuo. Quanto à habitação, por exemplo, temos
à disposição no mercado, o metro quadrado mais caro do país.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

303
Por outro lado, segundo o IBGE, é a cidade com o maior nú-
mero de pessoas vivendo em favelas. São mais de 20% dos ca-
riocas, o que o põe à frente de SP, embora a quantidade desses
aglomerados subnormais seja evidentemente maior. Além dis-
so, o descaso público com as camadas mais pobres é visível,
seja pela falta de saneamento básico, ou pelo fato de alguns
moradores não poderem se quer reconhecer seus imóveis, ce-
didos por um dos programas do governo federal, Minha Casa,
Minha Vida, como propriedade particular.
O desemprego também acomete parcelas significativas
da população. O primeiro trimestre de 2017 se encerrou com
cerca de 1,3 milhões de pessoas desempregadas. Isso se deve
a uma forte redução no número de postos de trabalho com car-
teira assinada, em relação ao período do ano anterior, ou seja,
uma queda de 6,6%. Aliado a isso, há o impacto da gestão de
seus ex-governadores, responsáveis por mergulhar o estado do
Rio de Janeiro em uma das maiores crises de sua história.
Quanto ao índice de encarceramento de massa, os nú-
meros não apresentam condições mais favoráveis. Segundo o
DataCrime, em 2014, o estado do RJ apresentava uma taxa de
244.4 presos a cada 100 mil habitantes, sendo 41.8% destes sem
terem sido condenados. O fato de 66% de eles terem o ensino
fundamental incompleto, 71,6% serem negros e 62% entre 18 e
29 anos, assinalam aspectos relevantes e esclarecedores do pú-
blico mais propício ao encarceramento. Se somarmos ainda os
números relativos às mortes violentas, obtemos um quadro ain-
da mais curioso. No ano de 2015, a cidade do Rio de Janeiro sur-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

304
ge como a quinta capital com a menor taxa de homicídio doloso,
com 18,5 casos para cada 100 mil habitantes; a quarta menor de
latrocínio, com 0,7 casos para cada 100 mil habitantes; está na
décima sétima posição em tráfico de entorpecentes, com 71,9
casos para cada 100 mil habitantes, atrás de Florianópolis, Porto
Alegre, Belo Horizonte, Brasília e Curitiba; a oitava menor em
lesão corporal seguida de morte, com 0,2 casos para cada 100
mil habitantes (nesse quesito, as cidades de Maceió, Aracajú e
Palmas não apresentam dados disponibilizados, portanto a clas-
sificação pode sofrer alterações).
Entretanto, a questão se inverte quando se expõe a
letalidade e a vitimização policial. Talvez sejam esses os fa-
tores, entre outros, que levam a população a acreditar numa
proporção maior da “violência urbana” na cidade do Rio
de Janeiro perante às outras capitais, afinal o número de
óbitos de soldados da PMERJ é evidentemente assustador.
Somente no ano de 2015, segundo o DataCrime, foram 98
policiais mortos em todo o estado contra 645 vítimas de
suas operações. É a polícia que mais mata, mas também é a
que mais morre em todo o mundo. E essas altas taxas podem
ser exemplificadas e justificadas, em parte, por uma medida
instituída por decreto no ano de 1995, pelo ex-governador
Marcelo Alencar. A “gratificação faroeste” como ficou co-
nhecida, era a premiação dada em dinheiro para policiais
que cometessem atos de bravura, variando de 50% a 150%
do valor total de seu salário. Segundo uma pesquisa reali-
zada pelo ISER (Instituto de Estudos da Religião) e pela
PARA COMUNICAR O INCOMUM

305
Alerj, a gratificação teria sido responsável por dobrar a taxa
de letalidade da polícia militar.
A partir desse momento, podemos discutir o teatro mi-
diático que envolve o medo e a insegurança como formas de
garantir a aprovação de medidas sociopolíticas. Primeiramente,
assinalamos os benefícios materiais de seu alastramento no teci-
do social, criando e desenvolvendo novos mercados, tais como
câmeras de segurança, armas de curto e grosso calibre, portões
de ferro, blindagem em veículos e imóveis, sistemas de alarmes,
segurança particular, a especulação imobiliária através da gen-
trificação de espaços públicos, a criação de shopping centers gi-
gantescos para atender às crescentes demandas de compras em
locais seguros, etc. Portanto, de antemão, indagamos: se o medo
e a insegurança são responsáveis por mover vastos mercados,
cujos lucros nem ousamos calcular, qual seria o interesse em pôr
fim a eles? A quem interessa o fim da guerra ao narcotráfico? Se
ainda incluirmos o crime nesse processo, torna-se ainda mais
evidente a lucratividade de sua existência. O criminoso assegu-
ra toda uma cadeia produtiva na sociedade (advogados, juízes,
professores de Direito, cursos especializados, livros para con-
cursos, etc.), a qual sofreria imensas reduções de capital, caso as
práticas criminosas fossem extirpadas ou, mais plausivelmente,
reduzidas na sociedade.
Segundo Yves Michaud (1989), os indivíduos se re-
lacionam com a realidade através das experiências diretas e
pelos depoimentos, relatos e situações indiretas pelas quais
atravessam ao longo de suas vidas, sendo que por muito tempo
PARA COMUNICAR O INCOMUM

306
essas evidências foram transmitidas por via escrita ou oral. No
mundo contemporâneo, a enorme quantidade de informações
veiculadas pela imprensa transforma a experiência, colocan-
do-nos em direto contato com a violência, “como se estivésse-
mos lá”, como se todos os acontecimentos cotidianos fizessem
parte da nossa realidade individual (apud Pastana, 2007, p.95).
Diariamente, os leitores e telespectadores dos jornais sentem-
-se assaltados, vítimas de roubo de carro ou de bala perdida, de
agressão física ou psicológica, etc. Por conseguinte, pode-se
encontrar discursos frequentemente assinalando a violência
como algo a ser combatido através de políticas públicas que
em vez de favorecerem as camadas mais pobres da população,
na verdade apenas alargam os privilégios particulares da classe
dominante. Assim, as camadas populares, orientadas por essas
constantes notícias, são levadas a defender, em sua maioria,
essas ideias, acreditando fielmente se tratar de um fenômeno
caótico, capaz de ser solucionado unicamente através dessas
estratégias. Pior quando percebemos que há respaldo da opi-
nião pública, cada vez mais desacreditada na classe política e
nitidamente favorável às ideias neoliberais e conservadoras,
impedindo ou dificultando medidas reformistas.
A principal questão é compreendermos em que grau es-
sas reproduções cotidianas da violência, aliadas às medidas só-
cio-jurídicas disseminadas pela mídia, alimentam uma polícia
altamente genocida e respaldada pela sede de sangue do senso
comum. Assim, o medo ganha novas proporções à medida que
é moldado em paralelo com as perspectivas de implementação
PARA COMUNICAR O INCOMUM

307
de um modelo neoliberal, fabricando uma “crise da segurança
pública” (BATISTA, 2003). Se a adesão ao crime é algo exis-
tente, de difícil combate e visivelmente presente no cotidiano
das grandes cidades, o caminho para transformá-lo em algo
caótico é mais fácil, recebendo em troca o apoio da população
para a implantação de políticas de lei e ordem. Como exemplo,
ao recordar o “arrastão da Benedita”, em 1993, Vera Malaguti
assinala que no ano seguinte o eleitor carioca votou com medo,
colaborando para que o conservadorismo tomasse a prefeitura,
o governo do Estado e originasse vários votos para o Gover-
no Federal. E apresenta importantes fatores que contribuíram
para isso:

[os cariocas] votaram com medo porque um espetá-


culo de horror havia sido ardilosamente construído,
cotidianamente medido em centimetragem de man-
chetes de jornal, em minutos de noticiários televi-
sivos que, a despeito das estatísticas, preparavam o
espírito dos consumidores para o ato final, a tomada
das favelas pelas Forças Armadas e a vitória eleito-
ral. O medo corrói a alma (BATISTA, 2003, p.20).

Por conseguinte, a difusão do medo, da insegurança e


do caos e o desconhecimento de suas causas e consequências
podem gerar um apoio “precipitado” por parte da população,
legitimando políticas públicas que apenas agravam o proble-
ma e ampliam seus horizontes. Ora, um modo de compreender
esses fatores como consequência lógica e direta do medo di-
fundido, é a instalação da primeira UPP (Unidade de Polícia
PARA COMUNICAR O INCOMUM

308
Pacificadora) em Dezembro de 2008, no morro Dona Marta,
em Botafogo. Graças ao “sucesso” da primeira, não restaram
dúvidas - as favelas precisavam ser pacificadas, do contrário,
a vida no município estaria comprometida pela “violência ur-
bana”, principalmente às portas de grandes eventos internacio-
nais. “As UPP’s viraram um macabro consenso, através de um
intenso bombardeio midiático” (Batista, 2012, p.55). Todavia,
a existência dessas unidades de polícia, travestidas de interes-
ses universais, esconde um plano:

o fato de as UPP’s estarem restritas ao espaço das


favelas, e de algumas favelas, já seria um indício
luminoso para desvendar o que o projeto esconde:
a ocupação militar e verticalizada das áreas de po-
breza que se localizam em regiões estratégicas (BA-
TISTA, 2012, p.58).

Uma vez disseminadas as informações pela grande mí-
dia, unificam-se as estratégias para eliminação do “crime or-
ganizado” da cidade do Rio de Janeiro, relegando a patamares
inferiores, outras possíveis formas de combate, que acabam
sendo esquecidas por não terem potencial eleitoral ou benefí-
cios “a curto prazo”. Assim, a população, levada a crer nessas
soluções como única forma possível de redução da violência
acaba estigmatizando determinados grupos sociais (todo pobre
e negro é um ladrão em potencial) e adotando um posiciona-
mento antidemocrático e altamente repressivo que, longe de
combater o problema, produz novos conflitos e tensões:
PARA COMUNICAR O INCOMUM

309
Ao gerar essas informações distorcidas e estereo-
tipadas sobre violência, a imprensa reproduz, de
certo modo, um processo de dominação que reduz
o sentido dos diversos tipos de violência que ocor-
rem na sociedade e induz a coletividade a aceitar, e
em alguns momentos até mesmo reivindicar, políti-
cas públicas simbólicas e igualmente equivocadas:
orientações para tratar com maior rigor os migran-
tes e pobres, criação de grupos táticos casuais para
crimes em evidência, leis mais repressivas contra
toda espécie de criminoso ou mesmo contra adoles-
centes, etc. (PASTANA, 2007, p.108).

Ruben Oliven (2010) ressalta a criação de inúmeros
mecanismos de intimidação e controle num país que, incapaz
de gerar emprego para toda a população em idade de trabalho,
em vez de combater o desemprego, combate o desempregado;
e frisa que é com esse pensamento, de maus tratos e torturas
às classes dominadas, que o Brasil atravessa todo o momento
histórico desde a Proclamação da República, em 1889, até os
dias atuais.

Em verdade, a violência e a tortura com que a po-


lícia tem tradicionalmente tratado as classes popu-
lares, longe de se constituírem numa “distorção”
devido ao “despreparo” do aparelho de repressão,
“têm uma função eminentemente política — no
sentido de contribuir para preservar a hegemonia
das classes dominantes e assegurar a participação
ilusória das classes médias nos ganhos da organi-
zação política baseada nessa repressão. O exercício
continuado dessa repressão ilegítima consolida as
imagens de segurança de status social das classes
PARA COMUNICAR O INCOMUM

310
médias diante da permanente ‘ameaça’ que consti-
tui para elas qualquer ampliação das pautas de par-
ticipação popular (OLIVEN, 2010, p.7).

Nota-se, portanto, que é fundamental indagarmos os
propósitos que servem a dramatização da violência no Brasil;
porém, mais importante ainda é mostrar como a classe domi-
nante se aproveita deste drama social em benefício próprio, ga-
rantindo sua hegemonia (Aguiar apud Oliven, 2010). Mesmo
considerando a existência de certas políticas públicas benéfi-
cas para a população, principalmente voltadas para os setores
mais pobres, há de se convir que geralmente, a maioria das que
chegam a ser aprovadas e efetivamente implementadas visam
garantir mais privilégios para a classe dominante. Por isso as
notícias não passam totalmente pelo viés das camadas sofridas
(há pouco espaço e vontade para ouvirmos suas vozes, a não
ser que corroborem com certos interesses particulares da elite).
Desse modo:

Em certo sentido, seria o mundo “virtual” cons-


truindo “o real”. (...) [ele] transforma o real em es-
petáculo produzido pelos meios de massa. É o que
ocorre, por exemplo, com o fenômeno da violência,
transformado em produto, com amplo poder de ven-
da no mercado de informação, e em objeto de con-
sumo, fazendo com que a “realidade” da violência
passe a fazer parte do dia a dia mesmo daqueles que
nunca a confrontaram diretamente enquanto expe-
riência de um processo vivido. A violência passa a
ser consumida num movimento dinâmico em que
o consumo participa também do processo de sua
PARA COMUNICAR O INCOMUM

311
produção, ainda que como representação (PORTO,
2002, p.163).

Essa produção/consumo da violência segue uma rígi-
da receita, cujos ingredientes dramáticos são temperados com
estigmas e preconceitos, com os quais se tenta excomungar os
fantasmas e os espíritos mal assombrados da constante paupe-
rização da classe média, garantindo, com isso, uma forte ade-
são da mesma às políticas mais reacionárias e conservadoras.
Logo, quando os meios de comunicação de massa, em grande
parte, se referem a uma suposta “violência urbana”, eles estão
se referindo praticamente à delinquência de classe baixa (OLI-
VEN, 2010), ou seja, o “marginal”, aquele que comete delitos,
furtos, assaltos, arrastões, etc., colaborando para a formação
e “engessamento” dessa personagem no imaginário sociocul-
tural. A evidência do recorte de classe presente nas notícias
pode ser então observada pela incessante alusão à “violência
urbana” como intrínseca à pobreza. Há, por conseguinte, um
esquema de utilização político-ideológica da violência, que
cria um maniqueísmo da realidade (“homens de bem” x “ho-
mens que não tem bens”), escamoteando o fato dessas “duas
cidades” atuarem como um conjunto articulado, onde uma as-
segura a existência e a reprodução da outra (Ibid., 2010).
Como se pode perceber, não raro, fenômenos como o
das drogas, da pobreza, dos presídios, da guerra de facções,
das armas de fogo, dos assaltos a banco e/ou a instituições
privadas, dos roubos de carretas, dos estupros, etc., constitu-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

312
tivamente distintos, são agregados pela grande mídia sob o
mesmo eixo temático, cujos variados atores são reduzidos a
um conceito central de criminoso: “não importa se as ‘dro-
gas’ atravessam as classes e se o ‘tráfico’ é transnacional; nos
significados da ‘violência urbana’ ambos se corporificam em
morros e favelas, numa cor de pele, numa idade, numa esté-
tica” (FELTRAN, 2014, p.248). Assim, para esse processo de
transformação “dos outros” em um inimigo comum, de fácil
apreensão e notoriedade, se concretizar, pouco importa “se a
imensa maioria dos jovens de periferia não está ‘no crime’, e
se a imensa maioria dos que estão no ‘crime’ não comete cri-
mes violentos, (...) essa minúscula parcela criminal e violenta
que representará toda a periferia (Ibid., 2014, p.249).

O crime entra na agenda jornalística como um tema


que atrai público, está na pauta porque eleva o nível
de consumo midiático pela audiência. O crime nar-
rado pela mídia é o drama moderno do teatro de are-
na, exposto para manter a atenção e o interesse do
público. Como cerimônia, contém o ritual no qual
os indivíduos são heróis, vilões e vítimas, criando
uma ordem social própria, na qual os sentidos são
imputados sumariamente, num discurso emocional
que comove e estimula o consenso sobre o dano, a
culpa e a punição (MELO, 2014, p.144).

Na pesquisa de Sônia Wanderley sobre mídia e a pro-
dução de sentido sobre a violência difundida pelos jornais,
pode-se observar a criação de um consenso que propicia des-
dobramentos de força e derramamento de sangue nas favelas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

313
(apud Batista, 2003, p.110). A pesquisadora trabalhou com
editoriais em que os discursos sobre a favela constantemente
se repetem, tais como: “confronto inevitável”, “império do ter-
ror”, “o sequestro da lei”, “desafio nos morros”, “a ilusão dos
morros”, “subindo o morro”, “império do caos”, “no calor dos
combates”, “a ameaça das favelas”, etc. Esse quadro semiótico
é, então, formado por esse bombardeamento de sentidos equi-
vocados, transformando a favela em um locus do mal (Ibid.,
2003, p.112).
Em seu livro, Violência Política (1987), Ciro Marcon-
des Filho dilui dez mitos em torno dessa temática (p.9-23). En-
tre eles, o de que “a política faz-se no Senado, nas Câmaras, pa-
lácios do governo, etc.”. Desse modo, os jornais e os meios de
comunicação apresentam à opinião pública como algo político
aquilo que é discutido nesses lugares (gabinete do presidente,
do governador, do prefeito, Senado, Assembléias Legislati-
vas). Porém, como aponta o autor, esses espaços públicos fun-
cionam apenas como formalização (local de “demonstração”)
de que existe um espaço onde as pessoas discutem, debatem,
tomam decisões. Ocorre, no entanto, que todas as decisões são
tomadas anteriormente. “Isto põe em xeque, evidentemente, o
conceito que se tem de democracia parlamentar ou presiden-
cialista, pois os chamados ‘representantes do povo’ não agem
em função do povo mas segundo certas determinações partidá-
rias” (Ibid., 1987, p.23). Medidas e orientações são tomadas,
portanto, sem que se leve os interesses da população em consi-
deração, através de mecanismos estranhos a ela. “De modo ge-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

314
ral, os acertos políticos antes de uma votação envolvem trocas
de favores e privilégios, em situações não-públicas, que são
exatamente as que determinam, os rumos e as orientações que
se seguirão” (Ibid., 1987, p.23).
Por último, para nos aproximarmos ainda mais de res-
postas plausíveis sobre a reprodução ideológica da violência,
é necessário distingui-la em dois tipos. Slavoj Zizek define
violência subjetiva como aquela “exercida por agentes sociais,
indivíduos malévolos, aparelhos repressivos disciplinados,
turbas fanáticas” (Zizek, 2009, p.19). É, portanto, a violência
de mais fácil compreensão, reconhecível por todos: homicídio,
latrocínio, assaltos, estupros, espancamentos e linchamentos
de pessoas, agressões à mulher, tiroteios, trocas de socos e
pontapés nas ruas, etc. Por outro lado, o autor esloveno cita
a violência objetiva; esta é muito mais estranhamente inquie-
tante, pois não pode ser atribuída a indivíduos e suas más in-
tenções (Ibid., 2009); ela é, portanto, sistêmica do modo de
produção capitalista; é a violência invisível, que se pretende
“esconder”, tida como “normal” (“um mal necessário”) dentro
da vida social. É a violência que mata milhões de pessoas de
fome em todo o mundo; é a que força as pessoas exploradas a
viverem em condições degradantes e insalubres, etc.
A relevância desse assunto constitui-se como ponto cen-
tral para nossa análise no próximo capítulo, pois através das
formas simbólicas que envolvem a favela e os modos como a
violência objetiva e subjetiva são utilizados nas ficções seriadas
brasileiras, percebemos as ideias que são incutidas e percorrem
PARA COMUNICAR O INCOMUM

315
a sociedade, desvelando não somente a ideologia da mídia jor-
nalística, como também as da mídia televisiva (no nosso caso,
ambas pertencendo à mesma empresa de comunicação).

As Ficções Seriadas: Discretas Manifestações da Ideologia


Dominante

A questão não é “reagir” à TV como se ela fosse


uma força estranha que invade nossas casas e lá se
instala para não mais sair. Sabemos que a TV é um
instrumento eletrônico, produto da história do ho-
mem e de sua evolução; é a marca desta era. Não
tem sentido destruir a televisão, porque não é ela a
culpada dos crimes que lhe são imputados. É certo
que não é de todo inocente no processo de desuma-
nização da vida social moderna, e por isso mesmo
é necessário medir quem na verdade provoca o quê
(MARCONDES FILHO, 1988, p.109).

Uma vez expostos inúmeros exemplos de como a mí-
dia jornalística, em geral, participa ativamente no processo de
dramatização da violência no país, isto é, as maneiras com que
ela se manifesta e se posiciona de modo a justificar e legiti-
mar medidas sociopolíticas, cujos interesses particulares pri-
vilegiam a classe dominante, podemos nesse momento migrar
para o curioso terreno das ficções seriadas televisivas e indagar
se estas carregam semelhanças com as narrativas jornalísticas.
A princípio:

o que existe de fato na TV é um desvio de energias


produtivas, para que não ocorra nenhuma alteração
PARA COMUNICAR O INCOMUM

316
social mais significativa e para acionar o telespecta-
dor às compras ou à defesa do status quo. Com isso
controlam-se os dois lados: o da manutenção do re-
ceptor e seu mundo “organizado” e o de sua ativa-
ção ilusória. A irritação, a agressividade, a violên-
cia e a insatisfação são canalizadas propositalmente
para objetos apresentados pela TV. (...) Assim, a
tecnologia, na medida em que agrada e encanta o
usuário, também o “suborna”, para que o sistema
social maior (o Estado, o poder econômico, as eli-
tes militares) possa agir impunemente, com amplos
poderes, liquidando opositores, baixando leis dra-
conianas que ninguém vê e que são bagatelizadas
pelos telejornais, ou mesmo cometendo atos crimi-
nosos (MARCONDES FILHO, 1988, p.111-2).

Defendemos a mesma posição, pois como vimos no
capítulo sobre mídia, a televisão, talvez o “braço” mais sig-
nificativo de sua atividade (ou pelo menos o de maior visi-
bilidade), não haveria de se apresentar através de discursos
subversivos, de ataque ao status quo ou de críticas ferrenhas
ao modelo neoliberal. Seus ingredientes primordiais, como a
irritação, a agressividade, a insatisfação, o prazer e a violência,
têm usos específicos no complexo processo de entretenimento
do qual ela se reveste. Dessa maneira, ao “informar”, encantar,
agradar, fascinar e seduzir seu público, observamos que sua
atividade esconde facetas de um projeto de poder. Portanto,
sustentamos que uma investigação dessas ficções seriadas te-
levisivas brasileiras e suas formas simbólicas retratando, aqui
especificamente, o fenômeno da “violência urbana”, ajuda-nos
a esclarecer muitas das ideias que percorrem o tecido social
PARA COMUNICAR O INCOMUM

317
de nossa época, desvelando suas estratégias. A seguir, fare-
mos pequenos apontamentos sobre as séries, demonstrando a
ideologia contida em suas narrativas e realizando uma crítica
sobre os usos da violência subjetiva e objetiva, se possível. É
importante notar as semelhanças encontradas em suas formas
simbólicas, pois desta maneira, compreendemos que tipos de
produtos (e conteúdos) recebem o aval da empresa para a pro-
dução e transmissão em seu canal.
O primeiro seriado, Cidade dos Homens (2002), foi exi-
bido na Rede Globo, de 2002 a 2005, em quatro temporadas. Foi
escrito por diversos roteiristas, como Cesar Charlone, Fernando
Meirelles, Jorge Furtado, Katia Lund, Paulo Lins, Guel Arraes,
Regina Casé e com direção de Cesar Charlone, Katia Lund, Pau-
lo Lins, Fernando Meirelles e Regina Casé. Tendo sido inspira-
do num episódio especial de fim de ano da série Brava Gente
(2000), adaptado por Bráulio Mantovani, o seriado foi consi-
derado uma “continuação” do filme Cidade de Deus (2002), de
Fernando Meirelles, pois muitos dos atores envolvidos no filme
participaram em ambos os projetos. A trama retrata o cotidiano
de dois protagonistas carismáticos, Acerola (Douglas Silva) e
Laranjinha (Darlan Cunha), lidando diariamente com proble-
mas relativos à adolescência, à dificuldade financeira de suas
famílias, ao tráfico de drogas na favela e à violência. Cada um
dos quatro episódios da primeira temporada se apresenta como
uma fatia independente na infância dos dois garotos.
Sobre o medo, a insegurança e a violência subjetiva,
há um bom exemplo no quarto episódio. Na rua, João Victor
PARA COMUNICAR O INCOMUM

318
e seus amigos se deparam com Acerola, Laranjinha e Duplex
(Robson Rocha) quando os seis param em frente a uma vi-
trine de loja e contemplam o preço de um tênis, após terem
assistido a seu comercial na televisão. Eles logo percebem, à
meia distância, a atividade de dois homens estranhos, falan-
do ao celular. Acerola e Laranjinha acreditam que os “riqui-
nhos” estejam protegidos por dois seguranças; João Victor e
seu amigo acham que são dois bandidos dando cobertura aos
garotos. Quando os homens se aproximam, os quatro jovens
saem correndo em disparada. À frente da vitrine, permanecem
apenas Lucas, cuja família é extremamente rica, e Duplex, o
mais “pobre” dentre todos.
Essa passagem desnuda uma importante reprodução
ideológica. Os seis garotos, representando as diferentes condi-
ções materiais das diferentes classes, desejam o mesmo produ-
to na vitrine (todos almejam o consumo). No entanto, devido à
uma possível ameaça externa (construída apenas pelos quatro
intermediários), eles se retiram rapidamente do local. Sendo
assim, os dois que ficaram parados seriam, metaforicamente,
os extremos da sociedade, isto é, aqueles que não participam (e
até ignoram) dos conflitos enfrentados pela maioria, pois estão
totalmente separados de toda a realidade social.
Como retratado no seriado, a classe média, amedronta-
da pelos problemas sociais, sobretudo pela “violência urbana”,
deposita no pobre a culpa e a responsabilidade pelas mazelas
existentes. Este, como forma de se defender e se auto-afirmar,
devolve as críticas, sendo que as fronteiras de uma para outra
PARA COMUNICAR O INCOMUM

319
não são tão distantes e tão intransponíveis assim. A presença
do Estado corrobora com a visão do senso comum, para os
quais seus aparelhos (no caso, a polícia) são corruptos, despre-
parados e ineficientes. Por esse motivo, temos um reforço do
confronto entre duas classes oprimidas, que não deveriam ser
adversários políticos. Em vez de combaterem os reais males
que impulsionam e determinam suas condições materiais de
vida, elas trocam ofensas e ameaças, na certeza de que, ex-
tirpando-se uma ou outra, os problemas serão resolvidos. Na
falta de uma consciência “para si”, os oprimidos descontam
sua raiva por esse sistema desigual em outros oprimidos.
A violência objetiva é ofuscada pelas inúmeras e in-
tensas doses de violência subjetiva, responsável por reforçar
o imaginário em torno da favela e servir como instrumento
crucial para escamotear as reais condições de miséria (social
e política) em que se encontram os moradores. Ao “romanti-
zar” a favela, proporcionando um final feliz para os dois pro-
tagonistas, cria-se um consenso em torno da possibilidade de
melhorarem suas condições e omite-se o caráter de uma região
habitada por pessoas pobres, vivendo à margem da socieda-
de, com ínfimas chances de se integrarem ao sistema. O fato
de conviverem em meio ao esgoto a céu aberto, de frequen-
tarem uma escola pública sucateada e despreparada, viverem
em casas construídas precariamente, na presença de ratos, etc.
passa quase despercebido em meio às ações principais. A fa-
vela apresenta-se como um lugar com dificuldades, mas ainda
assim, digno, o que rechaçamos completamente. Se os mora-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

320
dores convertem esse espaço em um “lar”, talvez o façam por
uma necessidade de sobrevivência; porém, isso está longe de
legitimá-las como moradias minimamente dignas.
O segundo seriado, Força-Tarefa (2009), foi produzido
pela Rede Globo, de 2009 a 2011, em três temporadas. Foi es-
crito por Fernando Bonassi e Marçal Aquino, dirigido por José
Alvarenga Jr e Mário Márcio Bandarra. A trama é sobre uma
equipe de investigação da corregedoria da Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro, cuja função é apurar a ação da polí-
cia militar e perseguir os profissionais da corporação, acusados
de infligir a lei e cometer delitos. Sob o comando do Coronel
Caetano (Milton Gonçalves), a equipe possui seis integrantes,
o Tenente Wilson (Murilo Benício), a Sargento Selma (Hermi-
la Guedes), o Praça Jorge (Rodrigo Einsfeld), o Cabo Irineu
(Juliano Cazarré), o Cabo Oberdan (Henrique Neves) e Sar-
gento Genival (Osvaldo Baraúna).
De acordo com os nossos objetivos, selecionamos o
quarto episódio da temporada para falarmos da violência sub-
jetiva, visto que se passa em uma favela na cidade do Rio de
Janeiro. A história se desenvolve da seguinte forma: a favela é
invadida por milicianos de colete e capuz. Eles matam várias
pessoas enquanto avançam até conseguirem expulsar os trafi-
cantes, assumindo o controle total. Em seguida, passam a ex-
torquir os moradores, obrigando-os a contribuir com dinheiro
para a “segurança”. Enquanto isso, o Tenente Wilson e Selma
alugam uma casa na favela para investigá-los. Assim que os
dois conseguem capturar com a câmera a comprovação da ati-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

321
vidade ilícita e criminosa dos milicianos, o Coronel Caetano
poderá prendê-los. No final, na mesma noite da operação pla-
nejada pela polícia, que prendeu os milicianos, os traficantes
retornam e, sem darem um tiro sequer, conquistam novamente
o controle da favela, restaurando a (des)ordem anterior.
A favela de Força-Tarefa se apresenta como um am-
biente, sem dúvida, mais hostil do que em Cidade dos Homens.
Os milicianos, sedentos pelo poder e pelas recompensas da ati-
vidade ilícita, são severos e violentos, agredindo gratuitamen-
te os moradores e instaurando um clima de medo, algo bem
distante do mundo de Acerola e Laranjinha, onde os maiores
e principais conflitos se dão entre traficantes e policiais. Há
um embate interessante entre as representações da milícia e
dos traficantes de drogas nas favelas. Nesse seriado, sugere-
-se que a milícia seja muito pior, pois além de dominados por
um grupo poderoso, os moradores podem sofrer agressões a
qualquer momento, sem motivo algum, embora ela também
seja destacada como uma força desorganizada e incompeten-
te, afastando-se dos dados reais. Na cidade do Rio de Janeiro
ela se tornou uma rede muito mais complexa do que as outras
organizações criminosas, com alguns membros atingindo e as-
segurando o poder legislativo, como no caso dos vereadores e
deputados estaduais, algo inacessível aos pequenos traficantes.
Por outro lado, o bando de traficantes comandado pelo chefe
Exu (Jonathan Azevedo), rapidamente se organiza, adquire ar-
mas extremamente mais poderosas, retoma o controle e suscita
PARA COMUNICAR O INCOMUM

