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Culturas e Biodiversidade:

O presente que temos e o futuro que queremos

Artigos e Relatos de Experiência


Anais do VII Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – SAPIS e II En-
contro Latino Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – ELAPIS

Organização
Natalia Hanazaki
Dannieli Firme Herbst
Júlia Vieira da Cunha Ávila
Marian Ruth Heineberg
Thiago Caio Celante Gomes

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015


Expediente

Revisão
Dannieli Firme Herbst, Júlia Vieira da Cunha Ávila,
Marian Ruth Heineberg, Natalia Hanazaki, Thiago Caio Celante Gomes

Capa e diagramação
Kelly Rhein Gerevini

Culturas e Biodiversidade: o presente que temos e o futuro que queremos. Anais do VII Semi-
nário Brasileiros sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social e II Encontro Latino Americano sobre
Áreas Protegidas e Inclusão Social / Organizadores: Hanazaki, Natalia; Herbst, Dannieli Firme;
Avila, Julia Vieira da Cunha; Heineberg, Marian Ruth; Gomes, Thiago Caio Celante. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 2015.

http://sapiselapis2015.paginas.ufsc.br/anais

ISBN 978-85-8328-055-2

1. Compromisso com o futuro comum. 2. Áreas Protegidas, saúde e bem estar humano. 3. De-
safios do desenvolvimento e respostas da sociedade. 4. Diversidade cultural e manejo da biodi-
versidade. 5.Sistemas de Gestão e Governança. 6. Educação para sustentabilidade e cidadania.
Caro Leitor

Convidamos você a navegar pelos trabalhos apresentados na sétima edição do Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegi-
das e Inclusão Social – SAPIS e segunda edição do Encontro Latino Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – ELA-
PIS. O evento aconteceu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis (SC), de 3 a 6 de novembro de 2015.

O Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social é um seminário aberto à sociedade que visa discutir o
presente cenário que temos dentro e fora das unidades de conservação da natureza, das terras indígenas, dos territórios quilom-
bolas, das reservas legais e de outras áreas protegidas e conservadas, que contribuem decisivamente para o equilíbrio dos
sistemas socioecológicos, essenciais à saúde e ao bem-estar humano. Pensando no futuro, o cumprimento dos objetivos de con-
servação da natureza pode se fortalecer de diferentes formas de manejo e governança da biodiversidade em áreas protegidas e
conservadas pelo Estado, pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e locais, e por instituições privadas.

O VII SAPIS/ II ELAPIS tem como pano de fundo os resultados do Congresso Mundial de Parques da IUCN, que ocorreu
em Sydney (“A Promessa de Sidney”) em 2014, assim como as perspectivas de atuação em redes transformativas de conheci-
mento para estreitar laços entre as comunidades científicas e locais na prática da governança socioambiental.

O evento representa um espaço para o intercâmbio de experiências de pesquisas, iniciativas e projetos em conser-
vação da diversidade biológica e sociocultural, com foco nas áreas protegidas e nos territórios tradicionais, e suas interfaces
com a questão do ordenamento territorial e do desenvolvimento, em âmbito nacional e latino-americano. Buscamos, no evento,
contribuir para a consolidação e fortalecimento de redes de pesquisadores e instituições, de âmbito interdisciplinar, interseto-
rial e transescalar, capazes de estabelecer parcerias e intercâmbios em programas e projetos no Brasil e na América Latina.
Procuramos também promover o diálogo de saberes entre a academia, o setor público, a sociedade civil, em especial, os povos
e comunidades tradicionais, com relação à gestão e governança de áreas protegidas e de territórios tradicionais no Brasil e na
América Latina.

O evento é, ainda, um espaço para compartilhar avanços, desafios e potencialidades dos campos científico, técnico,
político e social frente à implementação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC); da Política
Nacional de Biodiversidade (PNB); do Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP); da Política Nacional de Desen-
volvimento Sustentável de Povos e Populações Tradicionais (PNPCT); da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de
Terras Indígenas (PNGATI); e do Marco da Biodiversidade, no cenário brasileiro.

A organização do VII SAPIS e II ELAPIS teve desde o seu princípio uma característica muito marcante que é a colabora-
ção interdisciplinar, envolvendo programas de pós-graduação de diferentes áreas do conhecimento, ONGs e instituições gover-
namentais.

Este volume congrega os trabalhos inscritos para apresentação oral e na forma de pôster, que consistiam em artigos
científicos ou relatos de experiências. Para respeitar a natureza interdisciplinar do evento, reunimos neste volume os 95 trabalhos
que foram aprovados por um comitê científico composto por 26 pesquisadores e docentes de instituições do Brasil e do exterior,
que, juntos, emitiram 248 pareceres. Alguns destes trabalhos tiveram apenas seus resumos publicados, por opção dos autores.

Os trabalhos estão organizados em seis eixos temáticos: 1) Compromisso com o futuro comum; 2) Áreas protegidas,
saúde e bem estar humano: natureza saudável, pessoas saudáveis; 3) Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade;
4) Diversidade cultural e manejo da biodiversidade; 5) Sistemas de Gestão e Governança e 6) Educação para a sustentabilidade
e cidadania e experiências de aprendizagem social. Como um foco transversal nestes debates está a necessidade aproximar a
interface entre a ciência, sistemas de governança e manejo e políticas públicas.

Desejando a todos uma proveitosa leitura, esperamos contribuir com reflexões sobre Culturas e Biodiversidade; e com os
desafios de, a partir do presente que temos, construirmos juntos o futuro que queremos.

Os Organizadores
Comissão científica

Alba Simon (UFF)


Alexandre Schiavetti (UESC)
Alfredo Ricardo Silva Lopes (UFSC)
Altair Sancho (UFMG)
Ana Beatriz Vianna Mendes (UFMG)
Bernardo Gontijo (UFMG)
Camila Rodrigues (UFRRJ)
Carlyle Torres Bezerra de Menezes (UNESC)
Cristiana Simão Seixas (UNICAMP)
Henrique dos Santos Pereira (UFAM)
Hilton Pereira da Silva (UFPA)
Iara Vasco Ferreira (UFSC)
João de Deus Medeiros (UFSC)
José Antônio Souza de Deus (UFMG)
José Matarezzi (UNIVALI)
Juliana Farinacci (UNICAMP)
Luciana Gomes de Araujo (UNICAMP)
Lucio Malizia (Argentina, Universidad de Jujuy)
Marinez Scherer (UFSC)
Natalia Hanazaki (UFSC)
Orlando Ferretti (UFSC)
Pedro Silveira (UFSC)
Ricardo Verdum (UFSC)
Rosana Martinelli Freitas (UFSC)
Wilson Madeira Filho (UFF)
Xose Solla Santos (Espanha, Univ. Santiago de Compostela)
VII Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – SAPIS e
II Encontro Latino Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social – ELAPIS
Centro de Eventos UFSC | de 3 a 6 de novembro de 2015

Presidentes
Natalia Hanazaki (ECZ/CCB/UFSC)
Marcos Fabio Freire Montysuma (HST/CFH/UFSC)

Secretaria Executiva
Iara Vasco Ferreira (Doutoranda, PPGICH/CFH/UFSC)
Edio Cunha Filho (Graduando em Geografia, CFH/UFSC)
Bruna Luiza Amante (Coletivo UC da Ilha)
Isabela Zignani (Mestranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)

Tesouraria
Sofia Zank (Doutoranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Gabriela Guimarães Orofino (Mestranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)

Comissão organizadora
Andrea Lamberts (ICMBio)
Aracídio Neto (Coletivo UC da Ilha e NESSOP/UFSC)
Carmen Tornquist (UDESC)
Carolina Alvite (ICMBio)
Edviges Marta Ioris (PPGAS/CFH/UFSC)
Elaine Zuchiwschi (FATMA)
Eunice S. Nodari (PPG História/CFH/UFSC)
Flora Neves (Coletivo UC da Ilha)
Gabriel Stroich da Costa (DEPUC - FLORAM)
Iara Vasco (PPGICH/CFH/UFSC)
João de Deus Medeiros (BOT/CCB/UFSC)
Julia Vieira da Cunha Ávila (Mestranda, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Luís Filipe Trois Bueno e Silva (FUNAI – CR Litoral Sul)
Marcelo Barbosa Spaolonse (INCRA)
Marcio Baldissera Cure (Mestrando, PPG Ecologia/CCB/UFSC)
Maria Tereza dos Santos (NESSOP/UFSC)
Mariana Reinach (INCRA)
Marina Campos Pinto (CEPAGRO)
Marinez E. G. Scherer (PPG Geografia/CFH/UFSC)
Neuza Cristina Rodrigues da Silva (DEPEA – FLORAM)
Orlando Ferretti (MEN/CED/UFSC)
Pedro Castelo Branco Silveira (Dept. Antropologia/CFH/UFSC)
Samira Safadi Bastos (NESSOP/UFSC)
Thais Vezehaci Roque (Mestranda, PPGFAP/CCB/UFSC)
1. Sumário
01 Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
ÁREAS PROTEGIDAS E A CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA: DESAFIOS PARA O CUMPRIMENTO DA META
11 DE AICHI. Prates, Ana Paula Leite & Irving, Marta de Azevedo .........................................................................................................23

CONSELHOS GESTORES DE ÁREAS PROTEGIDAS NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL, DESAFIOS
E POSSIBILIDADES. Prado, Deborah Santos; Araujo, Luciana Gomes; Chamy, Paula; Dias, Ana Carolina Esteves & Seixas, Cris-
tiana Simão ...................................................................................................................................................................................................25

EFETIVIDADE DE NORMAS AMBIENTAIS, MANGUEZAIS E OPORTUNIDADES SOCIAIS PARA COMUNIDADES TRADICIO-


NAIS EM RESERVAS EXTRATIVISTAS MARINHAS NO PARÁ. Pinheiro, Elysângela Sousa, Thomas, Shaji & Almeida, Oriana Trin-
dade ..............................................................................................................................................................................................................35

CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E TEMPORALIDADES NO ESTUDO DE CASO DO ACAMPAMENTO SEBASTIÃO LAN II.


Ribeiro, Ana Maria Motta; São Clemente, Bernardo Raphael Bastos; Freitas, Emmanuel Oguri; Lobato da Costa, Rodolfo Bezerra
de Menezes & Azevedo, Thaís Maria Lutterback Saporetti ....................................................................................................................45

TRANSFERÊNCIA DE RENDA: DIFICULDADES DE ACESSO DA POPULAÇÃO TRADICIONAL AOS PROGRAMAS DO GO-


VERNO FEDERAL BRASILEIRO- PROGRAMAS BOLSA FAMÍLIA E BOLSA VERDE NA RESERVA EXTRATIVISTA ARAPIXI-
AMAZONAS (2010 - 2014). Oliveira, Késsia Monteiro de; Neto, Gerson Carvalho Nunes; Santana, Elizângela Leão & Silveira, Leo-
nardo Konrath da ..........................................................................................................................................................................................53

02 Áreas protegidas, saúde e bem estar humano: natureza saudável, pessoas saudáveis
ÁREAS PROTEGIDAS E SEUS BENEFÍCIOS PARA O BEM-ESTAR. João, Cristina Gerber; Mattos, Cristiane Passos & Irving,
Marta de Azevedo.........................................................................................................................................................................................65

A INSERÇÃO DA MUDANÇA DO CLIMA E ADAPTAÇÃO BASEADA EM ECOSSISTEMAS NO PLANO DE MANEJO DA APA


FEDERAL DE CANANÉIA-IGUAPE-PERUÍBE (APA-CIP). Filho, Miguel F Fluminhan; Coffani-Nunes, João Vicente; Fernandes,
Márcio Barragana; Jankowski, Mayra; Paixão, Rosiene Keila Brito da; Viezzer, Jennifer; Deitenbach, Armin; Becher, Martin; Hach,
Lukas; Betti, Patrícia & Silva, Ricardo B. Alves da .....................................................................................................................................75

MAPEAMENTO PARTICIPATIVO DOS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS CULTURAIS NO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA


BRANCA, RJ. Ribeiro, Fernando Patrício & Ribeiro, Katia Torres .............................................................................................................85

MUDANÇAS AMBIENTAIS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DE ANHATOMIRIM SOB A PERSPECTIVA DA COMUNI-


DADE LOCAL. Zignani, Isabela; Hanazaki, Natalia & Simões-Lopes, Paulo Cesar de Azevedo ........................................................93

MALÁRIA E DENGUE: IMPRESSÕES SOBRE A SAÚDE DA POPULAÇÃO RIBEIRINHA DO PARQUE NACIONAL SERRA DO
DIVISOR, ESTADO DO ACRE. Lana, Raquel Martins; Oliveira, Francisco Giovane Silva De; Schlosser, Andreus Roberto; Arruda,
Rayanne Alves De.; Araújo, Felipe Monteiro De; Santos, Ana Caroline Santana Dos; Bastos, Paula Rubia Jornada; Silva-Nunes,
Monica Da; Honório, Nildimar Alves & Codeço, Cláudia Torres ...........................................................................................................99

ÁREAS PROTEGIDAS: PARA QUEM PROTEGÊ-LAS? O SENTIDO DE PERTENCIMENTO COMO VIA PARA VALORIZAÇÃO
SOCIOCULTURAL EM ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS. Abreu, Manuela Muzzi de; Irving, Marta de Azevedo; Lima, Marcelo
Augusto Gurgel de & Correa, Frances Vivian ..........................................................................................................................................109
PERCEPÇÕES DE TRABALHADORES E ESTUDANTES SOBRE A VIVÊNCIA DIÁRIA EM LUGARES DE NATUREZA PRESER-
VADA NA CIDADE. Albuquerque, Dayse da Silva; Sousa, Adria de Lima; Higuchi, Maria Inês Gasparetto & Kuhnen, Ariane .....117

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS POSSÍVEIS IMPACTOS AMBIENTAIS NA EXTRAÇÃO DO SHALE GAS NO BRASIL. Gomes,
Andréa dos Santos & Fernandes, Amarildo da Cruz ..............................................................................................................................125

O PROGRAMA “MINHA CASA, MINHA VIDA” E SEUS EFEITOS SOBRE AS ÁREAS PROTEGIDAS: ESTUDO DE CASO DA
MATA ATLÂNTICA PARANAENSE. Sezerino, Fernanda de Souza & Tiepolo, Liliani Marilia ...........................................................135

A PROBLEMÁTICA DOS CASTANHAIS ACESSADOS PELA POPULAÇÃO TRADICIONAL DA RESEX ARAPIXI: AMEAÇA DO
DESMATAMENTO DO PAE ANTIMARY. Oliveira, Jardeson Monteiro de; Silveira, Leonardo Konrath da; Lopes, Jordan Fonseca &
Oliveira, Késsia Monteiro de .....................................................................................................................................................................145

MANEJO ADAPTATIVO DE RISCO E VULNERABILIDADE EM SÍTIOS DE CONSERVAÇÃO: RELATO DE UMA OFICINA DE


CAPACITAÇÃO NA METODOLOGIA MARISCO. Ibisch, Pierre L.; Oliveira, Sara Silva de; Schick, Axel; Schiavetti, Alexandre;
Camargos, Virginia; Santos, Gildevânio Pinheiro dos; Senta, Mateus Dala; Holvorcem, Christiane & Cases, Maria Olatz .........155

03 Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


IMPACTOS SOCIOECOLÓGICOS E ECOFORMAÇÃO EM AMBIENTES PROTEGIDOS: O CASO DA COMUNIDADE DA
BARRA DO TORNEIRO, JAGUARUNA, SANTA CATARINA. Munari, Amanda Bellettini & Menezes, Carlyle Torres Bezerra de ..167

O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NA PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM GAROPABA (SC). Costa,


Viegas Fernandes da & Reis, Clóvis ........................................................................................................................................................175

CARBONO ESTOCADO NOS PLANTIOS DE RECUPERAÇÃO DE APP E RL NOS IMÓVEIS DA AGRICULTURA FAMILIAR.
Medeiros, João de Deus; Stefani, Marcia Rosana; Prochnow, Miriam & Schaffer, Wigold Bertoldo .................................................185

LA METODOLOGÍA DE GESTIÓN DEL PAISAJE APLICADA EN EL ÁREA DE PROTECCIÓN AMBIENTAL DE LA BALLE-


NA FRANCA – BRASIL, COMO INSTRUMENTO DE GESTIÓN TERRITORIAL EN ÁREAS PROTEGIDAS. Delfino, Deisiane &
Pèlachs Mañosa, Albért ............................................................................................................................................................................191

AS MULHERES EXTRATIVISTAS NA RESEX MARINHA DO PIRAJUBAÉ: DESAFIOS E POSSIBILIDADES DE VALORIZAÇÃO


DOS SABERES E HABILIDADES FEMININAS NO DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES DA PESCA ARTESANAL. Laci San-
tin, Laci & Horton, Emily Y .........................................................................................................................................................................201

FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE CONDUTORES AMBIENTAIS LOCAIS: ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO DO


TURISMO SUSTENTÁVEL EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO GAÚCHAS. Silva, Celson Roberto Canto; Cunha, Aline Moraes;
Bazotti, Leandro dos Santos & Nascimento, Cristina Alves ...................................................................................................................211

ALTERNATIVAS PARA QUALIFICAÇÃO DO TURISMO NO PARQUE NACIONAL DE SÃO JOAQUIM (PNSJ) - SANTA CATA-
RINA – BRASIL. Omena, Michel Tadeu Rodrigues Nolasco de; Schimalski, Marcos Benedito & Castilho, Pedro Volkmer de .....221

O TURISMO E OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS PARA A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE E INCLUSÃO SOCIAL NOS


PARQUES ESTADUAIS DO RIO DE JANEIRO. Irving, Marta de Azevedo; Lima, Marcelo Augusto Gurgel de; João, Cristina Ger-
ber; Oliveira, Maria Elizabeth de; Prado, Mariana Oliveira & Abreu, Manuela Muzzi .......................................................................231
TRAVESSIA: ADENTRANDO OS GROTÕES DO ESPINHAÇO. Bulhões, Tainá Gonçalves; Gontijo, Bernardo Machado & Silva,
Gabrielly .....................................................................................................................................................................................................241

PRÁTICAS, SABERES E A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE EM ANDRÉ DO MATO DENTRO, SUBSÍDIO A PROPOSTA


DO MOSAICO RDS E PARNA SERRA DO GANDARELA EM MINAS GERAIS – POR QUE E PARA QUEM? Dias, Janise Bruno
Dias & Pena, Lucas Luiz Senhorine ..........................................................................................................................................................251

O MOSAICO CARIOCA DE ÁREAS PROTEGIDAS E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO URBANO NA CIDADE DO RIO


DE JANEIRO. Pena, Ingrid Almeida de Barros & Rodrigues Camila Gonçalves de Oliveira ..............................................................261

DESAFIOS AMBIENTAIS AO DESENVOLVIMENTO: A EVOLUÇÃO DA GESTÃO AMBIENTAL PÚBLICA NO AMAZONAS


(2003-2015) E AS MUDANÇAS GLOBAIS. Pereira, Henrique dos Santos & Vasconcelos, Ademar Roberto Martins de ...............271

PARTICIPAÇÃO DE JOVENS NA GESTÃO DE BENS COMUNS: A RESEX MARINHA DE CAETÉ-TAPERAÇU- PA. Lamarão,
Maria Luiza Nobre & Maneschy, Maria Cristina ....................................................................................................................................281

A CIÊNCIA E AS POPULAÇÕES DA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL ILHA DO COMBU, PARÁ. Barros, Benedita da Silva &
Jardim, Mário Augusto G ...........................................................................................................................................................................291

SOBRE A SUSTENTABILIDADE DA QUALIDADE DE VIDA: O QUÊ UMA COMUNIDADE TRADICIONAL AÇORIANA, INSTI-
TUÍDA EM UMA ILHA DO SUL DO BRASIL, TEM A NOS DIZER SOBRE ISSO? Wermuth, Gilvana da Silva Machado & Kuhnen,
Ariane ..........................................................................................................................................................................................................301

PAISAGEM, LUGAR E PERCEPÇÃO AMBIENTAL: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A GESTÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA
MARINHA DEMOCAPAJUBA-SÃO CAETANO DE ODIVELAS-PA. Barros, Diego Merces de, Pimentel & Marcia Aparecida da Sil-
va .................................................................................................................................................................................................................311

04 Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


SOCIOBIODIVERSIDADE E AUTO-SUSTENTO NO COMPLEXO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DE TERRA RONCA.
Souza, Cláudia de & Trindade, Hiran de Gusmão .................................................................................................................................319

CONHECIMENTO TRADICIONAL E MANEJO DA BIODIVERSIDADE NO ESTADO DO AMAZONAS. Lima, Vilma Terezinha de


Araújo & Marchand, Guillaume ................................................................................................................................................................329

CONHECIMENTO LOCAL SOBRE PLANTAS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DO ANHATOMIRIM. Ludwinsky, Rafaela
Helena & Hanazaki, Natalia .......................................................................................................................................................................337

CONHECIMENTO LAKLÃNÕ/XOKLENG SOBRE A NATUREZA E CONSERVAÇÃO NA TERRA INDÍGENA IBIRAMA-LAK-


LÃNÕ, ALTO VALE DO ITAJAÍ, SANTA CATARINA, BRASIL. Cruz, Takumã; Heineberg, Marian; Gomes, Thiago; Hanazaki, Nata-
lia & Peroni, Nivaldo ..................................................................................................................................................................................345

ANÁLISE SOBRE O ORDENAMENTO TERRITORIAL, ORGANIZAÇÃO E ESTRATÉGIAS DE MANEJO NO PARQUE ESTADU-


AL ILHA DO CARDOSO (PEIC) – SP. Silva, Jéssica de Lima & Oliveira, Regina Célia de ...............................................................347

A POTENCIALIDADE DA PAISAGEM CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO: O CASO DA ROÇA DE TOCO


DE BIGUAÇU – SANTA CATARINA – BRASIL. Vicente Filho, Ronaldo Guimarães ............................................................................359
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE AS COMUNIDADES TRADICIONAIS NO CONTEXTO DA PAISAGEM. Santos, Cássio Rogério
Graças dos & Senna, Cristina do Socorro Fernandes ............................................................................................................................369

A DIMENSÃO CULTURAL NO TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA: REFLEXÕES SOBRE DILEMAS E POTENCIALIDADES.


Prado, Mariana Oliveira do; Irving, Marta de Azevedo; Oliveira, Maria Elizabeth de & Lima, Marcelo Augusto Gurgel de .........377

O “ESTADO DA ARTE” DOS PROJETOS DE TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA NA COSTA VERDE (RIO DE JANEIRO – BRA-
SIL). Lima, Marcelo Augusto Gurgel de; Irving, Marta de Azevedo & Prado, Mariana Oliveira do ..................................................387

SÍTIOS NATURAIS SAGRADOS NO BRASIL: O GIGANTE DESCONHECIDO. Fernandes-Pinto, Érika & Irving, Marta de Azeve-
do.................................................................................................................................................................................................................397

SOBREVIVÊNCIA E IDENTIDADE: REALIDADES SOCIOAMBIENTAIS DOS QUILOMBOLAS DO RIO EREPECURU/CUMINÃ


EM ORIXIMINÁ/PA. Rodrigues, Wagner de Oliveira; Madeira Filho, Wilson; Thibes, Carolina Weiler & Nobre, Bárbara Moreira ..
......................................................................................................................................................................................................................409

APONTAMENTOS PARA A ELABORACAO DE UMA POLÍTICA SOCIOAMBIENTAL PARA AS COMUNIDADES REMANES-


CENTES DE QUILOMBO NO ALTO RIO TROMBETAS E EM SEU ENTORNO. Madeira Filho, Wilson; Ribeiro, Ana Maria Motta;
Simon, Alba; Alcântara, Leonardo; Rodrigues, Wagner de Oliveira; Thibes, Carolina Weiler; Costa, Rodoldo Bezerra de Menezes
Lobato da; Rocco, Rogério & Souza, Marcelino Conti ...........................................................................................................................419

AS INFLUÊNCIAS DE ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS, AMBIENTAIS E CULTURAIS DA LOCALIDADE DO PARATI –


GUARATUBA/PR NA DINÂMICA DE CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS ENTRE POPULAÇÃO E UNIDADES DE CONSERVA-
ÇÃO. Santos, Péricles Augusto dos & Quadros, Juliana .........................................................................................................................429

CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ITAIPU: UMA REFLEXÃO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO. Simon,
Alba .............................................................................................................................................................................................................439

ESTRADA DO COLONO: ANÁLISE DOS ARGUMENTOS QUE SUBSIDIAM O CONFLITO. Kropf, Marcela Stüker & Eleutério,
Ana Alice .....................................................................................................................................................................................................447

A GESTÃO PARTICIPATIVA NA REDELIMITAÇÃO DO PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO PAPAGAIO, SUL DE MINAS. Jun-
queira, Mariana Gravina Prates .................................................................................................................................................................455

CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO GANDARELA: PARA QUÊ E PARA QUEM? Evangelista, Ana Carolina de An-
drade ...........................................................................................................................................................................................................465

USO E CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS PELOS POVOS INDÍGENAS DE RONDÔNIA E NOROESTE DO MATO
GROSSO. Gomide, Maria Lucia Cereda .................................................................................................................................................471

05 Sistemas de Gestão e Governança


IMPACTOS DA GESTÃO EM ÁREAS PROTEGIDAS: UMA ANÁLISE DA PERCEPÇÃO DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
DA APA CHAPADA DO ARARIPE. Nascimento, Paulo Sérgio Silvino do & Sabiá, Rodolfo José .......................................................479

INSTRUMENTOS DE GESTÃO DE RESERVAS EXTRATIVISTAS FEDERAIS: DIFICULDADES E DESAFIOS NOS ÚLTIMOS 25


ANOS. Brusnello, Leidiane Diniz & Marinelli, Carlos Eduardo .............................................................................................................491
INTERAÇÕES E PODER ENTRE STAKEHOLDERS DA PESCA ARTESANAL DE PARATY, ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Arau-
jo, Luciana Gomes de & Seixas, Cristiana Simão ...................................................................................................................................501

METODOLOGÍAS PARTICIPATIVAS EN LA GESTIÓN ADAPTATIVA DE ÁREAS NATURALES PROTEGIDAS MARINO-COS-


TERAS: UNA PROPUESTA DE APLICACIÓN EN LA RESERVA NACIONAL SISTEMA DE ISLAS, ISLOTES Y PUNTAS GUANE-
RAS - RNSIIPG, PERÚ. Cardoso, Luciano Régis & Lopes Ferreira, José Cândido ..............................................................................511

PROCESSO DE CRIAÇÃO E GESTÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ITAIPU – NITERÓI/RJ: O PAPEL DOS
ATORES SOCIAIS. Pinto, Maycon Correia; Moraes, Edilaine Albertino de & Irving, Marta de Azevedo .........................................519

DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA ROBUSTEZ INSTITUCIONAL DA PESCA ARTESANAL COSTEIRA EM UMA ÁREA
MARINHA PROTEGIDA DO SUDESTE BRASILEIRO. Freitas, Rodrigo Rodrigues de & Seixas, Cristiana Simão ..........................527

PROJETOS DO CICLO DE CAPACITAÇÃO EM GESTÃO PARTICIPATIVA DO ICMBIO: OPORTUNIDADES DE INCLUSÃO


SOCIAL NA GESTÃO DA BIODIVERSIDADE? Talbot, Virginia & Luz, Leda .....................................................................................537

GOVERNANÇA INDÍGENA EM ÁREAS DE SOBREPOSIÇÃO TERRITORIAL E A FORMAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DO


PARQUE NACIONAL DO PICO DA NEBLINA. Bocarde, Flávio; Ramos, Salomão M. & Uehara, Luciana Y .................................547

AS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE O PARQUE NACIONAL DE SAINT-HILAIRE/LANGE E SUA ZONA RURAL DE ENTOR-
NO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A GESTÃO. Campos, Larissa Aparecida de Paula; Adriano, Ana Paula Pereira & Quadros, Ju-
liana .............................................................................................................................................................................................................561

RELAÇÕES ANTAGÔNICAS E SOBREPOSIÇÕES NA APA DE GUARAQUEÇABA: UM PANORAMA DO CONFLITO SOCIO-


AMBIENTAL. Sibuya, Nathalia de Jesus & Denardin, Valdir Frigo ........................................................................................................571

CRUZANDO OS LIMITES: REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DE GESTÃO TERRITORIAL INDÍGENA NO NOR-
DESTE. Nilsson, Maurice Seiji Tomioka; Parra, Lilian Bulbarelli; Prudente, Hugo & Cardoso, Thiago Mota ..................................581

DINAMIZANDO E CAPILARIZANDO A GESTÃO: O CASO DOS NÚCLEOS DE BASE COMUNITÁRIA DA RESERVA EXTRA-
TIVISTA RIOZINHO DA LIBERDADE. Saldo, Pablo de Avila ................................................................................................................589

É PARQUE, MAS NEM TÃO PARQUE ASSIM: REPRESENTAÇÕES ACERCA DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO CIPÓ.
Souza, Leonardo Vasconcelos de .............................................................................................................................................................599

ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS PARA CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DE USO SUSTENTÁVEL: O CASO DAS
RESEX MARINHAS NO ESTADO DO PARÁ. Silva, Regina Oliveira da; Albuquerque, Adna; Almeida, Ruth Helena Cristo & Pereira,
Jorge Luiz Gavina .......................................................................................................................................................................................609

INTERFACES E SOBREPOSIÇÕES ENTRE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E TERRITÓRIOS DE POVOS E COMUNIDADES