322
uma ideia de uma rede altamente complexa e eficiente, repro-
duzindo a ideia precipitada de “crime organizado”.
A comprovação da falta de confiança da sociedade nas
suas instituições é demonstrada no seriado pelas inúmeras
passagens onde o Serviço Reservado da PMERJ é represen-
tado por meio de ações pueris e débeis, reforçando a ideia de
despreparo e incompetência por parte dos policiais (apesar de
resolverem os casos no final dos episódios). Assim, as situa-
ções vividas pelos personagens principais desencadeiam im-
pressões de um aparelho estatal frágil, inexperiente, oneroso,
etc. Aliás, esse despreparo é visto com bastante frequência -
perguntas e observações esdrúxulas por parte da equipe nas
reuniões, decisões erradas tomadas como se os policiais não
tivessem treinamento, atitudes infantis durante situações con-
sideradas sérias e graves, tudo isso levanta questões quanto à
seriedade e profissionalismo da equipe.
A minissérie Alemão: os dois lados do complexo (2016)
surgiu do filme Alemão (2014), do diretor José Eduardo Bel-
monte, baseado na mega operação para a ocupação da Vila
Cruzeiro, uma comunidade próxima ao Complexo do Alemão
no Rio de Janeiro, ocorrida em Dezembro de 2010, envolven-
do as polícias civil, militar e federal, além do apoio das forças
militares da marinha e do exército brasileiro. Dois anos após o
filme ter estreado nas salas de cinema, a Rede Globo resolveu
transformá-lo em uma minissérie. Para isso, o projeto anterior
sofreu alterações no roteiro e cenas inéditas foram filmadas ex-
clusivamente para a televisão. Imagens reais de cinegrafistas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

323
durante a cobertura da mega operação feita pela própria emis-
sora complementam o novo produto, transformando a narrati-
va audiovisual anterior. Assim, dividida em quatro capítulos, a
trama relata a história de Samuel (Caio Blat), Danilo (Gabriel
Braga Nunes), Doca (Otávio Muller), Carlinhos (Marcello
Melo Jr.) e Branco (Milhem Cortaz), cinco policiais infiltrados
no Complexo do Alemão, uma região de comunidades conhe-
cida pelos altos índices de violência, cuja missão é recolher
informações sobre as ações criminais do tráfico de drogas.
Há algo fora dos eixos em Alemão: os dois lados do com-
plexo e não é a sucessão de eventos mal elaborados ou deficien-
tes em termos de estrutura dramática. Baseado em um evento
especial na história da cidade do Rio de Janeiro, a fonte de ideias
e inspirações contava com um arsenal de informações valiosas,
porém não foram bem exploradas. O roteiro se propõe realista
e naturalista, obviamente, e separa os personagens em três nú-
cleos principais: os agentes infiltrados, os traficantes de drogas
e a força policial e militar administrando a mega operação para
a invasão. A violência objetiva perpassa os capítulos sem uma
alusão à indignidade de se morar na favela, inclusive ratifica um
caráter “natural” de sua existência. A violência subjetiva, por
outro lado, é cativante e em diversos momentos somos postos
diante de situações de tensão até interessantes.
Novamente, a atividade policial deixa uma impressão
deveras negativa – não há uma cadeia de comando bem defi-
nida e os policiais infiltrados se mostram despreparados para
uma tarefa dessa importância. Principalmente por sabermos de
PARA COMUNICAR O INCOMUM

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antemão que se infiltraram há mais de um ano e deveriam estar
entrosados na comunicação e na confiança mútua. Em vista
disso, se nos deparamos com a representação de uma polícia
civil ineficaz e incompetente, desconfiada de seus próprios
integrantes e rebaixada a um nível de amadores, automatica-
mente a imagem que circula pela sociedade de um “crime alta-
mente organizado” no Rio de Janeiro fica ainda mais explícita
e evidente; principalmente quando Playboy (Cauã Reymond)
descobre os “traidores” e rapidamente mobiliza seus homens,
dá ordens diretas e, com isso, retrata uma cadeia de comando
nítida e bem estruturada entre os traficantes. Sendo assim, uma
vez apresentados de forma fria, calculista, estratégica, quanto
mais confusos e nervosos estiverem os policiais, mais fortes os
bandidos irão parecer. Logo, essa contradição nas representa-
ções dos dois grupos reforça o ideal de uma polícia fracassada
e desonesta, estendendo-se a culpa ao Estado que é “incapaz”
de gerir suas instituições.
No início do primeiro capítulo, vemos cenas da praia de
Copacabana em 2009, de onde um telão revela a sede vence-
dora das Olimpíadas de 2016 – o Rio de Janeiro. Acreditamos
ter sido este evento, o fator crucial para compreender as novas
políticas do programa de segurança pública implementado na
cidade (as UPP’s). Por conseguinte, as ideias passaram a circu-
lar no tecido social – as favelas “precisam” ser pacificadas, do
contrário, a vida no município estaria comprometida pela “vio-
lência urbana”, assim como os eventos internacionais. Então,
uma vez disseminadas essas informações para a sociedade,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

325
unificou-se as formas de eliminação desse “crime organizado”
(na minissérie, esse posicionamento é de fácil percepção) - so-
mente uma mega operação, cujas forças policiais, essencial-
mente aliadas ao Exército e à Marinha, seria capaz de eliminar
este mal das favelas cariocas.
O quarto seriado, Cidade dos Homens (2017), escrito
por George Moura e Daniel Adjafre, direção de Pedro Morelli,
é uma continuação do seriado homônimo que foi ao ar na Rede
Globo de 2002 a 2005. A trama retrata o cotidiano de dois pro-
tagonistas carismáticos, Acerola (Douglas Silva) e Laranjinha
(Darlan Cunha), agora pais, respectivamente de Clayton e
Davi, lidando com os problemas da vida adulta, com a dificul-
dade financeira de suas famílias, o tráfico de drogas na favela
e a “violência urbana”. Apostando firmemente no sucesso e na
retrospectiva de vários eventos vivenciados pelos dois garotos
anos atrás, sobra pouco espaço para a trama no tempo presen-
te, o que foi bem pouco explorado nos três primeiros episódios
dessa nova temporada.
Quanto à violência subjetiva, ela claramente faz parte
do cotidiano do morador da favela, envolvendo o confronto
entre policiais e traficantes, roubos e assaltos, linchamentos,
tiroteios, etc. Contudo, defendemos que a violência que real-
mente choca no seriado é a objetiva, fazendo-se presente no-
vamente pelo esgoto a céu aberto e nas situações degradantes
de sobrevivência dos moradores sem saneamento básico, pela
incapacidade de se conseguir uma cirurgia para uma pobre
criança, as condições insalubres de vida, sem direito a um ser-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

326
viço público decente de saúde e, em sua máxima força, pelas
cenas do hospital público, onde centenas de pessoas sofrem
absurdamente à espera de serem atendidas nos corredores da
instituição. Assim, o seriado, preocupado em nos transmitir a
realidade social vivida cotidianamente por um grupo de pes-
soas, reproduz a violência subjetiva reforçando a ordem social
estabelecida, em vez de dar proeminência à violência invisível
(objetiva) que, aliás, é uma vez mais relegada a um patamar
inferior, de caráter natural, como se a vida na favela fosse, in-
felizmente, algo com o qual devemos aceitar e conviver.
A favela, nessa continuação de Cidade dos Homens,
embora tenha se tornado um lugar mais violento, é repre-
sentada de novo sob um viés romantizado, isto é, tem suas
adversidades, mas continua sendo digna de moradia. Desse
modo, alimentado pelo imaginário sociocultural acerca des-
se tema e pelo artifício do final feliz, o seriado abafa o fato
de a favela ser uma região habitada por pessoas vivendo à
margem da sociedade, com ínfimas chances de transforma-
rem suas vidas e alcançarem degraus sociais superiores. Sua
narrativa mais uma vez, suprime o passado e o futuro dos
personagens, valida desvios de incivilidade, encobre as lutas
de classes, elimina o antagonismo das relações de exploração
capitalistas e engessa as crenças em torno de uma meritocra-
cia, da qual o prêmio final é obtido quase que por uma espé-
cie de providência divina, algo bastante distante da realidade
dos moradores das favelas cariocas.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

327
Considerações Finais

Este artigo expôs trechos de análises de quatro ficções


seriadas televisivas, em busca de elementos e fatores que com-
provam a reprodução ideológica de uma “violência urbana”
carregada de equívocos do senso comum. Acreditamos ter sido
possível o cumprimento dos nossos objetivos, expondo as di-
versas maneiras com que a mídia, inserida numa lógica indus-
trial voltada para o lucro, participa na fabricação do consenso
como forma de assegurar a opinião pública, manter o status
quo e obter respaldo para medidas sociopolíticas que servem
aos interesses da classe dominante, além de promover ideias
que alargam seus domínios sobre a sociedade.
Investigamos o cenário da cidade do Rio de Janeiro e
apontamos algumas relações da atividade jornalística com a
dramatização da violência (e seus propósitos), extraindo in-
formações valiosas acerca do medo e da insegurança como
produtores de conflito. Demonstramos também que ambos fa-
zem parte de um projeto no qual não está incluída a sua elimi-
nação, tampouco a redução para níveis mais saudáveis. Suas
simples existências geram um mercado altamente lucrativo e
atuam eficientemente como poderosas ferramentas, garantindo
respaldo público para medidas reacionárias e conservadoras, e
na dissolução de opiniões contrárias às da classe hegemônica.
Se o jornalismo atua no terreno ideológico através da
atividade de construção das notícias, observamos como as for-
mas simbólicas das ficções seriadas afiguram-se também como
PARA COMUNICAR O INCOMUM

328
potentes instrumentos reprodutores de ideologia, fabricando
e reforçando o consenso sobre a “violência urbana”, isto é,
dando-lhe roupagens a fim de justificar determinadas estraté-
gias para seu combate (invasão às favelas, implementação de
UPP’s), cujos proveitos e benefícios são particulares e não uni-
versais; além da legitimação do modo de produção capitalista
pelo rebaixamento das desigualdades sociais a um patamar in-
ferior, de caráter natural.
Em consequência disso, salientamos a importância de
um olhar crítico sobre os produtos audiovisuais veiculados
pela grande mídia, pois ao mesmo tempo em que ela nos forne-
ce determinados modelos que agregamos aos nossos valores,
devemos estar sempre atentos ao seu conteúdo. A reprodução
ideológica é eficaz e pode viabilizar as mais variadas inten-
ções daqueles que dominam sua transmissão, cristalizando o
imaginário sociocultural e disseminando ideias que servem à
manutenção da dominação.
A busca por maiores informações e conhecimento deve
atravessar o campo da cidadania e da completa percepção dos
direitos e deveres dos cidadãos. Afinal de contas, o exercício
da luta política inicia-se pela compreensão da extrema desi-
gualdade social existente na sociedade brasileira e das estraté-
gias que subjazem as medidas sociopolíticas implementadas.
Sem essa devida atenção aos modos como a mídia reproduz o
medo e a violência, somos levados a crer em ideias e planos de
combate que somente beneficiam a classe dominante e amplifi-
cam as desigualdades sociais, ao invés de servir aos propósitos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

329
das classes oprimidas. Por último, compreender como se dá a
relação dos indivíduos com as formas de poder em que vivem
é crucial para uma sociedade não sucumbir perante à domina-
ção, despejando toda sua frustração em outros oprimidos ou
deixando de perceber a violência objetiva e desconsiderando
seu máximo impacto, isto é, o de determinar a estrutura dos
processos sociais materiais, como a sorte de camadas inteiras
da população (Zizek, 2009, p.20).

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O ENCONTRO DA EDUCOMUNICAÇÃO COM A
NOVA TEORIA DA COMUNICAÇÃO

Eliany Salvatierra Machado1

A Educomunicação é um campo emergente, segundo


Ismar de Oliveira Soares e, desde 1996, o Núcleo de Comu-
nicação e Educação – NCE-ECA-USP promove e pesquisa
as suas práticas e projetos. À época eu trabalhava no NCE, e
refletia sobre a Educomunicação a partir da Teoria Cultural.
Durante o mestrado, e orientada por Mauro Wilton de Sousa,
conheci e estudei as teorias da comunicação que fundamen-
tavam as pesquisas em curso na ECA. Em 1999, através da
pesquisadora Danielle Naves, comecei um processo de ques-
tionamento sobre as teorias da comunicação. Foi Naves quem
me apresentou a Ciro Marcondes Filho, que em 2000 cria o
FiloCom – Núcleo de Estudos Filosóficos da Comunicação, da
ECA-USP. A partir de então, já participando do FiloCom, me
propus no doutorado a pesquisar a Educomunicação, os seus
fundamentos, e comecei a jornada de estudos filosóficos. Ciro
Marcondes Filho elaborou uma ontologia da comunicação e,
em uma longa revisão bibliográfica, teceu a Nova Teoria da
Comunicação, passando pelo pensamento estoico, por Deleuze
1 Eliany Salvatierra Machado, professora Doutora, Associada I, do Departamento de Cinema
e Vídeo da Universidade Federal Fluminense – UFF.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

333
através da Lógica do sentido, Mil platôs e o seu Anti-Édipo,
por Jacques Derrida e sua Gramatologia, Richard Rorty, Mer-
leau Ponty, Bergson, Husserl e Heidegger. Além das revisões
teóricas da Escola de Frankfurt, da Escola de Palo Alto, do Cír-
culo Cibernético, e da tradução dos textos de Niklas Luhmann.
Com Marcondes Filho conheci Michel Serres, Gregory Bate-
son, e dessa forma foi possível pensar o tempo. Entre os vários
filósofos que estudamos encontrei Martín-Buber e Emmanuel
Lévinas, referências teóricas da minha pesquisa de doutorado.
O objetivo do presente texto é, portanto, narrar como ocorreu
esse encontro teórico.

A caminhada

O poeta espanhol Antonio Machado em um dos seus


versos diz: “Caminhante, não há caminho, o caminho se faz
ao caminhar”. Foi com a poesia primeiramente que percebi
que eu estava em uma caminhada, não sabia o que buscava e
talvez, por isso, encontrei pessoas, ideias e sentimentos.
Trabalhando no NCE tentava pensar o que era a Edu-
comunicação, buscava um sentido, um significado. No início
pensei que a Educomunicação fosse uma forma, um espaço
para trabalhar a emancipação, quase um projeto ideológico.
Eu vinha de uma caminhada militante. Como educadora do
ensino de artes usava o audiovisual como instrumento de ex-
pressão e ao mesmo tempo de denúncia. Já tinha produzido
vídeos com o tema da reforma agrária, a luta pela terra, sobre a
PARA COMUNICAR O INCOMUM

334
demarcação das terras indígenas, sobre a poluição de córregos
e destruição do meio ambiente. Ao mesmo tempo, orientava
os alunos da Educação Básica para o uso da fotografia e do
audiovisual como meio de expressão.
Cheguei ao campo da Comunicação querendo estudar a
leitura crítica dos meios de comunicação. Foi o meu orientador
do Mestrado, professor Mauro de Wilton de Sousa quem me
apresentou os Estudos Culturais. Porém, demorei muito para
entender o que significava a “mudança de paradigmas”. Ape-
sar de não ter estudado a Perspectiva da Escola de Frankfurt eu
estava impregnada da crítica. Apesar de gostar da televisão e
de já ter trabalhado em uma, como educadora queria ajudar os
educando a lerem os meios para não serem dominados e muito
menos manipulados por eles
Estudando com o Mauro Wilton, aos poucos, fui per-
cebendo que a relação entre a recepção e a produção televisiva
é mais complexa. Não é uma comunicação de causa e efei-
to. O que é dito, construído através da narrativa de um pro-
grama televisivo pode ganhar um ou vários significados por
quem assiste. Está no significado a possibilidade de brechas,
de negociações de novos significados. Segundo Jesús Martín-
-Barbero era necessário que o campo da Comunicação olhasse
para esse entre, a mediação entre o produto e a recepção. Os
Estudos Culturais Latinos Americanos promoveram uma ver-
dadeira reviravolta nas pesquisas em Comunicação. Porém, as
discussões ainda estavam entre os meios, os significados e a
recepção. A comunicação, de uma forma geral entre os meus
PARA COMUNICAR O INCOMUM

335
colegas da pós-graduação, era compreendida como troca,
compartilhamento.
Pedagogicamente eu me perguntava como acontecia o
fenômeno da comunicação entre o educador e o educando ou
ainda, como era possível encontrar alguém e rapidamente ter
empatia. Em um dado momento pensei em estudar a Comuni-
cação telepática. Mas, esse não era um tema muito aceito na
Escola de Comunicações e Artes e, eu, precisava ser aceita no
programa da pós-graduação. Foi tentando entender as Teorias
da Comunicação que encontrei a pesquisadora Danielle Naves
e com ela percebi que era possível pensar a comunicação de
outro lugar, por outros caminhos.
Foi Danielle Naves quem me apresentou os trabalhos
do professor de Teoria da Comunicação do Departamento de
Jornalismo da ECA, Ciro Juvenal Rodrigues Marcondes Filho.
Lembro-me da minha primeira reunião com o Ciro, como os
alunos e alunas o chamam. Ciro acabava de desfazer o NTC
– Centro de Estudos e Pesquisas em Novas Tecnologias, Co-
municação e Cultura da USP e criava o FiloCom.
O FiloCom – Núcleo de Estudos Filosóficos da Comuni-
cação surge como um grupo que tem como objetivo reunir pes-
quisadores cujo interesse é o de contribuir para aprofundar os
estudos de comunicação e desenvolver uma metodologia espe-
cífica de trabalho de pesquisa em comunicação. Foi participan-
do do FiloCom que comecei a pensar sistematicamente o que é
a Comunicação. Algo que estava dado como verdade, comuni-
cação como troca, partilha ou “colocar em comum” se desesta-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

336
biliza. Durante os estudos sobre a Comunicação que resultou no
livro escrito por Marcondes Filho: “Até que ponto de fato nos
comunicamos”, de 2006, cheguei a duvidar que a comunicação
fosse um fenômeno possível entre humanos. Á época eu estava
convencida que somos mônadas e o que experimentamos, atra-
vés das nossas experiências, não pode ser comunicado, jamais
serão transmitidas e muito menos compartilhadas.
Paralelamente, na Educomunicação as experiências
eram diversas. No NCE participei com a Patrícia Horta Alves
e vários outros educomunicadores, mais de 100 com certeza,
dos projetos: Educom.Rádio, Educom-Saúde, Educom.Centro-
-Oeste e Educom.TV Educom.São Luiz, Educom. Geração Ci-
dadã, Educom.Fundhas e o Educom.Mídias. A cada projeto eu
me questionava o que era Educomunicação e principalmente,
o que significava ser uma educomunicadora. Foi estudando os
textos do livro “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Caroll,
em uma das disciplinas oferecida na pós-graduação pelo Ciro,
que percebi, como a personagem Alice, que eu gostava de ques-
tionar. Foi justamente a dúvida que me levou a refletir sobre o
que é a Comunicação e consequentemente a Educomunicação.
O objetivo não era confrontar o meu orientador, o pro-
fessor Ismar de Oliveira Soares. Mas, refletir sobre a Educo-
municação, uma inquietação quase infantil, como uma criança
que pergunta: o que é o Sol? No FiloCom era comum fazer
perguntas, por isso: estudos filosóficos da comunicação.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

337
A Educomunicação

Antes mesmo da fundação do NCE em 1997, Ismar de


Oliveira Soares já defendia que o campo da Comunicação se
aproximasse da Educação e que esta, por sua vez, repensasse o
seu olhar sobre a própria comunicação. O campo da Educação,
influenciado também pela perspectiva crítica, até fins de 1990,
não via com bons olhos a produção dos meios de comunicação de
massa e muito menos a televisão como um “espaço” educativo.
No final de 1990, Soares sugere que há um novo campo
emergente em formação. Ao término de uma pesquisa finan-
ciada pela FAPESP entre 1997 e 1999, Soares conclui

que um novo ofício já vinha sendo exercido por


um profissional diferenciado, o “Edu-comunica-
dor”, e que, reconhecido esse novo profissional,
se evidenciava a emergência de um novo campo:
a Educomunicação. No caso, foi a prática social, e
não a mera especulação teórica que apontou para
emergência do novo setor: “O conceito refere-se
a um campo emergente de intervenção social, ou
seja, ao conjunto das ações próprias de programas
que promovem o planejamento, a implementação e
a avaliação de processos e produtos, criando e for-
talecendo ecossistemas comunicativos abertos, de-
mocráticos e participativos em espaços educativos,
presenciais ou mesmo virtuais, tendo como conse-
quência a melhoria do coeficiente comunicativo das
ações educativas, incluindo, neste contexto, as rela-
cionadas com o uso dos recursos da informação nos
processos de aprendizagem. No caso, tais ações têm
como fundamento a realidade das mediações cul-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

338
turais protagonizadas historicamente pelos sujeitos
sociais, pressupondo a intencionalidade educativa
do uso das tecnologias, a metodologia da ação co-
laborativa e a meta do pleno exercício da liberdade
de expressão dos atores sociais”. (SOARES, 2002,
p. 115).

Para designar o campo emergente surge o termo “Edu-


comunicação”, resultado de um processo de ressemantização.
O termo já era usado por Mario Kaplún e Maria Helena Her-
mosilla, em 1980, para designar a “educação para os meios”.

Ao considerar que uma formação em Educação


para os Meios contribuiria poderosamente para que
os licenciados em Comunicação Educativa con-
quistem este perfil, sugerimos que os alunos desta
orientação recebam uma formação específica nesta
área, já que neste caso, se trata de muito mais do
que referências indispensáveis, mas de uma disci-
plina fundamental a formação integral dos Edu-co-
municadores. 2

No Brasil, o que marcou o termo “Educomunicador”


foi o fato de o campo da Comunicação não contar, até aquela
data, final dos anos 1990, com nenhuma formação específica
de educador. As universidades formavam Jornalistas, profis-
sionais de Relações Públicas, Publicitários, Radialistas e, no
início dos anos 2000, especialistas em Mídias, como o curso
de Mídias da Universidade Federal Fluminense – UFF. Até o
2 KAPLÚN, Mário; HERMOSILLA, Maria Elena. La Educacion para los médios em La for-
macion del comunicador social, Montevideo, Uruguay: Fundación de Cultura Universitária
Licenciatura de Ciências de La Comunicación de La Universidad de La República, 1987, p.56.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

339
início de 2000 não existia uma formação para o Comunicador
Educador ou o Educomunicador.
Soares, ao apresentar o termo Educomunicação, insere
o debate sobre a necessidade de formar um especialista que
atue na inter-relação Comunicação e Educação, segundo ele,
se configura em cinco áreas de atuação, todas unidas por uma
só filosofia: a de ampliar a prática da cidadania mediante a
aprendizagem sobre como aplicar a gestão participativa e de-
mocrática dos recursos da informação nos espaços educativos.
No caso, cada uma das áreas volta-se para um aspecto
dessa proposição. São elas:

• a área da expressão comunicativa por meio do uso dos


recursos da informação e das artes. Trata-se do esforço de
grupos em buscar novas formas de expressão que superem
a escrita. As artes corporais ou as possibilidades ofereci-
das pelas novas tecnologias ampliaram, substancialmente,
o potencial expressivo das comunidades humanas. O que
se busca, contudo, não é simplesmente a performance dos
indivíduos, mas o resgate de seu poder comunicador ou de
sua capacidade de expressão;
• a área da educação para a comunicação, configurada
nos esforços sistemáticos de educadores para colaborar
com os usuários dos meios massivos, na formação do que
Paulo Freire denominou “consciência crítica” em face das
mensagens editadas e veiculadas por poderosos sistemas
de comunicação. Esta área também pode ser denominada
PARA COMUNICAR O INCOMUM

340
como recepção ativa – classificação mais de acordo com os
estudos e pesquisas de recepção;
• a área da mediação tecnológica nos espaços educativos,
constituída pelos esforços para identificar a natureza da
interatividade propiciada pelos novos instrumentos da co-
municação e para democratizar o acesso às tecnologias,
desmistificando-as e colocando-as a serviço de toda a so-
ciedade;
• a área da gestão da comunicação nos espaços educa-
tivos, caracterizada pela abordagem sistêmica das rela-
ções entre os recursos da comunicação e as atividades
humanas, garantindo o planejamento e uma implemen-
tação organizada dos recursos da informação, de modo a
assegurar a eficácia na construção dos ecossistemas co-
municativos A área da gestão da comunicação nos espa-
ços educativos é a que garante coordenação e eficiência
às demais áreas, permitindo que se obtenha visibilidade
para as ações educomunicativas. Entende-se por gestão
a organização de projetos e ações que busquem uma me-
lhor comunicação interna nos espaços. Neste sentido, o
gestor não tem como objetivo garantir a expressão, nem
a leitura ou a mediação, mas a comunicação na busca de
soluções criativas de problemas;
• a área da reflexão epistemológica sobre o campo da Edu-
comunicação, que inclui a pesquisa e a avaliação sistemá-
tica, destinadas a compreender a complexidade das rela-
ções entre comunicação e educação.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

341
Para Soares, a Educomunicação abrange práticas que
tenham como objetivo a ampliação da autonomia dos sujeitos
sociais por intermédio da comunicação ou dos recursos da
informação. Neste sentido, os objetivos ou os pressupostos
de todo projeto que se autodenomina educomunicativo deve,
no mínimo, prever:

1) o “empoderamento” das pessoas para se expressarem e,


portanto, para se apropriarem dos recursos midiáticos, a
partir do seu ponto de vista e dos seus próprios projetos e
interesses;
2) a aplicação do diálogo entre os agentes no processo educa-
tivo, com a promoção das capacidades e habilidades pree-
xistentes, mas pouco desenvolvidas, tendo como resultado
o uso cada vez mais intenso das novas tecnologias e de
novas linguagens na interação humana e grupal;
3) a formação dos agentes educacionais para a mediação so-
cial de conflitos e para a promoção de valores de solidarie-
dade social;
4) a ampliação da capacidade dos agentes culturais para a dis-
cussão de temas transversais e próximos ao cotidiano so-
cial, tais como sexualidade, direitos, cidadania, violência,
meio ambiente, entre outros;
5) a promoção da gestão participativa dos processos comuni-
cativos.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

342
Pressupõe, também, que novas subjetividades sejam
desenvolvidas:
a) a ampliação do coeficiente comunicativo dos sujei-
tos,
b) o fortalecimento da noção de cidadania como meta
a ser alcançada,
c) a abertura para a convivência em cenários de com-
plexidade social, e
d) a motivação para o exercício do protagonismo.

Soares sugere que o ecossistema comunicativo, uma vez


implantado ou proposto nos espaços educativos, melhora a rela-
ção dos agentes que atuam na escola. O aluno passa a participar
de forma crítica, discutindo e refletindo sobre as suas inquieta-
ções. O professor, por sua vez, passa a ter uma relação menos
hierarquizada com o aluno e também começa a conhecer e res-
peitar ideias e valores deste. O avanço, para o ambiente escolar,
estaria na capacidade do Educomunicador em promover práti-
cas que fossem consideradas comunicativas.