TRADICIONAIS: DIMENSIONANDO O DESAFIO. Madeira, João Augusto; Abirached, Carlos Felipe de Andrade; Francis, Poliana
de Almeida; Castro, Daniel de Miranda Pinto de; Barbanti, Olympio; Cavallini, Marcelo Meirelles & Melo, Mônica Martins de ..
......................................................................................................................................................................................................................617

MONITORAMENTO PARTICIPATIVO DA BIODIVERSIDADE: ENVOLVIMENTO DE ATORES LOCAIS NA CONSERVAÇÃO


E GESTÃO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NA AMAZÔNIA. Prado, Fabiana; Tofoli, Cristina Farah de; Figueira, Pollyana
Lemos; Chiaravalloti, Rafael Morais; Santos, Rita Silvana Santana dos; Sousa, Ilnaiara; Fernandes, Laís; Bonavigo, Paulo Henrique
& Maduro, Rubia Goreth Almeida ............................................................................................................................................................627
O PROGRAMA ÁREAS PROTEGIDAS DA AMAZÔNIA (ARPA) E O FORTALECIMENTO COMUNITÁRIO EM UNIDADES DE
CONSERVAÇÃO. Bueno, Marco Antonio Ferreira & Silva, Andréa Leme da .......................................................................................637

PERFIL DA FAMÍLIA BENEFICIÁRIA NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DA BAÍA DO IGUAPE: REFORÇANDO A AUTO-
NOMIA. Mendonça, Felipe Cruz; Cunha, Claudia Conceição; Tardio, Bruno Marchena Romão; Oliveira, Rosenil Dias de & Frei-
tas, Sérgio Fernandes ................................................................................................................................................................................647

PLANEJAMENTO DE BACIA HIDROGRÁFICA PARA GESTÃO DE TERRITÓRIOS SOBREPOSTOS: SERTÃO DE UBATUMI-


RIM–UBATUBA/SP. Simões, Eliane1; Bussolotti, Juliana; Navarro, Flávia; Silva, Danilo S.; Moreira, Noeli; Ferreira, L. C.; Carvalhal,
Fabiana; Lóssio, Natália & Franco, Caetano ............................................................................................................................................657

PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS MUDANDO O FOCO DA RESEX ARAPIXI: DA PECUÁRIA PARA O SISTEMA
AGROFLORESTAL. Silveira, Leonardo Konrath da; Rios, Cláudia Márcia Almeida; Oliveira, Késsia Monteiro de & Gomes, Noel
Humberto Dias ...........................................................................................................................................................................................667

SUBCOMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS: APRIMORAMENTO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL PARA A CONSERVAÇÃO DOS


AQUÍFEROS E DAS ÁGUAS SUPERFICIAIS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL CARSTE DE LAGOA SANTA. Barbosa,
Cláudia Silva; Oliveira, Daniel Duarte de & Nogueira, Derza Aparecida Costa .................................................................................675

UNIDADES DE CONSERVAÇÃO, PRÁTICAS RELIGIOSAS NEOPENTECOSTAIS E DIREITOS HUMANOS: O CASO DO


PARQUE NACIONAL DA TIJUCA (RJ). Maciel, Gláucio Glei & Gonçalves, Rafael Soares ................................................................685

A CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL MARINHO DAS ILHAS DOS CURRAIS E A NOVA REALIDADE DA REGIÃO. Sant’ana,
Thamyres Pires, Santos, Carolina Santana & Krelling, Allan Paul .........................................................................................................695

A GESTÃO PARTICIPATIVA NA RESERVA EXTRATIVISTA RIO XINGU. Guedes, Maite Alves, Pereira, Mauro Braga Costa & Brus-
nello, Leidiane Diniz .................................................................................................................................................................................705

CÂMARAS TÉCNICAS DE PESCA COMO INSTRUMENTOS DE GESTÃO PESQUEIRA EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO


MARINHO-COSTEIRAS: O CASO DO LITORAL DO PARANÁ. Destéfani, Homero Luiz; Luiz Francisco, Faraco, Ditzel & Medeiros,
Rodrigo Pereira ..........................................................................................................................................................................................715

DESAFIOS DA GESTÃO DE RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO ESTADO DE SÃO PAULO: QUATRO


SITUAÇÕES NO MOSAICO DO JACUPIRANGA – VALE DO RIBEIRA (SP). Bim, O. J. B., Vieira, A., Portilho, W. G. & Campolim,
M. B. ............................................................................................................................................................................................................725

DIAGNÓSTICO DO SISTEMA SÓCIO-ECOLÓGICO ‘CONSERVAÇÃO E USO DE FLORESTAS NATIVAS EM UNIDADES DE


PRODUÇÃO AGRÍCOLAS PRIVADAS DO CORREDOR ECOLÓGICO CHAPECÓ, SANTA CATARINA, BRASIL’. Zuchiwschi,
Elaine & Fantini, Alfredo Celso .................................................................................................................................................................735

EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO PROPOSTA DE FORTALECIMENTO DA GESTÃO PARTICIPATIVA DE UNIDADES DE


CONSERVAÇÃO COM PRESENÇA DE COMUNIDADES TRADICIONAIS: O CASO DA ESTAÇÃO ECOLÓGICA JUREIA-
ITATINS (IGUAPE-SP). Cruz, Thais Pereira da & Torres, Juliana Rezende .........................................................................................745

O PROGRAMA DE VOLUNTARIADO DO INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇAO DA BIODIVERSIDADE COMO


MECANISMO DE INTERFACE SOCIOESTATAL E/OU PARTICIPAÇÃO SOCIAL. Dau, Julia Zapata Rachid & Oliveira, Flávia
Cristina Gomes de .....................................................................................................................................................................................753
POSSIBILIDADES PARA OS MOSAICOS DE ÁREAS PROTEGIDAS: A EXPERIÊNCIA DO 1° ENCONTRO PARA O DIÁLOGO
ENTRE COMUNIDADES AGRÍCOLAS E TRADICIONAIS E PARQUES DO MOSAICO CARIOCA (RJ). Marques, Ana Carolina;
Pena, Ingrid Almeida de Barros & Marques, Maria Clara de Oliveira .................................................................................................761

RESERVA PARTICULAR DO PATRIMÔNIO NATURAL MUNICIPAL CASCATINHA, SITUAÇÃO ATUAL DA GESTÃO DA


PRIMEIRA RPPNM DE CURITIBA. Basniak, Marília Thiara Rodrigues & Tetto, Alexandre França ..................................................769

TERMO DE COMPROMISSO ENTRE PESCADORES DE TARITUBA E ESTAÇÃO ECOLÓGICA DE TAMOIOS: RELATO DE


PERCURSO. Chada, Sylvia de Souza .......................................................................................................................................................777

ZONA DE USO ESPECIAL INDÍGENA NO PARQUE ESTADUAL DO MATUPIRI/AM. Sakagawa, Sergio, Pereira, Henrique dos
Santos & Stancik, Juliane Franzen .............................................................................................................................................................787

06 Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania:


experiências de aprendizagem social
COMPARTILHANDO SABERES AMBIENTAIS ATRAVÉS DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA EM COMUNIDADES DE PESCA-
DORES NA RESERVA EXTRATIVISTA DE SÃO JOÃO DA PONTA-PA. Rodrigues, Rafael de Oliveira Castro, Filho, Waldemar Lon-
dres Vergara & Pimentel, Marcia Aparecida da Silva ............................................................................................................................799

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E O DESPERTAR DO PROTAGONISMO JUVENIL: A EXPERIÊNCIA DO PROJETO JOVEM CIEN-


TISTA DAS ÁGUAS NA RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PIAGAÇU-PURUS, AMAZONAS. Silva, Luiza Hel-
ena Pedra da; Freitas, Camila Carla de; Dutra, Juliana Cabral de Oliveira; Rossoni, Felipe & Rodrigues, Leonardo da Silveira .......
......................................................................................................................................................................................................................807

ENTENDIMENTO JUVENIL DOS QUATRO ELEMENTOS NATURAIS: CONTRIBUIÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO DA FLO-
RESTA AMAZÔNICA. Azevedo, Genoveva Chagas de & Higuchi, Maria Inês Gasparetto ...............................................................815

ENTENDIMENTO JUVENIL SOBRE PROBLEMAS AMBIENTAIS, PREOCUPAÇÃO E A ÉTICA NO CUIDADO COM O MEIO
AMBIENTE. Cordeiro, Themis Eliza Bessa S., Higuchi, Maria Inês Gasparetto & Azevedo, Genoveva Chagas de .....................827
.
POLITICAS EDUCACIONAIS EM ÁREAS DE RESEX MARINHA: GURUPIPIRIÁ/ VISEU-PA. Santos, Adria Macedo dos ...........835

AS RELAÇÕES GERACIONAIS NA SOCIALIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS ECOLÓGICOS LOCAIS NA RESERVA EXTRA-


TIVISTA MARINHA DE CAETÉ-TAPERAÇU, AMAZÔNIA ORIENTAL, BRASIL. Vieira, Norma, Siqueira, Deis, Barboza, Roberta &
Pinheiro, Janielle ........................................................................................................................................................................................837

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E VISITAÇÃO EM PARQUES NACIONAIS: A EXPERIÊNCIA DO PARQUE NACIONAL DA TIJUCA


(RJ) COM GUIAS DE TURISMO E CONDUTORES DE VISITANTES. Botelho, Eloise Silveira & Maciel, Gláucio Glei ................843

EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: EXPERIÊNCIAS NA CO-GESTÃO DO CAMPING DO PARQUE ESTADUAL DO RIO VER-
MELHO, FLORIANÓPOLIS (SC). Palermo, Pedro Rodolfo Ocampos; Abreu, Marcos José de; Bottan, Guilherme Angelo; Pereira,
Icaro Chrsitóvam; Teixeira, Camilo; Trivella, Renato Barretto Barbosa; Cardoso, Stephanye Oliveira; Gellert, Luana Jamayna;
Taffe, Bruna Lunardi; Lorenzi, Karina Smania de.; Ganzarolli, André Martins & Angeloletto, Fernando ..........................................853

HAVETÉ NO VIDIGAL: O RELATO DA EXPERIÊNCIA DE UM COLETIVO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO MORRO DO VI-


DIGAL, RIO DE JANEIRO-RJ. Pelacani, Bárbara; Abreu, Manuela Muzzi de; Uchôa, Rafaella; Ximenes, Simone; Dantas, Thalita &
Costa, Érika Andrade ................................................................................................................................................................................861
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, AUTONOMIA DO MODO DE VIDA E CONSERVAÇÃO AMBIENTAL NA REGIÃO DA
SERRA DO CIPÓ/ MG. Lopes, Cristiana Gomes Ferreira .....................................................................................................................869

PROMOÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA GESTÃO AMBIENTAL PÚBLICA: A FORMAÇÃO DE GESTORES AMBIENTAIS


NO ICMBIO. Fontana, Alessandra; Martins, Jerônimo Carvalho; Cunha, Cláudia Conceição; Santin, Laci; Fabiano, Fátima & Dino,
Karina ..........................................................................................................................................................................................................879

DIAGNÓSTICO DO DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES NO PARQUE MUNICIPAL SÃO BARTOLOMEU, SALVADOR/BA,


PELAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO DE SEU ENTORNO. Pereira, Tiaro Katu; Pellin, Andrea, Reis, Jussara Christina & Pellin, An-
gela .............................................................................................................................................................................................................887
01
1. Compromisso com o futuro
comum: Instrumentos jurídicos

O foco deste eixo temático são as


discussões relacionadas aos direitos huma-
nos e da natureza; acordos e convenções
internacionais; legislações nacionais; políti-
cas públicas; avaliação da implementação
do SNUC (Sistema Nacional de Unidades
de Conservação) e do PNAP (Plano Nacio-
nal de Áreas Protegidas); ameaças aos
instrumentos jurídicos relacionados à
inclusão social e áreas protegidas; e
experiências exitosas de implementação
desses instrumentos na prática.
ÁREAS PROTEGIDAS E A CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA:
DESAFIOS PARA O CUMPRIMENTO DA META 11 DE AICHI

Prates, Ana Paula Leite1 & Irving, Marta de Azevedo2

1. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ana.prates@icmbio.gov.br; 2. Eicos/IP e PPED/IE da UFRJ


e INCT/PPED/CNPq. Universidade Federal do Rio de Janeiro, marta.irving@mls.com.br

Resumo
O Brasil apresenta a mais rica biodiversidade mundial e foi o primeiro país a assinar a Convenção de Diversidade Biológica.
Dentre os mecanismos para a conservação da biodiversidade previstos na CDB destacam-se as áreas protegidas destinadas
à conservação da biodiversidade. O objetivo do artigo é interpretar, avanços, desafios e tendências das políticas públicas para
as áreas protegidas no Brasil, à luz dos compromissos assumidos pelo país no âmbito da CDB frente às atuais Metas de Aichi e
aos desafios de um país emergente. Conclui-se que o Brasil dispõe de inúmeros instrumentos de políticas públicas voltados à
conservação da biodiversidade, em especial às áreas protegidas, por vezes desarticuladas e contraditórias com as demais políti-
cas. Permanece o desafio de integrar as políticas públicas de conservação da biodiversidade e desenvolvimento e a inclusão da
sociedade no processo.

Palavras-chave: Convenção sobre Diversidade Biológica, Metas de Aichi, Áreas Protegidas, Políticas Públicas

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


23
CONSELHOS GESTORES DE ÁREAS PROTEGIDAS NO BRASIL: REFLEXÕES
SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL, DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Prado, Deborah Santos1; Araujo, Luciana Gomes2; Chamy, Paula 3; Dias, Ana Carolina Esteves4 & Seixas, Cristiana Simão1,2

1.Doutoranda em Ambiente e Sociedade/NEPAM/UNICAMP e Colaboradora do grupo de Pesquisa e Extensão em Gestão e


Conservação de Recursos Comuns (CGCommons), deborah.stprado@yahoo.com.br 2.Pesquisadora de Pós doutorado, NEPAM/UNICAMP
e Colaboradora do grupo de Pesquisa e Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons) 3.Colaboradora do grupo
de Pesquisa e Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons) 4.Mestranda em Ecologia, UNICAMP e
Colaboradora do grupo de Pesquisa e Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons)
5.Professora e Pesquisadora NEPAM/UNICAMP e Coordenadora do grupo de Pesquisa e
Extensão em Gestão e Conservação de Recursos Comuns (CGCommons)

Resumo
Os Conselhos Gestores têm sido considerados instrumentos institucionais inovadores e importantes no exercício da democracia.
Este artigo tem o objetivo de apresentar um histórico dos marcos legais de regulamentação dos Conselhos de áreas protegidas
no âmbito federal, no que diz respeito à evolução de diretrizes e critérios de participação social incluídos nesses documentos.
Os resultados mostram que a participação social é garantida em diversos aspectos das normas analisadas, o que deve ser con-
siderado uma conquista para a gestão de Unidades de Conservação. Ainda assim, são apontados alguns paradoxos e desafios,
incluindo questões de representatividade, independência, capacitação e compartilhamentos genuínos de poder e de tomada de
decisão. Mais do que um resultado final, a participação pressupõe um processo, que também se reflete no histórico dos arranjos
jurídicos.

Palavras-chave: Unidades de Conservação, Conselhos Gestores, Gestão Participativa, Representatividade, Capacitação

Introdução
A criação de diversos mecanismos participativos no Brasil tem contrariado afirmações na literatura internacional ao longo
das últimas décadas, de que as características das instituições e padrões de ação política de atores sociais latino-americanos
impediriam a existência de canais institucionalizados de representação de interesses societais (CORTÊS, 2007).
No campo socioambiental, foco específico deste artigo, observa-se a incorporação de práticas discursivas sobre partici-
pação social desde os anos 1970 em fóruns e documentos internacionais, como a Conferência de Estocolmo, relatório Brundt-
land e Rio-92. Desde então, a participação social na questão ambiental tem sido colocada como condição para o sucesso da
conservação aliada ao desenvolvimento (SPÍNOLA, 2012). No Brasil, como salientam Ferreira & Tavolaro (2008), também se
iniciou uma mudança paradigmática e um processo gradual de difusão da reflexão sobre a temática ambiental entre diferentes
setores da sociedade, culminando em um movimento ambientalista diverso e multifacetado.
Em busca da redemocratização da sociedade no final da década de 1970, a temática da participação pública ou popular
pautava as demandas de protestos e mobilizações dos movimentos sociais no país. Como resultado dessa efervescência, a pro-
fusão de conselhos gestores foi considerada uma das mais importantes inovações institucionais das políticas públicas no Brasil
democrático na segunda metade da década de 1980 (GOHN, 2011).
Os conselhos gestores podem ser concebidos como fóruns públicos de captação de demandas e pacto de interesses
específicos dos diversos grupos sociais, e como uma forma de ampliar a participação dos segmentos com menos acesso ao
aparelho do Estado (LUCHMANN & BORBA, 2008). Assim, os conselhos gestores constituem um espaço público onde indivíduos
interagem, debatem, apresentam demandas sobre questões estratégicas, tornando a autoridade pública sensível às suas deli-
berações (AVRITZER, 2000).
Os conselhos estão previstos na Constituição de 1988, bem como em outras leis, na qualidade de instrumentos de ex-
pressão, de representação e participação da população (GOHN, 2011), e têm o papel de mediar a relação entre sociedade e

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


25
Estado (AVRITZER, 2000). Exemplos desses fóruns na esfera socioambiental são os Conselhos de Meio Ambiente (Nacionais,
Estaduais e Municipais), os Conselhos de Recursos Hídricos, os Comitês de Bacias Hidrográficas, os Conselhos de Unidades de
Conservação, entre outros.
É importante ressaltar, no entanto, que a discussão e o debate acerca da democracia desejável (e possível) vêm percor-
rendo um caminho sinuoso que é atravessado por disputas sobre os sentidos da participação (LUCHMANN, 2006). Fonseca
(2011), por exemplo, problematiza a promoção descontextualizada da ideia de participação por meio da replicação indiscrimi-
nada de instâncias participativas e de desenhos institucionais, dados por “pacotes” e fórmulas prontas e preestabelecidas. O
autor (op.cit) denomina esses pacotes ou fórmulas como “manual da boa governança”, geralmente visto como necessário e
suficiente para o alcance eficiente da democracia participativa. Ainda segundo o autor, a simples obrigação legal de criação
desses espaços,

... sem observar e combater desigualdades nas relações de poder, na informação e na linguagem
apresentadas, bem como nas restrições materiais e simbólicas vivenciadas pelos participantes, faz
com que a utilização desse importante instrumento de gestão ambiental possa seguir a orientação
pro forma e não cumprir com seus objetivos principais de mobilizar a sociedade, fomentar capital
social e viabilizar um real controle social sobre as políticas (FONSECA, 2011 p. 22-23).

Frente a essa problemática e com foco nos conselhos gestores de Unidades de Conservação (UC) no Brasil, este artigo
tem como objetivo geral apresentar um histórico dos marcos legais de regulamentação desses Conselhos no âmbito federal, no
que diz respeito à evolução de diretrizes e ferramentas de participação incluídas nesses documentos. Objetivamos ainda, discu-
tir as principais mudanças em fatores que afetam as possibilidades de participação e do controle social efetivos, elementos de
governança imprescindíveis para inclusão social em áreas protegidas.

Métodos de Pesquisa
Para analisar os marcos legais de regulamentação dos conselhos de UC no âmbito federal, foram levantadas as principais
normas jurídicas a eles relacionadas: (i) Lei Federal nº 9.985, de 18 de Julho de 2000, referência inicial da análise; (ii) Decreto
Federal nº 4.340, de 22 de Agosto de 2002; (iii) Instrução Normativa do ICMBio nº 02, de 18 de Setembro de 2007 (doravante IN
nº 02/2007); (iv) Instrução Normativa do ICMBio nº 11, de 8 de Junho de 2010 (doravante IN nº 11/2010) e (v) Instrução Normativa
do ICMBio nº 09, de 05 de Dezembro de 2014 (doravante IN nº 09/2014).
A análise das normas foi realizada com base nos critérios de avaliação de procedimentos de participação pública pro-
postos por Rowe & Frewer (2000). Estes critérios também foram utilizados por TRIMBLE, ARAUJO & SEIXAS, (2014) e ARAUJO
(2014) para avaliar a participação social em Conselhos Gestores de Unidades de Conservação da região de Paraty, estado do
Rio de Janeiro.
Essa proposta de avaliação de procedimentos de participação pública tem o objetivo de verificar a efetividade da par-
ticipação dos cidadãos em procedimentos de gestão ambiental e de riscos, além de permitir a comparação entre estudos com
base nos mesmos critérios de avaliação (ROWE;FREWER, 2000). Esses critérios baseiam-se em aspectos que ajudam a garantir
o efetivo exercício da participação e agrupam-se em dois conjuntos, denominados de critérios de reconhecimento e processuais.
O primeiro agrega a representatividade, a independência de coordenação, o envolvimento precoce dos participantes, a capaci-
dade do mecanismo de participação em influenciar políticas e a transparência do processo. Os critérios processuais incluem o
acesso às informações, definição de objetivos, processo estruturado de tomada de decisões e a disponibilidade de recursos para
a execução do processo de participação.
Neste estudo, são usados os critérios de reconhecimento (i.e. a representatividade, a independência de coordenação,
o envolvimento precoce dos participantes, a capacidade do conselho em influenciar políticas e a transparência do processo).
Optamos por não analisar os critérios processuais nesse momento, entendendo que os processos também devem ser analisados
e acompanhados localmente. Uma exceção foi dada ao critério de estrutura do processo de tomada de decisões, por entendê-lo
como critério extremamente importante para avaliar a participação e para compreender como esse critério se reflete nas normas
legais.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
26
Resultados e Discussão: A evolução normativa dos Conselhos de UC
com base em critérios de avaliação da participação social
A partir da análise dos instrumentos jurídicos que regulamentam os conselhos gestores (Quadro 1), foi possível observar
que as instruções normativas (INs) estão em consonância com o que dispõem a Lei e o Decreto que regem o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação (SNUC), e existe uma tendência de maior detalhamento da estrutura e funcionamento dos mes-
mos desde a instituição da Lei n° 9.985/2000 do SNUC até a IN nº 09/2014. É importante reconhecer que no detalhamento das
Instruções Normativas, mecanismos de participação e representação são reforçados, como o princípio da paridade entre Es-
tado e sociedade civil, a representação de grupos sociais mais vulneráveis e a participação dos conselheiros na elaboração da
estrutura e regimento dos Conselhos.
A IN nº 02/2007 trata dos Conselhos Deliberativos de Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento
Sustentável (RDS), enquanto a IN nº 11 de 2010 aborda os Conselhos Consultivos, cabíveis a todas as outras categorias de UC.
Os conselhos consultivos e deliberativos apresentam diversas competências comuns, mas se distinguem especialmente pela
característica única de conselhos de RESEX e RDS em deliberar sobre assuntos relacionados à gestão da UC e emitir resoluções.
Os conselhos consultivos, por sua vez, emitem manifestações, recomendações e moções, cabendo o poder decisório ao órgão
gestor1.
Após a publicação da IN nº 9/2014, o ICMBio produziu uma cartilha de orientação sobre os conselhos gestores intitulada
“Conselhos Gestores de Unidades de Conservação: Um guia para gestores e conselheiros” (ABIRACHED et al; 2014). Diversas
orientações do órgão que se mostram complementares às normas estão contidas nesse documento, ainda que sem peso jurídico,
como ferramentas metodológicas para identificação dos setores que comporão os Conselhos, entre outras atividades.

1
Os tipos de conselho podem variar de acordo com as categorias de UC no nível estadual. Em alguns casos de UC estaduais da região norte, como no Acre, Amazo-
nas, Tocantins e Pará, há variações e outras possibilidades de estabelecimento de conselhos deliberativos para além de RESEX e RDS.

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


27
VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
28
01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos
29
Além disso, o ICMBio possui uma Coordenação de Gestão Participativa e promove Ciclos de Capacitação nessa temática (que
ocorrem desde 2010) para formação de seus gestores, o que tem contribuído para que os Conselhos avancem em seu fortaleci-
mento.
A evolução das normas e seu desenho institucional serão discutidos a seguir, com base nos critérios de avaliação da
participação propostos por Rowe & Frewer (2000), também apresentados no Quadro 1.

Representação
Os princípios e diretrizes sobre representatividade dos conselhos se mostraram historicamente assegurados pelas nor-
mas, desde o Decreto nº 4.340/2002. Na IN nº 2/2007 há a inclusão de representantes não organizados como pessoa jurídica,
dando espaço para representantes de comunidades tradicionais na qualidade de pessoa física. Há de se destacar que a par-
ticipação da pessoa física ainda se consubstancia na representatividade de entidades constituídas (LUCHMANN, 2006) ou de
instituição-membro (IN n º 9/2014) e não deve se confundir com participação individual. Além disso, a evolução das normas
reforça a participação equitativa e qualitativa dos grupos sociais mais vulneráveis e especifica que nos Conselhos Deliberativos
a maioria do Conselho deve estar representada pelas populações tradicionais.
Embora a representação das populações afetadas pelas UC seja legitimada historicamente pelas normas, outras questões
também devem ser consideradas para reflexão, para além do que está “garantido como lei”. Considerando-se que a paridade
numérica não corresponde necessariamente à paridade política, deve-se observar que nos Conselhos a representação de popu-
lações afetadas pela implementação de UC estará assegurada de facto apenas quando existir transparência e comprometimento
político para que os temas de interesse desses atores sejam debatidos.
Como complemento à representação, a construção de confiança entre conselheiros e a coordenação dos conselhos é um
fator fundamental no processo de participação (BOOTH;HALSETH, 2011), especialmente quando há muita assimetria de poder.
Para Gohn (2011), a participação precisa ser qualificada para ser efetiva, ou seja, não basta a presença numérica das pessoas,
sendo necessário o fornecimento de apoio aos grupos mais vulneráveis para que sintam-se capazes de participar (ARNSTEIN,
1969).
Outro fator que merece reflexão está relacionado com a escolha dos representantes governamentais nos Conselhos. A
indicação desses membros pelo poder executivo não corresponde, muitas vezes, à familiaridade com as pautas socioambientais
das UC, o que pode tornar a representação da esfera governamental deficitária (KRUGER, 1998). Ainda assim, há outras diferen-
ças importantes nas condições de participação entre os membros advindos do governo daqueles advindos da sociedade civil.
Como afirma Gohn (2011), os primeiros geralmente trabalham nas atividades dos Conselhos durante seu período de expediente
normal e remunerado, com acesso a infraestrutura de suporte administrativo, informação e linguagem tecnocrática, fatores que
geralmente se tornam barreiras aos representantes comunitários.

Independência
Alguns mecanismos identificados na análise histórica das normas mostra o incremento de possibilidades de maior inde-
pendência como, por exemplo, a competência para criação de grupos de trabalho (GTs) e câmaras temáticas (CTs), que surge
pela primeira vez na IN nº 11/2010. Os GTs e CTs podem ser considerados instrumentos de gestão que ampliam a possibilidade
de descentralização, o que potencialmente expandiria o espaço de negociação, independência e controle social do conselho
em relação à sua coordenação. Os GTs e as CTs propiciam a análise e o encaminhamento de especificidades da Unidade, pos-
sibilitando tanto a participação dos representantes a partir de seus interesses e afinidades temáticas, quanto a participação de
representantes externos ao conselho. De acordo com o guia de orientação publicado pelo ICMBio, os GTs e as CTs podem,
ainda, “tratar de conflitos relacionados com a UC, amadurecendo questões que, quando chegarem ao Conselho, possam ser
discutidas e encaminhadas de modo mais ágil” (ABIRACHED et al; 2014).
Ainda que a inserção de GTs e CTs acene para uma maior independência dos Conselhos, esse fator ainda é bastante
limitado pelo papel de coordenação e presidência do órgão ambiental, principalmente nos Conselhos Consultivos que não têm
poder de deliberação. Os instrumentos jurídicos mostram uma tutela marcante do ICMBio tanto no nível local, quanto em níveis
hierárquicos superiores às chefias das UC, que necessitam, por exemplo, ser informados ou emitir pareceres-técnicos sobre a
formação dos conselhos, o seu regimento interno, a modificação dos seus representantes, a criação do plano de ação e a ava-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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liação periódica dos conselhos (IN nº 9/2014, arts. 8º; 10; 24; 26 e 30), o que ainda demonstra uma relação de muito hierárquica
dentro deste órgão e do Conselho para com o órgão ambiental.
A tutela hierárquica do ICMBio regulamentada pelos instrumentos jurídicos pode se constituir em um paradoxo da in-
dependência. Por um lado, assegura que os gestores das UC sigam as normas e garantam os quesitos de representatividade e
a realização de diversos procedimentos participativos e de competências previstas para os conselhos (incluindo a garantia da
conservação da biodiversidade). Por outro lado, considerando uma ampla diversidade de contextos locais, históricos e socio-
políticos de participação, permite que os interesses do órgão ambiental se sobreponham aos interesses do Conselho de forma
unilateral, e que no decorrer do processo haja desestímulo, desconfiança, e barreiras para inovação e para a participação efetiva.
Em estudo realizado em UC federais do estado do Acre, verificou-se que a participação comunitária nos conselhos
gestores, incluindo de algumas RESEX, é marcada pela influência direta da presidência do conselho. O estudo apontou que em
alguns casos os regimentos internos não retratam a realidade dos representantes comunitários desconsiderando, entre outros fa-
tores, o tempo necessário para preparação e organização dos temas de interesse local a serem incluídos nas pautas das reuniões
(CARRILLO;LUZ, 2013). Nestes casos, é necessário que a coordenação dos Conselhos flexibilize procedimentos para incorporar
as demandas e diversidades culturais dos conselheiros e as instituições-membro que representam.

Envolvimento precoce
A evolução das normas mostra um incentivo ao envolvimento cada vez mais precoce dos participantes no processo.
O Decreto nº 4.340/2002 estipulava a atuação dos conselheiros para a elaboração do regimento interno do conselho. A IN nº
2/2007 (art. 4, § 2º; e art. 5) altera esse dispositivo e prevê a participação de representantes das populações tradicionais na etapa
e atividades de formação dos conselhos deliberativos, o que se mantém nas sucessivas INs. A novidade da IN nº 9/2014 é a
instituição de um GT específico para essa etapa, “composto por um ou mais representantes do Instituto Chico Mendes, repre-
sentantes das instituições diretamente envolvidas com a Unidade de Conservação e das populações tradicionais beneficiárias,
quando houver (IN nº 9/2014, art. 9º, I). O envolvimento dos participantes passa a se dar, portanto, não somente na elaboração
do regimento pós-criação do conselho, como também na atividade de caracterização do território em que se situa a UC e na
mobilização e definição dos setores do poder público e da sociedade civil que comporão o conselho. Isso se mostra relevante
para a construção de confiança, antes que julgamentos e disputas se tornem salientes (ROWE;FREWER, 2000).

Transparência
De forma geral, as diretrizes contidas nos instrumentos jurídicos analisados têm explicitado a importância do caráter
público dos conselhos, o que objetiva garantir o acesso e a transparência aos processos. As INs nº 11/2010 e nº 9/2014 foram
explícitas sobre a necessidade de publicizar as recomendações ou deliberações dos Conselhos.
A transparência é um critério que necessita ser avaliado na dinâmica de atuação do Conselho. As atas devem ser redigi-
das, revisadas e aprovadas em Plenária, pois é o registro formal do que ocorreu nas reuniões. Outro aspecto importante é a divul-
gação de datas e locais de reuniões, que deve ser ampla e feita com antecedência para garantia de presença do maior número
de pessoas. O Guia de Orientação dos Conselhos ressalta a importância das atas e da lista de comparecimento (ABIRACHED et
al, 2014) complementando o que consta nas Instruções Normativas.
Ainda que as orientações contidas no guia publicado pelo ICMBio indiquem que as reuniões do Conselho devem ocor-
rer em local de fácil acesso e em ambientes que garantam a livre manifestação de opiniões (ABIRACHED et al, 2014), essas
recomendações podem ser obstadas na prática, devido, por exemplo, ao tamanho da área da UC, recursos financeiros, falta de
informação, condições climáticas, entre outros.

Influência
A partir da análise das normas, verifica-se que a possibilidade de influência dos conselhos esteve presente na delimitação
de suas competências desde o Decreto nº 4.340/2002 e repetiu-se nas INs que se seguiram. No entanto, em relação à promoção

2
“Processo conduzido de forma democrática e transparente, estabelecendo ações e fóruns que possibilitem a participação dos distintos sujeitos, instituições e grupos
sociais que têm relação com os usos do território de influência da Unidade de Conservação, com o objetivo de definir a composição e instituir a criação do Conselho”
(IN n.9/2014)

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


31
de políticas, a IN nº 9/2014 apresenta uma junção das competências expostas nas normas anteriores e explicita a exclusividade
da competência dos conselhos deliberativos em “demandar e propor aos órgãos competentes ações ou políticas públicas de
qualidade de vida e apoio ao extrativismo às populações tradicionais beneficiárias da Unidade de Conservação” (art. 5º VI).
As demais competências, comuns aos dois tipos de conselho, dirigem-se diretamente às políticas de conservação na
UC, como: “demandar e propor aos órgãos competentes, instituições de pesquisa e de desenvolvimento socioambiental, ações
de conservação, pesquisa, educação ambiental, proteção, controle, monitoramento e manejo que promovam a conservação dos
recursos naturais das Unidades de Conservação, sua zona de amortecimento ou território de influência” (art. 4, III).
Os Conselhos Consultivos, comparativamente, estão mais limitados em seu poder de influência que os Deliberativos.
Ainda que a IN nº 9/2014 apresente possibilidades de ações dos conselhos, capazes de influenciar a política, alguns desafios
para que esses fóruns sejam capazes de construir processos que influenciem de fato a gestão dos territórios, estão relacionados
à distribuição equitativa de poder entre os diversos grupos de interesse (ARNSTEIN, 1969), à capacitação de conselheiros e
coordenadores dos Conselhos (PETERSON, 2011, TRIMBLE, ARAUJO & SEIXAS, 2014) e ao reconhecimento e à incorporação
de diferentes tipos de conhecimentos e visões de mundo às decisões (RAMÍREZ 1999, BORRINI-FEYERABEND et al. 2004) .

Estrutura para tomada de decisão


As normas discriminam que a tomada de decisão nos conselhos deve garantir a representatividade e a transparência,
mas não explicitam a estrutura do processo de tomada de decisão, para além da previsão da votação e demais formas de mani-
festação (art. 29 da IN nº 9/2014). O guia de orientação do ICMBio, por sua vez, menciona que a tomada de decisão pode ser
consubstanciada no consenso, por voto, por maioria simples, por maioria absoluta ou por quórum (ABIRACHED et al; 2014, p.
32), mas esses mecanismos não têm poder normativo e não são detalhados quanto ao procedimento.
As tomadas de decisão nos conselhos ocorrem também para a realização de outras competências, como a elaboração
do Plano de Ação do conselho e sua Avaliação continuada. Na IN nº 11/2010, a elaboração do plano de ação e sua avaliação são
citados como competências dos conselhos, mas sem maiores detalhamentos sobre sua estrutura. Essa estruturação aparece em
2014, quando são regulamentadas as informações mínimas sobre a função desses instrumentos e o que deve ser decidido para
o plano de ação da UC (IN 9/2014, arts. 25 e 26), bem como a necessidade de sua avaliação e monitoramento anual. A forma
como esses instrumentos de gestão são conduzidos na prática não é regulamentada, e pode denotar mais uma vez um paradoxo,
quando pode por um lado facilitar o uso de múltiplas formas participativas e adequadas às realidades locais, mas por outro, pode
permitir que esses instrumentos sejam aplicados de forma não democrática e não participativa.
Além disso, a capacitação de conselheiros volta a ser um fator relevante para os representantes das diversas categorias
que compõem o conselho nas tomadas de decisão. Em geral, os gestores têm maior conhecimento sobre as regras e exigências
relacionadas à gestão das UC. Os representantes comunitários, por sua vez, iniciam os processos com profundo conhecimento
sobre a realidade local, mas pouco familiarizados com as regras de gestão e burocracias (CARRILLO;LUZ, 2013). O desconhe-
cimento de regras e a falta de capacitação contínua para os conselheiros e demais interessados é um fator crítico para a partici-
pação social nos conselhos. Nesse sentido, também pontuamos a importância de que os gestores também sejam capacitados a
entender a linguagem e realidade local, reforçando o conhecimento local como fonte de informação para subsidiar as tomadas
de decisão.

Considerações Finais
A participação social nos Conselhos Gestores está garantida formalmente em diversos aspectos das normas que o regem,
o que deve ser considerado uma conquista no âmbito da gestão de Unidades de Conservação. Na prática, é preciso lembrar que
os processos de participação se desenvolvem lentamente e no longo prazo (BASS; DALAL-CLAYTON; J. PRETTY,1995;STRINGER
et al., 2006; VON KORFF et al., 2010). Ainda que as normas legais tenham evoluído para o fortalecimento da participação, existem
lacunas quanto à necessidade de desafiar as assimetrias de poder, as fragilidades de independência, da representação de facto,
e as necessidades de capacitação de conselheiros e gestores.
A iniciativa do ICMBio em rever suas normativas e produzir materiais de orientação para conselheiros e gestores deve

“O requisito de avaliação e monitoramento está provavelmente relacionado com a Recomendação do ICMBio n.17 de 28 de Julho de 2014. O órgão recomenda esta-
3

belecer ferramentas para avaliação da efetividade da gestão de UC de forma periódica e participativa.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
32
também ser contabilizada como uma conquista no exercício da participação. A capacitação e a avaliação sistemática e conti-
nuada das ações do conselho são dois aspectos fundamentais para que sua prática reflita as garantias de participação que cons-
tam das normas. Além disso, salienta-se a importância de que os critérios aqui analisados sejam considerados na elaboração de
normas futuras, incluindo os de caráter processual como a qualidade do acesso às informações, a definição de objetivos que seja
clara aos conselheiros na prática, e a disponibilidade de recursos financeiros para a execução dos processos de participação.
A análise dos instrumentos jurídicos nos permite ressaltar a emergência de paradoxos. Concordando com Gohn (2011),
que os Conselhos Gestores carregam suas contradições, eles podem ser instrumentos valiosos para a constituição de uma
gestão democrática e participativa, caracterizada por novos padrões de interação entre governo e sociedade, como também
podem se configurar como meras estruturas burocráticas formais que reforçam desigualdades sociais e políticas. O caminho
de abertura para a inserção de valores e conhecimentos distintos em instituições participativas é fundamental para o avanço
da construção coletiva nesses espaços, o que pressupõe um verdadeiro compartilhamento de poder e responsabilidades nas
tomadas de decisão.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
34
EFETIVIDADE DE NORMAS AMBIENTAIS, MANGUEZAIS E OPORTUNIDADES
SOCIAIS PARA COMUNIDADES TRADICIONAIS EM RESERVAS
EXTRATIVISTAS MARINHAS NO PARÁ

Pinheiro, Elysângela Sousa1, Thomas, Shaji2 & Almeida, Oriana Trindade3

1.Doutoranda do PPG em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido Universidade Federal do Pará,


elysangelapinheiro@gmail.com, 2.Pós-Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido Universidade Federal do Pará,
shaji@outlook.com, 3. Professora Doutora da Universidade Federal do Pará, orianaalmeida@yahoo.com

Resumo
A célere destruição do ecossistema manguezal no mundo impõe a urgência na efetividade de normas ambientais. O presente
estudo apresenta um cotejo entre normas ambientais e alguns aspectos práticos da interação entre instituições e atores sociais
em Reservas Extrativistas Marinhas - REMs - no Pará. O método da pesquisa foi o estudo de caso múltiplo com análise inter-
disciplinar qualitativa. Para o estudo, foram realizadas visitas exploratórias, entrevistas semiestruturadas e grupos focais. Os
resultados obtidos revelam que a criação e a implementação de REMs têm sido percebidas como medida eficaz na direção da
conservação dos manguezais por 87% das lideranças entrevistadas nas REM de Curuçá e São Caetano de Odivelas, em que
pese diversas dificuldades estruturais para efetivação das normas ambientais nas duas REMs.

Palavras-chave: Ecossistema Manguezal, Áreas Protegidas, Legislação Ambiental.

Introdução
Em 2014, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA - divulgou relatório alertando que o ritmo ace-
lerado de destruição de manguezais no mundo impacta negativamente milhões de vidas e gera prejuízos de bilhões de dólares
(UNEP, 2014).
Estima-se que os serviços ecossistêmicos dos manguezais valham cerca de 33 a 57 mil dólares anuais por hectare para
as economias nacionais dos países em desenvolvimento e as ações para a conservação devem incluir o desenvolvimento de um
quadro jurídico e institucional necessárias para garantir que o desenvolvimento e gestão de planos para as zonas costeiras sejam
integrados com objetivos ambientais, incluindo sociais, feitos com a participação das pessoas afetadas (UNEP, 2014, p. 12).
Um quinto dos manguezais do mundo foi destruído de 1980 até 2012 (LAVIEREN et al., 2012, p. 12). A destruição do ecos-
sistema manguezal é de três a cinco vezes mais rápida que em outras florestas. Especialmente os países com maiores áreas de
manguezais precisam agir para diminuir a retração dessas áreas (UNEP, 2014).
Spalding, Blasco & Field (1997) afirmam ser o Brasil o segundo país em extensão de áreas de manguezal (13.400 km²) e
Souza Filho (2005) identifica cinco setores geomorfológicos em uma superfície total de 7.591 Km2 de manguezais da Amazônia,
que representa a maior faixa de manguezais contínuos do planeta e corresponde a 56,6% dos manguezais do Brasil. Essa faixa,
nominada Costa de Manguezais de Macro Maré da Amazônia – CMMA, é formada pelos manguezais da costa nordeste do Pará
e noroeste do Maranhão.
O Brasil comprometeu-se a aprimorar a proteção da biodiversidade marinha em pelo menos 9.300 Km² das áreas marinhas
e costeiras e a priorizar a conservação para ecossistemas costeiros e marinhos, durante o Congresso Mundial de Parques do
Mundo, ocorrido nos dias 12 a 19 de novembro de 2014, em Sydney-Austrália (IUCN, 2014).
Este trabalho objetiva identificar quais instituições e atores sociais multiplicam esforços para dar efetividade às normas
jurídicas voltadas à proteção do ecossistema manguezal a partir da busca por oportunidades sociais para as comunidades tradi-
cionais nas Reservas Extrativistas Marinhas – REMs - Mãe Grande de Curuçá, em Curuçá/PA e Mocapajuba, em São Caetano
de Odivelas/PA, à luz das percepções das lideranças dessas comunidades.
O resultado do estudo estabelece uma conexão entre as normas ambientais - enquanto medidas adotadas nos planos
internacional, nacional e local para a conservação do ecossistema manguezal e as relações construídas entre atores sociais e

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


35
instituições dentro de seus específicos processos sociais, referindo alguns efeitos dessas relações para a avaliação das metas
de conservação desenhadas para as reservas extrativistas marinhas paraenses acima especificadas, a partir da comparação das
diferentes fases de cada uma dessas REMs.

Materiais e Métodos
O campo identificado neste estudo é o socioambiental e a metodologia utilizada é interdisciplinar qualitativa. O recorte
temporal foi estabelecido entre os anos de 2002, ano de criação da REM de Curuçá, a março de 2015, última visita aos Municípios
de Curuçá e São Caetano de Odivelas para entrevistar lideranças. O recorte espacial cingiu-se às REM Mãe Grande de Curuçá
e Mocapajuba, respectivamente criadas nos municípios de Curuçá (BRASIL, 2002b) e São Caetano de Odivelas (BRASIL, 2014),
que foram utilizadas como amostragem.
Os referenciais teóricos das ciências sociais aplicadas (POLANYI, 1980; ALLEGRETTI, 1990; SEN, 2000; SANTILLI,
2005; BENATTI, 2009; FERREIRA, 2012; MILARÉ, 2013) constituíram o suporte para a resolução do problema proposto: como
estão articuladas as instituições e atores sociais para conservação de manguezais e implementação das normas ambientais em
reservas extrativistas? A seleção da literatura disponível sobre o tema da pesquisa foi realizada em bibliotecas públicas, páginas
eletrônicas, organizações governamentais e não governamentais.
A pesquisa tratou de estudos de casos múltiplos, mediante pesquisa bibliográfica, documental, trabalho de campo, ob-
servação (direta e participante) e 76 entrevistas com lideranças (direcionadas e perceptivas).
Quanto à pesquisa de campo, foram realizadas visitas exploratórias em Curuçá/PA e São Caetano de Odivelas/PA para
identificar as lideranças e melhor conhecer as áreas pesquisadas do ponto de vista da temática do trabalho. As principais lideran-
ças identificadas pelos comunitários nos dois municípios participaram das entrevistas semiestruturadas, assim como servidores
públicos de entidades estatais com atribuições relacionadas ao estudo.

Resultado e Discussão

Normas Jurídicas para Conservação de Manguezais e atuação do Estado,


Comunidades Tradicionais e Instituições Ambientalistas no plano internacional e nacional.
No plano internacional, a Convenção Ramsar1 é considerada o mais antigo dos acordos ambientais intergovernamentais
globais modernos e originou-se da ação articulada de países e organizações não governamentais que, nos anos 1960, perce-
beram que a degradação das zonas úmidas diminuía a quantidade de seus recursos comuns, o que também afetava a vida das
aves migratórias.
Atualmente, 168 países são signatários dessa convenção que estabelece às partes acordantes o dever de adotar ações de
abrangência nacional e de cooperação internacional para conservação de zonas úmidas, tendo em vista o valor social, cultural,
científico, econômico e recreativo dessas áreas (RAMSAR, 2014). O Brasil é signatário da Convenção Ramsar desde 1993. E, a
partir do Decreto 1.905, de 16 de maio de 1996, a convenção entrou em vigor no Brasil, concretizou-se assim um passo adiante no
sentido de cumprir o dever constitucional, contido no artigo 225, de prover o manejo ecológico dos ecossistemas.
A lista dos Sítios Ramsar é constituída por áreas úmidas de importância internacional, habitats de aves aquáticas mi-
gratórias. A indicação dos Sítios Ramsar é feita pelos países signatários da convenção (RAMSAR, 2014).
No Brasil, todos os Sítios Ramsar estão em unidades de conservação (BRASIL. MMA, 2013). As unidades de conservação
são espécies do gênero espaços territoriais especialmente protegidos - ETEPS, estes últimos também compreendem as áreas
de preservação ambiental, reservas legais e reservas da biosfera (FERREIRA, 2012; MILARÉ, 2013).
Em novembro de 2014, a faixa protegida de manguezais brasileiros tornou-se a maior do mundo. Três novas reser-
vas extrativistas marinhas foram criadas no Estado do Pará: Cuinarana, Mestre Lucindo e Mocapajuba, além da ampliação da
Reserva Marinha de Araí-Peroba (ICMBIO, 2015). Apesar disso, nenhum Sítio Ramsar ainda foi indicado pelo país em área de
reserva extrativista, o que poderia significar mais investimentos financeiros e humanos para o alcance das metas de conserva-

1
A Convenção Ramsar foi adotada na cidade Iraniana de Ramsar, em 1971 e entrou em vigor internacional em 1975. Essa convenção objetiva a proteção internacional
das zonas úmidas e aves migratórias. Para mais informações, vide The Ramsar Convention and its mission, disponível em: http://www.ramsar.org/about/the-ramsar-
convention-and-its-mission.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
36
ção em estudo, uma vez que a Reserva Extrativista - RESEX é uma unidade de conservação de uso sustentável criada para ser

utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e,


complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e
tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar
o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2000).

A origem da criação das Reservas Extrativistas - RESEX dá-se a partir da reivindicação dos trabalhadores rurais BENA-
TTI (2009, p. 548). Para Allegretti (1990), a reserva extrativista representou uma ruptura com a visão colonial de desenvolvimento
regional implementada na Amazônia. O projeto colonizador impunha que as pessoas fossem deslocadas para um local desco-
nhecido por elas, enquanto o conceito de reserva extrativista reflete um diálogo permanente entre as comunidades tradicionais
e os cientistas que buscam habilidade técnica para transformar as necessidades apresentadas por essas comunidades em re-
alidade. Esse diálogo teceu o socioambientalismo - movimento fundado na perspectiva de que as políticas públicas ambientais
sejam elaboradas e executadas de maneira a incluir e envolver as comunidades locais, as quais detêm conhecimentos e práticas
de manejo ambiental (SANTILLI, 2005).
O socioambientalismo norteou a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, normatizado pela
Lei nº 9.985/2000 e pelo Decreto 4340/2002, cujos propósitos foram ampliados pelo Plano Estratégico Nacional de Áreas Pro-
tegidas – PNAP, instituído pelo Decreto nº 5.758/2006. Todas essas normas ambientais resultaram da correlação de forças de
diversos atores sociais e instituições (Estado, comunidades tradicionais, associações comunitárias, organizações não governa-
mentais, universidades) que construíram esses instrumentos jurídicos nacionais, dando cumprimento aos termos da Convenção
sobre Diversidade Biológica (BRASIL, 1998) ao enfatizar o dever do Estado de desenvolver estratégias, planos e programas para
conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, valorizar as comunidades tradicionais e seus saberes, estimular
a interação entre estas e a comunidade científica para a disseminação de pesquisas capazes de identificar formas de uso sus-
tentável dos recursos naturais.
As RESEXs são classificadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC como espécies
de Unidades de Conservação - UC de Uso Sustentável. O seu escopo é combinar conservação ambiental e exploração econômi-
ca, mediante o gerenciamento conjunto do Governo e Comunidades quanto ao uso dos recursos naturais.
O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais - PNPCT, definiu como povos e comunidades tradicionais:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas própri-
as de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-
ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).

A interação entre instituições estatais, notadamente o Ministério do Meio Ambiente e/ou instituições educacionais, comu-
nidades tradicionais e organizações não governamentais veiculou a efetividade das normas ambientais do SNUC e do PNAP ao
formular a Recomendação da Comissão Técnica sobre Manguezais – CNZU, a partir da reivindicação dos pescadores artesa-
nais presentes em diversas Conferências de Pesca e de Meio Ambiente que a antecederam (BRASIL. MMA, 2011).
De acordo com essa recomendação, mais de 500 mil pescadores no Brasil dependem direta ou indiretamente do ecos-
sistema manguezal para suprir suas necessidades de alimentação, emprego e renda. Por isso, esse documento ressaltou a
necessidade de manter os manguezais em toda a sua extensão enquanto área de preservação permanente no Código Florestal
de 2012, tendo em vista, dentre outras considerações, a necessidade de dar efetividade ao artigo 225, § 4º, da Constituição da
República, no que tange à proteção dos Patrimônios Nacionais ali elencados proibindo a supressão de vegetação em áreas de
preservação permanente - APPs, quando houver presença de espécies ameaçadas de extinção e quando protegerem o entorno
de unidades de conservação.
É sabido que, apenas por pressão de ambientalistas e ao custo de insatisfações de grupos representativos dos setores
agropecuários, o Código Florestal, em seu artigo 4º, inciso VII, inseriu o ecossistema manguezal no rol das APPs.

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


37
Normas Jurídicas para Conservação de Manguezais e Oportunidades Sociais para as
Comunidades Tradicionais das Reserva Extrativistas Marinhas Paraenses.
Sen (2000, p. 18) define as oportunidades sociais a partir da inclusão de serviços de educação e saúde, que viabilizam
a participação econômica. As facilidades econômicas são concretizadas em oportunidades de participação no comércio e na
produção, podendo auxiliar a abundância individual, bem como recursos públicos para os serviços sociais.
Nos municípios costeiros paraenses de Maracanã, Augusto Correa, Tracuateua, Viseu, Santarém Novo, Curuçá, Marapa-
nim, São João da Ponta, São Caetano de Odivelas, Soure, Bragança e Magalhães Barata foram criadas 12 REMs.
O Anexo “B” do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (BRASIL, 1988) identifica Curuçá e São Caetano de Odivelas
na relação dos municípios paraenses abrangidos pela faixa terrestre da zona costeira2.
A REM Mãe Grande de Curuçá prevê, em seu decreto de criação, o objetivo geral contido no SNUC. Já a REM Moca-
pajuba inseriu como uma de suas finalidades a conservação do ecossistema manguezal (BRASIL, 2002b, 2014), o que indica a
maturação das reflexões e ações de instituições e atores sociais quanto à conservação dos manguezais. Segundo entrevistas e
grupos focais, instituições e atores sociais, inseridos no Projeto Manguezais do Brasil, articularam para que essa previsão fosse
destacada, vinculando a criação de Mocapajuba às demandas normativas exigidas no plano internacional e nacional, conforme
já delineado.
As REM são geridas pelo respectivo conselho deliberativo3, que aprova o plano de manejo para essas unidades. Esse
plano é constituído por resolução do conselho deliberativo da reserva, após a aprovação do órgão executor (BRASIL, 2002a), que
no caso é o ICMBIO, porque tais unidades de conservação são federais.
Apesar da criação de REMs ser significativa para a efetivação das normas ambientais de proteção dos manguezais, das
12 REMs criadas no Pará, apenas uma delas tem Plano de Manejo: a REM Caeté-Taperaçú, criada em 2005, no município de Bra-
gança/PA, que possui um campus da Universidade Federal do Pará - UFPA, o que sugere maior proximidade entre comunidades
e pesquisadores a ensejar maior agilidade para articular a produção do plano de manejo4.
A REM de Curuçá, criada desde 2002, continua sem dispor desse importante instrumento de gestão, situação bastante
pontuada pelos entrevistados. Questionado sobre o fato, o ICMBIO informou, por meio de nota técnica, que a limitação para a
execução do plano de manejo em Mãe Grande é a não disponibilidade de recursos para a contratação dos experts para elaborá-
lo, embora já exista termo de referência aprovado com essa finalidade.
A elaboração do plano de manejo deve ser realizada com atenção aos objetivos da Unidade de Conservação e ao Con-
trato de Concessão de Direito Real de Uso – CDRU. A previsão de manejo de manguezais deve ser pontuada nesse plano, con-
siderando as razões de criação dessas unidades.
A Concessão de Direito Real de Uso é o instituto jurídico concedido pelo Poder Público autorizando o uso coletivo da área
da RESEX pelas populações tradicionais. O contrato para essa concessão (CDRU) deve ser realizado de acordo com o plano de
manejo (BRASIL, 2002a). Na REM Mãe Grande de Curuçá/PA, esse contrato foi firmado e a concessão foi entregue pela Secre-
taria do Patrimônio da União – SPU à Associação dos Usuários da REM Mãe Grande de Curuçá – AUREMAG sem a existência do
plano de manejo. Os usuários da REM Mocapajuba de São Caetano de Odivelas/PA, criada em 2014, ainda não dispõem desse
contrato, mas segundo informações de 30% das lideranças entrevistadas nesse município já existem articulações em andamento
objetivando a formulação desse documento para aquela associação recém-criada.
De qualquer forma, as reivindicações de pescadores artesanais e demais integrantes das comunidades tradicionais nos
dois municípios paraenses viabilizaram a criação das REMs, porque a criação dessas unidades de conservação aconteceu após
a realização de consultas públicas, precedidas da realização de estudos técnicos para avaliar a viabilidade da criação dessas
unidades, conforme determinação do SNUC (BRASIL, 2000).
Em Curuçá, 70% das lideranças entrevistadas afirmaram que participaram de cursos voltados ao empreendedorismo

2
A Zona Costeira Paraense é constituída pelos seguintes municípios: Bragança, Afuá, Chaves, Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Barcarena, Belém, Ananindeua,
Santo Antônio do Tauá, Colares, Benevides, Vigia, Marapanim, Magalhães Barata, Maracanã, Salinópolis, São José de Pirabas, Primavera, Augusto Correa, Vizeu,
Santa Bárbara do Pará, Quatipuru, São Caetano de Odivelas e Curuçá (BRASIL, 1988b). Portanto, dos 144 municípios paraenses, 25 situam-se na faixa terrestre da
zona costeira (IBGE, 2014).
3
O Conselho Deliberativo é “presidido pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da socie-
dade civil e das populações tradicionais residentes na área” (BRASIL, 2000).
4
Informação prestada por representante do ICMBIO durante reunião com grupo focal em 13 de dezembro de 2014.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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local (artesanatos, ostreicultura, meliponicultura, conservação do pescado, técnicas de catação do caranguejo) ou a educação
ambiental. Esses cursos promoveram mudanças nos hábitos inclusive pela população urbana desse município, onde é notável a
maior preocupação com a limpeza do espaço público, como praças e ruas, do que em São Caetano de Odivelas, que até meados
de 2014 não tinha REM em seu território.
A observação no campo, interação e grupos focais e entrevistas nos dois municípios apontam que instituições de fo-
mento, comando e controle, pesquisadores, pescadores, catadores de caranguejo, associações comunitárias no conselho gestor
da REM de Curuçá, entre outras, foram determinante para incentivar e implementar ações de educação, empreendedorismo e
mesmo maior controle sob as atividades prejudiciais ao meio ambiente no aludido município, conforme foi possível aferir das 17
atas do Conselho Gestor da REM Mãe Grande, referentes a reuniões realizadas no período de 2002 a 2012.
As lideranças de São Caetano de Odivelas, ao perceberem as mudanças no sentido de mais oportunidades sociais em
Curuçá, empenharam-se para acelerar a tramitação do processo de criação da REM em São Caetano.
Os avanços na implementação de relevantes instrumentos jurídicos previstos no Sistema de Unidades de Conservação
para significativas mudanças em favor da conservação dos manguezais e geradoras de oportunidades sociais para as comuni-
dades vêm sendo operadas na REM Mãe Grande de Curuçá, criada há mais de dez anos e já consolidada. O reconhecimento
dessas mudanças foi apontado com frequência nos grupos focais e por uma média de 87% dos entrevistados nos dois municípios.
Curuçá e São Caetano de Odivelas são municípios paraenses costeiros, onde a população rural é superior à urbana5.
Nos dois municípios o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH está abaixo da média nacional (0,727 em 2010). São Caetano
de Odivelas ocupa a 4515ª posição em relação aos 5.565 municípios brasileiros e a 70ª posição em relação aos 143 municípios
do Pará com 0,585 em 2010. Curuçá ocupa a 4.590ª posição em relação ao Brasil e 73ª posição em relação ao Pará, com 0,582
em 2010 (PNUD, 2013).
Segundo dados fornecidos pelo PNUD (2013), o índice de Gini é um instrumento usado para medir o grau de concen-
tração de renda num determinado território. Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos.
Numericamente, varia de 0 a 1. O zero representa a situação de total igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda, e o valor 1
significa completa desigualdade de renda. Em Curuçá, onde a REM foi criada em 2002, o Índice de Gini passou de 0,55 em 1991
para 0,72 em 2000 e para 0,56 em 2010. Enquanto em São Caetano de Odivelas, esse índice passou de 0,41 em 1991 para 0,46
em 2000 e para 0,48 em 2010 (Figura 1), ou seja, a desigualdade social em São Caetano de Odivelas continuou aumentando,
enquanto houve diminuição em Curuçá, onde a REM havia sido criada há mais tempo.