A Nova Teoria da Comunicação

Ciro Marcondes Filho, nos últimos vinte anos, vem


realizando pesquisas com o objetivo de criar uma teoria para a
comunicação. Na caminhada, Marcondes Filho visitou vários
filósofos, com o intuito de conhecer suas reflexões e análises.
Entre os filósofos estudados estão Martin Buber e Emmanuel
PARA COMUNICAR O INCOMUM

343
Levinas. O primeiro escreve sobre a relação “Eu-Tu”; o segun-
do, sobre a alteridade.
Foi Marcondes Filho quem nos apresentou Buber e sua
discussão acerca da relação “Eu-Tu”. Antes, porém, foi neces-
sário estudar também Martin Heidegger e Edmund Husserl.
Com Heidegger, escreve Marcondes Filho, estamos diante de
uma relação dos signos que ultrapassa a mera significação (o
jogo e a síntese entre um significado e um significante) e que
tampouco cai na metafísica, por isso é importante entende-lo.
A relação dos signos, em Heidegger, busca apreender
uma existência mutante, transformante, continuamente viva e,
por isso mesmo, impossível de ser fixada sob um nome, um con-
ceito, uma noção. A noção heideggeriana de ser imagina esse
ser mais como verbo do que como substância, ser como vida
inapreensível, mas real. O Ser, existência, não é um constructo.
Significado e significante, associados em um signo,
são capazes de construir uma relação de significação. A sig-
nificação é como nós decodificamos esse signo, extraindo um
entendimento do que se pretende dizer. Por exemplo, quando
pronunciamos a palavra “casa”, quem ouve entende e visualiza
mentalmente um tipo de casa, que pode ser grande, pequena,
no campo ou na cidade.
O significante é arbitrário, e o significado, ao seu modo,
também é, explica Marcondes Filho. Cada um faz a ideia de
casa conforme a sua referência. “Por isso, a significação é uma
tradução muito precária do signo. Ela é expressamente linguís-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

344
tica, quer dizer, restringe-se ao campo de uso da linguagem e
ao momento e lugar de seu uso.”
Edmund Husserl distingue, em sua fenomenologia,
duas dimensões diferentes do signo: noese e noema. Para Hus-
serl, quando deparamos com o mundo, temos uma primeira
intuição sensorial, uma apreensão imediata da realidade que
nos rodeia: as coisas sensibilizam nossos sentidos. O fato que
registramos como apreensível, que nos impressiona, é denomi-
nado fenômeno: é dele que podemos extrair uma interpretação.
Marcondes Filho nos auxiliou a compreender melhor
a questão do apreender pelos sentidos. Quando eu olho uma
árvore, explica ele, e esta é uma macieira que está diante de
mim, meu cérebro constitui a noese da macieira, e eu extraio
de múltiplos detalhes uma ideia geral da árvore, eu a reco-
nheço. Isso me faz dizer: “Gente, vejo uma macieira!”. Nesse
momento, ele continua, estou preenchendo uma significação,
estou cruzando um referente com um significado. Estes me
dão a ideia de um significado. Isso tudo, conclui o autor, como
sabemos, constitui uma relação de significação.
A expressão, para Husserl – continua Marcondes Filho
–, será o nível mais abstrato de captação da mesma árvore; será
a atribuição de um sentido. “Exprimir”, como a própria palavra
diz, é pôr para fora (ex-primir). Trata-se de juntar a um objeto
externo e à sua representação uma noção de intencionalidade.
Husserl pretende, com seu conceito de noema, dizer
que o sentido é algo que a consciência “doa” à coisa; algo que
seria a própria intenção da significação; algo que visa preen-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

345
cher a significação. Para Marcondes Filho, significações mera-
mente linguísticas são enganosas. Não é possível confiar ape-
nas no enunciado. Segundo o autor, este foi o grande equívoco
da linguística: acreditar que, ao isolar a língua, poderemos
compreender a comunicação. O sentido além da significação é
algo que vai muito mais longe do que supõe o signo.
Podemos dizer que o real é constituído de duas dimen-
sões: uma mais ou menos fixa, assentada, comportada, fácil de
ser apreendida e entendida; e a outra, não tão presa, não tão
ligada às coisas, fugidia, difícil de capturar. Esta última, por
escapar sempre, contém um “elemento louco em seu interior”.
Podemos expressar também de outra maneira: há certas rela-
ções que estão numa superfície “física”, enquanto outras estão
numa superfície “metafísica” (metafísica aqui no sentido do
sublime, do etéreo, do inefável, daquilo que não pode ser dito
pela linguagem).
O que definimos por “sentido”, escreve Marcondes Fi-
lho, apresenta-se em plano diferente daquele mais elementar
que chamamos de “significado”. Enquanto na significação as
coisas “estão lá”, no sentido, continua ele, as coisas se produ-
zem naquele momento: é um evento mágico, ele não é algo que
já exista e está sempre lá. Trata-se de uma criação, algo que se
constrói no momento em que a coisa acontece. “Não se diz que
os acontecimentos tenham sentido, mas eles fazem o sentido.”
Segundo Marcondes Filho:
PARA COMUNICAR O INCOMUM

346
Um grande escritor não é aquele cujo livro eu en-
tendo, mas aquele que, através de seu livro, me faz
mudar a cabeça e a maneira de ver das coisas. Ele
não produz significações, ele produz sentidos. O
sonho, por exemplo, não significa nada exatamen-
te mas ele mexe conosco, nos incomoda, funciona
para algo, ele tem sentido. (...) Sentido é o espaço
de liberdade do sistema, o campo novo, do inusita-
do, da quebra de padrões; significações é o campo
das repetições, das fórmulas conhecidas, da redu-
ção às relações sígnicas. 3

Reale e Antiseri escrevem que, entre as críticas mais


frequentes a Heidegger, estão a tortura a que ele submete a
linguagem, a arbitrariedade de suas etimologias “relativas” e a
sua obscuridade; entretanto, conta Hans Georg Gadamer:

Com as lições de Heidegger, “os olhos se nos abriam


(...). Quando Heidegger ensinava, viam-se as coisas
diante de nós, quase como se pudessem ser pegas
fisicamente’. Quem poderá esquecer, pergunta Ga-
damer, ‘a frenética voragem de perguntas que ele
desenvolvia nas aulas introdutórias do semestre,
para depois enredar-se completamente na segunda
ou na terceira dessas perguntas, enquanto somente
nas últimas aulas do semestre é que se adensavam
as escuríssimas nuvens das quais partiam os relâm-
pagos que nos deixariam meio estupefatos”?4

Para Marcondes Filho, “sentido”, “expressão” e “noe-


ma”, todos esses termos repetem a ideia de que, fora e além da
3 MARCONDES FILHO, Princípio da Razão Durante: por uma teoria do acontecimento em
comunicação, 2010.
4 Hans Georg Gadamer apud REALE; ANTISERI, 2005, p. 592.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

347
linguagem, ele sente as coisas em sua forma mais plena, ele
as vivencia de corpo e alma. Ao contrário do que a racionali-
dade ocidental se propõe realizar, o sentir não está na ordem
do mensurável, da interpretação, e esta talvez seja a grande
diferença entre significado e sentido.
Na concepção de Lévinas5, que continua pelos cami-
nhos da fenomenologia, assim como para os bergsonianos, a
significação não se separa do acesso que ela conduz. O acesso
faz parte da própria significação, porém a racionalidade nada
disso compreende. Tanto em Heidegger como em Lévinas en-
contramos uma forte crítica à racionalidade ocidental, que ex-
clui o que é da ordem do insondável.
Para o pensador, os andaimes nunca são tirados e a es-
cada jamais é retirada. Enquanto alma platônica, liberada das
condições concretas de sua existência corporal e histórica,
pode alcançar as alturas do Empíreo (Empyrée) para contem-
plar as ideias; enquanto escravo – conquanto “entenda o gre-
go” que lhe permita entrar em relação com o mestre –, chega
às mesmas verdades que o mestre. Os contemporâneos, conti-
nua Lévinas, pedem ao próprio Deus que passe pelo laborató-
rio, pelos pesos e medidas, pela percepção sensível e até pela
série infinita de aspectos em que o objeto percebido se revela,
se Ele quiser ser um físico.
Voltamos ao imensurável, àquilo de que a racionalida-
de abre mão por não conseguir entender ou encerrar em uma
totalidade. Nessa perspectiva, não somos nós que comunica-
5 LÉVINAS, Humanismo do outro homem,1993, p. 35.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

348
mos, passamos, transferimos ou compartilhamos. A comuni-
cação é acontecimento.
O acontecimento comunicacional é apreendido como
sentido: “aquilo que nos toca” é extralinguístico, não cabe nos
estudos sobre significação, diz Marcondes Filho. Assim como
a tomada de consciência não é algo que acontece fora do ser,
a consciência é o ser. A comunicação não é necessariamente
diálogo. Este é o que acontece entre as pessoas, é a atmosfera,
a cena, mas entre as pessoas circula algo, e esse algo é o que
Marcondes Filho chama de acontecimento.
A comunicação é um acontecimento. Um acontecimen-
to que produz o novo. A emergência do nunca-antes-dado, da-
quilo que marca o inusitado, o inesperado, o incomodante, o
perturbador, o ‘irritante. Há, atualmente, nas discussões sobre
o campo da Comunicação preocupações duais. São inquieta-
ções sérias e verdadeiras do ponto de vista de quem as reali-
zam. Porém estão centradas na discussão do que é a comuni-
cação na tradição da racionalidade ocidental.
A dualidade está nos extremos (ou isso é, ou isso não
é), não buscando o caminho do meio, ou o caminho que vai
pensar sobre a comunicação do ponto de vista fenomenológi-
co. O que é a comunicação? As preocupações dualistas aca-
bam tornando-se tão rígidas que procuram tudo comprovar e,
consequentemente, nomear. Em decorrência disso, perde-se o
insondável, o movimento.
Segundo Marcondes Filho, no caso da comunicação,
a estratégia da neutralização pelo conceito, pelo nome, bus-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

349
ca tranquilizar, assegurar, acalmar os espíritos mais excitados.
Não obstante, ao mesmo tempo, cala a fulguração inovadora
do acontecimento.
No campo do saber, particularmente na academia, as-
sim como no campo da sociedade em geral, a emergência do
novo desestabiliza relações de poder e de legitimidade esta-
belecidas. A reação é tentar reprimir o novo, especialmente o
que é marginal, o que não é considerado e que ainda se rebela
contra uma ordem lógica:
A busca teórica de Marcondes Filho vê a comunicação
como “a emergência incansável do novo”, “eterna indetermina-
ção”, “jogo de significações flutuantes”, “disputa entre corpo e
a fala”, “símbolos e índices”, “enunciados e enunciação”, “co-
municação e informação”, “analógico e digital”. O desafio, diz
Marcondes Filho, é conseguir pensar em uma ciência transitória.
Um saber que se dedique ao instável, àquilo que só se mostra
neste exato momento por efeito das forças que interagem aqui
e agora. Dessa maneira, esse processo nunca será capturado em
sua totalidade, pois é sempre transitivo, escapa entre os dedos.
Marcondes Filho, do ponto de vista filosófico, consi-
dera necessária uma ciência do movimento, do transitório, um
saber da própria mutação, um conhecimento que captasse as
coisas em suas mudanças permanentes. Os acontecimentos co-
municacionais não são somente novos, ágeis, inesperados; não
estão apenas em movimento, transitórios, mutantes eternos.
São também inesperados. “Sua temporalidade é sem presente”
– o efêmero já aconteceu:
PARA COMUNICAR O INCOMUM

350
Marcondes Filho nos diz que além das palavras emitidas
no diálogo, circulam sensações, emoções, desejos, interesses,
curiosidades, percepções, estados de espírito, intuição, humo-
res, uma indescritível sensação de “coisa comum”. Quando as
pessoas estão desinteressadas, não querem convencer, seduzir
e muito menos dominar, há, então, a possibilidade do diálogo.

Entre-cruzilhadas

Retomando Soares, na apresentação do termo Educo-


municação, lembramos que princípio que norteia a prática do
especialista, do educomunicador, na inter-relação Comunica-
ção e Educação se configura em cinco áreas de atuação e todas
estão unidas por uma só filosofia: a de ampliar a prática da
cidadania mediante a aprendizagem sobre como aplicar a ges-
tão participativa e democrática dos recursos da informação nos
espaços educativos.
Práticas, vivências não carregam um significado espe-
cífico. Podemos explicar o que, para nós, significa cidadania,
mas o que é viver como um cidadão? Será que o educomuni-
cador ensina ou mesmo, faz a mediação, entre o que se entende
por democracia e autoritarismo? É possível orientar para o uso
da informação?
Para Marcondes Filho há diferenças entre o que sinali-
za, informa e comunica. A sinalização é algo que está ali, como
nuvens escuras no céu que sinaliza a possibilidade de chuva.
Um radialista pode informar a previsão do tempo: vai chover
PARA COMUNICAR O INCOMUM

351
hoje! Porém, a relação que estabelecemos com as nuvens car-
regadas e a possibilidade de chuva é um acontecimento impro-
vável e impreciso, para o desespero de vários comunicadores.
No campo da Comunicação controlar o fenômeno co-
municacional é algo desejado. Na chave do desejo de poder,
aquele que domina a comunicação, pode conduzir as pessoas.
Desestabilizar o especialista em comunicação, relativizar o
seu poder e colocá-lo em um lugar de insegurança é algo que
não o agrada. O mesmo vale para o educador.
A comunicação compreendida como acontecimento
nos apresenta a relação dialógica. Porém “diálogo” não como
“troca” ou “compartilhamento”, mas como algo que circula.
Para compreender a noção de diálogo Ciro Marcondes visitou
um antigo filósofo chamado Martín Buber.
Segundo Buber, o mundo das relações realiza-se em
três esferas: a vida com a natureza, a vida com os homens e
a vida com os seres espirituais, especialmente pelo fato de o
homem não ser uma coisa entre coisas ou formado por coisas.
Ele não é um simples Ele ou Ela limitado por outros Eles ou
Elas, um ponto inscrito na rede do universo de espaço e tempo.
“Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável,
descritível, um feixe flácido de qualidades definidas. Ele é Tu,
sem limites, sem costuras, preenchendo todo o horizonte. Isto
não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo
o mais vive em sua luz.” 6

6 Ibid., p. 57.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

352
Buber escreve que, diante da imediatez da relação, “to-
dos os meios terminam sem significado, não importando tam-
bém que meu Tu seja ou possa se tornar, justamente em virtude
de meu ato essencial, o Isso de outros “Eus” (‘um objeto de
experiência geral’)”.7 Ou seja: estar presente no momento de
proferir o Tu é fundamental. Buber explica:

Com efeito, a verdadeira demarcação, sem dúvida


flutuante e vibrante, não se situa entre a experiência
e a não experiência, nem entre o dado e o não dado,
nem o outro mundo do ser e o mundo do valor, mas
em todos os domínios entre o Tu e o Isso; entre a
presença e o objeto.
O presente, não no sentido de instante pontual que
não designa senão o término, constituído em pen-
samento, no tempo ‘expirado’ ou a aparência de
uma parada nesta evolução, mas o instante atual e
plenamente presente, dá-se somente quando existe
presença na mente presente, dá-se somente quan-
do existe presença, encontro, relação. Somente na
medida em que o Tu se torna presente a presença
se instaura.8

Ao contradizer a metodologia clássica acadêmica, Bu-


ber afirma que: “o essencial é vivido na presença, as objetivi-
dades no passado”. Ele não está falando de, ou para um, Eu
objeto, mas de/para um Eu que é você, que sou eu. Um homem
que é atual, que atravessa o mundo das ideias, pois, segundo
Buber, a humanidade se reduziu a um Isso, nada tendo em co-

7 Ibid., p. 59.
8 Ibid., pp. 59-60.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

353
mum com a humanidade verdadeira e encarnada: aquela em
que o homem diz verdadeiramente Tu.
Ao contrário do que possa aparentar, Buber busca es-
capar da religião, assim como da fixação de um Estado para o
povo judaico:

Na tradição do pensamento messiânico-socialista e


de um ateísmo místico que apostava numa fantasia
internacionalista de libertação, o que importa, de
fato, é a forma como o homem se relaciona com seu
semelhante, como considera essa alteridade, como
sai de si e entrega-se à relação a partir do reconhe-
cimento do outro.9

Buber não procura o diálogo para a emancipação ou li-
bertação e nem espera que a relação “Eu-Tu” ocorra após a re-
volução ou se anteceda a ela. Nas palavras de Buber: “Tomo a
quem me ouve pela mão e o encaminho à janela. Abro a janela
e aponto para o que está lá fora. Não tenho nenhuma doutrina,
mas mantenho uma conversação.”10 Não há a intenção, muito
menos maniqueísmos, estratégias, intencionalidades.
Quando se fala em diálogo, geralmente se pensa em
duas ou mais pessoas conversando, mas o Eu-Tu, em Buber,
não é o Eu que conversa com o Tu em uma troca de palavras. A
palavra-princípio indica como o “Eu” se relaciona com o “Tu”.
Na perspectiva racionalista, surge a pergunta: “Como”
acontece esse diálogo? Primeiramente é necessário perceber

9 MARCONDES FILHO, O princípio da Razão Durante, 2010.


10 Martin Buber, 1991, p. 693 apud MARCONDES FILHO, op. cit., p. 361.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

354
que, para Buber, é a existência de um Tu que justifica e cons-
titui a existência de um Eu. “Dia-logos” é igual a lugar do
encontro, espaço do “entre”.
O diálogo é o lugar ou o espaço onde o encontro acon-
tece, é o “entre”. Entre o Eu e o Tu há um espaço, e é dele que
estamos falando. Para Buber, o “entre” é o lugar onde o espí-
rito habita, algo que acontece entre pessoas: o homem habita
o amor.
O “entre” é onde habitamos, onde sentimos, lugar onde
encontramos o outro. O diálogo é o entre em que o Eu pode
acolher o outro, trazê-lo para dentro, deixar que o outro entre
em mim e me amplie.
É, porém, na relação “Eu-Tu”, e não “Eu-Isso”, que o
Eu permite ver o outro, perceber o outro, ser ampliado pelo
“outro”. Trata-se de um local em que as perspectivas deslizam
de um ao outro e vice-versa, onde meu interlocutor extrai de
mim pensamentos que eu não sabia possuir.
O diálogo é o espaço onde o Eu permite que o outro
se mostre, o atravesse, “onde deixo com que o outro extraia
de mim o que eu nem sabia possuir”. Para que isso aconte-
ça, é necessário não querer nada do outro: nem formá-lo, nem
possuí-lo, muito menos dominá-lo, instruí-lo, ou ainda querer
libertá-lo.
Ao contrário do que pensamos na Educomunicação, o
diálogo, vindo das propostas de emancipação, não deve ser
o espaço para alguma coisa, mesmo que seja para propósitos
considerados positivos, como o político. O diálogo é o espaço
PARA COMUNICAR O INCOMUM

355
do “Eu-Tu”, onde deixo que o Tu me atravesse. Isso é de pro-
funda importância. A riqueza e a profundidade da Educomuni-
cação estão no criar ambientes para o diálogo franco e aberto
para a participação de todos, sem que exista nisso nenhuma
pretensão de captura.
Martín Buber, apresentado por Marcondes Filho, nos
vira de cabeça para baixo. Buber, ao tentar explicar o diálogo,
conta um sonho que se repete:

Com toda espécie de variações, às vezes depois de


um intervalo de alguns anos, repete-se para mim o
mesmo sonho. Dou-lhe o nome de sonho do duplo
apelo. O ambiente em que ele decorre permanece
sempre semelhante; é um mundo pobre em aparatos,
“primitivos”: encontro-me numa grande caverna,
como as Latomias de Siracusa, ou numa construção
de taipa que me lembra, ao acordar, as aldeias dos
felás; ou então na orla de uma floresta tão gigantesca,
que não me recordo ter visto jamais uma semelhante.
O sonho começa, no início das mais diversas formas,
mas sempre, no início, algo extraordinário me acon-
tece: por exemplo, um pequeno animal, com aparên-
cia de um filhote de leão cujo nome conheço no so-
nho mas não ao acordar, dilacera-me o braço e eu só
o domino com dificuldade. Ora, o estranho é que esta
parte do enredo do sonho, a primeira e de longe a de
mais interesse, tanto pela sua duração como pela sig-
nificação exterior dos acontecimentos, desenrola-se
sempre num ritmo galopante, como se ela não fos-
se importante. E então o ritmo torna-se, subitamen-
te, mais lento: eu estou aí e lanço um apelo. A visão
global que tenho dos acontecimentos quando estou
acordado deveria certamente fazer-me supor que,
segundo os fatos que o precederam, o apelo fosse
PARA COMUNICAR O INCOMUM

356
ora alegre, ora assustado, ou ainda ao mesmo tempo
doloroso e triunfante. Pela amanhã, todavia, minha
memória não me reporta este apelo tão marcado por
sentimentos nem tão rico em mutações; é toda vez o
mesmo apelo, não articulado, mas de um ritmo rigo-
roso, ressurgindo de quando em quando, inflando até
atingir uma plenitude que minha laringe, em vigília,
não suportaria; longo e lento, totalmente lento e mui-
to longo, um apelo que é uma canção – e, quando ele
termina, meu coração cessa de bater. Mas, então, em
algum lugar ao longe, dirige-se a mim outro apelo;
um outro e o mesmo; o mesmo, chamado ou cantado
por outra voz, e não obstante não o mesmo; não, não
é, de forma alguma, um ‘eco’ do meu apelo, é mui-
to mais sua verdadeira réplica, não repetindo, som
após som, os meus sons, nem de uma forma enfra-
quecida, mas correspondendo, respondendo a eles –
tanto assim, que os meus sons, que ainda pouco não
soavam nada interrogativo ao meu próprio ouvido,
aparecem agora como interrogações, uma longa série
de interrogações, que agora recebem todas uma res-
posta não interpretável tanto a resposta quanto a per-
gunta. E entretanto os apelos que respondem àquele
um e mesmo apelo parecem não ser igual entre si. A
voz é, a cada vez, uma nova voz. Mas, agora que a
resposta está terminada, no momento em que o som
acaba de se desvanecer, invade-me uma certeza, uma
certeza autêntica de sonho: Eis que acontece. Nada
mais. Apenas e precisamente isto, exatamente assim:
Eis que aconteceu. Se eu tentasse esclarecer os fatos
diria: é somente agora, com a réplica, que se deu, de
forma real e indubitável, aquele acontecimento que
produzira o meu apelo.11

11 BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico, Tradução: Marta Ekstein de Souza Queiros e


Regina Weinberg. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 34.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

357
Buber diz que o sonho se repetiu até a última vez:

De início, tudo se deu como sempre (era o sonho do


animal) meu apelo extinguiu-se e novamente meu
coração parou. Mas, então, houve o silêncio. Não
veio réplica alguma. Agucei o ouvido, porém não
percebi nenhum som. É que, pela primeira vez eu
esperava a resposta que sempre me surpreendera,
como se eu dela não tivesse jamais tido a experiên-
cia; e a resposta esperada não veio. Mas, eis que
agora algo aconteceu comigo: como se até então
eu não tivesse possuído outras vias de acesso en-
tre o mundo e os meus sentidos a não ser aquelas
que passam pelos ouvidos, eu me descobria agora
como um ser puro e simplesmente provido de sen-
tidos, sentidos revestidos de órgãos e sentidos nus;
ofereci-me assim ao espaço distante, aberto a toda
recepção, a toda percepção. E então veio, não deste
espaço distante, mas do ar bem próximo a mim, eis
que veio, silenciosamente, a resposta. Para dizer a
verdade, ela não veio, ela aí estava. Ela já aí es-
tava – talvez possa dizê-lo à guisa de explicação
– antes do meu apelo; ela estava simplesmente aí e
deixou-se acolher por mim agora que me abri para
ela. Eu a percebi de uma forma tão plena, como só
percebera a réplica nos meus sonhos anteriores.
Se devesse relatar por que meios isto se deu, seria
obrigado a dizer: por todos os poros do meu corpo.
Como somente o fizera a réplica num dos sonhos
anteriores, a resposta correspondia, respondia. Ela
ainda a ultrapassava numa perfeição desconhecida,
difícil de se definir, justamente pelo fato de já aí
estar. Quando eu tinha terminado de acolhê-la, sen-
ti novamente, com mais percussão do que nunca,
aquela certeza: Eis que aconteceu. 12
12 BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico, 2007, p. 35.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

358
Como explicar o diálogo que acontece, que se cruza
nos sentidos e que somente estes conseguem perceber? Tarefa
difícil e árdua para ser executada pela palavra escrita, pois esta
tudo quer nomear, explicar.
Buber auxilia-nos neste particular “entender” se possí-
vel o diálogo. Ao contar o seu sonho, faz que nos transporte-
mos a uma narrativa, a um local sinestésico, em que os sentidos
são essenciais, contudo só aquele que está aberto compreende-
rá e, simultaneamente, perceberá que a recepção exige o aco-
lhimento e não o “entendimento”. É necessário abrir-se para
ouvir, para perceber, tanto a pergunta quanto a resposta, e isso
cabe ao sonho narrado por Buber.
Para Buber, o falar realizado de um para o outro, mes-
mo sendo de maneira ardorosa, não constitui conversação. As-
sim, a conversação não necessita de som e nem sequer de um
gesto, pois a linguagem pode renunciar a toda mediação de
sentidos e assim é linguagem. “Mas o diálogo humano pode
existir sem o signo, apesar de ter neste, isto é, no som e no
gesto, a vida que lhe é própria (...) esta existência sem signo,
todavia, não tem forma objetiva captável”.13
Buber diz que não pode transmitir ao leitor, sob forma
de conceitos, aquilo de que o seu livro sobre o diálogo e dialó-
gico trata e, por isso, tenta representar por meio de exemplos.
“O diálogo não se limita ao tráfego dos homens entre si; ele
é – é assim que demonstrou ser para nós – um comportamento

13 Ibid., pp. 36-37.


PARA COMUNICAR O INCOMUM

359
dos homens um-para-com-o-outro, que é apenas representado
no seu tráfego.” 14
Mesmo que se possa prescindir da fala, da chamada
comunicação, há, contudo, um elemento que parece pertencer,
indissoluvelmente, à constituição mínima do diálogo, de acor-
do com seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior,
ou seja, o receptor necessita desejar o diálogo, estar aberto
perceptivamente. Trata-se de uma questão fundamental para
quem ambiciona trabalhar com Educomunicação:

É válido distinguir três maneiras pelas quais po-


demos perceber um homem que vive diante dos
nossos olhos. (não me refiro a um objeto científi-
co, pois não falo aqui de ciência) O objeto da nossa
percepção não precisa saber nada a nosso respeito e
nem saber da nossa presença; é indiferente aqui se
ele tem um relacionamento ou um comportamento
para com a percepção. 15

Segundo Buber, há três espécies de diálogo:


O autêntico, que não importa se é falado ou silencioso,
em que cada um dos participantes tem de fato em mente o ou-
tro ou os outros na sua presença e no seu modo de ser, e a eles
se volta com a intenção de estabelecer uma reciprocidade viva.
O diálogo técnico, que é movido unicamente pela ne-
cessidade de um entendimento objetivo, é o monólogo disfar-
çado de diálogo, aquele em que dois ou mais homens, reunidos
num local, falam cada um consigo mesmo, por caminhos tor-
14 Ibid., p. 40.
15 BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico, 2007, p. 41.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

360
tuosos, estranhamente entrelaçados e acreditam ter escapado
ao tormento de ter que contar apenas com os próprios recursos.
A terceira espécie de diálogo consiste naquele em que
os pensamentos não são expressos do modo como existiam
na mente, mas que, no ato de falar, são tão aguçados que po-
dem acertar o ponto mais sensível, e isso sem considerar os
indivíduos com quem se fala como pessoas presentes. Uma
conversação que não é determinada nem pela necessidade de
comunicar algo, nem pela de entrar em contato com alguém,
mas unicamente pelo desejo de ver confirmada a própria au-
toconfiança, decifrando no outro a impressão deixada, ou de
tê-la reforçada quando vacilante.16
O diálogo não pode ser provocado mecânica e estrate-
gicamente, muito menos como forma para capturar o outro. O
que pode ocorrer é exercermos uma saída de nós mesmos em
direção ao outro. Para isso, é necessário partir do nosso pró-
prio interior; é preciso estar em si mesmo e daí realizar o que
Buber nomeou de movimento básico: voltar-se-para-o-outro.17
Para Buber, a relação dialógica entre duas pessoas é
entrega, mas, acima de tudo, é imersão, é um mergulhar na
praia (e não somente contemplá-la), porém não projetado para
o futuro, e sim no instante. É estar presente na sua totalidade.
David Bohm18 retoma, mais recentemente, a impor-
tância do diálogo. Trata-se do lugar de criação do novo: uma
relação de duas ou mais pessoas em que os interlocutores fa-
16 Ibid., p. 54.
17 BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico, 2007, p. 56.
18 BOHM, David. Diálogo: comunicação e redes de convivência, 2005, p.34.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

361
zem algo comum, dando espaço ao aparecimento desse novo.
Não se trata, de forma alguma, de troca de ideias ou pontos de
vista como fragmentos de informação. Bohm diz que o diálo-
go pode ocorrer com qualquer número de pessoas, até mesmo
com quem está sozinho. “Mesmo uma só pessoa pode ter o
sentimento dialógico dentro de si, se o espírito do diálogo esti-
ver presente.” Acrescenta o pesquisador:

Trata-se de algo inédito, que pode não estar presen-


te no ponto de partida. Esse significado comparti-
lhado é a “cola” ou “amálgama” que mantém juntas
as pessoas e as sociedades. Há, assim, um contraste
com a palavra “discussão”, que tem a mesma raiz
de “percussão” e “concussão”. Esse termo significa
quebrar, fragmentar. Dá ênfase à idéia de análise, na
qual podem existir muitos pontos de vista, e cada
indivíduo apresenta o seu, que difere do outro. E
assim eles analisam, estilhaçam.19

O diálogo é uma proposta, um estar presente e abrir-se


ao que o outro diz, dobrar-se, alteridade. Para isso, é necessá-
rio saber proferir a palavra-princípio “Eu-Tu”.
O Educomunicador nessa virada epistemológica não é
o que sabe ou conhece os instrumento da comunicação, dos
meios comunicacionais. Não é o que domina a comunicação,
ao mesmo tempo também não é o educador que ensina a como
usar os meios ou mesmo a capturar a comunicação. O Educo-
municador pode repensar os seus princípios, tomar o Outro em
relação dialógica, Eu-Tu.
19 Ibid.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

362
O Educomunicado tem poderes limitados sobre o Ou-
tro e sobre o que acontece, o que circula entre a linguagem, os
signos e os significados. Porém, ao mesmo tempo, o Educo-
municador pode “pensar sobre” o que compreende por comu-
nicação e educação, pode optar.
Ciro, com o FiloCom e com a Nova Teoria da Comu-
nicação retirou o lugar onde repousava as minhas certezas, me
fez duvidar do poder que um Ser tem sobre o Outro, me de-
sestabilizou e foi somente assim, na dúvida, na incerteza que
consegui pensar sobre esse nosso lugar que chamamos de Edu-
comunicação.
Aos companheiros e companheiras de caminhada obri-
gada! Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao cami-
nhar. Sigamos!