Figura 1. Índice de Gini em São Caetano de Odivelas (PA) e Curuçá (PA). Fonte: PNUD (2013)

Tais dados, isoladamente, não constituem indicativo, mas agrega informação à análise se avaliados em conjunto com
outros fatores como inserção das comunidades em programas sociais, políticas de incentivo ao empreendedorismo, entre outros.
O ICMBIO, em informações prestadas durante a pesquisa documental, certificou que em Curuçá são implementadas as
seguintes políticas: o Plano Nacional de Habitação Rural, Bolsa Verde do Plano Brasil sem Miséria; Assistência Técnica e Exten-
são Rural e Pesqueira para as Populações Tradicionais - ATER e Projeto Manguezais do Brasil.

5
Curuçá possui área de 672,675 Km² e uma população estimada em 36.557 pessoas. São Caetano de Odivelas possui área de 743,466 Km² e uma população estimada
de 17.266 pessoas (IBGE, 2014).

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


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A Divisão de Suporte Operacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA sustentou, em resposta à
questionamento elaborado por escrito durante a pesquisa, que em Curuçá 2000 pessoas receberam imóveis construídos pelo
INCRA com a implementação de projeto de reforma agrária. Não existem registros de beneficiários desse projeto em São Caeta-
no de Odivelas.
É possível que esses projetos nem sejam integralmente implementados e que as comunidades costeiras tradicionais não
sejam amplamente beneficiadas por eles. Sem embargo, certo é que São Caetano de Odivelas, área adjacente ao Município
de Curuçá, ainda está excluída dessas políticas públicas. Portanto, em tese, as comunidades em São Caetano de Odivelas têm
ainda maior redução de suas oportunidades sociais e econômicas em relação à Curuçá. Tal circunstância é percebida pela
maioria dos entrevistados, tanto nas comunidades tradicionais, quanto nas instituições públicas que atuam nas REMs estudadas.
Segundo informações da Controladoria Geral da União - CGU, das 36.557 pessoas residentes em Curuçá apenas 845
pessoas recebem o bolsa verde na RESEX Mãe Grande de Curuçá, onde 6.524 pessoas recebem o bolsa família (BRASIL. CGU,
2014). Portanto, apenas uma parcela dos moradores daquela reserva recebe o bolsa verde.
O bolsa verde foi instituído pela Lei nº 12.512, de 4 de outubro de 2011 e regulamentado pelo Decreto nº 7572, de 28 de
setembro de 2011. Os objetivos da implementação desse subsídio consistem em (1) incentivar a conservação dos ecossistemas
(manutenção e uso sustentável); (2) promover a cidadania e melhoria das condições de vida; (3) elevar a renda da população
em situação de extrema pobreza que exerça atividades de conservação dos recursos naturais no meio rural; e (4) incentivar a
participação dos beneficiários em ações de capacitação ambiental, social, técnica e profissional. Trata-se de um benefício decor-
rente do Programa Brasil Sem Miséria, destinado às famílias em situação de extrema pobreza (renda de até R$ 70,00 por pessoa)
e que vivam em áreas prioritárias para conservação ambiental. O bolsa verde é concedido a cada trimestre, no valor de R$ 300.
Ninguém em São Caetano de Odivelas recebe esse benefício, cujo valor é flagrantemente irrisório, mas expressivo em relação à
baixa renda da população nos dois municípios.
Com relação ao bolsa família, dados fornecidos pela Controladoria Geral da União durante a pesquisa documental indi-
cam que das 36.557 pessoas residentes em Curuçá, 6.524 pessoas recebem o bolsa família. Em São Caetano de Odivelas, das
17.266 pessoas que ali residem, 3.126 recebem esse benefício. Em ambos os municípios o percentual de pessoas atendidas pelo
bolsa família é de 18%, mas dos 18% que recebem esse benefício em Curuçá, 13% recebem também o bolsa verde, isto é, 845
pessoas. Logo, em Curuçá os beneficiados pelo bolsa família estão também alcançados pelo bolsa verde.
Em São Caetano de Odivelas e Curuçá, em média 54% da renda das comunidades tradicionais da Vila de São Miguel, na
REM Mocapajuba; e na Vila Mutucal, em Mãe Grande de Curuçá provém da captura do caranguejo uçá e da pesca de variadas
espécies de peixes6. Nessas áreas as atividades de pesca incluem pesca com uso de curral, pesca com rede, captura de ca-
ranguejo, camarão e outros mariscos. À atividade pesqueira associa-se a agricultura familiar, que inclui plantação de mandioca,
macaxeira, café e algumas hortaliças. A maioria dos homens trabalha nas atividades de pesca e captura dos caranguejos. As
mulheres cuidam de atividades domésticas e também lavoram na agricultura familiar7. Elas também pescam, principalmente
mariscos.
A educação formal de ensino médio é disponibilizada nas respectivas sedes dos Municípios de São Caetano de Odivelas
e Curuçá e, ainda assim, funciona com escassez de recursos humanos e materiais.
Nas comunidades mais distantes das sedes, os jovens carecem de infraestrutura de transporte para se locomoverem
para a cidade. O transporte por barcos de madeira, movidos a motor, feito pelos rios, é demorado. O valor cobrado pelas viagens
nesses barcos, em média R$ 2,00, ao longo dos dias úteis, revela-se como despesa que atinge duramente o orçamento doméstico
das pessoas de baixa renda que necessitam desse transporte.
Migrar para as cidades sede ou mesmo para Belém em busca de oportunidades sociais apresenta-se como uma das
poucas opções, mas nesses lugares os custos de moradia e alimentação são altos, circunstância que muitas vezes inviabilizam
o prosseguimento dos estudos para os jovens daquelas comunidades. Por isso, apenas 21% dos entrevistados em Curuçá e 23%
em São Caetano de Odivelas chegaram ao ensino médio.
A concessão de oportunidades sociais é decisiva no momento em que há colisão das normas de proteção ambiental com
os interesses envolvidos nessas demandas. Por isso, os grupos focais, os entrevistados e as observações em campo apontam

A Pescada amarela, dourada, tainha, corvina, peixe-pedra, camurin (robalo), bagre, gurijuba, xaréu, arraia, piramutaba, piaba, pratiqueira, dentre outros.
6

A agricultura familiar é complementada com a criação de galinhas e a comercialização de polpas de frutas: taperebá, tucumam, bacuri, muruci e cupuaçu.
7

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
40
que estradas, hotéis, postos de combustível, mercados, marinas, viveiros para carcinicultura e praias artificiais são continu-
amente construídas nas REMs sem atenção às áreas de manguezais em São Caetano de Odivelas e Curuçá.
O ponto nodal é avaliar as capacidades institucionais de forma associada às demandas do mercado, como tipologia fun-
damental a reger as relações do homem com o meio ambiente. Nesse passo, é mister destacar as lições de Polanyi (1980) para
quem a força das instituições, para a mudança de paradigmas sociais, depende do entretecimento de questões multivariadas,
exigindo a interrelação de conhecimentos nas áreas da economia, ciências sociais e a análise institucional, em especial, tendo
em consideração o mercado como tipologia fundamental da lógica que rege as relações humanas desde o advento da Revolução
Industrial.
Ainda há carência de regras claramente definidas para a utilização do ecossistema manguezal, num espaço em que a
demanda pelos seus recursos naturais só aumenta. Exemplo disso é a ausência de regulamentação do Plano Nacional de Ge-
renciamento Costeiro (BRASIL, 1988), como parte integrante da Política Nacional para os Recursos do Mar e da Política Nacional
do Meio Ambiente, que quantifica o valor da reparação pelos danos causados pela degradação dos ecossistemas, do patrimônio
e dos recursos naturais da Zona Costeira.

Conclusão
A implementação dos instrumentos jurídicos disponíveis para conservação dos manguezais em todas as escalas de-
pende da articulação entre os diversos atores sociais e instituições envolvidos em programas e ações para conservação dos
manguezais. A articulação entre instituições estatais, organizações não governamentais e comunidades tradicionais já produziu
avanços significativos no sentido de mitigar as demandas pelos recursos naturais oriundo de manguezais ou outras demandas de
mercado que pressionam para a destruição de áreas desse ecossistema. A implementação de ações de programas, a exemplo
do Programa Manguezais do Brasil, tem produzido resultados reconhecidos pelas comunidades tradicionais estudadas na busca
de alternativas para melhoria da qualidade de vida dessas comunidades e na efetivação dos princípios do dever do Estado de
proteger o meio ambiente, da função socioambiental da propriedade, do desenvolvimento sustentável e da participação. O de-
safio é compatibilizar os diversos interesses em pauta relacionados aos dilemas da conservação.
As normas de proteção ao manguezal e de gerenciamento das reservas extrativistas ainda apresentam baixa efetividade.
Contribuem para esse diagnóstico, a infraestrutura deficiente nos municípios estudados, a baixa escolaridade das comunidades
e a fragilidade das instituições e atores sociais afinados com propósitos de conservação dos manguezais, ainda muito dependen-
tes de investimentos financeiros e humanos. A despeito desse fato, os resultados quanto ao IDHM e o índice de Gine em Curuçá
são indicativos importantes de que a criação da REM Mãe Grande de Curuçá significou a introdução de mais oportunidades
sociais para os usuários da reserva e, em São Caetano de Odivelas a criação da REM Mocapajuba já importa em novas perspec-
tivas no mesmo sentido para os seus usuários, os quais já perceberam os avanços e benefícios para os usuários da RESEX em
Mãe Grande. Os incentivos governamentais para suprir as necessidades de mais educação, renda e oportunidades para essas
comunidades dão suporte importante para essa perspectiva. Tanto é assim que, nos anos de 2013-2014, 87% das lideranças en-
trevistadas na REM de Curuçá/PA reconheciam benefícios para o município com a criação dessa Unidade de Conservação. Em
março de 2015, lideranças comunitárias na REM em São Caetano de Odivelas estavam otimistas com a recém criação de REM
nesse município.
A divulgação da importância do ecossistema manguezal e a educação para sua proteção nos meios integrantes de toda
a teia de relações que envolve a utilização dos recursos naturais é imprescindível.

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01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


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01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


43
CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E TEMPORALIDADES NO ESTUDO DE
CASO DO ACAMPAMENTO SEBASTIÃO LAN II

Ribeiro, Ana Maria Motta1; São Clemente, Bernardo Raphael Bastos2; Freitas, Emmanuel Oguri3; Lobato da Costa,
Rodolfo Bezerra de Menezes4 & Azevedo, Thaís Maria Lutterback Saporetti5

1.Professora do PPG em Sociologia e Direito e Coordenadora do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF); Universidade Federal
Fluminense, anamribeiro@outlook.com; 2. Doutorando do PPGSD e pesquisador do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
bernardosaoclemente@yahoo.com.br; 3. Doutorando do PPGSD e pesquisador do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
emmanuel.of@gmail.com; 4.Doutorando do PPGSD e pesquisador do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
rodolfolobato@hotmail.com; 5. Doutoranda do PPGSD e pesquisadora do OBFF, Universidade Federal Fluminense,
thaislutterback@gmail.com;

Resumo
Este artigo pretende apresentar uma releitura sobre o histórico de ocupação da terra que deu origem à comunidade rural Sebas-
tião Lan, no município de Silva Jardim, interior do Estado do Rio de Janeiro. O assentamento localiza-se no entorno da Reserva Bi-
ológica (Rebio) de Poço das Antas, sendo impactados por restrições ambientais em decorrência da proximidade com a unidade
de conservação. No dia 11 de junho de 2015, foi comemorado o aniversário de 19 anos de ocupação. Por meio da observação
participante como metodologia, procura-se dar voz e enfatizar a morosidade e o “cansaço” dos trabalhadores rurais diante dos
impasses ambientais e agrários criados por órgãos federais em disputa (INCRA e IBAMA), processo acompanhado, desde 2002,
pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e que continua sem um encaminhamento definitivo quanto à situação das famílias
na área.

Palavras-chaves: Conflito Socioambiental Rural, Regularização Fundiária, Projeto de Desenvolvimento Sustentável

Apresentação
Pretende-se com este artigo apresentar uma releitura sobre o histórico de ocupação da terra que deu origem à comu-
nidade rural de Sebastião Lan, no município de Silva Jardim, interior do Estado do Rio de Janeiro. No dia 11 de junho de 2015,
foi completado o aniversário de 19 anos de ocupação. Além da releitura do processo territorial, apresentamos o novo cenário,
levando em conta a permanência do conflito que levou pela primeira vez os pesquisadores da Universidade Federal Fluminense
(UFF) a campo, em 2002. A morosidade da justiça, aliada aos impasses ambientais e agrários dos órgãos federais em disputa
(INCRA e IBAMA) apresentam-se como a principal queixa dos trabalhadores rurais.

Histórico da Região
A implantação da Reserva Biológica (Rebio) de Poço das Antas, em 1974, envolveu questões importantes e problemáticas
presentes no Brasil relativos à concentração de terras, modos de exploração do solo, dos recursos hídricos (minerais) e energé-
ticos (biomassa). Somados aos impasses provocados pela implantação da Rebio, ocorreu a construção de uma barragem que
redefiniu os limites da Lagoa de Jurtunaíba, local que, com o passar do tempo, tornou-se de grande interesse da especulação
imobiliária, por fornecer abastecimento de água para a ascendente “Região dos Lagos”, dando suporte para o início do desen-
volvimento da atividade turística nesta região1.
Simultaneamente, assiste-se a um processo planejado e flagrante no sentido de caracterizar a suposta decadência agrí-
cola - intencionalmente provocada em nome de um conceito de modernização, relacionada ao desenvolvimento urbano, como
característica a ser forjada enquanto imagem do Estado do Rio de Janeiro - vinculada a uma pretensa falta de vocação rural.
Assim, se seguem a morte da fruticultura fluminense de laranja, a devastação da Mata Atlântica, a decadência dos grandesci-
clos de cana e café que representavam alicerces econômicos do Estado e que passam a ser substituídos pelo capital espe-

1
Encontramos indícios da participação da empresa Camargo Correa e outras empreiteiras consorciadas do movimento urbanizador: a Barragem de Juturnaíba, a
privatização da estrada para a região dos Lagos e a privatização do fornecimento água para atender o aumento demográfico da Região dos Lagos.

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


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culativo imobiliário. A mudança da correlação de forças entre o campo e a cidade é o traço fundamental no desenvolvimento
econômico da região2.
Um falso conceito de suposta “vocação turística” do Estado do Rio de Janeiro (ERJ) passou a abafar ideologicamente os
projetos federais com base nos modelos da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), visando uma soberania e o
barateamento da oferta alimentar pela transformação da Baixada Fluminense no Cinturão Verde da Guanabara. A mercantiliza-
ção não-agrícola do território e dos recursos naturais (paisagem, madeira, terra e a fauna), valorizados no início do século XX,
também podem ser citados como mais uma das prováveis causas para a concentração de grandes propriedades na medida
em que empresas ou grandes investidores passaram a comprar terras que tinham reservas de mata. Em uma primeira fase
econômica na região, destaca-se a extração vegetal, que de acordo com Geiger, ocorria da seguinte forma: “A exploração de
mata visa principalmente a produção de energia com lenha e carvão”, sobretudo para a companhia siderúrgica Nacional (GEI-
GER; MESQUITA,1956).
Já a partir da segunda metade do século XX, podemos observar o desenvolvimento da atividade turística na região ser-
rana e da substituição de atividades agrícolas pela pecuária extensiva no noroeste do Estado, à exceção da monocultura da cana
no Norte do Estado que se mantinha pela influência política dos usineiros, apesar de uma baixa produtividade (diferentemente
de São Paulo) e altamente necessitada de subsídios do Estado para sua reprodução.
Neste quadro, destaca-se a importância do Estado mais centralizado, entre os anos 30 e 50, em termos da organização
territorial, seja através da “guerra fiscal” ou mesmo por decreto federal, como, por exemplo, o que objetivava a criação de uma
“Zona prioritária de emergência para fins de reforma agrária”, promulgado em 15/10/1965 para a região fisiográfica definida pelo
IBGE como Baixada. O objetivo inicial desse decreto era permitir a implantação de colônias agrícolas, porém, rapidamente os
interesses dos especuladores se sobrepuseram, e uma série de processos de grilagem de terra (apoiados no modelo de Estado
autoritário da ditadura militar a partir dos anos 60) criaram obstáculos. O desdobramento destes processos se caracteriza em
uma intensa onda de conflitos, expulsão de camponeses e pelo gradativo avanço da urbanização sobre áreas agrícolas, que
convencionamos chamar na pesquisa de processos de “desagriculturação”3 .
Atualmente, o entorno da Rebio possui 3 assentamentos e 1 acampamento. O primeiro foi o de Aldeia Velha, oficializado
em 1991, desapropriados da própria reserva. O assentamento de Cambucaes surgiu em1995, nomeado com o nome da fazenda
ocupada. E o de Sebastião Lan (gleba I) em junho de 1997, em terras que se mostraram inundáveis e inapropriadas para habita-
ção posteriormente.
O resquício de mata atlântica que faz parte da Rebio, e também se encontra nas Reservas Particulares de Proteção Natu-
ral – RPPNs - no seu entorno, demonstra um favorecimento de estratégias conservacionistas para áreas poucos transformadas
pela ação humana e não urbanizadas. Tornam-se, portanto, áreas prioritárias para proteção integral de um “bioma natural”, ge-
rando, além do conflito entre urbanização e áreas agrícolas, o conflito entre unidades de conservação e população residente no
local e em seu entorno, ambos os casos encontrados na região da Rebio Poço das Antas.
Outras ações governamentais nos anos 70 refletem mudanças que têm efeito até hoje, entre elas a construção de canais
de escoamento e drenagem da agua vinda do rio São João para o favorecimento da implantação de projetos agropecuários que
associavam monoculturas de arroz, cana e gado. O represamento da lagoa, a drenagem do solo, a construção de canais, os
projetos agropecuários dependentes de insumos químicos e agrotóxicos, a retirada de árvores, a pastagem e a utilização do fogo
para limpar o terreno resultaram no empobrecimento do solo, modificação da rede hídrica e significativa alteração da ecologia
local e da biodiversidade como um todo (PEREIRA, 2006).

2
Destaca-se do ponto de vista institucional a unificação dos Estados da Guanabara (centro de urbanização) que tem hegemonia nesse acordo, com o Estado do Rio
de Janeiro (eminentemente rural) em 15 de março de 1975, acaba por uniformizar desejos especulativos na região.
3
Verbete “Desagriculturalização”, Dicionário da Terra, páginas 158-161 (MOTTA, 2005).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
46
Figura 1. Mapa de Uso e Ocupação do Solo produzido pelo INCRA na área do assentamento Sebastião Lan II, com destaques
em azul para os canais construídos onde originalmente era um pântano. (INCRA, 2014, Portaria Incra SR 07).

A área onde se encontra o acampamento, chamada de Brejão, após a canalização na década de 70 para plantação de
arroz, foi grilada por um fazendeiro, posteriormente arrendada para continuidade da rizicultura e, depois, recebendo tentativas
de cultivo de aipim, batata-doce e banana. A área de 1466 ha que foi ocupada em 1997, possui um solo que carrega uma história
que se origina com a derrubada da mata nativa, queimadas e produção com agrotóxicos, dentro do pacote da Revolução Verde
(maquinário e insumos químicos).
Hoje, a desobstrução de alguns destes canais não ocorre para favorecer a atividade agrícola, nem o abastecimento hu-
mano. Ela acontece, principalmente, após as enchentes de 2003, quando o volume de água da represa de Juturnaíba superou sua
capacidade e forçou a abertura das comportas, inundando boa parcela de onde se encontra o Sebastião Lan causando efeitos
catastróficos para quem ali residia.
Ao mesmo tempo em que o Estado do Rio de Janeiro é hoje um dos mais urbanizados da Federação, se mantém
abertos uma série de processos que atuam em diferentes sentidos, dentre os quais destacamos a resistência dos trabalhadores
em luta constante por reforma agrária, o desenvolvimento da pluriatividade enquanto estratégia de permanência no campo e o
surgimento de novas iniciativas relacionadas com a questão ambiental, o turismo, o processamento de alimentos, entre outras.
Destaca-se, ainda, uma óbvia participação da ocupação no processo de modificação do status de perigo de extinção do mico
leão dourado que passou a frequentar um território com lavoura branca (alimentos) dos trabalhadores, uma vez que era pres-
sionado pelos “vazios espaciais” ocasionados pela pecuária, forma majoritária de ocupação territorial até o aparecimento dos
agricultores familiares.
Podemos, teoricamente, visualizar os processos de “desagriculturalização”, “desruralização” e “rerruralização” no tempo
e no espaço. Geiger e Mesquita, autores de um texto clássico sobre a questão agrária no Estado do Rio de Janeiro (escrito há 50
anos), colocam dados interessantes para a compreensão das raízes históricas da relação rural-urbano (GEIGER; MESQUITA,
1956, p. 36-37). A suposta decadência agrícola do Estado do Rio de Janeiro, vinculada a uma pretensa falta de vocação, é criti-
cada pelos autores com o exemplo que diz por si mesmo: a fruticultura colocou a produção fluminense de laranja como a maior
do país. A mudança da correlação de forças entre o campo e a cidade é o traço fundamental no desenvolvimento econômico da
região.
Ao mesmo tempo que o Estado do Rio é hoje o mais urbanizado da federação se mantêm abertos uma série de processos
que atuam em diferentes sentidos, dentre os quais destacamos a resistência dos trabalhadores em luta constante por reforma

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


47
agrária, o desenvolvimento da pluriatividade enquanto estratégia de permanência no campo e o surgimento de novas iniciativas
relacionadas com a questão ambiental, com o turismo, com o processamento de alimentos, entre outras. É importante destacar
que este conjunto de processos estão redefinindo a ocupação territorial do Estado, e não alteram sua tendência geral de ur-
banização. O reflexo desta situação é bastante sintomático: evidencia-se o crescimento desordenado dos grandes centros com
índices cada vez maiores de desemprego e violência, e na própria balança comercial do Estado, que hoje é um importador de
gêneros alimentícios.
Parece pouco provável que o turismo e o grande latifúndio possam modificar sua tendência histórica de degradação am-
biental e aliarem-se a um processo de desenvolvimento sustentado e equilibrado ecologicamente. Por outro lado, deve merecer
atenção o processo de construção de novas iniciativas de produção agrícola que podem relacionar a rerruralização do Estado
do Rio com as demandas crescentes por trabalho e terra dos movimentos sociais.
Ao ampliar o campo das funções sociais da agricultura, o que inclui a pluriatividade e a multifuncionalidade como carac-
terísticas da reprodução simples do modelo familiar, deixando de ser mera produtora de bens agrícolas, destaca-se a capaci-
dade inerente de ampliar a conservação dos recursos naturais (água, solo), a partir de uma produção agroecológica estimulada
pelo Estado, a qual, livre de venenos, poderia reproduzir um patrimônio natural (paisagem), envolvendo o fornecimento de
alimentos de qualidade e o agroturismo.
Dado que existe entre parte dos acampados receptividade às práticas agroecológicas, o plantio de mudas e a fiscalização
no que consiste a caça, queimadas e qualidade da água do canal que os abastece, surge entre eles uma certa indignação com
os órgãos ambientais. Esses órgãos reconhecem apenas parcialmente os benefícios que a ocupação daquele território pode ter
trazido à reserva e a potencialidade de uma produção e vivência que chegue a um consenso entre os limites para reprodução da
reserva e as necessidades para sobrevivência digna dos produtores rurais ali residentes.

Argumentação
No ano de 2002, a UFF recebeu uma solicitação para formação de um Grupo de Pesquisa na tentativa de responder ao
processo encaminhado pelo Ministério Público Federal (acionado pelo IBAMA e pela Rebio de Poço das Antas) relativo a algu-
mas demandas referentes a uma Ação Civil Pública ajuizada contra o INCRA, face aos supostos danos causados por assenta-
mentos rurais no entorno da Rebio de Poço das Antas4. Considerando o processo de extinção do mico leão dourado, eminente na
época, foi criado o GT Ecossocial5, com a contribuição de especialistas de diversas áreas para superação dos conflitos socioam-
bientais consolidados em uma cooperação técnica entre o IBAMA e o INCRA, mediada pela Academia.
Realizou-se formalmente um Laudo “multidisciplinar” envolvendo as expertises nas áreas de Sociologia Rural, Direito
Agrário e Ambiental; Engenharia Agrícola, Biologia e Geografia Agrária (MADERIA FILHO et al., 2007). Foi produzida, entre
outras tarefas, a caracterização dos agricultores e das atividades rurais no entorno da Rebio, através de um Diagnóstico Rural
Participativo (DRP). Esse diagnóstico tinha como objetivo inicial mapear as atividades realizadas pelos trabalhadores antes da
ocupação da terra, seus respectivos municípios de origem, as culturas produzidas, técnicas e recursos existentes6.
O Laudo, realizado através de ações coletivamente construídas em assembleias (envolvendo representantes da REBIO,
do IBAMA, do INCRA, da comunidade de assentados e da UFF), culminou com a proposta de Termo de Ajustamento de Conduta,
aceito por todas as tendências e grupos de interesses envolvidos. Apenas no final de 2013 é que a equipe da UFF voltou a ser
convidada para acompanhar um processo de sensibilização da comunidade de agricultores de Sebastião Lan. Agora, trata-se de
uma proposta conduzida por uma nova direção do INCRA, em outra conjuntura, que se relaciona a construção de um Projeto de
Desenvolvimento Sustentável (PDS) para a área. Trata-se de modalidade de projeto criada para o desenvolvimento de atividades
ambientalmente diferenciadas, destinado às populações que baseiam sua subsistência no extrativismo, na agricultura familiar e

4
Localizado entre Silva Jardim e Casimiro de Abreu, considerando o processo de extinção, eminente na época, do “mico leão dourado”. A partir dessa demanda foi
criado por Portaria especial do Reitor o GT Ecossocial, com a contribuição de especialistas de diversas áreas para superação dos conflitos socioambientais consoli-
dados em uma cooperação técnica entre o Ibama e o Incra, mediada pela academia e centrada em agências federais públicas;
5
Sob coordenação dos professores Ana Motta (sociologia), Dario Prata Filho (engenharia agrícola), Mônica Cox (geogragia), Wilson Madeira Filho (Direito), o GT
ECOSOCIAL contava com os seguintes pesquisadores: Ana Claudia Tavares, Carlos André da Costa, Erika Moreira, Ernane Filho, Fernando Barcellos, Flávio Serafini,
Janaína Sevá, João Brito, Juliana Calomeni, Juliana Moreira, Luciana Silva, Marcelle Pires, Patrícia de Sá, Paula Pinto e Rodolfo Lobato.
6
O diagnóstico identificou as seguintes culturas: Coco, aipim, maracujá, laranja, feijão, banana, milho, inhame, abóbora, cana, manga. Além de também evidenciar
e pesquisar equipamentos utilizados, formas de adubação, tipos de defensivos, irrigação, comercialização, armazenamento, processamento de alimentos, energia
elétrica, construções rurais, saneamento, abastecimento de água, esgotos sanitários, resíduos sólidos, queimadas, extração de recursos florestais, entre outros.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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em outras atividades de baixo impacto ambiental.
Atualmente, esse estudo pretende acompanhar e observar o processo institucional que busca integrar os imperativos de
conservação da natureza com as necessidades de sobrevivência das comunidades agrícolas de pequenos produtores7. Merece
destaque o fato de que as 83 famílias originais encontram-se na condição de acampados há mais de 17 anos e um dos grandes
dilemas será o de assentar, deste total, apenas 44, segundo conclusões de estudos técnicos realizados pelo INCRA8. Durante o
longo tempo de espera, várias situações contraditórias emergiram. Venda de lotes por alguns que não suportaram financeira-
mente ou emocionalmente a longa espera (separações de casais, morte de parentes, pais idosos ou filhos que se envolveram em
situações de vulnerabilidade nas periferias do Rio de Janeiro, em busca de ocupação ou de lazer); alteração na direção política
da comunidade e rachas das lideranças; reocupação desordenada por “gente de fora” que não participou da luta inicial, oca-
sionando o surgimento de novos interesses, entre eles, a forte presença de uma Igreja Evangélica que foi construída ao lado do
prédio feito pela comunidade para sitiar a sede da associação9.
O fato é que hoje existe já consolidado um cinturão de agricultura familiar no entorno da Rebio de Poço das Antas, que
ainda se destaca como um campo privilegiado de pesquisa sobre o rural fluminense e sobre a “rerruralização”. São movimen-
tos de ocupação de terra em áreas historicamente ocupadas por um campesinato ribeirinho que foi expulso para a entrada da
monocultura de arroz e depois, pecuária em larga escala, os quais com sua presença “rerruralizam” o Vale do Rio São João com
a produção de alimento, ou lavoura branca. Esse cenário se desenha dinamicamente em variadas formas de conflito, uma diver-
sidade de atores em tensão permanente acerca de direitos sobre a titularidade da terra e, principalmente, no enfrentamento com
projetos econômicos, ambientais e agrícolas que colocam em jogo as diversas noções de territorialidade10.
Vários são os pesquisadores envolvidos no desafio de compreender as dinâmicas territoriais do território hidrográfico da
Bacia do rio São João, no foco desta pesquisa. Estamos seguros de que para uma redefinição da ocupação desse vale torna-se
fundamental uma releitura de trabalhos, como o do geógrafo Jacob Binstock (1998) que desenvolveu uma pesquisa na região em
um momento de transformação de um território camponês em um território de latifúndios.
Depois de décadas de ocupação no entorno da Rebio, alguns funcionários do INCRA já reinterpretam nominalmente
a situação atual das famílias não mais como “acampados”, mas como comunidades de produtores agrícolas, em vias de as-
sentamento. Situação que fortalece as demandas por acesso a serviços públicos e direitos, que se arrastam por anos, mas que
continuam suspensas por supostas incompatibilidades entre a implantação de uma atividade agrícola familiar e a preservação
ambiental.
O caso apresenta conflitos ideológicos que se refletem em disputas institucionais entre órgãos responsáveis pela reforma
agrária (INCRA) e a preservação ambiental (atual ICMBIO) acerca da legitimidade na ordenação do território. Há nítida diferen-
ciação a ser examinada com cuidado entre as exigências do Termo de Ajustamento de Conduta e as condicionantes da Licença
Prévia para a área.
Assim, trabalhando com um conceito importado da geografia, pretende-se delinear o território não como espaço natural
imutável, mas como artefato humano em que seus traços são ora desfocados pelos conflitos, ora invisíveis pelos consensos. A
expansão urbana do município de Casimiro de Abreu e os usos diversos de uma natureza preservada (turismo e ciência) su-
jeitaram os assentamentos a diversas influências que precisam ser melhor investigadas, o que possivelmente vem reforçando as
tendências identificadas sob a noção de “desagriculturalização” do Estado do Rio de Janeiro.
Até que ponto a especulação imobiliária apresenta-se como uma ameaça para a consolidação da agricultura familiar? A
“desagriculturalização” em nome da preservação ambiental ou mesmo como resultado de grandes fluxos de capitais do mercado
imobiliário colocariam as comunidades rurais do território em situação de vulnerabilidade? Quais são as reações ou posiciona-
mentos dos atores envolvidos diante da interseção entre conflitos fundiários rurais com conflitos fundiários urbanos? A especula-

7
Esse movimento de integração entre Reforma Agrária e Preservacionismo tem seu ponto de partida na luta de Chico Mendes que investiu na criação de uma Reserva
Extrativista, trazendo para dentro da luta sindical e político partidária a importância da questão ambiental para a agenda dos trabalhadores rurais em luta no País.
8
A situação de acampados representa a ausência de direitos por parte do estado uma vez que a ocupação de terras não constitui cidadania neste País.
9
Ambos os prédios são considerados ilegais por terem sido construídos em terras da união sem qualquer autorização. A vinda da família do pastor para um dos lotes
vendidos, novos “irmãos” atraídos para a área; uma nova geração de filhos dos ocupantes originais que depois de mais de uma década formaram novas famílias e
demandam o legítimo direito de um lote; a presença de um grupo de perfil diferente identificado pelos moradores mais antigos como membros da “milícia evangé-
lica” do ERJ.
10
“Disputando espaço com o avanço da urbanização, como é o caso do Rio de Janeiro; [...] A reapropriação de espaços pouco explorados, onde as atividades agrí-
colas dos assentados para além de proporciona-lhes os meios de vida também adquire funções políticas de delimitação de território, [...] (MEDEIROS, p.14, 1999).

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


49
ção imobiliária que avança da periferia de Casimiro de Abreu com apoio do governo local11 apresenta-se como um perigo maior
ou menor à preservação ambiental? A agricultura familiar pode ser apresentada como uma proteção ou barreira socioeconômica
contra os usos da especulação imobiliária?

Proposta de Pesquisa Participante


A demanda, por parte do INCRA, para uma análise mais geral e implementação do PDS mostra a relevância de uma pes-
quisa para aprofundar a compreensão sobre a Reforma Agrária no momento atual, a partir da observação cuidadosa da relação
tensa entre ecologia, preservação e a reprodução de uma agricultura sustentável, sobretudo no ERJ onde existe uma grande in-
cidência da sobreposição entre áreas reformadas nas cercanias de sítios de preservação ambiental com vários graus de controle
em termos da criação, pelo Estado, de unidades de Conservação (de simples APAS a REBIOS no outro extremo).
Fundamentalmente esse estudo pode nos conduzir a um novo conceito de reforma agrária com danos ambientais contro-
lados (novidade no cenário nacional e nos planos do INCRA, uma vez que este instituto sempre atuou desconsiderando a relação
entre assentamentos humanos reformados e meio ambiente). Em nível jurídico, a pressão foi sendo intensificada na medida em
que globalmente a preservação da natureza transformava-se em uma pauta de compromisso internacional, no Brasil, em espe-
cial, a partir da Eco 92. Nesse sentido, a transição do Acampamento Sebastiao Lan II em assentamento poderá vir a ser consi-
derada como uma experiência substantiva e paradigmática da qualidade e da profundidade desta suposta virada governamental
em território fluminense, nas suas práticas usuais de assentamento de trabalhadores sem-terra em “piores terras” ou em “terras
de borda de matas” preservadas, como a Mata Atlântica.
Outra questão que diz respeito aos órgãos públicos refere-se a pouca ou nenhuma correlação entre projetos e ações go-
vernamentais. O embate judicial entre INCRA e ICMBIO apresenta-se como sintoma de conflitos maiores em que as famílias de
agricultores familiares ficam reféns de uma estrutura estatal burocrática e cristalizada que, por meio da sua morosidade, impõem
aos movimentos sociais uma pluralidade de estratégias. Estratégias essas que também, ou consequentemente, refletem proces-
sos de defesa e sobrevivência, aparentemente contraditórios, insuficientes e eventualmente até nefastos, mas que permitem uma
produção agrícola já inserida no mercado.
Metodologicamente, a intenção é operar dentro da “observação participativa” e das técnicas de “cartografia social”,
sempre numa dinâmica em que a experiência social possa ser registrada e estimulada de modo coletivo e reafirmada por uma
estratégia de coleta de dados que se defina a partir de decisões quando em disputa. Vale reafirmar que ao longo dos mais de 19
anos de expectativa alguns ocupantes primários desistiram do esforço pessoal de sobreviver nessa longevidade ou em função da
demora de definição pelo Estado, ou porque não conseguiram manter os recursos particulares como condição de sustentação
de sua ocupação produtiva. O fato é que algumas vendas de lotes (ilegais por não pertencerem aos ocupantes, mas à União)
que foram realizadas ao longo desse percurso, resultaram em confronto até armado dentro da comunidade e na explicitação de
objetivos e interesses opostos. O que parece ter ocorrido de modo supostamente coordenado por um tipo de ator, já mencionado,
que é localmente identificado como os “milicianos evangélicos”, com propósitos individualistas e fechados dentro de seu grupo
em termos de aquisição de lotes; e demais partes interessadas em um loteamento urbano da área do assentamento, que se rela-
ciona com a especulação imobiliária do território. Grupos que são denunciados por profissionais do INCRA por suas ameaças e,
eventualmente, por utilização do argumento da violência como forma de constrangimento.
Essa tensão pôde ser percebida nas idas a campo, em que se revelou com clareza quando encontramos a comunidade
na assembleia com presença da UFF e do INCRA reativa em relação ao PDS. Percebemos uma “Campanha Ideológica” en-
caminhada por representantes orgânicos do grupo evangélico num discurso compatível com o diálogo acadêmico contra o PDS,
como suposta forma de aprisionamento totalitário e antidemocrático que tornaria trabalhadores rurais em “escravos do Estado”
sem direitos, elaborada no sentido de desqualificar e gerar medos pessoais.

Entre Disputas e Leis: Caminhos e Contornos das Ações Judiciais


Por estar ao lado de uma Reserva Biológica, o acampamento Sebastião Lan II tem seus conflitos socioambientais ligados
a uma dinâmica judicial que ultrapassa o limite do seu espaço de organização. Seu traço mais marcante, para além das disputas

11
Uma vez que a comunidade acampada está situada em Silva Jardim torna-se, portanto, um segmento de eleitores deste município embora utilize prioritariamente
os recursos e equipamentos urbanos de Casimiro de Abreu, de onde está mais próxima.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
50
possessórias que se deram ao longo das décadas de 80 e 90, que tinham como atores INCRA e supostos proprietários, apresen-
ta-se nas disputas entre concepções de uso da terra, que envolvem a autarquia fundiária e o IBAMA.
A função social da terra não se resume a critérios técnicos de produtividade, mas reafirma um compromisso de preser-
vação da força de trabalho e da natureza externa (MARÉS, 2003, p. 20). Nesse sentido, elementos de diferentes visões de mundo
passam a ser foco de disputas judicializadas, a partir de representações e mediações dos atores legitimados para exercício dos
papéis próprios do campo jurídico.
Durante os trabalhos que resultaram no Laudo Multidisciplinar em Conflito Socioambiental, o levantamento processual aponta
uma mudança nos sujeitos envolvidos nas demandas judiciais. Pereira (2008) organiza os dados relativos à mudança da seguinte
forma: década de 80, disputas entre Estado e Fazendeiros; década de 90, Estado e trabalhadores rurais sem-terra; a partir do ano
2000, IBAMA e INCRA. Por conta da participação do INCRA em qualquer dos polos das ações judiciais, todas se dão no âmbito
da Justiça Federal, mas apresentam diferentes objetos e partes.
O Ministério Público Federal promoveu Ação Civil Pública (ACP) no ano de 1998, processo número 980010661-8, com
o intuito de impedir que o INCRA promova assentamentos rurais no entorno da Rebio. As ações civis públicas visam recompor
danos morais e patrimoniais referentes a questões ambientais, bem como tutelar interesses coletivos e difusos, entre outras
hipóteses, tendo o Ministério Público e associações como legitimados para sua interposição. Utilizou-se, para tanto, a Resolução
CONAMA número 13/90, em seu artigo segundo, que estabelece a chamada zona tampão, em que qualquer atividade que possa
afetar a biota do entorno de até 10 quilômetros de Unidade de Conservação depende de licenciamento de órgão ambiental.
Pouco tempo depois a Associação dos Amigos do Rio São João – AMIRIO- interpõe ACP com o mesmo objeto. A primeira
reação do Judiciário – tanto da Justiça Estadual quanto Federal - é acatar de maneira liminar o pedido dos demandantes com base
na necessidade de prevenir um suposto dano irreparável ao equilíbrio da Rebio.
Durante o período que vai da propositura da ação e a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta- TAC- envol-
vendo o MPF, INCRA e IBAMA, as decisões foram no sentido de acatar os pedidos de impedir o INCRA de promover assenta-
mentos na área de amortecimento. Em 23 de maio de 2005, o TAC finalmente prevê a criação de projetos na área na modalidade
Projeto de Desenvolvimento Sustentável- PDS. O documento estabelece prazos e obrigações para que o INCRA estruture o as-
sentamento, levando em conta a situação específica do entorno de Rebio.
A partir da assinatura do TAC, com a devida homologação por parte do magistrado, a ação civil pública perde seu objeto
e é arquivada. A Resolução Conama 289/2001 passa a regulamentar a dinâmica do licenciamento ambiental, interferindo na
implantação do assentamento, visto que o tempo do mundo jurídico não acompanha o tempo da vida de camponeses. O licen-
ciamento ambiental termina freando a implantação do assentamento rural e sua imposição sem uma construção dialógica tem
sofrido críticas dos movimentos sociais de luta pela terra (PEREIRA, 2008, p. 56).
O processo foi desarquivado algumas vezes pelo INCRA e pelo MPF, entretanto, nunca foi imposta qualquer penalidade
a nenhuma das partes em relação a descumprimento dos prazos estabelecidos no TAC. A assinatura do TAC não diminuiu os
enfrentamentos entre as duas autarquias, que continuaram em desacordo acerca do tratamento aos acampados e a política am-
biental no entorno da reserva.
O processo é redistribuído para a 2ªVara Federal de Itaboraí em abril de 2011, tendo sido arquivado novamente nesse
mesmo período. Desde a assinatura do TAC, o caminho da resolução do conflito na região passa a ser resolvido pela lógica da
política e dos financiamentos públicos, sem, entretanto, avançar em termos de celeridade e participação dos sujeitos diretamente
tocados pelos imbróglios: os/as camponeses/as.

Considerações Finais (Impasses)


No caso em observação, emerge uma situação de embate entre as duas esferas governamentais gerando uma visão
ambiental conservacionista que à priori, sem verificar a experiência social em curso, não vislumbra uma adaptação da comu-
nidade que ali resiste em um modo de vida que não agrida a vegetação nativa circundante. Paradoxalmente, aparece para os
pesquisadores a possibilidade de construção de um acerto harmônico, quando se vislumbra nas ações mais consensuadas pela
comunidade uma iniciativa no sentido de criar um projeto concreto de desenvolvimento sustentável no Lan II.
O local é de interesse especial para a reprodução e expansão da reserva, além de servir como proteção ao entorno degra-
dado pelas queimadas e pelo pasto. A ocupação demonstra uma recuperação produtiva do solo castigado, além de não interferir

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


51
na reprodução do mico leão-dourado e da fauna da reserva. Existe até uma afirmação por parte de uma ONG internacional que
o plantio por parte dos acampados pode ter favorecido a reprodução e comunicação do mico com outros habitats.
Finalmente, vale destacar que também para a Academia, existe uma extraordinária vantagem neste estudo, que está
ligada à oportunidade de acompanhamento de uma experiência comunitária de luta no meio rural fluminense a nível teórico
metodológico ao longo de quase duas décadas, em que se pode verdadeiramente captar o movimento histórico humano do real.

Referências
BINSZTOK, J. Capitalismo autoritário e a questão ambiental no Vale do São João. In: CARNEIRO, M. J. et al. (orgs.) Campo aber-
to, o rural no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.GEIGER, P. P. e MESQUITA, M. G. C. Estudos rurais
da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1956.

MADEIRA FILHO, W.; RIBEIRO, A. M. M.; PEREIRA, M. C. de B.; PRATA FILHO, D. de A. (coords.). Laudo multidisciplinar
em conflito sócio-ambiental: o caso da reforma agrária no entorno da Reserva Biológica de Poço das Antas. Série
Pesquisas nº 2. Niterói: PPGSD-UFF, 2007.

MARÉS, C. F. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003.

MOTTA, M. (org.). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

PEREIRA, M. C. de B. Mediação de conflitos agrários e ambientais: um estudo sobre o Vale do São João no estado do
Rio de Janeiro. 2006. Tese (Doutorado) CPDA\UFRRJ, 2006.

PEREIRA, M. C. de B. Reforma Agrária e Meio Ambiente: desafios e possibilidades em torno de conflitos envolvendo assenta-
mentos rurais/INCRA e reserva biológica/IBAMA. Floresta e Ambiente, v.14, n.2, 2008.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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TRANSFERÊNCIA DE RENDA: DIFICULDADES DE ACESSO DA POPULAÇÃO
TRADICIONAL AOS PROGRAMAS DO GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO-
PROGRAMAS BOLSA FAMÍLIA E BOLSA VERDE NA RESERVA EXTRATIVISTA
ARAPIXI-AMAZONAS (2010 - 2014)

Oliveira, Késsia Monteiro de1; Neto, Gerson Carvalho Nunes²; Santana, Elizângela Leão³ & Silveira, Leonardo Konrath da4

1.Universidade do Estado do Amazonas kessialeal@hotmail.com 2. Universidade do Estado do Amazonas gerson_netto9@hotmail.com


3.Universidade do Estado do Amazonas – UEA, elizleao@yahoo.com.br
4. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, leonardo.silveira@icmbio.gov.br

Resumo
Este trabalho tem o objetivo de apresentar as facilidades e dificuldades com relação ao acesso aos Programas de Transferência
de Renda na RESEX Arapixi, no período de 2010 a 2014. Foi efetuado um estudo de campo em março de 2015, com a aplicação
de questionários a 41 famílias que residem na UC. O foco dos questionários foi efetuar um levantamento de dados sobre os
programas Bolsa Família e Bolsa Verde, buscando compreender como é o acesso destes pela população tradicional. Através da
análise dos questionários, constata-se que boa parte das famílias da RESEX acessam o programa Bolsa Família e uma menor
parte acessa o Programa Bolsa Verde. Fica evidente que estes programas influenciam positivamente a vida das famílias da UC, já
que houve aumento na produção. Os programas de transferência de renda não são a solução definitiva para a melhoria da renda
da população próxima a linha da pobreza, mas um caminho para a solução desta questão que afeta a tantas famílias brasileiras.

Palavras-chave: RESEX Arapixi, Unidade de Conservação, Bolsa Família, Bolsa Verde

Introdução
O sistema de proteção social brasileiro, com seus programas de transferência de renda, vem sendo um importante instru-
mento no combate a desigualdade social, para a garantia dos direitos humanos e também para conservação do meio ambiente.
Sob esses eixos temáticos, são encontrados dois programas sociais que vem recebendo um destaque privilegiado nas políticas
sociais e, também na sociedade brasileira, que são: Programa Bolsa Família (PBF) e o Programa Bolsa Verde (PBV) (BICHIR,
2010).
O Programa Bolsa Família é um dos programas de transferência de renda que concedeu maiores êxitos às famílias que
se encontram na faixa de pobreza e/ou extrema pobreza desde a sua implantação. Este programa foi criado no ano de 2004 no
governo de Luís Inácio Lula da Silva, com o intuito de diminuir a pobreza das famílias de baixa renda.
Para Zimmermann (2006), o Programa Bolsa Família é avaliado como um novo jeito de atacar um problema social que já é
conhecido há muito tempo: a fome. O autor ainda enfatiza que, comparado aos outros programas que existiram e/ou existem, com
o mesmo enfoque, o Bolsa Família ainda é o caminho mais rápido para beneficiar as classes sociais oprimidas. Este programa
tem como condicionalidades a permanência das crianças e adolescentes matriculados em estabelecimentos regulares de en-
sino, mantendo a sua frequência escolar, e também levando-as às unidades de saúde para o devido acompanhamento nutricional
junto a assistência social. Esses vínculos têm como estratégia garantir um melhoramento no acesso a direitos sociais para essa
faixa da população que é tão desfavorecida.
Segundo os dados do Programa Brasil Sem Miséria (MDS, 2015), 52,40% da população de Boca do Acre/AM é bene-
ficiária do referido programa, o PBF se apresenta como um programa de transferência direta de renda com condicionalidades,
1

que beneficia famílias em situação de pobreza e extrema pobreza.


Outro programa fundamental entre os Programas de Proteção Social é o PBV, sendo também um programa do Governo
Federal, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente que faz parte do Plano Brasil sem Miséria. Este programa é voltado à
conservação ambiental, visando conceder incentivos financeiros aos pequenos proprietários e posseiros. O programa foi insti-

1
Beneficiário é a família que está inserida no CadÚnico, sistema informatizado do governo federal onde deve estar apta a participar dos programas de transferência
de renda.

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


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tuído através da medida provisóriade n° 535 de 02 de junho de 2011, que trata de programa de apoio à conservação ambiental,
regulamentada através do Decreto Federal nº 7.572 de 28 de setembro de 2011. O PBV trata-se de um programa relativamente
“novo” voltado à conservação da biodiversidade. Este programa procura vincular a preservação da floresta com a erradicação da
pobreza, apesar de se tratar de um oneroso trabalho, para se cumprir este principal e ambicioso objetivo (MMA, 2015).
O foco central do PBV é manter uma ótima relação com o meio ambiente, preservando e, ao mesmo tempo, não deixando
de lado o desenvolvimento em seu meio rural, isso sem causar a degradação do meio ambiente e servindo como um incentivo
governamental para a agricultura familiar. Para ser incluso neste cadastro social é necessário que a família seja cadastrada no
Cadastro Único (CadÚnico)2 dos Programas Sociais do Governo Federal. Se a família já possui o cadastro no Programa Bolsa
Família, ou acessa outros programas de políticas públicas do Governo Federal, torna-se mais fácil fazer a inserção neste novo
programa, pois a família já está inclusa no CadÚnico. De maneira geral é possível informar que o foco principal desses pro-
gramas sociais é o de fazer com que essas famílias ultrapassem a linha de inclusão social.
O objetivo geral deste trabalho é dar ênfase aos PBF e PBV no município de Boca do Acre/AM, tendo como foco central
a Reserva Extrativista Arapixi/AM, no período de 2010 à 2014. Será estudado e avaliado como está o acesso destes programas
aos beneficiários existentes dentro da RESEX Arapixi. Este trabalho tem como objetivos específicos: i) analisar a atuação dos
programas de transferência de renda BF e BV acessados pela população tradicional da RESEX Arapixi do ano de 2010 à 2014; ii)
avaliar o perfil socioeconômico dos beneficiários dos programas BF e BV na RESEX Arapixi durante o período proposto; e iii) evi-
denciar as principais dificuldades encontradas pela população tradicional da RESEX Arapixi para acessar aos programas BF e BV.

Metodologia
Este trabalho é de caráter dedutivo, buscando explorar a forma como a transferência de renda é distribuída, e as dificul-
dades de inserção da população nos principais programas sociais desenvolvidos pelo Governo Federal, no qual evidencia a re-
alidade das comunidades que compoem a RESEX Arapixi assistidas pelos programas BF e BV. O tipo de pesquisa é bibliográfica,
respaldada em artigos científicos, monografias com temas afins, revistas eletrônicas e sites relacionados ao tema desenvolvido.
Em relação à coleta de dados, primou-se pela busca de informações primárias e secundárias. As famílias foram es-
colhidas de modo aleatório, de forma que foram entrevistadas as pessoas que se encontravam nas comunidades, iniciando a
pesquisa no órgão responsável pela Reserva Extrativista Arapixi em Boca do Acre/AM, o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) para reunião dos dados sobre esta UC (Unidade de Conservação). Foram realizadas também com
o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Como auxílio na compreensão da análise dos dados, utilizou-se gráficos afim de dar maior clareza sobre o tema abor-
dado. Posteriormente, na coleta de dados primários foi realizada uma pesquisa de campo com a aplicação de questionários
socioeconômicos em diversas comunidades da RESEX Arapixi, utilizando técnica de entrevistas para com os extrativistas.
Este trabalho foi desenvolvido em uma Unidade de Conservação (UC) Federal, a Reserva Extrativista Arapixi, localizada
no município de Boca do Acre/AM, a qual possui uma área aproximada de 134 mil hectares, dividida em quinze comunidades.
Nesta UC residem aproximadamente 700 pessoas, totalizando 129 famílias. A RESEX Arapixi foi criada através do Decreto Presi-
dencial s/n de 21 de junho de 2006, como objetivo de promover a proteção dos recursos naturais e o uso sustentável dentro desta
UC. O período de estudo se dá entre os anos de 2010 e 2014.
Os questionários socioeconômicos foram aplicados a 41 famílias, que compõem uma amostra de 31,78% da população
existente no local, para avaliar como estão sendo distribuídas as políticas públicas para essas famílias. Também foi objetivo deste
estudo verificar qual o impacto causado diretamente por estes programas em suas rendas.

A Trajetória dos Programas de Transferência de Renda no Brasil e


Suas Finalidades
Segundo Zimmermann & Silva (2008), os anos 1980 foram marcados pela modernização dos sistemas de proteção social,
tendo como objetivo direto se basear na proteção pública do cidadão contra uma variedade de riscos originários de fatores con-
junturais e suas relações sociais, econômicas e políticas.

2
O Cadastro Único para Programas Sociais ou CadÚnico é um sistema computadorizado usado pelo Governo Federal para coleta de dados e identificando a situação
socioeconômica das famílias de baixa renda, que são consideradas como aquelas com renda igual ou inferior a um salário mínimo por pessoa (per capita).

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Em concordância, Frota (2006 apud ZIMMERMANN et al., 2009) diz que esse conceito sobre renda mínima no Brasil teve
um olhar válido no início dos anos noventa, quando o Projeto de Lei nº 80/19913 criado pelo senador Eduardo Suplicy acabou
sendo aprovado por unanimidade no Senado. O Projeto seria para o cidadão com mais de vinte e cinco anos de idade, e seria
um complemento no rendimento daqueles que se enquadrassem como abaixo de um valor determinado. De início seria uma
complementação de 30% da diferença entre a renda recebida e o mínimo estabelecido. Depois de tantos embates e divergências,
o projeto teve início a partir do ano de 1995 e alguns municípios brasileiros foram pioneiros no assunto como: Campinas, Ribeirão
Preto e Distrito Federal, sob a forma de Programas de Renda Mínima.
No final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002), o Governo Federal ganhou simpatia com a implanta-
ção em cadeia nacional de alguns programas sociais, que renderam grandes resultados como: Bolsa Escola que era um pro-
grama federal que atuava em cadeia nacional sendo associado ao Ministério da Educação, sendo seguido pelo programa Bolsa-
Alimentação, o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), o Brasil Jovem e o Vale-Gás, que por meio dos mesmos
conseguiu atender 12,6 milhões de brasileiros que se encontravam em situação de extrema pobreza até o ano de 2002 (FOLHA
DE SÃO PAULO, 2002).
O governo de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) foi marcado por haver um crescimento significativo no país, mantendo
uma economia estável, e um salto elevado na redução da desigualdade social, onde o governo deu predominância aos pro-
gramas sociais. Já no inicio de 2003, devido a essa inovação no governo, foi implantado imediatamente o Fome Zero um programa
com abrangência nacional, visando o direito de alimentação de qualidade à população brasileira. Isso iria garantir cidadania às
populações que se encontravam em situações de vulnerabilidade à fome (ESTADÃO, 2008).
Já o governo de Dilma Rousseff (PORTAL BRASIL, 2011) procurou não só dar continuidade aos programas de proteção
social deixados pelo governo anterior - como implantar várias novas políticas públicas - tendo como objetivo garantir uma renda
mínima a todas as famílias, promovendo alívio imediato à situação de extrema pobreza, fazendo com que as famílias mais po-
bres sejam inseridas no Cadastro Único tornando-as conhecidas pelo Governo Federal, podendo assim ter acesso às políticas
públicas voltadas à essa classe social.
Campello (2013) relata que eles deram uma arrancada, recadastrando quase 3,6 milhões de famílias, reorganizando a
origem dos programas implantados a cada cidadão, inserindo milhões de novas famílias, chegando 12,8 milhões de famílias
recebendo ao longo de seu governo o benefício Bolsa Família.

Principais Programas Sociais do Governo Federal que se destacam no Amazonas


As implantações dos serviços de transferência de renda passaram a ganhar uma visibilidade mais abrangente entre o
governo e populações de baixa renda, principalmente as que eram voltadas para combater a fome e a miséria, pois para aqueles
que não tinham perspectivas na melhora de sua qualidade de vida, surgia um fio de esperança neste pacto contratual com o
estado. Buscou dar ênfase a algumas dessas políticas públicas destinadas à Região Norte, mais precisamente no Amazonas,
ganhando notoriedade no cenário político estadual, onde viabilizou uma inserção no Cadastro Único (CadÚnico) do Governo
Federal, fazendo os que não tinham nenhuma renda mínima, ter acesso a serviços públicos de qualidade.
O Programa Bolsa-Família (PBF) foi criado em 2004 e tornou-se o carro chefe dos programas sociais, com sua atuação em
benefício das famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, com renda mensal por pessoa de até R$ 77,00. As famílias partici-
pantes devem cumprir algumas condicionalidades como: a permanência escolar (mínima de 85%), bem como vacinações em dia.
De acordo com Ministério de Desenvolvimento Social (MDS, 2015), o programa conta com seis tipos de benefícios: I)
Benefício Básico: valor R$77,00 (famílias com renda mensal de até R$ 77,00 per capita); II) Benefício Variável de 0 a 15 anos: valor
R$ 35,00 (famílias que tenham crianças, adolescentes de até 15 anos); III e IV) Benefício Variável a Gestantes ou nutrizes: valor R$
35,00 (às grávidas ou lactantes com crianças menores de 0 a 6 meses); V) Benefício Variável Vinculada aos Adolescentes (BVJ):
valor R$ 42,00 (famílias com adolescentes entre 16 e 17 anos frequentando a escola); VI) Benefício para Superação da Extrema
Pobreza (BSP): pago às famílias, que mesmo recebendo os benefícios do PBF continuam em situação de pobreza extrema (renda
per capita mensal de até R$ 77,00).

3
De acordo com projeto de lei da câmara nº 2561, de 1992, pls 80/91 art. 1º é instituído o Programa de Garantia de Renda Mínima - PGRM, que beneficiará, sob a forma
do imposto de renda negativo, todas as pessoas residentesno país, maiores de vinte e cinco anos e que aufiram rendimentos brutos mensais inferiores a CR$45.000,00
(quarenta e cinco mil cruzeiros). (programa de garantia de renda mínima)

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


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Bolsa Verde (PBV)
O Programa Bolsa Verde lançado em 2011 é um programa do Governo Federal coordenado pelo Ministério do Meio
Ambiente, totalmente voltado à conservação ambiental, visando incentivos financeiros aos proprietários e posseiros visando a
conservação dos ecossistemas, e a manutenção da sua área de forma sustentável. O pagamento deste programa é feito de forma
trimestral, sendo o valor distribuído de R$ 300,00 por família. As famílias que participam do programa tem como condicionalidade
estar em situação de extrema pobreza sendo inscrita no CadÚnico. Para permanência no programa devem cumprir o termo de
adesão que é apresentado a cada família no ato do cadastro.
Segundo Sawyer (2011), este é um programa que irá atender e cuidar de carências não só do presente como também das
futuras gerações, sendo que já é notável que o desenvolvimento de forma sustentável precisa ser aplicado de forma responsável.
O programa além de contribuir na preservação da biodiversidade, oferece uma contribuição na renda dos seus beneficiários. Por
tratar-se de um programa novo, hoje no município de Boca do Acre/AM ainda é pequena a quantidade de famílias com acesso ao
mesmo. Segundo o site do Ministério do Meio Ambiente, encontram-se apenas 147 famílias cadastradas (MMA, 2015).