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SOUSA, Mauro Wilton de (org). Sujeito, o lado oculto do receptor. São


Paulo: Brasiliense; ECA-USP, 1995.
MÍDIA E METÁPORO NO MOVIMENTO
ARMORIAL: O (SER)TÃO NORDESTINO NUM
ACONTECIMENTO COMUNICACIONAL

Giselle Gomes1

“Sou o coração do folclore nordestino


Eu sou Mateus e Bastião do Boi Bumbá
Sou o boneco do Mestre Vitalino
Dançando uma ciranda em Itamaracá
Eu sou um verso de Carlos Pena Filho
Num frevo de Capiba
Ao som da orquestra armorial
Sou Capibaribe
Num livro de João Cabral”
(canção Leão do Norte, Lenine e Paulo Pinheiro)

1 Nascida em Recife, bacharel em Teologia pela Faculdade Kurios (2013), mestra pelo Pro-
grama de pós-graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento local – POSMEX da Univer-
sidade Federal Rural de Pernambuco (2017). Na área de Comunicação, atua principalmente
nos seguintes temas: Desenvolvimento local, mídia e cultura popular. Aluna especial do Pro-
grama de Doutorado em Comunicação na UNESP – campus BAURU.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

366
Pretendemos analisar de que forma a mídia impressa
de grande circulação, no caso o jornal Diário de Pernambuco,
faz a divulgação do Movimento Armorial em Recife – Per-
nambuco – Brasil. Especificamente, compreender o metáporo
como contribuição no Movimento Armorial para os contextos
populares, no caso do estudo, adotando uma abordagem crítica
nas análises verificadas na região metropolitana do Recife, na
Orquestra Cidadã do Coque. Como ferramenta metodológi-
ca, utilizou-se o roteiro de entrevista semiestruturado. Foram
utilizadas a pesquisa documental para construção do escopo
teórico sobre Movimento Armorial, metáporo e acontecimento
comunicacional. A pesquisa apresenta como resultados iniciais
que a divulgação do Movimento Armorial contribui para a va-
lorização da cultura local, no entanto evidencia-se fragilidades
materiais para o crescimento contínuo nos contextos populares
percebe-se mudança de mentalidade nos sujeitos. Revela-se
também que os saberes transmitidos pela mídia são de interes-
se público e desta forma o Acontecimento comunicacional se
torna evidente neste meio de comunicação, o qual configura-se
assim, como um bem público.
Um dos assuntos que tem tomado grande destaque nas
pautas mensais de notícias e matérias sobre cultura popular,
veiculadas pela mídia brasileira, estão relacionados ao Movi-
mento Armorial.
E sobre esse tema observamos, como argumenta o pro-
fessor Ciro Marcondes (2013), um Acontecimento comuni-
cacional, quando o autor considera Acontecimento, com letra
PARA COMUNICAR O INCOMUM

367
maiúscula, é por entender que não é apenas um fato, um episó-
dio, mas um momento de transformação, uma atmosfera que
a comunicação pode realizar e mudar as condições estabiliza-
das, ou ainda, impostas o qual interessa ao público os assuntos
relacionados à música e à história do Movimento, assim como,
as influências no decorrer desses cinquenta anos de existência
e resistência, ou seja, há uma interação do EU com o outro e
surge algo verdadeiramente novo.
Na sociedade atual, a comunicação desempenha um
papel estruturante. Em sua relação com a educação, Laan
Mendes de Barros (2011) nos convida a pensá-la para além
do conteúdo informativo que a vê apenas enquanto instru-
mento pedagógico. É preciso compreender a mídia imprensa,
neste caso o Jornal Diário de Pernambuco, como espaço de
educação informal em que as experiências cotidianas com as
manifestações comunicativas contribuem para a formação dos
sujeitos e, consequentemente, lança ao espaço formal algumas
provocações.
Percebe-se assim, uma diferença entre a informação
midiática e o acontecimento comunicacional pois uma, traz
notícias e lança informações ao mundo, o acontecimento co-
municacional indica a partir da notícia, mudanças de mentali-
dades e transformação de vida.
Sendo assim, o objetivo geral deste capítulo é reportar
pelos poros abertos que são sugeridos pelo metáporo, um qua-
se-método proposto por Ciro Marcondes Filho (2012), para
estabelecer um processo de fruição acerca das possibilidades
PARA COMUNICAR O INCOMUM

368
de representações da cultura a partir da mídia impressa do
Jornal Diário de Pernambuco, que vai além da comunicação
no sentido estrito, mas que gere com suas notícias, algo novo.
O Movimento Armorial, nasceu em um momento tor-
tuoso da história do Brasil, final da década de 1960, quando o
militarismo tomava conta do país, tentando controlar o povo
brasileiro com suas próprias forças armadas e precedido de um
projeto interrompido pela repressão política. É assim que nas-
ce um movimento com um desejo incomum de reunir toda a
arte de uma região desvalorizada pelas demais e que um dia
havia sido fonte de riqueza do país.
Segundo Silva (2010), a comunicação não é um fe-
nômeno recente. Durante o decorrer dos séculos, a raça hu-
mana desenvolveu inúmeras formas de comunicação para
diversas finalidades, tais como: interagir entre si, expressar
suas ideias e emoções, conviver em grupo e, sobretudo, para
registrar sua história.
No Nordeste do Brasil, surge o Movimento Armorial,
elaborado por Ariano Suassuna, nascido na Paraíba e criado no
sertão de Pernambuco. Veio para designar toda e qualquer arte
que identificasse a região que é vestida de sol. Tal movimento
passeia entre as raízes ibéricas, medievais, entre outras. A Arte
Armorial desde a xilogravura, a música, até as literaturas de
cordel, traz consigo a identidade e a valorização dos seus cria-
dores. Neste texto, faremos um recorte epistemológico com a
música do Movimento Armorial em contextos populares.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

369
Se a cultura, segundo Fabiano (2015), em seu sentido
mais amplo, estende-se às mais diversificadas manifestações,
desde as tradições herdadas pela escrita ou pela oralidade, em
nível popular ou mais erudito. Por meio dela também há uma
coletividade expressa e, assim, constitui a identidade de um
povo ou nação, conforme De Masi (2003), o bipolarismo de
classes, a família nuclear, a exclusão das minorias, dos jovens,
dos velhos, das mulheres, os usos e costumes que a sociedade
industrial substituiu com intransigência, resultam hoje igual-
mente inadequados a uma sociedade que é dominada pelos
fatores inovadores até aqui descritos e marcada pela exigência
de potencializar a criatividade por meio da organização.
O Movimento Armorial deriva da necessidade de se
inventar uma cultura da criatividade, a qual segundo De Masi
(2003) ultrapasse e substitua a cultura da executividade e um
conhecimento dos processos criativos de grupo que possa estar
ao lado do conhecimento individual valorizando, assim, cada
artista e a sua arte dentro do Movimento.
Dentro desses 50 anos de existência do Movimento,
considerando-se que esta diversidade compõe-se por integra-
ção, popular e erudito, limites e avanços, ingenuidade e so-
fisticação, um princípio dialético instaura-se em seu conjunto
para uma afirmação manifesta da vivência como experiência
coletiva do Movimento Armorial.
Segundo Martín-Barbero (2014), se antes o conheci-
mento era centralizado territorialmente, controlado por dispo-
sitivos técnicos e políticos, bem como relacionado a indivíduos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

370
de uma classe especial, o que vivemos agora é sua descentra-
lização. Em 1968, a construção do Movimento Armorial veio,
dentro dessa perspectiva, para quebrar esse controle e trazer
para os cantores populares, artistas, jovens e crianças do con-
texto popular uma oportunidade de transformação do seu futu-
ro através da arte e da cultura.
De maneira que essa estratégia de circulação do saber,
que se desarticula das instâncias tradicionais de produção/repro-
dução/legitimação, consiste em uma das mais profundas mu-
danças a serem vivenciadas. Passamos da construção de uma
comunicação verticalizada a partir da figura do emissor e do
receptor, para outro, de caráter fragmentado e disperso, no qual
os meios de comunicação, as novas tecnologias da comunicação
e informação e, sobretudo, a comunicação em si passam a exer-
cer um importante papel, sendo assim, a construção do conheci-
mento passa por um sujeito receptor, que é ativo, crítico e que
a partir das mídias, muda inclusive, o percurso de suas histórias
pessoais e no coletivo das comunidades populares.
Nossas indagações estão relacionadas a saber se a di-
vulgação do Movimento Armorial na mídia impressa com
ênfase nos aspectos do acontecimento comunicacional e no
metáporo é preocupação da mídia, evidenciado nas suas no-
tícias e De que maneira os contextos populares se apropriam
das informações para suas articulações, instituições e serviços
comunitários?
Conforme Ciro Marcondes (2012), em torno de 1900, a
chamada Escola de Chicago já dizia que a sociedade não pode
PARA COMUNICAR O INCOMUM

371
ser estudada fora dos processos de interação entre as pessoas e
que ela é constituída simbolicamente pela comunicação (Rü-
diger, 2009, p. 118). No momento em que os símbolos ganham
sentido, estabelecido no processo de comunicação, seres e coi-
sas tornam-se fonte de motivação.
Neste aspecto, escolhemos estudar sobre a veiculação
feita pelo Diário de Pernambuco. Justifica-se este trabalho por
tratar-se da relação entre a comunicação de massa e cultura
popular que é acessada por diferentes públicos, no entanto,
faremos o recorte no projeto da Orquestra Cidadã do Coque,
localizado na Região Metropolitana do Recife, Pernambuco,
cujo alguns educadores fizeram parte do grupo amostral para a
concretização da trajetória metodológica deste trabalho.
O arcabouço teórico para as análises obtidas empirica-
mente, recorremos a autores da área de comunicação e educa-
ção como: Marcondes (2009, 2012, 2011, 2002) Orozco Gó-
mez (2014), Laan Mendes de Barros (2011), Martín Barbero
(2014), entre outros.
Nesta oportunidade, não se deve perder de vista que o
Movimento Armorial ocorre na atualidade em contextos so-
ciais de comunidades que têm história, relações sociais, vida
econômica, entre outros. Conforme Benjamin (2017), a mídia
impressa não deve omitir tais aspectos, porque a sua produção
não se dá no vazio social e sim, na interação das pessoas com
seus sentidos, afetos e fruição.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

372
Metodologia

Na metodologia indicamos que é uma pesquisa explo-


ratória e qualitativa. Os instrumentos utilizados foram pesqui-
sa documental e uso de roteiro de entrevista semiestruturado.
Na trajetória metodológica utilizamos a análise documental e
para tanto escolhemos o uso exploratório de três jornais de
grande circulação na Região Metropolitana do Recife: Folha
de Pernambuco, Jornal do Commércio e Diário de Pernambu-
co. Posteriormente optamos por um único veículo por percebe-
mos a similaridade das matérias. O objeto estudado com mais
profundidade foi o Jornal Diário de Pernambuco. Uma das ra-
zões da escolha se deu pelo fato de ser o jornal mais antigo em
circulação na América Latina.
A pesquisa de campo aconteceu com a aplicação de um
roteiro de entrevista semiestruturado único que foi respondido
por seis educadores populares, sendo (07) sete educadores da
Orquestra Cidadã do Coque de um total de 10 educadores.
A escolha da amostra se deu a partir dos seguintes crité-
rios: área geográfica, por estar em área de vulnerabilidade so-
cial na Região Metropolitana do Recife, condição econômica,
sendo um projeto financiado pelos magistrados de Pernambu-
co (Orquestra Cidadã) e, finalmente, a valorização da cultura
local, com a Orquestra cidadã enfocando na música armorial.
Foram investigados duas categorias para análise em
eixos no questionário, a saber: a importância do Movimento
Armorial para o projeto e o Acontecimento comunicacional do
PARA COMUNICAR O INCOMUM

373
conteúdo veiculado. Para análise documental com jornais nos
inspiramos na técnica de análise de conteúdo Bardin (1977),
com as edições referentes ao período de maio de 2014 a de-
zembro de 2017.
Os resultados podem ser importantes para estudantes
de comunicação, professores e pesquisadores que trabalham
dentro da temática da Teoria da comunicação no Brasil, o me-
táporo e o acontecimento comunicacional na mídia impressa,
assim como para a sociedade em geral que tem interesse na
Cultura popular do Movimento Armorial e dos seus desdobra-
mentos como a Orquestra Cidadã do Coque.

Discussão

Na análise do Jornal Diário de Pernambuco, procura-


mos atender a um dos objetivos propostos na pesquisa e foi
verificado que as informações sobre o Movimento Armorial
estão presentes no caderno Viver e abordam questões da his-
tória do Movimento, suas relíquias de partituras musicais e
seus principais escritores, como Ariano Suassuna, criador do
Movimento, Raimundo Carrero, entre outros. Conforme Silva
(2014), o Movimento Armorial promoveu a recriação em di-
versas artes através da modelagem dos elementos das manifes-
tações populares nordestinas.
Sendo assim, segundo Gomes (2016), fica evidencia-
do a utilidade da mídia impressa como veículo promotor para
a cultura popular demonstrando a função social e a vocação
PARA COMUNICAR O INCOMUM

374
pedagógica exercida pelos meios de comunicação. E sobre mí-
dia e seu poder de divulgação introduzimos uma explicação de
Lima (2015), para qual mídia é um termo criado nos Estados
Unidos na década de 60 para designar o conjunto de veículos
e, por extensão, todo o sistema de comunicação de massa. Ele
corresponde à fonética do vocábulo latino media plural de mé-
dium (meio). A sua função ficou estabelecida no mundo todo
como sinônimo de processos e serviços desenvolvidos pelos
modernos meios de comunicação e por várias empresas que
dão suporte a estas atividades. Este sistema detém hoje um
grande mercado, uma lógica empresarial.
A abordagem crítica sobre as empresas midiáticas pas-
sa por uma referência importante que vem de Barbosa Lima
Sobrinho (1997), um dos grandes nomes da imprensa brasilei-
ra, revela que por intermédio da mídia é que se forma e se ma-
nifesta a opinião pública. Ele chama a imprensa de divindade.
O autor ainda diz que a mídia dirige as nações, ensina, educa,
dirige e inspira.
No entanto, para Régis Debray (2006), mídia designa
qualquer suporte de difusão maciça da informação seja im-
pressa, rádio, televisão, cinema, publicidade etc., o autor afir-
ma que:
A meu ver, as mídias não constituem um campo au-
tônomo e consistente, passível de estabelecer uma
disciplina específica: não somente porque, super-
determinados, conglomeram uma multiplicidade
de determinantes econômicos, técnicos, políticos
culturais, ideológicos, etc. – aliás, esse é o caso de
qualquer processo de transmissão – mas porque não
PARA COMUNICAR O INCOMUM

375
passam de uma variação particular, inflada, mas de-
rivada de uma questão de princípio global e perma-
nente. (DEBRAY, 2006, p. 22).

No caso em estudo, o jornal de grande circulação tem


ocupado a pauta mensal com notícias ligadas ao interesse pú-
blico sobre a valorização da cultura local, voltando os olhares
para a abordagem inicial que situa a proposta e as manifes-
tações do Movimento Armorial no final da década de 1960,
em Pernambuco, liderado pelo seu fundador, o dramaturgo e
escritor nordestino Ariano Suassuna.
O acontecimento comunicacional, conforme Teixeira
(2013) é o fenômeno pelo qual a mediação entre o ser e o
mundo vai construir um sentido singular, único no sujeito que
pode mesmo mudar sua história de vida. São Jovens e adoles-
centes que encontram nas partituras de Ariano Suassuna von-
tade de ver o mundo de maneira crítica e poética, são crianças
que moram em lugares de vulnerabilidade social e através da
inspiração do Movimento Armorial estão nas maiores orques-
tras do mundo. São mudanças que revelam os efeitos das notí-
cias do Movimento Armorial em contextos populares.
O Movimento Armorial, assim denominado e conheci-
do, busca agregar formas culturais que reforçam a identidade
cultural do povo do nordeste do Brasil. A intenção do movi-
mento almeja: realizar uma Arte brasileira erudita a partir das
raízes populares da nossa Cultura.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

376
O escritor nordestino Ariano Suassuna reuniu artistas
plásticos, músicos, escritores e poetas sob o traço comum do es-
pírito mágico do romanceiro popular do Nordeste (literatura de
cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano, que acompanha
seus cantares, e a xilogravura, que ilustra suas capas. Agrega-se
ainda as mais diversas formas das artes e espetáculos populares
para criar literatura, música, artes plásticas e artes cênicas.
A denominação Armorial, segundo Fabiano (2015) pro-
cede das coletâneas de brasões ou escudos das famílias nobres.
A preocupação inicial e que influenciou várias manifestações
culturais brasileiras caracteriza-se por valorizar a cultura po-
pular do Nordeste brasileiro, imprimindo-lhe uma expressão
erudita a partir de suas raízes populares.
A proposta carrega, neste sentido, elementos importan-
tes da vivência das comunidades originárias que se manifestam
fortemente na estrutura interna das novas narrativas elaboradas.
A música erudita da Orquestra cidadã do Coque possui o senso
de coletividade que aqui se revela, na medida em que a mani-
festação não ocorre sem uma trama de linguagens que se mes-
clam, excluem e disseminam em causos ou encenações, músicas
e artes que se narram e contam como elementos que formam e
conformam o imaginário que, então, se reverte em cultura pró-
pria, sendo um (ser) tão nordestino. Estaria o público preparado
e pré-disposto a tal verificação do Movimento Armorial?
A comunicação eficiente para o nível de compreensão
de diversos públicos deve ser carregada com o compromisso
ético da informação com fonte creditícia. Além da confiança
PARA COMUNICAR O INCOMUM

377
que é função do veículo em promover, há o engajamento de
comunicar bem. Para Bueno (2015) diante de temas tão es-
tratégicos para a sociedade deve-se necessariamente realizar
um empenho maior para que a comunicação se efetive, para
isso é válido considerar novos processos de comunicação. Os
quais devem ser caracterizados por novos atributos e que in-
corporem novos sujeitos, que contemplem ações, estratégias,
processos, canais e redes de relacionamen74589-+tos focados
na superação de um dilema geral e que precisam ser reorgani-
zados, de modo a inverter o modelo vertical que tem sido posto
em termos de comunicação, informação e comunicados.
Diante das novas tecnologias de comunicação no mun-
do digital, observamos que o jornal impresso convive muito
bem com estas formas midiáticas eletrônicas. O próprio jornal
se torna eletrônico e os portais de notícias são acessados cons-
tantemente com a vantagem de serem atualizados e alimentan-
do o desejo de informações frequentes do seu público.
Portanto, dentro deste cenário queremos entender como
a abordagem da divulgação das notícias culturais do jornal
Diário de Pernambuco está contribuindo para o entendimento
das pessoas em relação ao Movimento Armorial que vai além
da informação midiática?

Análise de dados

A partir das notícias do Diário de Pernambuco pode-se


perceber a articulação entre a metáporo e a mídia. Martín Bar-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

378
bero (1997) trata das mediações culturais e socioculturais da
comunicação, indicando assim, três aspectos, que são: o coti-
diano, a temporalidade e a competência cultural.
Pilares presentes no Movimento Armorial que demons-
tra o cotidiano a partir da teatralidade e da literatura com Obras
clássicas como: O santo e a porca (2010), Romance da pedra
do reino (2012), a temporalidade quando faz a junção da mú-
sica clássica e os ritmos principalmente, o frevo e o maracatu,
entre outros, durante esses 50 anos e a competência cultural
apresentada na pluralidade das manifestações culturais presen-
tes na região vestida de sol, o Nordeste do Brasil.
As notícias revelam uma admiração por parte dos jor-
nalistas pelo Movimento Armorial e a contribuição em con-
textos populares marcantes nas áreas da música e da literatu-
ra de cordel. Conforme Canclini (2015) quem conhece esses
movimentos artísticos sabe que muitos estão arraigados nas
experiências cotidianas dos setores populares, certamente o
Movimento Armorial tem essa característica de trazer consigo
as experiências cotidianas das pessoas.
A vocação pedagógica imperativa atual para os meios
de comunicação provavelmente vem da necessidade de pen-
sarmos sobre o papel da mídia para a sociedade. Um autor que
reivindicou a aproximação da comunicação com a educação
foi Juan E. Diaz Bordenave (1981), diz que são muitos os co-
municadores que não percebem que estão educando quando
comunicam e há educadores que não sabem comunicar. O au-
tor faz analogia da necessidade desta integração, comparando
PARA COMUNICAR O INCOMUM

379
esta união com a inseparabilidade de um velho matrimônio
camponês Bordenave & Werthein (1981).
A comunicação residiria em processos relacionais e in-
teracionais, cuja relação (múltiplos modos de comportamento)
encaminha o conteúdo (ato verbal, consciente e voluntário).
Como nos indica Mattelart (1999):

A análise do contexto se sobrepõe à do conteúdo. Se se


concebe comunicação como um processo permanente
em vários níveis, o pesquisador deve, para apreender o
surgimento da significação, descrever o funcionamen-
to de diferentes modos de comportamento num dado
contexto (MATTELART, 1999, p.69).

Outra sinalização de Martín-Barbero (2014) mescla


educação e comunicação ao fazer referência a um importan-
te autor citado nas duas áreas de conhecimento que foi Paulo
Freire, quando ele afirma que,

acostumados, como estamos a confundir comunica-


ção com os meios e a educação com seus métodos
e técnicas, nós estudiosos desses campos, padece-
mos com frequência não só de uma esquizofrenia,
mas também de flagrante falta de memória. “Ambas
convergem em nos fazer esquecer que o primeiro
aporte inovador na América Latina à teoria da co-
municação produziu-se no e a partir do campo da
comunicação: a Pedagogia de Paulo Freire” (MAR-
TIN BARBERO, 2014, p.17).

Atualmente, na América Latina, e em alguns países da


Europa, já se consolida a linha de pesquisa e um novo campo
PARA COMUNICAR O INCOMUM

380
epistemológico que evidencia a importante integração da comu-
nicação/ educação. Ainda não foi possível uma plena integração
das duas áreas. De um lado a educação ainda não aproveitou
plenamente os conhecimentos da comunicação; por outro lado,
para os profissionais da comunicação, cuja atividade vincula-se
ao objetivo de informar e de formar opinião, a função educativa
não tem sido preocupação de primeira ordem.
No entanto, Orozco Gómez (2014) nos diz que a re-
cepção midiática enquanto processo não se encerra na inte-
ração entre indivíduo e mídia, mas se estende para outros ce-
nários, onde os conteúdos transmitidos são rearticulados nas
experiências concretas do público, ou ainda, dos receptores
das notícias. A importância da divulgação das notícias sobre
o Movimento Armorial está nessas rearticulações concretas
que o público faz dentro dos seus contextos com o objetivo de
vivenciar, ler e participar das manifestações culturais, valori-
zando o seu local.
O Jornal Diário de Pernambuco é de suma importância
em um contexto no qual a comunicação ganha o status de “es-
cola paralela”, por meio da qual a sociedade adquire diversos
tipos de conhecimento sobre a realidade, sobre os desafios do
passado e com boas perspectivas para a construção do futuro.
Assim sendo, Alsina (2009), nos diz que a mídia de-
sempenha o papel social de transmitir um tipo de saber, arti-
cula os conhecimentos dos políticos, dos filósofos, dos artistas
e de outros profissionais especializados, fazendo a ponte entre
estes e os cidadãos comuns. Conforme Gomes (2016), a mídia
PARA COMUNICAR O INCOMUM

381
tem o papel social institucionalizado e legitimado da transmis-
são do saber cotidiano, como tradutor do saber dos especialis-
tas para o grande público.

Já fomos tocar no Vaticano para o Papa Francisco e


ficamos felizes em mostrar nossa cultura lá. Apare-
cemos nos jornais, nos programas de televisão. Le-
vando a música armorial. (Educadora 2, 39 anos,
Orquestra cidadã do Coque)

Neste aspecto da mídia informativa e de interesse pú-


blico encontramos em Traquina (2005), a função social do
jornal modificou-se ao longo de desses cinquenta anos (1968
-2018), a partir dos processos de modernização dos impressos
e de mudanças na própria configuração da sociedade.
Pelas análises das notícias, suas fontes e explicações,
fundamentadas em órgãos públicos de pesquisa, muitas vezes
com metodologias explicativas e elucidativas, percebemos o
papel do jornalismo como fonte de mediação de conhecimen-
tos. Informações e conhecimentos socialmente necessários e
úteis para uso de vários segmentos para fins da educação esco-
lar, educação não formal ou popular que demandam materiais
didáticos ou de esclarecimentos para serem usados inclusive
em órgãos públicos e em organizações não governamentais,
como os projetos que utilizamos no grupo amostral.
A mídia tem o papel social institucionalizado e legi-
timado da transmissão do saber cotidiano, como tradutor do
saber dos especialistas para o grande público.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

382
Portanto é interessante ressaltar o valor do aconteci-
mento comunicacional citado por Marcondes (2012) contida
neste veículo de comunicação e a partir dessas notícias o perfil
do jornal como vocação pedagógica. Citando Freire (2011), o
bom senso, para nós, reflete o que vem sendo dito dentro da
questão de ética. Neste sentido, quanto mais pomos em prática
de forma metódica a nossa capacidade de indagar, de compa-
rar, de duvidar, tanto mais eficazmente curiosos podemos nos
tornar, e mais crítico se pode fazer o nosso bom senso.
Foi possível analisar que o jornal Diário de Pernambu-
co buscou o máximo de informações culturais midiáticas mas
foi além do texto indicando o metáporo presente nas matérias
sobre o Movimento Armorial trazendo as mais diversas notí-
cias: em relação à moda, a literatura, a música, ao cinema, as
peças teatrais, buscando evidenciar os artistas populares, escri-
tos e romanceiros, enfim, indicadores que apresentaram clara-
mente a vocação pedagógica do jornal dentro deste contexto.
Por outro lado, a comunicação é pensada enquanto pro-
cesso, conforme Santos (2013), um acontecimento que não se
reduz aos media mas que se estabelece na intencionalidade e
expressividade de corpos.
Existe no Movimento Armorial um “momento mágico”.
Segundo Marcondes Filho (2009), uma relação dialógica e expe-
rimental que pressupõe um outro olhar, ou ainda um algo mais no
qual capture momentos de transformação que se dá entre os leito-
res das matérias relacionadas ao Movimento Armorial no Diário
de Pernambuco e não um simples repasse de informações.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

383
Na parte da pesquisa com aplicação do roteiro da entre-
vista semiestruturado foi possível averiguar com os 06 (seis)
educadores que responderam quanto à percepção pública da
notícia e a influência nos projetos, identificou-se que na con-
cepção dos educadores, o jornal é um excelente meio de comu-
nicação para o público sobre o Movimento Armorial.

As pessoas olhavam o Coque como lugar de vio-


lência e drogas. Agora, olham para o Coque como o
lugar dos meninos musicistas. Isso só foi possível,
graças à mídia e ao musica armorial. (Educadora 4,
28 anos, Orquestra cidadã do Coque).

Logo, é válido afirmar que a verificação com os edu-


cadores dos dois referentes projetos foi importante, pois tive-
mos um panorama de como chega à notícia para a sociedade e
quais os desdobramentos para a mudança de realidade na qual
estamos inseridos. No relato acima, é possível verificar que a
paisagem social muda a partir dos projetos. No lugar da aridez
do sertão, observamos o ser(tão) nordestino, com sua poesia e
cordel assim como, nos becos da morte, escutamos os sons dos
violinos e clarinetes.
Há, pois, uma vocação pedagógica nos meios de co-
municação, e nas formas contemporânea da mídia há lugar
para interação e desta forma se constitui em um grande meio
de comunicação geral para temas de interesses locais e glo-
balizantes. Segundo Ciro Marcondes (2012), a comunicação
PARA COMUNICAR O INCOMUM

384
como diálogo foi incorporada por Levinas, que a ela atribui
adicionalmente um compromisso ético, ou seja, a partir dela
podemos expandir a relação dialógica, pois eu, abrindo-me a
ele, esvaziando meu ego autossuficiente, o insiro em meu con-
texto, transformando-me.

Conforme indica um dos educadores entrevistados:

A partir das notícias do Diário de Pernambuco, pode-


mos perceber o quanto nosso trabalho na música ar-
morial é importante com nossos adolescentes que vi-
vem no meio do tráfico e da violência. Entre violinos
e tiros, percebemos mais transformação que mortes.
(Educadora 3, 32 anos, Orquestra cidadã do Coque)

Vale realçar que a mídia assume um importante papel


social de mediação para informação que gere conhecimento
científico e possibilidades de prevenção de ação para a saúde
coletiva. Neste sentido Mesquita (2015), analisando o papel
dos meios de comunicação na era da sociedade da informação
e do conhecimento indica que.

A sociedade em rede trouxe mudanças nas formas


de organização social e consequentemente no jorna-
lismo. Mudanças que trazem desafios novos como
o de lidar com a participação cada vez mais ativa
do público na produção de conteúdos e na agenda
da mídia, com a possibilidade de democratização
das formas de acesso ao espaço público midiático.
E que nos obrigam a pensar sobre conceitos novos
e velhos que se emaranham nessa teia informacio-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

385
nal. São novas faces do processo de comunicação
(MESQUITA, 2015, p.113).

Como fruto da pesquisa de campo verificamos que os


educadores populares conhecem o contexto cultural que está
inserido, indicam fortemente a inspiração do Movimento Ar-
morial para seus respectivos projetos e percebe a necessidade
de um fluxo contínuo de notícias e reportagens relacionadas ao
Movimento Armorial para nutrir o público com informações
sobre sua identidade cultural e valorizar sua cultura local. Se-
gue algumas notícias vinculadas ao Movimento Armorial no
Diário de Pernambuco que trazem consigo conteúdos que vão
além da informação midiática:

Quadro 1: notícias relacionadas ao Movimento Armorial


Data Notícias Caderno
10/02/2015 Carnaval Armorial em homenagem à Ariano Local
nas escolas do Recife
29/09/2015 Lado “armorial” dos Beatles é explorado em Viver
aula-espetáculo de artista plástico pernambu-
cano
19/10/2015 Paço do Frevo homenageia 45 anos de Movi- Viver
mento Armorial em Pernambuco
29/05/2016 Relíquias do Movimento Armorial ganham o Viver
mundo com partituras uras disponíveis na in-
ternet
19/10/2016 Do Movimento Armorial ao Conservatório Viver
Pernambuco: maestro Clóvis Pereira ganha
primeira biografia.
Fonte: Autoria própria
PARA COMUNICAR O INCOMUM

386
É preciso compreender a mídia imprensa, neste caso o
Jornal Diário de Pernambuco, como espaço de educação infor-
mal em que as experiências cotidianas com as manifestações
comunicativas contribuem para a formação dos sujeitos e, con-
sequentemente, lança ao espaço formal algumas provocações.
Neste aspecto a mídia de um modo geral e a mídia im-
pressa, no caso de estudo, o Diário de Pernambuco, faz matérias
a partir das imagens ilustrativas e com preocupação didática re-
velada nos esforços de imagens do Movimento Armorial. A mí-
dia neste caso configura-se com preocupação educativa e desta
forma vale lembrar Adghirni & Pereira (2011) quando indicam
sobre o interesse cultural e o papel social do jornalismo.