Dificuldades e Desafios Enfrentados no Acesso aos Programas de


Transferência de Renda em Boca do Acre e na RESEX Arapixi
O município de Boca do Acre/AM- localizado na mesorregião sul amazonense, fica a 950 km de distância da capital
Manaus, com uma população estimada segundo dados do IBGE (2015), de 33.148 mil habitantes, tem como principal atividade
econômica, a pecuária bovina.
Segundo os dados do Plano Brasil Sem Miséria (MDS, 2015), o município de Boca do Acre/AM no final de 2014 possuia
6.966 famílias registradas no CadÚnico, sendo 4.647 famílias beneficiadas somente pelo PBF, num percentual de 52,40% da
população do município. Já em relação ao PBV são poucas as famílias cadastradas que tem acesso ao programa; até dezembro
de 2014 eram apenas 147 famílias encontradas em todo o município de Boca do Acre/AM, das quais apenas 28 famílias são de
beneficiários da RESEX Arapixi.
O atual Prefeito de Boca do Acre/AM, Antônio Iran de Souza Lima, no dia 24 de dezembro de 2014 assinou a Lei nº 41
criando o Bolsa Família na esfera municipal, com a mesma modalidade do PBF federal, tendo como beneficiários crianças desde
0 a 12 anos como jovens de até 15 anos de idade. O valor da contribuição é de R$ 40,00 por beneficiário, destinado às famílias do
município que tenham renda de R$ 100,00 por pessoa, podendo ser beneficiadas apenas duas pessoas por família, tendo como
condicionalidade que os mesmos tenham frequência escolar de no mínimo 75% e acompanhamento de saúde regular. O público
alvo deste programa são aqueles que mesmo recebendo auxílio governamental ainda se encontram na margem de pobreza ou
extrema pobreza.
De acordo com o gestor da RESEX Arapixi, esta UC tem um papel fundamental para a preservação dos ecossistemas e
conservação do meio ambiente, buscando o desenvolvimento de maneira sustentável da população tradicional residente no lo-
cal. Uma grande preocupação para UC é o desmatamento causado pela extração madeireira ilegal e a caça predatória. Apesar
de muitas dificuldades na concretização de ações voltadas a gestão da RESEX, a equipe gestora da UC permanece numa busca
contínua pela melhoria na qualidade de vida de seus beneficiários. Segundo Duarte & Melo apud Ravallion et al. (2001 p.):

as estratégias de enfrentamento são orientadas para atenuar o impacto do risco ao qual as pes-
soas ou comunidades pobres estão expostas , uma vez que a situação de pobreza já existe. As
estratégias de suavização e prenveção, por sua vez , são adotadas para dimunuir os riscos futuros.

É notório que os programas de transferência de renda tem uma relevância significativa para essas famílias tradicionais
que hoje se encontram no interior da floresta. Conforme Dilma Rousseff afirmou, no seu discurso em Manaus

“o Bolsa Verde por exemplo seria uma via de mão dupla, pois é uma maneira do Governo Federal
ajudar os extrativistas melhorando suas vidas e sua renda e em troca eles cuidam na conservação
do meio ambiente, sendo responsabilidade de todos a preservação do nosso meio ambiente, para
o futuro dos nossos filhos” (PORTAL BRASIL, 2011).

A problematização dos programas, busca saber se é a falta de informação que não chega até eles devido a longitude da

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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cidade, ou se é descaso das secretarias responsáveis pela execução dos programas. Pois assim poderemos saber os efeitos
positivos desses programas na vida de cada família beneficiada, analisando assim o impacto causado na renda destas famílias.

Programas de Transferência de Renda na RESEX Arapixi


A principal característica dos programas sociais do Governo Federal é encontrar maneiras de garantir a efetivação dos
direitos humanos, culturais, sociais e econômicos, buscando meios de minimizar a fome e a desigualdade para essas famílias
que se encontram em situação de vulnerabilidade (ZIMMERMANN, 2006).
De acordo com o questionário socioeconômico aplicado a 41 famílias, a qual compõe uma amostra de 31,78% do total
de famílias da RESEX Arapixi, a Figura 1 apresenta que 32 famílias são beneficiárias de pelo menos um dos dois principais pro-
gramas (BF e BV) de transferência de renda do Governo Federal identificados nessa área, e apenas 9 famílias não acessam a
nenhum destes. Um número bem relevante quando comparado às famílias cadastradas na zona urbana do município.

Figura 1. Quantidade de famílias que acessam aos Programas BF/BV. Fonte: 41 pessoas entrevistadas,
esses dados foram obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.

Por se tratar de um Programa relativamente novo, ou seja, de recente implementação, o PBV, em comparação com o
PBF, na Figura 2, mostra ainda um baixo percentual de famílias que acessam este, apresentando apenas 17,07% de famílias que
acessam o PBVcontra 60,98% que acessam o PBF, o que se alega é que o acesso deste programa as famílias ainda está sendo
efetuado de forma lenta, por parte dos responsáveis pelo cadastramento.

Figura 2. Quantidade de famílias por Programa. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados foram obtidos em
estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.

Avaliação do Perfil Socioeconômico dos Beneficiários dos Programas BF e


BV na RESEX Arapixi.
Apesar da RESEX Arapixi estar localizada a aproximadamente 40 km de distância da sede do município de Boca do ‘’Acre
e, considerando também a falta de infraestrutura das escolas e do transporte até estas e, ainda, todas a qualidades necessárias
para que haja um bom desempenho educacional.
A figura 3 aponta que a RESEX Arapixi apresenta um péssimo desempenho na educação dos chefes de família.Conforme
constatou na pequisa os chefes de família ainda possuem baixa educação, onde 53,65% dos chefes de família entrevistados
possuem somente o ensino fundamental.Um dos fatores que afetam diretamente essa questão é que os chefes de família são os
responsáveis pela manutenção dos roçados e áreas de plantio, sendo esta atividade estritamente diurna e, ainda, há somente

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


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uma escola em toda a RESEX Arapixi que apresenta aulas a noite.
Outro fator que determina essa questão é que muitas vezes do ano em questão não apresentar ensino médio em nenhuma
das escolas da RESEX, necessitando assim os alunos precisarem se deslocar para a sede do município, a fim de continuarem
seus estudos ou então perdem o ano escolar. Devido a essa dificuldade tão comum nas diversas comunidades da UC, muitos
preferem parar seus estudos, muitas vezes nem concluindo o ensino fundamental, já que não podem de forma nenhuma se au-
sentar de sua área por um tempo maior. A questão do estudo torna-se ainda mais complicado, quando verificamos que a educa-
ção de forma geral pouco contribui para as atividades em si que são desenvolvidas na RESEX.

Figura 3. Grau de Escolaridade dos Chefes de Famílias. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados foram
obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.

Apesar da pequena amostra exposta pelos questionários,torna-se visível que mais de 80% das famílias tradicionais não
chega a tirar mensalmente sequer, um salário mínimo (Figura 4). Essa questão inicialmente apresenta uma renda muito baixa,
mas precisamos levar em consideração que a população tradicional da RESEX Arapixi não paga impostos em sua maior parte, já
que não pagam o Imposto Territorial Rural (ITR) assim como não pagam energia elétrica e nem água, também não pagam taxas
públicas como as de iluminação pública e limpeza urbana.
Outro fator que deve ser levado em consideração é que parte de sua alimentação é proveniente da própria RESEX, seja
através de carne de caça, da pesca ou criações de pequenos animais (geralmente galinha, porco e carneiro), sem contar as
suas próprias plantações, onde se produz macaxeira para produção de farinha, feijão de praia, coco, cana, melancia e jerimum.
Quando analisamos estes fatores, que demonstram que seus rendimentos são mais do que suficientes para a manutenção
dos seus meios de vida, já que não possuem ou evitam diversos gastos tão comuns no meio urbano, percebe-se que mesmo
possuindo uma renda considerada baixa, esta renda atende bem as suas necessidades mais básicas. Talvez seja possível esta-
belecer uma relação entre seus baixos rendimentos e a falta de necessidade de maiores rendimentos, já que a maior parte de
suas necessidades básicas são devidamente supridas. Outro fato ainda preponderante é que estamos analisando uma popu-
lação tradicional que possui costumes totalmente diferentes daqueles existentes no meio urbano, principalmente daqueles de
grandes centros, desta forma receber menos um salário mínimo mensal na RESEX Arapixi representa uma problemática menor
do que receber dois salários mínimos em um centro urbano de maiores proporções, tal como uma capital.
A força de trabalho disponível também pode justificar os baixos rendimentos, já que a maior parte dos trabalhadores são
compostos de pessoas da própria família. Mendonça (2010) diz que, a divisão do trabalho para a população tradicional começa
na adolescência principalmente com os jovens do sexo masculino, que usam a força braçal para cuidar dos roçados, da coleta
de castanha (de onde a maioria das famílias da RESEX Arapixi retira boa parte do seu sustento), pescar.
Em relação as mulheres por sua vez, acabam tendo sua participação nas atividades que lhe são cabíveis, embora muitas
vezes acabam também auxiliando no trabalho braçal. Conforme informação dos gestores da RESEX Arapixi, verifica-se que os
jovens tendem a casar “cedo”, muitas vezes antes de completar vinte anos, o que ocasiona uma fragmentação na mão de obra fa-
miliar disponível e, assim ,diminuindo os seus rendimentos, já que passa então a existir uma nova família, com novos gastos, onde
a nova família focará sua atenção para sua produção, não mais fazendo parte da produção da família da qual são provenientes.
Contando ainda que essas famílias estão expostas a diversos tipos de desastres naturais,tais como problemas com a
perda de suas plantações devido as cheias dos rios, assim como a perda de suas moradias devido ao “derretimento” dos bar-
rancos, sem levar em consideração a problemática da saúde e questões sanitárias do uso d’água e da própria preparação dos

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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alimentos. Gallo (2012) diz que, a pobreza e as condições precárias de vida estão em todos os lugares do mundo, e que devido
as famílias que se encontram vulneráveis em suas necessidades mais básicas, fiquem mais suscetíveis a doenças e a mortes
precoces. Diversas doenças relacionadas a má alimentação podendo levar a desnutrição crônica, acarretando assim em sérios
e drásticos problemas de saúde, principalmente no meio rural.

Figura 4. Renda Familiar dos Extrativistas da RESEX Arapixi. Fonte: 41 pessoas entrevistadas,
esses dados foram obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.

Na Figura 5, verifica-se que 66% das famílias entrevistadas afirmam que houve um crescimento em sua produção após a
sua inclusão nos programas sociais analisados. Entre algumas das justificativas para este fato, alguns entrevistados alegam que
o benefício proveniente destes programas possibilita mais tempo para cuidar de suas plantações. Outros afirmam que como sa-
bem que o beneficio é certo, seja este mensal ou trimestral, focam em outras atividades para buscar melhorar ainda mais a vida
de sua família. Somente 12% das famílias entrevistadas afirmam que não verificam qualquer tipo de aumento na sua produção.

Figura 5. Quantitativo na Produção da RESEX. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados foram
obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.

Evidenciando as principais dificuldades encontradas pela população tradicional da RESEX Arapixi para acessar aos
Programas BF e BV.
Embora mais de 60,98% (vide Figura 2) das famílias desta UC está inserida nos programas sociais do Governo Federal,
ainda tem uma pequena parcela da população que não tem acesso a nenhum dos programas ou apenas um dos Programas
como no caso do BF que tem mais anos de atuação. Quase todas as famílias hoje dentro da RESEX tem acesso ao PBF, já o PBV
segundo dados do MMA (2015) são apenas 28 famílias cadastradas de 2011 até 2014. Assim sendo, em 3 anos de execução do
Programa ainda existem deficiências, pois de acordo com Decreto nº 7572 Art.5º parágrafo I, apresenta que as famílias que se
encotram em situação de pobreza ou/ extrema pobreza e estando dentro de Reservas Extrativistas Federais serão beneficiárias
devido a estes desenvolverem atividades de conservação ambiental. Já no Art. 6, §1º diz que as famílias que possuem o PBF são
priorizadas no momento de sua adesão.
São inúmeras as dificuldades para acessar os programas (figura 6). A distância foi a dificuldade mais recorrente entre as
demais, com um total de 46,34% de famílias entrevistadas relatam que a distância entre a RESEX e o local destinado para atender
as questões relacionadas aos Programas é um fator complicador. A falta de informação foi a segunda dificuldade elencada, com
36,58% das famílias entrevistadas apontando essa questão, pois como a maioria das famílias não possui rádio, não há energia
elétrica (somente através de geradores, que não passam mais de duas horas ligados ao dia), o que os deixa ainda mais isolados
da sede do município de Boca do Acre/AM. Já 14,63% afirmam que tanto a distância quanto a falta de informação os prejudica

01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


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na inserção e acesso aos Programas, já que o custo é alto para que saiam de suas residências e se desloquem até a área ur-
bana e ainda, muitos não tem local onde ficar e/ou tempo de atendimento é demorado, pois são muitas pessoas à procura de
esclarecimentos e/ou solução para seus problemas no acesso aos programas havendo poucas pessoas disponíveis para efetuar
o atendimento.

Figura 6. Dificuldades de Acesso aos Programas. Fonte: 41 pessoas entrevistadas, esses dados
foram obtidos em estudo de campo/2015 - Estimativas elaboradas pelos autores.

Considerações Finais
Através do trabalho desenvolvido verifica-se que o Governo Federal via seus Programas de Transferência de Renda tem
buscado resgatar uma parte da população brasileira para situá-la acima da linha de pobreza. Entre estes Programas tanto o Bolsa
Família quanto o Bolsa Verde são de vital importância para este “resgate” conforme é possível constatar através dos dados aqui
apresentados anteriormente. Para uma Unidade de Conservação Federal, como a Reserva Extrativista Arapixi, estes Programas
tem sido um diferencial para a melhoria da qualidade de vida de seus moradores. Por se tratar de uma UC de Uso Sustentável,
um Programa como o Bolsa Verde, tem um grande potencial para o desenvolvimento sustentável, já que busca casar a conserva-
ção do meio ambiente com melhoria da qualidade de vida de seus beneficiários (pagamento por serviços ambientais), os quais
tanto se vem falando nos últimos anos.
Programas que relacionam não somente a conservação, mas também a educação e saúde, como no caso das condiciona-
lidades do Programa Bolsa Família, garantem que parte da população antes tão esquecida possa agora contar com serviços de
melhor qualidade, e ainda, possibilita que o Governo Federal possa melhor conhecer onde estão as principais mazelas e lacunas
de parte de suas Políticas Públicas.
A Reserva Extrativista Arapixi embora apresente uma situação mais complicada em relação a educação, pois muitas
vezes não é possível para o chefe de família se dedicar para completar seus estudos, ela também apresenta um bom cenário
para as futuras gerações, pois conforme vários comentários destes mesmos chefes de família, hoje não permitem que seus filhos
abandonem seus estudos. Em parte isso pode estar relacionado às condicionalidades do Programa Bolsa Família, mas também
fica claro que estes pais não querem que seus filhos levem o mesmo tipo de vida difícil.
Finalmente os Programas de Transferência de Renda não são a solução definitiva para a melhoria da renda da população
mais pobre ou próxima da linha da pobreza, mas um caminho para uma questão que afeta a tantas famílias brasileiras.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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01: Compromisso com o futuro comum: Instrumentos jurídicos


61
02
1. Sistemas de Gestão e
Governança

A proposta deste eixo temático é abrir


espaços para a discussão sobre a
diversidade de formas de tomada de
decisão e de controle social sobre a
ocupação/destinação dos espaços e os usos
dos recursos naturais comuns nas unidades
de conservação e demais áreas protegidas
e conservadas; arranjos institucionais,
equidade na participação em diferentes
níveis e eficiência no seu funcionamento.
ÁREAS PROTEGIDAS E SEUS BENEFÍCIOS PARA O BEM-ESTAR

João, Cristina Gerber1; Mattos, Cristiane Passos2 & Irving, Marta de Azevedo3

1.Pesquisadora Dra. do Programa Eicos de Pós-graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social e do PPG em Políticas
Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e-mail: cgerberj@gmail.com
2. Professora MS Geografia do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Sukow da Fonseca. 3. Profa. Dra. do PPG Eicos em
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (IP) e do PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (IE) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Resumo
A criação de áreas protegidas vem se tornando uma forte ferramenta na busca pela conservação da natureza. No ano de 2002 o
Congresso Nacional aprovou a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC – que dá continuidade
à tendência de resguardar parte da biodiversidade, como forma de garantir sua própria sobrevivência. O benefício gerado pela
biodiversidade preservada pode ser considerado um fluxo de bem-estar não quantificável. O presente trabalho tem como objetivo
principal interpretar esse significado que é gerado pelo convívio com o ambiente natural, segundo a percepção dos usuários
do PARNASO, utilizando-se de metodologias qualitativas de pesquisa. Com base nos resultados alcançados observa-se que o
trabalho vem oportunizando a vivencia de um processo participativo de gestão de uma unidade de conservação e a imersão em
diálogos com atores sociais, que constituem suas vidas dentro ou em áreas de influência de áreas protegidas de proteção integral.

Palavras-chave: Áreas Protegidas, Gestão, Bem-Estar, Parque Nacional da Serra dos Órgãos - PARNASO

Introdução
A criação de espaços naturais especialmente protegidos vem se tornando uma forte ferramenta na busca pela garantia
da manutenção dos serviços ambientais necessários à sobrevivência humana (SCHERL, et al., 2006), uma vez que provê serviços
essenciais à manutenção das necessidades básicas da sociedade, como regulação do ciclo de chuvas, fornecimento de água,
ciclagem de nutrientes e regulação do clima, dentre outros (COSTANZA, 2000).
No que toca ao arcabouço legal e regulatório do uso do ambiente natural no Brasil, a Carta Magna de 1988 trouxe, em
seu artigo 255, o ambiente sadio como um direito fundamental e eleva-o a categoria de “garantia coletiva” ao prescrever que um
ambiente equilibrado é direito de todos, o que vem ao encontro das atuais diretrizes do Conselho de Direitos Humanos da ONU
(BOBBIO, 1992) e é interpretado pelo filósofo como a terceira geração dos direitos fundamentais da pessoa humana, pois tem
clara a necessidade de que o ambiente saudável é vital para a manutenção da vida humana.
Com a necessidade de regulamentar esta parte da Constituição Federal, nos anos de 2000 e 2002 o Congresso Nacional
aprovou a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC – (BRASIL, 2000, 2002), que dá continuidade
à tendência mundial de resguardar parte da biodiversidade, como forma de garantir sua própria sobrevivência. Além disso,
a existência de áreas protegidas proporciona qualidade de vida, bem-estar e saúde a uma importante parcela da população,
pois o ambiente natural, além do escopo mercadológico, onde exerce a função de fornecer serviços difusos e elementares à
nossa sobrevivência, gera um fluxo de bem-estar não quantificável e, muitas e diversas vezes, não perceptível ao ser humano,
principalmente,pela sua forma de gestão, que aparta do ser humano da natureza.
A gestão destes espaços ainda gera conflitos com a sociedade, sejam por questões culturais, pelo sentimento de per-
tencer a um determinado local ou pela disputa territorial. Fato é que não se podem dissociar questões ambientais e socio-
econômicas, pois que são interligadas e inseparáveis.
No sentido aqui exposto, o presente trabalho, que buscou interpretar os benefícios gerados pelo ambiente natural em
termos de seus efeitos para a geração de bem-estar, segundo a percepção de seus usuários, se constituiu em um estudo de caso
com atores sociais existentes na área de influência do Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ), em relação a sua qualidade de
vida e bem-estar providos pelo contato com a natureza.

02: Sistemas de Gestão e Governança


65
Observa-se, a partir da segunda década do século XX, que as atividades humanas cresceram com diferentes impactos na
natureza. A expansão populacional que se registra hoje, aliada ao modelo econômico de crescimento contínuo, tem sido apon-
tada como a principal causa da crescente pressão da sociedade sobre os recursos naturais (DALY, 1973). Entretanto homem e
natureza fazem parte do mesmo habitat e não existe sentido na manutenção de numa natureza exuberante sem a inserção social,
pois este lar, no qual todos os seres estão predestinados e do qual depende a existência da humanidade, está em crise. A terra,
como habitat natural, está ameaçada por uma enormidade de fardos e agressões crônicas (MOSCOVICI, 2007).
No sentido de ratificar o aqui exposto, pode-se afirmar que a partir da última década do século passado, estudos vêm
comprovando a inexorável conexão entre homem/natureza. Kaplan, (1992), apresenta uma pesquisa demonstrando que a vida
em contato com natureza contribui substancialmente para a redução da fadiga mental. A partir desse trabalho, outros estudos,
pesquisas e levantamentos começam a aparecer e a comprovar a importância para o ser humano sua relação com o ambiente
natural, aumentando a importância do significado existente entre bem-estar e saúde.
Ecologicamente, muitas funções ecossistêmicas estão envolvidas em um véu de incertezas e nem mesmo renomados
cientistas têm respostas a muitas das nossas perguntas. A existência de unidades de conservação torna-se vital para que se
possa manter um estoque de biodiversidade tal, que permita que a humanidade e a vida na terra possam, com certa margem de
segurança, evitar adversidades potenciais no futuro, ou até mesmo, permitir que haja futuro.
Através da criação de espaços protegidos como depositários de biodiversidade, a sociedade busca garantir a manuten-
ção de uma escala sustentável de recursos naturais, geradoras de serviços difusos, de bem-estar e de qualidade de vida.
O Estado Brasileiro buscando sanar ou mesmo reduzir estes conflitos, vem implantando políticas públicas voltadas para
a manutenção dos bens e serviços ecossistêmicos, com instrumentos que, se bem conduzidos, podem reduzir a tensão existente
entre o nosso modelo de desenvolvimento, estimular a conservação de recursos naturais, proporcionar o bem-estar, a qualidade
de vida, a saúde e a liberdade da população.
Dentro deste panorama, o presente projeto de pesquisa, que pretende interpretar o significado subjetivo do bem-estar
das comunidades locais na área de influência do Parque Nacional da Serra dos órgãos –PARNASO, tem, como pano de fundo, a
convicção de que a proteção da biodiversidade pelo seu valor intrínseco, além de manter os processos ecológicos e sinecológi-
cos, são geradores de bem-estar para as populações que com ela, de alguma forma, interagem.
Nessa área objeto de estudo, o ecoturismo vem despontando como uma potencialidade para o turismo que emerge como
um integrador do desenvolvimento socioeconômico, conservação da biodiversidade e valorização cultural, segundo novas bases
de planejamento, o que vem sendo reforçado pelo fato de o Estado do Rio de Janeiro abrigar uma importante extensão de Mata
Atlântica, reconhecida como “hostspot” em biodiversidade no plano global e ser um dos estados da federação com maior número
de áreas protegidas (FRAGELLI et al., 2013).
Assim, um parque representa não apenas uma área protegida, mas as construções sociais e os códigos culturais a ele
associados que, por sua vez, interferem diretamente no delineamento deste lugar turístico e na experiência que ele pode pro-
porcionar aos visitantes que ali decidem chegar. E, sendo assim, os parques, embora áreas de natureza preservada expressem
a história e a cultura do lugar, antes de serem “lugares turísticos”. Nesse sentido, pode-se questionar: qual o significado de uma
área protegida para o bem-estar das populações locais na sua própria percepção?

Bem Estar e Ecossistemas


O conceito primordial de bem-estar veio da economia, com os estudos de Jeremy Bentham (1789), e estava eminente-
mente ligado à noção de utilidade e suas necessidades materiais, como alimento, trabalho, acesso a água potável, saúde, edu-
cação segurança e lazer.
Mesmo no seu sentido econômico, John Stuart Mill (1861) discutia a necessidade de manutenção de um estoque de capi-
tal natural que fosse compatível com as necessidades da sociedade em meio a revolução industrial inglesa. O cientista social
defendia a conservação do ambiente como forma de preservação das suas principais funções e manutenção do bem-estar social,
no sentido de que aquela lhe provia suas necessidades básicas, como água, energia, ar, terra.
Arthur Cecil Pigou (1925) trouxe à luz o efeito das externalidades no bem-estar dos indivíduos. Para Pigou (1925 op. cit.),
os recursos naturais não são adequadamente preservados, pois suas funções não são devidamente inseridas nos mecanismos
de mercado.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
66
Com o passar dos tempos, o conceito se expandiu para outras áreas como saúde e psicossociologia e internalizou suas
subjetividades. Entretanto, não deixou de ser um conceito ligado a condição humana, e por esta razão, está intrinsecamente
conectado à percepção que uma determinada sociedade tem de bem-estar em um determinado momento e sob determinadas
condições.
Para Minayo (2000) a percepção de bem-estar está relacionada e é dependente de aspectos históricos, culturais e sub-
jetivos, além disso, esta percepção só pode fazer parte de uma determinada comunidade se ela usufrui o que percebe ser um
determinado nível de qualidade de vida, o que está intimamente relacionado ao grau de satisfação com a sua existência, tanto
material, quanto imaterial.
Assim, a ideia central passa a ser a de que o bem-estar de cada pessoa lhe é uma característica intrínseca e individual
e está ligada aos seus aspectos mentais e subjetivos. Significado esse que não está ligado unicamente às possibilidades finan-
ceiras de um indivíduo, mas também a outros aspectos como noções de justiça social, pertencimento, elos familiares, ciclo de
amizades, contato com o ambiente natural, etc.
O bem-estar, no seu sentido mais amplo, tira o foco do incremento de renda como o objetivo maior da sociedade. A renda
passa a ser o meio para a obtenção de felicidade e satisfação (BENTHAN, 1789 apud SEN, 2000). Subjetivamente, pode-se afir-
mar que o bem-estar é o estudo científico do significado da felicidade: o que a causa, o que a destrói e quem a tem.
A partir do crescimento do movimento ambientalista na década de 1970, a comunidade científica passa a questionar o
modelo de bem-estar predatório e agrega, à noção de conforto, bem-estar e qualidade de vida, a perspectiva da ecologia hu-
mana - que trata do ambiente biogeoquímico, no qual vivem o indivíduo e a população; e o conjunto das relações que os seres
humanos estabelecem entre si e com a própria natureza. Esse conceito questiona as condições reais e universais de manutenção
de um padrão de qualidade de vida fundado no consumismo e na exploração da natureza que, pelo seu elevado grau predatório,
desdenha a situação das gerações futuras, desconhece a cumplicidade de toda a biosfera e não é replicável
Na literatura médica, o termo bem-estar parece não ter um único significado. Gill & Feinstein (1994), defendem que a
percepção de bem-estar relaciona-se com a qualidade de vida e não inclui somente fatores relacionados à saúde, tais como bem-
estar físico, funcional, emocional, mental e econômico, mas também elementos não relacionados à saúde como trabalho, família,
amigos e circunstâncias de vida além do sentimento confortável advindo do contato com a natureza.
Assim, a comunidade cientifica da área da saúde, principalmente a saúde social, reconhece a importância da manuten-
ção de espaços protegidos a fim de proporcionar o fortalecimento da saúde humana. Além disso, nos mostram que a vida em
contato com a natureza reduz a desigualdade da saúde, independente da classe social (MITCHELL; POPHAN, 2008).
Maas et. al., 2006 mostram a conexão linear e negativa em relação a taxa de mortalidade existente entre pessoas da ter-
ceira idade e o ambiente natural, quando em comparação com aquelas que vivem em áreas urbanas sob stress. O convívio com
áreas naturais tem sido considerado como “reparador” tanto do ponto de vista psicológico como fisiológico (HARTIG et. al, 2003).
Para Herman Daly (1968), o foco da analise socioeconômico-ambiental deve ser alterado da percepção mercadológica
para uma calcada em princípios éticos e morais, levando-se em conta que os serviços gerados pela natureza podem não propor-
cionar um aumento da renda diretamente, mas podem evitar custos quando provêm à sociedade suas necessidades elementares.
Daly (1973 op. cit) descreve o uso dos serviços ecossistêmicos como “a satisfação experimentada pelo alcance de nos-
sos desejos ou necessidades”. Isso só é possível pela manutenção do estoque de capital natural.
Além da via de mercado, levantamentos feitos em estados americanos (THE TRUST FOR PUBLIC LAND, 2010) mostram
que comunidades que participam da gestão das áreas protegidas de seus lugares apresentam um sentimento de pertencimento
aguçado, o que contribui para o fortalecimento da coesão e da inserção social. Áreas protegidas são partes indissociáveis de
suas vidas diárias.
Se áreas protegidas forem geridas em harmonia com a sociedade local, elas virão a utilizar mais e melhor seu lugar de
viver, e, consequentemente, se sentem mais orgulhosos do local onde vivem. Além disso, a identificação com a terra, com sua
comunidade e com a gestão de áreas protegidas fazem emergir o sentido de empoderamento da sociedade em relação ao local
e a cultura de onde vivem, intensificando a percepção da importância da natureza no seu significado de bem-estar.
Foi nesse sentido que a Organização das Nações Unidas – ONU – por meio da Resolução 65/309 de 19 de julho de 2011,
reconhecendo que o PIB não reflete adequadamente o bem-estar da população de um determinado país e levando em considera-
ção a necessidade de se promover o desenvolvimento sustentável, indica aos membros de sua assembléia geral que busquem

02: Sistemas de Gestão e Governança


67
elaborar medidas adicionais que mostrem o bem-estar gerado pelas suas respectivas políticas públicas socioeconômicas, pois
que são investimentos que tem como finalidade a produção de bem-estar social e qualidade de vida (ONU, 2011)
A concepção de que bem-estar social e liberdade, trazida à baila pelo filósofo e economista Amartya Sen (2000, op cit.),
se entrelaçam, no sentido de que o sentimento de bem-estar é um dos principais caminhos para o alcance da liberdade, não só
individual, mas também social, reforça a ideia de que além da geração de renda ou incremento de PIB, a liberdade depende de
outros aspectos como disposições sociais, educação, saúde, segurança, direitos civis primários – democracia e participação, e
sentimento de bem-estar, e de pertencimento ao lugar onde se vive.
Ainda nessa linha de raciocínio, é tão importante, para legisladores do país e gestores de áreas depositárias de biodi-
versidade, reconhecerem que, além do papel financeiro nas condições de vida de uma sociedade – seja sob a ótica de uma
comunidade de vila, ou da população de um país – quanto entenderem que natureza e sociedade possuem uma relação de
interdependência.
O desenvolvimento econômico não pode e não deve ser considerado um fim em si mesmo. Ele tem de estar relacionado,
sobretudo, com a melhoria da vida das pessoas e da liberdade de que elas desfrutam.
O sistema natural e social se interconectam e se modificam. A partir desse entendimento sugere-se a criação de cami-
nhos que possibilitem um convívio harmonioso com justiça social, respeito à dignidade humana e conservação dos ecossistemas.
Da mesma forma que a teia da vida, as relações entre bem-estar, qualidade de vida, liberdade, desenvolvimento e con-
servação do ambiente natural estão interconectados e devem ser levados em consideração na criação, implantação e avaliação
de políticas públicas de proteção da biodiversidade, sob pena de não perceber-se que os meios não atingiram os fins almejados
(MEADOW, 1991). Homem e natureza não se dissociam (MOSCOVICI, 2007 op. cit; NOORGARD, 1994).
Para o nosso modelo de gestão de parques, constante do arcabouço legal brasileiro, calcadono princípio da proteção
integral, que distancia homem/natureza, isso ainda é um aprendizado. Não um aprendizado convencional, mas um aprendizado
real, de fato, onde se caminha um pouco para frente, numa espécie de passo “dois para frente e um para trás”, e ao se avançar
é preciso voltar para aprender um pouco mais sobre aquilo que não pode ser absorvido, ou que não se sabia estar lá apara ser
aprendido. Isso é também mudar nossos modelos.