Conclusão

A produção de conteúdos que possam transitar com


mais liberdade e sem os entraves da grande mídia ou de uma
cultura hegemônica é uma possibilidade de comunicação que
precisa ser levada em consideração, pois dentro desse caminho
podem ser visualizadas passagens com os poros abertos para
transitar em outros espaços desterritorializados. A alteridade
dos conteúdos sobre o Movimento Armorial promove a flu-
tuação das concepções de cultura e mídia de modo audacioso
para o público da Orquestra Cidadã do Coque. Essa proposta
reconhece e invade os caminhos que são cavados para o in-
vestimento em diálogos dentro e fora dos contextos populares,
não autoritários, mas fluídicos.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

387
O presente capítulo teve como objetivo reportar pelas
vias ainda abertas que são sugeridos pelo metáporo, proposto
pelo professor Ciro Marcondes Filho, para estabelecer um pro-
cesso de fruição acerca das possibilidades de representações
da cultura a partir da mídia impressa do Jornal Diário de Per-
nambuco que faz a divulgação do Movimento Armorial desde
a sua criação até os dias atuais.
A mídia impressa de grande circulação faz a divulga-
ção do Movimento Armorial em Recife – Pernambuco – Bra-
sil. Optamos por percorrer a dimensão comunicativa e um tra-
jeto teórico que partiu da problematização de que o sentido
atribuído à comunicação acaba por determinar as finalidades
do metáporo e do acontecimento, perpassou pela condição que
a comunicação ocupa na sociedade atual.
Percebemos que, a comunicação do Movimento Armorial,
na mídia impressa, tem tido resultados positivos que mostram a
importância de atrelar a alteridade à comunicação para contextos
populares e isso ficou expresso na inspiração contínua da Orques-
tra Cidadã do Coque, uma vez que as crianças e os jovens não só
levantam os problemas do seu entorno, mas se identificam e se
comprometem a melhorar esta realidade a partir da música.
Neste sentido, é importante no metáporo a imersão no
objeto, quando o sujeito mesclando-se ao objeto, como indica
Amaral (2015) a pesquisa se torna de fato uma participação
contemplativa de categorias científicas que são vivenciadas
nas músicas e literaturas nos espaços da Orquestra e da biblio-
teca comunitária.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

388
Eles se tornam protagonistas e, através dos vários veí-
culos escolhidos para assumirem o papel de emissores, são
porta-vozes e identificam em suas comunidades, lideranças
que apontam soluções para os problemas identificados. Nes-
te processo, os educadores populares envolvidos conseguem,
através dos trabalhos, criar no grupo e, consequentemente, nas
comunidades, o sentimento de pertença e que leva a um maior
comprometimento de todos os envolvidos nos projetos que es-
tão inseridos. A oportunidade criada faz aflorar nos jovens e
crianças a criticidade, criatividade, cidadania e a valorização
da cultura local.
Consideramos ainda que as mídias constituem-se num
excelente meio de divulgação e configura-se neste aspecto
analisado como um bem público. Também que a divulgação
da cultura com benefício da sociedade está dentro dos princí-
pios da formação em comunicação social, de formar opinião,
esclarecer e promover informações que gerem resultados para
o bem estar de toda a sociedade.
Por fim, com este trabalho foi possível confirmar a
importância da mídia impressa em forma de jornal de gran-
de circulação como um importante instrumento de difusão do
conhecimento para a sociedade e neste caso para uma impor-
tante ação de divulgação da cultura local nordestina. Dentro
do enfoque da categoria analisada podemos ressaltar o caráter
informativo e metáporo das notícias, confirmando o que Ciro
PARA COMUNICAR O INCOMUM

389
Marcondes (2013) indicou como um acompanhamento do ob-
jeto e seus desdobramentos, abrindo vias de acesso, caminhos
e possibilidades para a compreensão dos processos de comu-
nicação, como diz o autor do conceito: “o objeto segue seu ca-
minho e nós o acompanhamos, sem script anterior, sem roteiro
predeterminado, vivendo o próprio Acontecimento enquanto
se pesquisa” (MARCONDES FILHO, 2013, p.58).
A proposta foi perceber nas notícias do Jornal Diário
de Pernambuco, o Movimento Armorial a partir da promoção
da alteridade que podem ocorrer por conta das experiências
culturais, reconhecendo no outro parte de si enquanto fruição
de saberes no contexto popular.
O fato de existir a mera transposição e veiculação
de conteúdos entre as publicações não pode ser interpretado
como uma relação que possa despertar a alteridade entre os/as
receptores das mensagens, essa operação é entendida apenas
de modo mecânico e energético como uma tomada de decisão
qualquer. Entretanto reconhecer que alguns conteúdos podem
ser apreciados e estetizados, é de certa forma, promover a re-
lação de alteridade, quebrando paradigmas, despertando diálo-
gos entre pessoas de classes sociais diferentes, reconhecendo
em cada uma das esferas competentes as interseções possíveis
para interações, afetos e diálogos.
Todas essas questões constituem um suporte para fu-
turas pesquisas e discussões metodológicas para uma prática
aberta, crítica e reflexiva no campo da metáporo e do acon-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

390
tecimento comunicacional na área da Comunicação. E assim,
após 70 anos de história de vida, o professor Ciro Marcondes
Filho traz conceitos que constroem caminhos teóricos e epis-
temológicos da Comunicação no Brasil e nos mais de 50 anos
de história, o Movimento Armorial sobrevive e resiste, seguin-
do seu principal objetivo: o Nordeste brasileiro falando para o
mundo, noticiando suas raízes, fazendo sua arte e mostrando
seu povo guerreiro que tira do (ser) tão sua sobrevivência e
enfrenta os desafios do tempo presente.

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OS LIMITES DO MODELO DA OPINIÃO
PÚBLICA DE LUHMANN E A PROPOSIÇÃO DO
CONTÍNUO ATMOSFÉRICO MEDIÁTICO
Thiago Meneses Alves1
Gustavo Said2
Camila Calado3

Muitos conceitos clássicos da teoria política encon-


tram-se hoje numa situação contraditória: não os
podemos, simplesmente, abandonar, nem levá-los
a sério no seu sentido primitivo. Eles parecem ca-
racterizar importantes avanços da sociedade moder-
na e dos seus sistemas políticos, mas fazem-no de
uma maneira que já não satisfaz, sendo, por assim
dizer, demasiado direta, demasiado compacta e sim-
plificada. As mais recentes correntes científicas da
teoria dos sistemas, da teoria da decisão e da teo-
ria da organização, que procuram ampliar a capaci-
dade científica de tratamento de factos complexos,
abandonam o património dos conceitos tradicionais
(LUHMANN, 2009, p.01).

No artigo citado, A opinião pública, o sociólogo ale-


mão Niklas Luhmann, nascido em 1927 e falecido em 1998,

1 Doutor em Sociologia pela Universidade do Porto. E-mail: thiagomeneses85@gmail.com.


2 Professor Titular da Universidade Federal do Piauí. Doutor em Ciências da Comunicação
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: gsaid@uol.com.br.
3 Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
c.calado.lima@gmail.com.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

396
faz uma crítica contundente ao modelo clássico de opinião pú-
blica, tributário de um tipo de pensamento político de matriz
liberal, e em sua substituição adota uma perspectiva sistêmica.
O modelo sistêmico de Niklas Luhmann representa uma ruptu-
ra com a tradição sociológica e com o pensamento político da
modernidade, não mais condizentes, segundo o autor alemão,
à análise das atuais sociedades complexas e funcionalmente
diferenciadas (ESTEVES, 2015).
Luhmann propõe a substituição do ideal liberal de opi-
nião pública, expressa em uma vontade comum que se delineia
em formações histórico-sociais concretas, pela formulação
de um conceito que, ao modo de operação do sistema políti-
co, designa o conjunto de temas que, selecionados, garantem
sua eficácia. Deste modo, ao compreender a opinião pública
como estrutura temática da comunicação no espaço público,
Luhmann critica o modelo liberal no tocante à sua dimensão
orientadora do sistema político.
Contudo, também a proposta de Luhmann tem sido
alvo de críticas, sobretudo ao sugerir que uma reinterpreta-
ção do processo de comunicação deve levar em conta que a
opinião pública não pode mais ser considerada como um re-
sultado politicamente relevante, mas como estrutura temática
da comunicação pública. Nos termos dele, “não mais deve ser
concebida, apenas, causalmente, como efeito produzido e con-
tinuamente operante, mas funcionalmente, como meio auxiliar
de seleção.” (LUHMANN, 2009, p. 01). Para Borges (2014), o
sociólogo alemão propõe uma neutralização moral da opinião
PARA COMUNICAR O INCOMUM

397
pública e, por conseguinte, a dissolução do público como ins-
tância legítima de exercício do poder político, uma vez que a
pressão pela atualização incessante de informações, necessária
para a adaptação sistêmica, também produz visões de mundo
cada vez mais opacas e fluidas, a reboque da produção dos
mass media.
Para além da crítica antes esboçada, o pensamento de
Luhmann, ele próprio atento ao devir histórico, carece, ironica-
mente, de atualidade. Segundo Ciro Marcondes Filho (2008), a
proposta de Luhmann, apesar de sua vigorosa crítica ao ideal
liberal de expressão de uma vontade comum, não fornece ele-
mentos para pensar a comunicação pública nos dias atuais, no
bojo de uma teoria da comunicação tecnologicamente avança-
da, sobretudo se for levado em consideração o fenômeno das
redes sociais e das práticas colaborativas desenvolvidas nas
mesmas. Esse artigo pretende refletir sobre os limites da teoria
de Luhmann, adequando-a à realidade atual, tendo como ponto
de partida a crítica de Ciro Marcondes Filho.
O texto está dividido em três partes. Na primeira é feita
uma contextualização geral do modelo sistêmico proposto por
Niklas Luhmann para a análise das sociedades contemporâ-
neas. Posteriormente, discute-se a noção de opinião pública,
apresentando tanto a noção clássica, quanto a atualização do
conceito proposta pelo autor alemão. Na última parte, refle-
te-se sobre os limites do modelo de Luhmann, propõe-se uma
atualização da sua teoria sobre a opinião pública e, de modo
mais geral, do processo comunicacional, a partir do conceito
PARA COMUNICAR O INCOMUM

398
de contínuo atmosférico mediático, formulado pelo autor bra-
sileiro Ciro Marcondes Filho.

O Modelo Sistêmico Autopoiético de Niklas Luhmann

Niklas Luhmann, durante sua trajetória acadêmica, de-


dicou-se à construção de um projeto cujo objetivo era a formu-
lação de uma teoria da sociedade abrangente, capaz de analisar
um mundo social cada vez mais complexo e diferenciado. Para
um empreendimento de tal envergadura, toma como ponto de
partida o estrutural-funcionalismo de Talcott Parsons. No en-
tanto, o autor alemão distancia-se gradativamente da perspec-
tiva parsoniana, desenvolvendo uma teoria que adquire con-
tornos muito particulares (ESTEVES, 1992).
Um dos principais avanços de Luhmann neste sentido
foi a problematização dos sistemas sociais a partir do conceito
de autopoiésis, cunhado no âmbito da biologia para ilustrar
“[…] o que ocorre na dinâmica da autonomia própria dos siste-
mas vivos (MATURANA, 1980, p. xvii). A adoção do concei-
to visava sublinhar a capacidade que os sistemas sociais teriam
de produzir todos os elementos constituintes e, consequente-
mente, todas as operações para o seu funcionamento. Ao aban-
donar o teleologismo sistêmico de Parsons, Luhmann passa a
adotar um modelo baseado na pura autorregulação, como se os
sistemas fossem regidos por uma espécie de instinto de sobre-
vivência em ambientes de extrema complexidade (ESTEVES,
2015). Em outras palavras, para Luhmann, tudo o que opera no
PARA COMUNICAR O INCOMUM

399
sistema, desde a menor unidade até o elemento mais comple-
xo, é produzido no e pelo próprio sistema.
Uma vez autosuficientes no que tange aos elementos
constitutivos e às operações necessárias ao funcionamento, os
sistemas sociais, na comparação com o meio ambiente circun-
dante, estariam operacionalmente fechados. Eis outro ponto
de distanciamento da perspectiva sistêmica de Talcott Parsons
(ESTEVES, 1992, p. 13). Neste sentido, “[…] quando eles [os
sistemas] se diferenciam do meio e criam uma fronteira entre
eles e o meio circundante, essa diferenciação ocorre de uma
maneira muito especial, é um diferenciar-se autofortificando-
-se, autoconfinando-se” (MARCONDES FILHO, 2005, p. 11).
Para Luhmann, sistema social é todo aquele cujas ope-
rações são comunicações. Neste sentido, há três tipos de siste-
mas sociais: (a) interação, que pressupõe a presença física de
dois ou mais interlocutores, por conta disso, com duração curta
e limitada (BARALDI, 1996); (b) organização, que consiste na
formação de estruturas que perduram para além das interações,
com regras de funcionamento próprias construídas ao longo do
tempo (CORSI, 1996); e (c) sociedade, que compreende todas
as comunicações produzidas.
Portanto, Luhmann, na sua problematização sistêmica da
sociedade, elege a comunicação como elemento central, como
operador dos sistemas sociais. Antes de aprofundar o conceito
de comunicação na perspectiva do autor, convém mencionar um
dos pontos mais controversos de sua teoria: a “separação” entre
homem e sociedade (MARCONDES FILHO, 2005).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

400
Na tentativa de clarear essa perspectiva um tanto he-
terodoxa, o pesquisador Armin Mathis (2018), em texto de
introdução ao pensamento luhmanniano para o público de
língua portuguesa, argumenta que tal construção teórica não
deve ser julgada a partir de pressupostos moralistas. Além dis-
so, Luhmann sempre reiterou que sistemas sociais e sistemas
psíquicos só podem existir conjuntamente.

A concepção teórica de interpretar o ser humano


como algo fora da sociedade foi, e ainda é, um dos
pontos mais criticados, ou menos entendidos da
teoria dos sistemas [de Luhmann]. Sem entrar em
detalhes nesta polêmica, somente alguns esclare-
cimentos: nós estamos falando de uma construção
teórica, e não de uma manifestação ontológica. O
valor de uma teoria tem que se mostrar na sua ca-
pacidade explicativa, não cabendo um julgamento
partindo de uma visão moralista. A diferença siste-
ma/meio não implica numa preferência dada para
um dos lados, pelo contrário, o sistema e meio só
existem juntos. Somente a alocação do indivíduo
fora da sociedade possibilita uma análise da socie-
dade, sem necessidade de interpretá-la através de
comportamentos desviantes dos indivíduos, e das
influências da sociedade sobre estes (MATHIS,
2018, p. 9).

Portanto, ao considerar o que foi dito anteriormente,


pode-se concluir, segundo a teoria da sociedade de Luhmann,
que o homem (sistema psíquico) está fora da sociedade (siste-
ma social) justamente porque as operações da sociedade são
autopoiéticas e operacionalmente fechadas. No entanto, siste-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

401
ma social e sistema psíquico estão acoplados estruturalmente.
Assim, o ambiente pode alterar o rumo dos sistemas sem in-
terferir diretamente nas suas operações. Isso ocorre por meio
de irritações, o que significa dizer que, estimulado pelo meio
(irritado), o sistema promove mudanças no seu conjunto de
operações. No caso do sistema social e psíquico, há um caso
especial de acoplamento estrutural chamado interpenetração,
que ocorre quando dois sistemas são interdependentes um do
outro. Em suma, quando eles se desenvolvem em co-evolu-
ção recíproca (ESPOSITO, 1996). É preciso, contudo, analisar
mais detidamente o fato de que essas irritações que provocam
a autopreservação dos sistemas não significam que há troca
efetiva entre indivíduos e entre estes e a sociedade, como co-
loca Ciro Marcondes Filho (2004), apontando para um ponto-
-chave no entendimento da teoria dos sistemas de Luhmann.
Luhmann considera a comunicação como o elemento
fulcral, a operação, por excelência, dos sistemas sociais. Neste
sentido, seres humanos não se comunicariam entre si, na me-
dida em que a comunicação é exclusiva dos sistemas sociais.
Assim, quando X fala algo para Y, por exemplo, “Creio em
Deus”, X não se comunicou com Y. Na realidade, foi promovi-
da uma comunicação pelo sistema social (de interação), onde
X e Y estão acoplados estruturalmente.
Na medida em que X e Y promovem irritações no sis-
tema social, são promovidas outras comunicações, por exem-
plo, “Sim? Eu não creio!”. “Não? Pois deverias!”. Como os
sistemas psíquicos de X e Y também estão acoplados estru-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

402
turalmente à interação, esta também produz irritações nesses
sistemas, que induzem, por fim, a produção de pensamentos
por parte do sistema psíquico em X e em Y sobre aquele fato
(BERTAGNOLLI, 2009). Por isso, não há transmissão de in-
formação, mas sim, criação (MARCONDES FILHO, 2005).
Há sempre a produção de comunicação pelo sistema social e
psíquico a partir das irritações recíprocas promovidas.
Num resumo esquemático, é possível afirmar que “uma
comunicação ocorre quando alguém vê, ouve, lê – e entende
que daí se depreende uma outra comunicação, que pode se-
guir-se a essa” (LUHMANN, 2005, p. 18). É caracterizada por
três fases: (1) seleção de uma informação; (2) seleção de um
dar a conhecer - mensagem; e (3) seleção de um entender a di-
ferença entre informação e mensagem (LUHMANN, 1998, p.
148). A comunicação se completa com a concretização dessas
três etapas. No que diz respeito à terceira seleção, entender a
diferença entre informação e mensagem é tão somente saber
que o interlocutor X disse algo (no caso da comunicação oral),
e não que o interlocutor Y entendeu, num nível semântico,
exatamente o que o interlocutor X quis dizer (MARCONDES
FILHO, 2005).
No entanto, na teoria social de Luhmann (1992), a co-
municação é algo bastante improvável. Essa improbabilidade
está relacionada diretamente aos três níveis de seleção: (1) a
improbabilidade de que o outro entenda, quando o problema é
resolvido parcialmente através da linguagem; (2) a improbabi-
lidade de a comunicação alcançar mais pessoas do que as que
PARA COMUNICAR O INCOMUM

403
se encontram no recinto da interação, um problema espacial e
temporal solucionado pelos meios de difusão; e (3) a impro-
babilidade de que o outro aceite a proposta contida na comu-
nicação, o dizer “sim” ou “não” para a comunicação emitida
(LUHMANN, 2001). O problema, conforme Marcondes Filho
(2005), é resolvido parcialmente pelos meios de comunicação
simbolicamente generalizados, que surgem a partir da com-
plexidade cada vez mais acentuada da sociedade e que servem
como alternativa à linguagem.
Tendo em vista o que foi apresentado nesta seção,
uma visão panorâmica da problematização sistêmica dos sis-
temas sociais – e, consequentemente, da comunicação – de
Niklas Luhmann pode ser traçada a partir dos seguintes pon-
tos: (i) a sociedade é concebida como um sistema; sistemas
sociais são todos aqueles cujas operações são comunicações;
(ii) são três os tipos de sistemas sociais (interações, organi-
zações e sociedade), que são diferentes dos subsistemas ou
sistemas de função (que surgem devido a complexidade da
sociedade); (iii) os sistemas sociais são autopoiéticos e, con-
sequentemente, operacionalmente fechados; (iv) os sistemas
sociais interferem e sofrem interferência do meio a partir de
“irritações” provocadas via acoplamento estrutural; (v) entre
os sistemas psíquicos (o indivíduo nos termos de Luhmann)
e os sistemas sociais ocorre a interpenetração; (vi) a comu-
nicação consiste na formulação de um enunciado, na sua di-
fusão e na aceitação desse enunciado; (vii) a comunicação é
altamente improvável, e a sociedade (conjunto dos sistemas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

404
sociais) cria mecanismos para diminuir sua improbabilidade
– linguagem, meios de difusão e meios de comunicação sim-
bolicamente generalizados.

A Opinião Pública na Perspectiva Sistêmica de Niklas


Luhmann

Limites da concepção clássica de Opinião Pública

Luhmann dedicou especial atenção ao tópico “Opinião


pública” em texto homônimo publicado originalmente em
19704. Já naquele momento, o autor alemão declara a obsoles-
cência de um conjunto de conceitos políticos clássicos, bastan-
te enraizados nas ciências sociais, no jornalismo e no léxico
cotidiano, que não seriam mais condizentes com o aumento
da complexidade social, tais como: política, democracia, do-
mínio, legitimidade, poder, representação, estado de direito e
controvérsia. Paralelamente a este veredicto, ele propõe uma
atualização deste referencial, tomando como base a sua teoria
sistêmica e como foco a opinião pública.
A crítica de Luhmann ocupa-se, especialmente, da no-
ção tradicional do conceito de opinião pública. Para o autor,
não seria levado em conta neste tipo de formulação todas as
etapas que compõem, de fato, a opinião pública. Dentro deste
panorama, o conceito clássico, que prevê o surgimento de uma

4 A versão utilizada neste trabalho é uma tradução contida na série Comunicação e Sociedade
(2009), sob a organização de João Pissarra Esteves, um dos principais especialistas na obra de
Niklas Luhmann em língua portuguesa.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

405
espécie de sujeito coletivo pensante, não representaria a com-
plexidade do fenômeno, que deveria ser analisado à luz dos
referenciais sistêmicos autopoiéticos.

A expressão “opinião pública” sugere demasiada


unidade, e o mesmo vale para o conceito clássico
que, no seu significado literal, pressupõe um sujeito
colectivo com capacidade de pensar. Por detrás de
semelhantes denominações substantivas e explica-
ções monofactoriais, aflora, hoje, irrecusavelmen-
te, o problema da complexidade do sistema. Para a
abordagem deste problema, tornam-se necessários
instrumentos conceptuais muito mais complexos do
que os usados até o presente na pesquisa sobre opi-
nião (LUHMANN, 2009, p. 28).

O sociólogo não apenas critica o conceito de opinião


pública, mas argumenta também sobre a necessidade de re-
visão do próprio referencial utilizado até então nas análises
das dinâmicas discursivas nos sistemas políticos. Um passo
fundamental neste sentido seria uma problematização que sub-
linhasse os vínculos entre a opinião pública e os processos de
comunicação. Assim, mais do que um resultado da atividade
política, materializada em um sujeito coletivo pensante, a opi-
nião pública deveria ser considerada uma estrutura temática da
comunicação pública. “Por outras palavras: não mais deve ser
concebida, apenas, casualmente, como efeito produzido e con-
tinuamente operante, mas funcionalmente, como meio auxiliar
de seleção” (LUHMANN, 2009, p. 2).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

406
Antes da descrição mais detalhada da opinião pública
na perspectiva sistêmica de Luhmann, convém resumir bre-
vemente a concepção clássica do termo. Assim como muitos
conceitos nascidos no início da idade moderna, a opinião pú-
blica deriva da complexidade social, da diferenciação cada vez
mais acentuada da sociedade a partir daquele período (entre
ciência, economia, política, etc.). Consequentemente, houve
“[…] o surgimento, nestes domínios parcelares do sistema so-
cial, de novas autonomias e representações de objetivos mais
abstractas” (LUHMANN, 2009, p. 3).
No âmbito destas mudanças estruturais, a opinião pú-
blica teria surgido no seio do sistema político no intuito de
desvincular a atividade política da noção de verdade. Neste
fluxo, o fundamento da verdade, caráter norteador do sistema,
cede lugar progressivamente ao fundamento da opinião. Em
suma, o aumento da complexidade social, com o consequente
surgimento de subsistemas, adaptações destes últimos à com-
plexidade, acaba por contribuir para a “queda” do fundamento
da verdade, da razão (LUHMANN, 2009).
Luhmann argumenta sobre o modo demasiado simplis-
ta, quase “reificado”, que os sistemas sociais seriam represen-
tados até o momento de escrita do seu texto. Como discutido
na primeira seção, para o autor, estes últimos não seriam ca-
racterizados pela relação entre seres humanos ou pelas ações
destes, “mas em regras que delimitam fronteiras e estabelecem
correlações que orientam a elaboração da experiência huma-
na dotada de sentido” (LUHMANN, 2009, p. 24). Na seção a
PARA COMUNICAR O INCOMUM

407
seguir, estes procedimentos e regras são discutidos detalhada-
mente a partir da apresentação da opinião pública na perspec-
tiva sistêmica de Luhmann.

Opinião pública enquanto estrutura temática da comunicação


política

Em linhas gerais, a opinião pública consistiria em um


“sector particular da experiência e do comportamento huma-
nos, nomeadamente com a comunicação interpessoal, sobre-
tudo a de tipo político” (LUHMANN, 2009, p. 6). Um pro-
blema típico seria a abrangência demasiada de possibilidades
que uma caracterização do gênero suscita. Luhmann resolve o
imbróglio a partir da delimitação da opinião pública enquanto
o domínio de temas em evidência na esfera política – conjunto
de narrativas que classificam os fatos politicamente possíveis.
Em termos mais específicos, os temas são aqueles tópi-
cos mais ou menos em voga, de menor ou maior abrangência,
compartilhados coletivamente, onde se pode concordar ou dis-
cordar (LUHMANN, 2009) – o aumento do salário mínimo, a
crise econômica do país, incremento da violência nas capitais
e etc. Além da existência destes temas compartilhados pelas
partes que interagem, devem existir também as opiniões – con-
cordantes ou discordantes – sobre tal temática. Eis, portanto,
as duas operações principais que regeriam as comunicações
nos sistemas políticos: os temas e as opiniões. Esta diferencia-
ção entre tema e opinião na análise da opinião pública, uma
PARA COMUNICAR O INCOMUM

408
das principais novidades trazidas por Luhmann, visa essen-
cialmente abarcar o aumento da complexidade das relações
sociais e, consequentemente, das comunicações, nas análises
dos sistemas políticos.
Estes sistemas complexos, autorreferenciais, fechados
operacionalmente, que se ocupam de decisões (o sistema po-
lítico, por exemplo), possuiriam dois procedimentos básicos
que norteariam os seus funcionamentos: as regras de atenção
e as regras de decisão. Assim, uma vez que nas sociedades
diferenciadas, com um volume elevado de informações pro-
duzidas e, consequentemente, temas em voga, a atenção passa
a ser cada vez mais difusa, desenvolvem-se mecanismos para
captá-la. Estas regras de atenção se diferenciam das regras que
norteiam as tomadas de decisão. Ambas estão relacionadas,
contudo, pelo fato de que “somente dentro dos limites daquilo
que é geralmente considerado com atenção (…) se pode che-
gar a decisões racionalizáveis” (LUHMANN, 2009, p. 9).
Portanto, neste tipo de arranjo, o objeto que desperta-
ria a atenção não seria o mesmo sobre o qual se decide algo.
As regras de atenção serviriam sobretudo para selecionar os
temas em voga, enquanto que as regras de decisão norteariam
as opiniões na comunicação dentro dos sistemas políticos. Os
temas, por seu turno, na medida em que captam a atenção de
uma audiência massificada, “indicam aquilo que no processo
político de comunicação se supõe possa ter ressonância e pos-
sa exigir capacidade de resposta” (LUHMANN, 2009, p. 10),
deixando em aberto quais opiniões, de fato, serão formuladas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

409
sobre tais temas. Da mesma forma, opiniões não necessaria-
mente se converteriam de modo automático em novos temas
na comunicação política.
Algumas das regras de atenção – e, consequentemen-
te, de formação de temas – do sistema político elencadas por
Luhmann são: (1) nítida prioridade de determinados valores –
quando um destes é ameaçado ou colocado em causa (ameaça
à democracia, por exemplo); (2) crises ou sintomas de crises
– econômicas, naturais, demográficas e etc.; (3) posição so-
cial do emissor de uma comunicação – ou seja, o potencial
de repercussão de uma declaração de alguém com muita vi-
sibilidade; (4) sintomas de sucesso político como o aumento
rápido da visibilidade e intenções de votos de um determinado
candidato, por exemplo; (5) a novidade dos acontecimentos –
enquanto o fenômeno estanque ou gradativo tem menor valor
temático, o evento com mudanças rápidas, ainda que super-
ficiais, possui maior apelo; (6) dores ou os seus equivalentes
provocados pela civilização – “Ameaças de danos físicos ou
orgânicos, “stress”, ameaça à intimidade das relações pes-
soais” (LUHMANN, 2009, p. 11).
Todas as regras derivariam do sistema político, não po-
dendo ser mudadas de modo abrupto. Há aqui uma regulação da
opinião pública, por parte do sistema político, sem a necessária
determinação. Isso pelo fato de estas regras de atenção serem
regidas por uma pluralidade de tópicos, não sendo assim tão
simples delimitar o que de fato determinaria a opinião pública.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

410
Como ressaltado algumas vezes no decorrer deste
texto, para Luhmann, a sociedade atual teria chegado a um
nível elevado de complexidade. Um dos principais efeitos
de tal fenômeno seria a diferenciação autofortificada de
diversos sistemas de função autorreferenciais. Tal comple-
xidade exigiria uma capacidade de variabilidade maior de
operações dos sistemas, uma vez que esta última caracterís-
tica é imperativa para a adaptabilidade na própria sociedade
(maior dos sistemas).
No caso das comunicações nos sistemas políticos,
este tipo de adaptação “traduz-se na mobilidade da estrutura
dos seus temas: os temas da comunicação política não só de-
vem manter-se abertos às diversas opiniões e decisões, mas
devem também poder ser alterados de acordo com as neces-
sidades” (LUHMANN, 2009, p. 12). Primeiramente, haveria
uma fase inicial de maturação, onde os temas apareceriam
como uma possibilidade, sobretudo no âmbito mais restrito
dos especialistas. Ainda não haveria, neste estágio, uma ur-
gência para a discussão mais prolongada e, consequentemen-
te, uma decisão.
Alguns temas, contudo, conseguem superar esta pri-
meira etapa e chegam finalmente à arena política. Caso ve-
nham a ganhar popularidade, passam a ser parte da estrutura da
comunicação, entram finalmente na opinião pública. O fato de
aparecer na imprensa diária é um sinal evidente neste sentido.
Isso quer dizer que “o tema (…) já não está disponível para
a recusa mas apenas as opiniões e decisões sobre ele (…) ele
PARA COMUNICAR O INCOMUM

411
já andou na boca de ministros, presidentes, chanceleres e ge-
nerais. Ele atinge, então, o ponto culminante da sua carreira”
(LUHMANN, 2009, p. 13).
Uma vez que chegue a este estágio, existe a forte possi-
bilidade de que o tema se transforme em um fato (isso deve ser
promovido pelos interessados). Contudo, essa exposição, esse
auge, possuiria um prazo de validade. Caso nada seja feito, a
tendência é o tema estagnar-se, não movimentar mais grandes
discussões a não ser em ocasiões excepcionais. Existe a possi-
bilidade também de ressignificação, de nascer como um novo
tema (LUHMANN, 2009).
Num resumo esquemático, a opinião pública, na pers-
pectiva de Niklas Luhmann, pode ser visualizada panora-
micamente a partir dos seguintes tópicos: (i) uma vez que
é desenvolvida no âmbito da sua abordagem sistêmica da
sociedade, esta problematização visa contrastar a concepção
clássica do conceito, trazendo elementos de análise condi-
zentes com o aumento da complexidade social; (ii) na pro-
blematização proposta por Luhmann, mais do que um sujeito
coletivo pensante, a opinião pública seria o produto da sele-
ção de temas, e das respectivas opiniões, realizadas no âm-
bito do próprio sistema; (iii) as dinâmicas norteadoras destas
instâncias obedeceriam a regras específicas de atenção (os
temas) e de decisão (as opiniões); (iv) a mobilidade veloz
dos temas deriva das necessidade de adaptação do sistema
político em uma sociedade altamente complexa.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

412
O Contínuo Atmosférico Mediático: Crítica e Atualização
dos Modelos de Análise da Interface Política/Comunicação

Limites da problematização sistêmica de Niklas Luhmann so-


bre a opinião pública

Em um texto intitulado “Comunicação e ação política


no contínuo mediático. Luhmann contra Habermas. E nós con-
tra todos”, Ciro Marcondes Filho (2008) propõe um modelo
alternativo aos esquemas tradicionais movimentados nas aná-
lises dos vínculos entre política e comunicação. Estes, afirma
o pesquisador brasileiro, são o modelo cibernético de Niklas
Luhmann e o modelo formulado no âmbito da teoria da ação
comunicativa de Jürgen Habermas, um dos principais oposito-
res da perspectiva de Luhmann.
Num período onde as novas tecnologias de informação
e comunicação possuem um papel central na vida social con-
temporânea, a clássica discussão entre Habermas e Luhmann,
mais do que fornecer alternativas de análise, revelaria muito
mais a anacronia das discussões em torno de uma nova socie-
dade comunicacional e tecnológica. A falta de problematiza-
ção das redes virtuais, assim como de um espaço mediático
com características próprias, cuja função é promover a media-
ção entre os sistemas sociais, assim como entre estes e os sis-
temas psíquicos, resultaria, em última análise, na escassez de
elementos para a formulação “de uma teoria da comunicação
tecnologicamente avançada” (MARCONDES FILHO, 2008,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

413
p. 39). Tendo em vista os objetivos estipulados no âmbito deste
artigo, focaremos na crítica ao modelo de Luhmann e nas solu-
ções propostas pelo modelo de Ciro Marcondes Filho.
A crítica ao modelo de Luhmann, em primeiro lugar, con-
centra-se na formulação da opinião pública enquanto um médium
originado no âmbito das vinculações (acoplamentos estruturais)
entre sistemas sociais e psíquicos. O ponto problemático seria a
não inclusão de um vetor, o elo que liga as duas séries. Este de-
veria ser formulado no âmbito de uma teoria da comunicação que
tivesse em conta o cenário das novas tecnologias.

Essa sociologia dos sistemas comunicacionais auto-


poiéticos opera com grandes sistemas sociais (…) e
com sistemas individuais (…). Entre ambos há ape-
nas um acoplamento estrutural, uma fina membrana
de contato, o que não faz com que um possa entender
o outro. Atuam por si e para si. Ora, esse esquema,
em primeiro lugar, fala da transformação de um me-
dium amplo, amorfo, indeterminado, em uma forma,
na opinião pública (…). Mas ele não diz o que leva o
medium a constituir-se como forma, o que age aí, o
que o provoca. Falta nesse esquema um componen-
te advindo da teoria da comunicação, um elemento
paradoxal, a ligação, o vetor indeterminado que vin-
cula as duas séries. Mas Luhmann não nos apresenta
nenhuma solução. E isso não é pouco, afinal, é o que
constitui o sentido do ato comunicacional (MAR-
CONDES FILHO, 2008, p. 43).

Portanto, a opinião pública seria algo constituído a par-


tir de um médium disperso junto a um arranjo também dis-
perso de indivíduos vinculados apenas por um tema em evi-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

414
dência. “É uma união fraca de elementos superabundantes que
leva, em épocas específicas, à constituição de uma união for-
te de caráter passageiro”. (MARCONDES FILHO, 2008, p.
44). Essa agregação tem caráter mais ou menos espontâneo e
forma aglomerados efêmeros que se dissolvem num segundo
momento. Assim sendo, segundo Luhmann, não ocorreria in-
teração entre emissor e receptor; a tecnologia se interpõe entre
os dois. Cada pessoa tem uma opinião própria, singular, e a
opinião pública configuraria algo externo e acima dos indiví-
duos. Como ressaltado na seção anterior, tempo e quantidade
são as variáveis que mais interferem na opinião pública.
A compreensão pode ficar mais clara com a metáfo-
ra do espelho. Pensemos numa sala com vários espelhos e na
frente de cada um, um político. Não é possível um olhar sobre
si observando o espelho, mas é possível visualizar o próprio
reflexo no espelho. A opinião pública é esta imagem refletida
no espelho. O espelho possibilita ainda a cada político a ob-
servação dos outros, no modo como são mostrados na opinião
pública. “A opinião pública é o ‘poder invisível do visível’:
todos podem se ver no espelho mas o poder que daí emana – da
opinião pública – é algo simplesmente que acontece” (MAR-
CONDES FILHO, 2008, p. 44).
O grande problema deste esquema é que a ação política
é concebida como algo supra individual das massas, indepen-
dente do agir e pensar dos indivíduos. A opinião pública não
está relacionada à consciência dos participantes; tem relação
com a memória pública e a participação dela se dá na medida
PARA COMUNICAR O INCOMUM

415
em que os indivíduos seguem a comunicação dos mass media.
“Nós, como módulos fechados, podemos pensar politicamen-
te (…) mas isso não tem relação com os movimentos desse
medium [opinião pública], massa indiferenciada que age por
conta própria”, afirma Ciro Marcondes Filho (2008, p. 44) so-
bre a proposição de Niklas Luhmann. De modo evidente, a
opinião pública não tem a ver com razão e nem se transforma
pelo diálogo – Luhmann não considera a possibilidade de um
uso democratizante da linguagem; a língua, para ele, também
aparece dotada de um caráter supra-subjetivo, sem espaço para
intervenção de sujeitos.
Além da falta de explicitação mais clara deste vínculo en-
tre os sistemas sociais e os sistemas psíquicos, Ciro Marcondes
Filho aponta também a necessidade de incluir em problematiza-
ções desta natureza um espaço (não-físico) entre os sistemas de
função (dos meios de comunicação, da política, etc.) e entre estes
e os sistemas psíquicos (os indivíduos). No caso da comunicação
no âmbito político, este espaço-entre teria se delimitado na pri-
meira metade do século XX, mais especificamente no âmbito do
III Reich, na forma de indústria cultural. Na contemporaneidade
adquire traços mais complexos e difusos. Este espaço-entre, que o
autor brasileiro chama de contínuo atmosférico comunicacional,
configuraria o próprio sentido das culturas massivas.

Um segundo ponto cego é o fato de Luhmann des-


cartar a possibilidade de um contínuo atmosférico
comunicacional no espaço entre os sistemas sociais
e entre esses e os indivíduos, contínuo esse que, nas-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

416
cido como indústria cultural, assume, na contempo-
raneidade, traços mais amplos e difusos, caracteri-
zando a dimensão de sentido da chamada cultura de
massas (MARCONDES FILHO, 2008, p. 43).

Na próxima seção, são explicitadas as contribuições do


modelo comunicacional de Ciro Marcondes Filho para lacunas
do modelo de Luhmann apresentadas pelo autor brasileiro. Es-
tas contribuições estão vinculadas, em linhas gerais, à inserção
neste tipo de análise do contexto relativamente novo oriundo
da emergência do ambiente digital.

A comunicação no ambiente digital e o contínuo atmosférico


mediático

Para Ciro Marcondes Filho, o primeiro ponto a ter em


mente numa discussão como a que é travada neste artigo é o
fato de que o ambiente digital produz um tipo de comunicação
com características inteiramente novas daquelas previstas pelo
modelo de Luhmann. O autor alemão tratou das comunicações
de tipo interativa (entre dois sistemas psíquicos) e irradiada
(promovida pelos meios de comunicação de massa).
Falta, portanto, incluir nas análises o tipo de comunica-
ção que surge nas sociedades contemporâneas com a explosão
do acesso às tecnologias de comunicação e informação. Antes
da discussão sobre o espaço-entre chamado contínuo atmosfé-
rico mediático, convém tecer alguns comentários sobre a pro-
blematização feita por Luhmann (2005) sobre o subsistema de
PARA COMUNICAR O INCOMUM

417
função dos meios de comunicação, no livro A Realidade dos
Meios de Comunicação, e a seguir fazer uma breve contextua-
lização sobre algumas características da comunicação mediada
pelas tecnologias digitais.

A teoria de Luhmann sobre os meios de comunicação

Em linhas gerais, os meios de comunicação consis-


tem em “todas as instituições da sociedade que se servem de
meios técnicos de reprodução para a difusão da comunicação”
(LUHMANN, 2005, p. 16). Meios impressos como os livros,
revistas e jornais, assim como a informação reproduzida ele-
tronicamente, são os principais exemplos elencados pelo autor.
Assim como no caso dos outros subsistemas de função,
o surgimento dos meios de comunicação de massa está ligado
ao aumento da complexidade social. Sua diferenciação autofor-
tificada (quando o sistema se fecha operacionalmente e adquire
contornos específicos) dataria do momento em que a imprensa
começa a difundir as informações de modo massivo para um
público indiferenciado. Em outras palavras, quando os meios de
difusão excluem a necessidade da presença física de interlocuto-
res para o êxito da comunicação (LUHMANN, 2005).
A diferenciação autofortificada do sistema dos meios de
comunicação teria como principal implicação a duplicação da
realidade. Uma vez adquirida a capacidade de difundir informa-
ções de modo massivo, os meios de comunicação produziriam
uma “memória social”, um substrato que será tido por muitas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

418
pessoas como a “verdade” a respeito do mundo (primeira reali-
dade). A maioria das pessoas (os sistemas psíquicos), acopladas
estruturalmente aos meios de comunicação, tomam como refe-
rência esta “construção/representação” da realidade e cada qual
constrói a sua própria (duplicação da realidade). É o observador
(sistema psíquico) que observa a observação dos meios de co-
municação de massa, ressignificando-a ao seu modo.
Qualquer sistema autofortificado funciona a partir da
distinção básica entre o que faz parte de si (auto-referência)
e todo o resto (heterorreferência). Esse tipo de operação é
norteada por um código binário específico que detecta o que
pertence e o que não pertence ao sistema. No caso dos meios
de comunicação esse código é informação/não-informação
(LUHMANN, 2005, p. 39). A variável tempo, no que tange
ao aspecto da novidade, é um elemento importantíssimo, um
critério de seleção dos mais prováveis de serem movimentados
para selecionar os conteúdos que serão veiculados. O tempo,
a novidade, para o subsistema dos meios de comunicação é o
equivalente ao dinheiro para a economia. Estes, por sua vez,
configuram elementos centrais da sociedade contemporânea:

(…) da mesma forma que a economia, diferencian-


do-se de forma autofortificada com base nos paga-
mentos em dinheiro, produz incessantemente a ne-
cessidade de substituir o dinheiro gasto pelo novo,
de forma semelhante os meios de comunicação pro-
duzem a necessidade de substituir a informação re-
dundante por nova informação: fresh money e new
information são os motivos centrais da moderna di-
nâmica social (LUHMANN, 2005, p. 44-45).
PARA COMUNICAR O INCOMUM

419
Para Luhmann (2005), os meios de comunicação esta-
riam divididos em três grandes áreas temáticas: (a) as notícias
e reportagens; (b) a publicidade; e (c) o entretenimento. A pri-
meira área diz respeito ao jornalismo. As notícias configuram
o conteúdo geralmente mais factual. Aqui o fator tempo é cen-
tral. Há uma série de seletores5 que norteiam quais informações
são dignas de serem publicadas. Se o jornalismo, supostamen-
te, preza pelo caráter da novidade e pela isenção, a publicidade
é caracterizada pela repetição e pelo conteúdo cujo objetivo
é vender algo – um produto, uma ideia, etc. Ainda que esteja
claro o teor de anúncio (informe publicitário), os meios em que
estes procedimentos são realizados não estão assim tão claros.
Já o conteúdo do entretenimento, fruído geralmente nos tem-
pos livres, é analisado à luz da metáfora do jogo. Assim como
o jogo, consiste numa representação da realidade e possui um
tempo definido de duração, com início, meio e fim.
Ainda que produzam conteúdos diferentes entre si, as
matérias e reportagens, a publicidade e o entretenimento uti-
lizam o código informação/não-informação para a produção
dos seus conteúdos. Cada uma destas áreas representa o aco-
plamento estrutural do subsistema dos meios de comunicação
com outros subsistemas: notícias e reportagens (sobretudo
com o subsistema da política), publicidade (sobretudo com o
subsistema econômico) e entretenimento (sobretudo promove
o acoplamento estrutural com o subsistema das artes).
5 Estes são: o fator surpresa; os conflitos; informações quantificadas; relevância local; trans-
gressões às normas; julgamentos morais; produções de notícias em séries, desdobramentos de
notícias anteriores; opiniões de agentes com visibilidade (LUHMANN, 2005). Além destes,
haveria, por último, o filtro das próprias redações.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

420
Portanto, para Luhmann (2005) os meios de comunica-
ção produzem o tipo de conhecimento que num passado mais
remoto era reservado a membros religiosos e certos intelec-
tuais que definiam o que deveria ser tido como realidade. Sua
função, por fim, é fornecer, através dos conteúdos informati-
vos gerados por meio de notícias, reportagens, publicidade e
entretenimento, esta base, que é observação do mundo, e que
servirá para outras observações do mundo, produzindo assim
a realidade social.

A comunicação digital e a proposição de um novo modelo

Diferente da interação simples entre dois sujeitos ou da


comunicação irradiada de um ponto referencial (um jornal, por
exemplo), a comunicação no ambiente digital seria caracteri-
zada sobretudo pela disseminação do fluxo informacional em
rede. Uma das principais consequências é a substituição de uma
alteridade física por um “outro virtual”. “A sociedade se trans-
formou, já não é um grupo de pessoas que constrói uma relação
em torno de si mesmas; hoje elas vivem num campo de rela-
ções intersubjetivas, numa rede oscilatória que continuamente
se amarra e desamarra (MARCONDES FILHO, 2008, p. 51).
É neste sentido que não se pode usar o esquema nem
da comunicação interpessoal e nem da comunicação irradiada
para analisar este(s) modo(s) inteiramente novo(s) de socia-
bilidade(s). Daí deriva a importância de “constituir uma nova
relação de sentido a partir dos relacionamentos à distância,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

421
mediados por computador, em tempo real e com identidades
oscilantes” (MARCONDES FILHO, 2008, p. 52).
Um primeiro passo fundamental para uma problema-
tização mais condizente com este novo panorama seria o de
analisar os nós – pontos de encontro virtual, “lugares” onde
ocorrem os diálogos neste âmbito. Estes últimos trazem carac-
terísticas inteiramente novas na comparação com a comunica-
ção interpessoal ou irradiada. Estas orbitam em torno do ano-
nimato: “Eu não sei com quem converso, pois eu não sou eu e
ele não é ele. Somos figuras de identidades inexistentes, somos
mistérios personalizados. Dialogamos como linguagem pura,
sem os corpos humanos; somos mera fala contínua, o discurso
falando a si mesmo” (MARCONDES FILHO, 2008, p. 52).
O caráter mais evasivo, o anonimato recíproco dos in-
terlocutores, a dimensão estética das ações na rede, a apro-
priação mais efetiva do conteúdo são todas características, se-
não novas, numa dimensão jamais verificada até a emergência
destes novos dispositivos tecnológicos. Consequentemente,
requerem recursos analíticos mais condizentes com este au-
mento de complexidade.
Feito este breve preâmbulo, voltemo-nos à questão do
contínuo atmosférico mediático. Como argumentado, uma das
críticas principais ao modelo de Luhmann seria o fato de o ale-
mão não considerar o espaço-entre (os sistemas sociais e entre
estes e os sistemas psíquicos). Assim, a problematização que
prevê o fechamento operacional dos sistemas e a consequente
ausência de trocas entre estes e o meio configuraria uma das
PARA COMUNICAR O INCOMUM

422
principais diferenças do modelo proposto por Ciro Marcondes
Filho (2008).
Como solução para o problema do espaço-entre, Mar-
condes Filho formula a noção de contínuo atmosférico mediá-
tico. Os pólos deste modelo são a tecnologia e a massa indis-
tinta das sociedades contemporâneas. Estas duas instâncias, ao
contrário do que previsto no modelo de Luhmann, não esta-
riam fechadas operacionalmente. Consequentemente, haveria
troca efetiva nesta relação. É justamente o espaço entre estes
dois polos, carregado de sentido, que configura o contínuo at-
mosférico mediático (MARCONDES FILHO, 2008).
Portanto, nesta problematização, a tecnologia teria a
sua autonomia, suas regras próprias de funcionamento. Con-
tudo, diferentemente do fechamento dos sistemas no caso do
modelo de Luhmann, ela interagiria, sim, com a sociedade,
criando e proporcionando uma série de ações e espaços para
o maior desenvolvimento de áreas como a economia, a políti-
ca e etc. Mais do que um sistema operacionalmente fechado,
configuraria uma espécie de infraestrutura inerente a todos os
demais sistemas sociais, “algo que se coloca na base delas”
(MARCONDES FILHO, 2008, p. 53).
No que diz respeito à massa indistinta, tradicional ca-
tegoria no âmbito da teoria da comunicação, Ciro Marcondes
Filho (2008) argumenta que estes indivíduos se agrupariam de
forma menos padronizada do que problematizações mais clássi-
cas sobre o tópico supõem. Os indivíduos, para o autor brasilei-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

423
ro, agregam-se vez por outra – seja participando de grupos es-
pecíficos (um time de futebol, uma categoria profissional), seja
enquanto tags específicas (grupos de consumidores, audiências
de algum tipo de entretenimento, etc.). Assim como a tecnolo-
gia entranha-se e dissolve-se nas instituições e outras instâncias
sociais de modo mais ou menos aleatório, também as pessoas se
distribuem mais ou menos desse modo no mundo social.
É no contínuo atmosférico mediático, argumenta Mar-
condes Filho, que se deve focar quando se busca o cerne da co-
municação nas sociedades tecnologicamente avançadas: “(…)
o ‘vazio’ entre as coisas, o vácuo entre tecnologia e massa in-
distinta é preenchido pelo contínuo atmosférico. É aqui que
se estruturam os sentidos da comunicação de massa” (MAR-
CONDES FILHO, 2008, p. 53).
Em linhas gerais, a compreensão do desenvolvimen-
to do contínuo atmosférico mediático está ligada à trajetória
do próprio processo comunicativo. Portanto, ao aumento da
complexidade no mundo social. Na comunicação interpessoal,
além da presença física dos indivíduos, existe todo um contexto
de fundo, ele próprio, elemento fundamental dos significados
ali produzidos. Com o surgimento da comunicação irradiada,
é necessário criar algo equivalente, que “substitua” o contexto
de uma comunicação presencial. Eis a gênese do contínuo at-
mosférico mediático (MARCONDES FILHO, 2008).
Assim, ainda que exista uma dispersão geográfica des-
sa massa indistinta, o contínuo atmosférico mediático funciona
como o elemento transversal. Em outras palavras, faz “(…) o
PARA COMUNICAR O INCOMUM

424
papel da atmosfera, do campo de sensações e de forças visíveis
e invisíveis que constituíam a relação direta” (MARCONDES
FILHO, 2008, p. 57). A estruturação de uma comunicação po-
lítica disseminada pelos meios de comunicação de massa no
III Reich inaugurou esse novo âmbito da comunicação huma-
na. Foi problematizado, no âmbito dos estudos da Escola de
Frankfurt, sob o conceito de “Indústria Cultural”. O surgimen-
to das tecnologias de comunicação e informação digitais, na
medida em que mudam substancialmente os modos de sociabi-
lidade, também contribuem para o aumento da complexidade
do contínuo atmosférico mediático. Isso, consequentemente,
pede atualizações, construções de novas ferramentas teóricas
para a análise deste estágio relativamente novo não apenas da
comunicação política, mas da comunicação humana em geral.

Considerações Finais

O artigo propôs uma reflexão sobre os limites da teoria


de Luhmann, tendo como ponto de partida a crítica de Mar-
condes Filho. O filósofo brasileiro destaca a insuficiência da
teoria de Luhmann para dar conta da complexidade das atuais
dinâmicas culturais, comunicacionais e tecnológicas da socie-
dade. A justificativa principal para a proposição de um novo
modelo é o elemento novo das tecnologias de comunicação
e informação neste início de século XXI. O ambiente digital,
destaca Marcondes Filho, produz uma comunicação com ca-
racterísticas diferentes, quando comparada aos pressupostos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

425
teóricos de Luhmann. Assim, à comunicação entre sistemas
psíquicos e à comunicação promovida pelos meios de comuni-
cação de massa, previstas no modelo de Luhmann, falta acres-
cer as singularidades da comunicação digital que emerge na
cultura contemporânea.
Na postulação de Luhmann sobre a opinião pública,
Marcondes Filho problematiza a falta de um vetor que ligue
os sistemas sociais e individuais, ao mesmo tempo em que de-
fende que este componente advenha da teoria da comunicação.
Neste sentido, formula um contínuo atmosférico comunicacio-
nal entre os sistemas sociais e entre eles e os indivíduos. Este
contínuo nasce como indústria cultural, mas assume na cultura
contemporânea contornos mais amplos e difusos das culturas
de massas. O contínuo atmosférico mediático teria como polos
a tecnologia e a massa indistinta das sociedades contempo-
râneas. Em oposição ao modelo de Luhmann que propunha
sistemas operacionalmente fechados e ausência de trocas entre
eles e o meio, neste novo modelo, as duas séries não estariam
fechadas; ao invés disso, verificam-se trocas efetivas entre elas
– esta é uma das principais diferenças entre os modelos teóri-
cos. E é neste entre do contínuo atmosférico que os sentidos da
comunicação de massa se estruturam.

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OS APOIOS DA FAPESP E UMA POSTURA INTELEC-
TUAL REVELADA

Rodrigo Gabrioti1

Parte da trajetória de pesquisa do professor Ciro Mar-


condes Filho passa por trabalhos fomentados junto à Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Tal
afirmação se sustenta graças a um recorte de nossa pesquisa
de Doutorado, que mapeou os fomentos concedidos a pesqui-
sadores em Comunicação, entre os anos de 1992 e 2016. O re-
ferido estudo teve como base documental a Biblioteca Virtual
(BV)2 da FAPESP, o centro de documentação e informação
da Fundação, que armazena os principais dados sobre projetos
de pesquisadores que conseguiram fomento nas mais diver-
sas modalidades. Optamos em mapear as Bolsas de Estudo no
Brasil, as Bolsas de Estudo no Exterior e os Auxílios à Pes-
quisa Regulares, Professor Visitante e Publicações. Estabele-
ceu-se como período inicial, 1992, por ser o primeiro ano de

1 Jornalista. Doutor em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (2018).


Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (2009). Coordenador e
professor do curso de Jornalismo da Escola Superior de Administração, Marketing e Comuni-
cação (ESAMC – Sorocaba/SP). Integrante do Grupo de Pesquisa Mídia, Culturas e Tecnolo-
gias Digitais na América Latina (INTERCOM) e do Grupo de Pesquisa Pensamento Comuni-
cacional Latino-Americano (PCLA) da UNESP Bauru, cadastrado no CNPq.
2 O Relatório de Atividades 2016 da FAPESP revelou que a Biblioteca Virtual conta entre
1992 e 2016 com 118.583 Bolsas no Brasil; 9.392 Bolsas no Exterior e 90.393 Auxílios à
Pesquisa cadastrados.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

429
registro de pesquisas no sistema, e 2016, por ser o último ano
de financiamento a pesquisas que seriam concluídas antes do
encerramento do nosso Doutorado, no primeiro semestre de
2018. O ano de 2017 foi desconsiderado para que não hou-
vesse nenhuma pesquisa em andamento, e de alguma forma,
as informações fossem parciais. Embora nem tão organizado,
em 2018, a Biblioteca Virtual passou a ter dados generaliza-
dos das solicitações de financiamento do início das concessões
que vêm desde a década de 1960, período em que a FAPESP
foi definitivamente criada, após acalorados debates e disputas
político-ideológicas.
Durante o andamento da pesquisa que realizamos, jun-
to ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uni-
versidade Metodista de São Paulo, entre 2014 e 2018, ana-
lisando 912 projetos distribuídos em bolsas de estudo para
Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado, Doutorado Direto
e Pós-Doutorado, no Brasil e no Exterior, bem como aos auxí-
lios regulares à pesquisa, de professor visitante e publicação,
percebemos que era necessário ir um pouco além desse pano-
rama taxonômico. Foi quando decidimos, diante das amostras
dos estudos nacionais, buscar os pesquisadores com o maior
número de fomentos conseguidos em cada modalidade, dentro
do período analisado, para entrevistá-los, a partir de questio-
nário estruturado, com perguntas que versaram sobre o papel
da FAPESP, como possível legitimadora da Comunicação, e a
perspectiva de cada pesquisador em relação ao impasse con-
ceitual vivido pela Área bem como a contribuição de cada per-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

430
curso formativo para seu enriquecimento e engrandecimento,
sob o ponto de vista da organicidade taxonômica, estabelecida
a partir da identificação derivada dos projetos. E já dentro des-
ta proposta, é que encontramos, entre as Bolsas de Estudo no
Brasil, a liderança do professor Ciro Marcondes Filho3.
A partir da experiência com a pesquisa que deflagramos
e, na coincidência de encontrar a chamada para esta obra, que
celebra os 70 anos do professor, decidimos submeter aos or-
ganizadores desta edição a proposta de analisar uma pequena,
mas importante e contributiva amostra do trabalho do home-
nageado na supervisão de projetos bem como em suas pesqui-
sas autorais e atividades institucionais, que tenham recebido a
chancela da FAPESP no recorte temporal já mencionado. É por
este encontro que decidimos apresentar Ciro Marcondes Filho
em seu perfil de pesquisador; em seu desempenho no cenário
de fomentos obtidos em uma das agências mais respeitadas, no
Brasil e no Mundo; em sua repercussão midiática e na cons-
tituição da divulgação científica da própria FAPESP. Estratos
pelos quais conseguimos demonstrar, sob análises em fontes
documentais e que se complementam, diretamente da fonte,
uma vez que agregamos, neste texto, conceitos e pressupostos
do professor, colecionados em uma entrevista que realizamos
com ele, por e-mail, no ano de 2017.

3 Os outros professores entrevistados na pesquisa original que serviu de base para este capí-
tulo foram: Maximiliano Martin Vicente (UNESP Bauru); Lúcia Santaella (PUC-SP); Ana
Claudia Mei (PUC-SP), todos na condição de lideranças de outras modalidades de fomento
dentro das Bolsas no Brasil. Também foi entrevistada a coordenadora de Ciências Humanas e
Sociais II da FAPESP, professora Esther Império Hamburger.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

431
Brevemente, para contextualizar o cenário pelo qual
transitamos, dos 912 projetos apoiados pela FAPESP, dentro
da Área da Comunicação, entre os anos de 1992 e 2016, se-
guindo os recortes de modalidades já reveladas, a distribuição
de 583 Bolsas no Brasil, 82 Bolsas no Exterior e 247 Auxílios
à Pesquisa4 é demonstrada nos quadros que seguem:

QUADRO 1 – Bolsas no Brasil


Categoria Anos Quantidade
Iniciação Científica 1992-2016 299
Mestrado 1992-2016 178
Doutorado 1993-2016 68
Doutorado Direto 2007-2016 2
Pós-Doutorado 1998-2016 36
Fonte: Biblioteca Virtual FAPESP

QUADRO 2 – Bolsas no Exterior


Categoria Anos Quantidade
Estágio Iniciação Científica 2012-2016 14
Estágio Mestrado 2013-2016 8
Estágio Doutorado 2012-2015 5
Estágio Pós-Doutorado 2012-2016 7
Estágio Pesquisa 1996-2016 48
Fonte: Biblioteca Virtual FAPESP

4 Existem 20 tipos de Auxílio à Pesquisa. Em nossa tese “A FAPESP e a Ciência da Comuni-


cação: Legitimação, Contribuição e Construção da Área”, os fomentos selecionados foram o
Auxílio à Pesquisa Regular, o Auxílio à Pesquisa – Pesquisador Visitante e o Auxílio à Pesquisa
– Publicações. O primeiro oferece financiamento para projetos de pesquisa individuais; o segundo
cobre despesas a visitas de pesquisadores experientes no estado de São Paulo em período inferior a
1 ano; e o terceiro financia periódicos, artigos e livros com resultados originais de pesquisa.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

432
QUADRO 3 – Auxílio à Pesquisa
Categoria Anos Quantidade
Auxílios Regulares 1993-2016 71
Auxílios Publicações 1993-2016 117
Auxílios Pesquisador Visitante 1994-2016 59
Fonte: Biblioteca Virtual FAPESP

É liderando as supervisões de pesquisas em Pós-Dou-


torado, no Brasil e no Exterior, e também se tornando refe-
rencial teórico para estudos, nesta mesma linha de percurso
formativo, porém, entre as Bolsas de Pós-Doutorado no Ex-
terior, que aparece Ciro Marcondes Filho. Suas supervisões a
pesquisadores passam por questões centrais de seu trabalho de
investigação sobre Comunicação como: a Nova Teoria; o Me-
táporo; a Filosofia; as Aporias nos problemas epistemológicos;
sua Finitude; seus Poros e Passagens.
Discussões como essas se fazem presentes quando nos
aprofundamos nesse cenário do mapeamento das pesquisas de
Pós-Doutorado, em Bolsas no Brasil. Há de se considerar um
recente período de financiamento, entre 1998 e 2016. Nesses
18 anos de bolsas concedidas, essa fase de estudos, que simbo-
liza o amadurecimento de um pesquisador, representa tímidos
6,18% dos fomentos em um universo de 583 pesquisas apoia-
das, ou seja, são 36 bolsas financiadas e pulverizadas apenas
no âmbito das universidades sendo 63,88% em instituições pú-
blicas e 36,12% em particulares.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

433
QUADRO 4 – Distribuição das 38 Bolsas de Pós-Doutorado
INSTITUIÇÃO NÚMERO DE ÍNDICE
BOLSAS PERCENTUAL
USP 19 52,78%
PUC-SP 13 36,12%
UFSCAR 2 5,55%
UNICAMP 2 5,55%
Fonte: Biblioteca Virtual FAPESP

Entre essas bolsas mencionadas, no quadro, o pesqui-


sador que mais conseguiu fomentos concedidos para a realiza-
ção de estudos foi Ciro Marcondes Filho, conforme demonstra
o próximo quadro, que se refere aos supervisores com média
de representatividade superior a 5%. Essa média foi construída
de acordo com o total de supervisores identificados e o número
de bolsas disponibilizadas em levantamento realizado na Bi-
blioteca Virtual da FAPESP.