Objetivos
O presente trabalho tem como objetivo principal interpretar o significado subjetivo do bem-estar gerado pelo convívio e
proximidade com o ambiente natural, segundo a percepção dos usuários do PARNASO.

Objetivos Específicos
Para que se possa alcançar o objetivo maior do presente trabalho fez-se necessário alcançar os seguintes objetivos es-
pecíficos:
• Identificar populações existentes sob influência da unidade de conservação sob estudo – Parque Nacional da Serra dos
Órgãos - PARNASO;
• Construir metodologia participativa que possa ser utilizada para abordar e capturar as reflexões dos participantes da
pesquisa;
• Extrair dos textos obtidos as informações que conduzirão ao processo reflexivo.

Justificativa
O Estado do Rio de Janeiro está totalmente inserido no bioma da Mata Atlântica, onde as áreas naturais tombadas e as
Unidades de Conservação criadas com a finalidade de proteger o patrimônio ecossistêmico do estado abrangem, em conjunto,
aproximadamente 18% do território (RIO DE JANEIRO, 2014). Isto faz do território fluminense o segundo maior no que se refere
à área de proteção aos ecossistemas.
Considerando-se que as unidades de conservação de proteção integral são aquelas que produzem, com efetividade, a
proteção dos ecossistemas a que se destinam, pode-se considerar que o Estado do Rio de Janeiro protege 10,62% da sua área
territorial (RIO DE JANEIRO, 2014, op cit.).
Esse percentual encontra-se acima do de diversos estados brasileiros e pode ser considerado dentro dos parâmetros consi-

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derados pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais – IUCN (IUCN/UNEP/WWF, 1980).
A Mata Atlântica no Estado do Rio de Janeiro constitui um “hotspot” em escala global e sua perda representa um dos
principais problemas a serem enfrentados pelo Estado nos próximos anos.
Parte importante das áreas protegidas no Estado do Rio de Janeiro encontra-se na região serrana e compõem a área co-
nhecida por “Serra Imperial”, tendo em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo seus principais municípios e que tem no turismo
histórico e, mais recentemente, no turismo ecológico uma importante fonte de recursos (BRASI, 2010).
Esses municípios, apesar de abrigarem em seu seio um conjunto montanhoso de rara beleza e guardarem aspectos
históricos do Brasil Imperial têm pouca participação no PIB estadual (BOTELHO, 2009). Com isso, a oportunidade de proteção
da natureza surge e com ela a criação de diversas categorias de unidades de conservação de proteção integral. Hoje, o município
de Teresópolis cede 8,8% da sua territorialidade à conservação do Parque Nacional da Serra dos Órgãos - PARNASO. É nesse
município que se encontra uma das 3 sedes do parque e sua porção mais urbanizada.
A fim de possibilitar a integração entre a cultura local e a possibilidade de desenvolvimento surge o ecoturismo como
parte importante de uma das principias fontes de arrecadação do estado – o turismo.
Entretanto, se o aumento de receita não tem um fim em si mesmo, qual o ganho em qualidade de vida que a população
destas áreas vem recebendo? Elas estão incluídas no planejamento turístico da região?

Metodologia
Caracterização da Área do Estudo De Caso
A região, conhecida como Serra Imperial, ou Micro Região Serrana, no Estado do Rio de Janeiro, é composta pelos mu-
nicípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.
A denominação de “Serra Imperial” se deve às características históricas e culturais do país presentes nos municípios de
Petrópolis e Teresópolis e às suas ligações com a família imperial brasileira.
Essas municipalidades tem população marcadamente urbana – 90%, com um IDHM médio em torno de 0,74 (abaixo do
IDH do Estado – 0,837 em 2010) (BRASIL, 2010. Op. Cit ).
No que toca as áreas protegidas, o principal parque nacional é o Parque Nacional da Serra Dos Órgãos - PARNASO - onde
se concentra a pesquisa ora proposta, cuja localização está ilustrada na Figura1.

Figura 1. Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Localização e ampliação.


Fonte: Ministério do Meio Ambiente: http://www.mma.gov.br/img/ascom/fotos/serradosorgaos_mapa.jpg

02: Sistemas de Gestão e Governança


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Esta unidade de conservação federal de proteção integral possui 20.024 ha (ICMBio, 2008), é o terceiro parque mais
antigo do Brasil. Situa-se nos municípios de Petrópolis, Teresópolis, Magé e Guapimirim. Possui 57% da sua área inserida na
Serra Imperial.
O clima no Parque é tropical super úmido (com 80 a 90 % de umidade relativa do ar), com média anual que varia de 13
ºC a 23 ºC (atingindo valores de 38 ºC a -5 ºC, nas partes mais altas) e variação pluviométrica de 1.700 a 3.600 mm. Por estar
localizado na Serra do Mar, apresenta relevo bastante acidentado com grande variação de altitude (de 80 m a 2.263 m na Pedra
do Sino, ponto culminante do Parque).
Os mananciais que drenam para as duas principais bacias hidrográficas fluminenses, a do Paraíba do Sul e a da Baía de
Guanabara, estão situados no Parque.
A região é um importante pólo turístico e atrai milhares de turistas todos os anos. É um dos melhores locais do país para
a prática de esportes de montanha, como escalada, caminhada, rapel e outros; além de ter fantásticas cachoeiras (Véu de Noiva,
Petrópolis, com 42 m de queda). O Parque tem a maior rede de trilhas do Brasil – mais de 130 km de trilhas em todos os níveis
de dificuldade. Entre as escaladas destacam-se o Dedo de Deus, considerado o marco inicial da escalada no país, e a Agulha do
Diabo, escolhida uma das 15 melhores escaladas em rocha do mundo (http://www.icmbio.gov.br/parnaserradosorgaos).

A Pesquisa de Campo
A metodologia descrita como estudo de caso, resulta de um histórico de pesquisa do Grupo de Pesquisa Lattes/CNPq,
intitulado “Governança, Biodiversidade, Áreas Protegidas e Inclusão Social” - GAPIS, e se deu através da realização de entrevis-
tas semi-estruturadas com os atores da gestão pública, lideranças locais e o público em geral e tiveram objetivam levantar, sob a
ótica do cotidiano da gestão e das lideranças locais e da população, os principais atrativos e problemas a serem enfrentados para
o desenvolvimento eco turístico no parque, bem como buscar a percepção dos atores quanto as principais fontes de bem-estar
ligadas às comunidades pesquisadas.
Além disso, realizou-se uma entrevista filmada com o gestor do Parque Nacional da Serra do Órgãos – PARNASO - Lean-
dro Goulart (PARNASO – ICMBIO em 29/08/2014) (IRVING et al., 2013)
As visitas a campo foram efetuadas pela equipe do Grupo de Pesquisa Lattes/CNPq - Governança, Biodiversidade, Áreas
Protegidas e Inclusão Social - GAPIS, com o envolvimento de 30 pessoas e que teve como base o trabalho realizado em pesquisas
do GAPIS no ano de 2009 (IRVING et. al., 2013. Op.Cit . ), para a execução de diálogos com atores sociais identificados, obtendo-
se a realização de várias entrevistas com atores sociais estratégicos (turismo e cultura), entre 28 e 30/08/2014 (UFRJ, 2015)
O trabalho de campo se deu em duas comunidades localizadas em municípios distintos: 1) Vila Inhomirim, em Magé (RJ)
e; 2) Vale do Bonfim, em Petrópolis (RJ).
Para empreender o levantamento de campo e a aplicação de questionários, a população local foi previamente convidada
a participar deste “dia de campo” com pesquisadores do GAPIS/Lattes/CNPq, e alunos e estagiários da Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ.
Houve a aplicação de diversos questionários a todos os interessados, seguindo sempre a reafirmação dos compromissos
éticos e solidários, bem como uma postura crítica e de caráter investigativo, mantendo uma posição que permita uma troca a fim
de que se permitam emergir os reais anseios das comunidades pesquisadas

A Vila Inhomirim
Esta vila, localizada no município de Magé concentra a maior parte da sua população total (cerca de 100 mil habitantes)
do município.
As principais vias de acesso popular são feitas por trem urbano, à diesel operado pela SuperVia, sendo a Vila do In-
homirim o ponto final do tronco do ramal Guapimirim de itinerário férreo.
A hidrografia de Vila Inhomirim é desenhada pelas bacias dos Rios Inhomirim, Estrela e Saracuruna e formam uma área
de abrangência de 667,50 Km². Entre os afluentes do Rio Inhomirim estão os Rios Cachoeira, Piabetá e o Canal Caioba. O PAR-
NASO abriga importantes nascentes, cujas águas tributárias da bacia hidrográfica da Baía de Guanabara. Os principais rios que
fluem para a Baía de Guanabara são, além do Rio Inhomirim, o Soberbo, o Bananal, o Sossego, o Magé, o Santo Aleixo, o Iconha
e o Corujas.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Os pesquisados apresentaram interesse pelo desenvolvimento do turismo de base comunitária, marcadamente o ecotu-
rismo e o de aventura, como fonte de renda, e citaram a existência de empresas de turismo na região. Algumas delas de proprie-
dade dos pesquisados.
Além disso, observou-se a percepção deles quanto a necessidade de melhoria dos serviços públicos prestados, princi-
palmente em relação à conservação do Parque. Apesar de tal, os pesquisados são usuários da UC, principalmente como fonte de
lazer, como escaladas e uso de cachoeiras e poços, igualmente, provê aulas de educação ambiental na rede de educação local.

O Vale do Bonfim
No Vale vivem mais de 3 mil pessoas, 400 das quais na área rural (IBGE, 2010).
A area caracteriza-se por uma paisagem predominantemente rural mesclada com o setor econômico hoteleiro, com ocu-
pação do solo de fundo de vale, onde pode-se obervar a forte ação da dinâmica das águas, que é potencializada pelo desenho
da topografia, o que denota sua vulnerabilidades do solo perante a ação das linhas d’águas do vale do Bonfim.
A hidrografia do Vale do Bonfim é composta pelas águas do Rio Bonfim que alimentam as águas da bacia hidrográfica
do rio Paraíba do Sul. Grande parte do abastecimento das cidades de Petrópolis e Teresópolis vem da vertente continental do
PARNASO - rios Paquequer, Caxambú e Bonfim, o que gera valor agregado às economias de bases comunitárias.
Um dos aspectos mais importantes levantados no Vale do Bonfim, é o que toca a localização de empresas engarrafamento
de águas do PARNASO, mas que não geram beneficios para a população local.
Os pesquisados, que são usuários da UC, principalmente como fonte de lazer – ecoturismo e águas – percebem a busca
por um convívio harmonioso entre a gestão do Parque e as lideranças comunitárias e entendem que hoje existe uma forte parceria
entre os moradores e lideranças da comunidade e o processo de gestão da UC.

Conclusões
Sob a ótica dos pesquisadores envolvidos, o trabalho vem representando uma excelente oportunidade de troca de apren-
dizado, exercício de cidadania, gerando integração acadêmica em todas as suas etapas.
Além disso, vem oportunizando a vivencia de um processo participativo de gestão de uma unidade de conservação e
a imersão em diálogos com atores sociais, que constituem suas vidas dentro ou em áreas de influência de áreas protegidas de
proteção integral.
Por fim, conclui-se que, apesar da complexidade do tema que envolve a relação entre homem e áreas protegidas, pode-
se afirmar que os atores das comunidades mais participativas na gestão do parque, tem clara a percepção de que é possível
ter-se direito à moradia o prover um ambiente saudável, com geração de bem estar para si próprio, quanto para outrem.

Referências
BENTHAM, J. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1789.

BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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Dissertação (Mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social). Instituto de Psicologia, Universidade Federal
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02: Sistemas de Gestão e Governança


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A INSERÇÃO DA MUDANÇA DO CLIMA E ADAPTAÇÃO BASEADA EM
ECOSSISTEMAS NO PLANO DE MANEJO DA APA FEDERAL DE
CANANÉIA-IGUAPE-PERUÍBE (APA-CIP)

Filho, Miguel F Fluminhan1; Coffani-Nunes, João Vicente2; Fernandes, Márcio Barragana1; Jankowski, Mayra3; Paixão, Rosiene
Keila Brito da3; Viezzer, Jennifer4; Deitenbach, Armin5; Becher, Martin5; Hach, Lukas5; Betti, Patrícia5 & Silva, Ricardo B. Alves da6

1. APA-CIP, ICMBio, miguel.fluminhan@icmbio.gov.br 2.UNESP Registro 3.PNUD/MMA/ICMBio 4. MMA 5. GIZ 6. ACADEBio/ICMBio

Resumo
A Inserção da Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas – AbE no Plano de Manejo da APA – CIP apresenta
uma proposta inédita de incluir um tema de importância global em um âmbito regional como uma das primícias de sua gestão.
Reuniões foram realizadas para viabilizar a inserção do tema dentro do Plano de Manejo que já estava em elaboração. A inclusão
se deu em quatro níveis: na inclusão de informações sobre Mudança do Clima no diagnóstico, na inclusão de dinâmicas e diálo-
gos nas Reuniões Temáticas junto às comunidades; a realização de uma Oficina sobre Mudança do Clima e AbE, e a elaboração
de um programa transversal sobre Mudança do Clima e AbE que atuará em conjunto com outros programas do Plano de Manejo.
Desta forma a inserção desses temas fortalece a APA-CIP como interlocutor regional sobre a temática.

Palavras-chave: Sociedade, Adaptação à Mudança do Clima, Unidades de Conservação, Ecossistemas.

Introdução
No contexto da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável Brasil-Alemanha, no âmbito da Iniciativa Internacional
de Proteção do Clima (IKI) do Ministério Federal do Meio Ambiente, Proteção da Natureza, Construção e Segurança Nuclear
(BMUB) da Alemanha, o Ministério do Meio Ambiente – MMA implementa o Projeto Biodiversidade e Mudanças Climáticas na
Mata Atlântica – Projeto Mata Atlântica cujo objetivo é contribuir para a mitigação e adaptação à mudança do clima por meio de
medidas baseadas em ecossistemas (Adaptação baseada em Ecossistemas, AbE), implementadas nas regiões de três mosaicos
de unidades de conservação – Mosaico da Mata Atlântica Central Fluminense (MCF), Mosaico Lagamar e Mosaico do Extremo
Sul da Bahia (MAPES). Espera-se que essas experiências, que inter-relacionam os temas de biodiversidade e clima, sejam com-
partilhadas com instituições relevantes e incorporadas em instrumentos de gestão territorial e em políticas públicas.
Em meados de 2014 o Projeto Mata Atlântica iniciou suas ações na região do Lagamar (Litoral Sul de São Paulo e Litoral
do Paraná). Para desenvolver capacidades de AbE promoveu cursos de três dias sobre a Mudança do Clima e de Adaptação
baseada em Ecossistemas – AbE nos municípios de Curitiba (PR) e Cananéia (SP). Os cursos utilizaram o método de Harvard de
estudos de casos que foram construídos conforme a realidade de cada região. Alguns participantes destes cursos, que tinham
intenção de utilizar a AbE no seu trabalho profissional, participaram adicionalmente de um curso de “Formação de Formadores
em Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas”, abreviado “FoFo”, em setembro de 2014 em Brasília.
O curso FoFo, de cinco dias, adota uma metodologia participativa e que possibilita aos alunos vivenciarem os conceitos
e aplicá-los em situações reais. Ele acrescenta ao conteúdo técnico um conjunto de conteúdos didáticos que permitem aos for-
mados ministrarem cursos para diversos públicos. Ao final dele, seus participantes apresentam as intenções de aplicação desse
conhecimento em suas atividades profissionais.
No final do curso FoFo em Brasília, um grupo de participantes ligados à Área de Proteção Ambiental Cananéia – Iguape
– Peruíbe - APA-CIP, à Academia Nacional de Biodiversidade – ACADEBio/ICMBio e à Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” - UNESP Campus de Registro, colocaram a intenção de inserir, com apoio do Projeto Mata Atlântica, a metodo-
logia AbE na elaboração do Plano de Manejo da APA-CIP que se realizaria em 2015.
Tanto o gestor da APA-CIP, como a coordenação do Projeto Manguezais do Brasil em Brasília, que financia o Plano de
Manejo da APA – CIP, apoiaram a iniciativa. Assim, já na proposta da elaboração do Plano de Manejo e nos Termos de Referência
de contratação da consultoria especializada foi colocada a intenção da inserção do tema Mudança do Clima (MC) e Adaptação
baseada em Ecossistemas (AbE). Esta experiência envolve profissionais de diferentes diretorias do ICMBio e a parceria de dois

02: Sistemas de Gestão e Governança


75
projetos de cooperação internacional, o Manguezais do Brasil e o Mata Atlântica.

Base Conceitual
Área de Proteção Ambiental de Cananéia, Iguape e Peruíbe (APA-CIP)
De acordo com a Lei 9.985/2000 que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, a Área de Pro-
teção Ambiental – APA faz parte do grupo de Unidades Conservação de Uso Sustentável. (MMA/SBF, 2006).
A APA-CIP foi criada em 1984 abrangendo cinco municípios (Cananéia, Iguape, Ilha Comprida, Itariri, Miracatu e Pe-
ruíbe) (ICMBIO 2015a). Ela foi ampliada em 1985 (ICMBio 2015b), totalizando cerca de 234.000 ha.
Localizada na região costeira do litoral sul do Estado de São Paulo (Figura 1), está completamente inserida no domínio da
Mata Atlântica, com predominância de manguezais, restingas e floresta ombrófila densa.

Figura 1. Localização da APA Cananéia Iguape Peruíbe no Litoral Sul de São Paulo (Fonte: http://maps.mootiro.org/resource/919).

Plano de Manejo (PM)


De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação todas as Unidades de Conservação devem dispor de
um Plano de Manejo, e esse deve ser elaborado de forma participativa, como reza o Art. 27, parágrafo 2º (MMA-SBF 2006).
O roteiro metodológico para elaboração do Plano de Manejo da APA-CIP foi orientado pela Diretoria de Criação e Manejo
das Unidades de Conservação – DIMAN/ICMBio.
Diante das novas demandas da gestão ambiental de Unidades de Conservação, notadamente as Áreas de Proteção Ambi-
ental – APA em virtude dos desafios das multiplicidades de usos e oportunidades de uma gestão ambiental mais contemporânea,
a APA-CIP propõe a inserção da temática de Adaptação baseada em Ecossistemas no Plano de Manejo.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Adaptação baseada em Ecossistemas
A Adaptação baseada em Ecossistemas (AbE) “usa a biodiversidade e os serviços ambientais que os ecossistemas
prestam como parte de uma estratégia geral para ajudar as pessoas a se adaptarem aos efeitos adversos da mudança do clima”
(GIZ, 2013a). Desta forma, procura minimizar os efeitos da mudança do clima sobre as formas de produção e na qualidade de
vida da comunidade.1 O conceito, pela primeira vez formulado pela Convenção da Biodiversidade, procura facilitar a valoração
de soluções “verdes”, em contraste a soluções “cinzas”:

“Adaptação baseada nos Ecossistemas é o uso da biodiversidade e dos serviços ambientais como
parte de uma estratégia de adaptação completa para ajudar pessoas a se adaptarem aos efeitos
adversos das mudanças climáticas” (CBD, 2009 apud GIZ, 2013b).

No entanto, outros conceitos relevantes para compreensão da estratégia de aplicação das medidas AbE são:

Adaptação - Ajustes dos sistemas humanos ou naturais em resposta a estímulos climáticos atuais
ou previstos, ou seus efeitos, para moderar os danos ou explorar oportunidades benéficas (IPCC,
2007).

Resiliência - Capacidade dos sistemas sociais, econômicos e ambientais de enfrentar eventos,


tendências ou distúrbios perigosos, respondendo a eles ou reorganizando-se de forma que pos-
sam manter sua função essencial, identidade e estrutura, mantendo também a capacidade de
adaptação, aprendizado e transformação (IPCC, 2012).
Vulnerabilidade – É o grau de suscetibilidade de um sistema ou sua incapacidade de resposta
aos efeitos adversos da mudança climática, incluindo-se a variabilidade climática e os eventos
extremos (IPCC, 2007), ou ainda a propensão ou predisposição a ser adversamente afetado pelos
efeitos das mudanças climáticas (IPCC, 2012).

Segundo Dieisner (2013), nem todas as medidas de adaptação às mudanças do Clima são boas, há as que podem
causar impactos negativos inesperados e as que podem apresentar baixo nível de eficiência e efetividade, além das incertezas
dos prognósticos climáticos e seus possíveis impactos, Portanto, uma medida de adaptação “ideal” é uma medida de “não ar-
rependimento”, aquela que traz benefícios para a comunidade apesar dos prognósticos eventualmente não se realizarem.
Medidas de AbE em geral são consideradas como medidas de não arrependimento, visto que a sua execução, indepen-
dente do fator impactante, como p.ex. Mudança do Clima, reestabelece os serviços ecossistêmicos. Em termos gerais, medidas
de Adaptação baseada em Ecossistemas focam na conservação, restauração ou uso sustentável de ecossistemas. Mas como
salientado por Olivier et. al. (2012), é uma abordagem antropocêntrica que tem como perspectiva a forma como os ecossistemas
poderão ajudar as populações, comunidades, por meio da redução da vulnerabilidade, a se adaptarem à variabilidade do clima
atual e às futuras mudanças climáticas.
Como AbE é um conceito relativamente novo, ainda existem poucas experiências sobre sua implementação, tanto no
Brasil como no mundo. Portanto a inserção de AbE no Plano de Manejo da APA CIP constitui uma experiência pioneira em escala
internacional.
O grande desafio, do ponto de vista metodológico, se refere à execução de uma análise de vulnerabilidade à mudança
do clima na etapa de diagnóstico da construção do plano de manejo, prévia à seleção e implementação de medidas de AbE.
Desta forma, as medidas são selecionadas com o objetivo de reduzir a exposição aos efeitos adversos de mudança do clima (p.
ex. ondas de calor, chuvas torrenciais) ou a sensibilidade aos mesmos (p. ex. solos propensos à erosão) de sistemas de interesse
centrados em pessoas. Desta forma, uma medida AbE (p.ex. implantação/manutenção de um sistema agroflorestal diversifi-
cado), pode contribuir a aumentar a capacidade adaptativa das mesmas.
A avaliação de vulnerabilidade é a atividade que permitirá estabelecer prioridades e direcionar as atividades de gestão
nas áreas com probabilidade de manterem a provisão de serviços ecossistêmicos. Segundo o relatório do IPCC (2007), a avalia-
ção de vulnerabilidade consiste em três etapas:
Etapa 1: Avaliação dos potenciais impactos das alterações climáticas sobre os ecossistemas e os sistemas de produção
1
A GIZ fornece mais subsídios para entendimento e aprofundamento no site AdaptationComunitty.net” (GIZ, 2015).

02: Sistemas de Gestão e Governança


77
baseados em ecossistemas incluindo: descrição dos sistemas expostos (recursos hídricos, outros ecossistemas e sistemas de
produção baseados em ecossistemas); desenvolvimento de lista de possíveis consequências das alterações climáticas para
os ecossistemas e setores; priorização das tendências e impactos de mudanças climáticas, análise dos objetivos políticos para
contribuir com a seleção de indicadores de impacto e de valores de ameaça de impacto.
Etapa 2: Identificação e avaliação de potenciais medidas de adaptação às alterações climáticas, com foco em aborda-
gens de gestão adaptativa da água e AbE.
Etapa 3: Integração da avaliação de impacto e avaliação da adaptação junto com os resultados de estudos de apoio em
uma avaliação de vulnerabilidade abrangente.

Inserção da Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas no


Plano de Manejo da APA-CIP
No caso da APA-CIP, inicialmente foi elaborado um Plano de Gestão com um zoneamento preliminar que foi publicado
em 1996 (ICMBio, 2015 c). No final de 2014, o ICMBio, com financiamento do Projeto “Manguezais do Brasil” BRA/07/G32 e com
apoio técnico do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, deu início à elaboração do primeiro Plano de
Manejo da APA-CIP. A previsão é que a elaboração esteja concluída em setembro de 2015.
Em janeiro de 2015 foi realizada reunião com a consultoria contratada para elaborar o Plano de Manejo, que apresentou
as etapas que seriam adotadas nesse processo, possibilitando o primeiro desenho de intervenções visando à inserção da Mu-
dança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas no Plano de Manejo.
No início de maio de 2015 houve a primeira reunião conjunta das equipes de elaboração do Plano de Manejo, técnicos
do ICMBio e do Projeto Mata Atlântica (MMA/GIZ), entre eles os formados no curso FoFo de Brasília, com o objetivo de planejar
atividades para inserção dos temas Mudança do Clima e da AbE no Plano de Manejo da APA-CIP.

Metodologia
Nesse relato de experiência focaremos nos aspectos relacionados à inserção do tema Mudança do Clima e Adaptação
baseada em Ecossistemas nas diferentes etapas do plano de manejo.
No planejamento ficou estabelecido que o tema seria abordado: (i) nas reuniões temáticas de diagnóstico, (ii) em uma
oficina específica para discutir Mudança do Clima e AbE, (iii) na inclusão de um capítulo no Plano de Manejo sobre Mudança
do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas e de um Programa de Ação focado no enfrentamento da mudança do clima e
dos seus impactos adversos.

Inserção do tema Mudança do Clima e AbE nas reuniões temáticas:


Na reunião de início de maio ficou definido o modelo a ser adotado em cada reunião temática com a inclusão do tema.
As reuniões temáticas teriam cerca de 3 a 4 horas de duração. Houve a preocupação de inserir o tema sem desviar do objetivo
principal das reuniões que era o diagnóstico para a elaboração do Plano de Manejo.
A atividade inicial de recepção dos participantes teve o objetivo de provocar a reflexão dos participantes assim que che-
gassem, sobre o tema de Mudança do Clima. Para isso foram utilizados quadros com perguntas onde os participantes, por meio
de pontos adesivos, podiam indicar o grau de alteração do clima segundo a sua percepção em relação a seu modo de vida e a
sua atividade produtiva.
Os participantes, por meio de dinâmicas interativas contribuíram com seu conhecimento sobre a percepção da mudança
do clima (Figura 2).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 2. participantes de reunião temática.

No final das primeiras reuniões foi efetuado o resgate das atividades iniciais de percepção climática, passado um vídeo
sobre Mudança do Clima (A hora de decidir - GIZ - https://youtu.be/VW5R_rpDjm0) e realizada discussão sobre o tema e a sua
relação às atividades desenvolvidas pelos participantes na região da APA-CIP em que moram/trabalham. Como a reunião era
exaustiva e esta atividade acontecia no final, os participantes não conseguiam aproveitar os conceitos e mensagens e esta ativi-
dade não foi continuada.
No fechamento foi feito um convite especial para participar da Oficina sobre Mudança do Clima e AbE no dia 07 de maio
de 2015 na sede da APA-CIP.