QUADRO 5 – Supervisores de Pós-Doutorado


NÚMERO
ÍNDICE
SUPERVISOR INSTITUIÇÃO DE
PERCENTUAL
BOLSAS
Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho ECA/USP 4 11,11%
Profa. Dra. Maria Cristina
ECA/USP 3 8,33%
Castilho Costa
Profa. Dra. Ana Claudia Mei PUC-SP 3 8,33%
Prof. Dr. Norval Baitello Jr. PUC-SP 3 8,33%
Profa. Dra. Jerusa de Carvalho
PUC-SP 2 5,55%
Pires Ferreira
Prof. Dr. Samuel José Holanda
UFSCAR 2 5,55%
de Paiva
Fonte: Biblioteca Virtual FAPESP
PARA COMUNICAR O INCOMUM

434
O professor também mantém a liderança, na mesma
modalidade, mas com bolsistas no Exterior. Os índices são
menores porque se trata também de um curto espaço de tem-
po em que o financiamento é concedido. As chamadas Bolsas
Estágio no Exterior em Pós-Doutorado foram ofertadas entre
2012 e 2016, em um total de sete, o que representa 8,54% da
categoria Bolsas no Exterior. Seis dessas bolsas estão na USP
(85,71%) e uma (14,29%), na PUC-SP, o que também revela
que apenas a capital paulista teve acesso a esse benefício com
uma média praticamente de uma bolsa por ano. A Europa e a
América do Norte aparecem entre os destinos dos pesquisa-
dores, como ilustra o quadro a seguir.

QUADRO 6 – Países das 7 Bolsas Exterior em Pós-Doutorado


PAÍS NÚMERO DE ÍNDICE PERCENTU-
BOLSAS AL
EUA 2 28,58%
Canadá 2 28,58%
França 1 14,28%
Inglaterra 1 14,28%
Alemanha 1 14,28%
Fonte: Biblioteca Virtual FAPESP

Índices como estes demonstram o movimento de pes-


quisadores brasileiros pelo mundo. Como já detalhado, parte
disto tem relação direta com Ciro Marcondes Filho que afir-
mou, em sua entrevista, a manutenção de seus vínculos interna-
cionais tanto com países europeus quanto com os EUA. Aliás,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

435
ele pontua as diferenças da realização da pesquisa acadêmica
em Comunicação nestes dois importantes espaços mundiais.
Em relação aos EUA, afirma que o país é atraente para quem
pretende fazer pesquisa administrativa, com gráficos e estatís-
ticas. Os volumes de dados, de acordo com ele, têm represen-
tatividade no cenário norte-americano, que pouco prioriza a
qualidade da Comunicação. Já entre os europeus, o professor
fala da tradição secular das investigações de fundo, nas quais
os pesquisadores buscam compreender um pouco mais da na-
tureza da Comunicação. Ou seja, os estudos qualitativos estão
para os europeus assim como os estudos quantitativos estão
para os norte-americanos.
Por tais práticas, é que Ciro Marcondes Filho (2017)
considera que a realização da pesquisa é uma condição de pos-
tura intelectual: [...] ou você vai em busca de reflexão, sofis-
ticação teórica e especulativa, em suma, de certa densidade
de pensamento, ou você vai aprender a usar e a vender esses
resultados a grandes empresas e grupos políticos”.
Seja por relações europeias ou norte-americanas, em
seu trabalho com pesquisadores de Pós-Doutorado, o profes-
sor ressalta que “construir uma área” é um trabalho longo e
exaustivo que se madura muito tempo depois. Apesar de esti-
mular a ida de seus orientandos ao exterior, Ciro Marcondes
Filho enaltece a energia e o potencial de trabalho incompará-
veis do Brasil onde ele prefere fazer seus investimentos, ainda
que a realidade estrangeira sirva para arejar as ideias a respeito
do nosso próprio país. Apesar de sua liderança ser exercida,
PARA COMUNICAR O INCOMUM

436
numericamente, no Pós-Doutorado, ele nos disse em entrevista
que o momento mais importante da formação do pesquisador é
a Graduação, pois lá, se encontram a criatividade, a energia e
o prazer pelo novo dos indivíduos.

Supervisões identificadas: uma retomada

Ciro Marcondes Filho orientou quatro pesquisas com


Bolsa de Pós-Doutorado. Aliás, infere-se que, diante do mapa
de países, seus orientandos foram discutir a Filosofia dos
Meios, majoritariamente, na Europa, o que coincide de cer-
to modo com as origens da Teoria Crítica naquele continente.
Inclusive, uma das pesquisas se propunha a trabalhar por uma
Teoria Negativa da Comunicação, ou seja, percebem-se hipo-
teticamente afinidades com os conceitos mais reflexivos das
práticas comunicacionais sob a herança da Indústria Cultural.
Por conta dessa maioria de bolsistas, se justifica o grande nú-
mero de estudos ligados à Filosofia da Comunicação, Alterida-
de e Filosofia.
Outro dado que envolve o professor, neste levantamen-
to, é que em relação às bibliografias, três pesquisas (42,86%)
trazem os nomes de autores utilizados. E entre essas três, Ciro
Marcondes Filho aparece duas vezes (66,67%), colocando
assim dentro das amostras analisadas, o Brasil pela primeira
vez na frente, quando o assunto é referencial bibliográfico, já
que predominantemente os índices apontam larga vantagem à
adoção de autores estrangeiros. Essa posição de Ciro Marcon-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

437
des Filho é justificável porque, ao liderar essa modalidade de
fomento, pela qual se dedica a produzir uma Nova Teoria da
Comunicação, seus orientandos o colocam naturalmente como
referencial bibliográfico, muito em função do ineditismo do
tema, o que nos faz compreender que seu grupo de estudos da
USP, o FiloCom, contribui para o fluxo circulatório das discus-
sões a respeito da Comunicação.
A descrição de seus trabalhos de supervisão em Pós-
-Doutorado passa por estudos pontuais haja vista o pouco tem-
po de concessão do fomento pela FAPESP. Em 2014, ele su-
pervisionou Ana Paula Martins Gouveia, na ECA/USP, com a
pesquisa “O Ornamento do Caminho do Meio: uma lógica filo-
sófica das possibilidades comunicacionais ainda pouco explo-
rada”. Esta orientanda já havia conseguido o fomento, também
em 2012, quando foi para a Universidade da Califórnia, pes-
quisar sob a supervisão do Prof. Dr. José Ignácio Cabezón. Em
2014, o estágio de pós-doc foi na França, na École Pratique
des Hautes Etudes, com o pesquisador Mattew T. Kapstein.
Esta sua orientanda se propôs a traduzir, comentar, contextua-
lizar e atualizar um dos textos mais significativos da Filosofia
e da Lógica Budista Tibetana, discutindo sua relação com a
Nova Teoria da Comunicação e o “Quase Método”, propos-
to por Marcondes Filho como metáporo. A pesquisa também
se propôs à lógica da manifestação dos fenômenos e as efeti-
vas possibilidades comunicacionais entre os seres dentro da
perspectiva apresentada no texto de Shantarakshita que toca,
evidencia e talvez até amplia os aspectos dessa Nova Teoria
PARA COMUNICAR O INCOMUM

438
da Comunicação. Enfim, através disso, o estudo se propôs a
revelar o texto em questão aos pesquisadores da nossa Área.
De 2003 a 2006, Ciro Marcondes Filho supervisionou
a doutoranda Danielle Neves de Oliveira, na pesquisa “Poros
– ou as passagens da Comunicação”, desenvolvida em cone-
xão com outro projeto, patrocinado pela FAPESP, que foi “Por
Uma Nova Teoria da Comunicação para a Era Tecnológica”.
Nesse trabalho, voltou-se à recuperação dos fundamentos de
uma disciplina que parece ter atingido, no fim do século XX,
uma certa complexidade. Com isso, a noção do comum foi o
ponto de partida para fundamentar o ato de comunicar. Em um
estreito diálogo com a Filosofia e suas aporias, três questões
temáticas se desenvolveram: (a) problemas epistemológicos
da Comunicação; (b) Comunicação como oposição à finitude;
(c) Poros ou Passagens da Comunicação.

Produções autorais

Em seu histórico autoral, junto à FAPESP, até 9 de se-


tembro de 2017, o professor havia conseguido 29 fomentos
entre auxílios à pesquisa e bolsas de estudo. Foram 7 auxílios à
pesquisa concluídos, 17 Bolsas no Brasil e 5 no Exterior, todas
concluídas. Por produção autoral, entendem-se as solicitações
de Ciro Marcondes Filho por fomentos que patrocinam seus
próprios projetos de pesquisa sem que estes sejam a interme-
diação que ocorre no caso de solicitações para orientandos.
Ao analisarmos os auxílios à pesquisa, que se referem às ati-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

439
vidades de investigação do professor, encontramos em 2016, a
solicitação de apoio para Organização de Reunião Científica,
mais especificamente, para o V Encontro Nacional da Rede
de Grupos de Pesquisa em Comunicação, realizado na ECA/
USP, em novembro do referido ano. Em seu projeto, justifica
o Encontro pela necessidade de consolidar a Área da Comu-
nicação, no cenário acadêmico e intelectual brasileiro, sendo
seus principais problemas a Ontologia da Comunicação e as
possibilidades epistemológicas correntes por meio do debate,
interlocução e disponibilização aos pensadores da Área para
a construção desse saber científico nas Ciências Humanas. O
objetivo principal do referido Encontro foi colocar a máquina
intelectual para pensar e produzir, segundo as palavras do pro-
fessor Ciro, que se propôs também, a publicar os resultados
das discussões em congressos, livros e revistas científicas.
Em 2012, também havia solicitado verba da FAPESP,
desta feita, para o I Encontro Nacional da Rede de Núcleos de
Pesquisa em Comunicação que contou com a participação do
Professor Ignácio Castro Rey, da Universidade Complutense
de Madrid, na Espanha, convidado para discutir a Comunica-
ção em interface com a depressão informativa. Também houve
sessões que trataram sobre Teoria da Comunicação, Filosofia,
Epistemologia, Alteridade, Mass Media com estudos de Rá-
dio, TV, Imprensa e Jornalismo. O professor David Gunkel,
da Universidade de Illinois, falou sobre Comunicação e Alte-
ridade. Houve discussão também sobre meios digitais, redes
sociais, Cibercultura e Inteligência Coletiva, interfaces sociais
PARA COMUNICAR O INCOMUM

440
com a juventude, subjetividade, interculturalidade, espaço,
Comunicação Comunitária e Urbana. O professor Manfred
Fassler, da Universidade de Frankfurt, falou sobre “A Comu-
nicação e os Novos Paradigmas”, além de discussões sobre in-
terfaces mercadológicas no âmbito da Literatura, Publicidade
e Relações Públicas.
A primeira década de atividades do FiloCom somada
à discussão da Nova Teoria da Comunicação, em 44 anos da
Escola de Comunicações e Artes da USP, foi comemorada em
evento, fomentado pela FAPESP, com sessões de trabalho e
cinco mesas redondas sendo elas “O conceito de Comunica-
ção”, com as participações de Luiz Martino (UnB), Norval
Baitello Jr. (PUC-SP), Alice Mitika (USP) e Marco Toledo
de Assis Bastos (USP); “Pesquisa e Investigação em Comu-
nicação”, com Juremir Machado Silveira (PUC-RS), Maria
Immacolata Vassalo de Lopes (USP), Jairo Ferreira (Unisinos)
e Nizia Villaça (UFRJ); “Comunicação e Tecnologias”, com
David Gunkel (Universidade de Illinois, EUA), Francisco Rü-
diger (PUC-SP), Eugênio Trivinho (PUC-SP) e Massimo di
Felice (USP); “Imagem e Corpo”, com José Teixeira Coelho
Netto (USP), Rose de Melo Rocha (ESPM), Maria Paula Si-
billia (UFF) e Alex Galeno (UFRN); “Linguagem e Estudos
Culturais”, com Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUC-SP), Mayra
Rodrigues (USP), Marcos Fernando Lopes (FFLCH USP) e
Liv Sovik (UFRJ).
Em 1998, Ciro Marcondes Filho buscou recursos da
Fundação para a publicação científica “Redes: obliterações no
PARA COMUNICAR O INCOMUM

441
fim do século”. No ano de 2014, levou à ECA/USP, o pesqui-
sador visitante Dieter Mersch, da Universidade de Artes de Zu-
rique, na Suíça, para um seminário de formação e acompanha-
mento de pesquisadores em Filosofia da Imagem, no FiloCom,
o Núcleo de Estudos Filosóficos da Comunicação, e no Pro-
grama de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais
da USP. Já, no quinquênio 2009/2014, trabalhou com apoio da
FAPESP, o projeto temático “O dilema da Incomunicabilidade
– aplicação do projeto”, que mostrou o desejo de Comunica-
ção do ser social que nem sempre se realiza. Apresenta a In-
comunicabilidade como um dilema em época com quantidade
e intensidade fantástica de aparelhos para se comunicar. Com
essa pesquisa, atuou no amplo campo das formas sociais da
difusão em massa, pois, na Comunicação elas ocorrem, por
exemplo, na produção e emissão de notícias, uma vez que re-
ceptividade e efeitos não podem ser plenamente verificados.
Assim a Incomunicabilidade se dá no plano das indivi-
dualidades e subjetividades, o que lhe fez considerar também,
o plano das relações conjugais. E de 2000 a 2004, trabalhou o
projeto temático “Por uma Teoria da Comunicação para a Era
Tecnológica”, em que se propôs a construir um modelo teórico
do estudo de Comunicação que contemple os desdobramentos
das novas tecnologias (interatividade, redes, tempo real, espa-
ço virtual, digitalização de imagens e transformações do tex-
to); sugerir uma nova metodologia; aplicar seu novo modelo
à pesquisa em Comunicação no Brasil; elaborar propostas de
prática universitária e acadêmica no Departamento de Jorna-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

442
lismo e Editoração da ECA/USP, com editoração eletrônica de
jornais, revistas e livros; formar grupos de estudos dirigidos
e vincular a Iniciação Científica a pesquisadores de Pós-Gra-
duação ao FiloCom. Todas essas iniciativas e propostas são
justificadas pelo professor Ciro como resgate do entusiasmo
pela Universidade.
Tanta atividade, evidentemente, resultou em repercus-
são do seu trabalho, analisado midiaticamente em publicações
específicas da Fundação, como por exemplo, a Revista Pes-
quisa FAPESP e em notícias vinculadas à agência de fomen-
to da FAPESP. Em março de 2015, o professor participou de
um curso de extensão que abordou a Comunicação na Amé-
rica Latina. Sua contribuição foi pelo olhar da juventude e as
transformações da cultura comunicacional contemporânea.
Em junho de 2013, havia notícia de aula inaugural do Mestra-
do em Comunicação da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
onde apresentou “A Construção da Comunicação como campo
autônomo do saber”, resultado, inclusive, de seu projeto de
pesquisa do FiloCom, junto à FAPESP. Nessa aula inaugural,
ele também tratou o Dilema da Incomunicabilidade. Em 2009,
suas notícias versaram sobre o oferecimento de bolsas de Pós-
-Doutorado. Já, na Revista Pesquisa FAPESP, a edição 143, de
janeiro de 2008, citou o pesquisador que também integrou o
primeiro dossiê da Revista Matrizes da ECA/USP, tema da re-
portagem. Ciro Marcondes Filho tratou a Comunicação Inter-
pessoal, a partir de um trabalho de recuperação dos conceitos
de Emmanuel Levinas.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

443
Todas estas produções reforçam o compromisso do
pesquisador em discutir a Área, seja por suas iniciativas de
pesquisa própria, pelas supervisões de orientandos ou pela tro-
ca entre os pares. São episódios que podem configurar o que
ele chama de batalha junto a colegas, nos últimos 10 ou 20
anos, para que haja o reconhecimento efetivo da Área. Ciro
Marcondes Filho (2017) afirma, em entrevista a este autor, que
a FAPESP é um fator de legitimação da nossa Área, por isso,
não hesita em dizer que Comunicação é coisa séria, porém,
poucos notam isso.

Tivemos nossa ‘doença infantil”, que foi nossa sub-


missão a outros saberes, inclusive na montagem de
corpos docentes das faculdades de Comunicação.
Como poucos defendiam essa autonomia, muitos
colegas de outras áreas vinham com a concepção de
que “Comunicação qualquer um pode ensinar”. Mas
não! Como ciência adulta e respeitada, seus postos
devem ser efetivamente ocupados por formados em
estudos comunicacionais sérios e aprofundados.

Além de tais pressupostos, digamos mais epistemológi-


cos, no que podemos considerar como aspectos práticos, Ciro
Marcondes Filho reconhece que se vive um período de produ-
ção excessiva de mensagens. Uma abundância materializada
em vídeos, textos, selfies, entre outros exemplos. A Vontade de
Comunicação, assertiva registrada em “Para entender a Co-
municação: contatos antecipados com a nova teoria” (2008),
sobre a qual diz que todos querem comunicar, porém, poucos
PARA COMUNICAR O INCOMUM

444
aceitam a Comunicação, que só ocorre mediante autorização
do sujeito.
Essa autorização deriva da noção do incorpóreo, que
faz parte do que ele chama de Fenomenologia da Comunica-
ção, ou seja, a ocorrência de um momento sutil em que “algo
acontece” se tornando um componente imprescindível à co-
municabilidade, viabilizada por um momento que não pode
ser captado, medido nem avaliado. É por isso que ele afirma
que o grande poder de produção de mensagens não equivale ao
processo de recepção.
Sob essa perspectiva, Ciro Marcondes Filho enve-
reda pelos caminhos da Filosofia da Comunicação, temática
inclusive, que dá nome ao seu grupo de pesquisa na USP, o
FiloCom. Essa trajetória filosófica é explicada pelo autor em
função da necessidade que percebeu em dotar a Comunicação
do que chamou de estatuto teórico autossuficiente. A proble-
mática foi identificada como forma de criar efetivamente os
estudos da Área. É que pelo fato de ter nascido como apêndice
de outras Áreas (Psicologia, Filosofia, Administração, etc...),
a Comunicação não teve existência epistemológica própria,
o que a fez por décadas, parasitar outras disciplinas, segundo
a definição do professor Ciro (2017) ao longo da entrevista.
Algo que mudou há pouco tempo.

Contudo, desde 1990, com a expansão da internet,


a crise das ideologias e o aparecimento do chama-
do “pós-moderno”, constatou-se que Comunicação
poderia – e deveria – ser uma área de investigação
PARA COMUNICAR O INCOMUM

445
própria, sem depender nem ser “objeto teórico” de
outras disciplinas. Comunicação precisava se livrar
do título absurdo e equivocado de ser uma “ciência
aplicada”

Ele recorda que tais rotulações ainda permaneciam


porque após a Virada Linguística, de Wittgenstein, no início do
século XX, outras ciências fizeram uso metafórico da Comu-
nicação apropriando-se de termos com informação, mensagem
e a própria comunicação para campos como Biologia, Física,
Química e outras Ciências Exatas. O pesquisador contesta esse
acontecimento porque os referidos processos não têm nada de
Comunicação e ainda tece críticas ao modelo de Shannon,
considerando todas essas manifestações, uma vulgarização de
conceitos.

O que nos falta, de fato, é mais seriedade com o


trato da Comunicação. Por não ser visto com se-
riedade, o fenômeno da Comunicação foi sempre
o “primo pobre” das ciências, “ciência aplicada” e
outras barbaridades criadas por quem não entendeu
nunca de Comunicação, mas esteve em posição-
-chave nos órgãos de financiamento para organizar
burocraticamente os saberes. Ela tem que se impor
como saber, saber autônomo, como campo teórico
próprio [...] (CIRO MARCONDES FILHO, 2017)

Essa busca por um estatuto epistemológico repele,


de alguma forma, a fragmentação temática como sequela da
imaturidade da Área. Ciro Marcondes Filho ilustra que muitas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

446
Áreas ingressam na Comunicação para “dividir o bolo” e isto
só muda de diapasão, se houver uma ciência crescida que sabe
o que quer e como quer, operando com organização e unifor-
mização de procedimentos que tornam, segundo o professor, a
Área unitária ou pelo menos, não pulverizada. Entretanto ain-
da vigora um sintoma identificado pelo pesquisador que não
é exclusivo da Comunicação: a competição por paradigmas.
Sobre isto, Ciro Marcondes Filho (2017) diz que a briga das
ciências não difere de outras brigas da sociedade. “[...] não im-
porta tanto o quanto de verdade um paradigma possui; vence e
impõe-se aquele que angariou mais adeptos, que seduziu mais,
que encontrou maior número de multiplicadores”.
Multiplicador, mas não paradigmático, é o trabalho do
professor Ciro Marcondes Filho. Neste capítulo, que trouxe
apenas uma das vertentes de sua trajetória, consideramos os
apoios da FAPESP às suas pesquisas, capazes de demonstrar
sua grande articulação pela legitimação da área em projetos e
ações. Ficou evidenciada a sua postura intelectual, que é de re-
flexão e sofisticação teórica. E é isto que ele se propõe a fazer
quando busca, nas mais variadas expressões da Comunicação,
problemáticas de sentido filosófico para investigar. Aventuro-
-me pela Fenomenologia, que o professor Ciro defende, ao di-
zer que o incorpóreo se faz presente, em seu trabalho, a ponto
de contrariá-lo em sua tese de que tal situação não se mede,
uma vez que, neste caso aqui evidenciado, é possível mensu-
rar o quanto ele produziu à luz da FAPESP. Basta olhar para
tantas realizações que se somam pelas indagações trabalhadas
PARA COMUNICAR O INCOMUM

447
com seus orientandos ou que se dividem entre tantas formas de
divulgação científica (encontros, eventos e publicações) for-
mando assim uma imensa Vontade de Comunicação.

Referências

BIBLIOTECA Virtual da FAPESP – fonte referencial de informação para


a pesquisa apoiada pela FAPESP. Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo. São Paulo, 2004. Base de dados. Disponível em:
<http://www.bv.fapesp.br/pt/>. Acesso em: 27 mar. 2016.
CHASSOT, Walkiria; HAMBURGER, Amélia I. Ideias e Ações que im-
plantaram e consolidaram a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo. In: MOTOYAMA, Shozo (Org.). FAPESP: uma história de
política científica e tecnológica. São Paulo: FAPESP, 1999. 296p.
CONCESSÕES PARA BOLSAS E AUXÍLIOS À PESQUISA – 2017.
FAPESP. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. São
Paulo. Disponível em: <http://www.fapesp.br/10841> . Acesso em: 3 fev.
2018.
LINHA DO TEMPO. FAPESP. São Paulo. Base de dados. Disponível em:
<http://www. bv.fapesp.br/linha-do-tempo>. Acesso em: 6 dez. 2014.
MARCONDES FILHO, Ciro. Depoimento concedido ao autor através de
correio eletrônico. Set. 2017.
MARCONDES FILHO, Ciro. Para entender a comunicação: contatos
antecipados com a nova teoria. São Paulo: Paulus, 2008. 172p.
MOTOYAMA, Shozo (Org.). Fapesp: uma história de política científica e
tecnológica. São Paulo: Fapesp, 1999. 248p.
MOTOYAMA, Shozo; HAMBURGER, A.I.; NAGAMINI, M. (Org.).
Para uma história da Fapesp: marcos documentais. São Paulo. 1999.
RELATÓRIO de Atividades 2015. Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp). São Paulo. Disponível em: <http://www.
fapesp.br/publicacoes/ relat2015pdf/>. Acesso em: 29 nov. 2016.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

448
RELATÓRIO de Atividades 2016. Resiliência na crise. Fundação de Am-
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). São Paulo. Disponível
em: <http://www.fapesp.br/ publicacoes/relat2016.pdf>. Acesso em: 7 out.
2017.
DI-FRAÇÃO
PALAVRA, NÚMERO, IMAGEM E SOM: ESQUEMA E
ACONTECIMENTO

Dieter Mersch1

1.
Palavra, número, imagem e som estão entre os meios
básicos de produção cultural de significado, estrutura e per-
cepção. São atravessados por técnicas e materialidades que
eles mesmos fundam e possibilitam. Ao processo clássico de
geração de imagem pela pintura pertence, por exemplo, o uso
de enquadramento e planificação, a geometrização do espaço,
técnicas de pincelada, aplicação de cor etc. Quanto à música,
cabe-lhe a estruturação tonal dos sons, a notação e afinação
por algoritmos. Poderíamos desenvolver uma teoria cultural
complexa de tais técnicas, a fim de aproveitar lugares e espa-
ços divisores e geradores dos diversos processos mediais. A
impressão de livros não apenas multiplicou textos, mas, como

1 Diretor do Instituto de Teoria (ITH) da Universidade de Artes de Zurique (ZhdK), na Suíça.


Estudou matemática e filosofia em Colônia, Bochum e Darmstadt. Entre 2004 e 2013, foi pro-
fessor de Teorias e Estudos dos Media na Universidade de Potsdam, Alemanha. Foi professor
convidado nas universidades de Chicago, Budapeste, Lucerna e é membro do Instituto Inter-
nacional de Pesquisa em Tecnologias Culturais e Filosofia dos Media (IKKM). Seu trabalho
é dedicado à filosofia dos meios, estética e teoria da arte, hermenêutica, filosofia da diferença,
filosofia da imagem e da linguagem. Publicou vários livros, entre eles O que se mostra: Mate-
rialidade, Presença e Acontecimento (2002, em alemão: Was sich zeigt: Materialität, Präsenz,
Ereignis). Página oficial: www.dieter-mersch.de. O presente texto, em versão adaptada de
uma conferência proferida na Bauhaus-Universität Weimar, foi especialmente cedido pelo
autor para este livro. Tradução de Danielle Naves e Maurício Liesen.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

451
mostraram Peter Burke e Frank Hartmann, criou uma política
do espaço público que liberou a ciência do esoterismo acadê-
mico para o “exoterismo” de um discurso coletivo. Foi algo
que sancionou instância da autoria, que anteriormente estava
vinculada à assinatura pessoal do manuscrito e, além disso,
inventou o leitor solitário. Ao mesmo tempo, atraiu uma série
de instituições para si, exigiu a invenção da indústria editorial,
bibliotecas e arquivos — como num templo de Mnemosine,
utilizou a arquitetura de modo mimético. E, no entanto, o pró-
prio texto é, de acordo com sua possibilidade, um medium que
permite acontecer algo imprevisível. Assim, a palavra, o al-
garismo, a imagem e o som não se referem unicamente a uma
rede de técnicas que os transportam e os suportam; ao contrá-
rio, eles são antes technai que escrevem, numeram, coletam ou
reproduzem, gerando percepções e discursos. Portanto, seria
necessário distinguir entre as técnicas que permeiam os pro-
cessos de produção de imagens, de sons ou de textos escritos
das technai, que também são elas mesmas que desdobram seu
próprio fascínio e, antes de mais nada, produzem simulacros
e ficcionalidades, ou seja, produzem cultura como realidade e
memória e equipam-na com poder simbólico.
Ao mesmo tempo, a referência às technai sugere um
campo no qual técnicas e artes se cruzam. Assim, elas alcan-
çam sua forma mais avançada, bem como suas fronteiras nas
práticas artísticas, sendo que por “processos artísticos da refle-
xão” entendo o processamento avançado de paradoxos. Elas
também impulsionam as várias technai (palavra, número, ima-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

452
gem e som) ao seu potencial máximo, e introduzem neles mo-
mentos de auto-referencialidade que dão origem àquelas con-
tradições e antinomias que rompem seus sistemas simbólicos.
Portanto, quando se fala de técnicas e meios, assim como de
meios como técnicas culturais e históricas, deve-se também
falar das artes que as questionam, tentam interrompê-las, con-
fundir ou des-locá-las. A arte joga em torno da fronteira da
técnica, erguendo nela novos espaços. E as mudanças, o acon-
tecimento do Outro, vêm primeiro de lá. Portanto, para mim,
a estética funciona como a pedra de toque da eficiência dos
meios como technai – assim como sua limitação mútua e inco-
mensurabilidade. A seguir, quero tentar uma comparação sis-
temática entre meios e técnicas básicos, a fim de elaborar sua
própria autonomia, bem como sua transgressão mútua. Anali-
sarei este último caso usando o exemplo da notação musical.
Para isso, é decisiva a tese de um retraimento, à qual atribuo
a categoria do acontecimento. É o acontecimento que marca o
lugar a partir do qual a dinâmica da história das técnicas cultu-
rais pode ser descrita em primeiro lugar.

2.
Por uma questão de brevidade, gostaria de começar
com algumas considerações programáticas sobre os meios en-
quanto técnicas culturais. Por meios entendo formadores ma-
teriais (materielle Formative), por meio dos quais estruturas e
significados são entregues e, como Luhmann disse, “trazidos à
forma”. Essa determinação sublinha o duplo aspecto da forma
PARA COMUNICAR O INCOMUM

453
e da matéria. Assim, nos meios não teríamos apenas que de-
cifrar seu lado estrutural, mas também sua materialidade que
não se faz legível como texto: ela mantém um recalcitrante,
um resíduo. Consequentemente, o aspecto dual da forma e da
matéria corresponde a uma duplicidade do meio ligada à pos-
sibilidade e limitação: os meios mostram-se tão produtivos
quanto limitados. Isso está relacionado ao que já se encontra
em Aristóteles em seu pensamento sobre a techné: ela desti-
na-se unicamente a trabalhar as substâncias, não a criá-las.
Assim, os meios estão baseados na transformação, na sobres-
crita do já dado, que pressupõe isso como presente, como dá-
diva (Gabe). Goodman, portanto, nos traz a afirmação lapidar:
“Criação significa transformação”. Os meios não se abrem em
geral, mas estruturam o Aberto, configuram cenas – e o Aberto
se oferece e aparece como acontecimento.
Se tomarmos agora das técnicas básicas dos meios,
a palavra, o número, a imagem e o som, perceberemos sua
não-convertibilidade. Seria particularmente difícil hoje explo-
rar isso, na onipresença simultânea dos meios e dos desejos.
Nenhum dos quatro modos tem precedência sobre os outros:
não são governados nem pela escrita nem pela matemática.
As diferenças dão-se antes – a princípio heuristicamente e em
intenção analítica – entre meios estéticos e discursivos. Os
primeiros estão relacionados com a produção de percepções,
principalmente visibilidades e audibilidade através de imagem
e som, os últimos, com estruturas representadas por números
ou cálculos, texturas, textos, discursos e comunicações. Tanto
PARA COMUNICAR O INCOMUM

454
os formatos estéticos como os discursivos não são estritamente
separáveis um do outro. A linguagem, embora “articulada”, é
sempre um acontecimento sensório. Por outro lado, imagens
ou percepções são fortemente textuais. A diferença reside es-
sencialmente no fato de que os esquemas discursivos servem
para produzir e implementar ordens significativas ou estrutu-
ras de significado, enquanto imagens ou músicas não podem
ser completamente atribuídas a elas; exigem um acesso dife-
rente. Seria algo menos estrutural do que fenomenológico. Eis
o resultado, para nos anteciparmos um pouco: mostrar ima-
gens e performar (devido à sua estrutura temporal) sons .
Os meios discursivos culminam no paradigma da es-
crita e da diferença; escrita no sentido de Derrida, entendida
como um sistema de incisões, desenhos e estruturas, diferença
como um jogo de repetição e alteração. Isso descreve o para-
digma básico para a consideração da cultura e da memória,
sua ordem simbólica e sua mediatização através dos signos.
O texto e/ou a linguagem podem se referir a qualquer coisa
que seja legível no sentido mais amplo – de livros a notações
e estatísticas a sistemas de tráfego ou fachadas de edifícios.
Independentemente das ferramentas de escrita utilizadas, tra-
ta-se sempre da geração de estruturas de significado. Não há
nada a ser acrescentado ou questionado em relação a isso –
talvez apenas o fato de tratar essencialmente do problema da
articulação, da natureza estruturada do significado, mas não
de seu acontecimento. Pelo contrário, eles já o pressupõem em
todas as partes. Decisivo é, então, o que se poderia chamar de
PARA COMUNICAR O INCOMUM

455
sua “ausência de início”, para utilizar uma expressão de Botho
Strauss. A escrita prova ser tão sem origem como portadora de
um “outro começo”. É incessantemente absorvida pelo acon-
tecimento. É por isso que Derrida, por um lado, disse que o
começo da escrita é repetição: isto é, não há um “primeiro”,
nenhuma creatio ex nihilo; por outro lado, como Lyotard ar-
gumentou, todo ato de fala ou todo ato de estabelecer um sinal
sempre se reinicia. Nietzsche levou isso em conta no seu estilo
aforístico, assim como Wittgenstein no Tractatus. Estas são
técnicas de descobrir o cisma fundamental ao qual se devem o
acontecimento da escrita e seu início.

3.
Com isso, chego ao ponto onde o cálculo de dedução
e de prova estão em casa: o número. Aqui são abordadas as
múltiplas técnicas de cálculo, a matemática, a especulação nu-
mérica e todo o obscurantismo da magia: esta última não deve
faltar numa teoria e história das técnicas culturais. Afinal, a
história da matemática sempre esteve sujeita a tal dicotomia:
aproxima-se de uma representação de ordem por excelência,
fazendo referência a um poder superior, a uma autoridade se-
creta. Portanto, a matemática pertence principalmente a algo
mistificador. O que já foi domínio de sacerdotes e iniciados,
permite hoje tanto a invocação de uma ordem divina, bem
como a medição terrena e o controle de espaços e tempos. Ela
avança para a base da tecnologia no sentido próprio, já que
a tecnicidade do técnico, em primeiro lugar, resulta dos pro-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

456
cedimentos de otimização e melhoramento, que por sua vez
representam conquistas matemáticas genuínas.
O número ocupa, neste contexto, o lugar de uma função
de ordem sintática, um algoritmo. Ao contrário da linguagem
e do texto, isso tem a ver apenas com regras, o que também
significa que a matemática não é uma questão de estruturas de
significado, mas de sistemas formais, de sintaxes que, ao mes-
mo tempo, sugerem o status medial particular da matemática.
Desde o início, os números e a geometria, assim como a ma-
gia dos números, estão amalgamados ao arsenal da escrita. A
figura e matriz, no sentido de quadro algébrico, são escrituras
genuínas. É por isso que se pode dizer que o paradigma da es-
crita – e exatamente o mesmo conceito de escrita que Derrida
desenvolveu na Gramatologia – pode inclusive aparecer mais
claramente na matemática.
Mas implicitamente, a figura geométrica, as unidades,
o ponto, a linha ou o círculo são atribuídos ao algébrico, o que
reflete um ponto de vista moderno. Por outro lado, de acordo
com as pesquisas de Van der Waerden e Oskar Beckers, a an-
tiguidade separou estritamente a geometria da aritmética. Em
linhas gerais, isso marca uma história cultural da matemática
que ainda precisa ser escrita. Da antiguidade até o presente,
poderia ocorrer uma mudança perseverante de posição entre
geometria e aritmética, que corresponde à mudança de posi-
ção do estético para o discursivo. A matemática grega, origi-
nária da aisthesis, percepção, cujo epítome é a idéia de ordem
da harmonia, que por sua vez via o próprio cosmo como ex-
PARA COMUNICAR O INCOMUM

457
pressão da mais alta perfectio geométrica, passa, a partir da
Idade Média e das tradições do Mundo Árabe, a ser cada vez
mais substituída pela ars: a álgebra cujo centro é o algoritmo
aritmético, o esquema de cálculo. Como tal, uma vez que se
combinou Descartes com a geometria e se compreendeu que
não mais a partir da intuição, mas do puro cálculo inumerável,
ela entra na análise da ciência moderna. A história cultural da
matemática não diz respeito a observar detalhadamente os pro-
cedimentos e enfileirá-los como uma pérola ao longo de uma
cadeia, mas sim a decifrar a matemática a partir dos tópicos
que estão inscritos em seus métodos.
Para a atualidade, seria relevante considerar a crise fun-
damental que tomou conta da matemática no início do século
XX e que, por sua vez, está vinculada ao problema da axioma-
tização de algoritmos. Podemos entendê-la como uma vingan-
ça tardia da geometria transformada pela álgebra: esta foi axio-
matizada desde Euclides e, desde então, manteve seu status de
imagem ideal da matemática, enquanto o algoritmo recebeu
apenas o caráter da ferramenta. Mas deveria estar equipado
com a mesma dignidade. O problema, no entanto, encontrou
sua solução de outro lado inesperado: na linguagem. Muito
antes da virada lingüística, como Merthens apontou, ocorreu
uma mudança similar na matemática através da teoria dos con-
juntos de Cantor, pedindo a formalização da noção matemática
e recebendo uma série de paradoxos em resposta. A possibili-
dade de contradição, no entanto, questionou se a matemática
poderia cumprir sua reivindicação de validade lógica formal.
PARA COMUNICAR O INCOMUM

458
O que a salvou foi não vincular a estrutura do cálculo às leis
da lógica tradicional, mas a um processamento formal e corre-
to de regras. Sua formalização, por outro lado, levou, como é
sabido, às três propostas de precisão da linguagem formal, da
função recursiva e da máquina de Turing, todas elas provando
serem equivalentes. No entanto, sua equivalência revela uma
ambigüidade entre estrutura e técnica que reflete não apenas
um debate filosófico complexo sobre os fundamentos da ma-
temática, mas também um conflito sobre os fundamentos das
ciências da cultura: uma dicotomia entre a primazia do simbó-
lico e do linguístico face à primazia da tecnicidade.
Certamente, a técnica é tão pouco matemática quan-
to a matemática é apenas técnica. Pois na mesma medida em
que a máquina de Turing produz um automatismo a partir da
matemática, ela esconde, por sua vez, onde este automatismo
está enraizado. Isso revela mais um detalhe. É verdade que
a máquina de Turing, como uma máquina universal discreta,
como coloca Kittler, pode ser usada para implementar outras
máquinas, mas de modo algum todas: a matemática não obe-
dece inteiramente à matematização; há sempre uma diferença,
um retraimento fundamental — uma descoberta que é pouco
surpreendente, considerando as armadilhas da reflexão, suas
fraturas e paradoxos, seus saltos criativos. Assim se dá a pró-
pria irrepresentabilidade do ato criador não há forma, não há
sintaxe. Ela “dá”, concede, mas nenhuma máquina é “doado-
ra” de seu acontecimento. Assim se repete, no medium do nú-
mero, aquilo que no começo do texto tentei empreender em
PARA COMUNICAR O INCOMUM

459
relação à ambiguidade da medialidade: o medium é estrutura-
dor, ele forma o Aberto; mas o espaço aberto permanece como
um recolher-se; ele se recusa à descoberta medial. Em outras
palavras, a matemática é tanto um acontecimento quanto algo
simbólico. Ela é antes mais uma arte do que uma ciência da
ordenação.

4.
Passo agora à especificidade da imagem. A transição
entre meios discursivos e estéticos é imanente a essa passa-
gem.. É claro que as imagens erigem registros simbólicos,
como também têm a capacidade organizar e esquematizar for-
malmente. Quase todas as teorias da imagem apontaram isso.
Mas estou muito mais preocupado aqui com a análise de algo
que Adorno chamou de “figura enigmática” e que a filosofia da
imagem, desde seu início, tem tratado com diferentes ênfases:
ora pela devoção ao modo pelo qual as imagens foram empre-
gadas, ora pela ira destrutiva visando seu tabu e banimento.
Um olhar sobre isso pode ser encontrado nos estudos tardios
de fotografia de Roland Barthes, que distinguem entre studium
e punctum: o primeiro nomeia o significado convencionalmen-
te legível, o texto, enquanto segundo é o intrigante, aquele que
infecta, que se impõe e ao mesmo tempo não é codificado, nem
pode ser encontrado na imagem. Só seria reconhecível, por as-
sim dizer, por olhos que estivessem fechados.
Para melhor esclarecer este aspecto, gostaria de in-
troduzir outra distinção, que, por sua vez, faz alusão à teoria
PARA COMUNICAR O INCOMUM

460
da imagem de Nelson Goodman. Este autor fala de exempli-
ficação em vez de denotação: uma imagem pode representar
“algo”, contar uma história ou até mesmo, como a arte da
modernidade, ser autorreferente — sempre se apresentando,
revelando-se sua estrutura, suas propriedades. Ou seja: tudo
o que as imagens podem “dizer” em detalhe, elas o fazem
“mostrando”. Acima de tudo, a composição de imagens (Ver-
bildlichung) é uma técnica do mostrar (Zeigen). O mostrar,
por assim dizer, permanece transversalmente ligado ao dizer,
pois “o que pode ser mostrado não pode ser dito”, como diz a
observação enigmática de Wittgenstein. A afirmação, no en-
tanto, sugere uma outra teoria da imagem, que ainda está por
ser desenvolvida: de um lado, temos “dizer e mostrar”, “tex-
tualidade e discursividade”; de outro, está a “imagibilidade”
(Bildlichkeit); porém, ambos os modos são intraduzíveis. É
verdade que as imagens podem ser “digitalizadas” e geradas
“com base em texto”, mas nenhuma imagem se ajusta a uma
digitalização completa: o espaço de exibiçãovai muito além
do visível apenas como legível, porque ele se estende sobre a
materialidade da imagibilidade.
Resumindamente, tento avançar mais um pouco: de
acordo com a classificação proposta, as imagens pertencem
aos meios estéticos, não aos discursivos. Sua brecha localiza-
-se na fronteira que diferencia entre o dizer e o mostrar. Tal é
o motivo das ladainhas sobre o fracasso do discurso perante
a imagem e sobre a inadequação da linguagem. A estrutura
específica do mostrar é analógica. Isso não significa retomar
PARA COMUNICAR O INCOMUM

461
o velho tema da semelhança, mas, literalmente, expor o con-
tra-lógico, contra-discursivo. A isso se atribui uma série de
características, cujos fundamentos podem estar na ausência
de negação. Talvez possamos entender a negação como um
parâmetro de racionalidade, pois somente ela permite a dico-
tomização e criação de diferenças. Em contrapartida, as ima-
gens possuem uma estrutura genuinamente afirmativa. É certo
que as contradições podem ser pintadas ou reproduzidas, mas
sempre de tal modo que ambos os momentos possam ser vis-
tos igualmente lado a lado, ou na forma de uma irritação, uma
“mudança de aspecto”, como disse Wittgenstein. Uma peque-
na ilustração de René Magritte, publicada no seu As palavras
e as imagens, poderia nos útil aqui: “O sol está escondido atrás
das nuvens” (Le soleil est caché par les nuages), isto é, você
não o vê. No texto, a palavra sol é substituída por sua imagem.
Ela brilha.
Essa simples situação revela uma estrutura precária
que impõe um duplo vínculo (double bind) constitucional às
imagens. Mesmo quando procuram denunciar ou esconder,
elas demonstram o denunciado ou o oculto, elas os ex-põem.
Isso tem o efeito ambivalente de que o negado na imagem,
por assim dizer, atesta seu próprio êxtase: destaca-se, apare-
ce, por isso mesmo até o mais estranho é capaz de fascinar.
Nele, as imagens preservam o seu poder perturbador, mas tam-
bém o seu estranhamente aurático, que atrai e cativa a visão:
“na vida, processos horríveis e medonhos têm, muitas vezes,
uma aparência estética fascinante, embora o conteúdo ou as
PARA COMUNICAR O INCOMUM

462
consequências do acontecimento devam ser rejeitados. A arte
nos acorda para esse pesadelo e aumenta nossa consciência da
inexplicabilidade e do acaso”, é o que diz Wolf Vostell.

5.
Implicitamente, sabe-se qual o foi o alvo da crítica de
Gilles Deleuze em sua teoria do cinema: a imagem é parali-
sada, seu movimento é roubado. Tento aqui, num esboço de
transição para a quarta forma básica de meio, o som, remediar
essa deficiência na medida em que o considero – por assim di-
zer, vicariamente – em pleno processo temporal. Assim como
as imagens, os sons também se expõem; eles se mostram, eles
aparecem, por assim dizer, extaticamente. Mas, em contraste
com a imagem, a música experimenta sua chegada, sua pre-
sença, apenas no acontecimentoespaço-temporal do som. A
diferença está no etético, na forma da percepção em si: os fe-
nômenos acústicos têm, em contraste com o ótico, um caráter
de acontecimento: eles soam e desaparecem no tempo. Todo
som também é espacial; mas este último elemento aponta em
particular para o fato de que o real métier da música é o tem-
po: pressupõe o ritmo do som, a periodicidade da vibração e
joga entre o acontecimento e a repetição. Nesse jogo duplo,
no entanto, o amplo campo do performativo se abre. Por essa
razão, a música sempre manteve a proximidade com o rito, o
culto: põe em movimento, é completamente dança. Nietzsche
ligou toda sua teoria musical a isso. Assim, na Antiguidade, a
música era considerada divina, como a dionisíaca. Também a
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463
disputa pela inserção da música na liturgia, durante Idade Mé-
dia testemunha o mesmo sentimento.
A relação particular da música, enquanto meio, com
o performativo, assim como o problema fundamental de sua
notação e transmissão, é algo que eu gostaria de situar agora
no centro de minha reflexão. Para isso, trarei como exemplo a
questão do cruzamento e sobrescrita dos meios. Posto que a
música está no instante e desaparece no tempo, há nela algo de
irrastreável: não pode ser preservada no medium; ela precisa
de outro meio que literalmente a sobre-escreva. Isso levanta
a questão da relação entre temporalização e espacialização:
o som como um evento espaço-temporal deve ser levado à le-
gibilidade, seu momento temporal transformado em um meio
espacial. Isso pressupõe a discretização do não-discreto, a gra-
vação de cortes, séries de diferenciações visando permitir uma
representação gráfica, o que diz respeito aos diferentes modos
de escrita e som, à possibilidade de uma transferência entre
meios estéticos e discursivos. É impressionante que, no inven-
tário de procedimentos gramaticais, haja sempre restos desper-
cebidos: a história da notação é uma história de remanescentes
duradouros, que nos obrigam a uma constante rejeição, revisão
e expansão. Eles revelam a lacuna entre os meios e sua inco-
mensurabilidade.
As técnicas de produção sonora e musical, o treinamento
da voz, sua modulação e entonação, são estratégias de fixação
desse algo fugidio. Neste sentido, como bem disse Eggbrecht,
o desenvolvimento da notação musical hoje vigente como fru-
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464
to da “excepcionalidade” do Ocidente, não se deve aos meios
em si, mas muito mais à unificação e universalização da liturgia
na Idade Média. Ali, com apoio da introdução da música gre-
goriana, seguia-se o imperativo de assegurar o poder, ou seja,
pelo instauração das canções monásticas pelo Papa Gregório I
(590-604), que decretou a norma de uma única linguagem mu-
sical autêntica para toda a cristandade. Mas o disciplinamento
do repertório coral também fomentou o desenvolvimento de um
material musical que tomou rumos completamente diferentes
e, numa linguagem própria, distanciou-se do canto gregoriano.
Lembremos que a notação de canto como notação de melos,
assim como dos “Melismas” destinados a seu uso, permitiu o
desenvolvimento forma rudimentar de polifonia, até que final-
mente criou-se o complexo sistema polifônico, com os motetos
Christobal de Morales ou Palestrina, cuja transmissão aos ins-
trumentos musicais de concerto só teve início no período mo-
derno. Com a sua fixação escrita, o material musical começou
uma vida própria, no sentido de um documento que regula a
combinação de trabalho, autoria e leitura e substitui o aconteci-
mento que lhe deu origem, a fim de criar espaço para interpre-
tações múltiplas e extrapolações. Portanto, foi a somente com a
textualização da música que pôde se dar tanto a possibilidade de
composições complexas, bem como práticas díspares de desem-
penho ligadas ao problema da hermenêutica musical, iniciado
na Europa há 400, 500 anos.
Acrescentemos ainda um outro ponto: a independência
da escrita permite tanto a sua reflexão, como evidenciado pelos
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465
debates de longo alcance da Escola Notre Dame, como a ge-
ração do som oriundos da escrita, algo que vai de seu projeto
arquitetônico na prancheta como na música construtivista até
às auto-reflexões de vanguarda da notação pela notação. Con-
tudo, não se deve esquecer que essa enorme conquista se deve
a um processo de normalização, que colocou o acontecimen-
to musical em um espartilho apertado, o dividiu, o escandiu
e tornou-o dócil. Respectivamente, no verso da estruturação
notacional surge outra coisa: a diferença entre acontecimento
e escrita, que se tornou o impulso básico da música de van-
guarda do século XX: a destruição não apenas dos registros do
sistema tonal, mas também sua notação, sua fixação pela par-
titura. Não só há sistemas cada vez mais complexos no campo
da notação, mas também desenvolvimento de alternativas que
levam ao desenho gráfico, à imagem, ao gesto, a fim de re-
cusar qualquer notabilidade – por exemplo, nos movimentos
musicais de Earle Brown ou nos movimentos aleatórios de um
Calder-Piece, ou ainda Cage no Atlas Ecipticalis, que os utili-
za para marcar mapas astrais. É uma legibilidade que se esvai:
obedece a coincidências, permite diferentes abordagens, como
a de Stockhausen’s From seven days (1968) ou de Dieter Sch-
nebel MoNo (1969). Trata-se de música como mera música de
design escrito, que não existe em nenhum lugar e tampouco
será executada, mas apenas convida a ser lida. Seu outro lado
e correspondência podem ser encontrados naquela desnecessá-
ria indiferença entre silêncio e som, ser e nada, a partir do qual
a performatividade do musical irrompe de seu acontecimento:
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466
tomemos como exemplo Cages, em Empty Words ou 4’33’’.
São obras e artistas que requerem outras técnicas de criação e
tradição: a cerimônia ou o rito.

6.
Com isso, chego à conclusão. A arriscada travessia pela
história da notação como história de uma sobrescrita começou
com a tentativa de dominar o acontecimento e desembocou num
esforço para destroná-lo do poder que adquiriu através da escrita.
A libertação ocorre ou no próprio métier da escrita, no qual ela é
interrompida, adiada ou delimitada, ou através de uma mudança
de cenário das técnicas culturais: contra as técnicas dominantes,
elas tentam virtualizar o que foi excluído, distorcido ou repri-
mido por meios de processos cruzados que, renovadamente, os
redefinem e incluem. Isso resulta numa série de conseqüências
para a teoria e história das técnicas culturais:
(i) Cada um dos quatro meios básicos – palavra, núme-
ro, imagem, som – preserva sua outridade (Andersheit) tanto
em relação a si quanto aos outros. Eles foram marcados pelas
determinações do sentido, da estrutura, do mostrar e da per-
formatividade. Nenhum meio pode se sobrepor completamen-
te ao outro como unificador; em vez disso, permanece uma
diferença fundamental, algo que não vinga, um salto.
(ii) Todos os quatro campos são caracterizados por
um recolhimento fundamental, que é igualmente indisponí-
vel, não-técnico e não-construtível. Na linguagem, esse reco-
lher-se manifesta-se pela diferença entre os atos de fala in-
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467
dividuais; matematicamente, pelo limiar crítico do paradoxo,
assim como pela não-matematizabilidade da matemática; na
imagem, pelo mostrar-se que funda tanto sua presença quanto
constitui seu verdadeiro fascínio. Finalmente, a breve história
da notação revelou uma tensão intransponível entre escrita e
som, gravação e acontecimento. Ela também é aplicável a ou-
tros meios: a disparidade entre esquema e acontecimento.
(iii) Daí decorre uma imperfeição, uma inadequação
crônica das technai, por assim dizer, sua falha estrutural. É
compensada pelo seu cancelamento recíproco incessante. Seu
teatro ou teatralidade, aquilo que poderíamos chamar de “ira”
numa expressão de Adorno, reprime sua insolubilidade tanto
quanto a agrava. É assim que se desdobra sua dinâmica de de-
senvolvimento, sua tendência à complexidade estonteante das
torres babilônicas, assim como à troca de lugares e de seu pos-
to de dominação, tal como tem se verificado repetidamente na
história da cultura. Por outro lado, na filosofia da cultura exis-
tem as “viradas incompletas” como, por exemplo, as viradas
linguística (linguistic turn), pictórica, e performativa. Juntas,
elas unificam o olhar. Mas de modo unilateral: nisso, viu Witt-
genstein a fatalidade de filosofia.
(iv) Por fim, as inadequações e rupturas tornam-se vi-
síveis através do rigor da arte, que utiliza técnicas e criação
sistemática de paradoxos para superar seus próprios limites.
Como exemplo, temos a destruição da notação musical pelo
vanguardismo: ela privilegia sua techné para poder rompê-la e,
ao mesmo tempo, revelar o seu Outro. Acontecimento: o que se
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468
lança (an-springt), avança (an-geht), sem ser notado ou ano-
tado. Nesse sentido – e isso marca o fim da minha jornada – a
direção do olhar ainda deveria ser invertida para pensarmos a
partir do acontecimento, de onde resultam (sich er-geben) o
primeiro potencial e o primeiro limite das respectivas técnicas,
sem que sejam novamente a “dádiva” (Gabe) das technai.
OUTRAS OBRAS DE CIRO MARCONDES FILHO

Livros:
A arte de envenenar dinossauros. Brasília, Casa das Musas, 2014
A comunicação para os antigos, a fenomenologia e o bergsonismo. O prin-
cípio da Razão Durante. Nova Teoria da Comunicação, vol. 3, Tomo 1.
São Paulo, Paulus, 2010.
A produção social da loucura. São Paulo, Paulus, 2003.
A saga dos cães perdidos. São Paulo, Hacker, 2000.
Até que ponto, de fato, nos comunicamos. São Paulo, Paulus, 2004
Cenários do Novo Mundo. S.Paulo, Edições NTC, 1998
Comunicologia ou mediologia? A fundação de um campo científico da co-
municação. Paulus, 2018.
Da Escola de Frankfurt à crítica alma contemporânea. O princípio da Ra-
zão Durante. Nova Teoria da Comunicação, vol. 3. Tomo 2. São Paulo,
Paulus, 2011.
Das coisas que nos fazem pensar, que nos forçam a pensar. São Paulo,
Ideias e Letras, 2014.
Diálogo, poder e interfaces sociais da comunicação. O princípio da Razão
Durante. Nova Teoria da Comunicação, vol. 3, Tomo 4. São Paulo, Paulus,
2011. Esquecer Peirce. São Paulo, ECA-USP, 2018.
Homem & Mulher: Uma comunicação impossível? São Paulo, Annablume,
2010.
Ideologia. S. Paulo, Global,1985.
Jornalismo fin-de-siècle. S.Paulo, Scritta, 1993
Massenmedien als politische Handlung. Frankfurt am Main, H.P. Gerhardt,
1981
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470
O capital da notícia. S. Paulo, Ática, 1986
O Círculo Cibernético: o observador e a subjetividade. O princípio da
Razão Durante. Nova Teoria da Comunicação, vol. 3, Tomo 3. São Paulo,
Paulus, 2011.
O conceito de comunicação e a epistemologia metapórica. O princípio da
Razão Durante. Nova Teoria da Comunicação, vol. 3, Tomo 1. São Paulo,
Paulus, 2010.
O discurso sufocado. S. Paulo, Loyola, 1982.
O escavador de silêncios. São Paulo, Paulus, 2004.
O espelho e a máscara. O enigma da comunicação e o caminho do meio.
São Paulo/Ijuí: Discurso/Ed. Unijuí, 2002.
O pulsar da vida. A sensualização do pensamento, da existência e do amor.
Ed. Paulus, S. Paulo, 2008.
O rosto e a máquina. O fenômeno da comunicação visto pelos ângulos
humano, medial e tecnológico. O princípio da Razão Durante. Nova Teoria
da Comunicação, vol. 1. São Paulo, Paulus, 2013. [Prêmio Jabuti, 2014]
Para entender a comunicação. Contatos antecipados com a Nova Teoria.
São Paulo, Paulus, 2008
Perca Tempo. É no lento que a vida acontece. São Paulo, Paulus, 2005.
Pierda tiempo. Viviendo despacio transcurre la vida. Buenos Aires: San
Pablo, 2006. Quem manipula quem? Petrópolis, Vozes, 1986.
Ser jornalista. A língua como barbárie e a notícia como mercadoria. São
Paulo, Paulus, 2009.
Ser jornalista. O desafio das tecnologias e o fim das ilusões. São Paulo,
Paulus, 2009.
Sociedade Tecnológica. São Paulo, Scipione, 1994.
Super-Ciber. A civilização místico-tecnológica do século 21. S.Paulo, Pau-
lus, 2009.
Televisão, a vida pelo vídeo. S. Paulo., Moderna, l988.
Televisão. S.Paulo, Scipione, 1994.
Teorias da comunicação, hoje. São Paulo, Paulus, 2016.
Violência das massas no Brasil. S. Paulo, Global, 1986.
Violência política. S.Paulo, Moderna, 1986.
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471
Textos universitários e/ou de uso restrito:
O cinema da violência. S.Paulo, 1987.
Viagem na irrealidade da comunicação, Grenoble, 1999 (teoria e ficção).
A Sociedade Frankenstein. S. Paulo, 1991

Coletâneas:
A linguagem da sedução. S.Paulo, Com-Arte, l985; S.Paulo, Perspectiva,
l988.
Imprensa e capitalismo. S.Paulo, Kairós, 1984.
Política e imaginário nos meios de comunicação. S.Paulo, Summus, 1985.
Pensar-Pulsar. Tecnologias, Cultura Comunicacional, Velocidade. Edi-
ções NTC, S.Paulo, 1997.
Vivências eletrônicas. S.Paulo, Edições NTC, 1998.
The Changing Face of Alterity. Communication, Technology and Other
Subjects. Co-organizadores: David Gunkel e Dieter Mersch. Londres: Ro-
wman & Littlefield, 2016.

Antologia:
Dieter Prokop. Sociologia. Grandes Cientistas Sociais. S. Paulo, Ática,
1986
Dicionário da Comunicação (Org.) São Paulo, Paulus, 2009. 2a. Edição
ampliada: 2014.

Outras produções:
O Teatro do Mundo – A Canção. Série de 57 programas de rádio (Rádio
USP, 2003-4). Acervo MIS.
Edição da revista Atrator estranho (1992-1998).
ISBN 978-85-349-4864-7

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