Oficina sobre Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas na APA-CIP


Em maio de 2015, foi realizada reunião de planejamento da Oficina sobre Mudança do Clima e Adaptação baseada em
Ecossistemas, na qual se estabeleceu o roteiro para a oficina de um dia, como segue abaixo:
- Percepção dos sinais da mudança do clima: conforme as pessoas chegavam eram recebidas e lhes eram passadas as
orientações dessa atividade que contou com um mapa da APA-CIP impresso em formato A0 e pendurado na parede, no qual os
participantes assinalaram os locais onde já tinham observado algum sinal de mudança do clima (p. ex. chuvas mais fortes, onda
de calor, diminuição de chuva, período maior de seca, etc). Cada sinal climático tinha uma cor de adesivo para ser colocado no
mapa (Figura 3).
- Introdução à Mudança do Clima e Adaptação (visão geral): apresentação de sensibilização sobre o tema e apresen-
tação do vídeo “Como as Mudanças do Clima mudarão nossas vidas em 2050” (https://youtu.be/0QoZ8hh8-Qg ).

02: Sistemas de Gestão e Governança


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Figura 3. Mudança do Clima e AbE: construção do mapa de Sinais Climáticos.

- Mudança do clima e adaptação na região da APA-CIP (visão local): apresentação do Projeto da Organização Não
Governamental Iniciativa Verde sobre a Mudança do Clima e adaptação na região da APA-CIP.
- Identificação de impactos da mudança do clima na APA-CIP: dinâmica de percepção em que os participantes, em
grupos separados, sinalizaram no mapa da APA-CIP os impactos da mudança do clima relacionados a Aspectos Biofísicos
(Figura 4) e Aspectos Socioeconômicos. Depois, verificou-se a correlação entre os dois mapas e desses com os sinais climáticos
indicados na atividade de recepção (Figura 5).

Figura 4. Construção do mapa de Impactos Biofísicos da Mudança Figura 5. Análise dos mapas dos Impactos Biofísicos, Socio-
do Clima na área da APA-CIP econômicos e dos Sinais Climáticos na APA-CIP

- Dinâmica - aprendizado ativo: APA vulnerável: As atividades de aprendizagem ativa facilitam os processos de apren-
dizagem a partir das experiências vividas. A atividade “Adaptação organizacional” consiste em espalhar os membros do curso
aleatoriamente na sala. Em seguida pede-se que estes escolham um colega e passem (jogando) uma bola ou pequeno objeto.
Os objetos foram identificados como impactos da Mudança do Clima. Ao longo da aprendizagem o número e a velocidade de
objetos vão aumentando.
- Dinâmica: o que são serviços ecossistêmicos e o que eles têm a ver com o bem estar da população e com a adaptação
a mudança do clima? Uma reflexão da importância dos Serviços Ambientais no contexto de nossas vidas (Figura 6).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 6. Atividade de Análise da importância dos Serviços Ambientais.

- Identificar e Espacializar Opções AbE: analisar e organizar as e possíveis soluções AbE em categorias (Conservação,
Restauração, Uso Sustentável e Outros) (Figura 7). Em seguida, as principais opções AbE foram indicadas no mapa da APA-CIP.
- Apresentação e Reflexão sobre os resultados do dia e a sua inserção no Plano de Manejo da APA-CIP: a equipe
avaliou como positivas as contribuições da oficina e optou pela elaboração de um Programa que focasse no enfrentamento da
mudança do clima com especial atenção à adaptação baseada em ecossistemas.

Figura 7. Discussão sobre opções de medidas AbE

Na Oficina contou-se com a participação de lideranças de comunidades da APA-CIP, pesquisadores, representantes das
esferas federal, estadual, municipal e os membros do Conselho Consultivo da APA.

02: Sistemas de Gestão e Governança


81
Programa de Enfrentamento da Mudança do Clima
Este programa foi elaborado conjuntamente pelas equipes do Plano de Manejo (ICMBio/PNUD) e do Projeto Mata Atlân-
tica (MMA/GIZ) e seguiu o mesmo modelo dos demais programas do Plano de Manejo. Já em sua concepção ficou estabelecido
que teria uma função diferenciada de atuar de forma transversal em relação aos demais programas.

Resultados e Discussão
A inclusão da temática de Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas nos passos planejados para a
elaboração do Plano de Manejo foi assertiva, proporcionando resultados significativos para a elaboração do Plano de Manejo.
As Reuniões Temáticas proporcionaram uma visão diversificada sobre a percepção da comunidade da APA sobre os
sinais climáticos, sendo que eles notam que já há alguma influência nas atividades desenvolvidas na região, mesmo sem um
entendimento claro sobre Mudança do Clima.
É importante ressaltar que as dinâmicas sobre a percepção da Mudança do Clima tiveram o objetivo de conduzir os
participantes das reuniões e da oficina a se inserirem na reflexão sobre o tema. As informações obtidas foram consideradas rele-
vantes em vista do conhecimento local e do envolvimento dos participantes com atividades de pesca, agricultura, extrativismo en-
tre outras que se relacionam com o meio ambiente e que por isso, de forma empírica, interpretam os sinais climáticos regionais.
Muitas das propostas levantadas durante as Reuniões Temáticas quando associadas à Oficina de Mudança do Clima e
AbE, durante a atividade de “Opções AbE e Espacialização na APA-CIP”, evidenciaram que são opções de medidas AbE pos-
síveis de serem realizadas na APA-CIP.
Da mesma forma, a dinâmica sobre os Serviços Ecossistêmicos e o bem-estar do ser humano, reforçou a importância de
desenvolver as medidas de AbE.
Dois desafios na metodologia aplicada foram detectados nas reuniões em relação aos temas Mudança do Clima e AbE
que precisam ser aprimorados:
- a inserção no final da reunião, quando os participantes tinham dificuldade de manter a atenção e concentração; e
- a falta de conhecimento prévio sobre o tema, que atuou de forma sinérgica com o item anterior.
Esse cenário ratificou a preocupação apresentada durante o planejamento referente ao tempo de cerca de 3 horas para
cada reunião destinada ao diagnóstico participativo e ainda abordar o tema de Mudança do Clima e AbE. Fato que reforçou a
importância de haver uma Oficina específica sobre Mudança do Clima e AbE para detalhar e trabalhar essa temática de forma
integrada com os resultados obtidos nas reuniões.
O formato dinâmico e participativo da oficina sobre Mudança do Clima e AbE com as palestras de sensibilização e (in)
formação sobre o tema central e a região da APA-CIP, valorizou o conhecimento e a percepção das pessoas. Essa metodologia
favoreceu a rápida integração do público com a temática e a produção de novas informações para o diagnóstico da APA-CIP.
Além disso, fez com que os participantes validassem a inserção da temática no Plano de Manejo da Unidade de Conservação.
Diante da relevância do tema e dos resultados obtidos na oficina consolidou-se a decisão pela elaboração de um Pro-
grama de Enfrentamento da Mudança do Clima e de Adaptação baseada em Ecossistemas. O programa representa a expec-
tativa da APA-CIP/ICMBio em estabelecer um canal de comunicação e ação com os atores envolvidos visando minimizar os
possíveis efeitos da Mudança do Clima por meio de medidas AbE.
O Programa propõe atuar diretamente sobre o tema por meio de eventos de sensibilização e de cursos de capacitação,
articular com outras instituições, incentivar a pesquisa, e auxiliar a inserção de medidas AbE nos demais programas do Plano
de Manejo quando pertinente. O formato participativo deste Programa ajudará aprofundar questões específicas, como p.ex.
análises de vulnerabilidade da APA-CIP.
Outro resultado concreto da inserção da Mudança do Clima e AbE é a presença de um capítulo no Plano de Manejo
tratando do assunto, no qual haverá um diagnóstico climático da região da APA-CIP.
Dessa forma, o Plano de Manejo da APA-CIP torna-se o primeiro a inserir essa temática e a estabelecer uma metodologia
de trabalho para a sua formulação, sendo este esforço passível de replicação para outros planos de manejo, servindo como um
referencial teórico/prático.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Conclusões
Após a realização das reuniões temáticas e da oficina sobre a Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossiste-
mas, concluímos que os objetivos propostos de levantar a discussão sobre a Mudança do Clima, identificar medidas de AbE em
conjunto com os atores relevantes na gestão dos recursos naturais e de consolidar essas reflexões no Plano de Manejo foram
atendidas.
A inserção da Mudança do Clima e AbE vem ao encontro dos objetivos estabelecidos no decreto de criação da APA-
CIP, contribuindo com o desenvolvimento sustentável, a conservação dos recursos naturais e o modo de vida das comunidades
tradicionais.
A metodologia de abordagem sobre Mudança do Clima e AbE nas reuniões temáticas pode ser aprimorada em relação
ao tempo e o material de apoio sobre o tema, visto que o público em geral apresentou dificuldade de acompanhar os conceitos
desenvolvidos nas apresentações AbE.
Por outro lado, a opção de dinâmicas em que o público possa interagir diretamente e nas quais o seu conhecimento seja
valorizado foi muito produtiva. Isto promoveu o envolvimento dos participantes com as propostas que emergiram nas reuniões e
da oficina sobre Mudança do Clima e AbE. Esse processo permitiu que os participantes identificassem alternativas de Adapta-
ção baseada em Ecossistemas.
A inserção do tema Mudança do Clima e AbE introduz um novo horizonte no planejamento regional, visto que nenhum
dos municípios ou órgãos gestores de outras Unidades de Conservação apresentam propostas para o enfrentamento da Mu-
dança do Clima.
A gestão da APA-CIP inova dispondo-se a promover o diálogo entre os diferentes atores a respeito da Mudança do Clima
e da necessidade de adaptação.
Conclui-se que tanto a inserção da Mudança do Clima e Adaptação baseada em Ecossistemas como a proposta me-
todológica foram decisões acertadas e que podem e devem ser estimuladas a serem replicadas na construção de outros planos
de manejo de unidades de conservação e em outros instrumentos de planejamento e de gestão territorial, em especial os que
visam o uso sustentável dos recursos naturais.

Referências
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02: Sistemas de Gestão e Governança


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OLIVIER, J.; PROBSTK.; RENNER, I.; RIHA, K. Adaptação baseada nos Ecossistemas (AbE) - Uma nova abordagem para
antecipar soluções naturais conducentes a uma adaptação às mudanças climáticas nos diferentes setores, 2012. Disponível em
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
84
MAPEAMENTO PARTICIPATIVO DOS SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS CULTURAIS
NO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA BRANCA, RJ

Ribeiro, Fernando Patrício1 & Ribeiro, Katia Torres2

1.Conservação Internacional, fernandorjcs@gmail.com 2. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

Resumo
Numerosos estudos têm apontado os benefícios das áreas protegidas aos moradores dos grandes centros urbanos no mundo.
No Brasil, ainda são poucos os estudos nas regiões metropolitanas que visam verificar como estes benefícios são percebidos
e geridos, apesar da grande extensão e quantidade de áreas verdes urbanas no país, muitas delas unidades de conservação
formais. Este estudo, realizado na maior área protegida do município do Rio de Janeiro, o Parque Estadual Pedra Branca (PEPB),
traz a avaliação dos benefícios imateriais associados a sete serviços culturais ecossistêmicos: - Beleza Cênica, Interação Social,
Recreação e Ecoturismo, Aprendizagem e Valores Educacionais, Herança Cultural, Diversidade Cultural, Religiosidade e Es-
piritualidade. O trabalho foi realizado por meio de entrevistas e mapeamento participativo com 69 pessoas entre funcionários do
parque, visitantes e moradores da unidade. Os resultados mostram que o parque oferece importantes benefícios imateriais para
os entrevistados e assim atinge parte de seus objetivos de criação. Implicações para o manejo do uso público do parque e gestão
de conflitos com os residentes e população do entorno são discutidos.

Palavras-chave: Serviços Ecossistêmicos culturais, Sistema de Informação Geográfico Participativo, Benefícios Imateriais, Gestão
de Áreas Protegidas, Parque

Introdução
O número de áreas formalmente protegidas - AP cresceu significativamente na última década, no mundo. Atualmente
há mais de 100.000 AP registradas, cobrindo cerca de 12% da superfície do planeta (UNEP/CBD, 2005), o que as torna um dos
principais destinos turísticos da Terra. AP preservam importantes ecossistemas que por sua vez fornecem bens e serviços que
direta ou indiretamente satisfazem várias necessidades da sociedade (MEDEIROS et al; 2011). Sua formalização visa fazer frente
aos intensos processos de conversão de habitat em todo o mundo (como monoculturas e expansão urbana). No Brasil, dá-se
forte ênfase às unidades de conservação - UC, organizadas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, 2000),
aqui genericamente chamadas de parques, dentre o conjunto maior de áreas protegidas, que incluem terras indígenas, reservas
legais e outras.
A importância das áreas entendidas como naturais para a saúde física e psíquica vem sendo evidenciada por muitos es-
tudos. Chiesura (2003) argumenta que parques e outros espaços verdes são de importância estratégica para o bem-estar nas so-
ciedades cada vez mais urbanizadas, reduzindo o estresse e aumentando a sensação de tranquilidade e sossego. O Congresso
Mundial de Parques da IUCN de 2014 trouxe a saúde e o bem-estar relacionados às áreas verdes como um dos principais eixos
de discussão e promoção para os próximos 10 anos (IUCN, 2014).
Há crescente evidência científica sobre os benefícios das áreas verdes para os habitantes das cidades (GODBEY; GRAE-
FE; JAMES, 1992, CHIESURA, 2004, BROWN; SCHEBELLA; WEBER, 2014), dos estudos mais qualitativos àqueles com aborda-
gem fortemente estatística, como o de Maas (2006) que avalia a relação entre bem estar e proporção de área verde.
Benefícios mais introspectivos podem ser associados a estas áreas: incluem o senso de desafio, privacidade e intimidade, beleza
cênica e herança histórica, por exemplo. Os valores recreativos, históricos e estéticos assegurados por estas áreas podem au-
mentar a atratividade da cidade (CHIESURA, 2004). Essa conexão é explícita e ativamente incentivada pelo sistema de parques
norte americano, mas ainda muito tímida no Brasil.
No Rio de Janeiro as áreas verdes ganham destaque na paisagem e na vida das pessoas, e em grande parte constituem
UC. O Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB) é a maior UC deste município e é o maior parque urbano do país. Localizado no
maciço da Pedra Branca, na região oeste, o PEPB apresenta belas paisagens, rios e cachoeiras e áreas de floresta, que lastreiam
sua vocação para recepcionar variada atividade turística e recreativa.

02: Sistemas de Gestão e Governança


85
Paralelamente muitos desafios se colocam para o PEPB. Desde o período colonial a região sofre grande pressão: a extra-
ção do pau-brasil no início, continuando com os sucessivos ciclos da cana de açúcar, café e pecuária. Em seguida, outros ciclos
mais locais como o plantio de laranjas e de bananas, sendo que este cultivo continua avançando nas áreas de floresta. Dentro do
parque persistem atividades conflitantes com a categoria de manejo da unidade, dentre as quais numerosas moradias, atividades
agropecuárias, mineração e captação clandestina de água, dentre outras (INEA, 2013).
Uma gestão ambiental que busque melhor condução dos problemas e conflitos ambientais como os que atingem o
PEPB deve considerar as percepções e necessidades dos diferentes atores sociais, como enfatizado por Gonçalves & Hoeffel
(2012), de modo a se chegar a soluções culturalmente mais viáveis e portanto mais longevas e que não levem a um isolamento
cognitivo das áreas naturais em relação à sociedade. Estratégias amparadas apenas na legislação, fiscalização e tecnologias têm
resultados incipientes, parciais e de curto prazo (FADINI, 2005).
Os chamados Sistemas de Informações Geográficas Participativas (SIGP) têm sido bem sucedidos na investigação da
percepção e dos valores dos atores sociais sobre o meio ambiente (RAMBALDI et al., 2006). O enfoque participativo desta abor-
dagem pode trazer a revelação e incorporação das necessidades, saberes e desejos das pessoas afetadas pelos processos de
tomada de decisão, no âmbito do planejamento e gestão territorial (RAMBALDI et al., 2006). O método tem auxiliado também
no entendimento dos benefícios imateriais dos serviços culturais ecossistêmicos para o ser humano. Como exemplo, Raymond
et al. (2009) quantificaram e mapearam a distribuição espacial do capital natural e de 31 serviços ecossistêmicos listados pelo
relatório da Avaliação Ecossistêmica do Milênio (MEA, 2005), na Bacia de Murray-Darling, Austrália, com base na percepção
das pessoas.
Os SIGPs têm sido usados para estabelecimento de corredores ecológicos, identificação de hotspots socioecológicos,
identificação de relações de apego entre as pessoas e a natureza e na avaliação dos benefícios potenciais das áreas verdes
urbanas (BROWN; SCHEBELLA; WEBER, 2014).
Neste estudo avaliamos os benefícios imateriais associados a sete serviços culturais ecossistêmicos no PEPB pela abor-
dagem SIGP, de modo a subsidiar vários aspectos de sua gestão.

Materiais e Métodos
Área de estudo
O Parque Estadual da Pedra Branca localiza-se no centro geográfico do município do Rio de Janeiro. Com 12.500ha, com-
preende todas as encostas do maciço da Pedra Branca acima de 100m do nível do mar (Figura 1). Abriga o Pico da Pedra Branca,
ponto culminante do município (1.024m de altitude) e numerosos outros morros.
Papel de destaque pode ser atribuído à unidade no equilíbrio climático e regulação dos processos ecossistêmicos da
cidade do Rio de Janeiro, por suas características e pela inserção em região muito industrializadas (INEA, 2013).
O entorno do parque apresenta fragmentos de mata atlântica e locais de visitação contíguos à unidade. Predomina no
entorno a expansão urbana desordenada, mas ainda há pequenas propriedades rurais e sítios e cinco UC que ajudam a proteger
remanescentes florestais.

Levantamento dos serviços culturais percebidos


Com base no Relatório de Avaliação Ecossistêmica do Milênio (MEA, 2005a), fez-se uma seleção dos serviços mais
adequados para a pesquisa. Foram selecionados oito dentre as 10 categorias citadas: Beleza Cênica; Recreação e Ecoturismo;
Relações Sociais; Sistemas de Conhecimento; Valores Educacionais; Religião e Espiritualidade; Diversidade Cultural e Herança
Cultural. Senso de Lugar e Inspiração foram excluídos por serem inadequados para a abordagem proposta. As categorias Siste-
mas de Conhecimento e Valores Educacionais foram unificadas já que são conceitos complementares e interdependentes.
Para levantamento e mapeamento dos serviços percebidos, foram realizadas 69 entrevistas, com os três grupos identifi-
cados como de interesse pelo plano de manejo do parque: 1) moradores do parque; 2) visitantes; 3) funcionários. As pessoas en-
trevistadas foram aquelas que aceitaram a abordagem, em seis locais geograficamente distantes: sede do Pau da Fome, na face
leste; Núcleo da Piraquara, face norte; Núcleo do Camorim, face sudoeste; Posto avançado de Vargem Grande, face sul; Posto
Avançado do Rio da Prata, face oeste, e na trilha de acesso ao parque de Barra de Guaratiba, no extremo sul do parque (Figura 1).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 1. Localização do Parque Estadual da Pedra Branca no município do Rio de Janeiro e os locais onde as
entrevistas foram realizadas (Fonte: elaboração própria).

As entrevistas foram feitas nos finais de semana e feriados entre dezembro de 2012 e julho de 2013, com apoio de ques-
tionário semiestruturado com duas partes. Primeiro, os entrevistados eram solicitados a mapear, conforme sua percepção, a
ocorrência de cada um dos serviços culturais na área de estudo; em seguida, respondiam questões gerais sobre: frequência de
visitação, tempo gasto na unidade por visita, idade, sexo, grau de escolaridade, bairro de residência e renda. Coletaram-se ainda
impressões do entrevistado acerca da natureza do parque e o histórico da sua relação com a unidade.
Para auxiliar o mapeamento, foram disponibilizados em superfície imantada três mapas em tamanho A1, escala 1:15.000,
cada um correspondendo a uma porção do parque, cobrindo o todo. O entrevistado podia escolher quais mapas usar e tinha à
sua disposição cinco pequenos imãs para cada um dos sete serviços culturais, diferenciados por cores, para plotar nos locais
onde ele identificou a ocorrência de cada serviço.

02: Sistemas de Gestão e Governança


87
Análise de dados
A análise dos serviços culturais identificados na Tabela 1 considerou: 1) em termos espaciais, identificação dos hotspots
(áreas onde foram os serviços culturais foram percebidos) e coldspots (áreas onde os serviços culturais não foram percebidos)
de cada um dos serviços culturais, a partir de grade regular com células de 400m x 400m; 2) correlação (coeficiente de pear-
son) entre frequências de percepção dos serviços culturais identificados; 3) frequência de distribuição dos serviços por grupo
de entrevistado; e 4) análise qualitativa dos discursos sobre a relação com ao parque, classificados a posteriori nas categorias:
a) satisfação de interesses e necessidades, b) sentimento de prazer, c) sentimento de cuidado com o lugar, d) sentimento de
enraizamento, e) sentimento de identidade, f) sentimento de dependência.

Resultados
Dos 68 entrevistados, 79% eram homens e 21% eram mulheres, com média de idade de 39 anos. Do total, 40% termina-
ram o ensino médio e apenas 4% não completaram o ensino fundamental. Pouco mais da metade (53 %) ganha até três salários
mínimos. A frequência de visitação de 34% dos turistas não chega a uma vez por mês na unidade. Do total dos entrevistados, 19%
estão de dois a cinco anos frequentando o parque. Conhecimento razoável sobre o parque foi declarado por 35% dos entrevis-
tados. Apenas 13% disseram ter conhecimento excelente. Sobre natureza, 43% declararam ter um razoável conhecimento. Dos
moradores, 54% alegaram ter um bom ou excelente conhecimento e 9% declararam ter baixo conhecimento.

Frequência de serviços ambientais por grupo entrevistado


Os entrevistados usaram 875 pontos para mapear sua percepção dos sete serviços culturais investigados. Beleza Cênica
foi o serviço mais marcado (256 pontos: 55 de funcionários, 76 de moradores e 125 de turistas). Recreação e Ecoturismo, o se-
gundo mais marcado: 159 pontos (funcionários: 41; moradores: 47; turistas: 71). Relações Sociais foi o terceiro, com 143 pontos,

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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sendo o segundo mais marcado entre moradores e turistas (54 e 73 pontos respectivamente). O serviço de informação ficou em
quarto lugar: 122 pontos. Diversidade Cultural, Herança Cultural e Religiosidade e Espiritualidade tiveram 81, 78 e 36 pontos
respectivamente.

Concentração espacial de serviços culturais


Quase todo o parque teve serviços culturais identificados, com maior concentração de pontos no centro-norte, leste e sul
do parque, nas proximidades da sede do parque, do Açude do Camorim e das praias selvagens (Figura 2)

Figura 2. Densidade de pontos marcados em malha regular de 400mx 400m, considerando todos os serviços culturais.
Quadrados azuis: nenhum ponto; quadrados vermelhos: de 44 a 59 pontos marcados.

Correlações na percepção dos serviços culturais


As áreas percebidas como bonitas, no parque, apresentam forte correlação com as áreas tidas como propícias para re-
creação (R=0,85), e com áreas para interação social (R=0,77). Áreas para recreação e relações sociais estão também fortemente
relacionadas (R=0,78). Áreas percebidas como propícias para a manifestação da diversidade cultural apresentam moderada
correlação com áreas percebidas como religiosas ou espirituais (R=0,65, Tabela 2).

02: Sistemas de Gestão e Governança


89
Relação dos entrevistados e a unidade
Pela análise dos discursos, tem-se que a relação de apego ao parque difere razoavelmente entre os grupos e entre seus
próprios integrantes. Entre os turistas, 35% vincularam a sua relação com o parque à satisfação de interesses e ao sentimento
de prazer. Neste grupo, 12% falaram de sentimento de cuidado com a natureza abrigada no parque, 3% têm um forte sentimento
de enraizamento com o local e 1% identifica-se com a região. Dos moradores, 16% sentem-se vinculados ao parque a partir de
sentimentos de enraizamento e 7% a partir de sentimentos de identidade, uma vez que grande parte dos moradores entrevistados
nasceu e foi criada no parque. Ainda sobre esse grupo, 6% demonstraram apego ao local com declaração de sentimentos de
cuidado com o lugar e 3% com sentimentos de dependência. Dos funcionários, 12% reportaram sentimentos de identidade que
os vinculam ao local, 3% reportaram de sentimentos de cuidado e 1% a satisfação de interesses e necessidades.

Discussão
Esse estudo procurou avaliar a riqueza do Parque Estadual da Pedra Branca em termos de serviços culturais a partir da
percepção de moradores, visitantes e funcionários da unidade de modo a levantar questões para o manejo da unidade, sem que
se pretenda extrapolar para algo como análise da importância do PEPB para a sociedade carioca, que estaria para além do pos-
sível com a amostra realizada.
Os resultados revelam o quanto o PEPB é rico em serviços culturais percebidos, associados a ecossistemas e paisagens
e ao seu potencial em oferecer benefícios imateriais aos visitantes. A unidade engloba muitas áreas que possuem significados
subjetivos de ordem educativa, cênica, espiritual, religiosas, interativa, recreativa, diversamente cultural e hereditária para cada
um dos grupos.
De forma similar aos resultados dos estudos conduzidos por Brown, Montag & Lyon (2011), a apreciação da beleza
cênica, recreação e interação social foram os benefícios culturais mais mapeados pelos entrevistados e que apresentaram maio-
res índices de correlação entre si. Esta relação pode se dar pelo fato da beleza cênica estar associada ao grau de preservação
percebido dos ecossistemas e seus processos naturais e motivar a prática do ecoturismo, esportes ao ar livre e interação social
(MEA, 2005).
Os resultados também reforçam a constatação de que as pessoas percebem os serviços culturais diferentemente, de
acordo suas origens, coerente com os achados de Plieniger et al. (2013). Enquanto turistas relatam majoritariamente sentimentos
de prazer e cuidado com o parque, os moradores relatam sentimentos de enraizamento e identidade. De fato, ao considerar os
níveis de percepção, é comum que os grupos humanos revelem suas bagagens experienciais distintas devido a elementos como
cultura, ocupação, faixa etária, gênero, nível socioeconômico, entre outros, que revelam percepções sob diversas formas, inclu-
sive em relação às mesmas áreas (GONÇALVES; HOEFFEL, 2012).
A identificação e mapeamento dos hotspots de serviços culturais podem ajudar a revelar o grau de coincidência espacial
entre benefícios percebidos pelos usuários e o reconhecido e proposto nos instrumentos de gestão da área (BROWN; MONTAG;
LYON, 2011). No caso do PEPB viu-se que, em geral, ao redor dos atrativos já identificados oficialmente pela gestão do parque
concentram-se boa parte as áreas percebidas pela beleza cênica e oportunidades de interação social e aprendizado – em parte
o plano de manejo valorizou atrativos já usados pela população, por outro lado, a população usufrui com mais intensidade e co-
nhece aquilo que é divulgado. É importante mencionar que os moradores conhecem um número grande de atrativos históricos e
naturais no parque que ainda não foram identificados e mapeados pelos administradores da unidade.
Benefícios religiosos e espirituais também foram reportados pelos entrevistados. Parte desta percepção está associada
às igrejas católicas e evangélicas que servem como local de manifestação e referência religiosa para os moradores e visitantes.
Outros locais com exuberância natural também estão relacionados à religiosidade e sentimentos espirituais, embora não pos-
suam uma referência religiosa clara. Em geral, devido à sua riqueza natural, especialmente pelas matas e cachoeiras, associada
à tranquilidade em meio ao ambiente urbano em que o PEPB insere-se, a área acaba por ser muito procurada por pessoas que
buscam expressar sua religiosidade (INEA, 2013). O entendimento das motivações, valores e atitudes que envolvem a percepção
dos indivíduos, entre eles, os entrevistados da pesquisa, é fundamental para gestores de um parque das proporções do PEPB,
localizado no centro da segunda maior cidade do Brasil. Compreender essa percepção poderá, por um lado, auxiliar a adminis-
tração a melhorar o diálogo com os moradores na unidade e mitigar o impacto ambiental causado por sua presença na região,
por outro, poderá subsidiar a elaboração de programas que agreguem valores socioculturais aos ativos naturais da unidade na

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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gestão do uso público. É possível assim que o manejo do parque, a partir levantamento das percepções dos principais atores
sociais sobre este ecossistema, fortaleça os elos entre os usuários e o PEPB, tornando a unidade mais conhecida da população
e contribuindo ainda mais para a qualidade de vida urbana.

Referências
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02: Sistemas de Gestão e Governança


91
MUDANÇAS AMBIENTAIS NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DE
ANHATOMIRIM SOB A PERSPECTIVA DA COMUNIDADE LOCAL

Zignani, Isabela1; Hanazaki, Natalia1 & Simões-Lopes, Paulo Cesar de Azevedo1

1. Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Ecologia e Zoologia e PPG em Ecologia e Zoologia, email: isa_zig@hotmail.com

Resumo
A APA de Anhatomirim (APAA) é uma UC de Uso Sustentável que foi criada com o principal objetivo de proteção da população
residente de Sotalia guianensis (botos-cinza).Estudos recentes sugerem que a APAA está sofrendo mudanças ambientais, assim
como alteração na área de ocupação dos botos-cinza. Nosso objetivo foi de investigar as percepções de moradores locais da
APAA sobre essas mudanças. As informações foram coletadas através 76 entrevistas individuais com moradores locais, dos quais
35% são pescadores artesanais. Todos os entrevistados perceberam mudanças ambientais na APAA e seu entorno e 84% per-
ceberam mudanças na área de ocupação dos botos-cinza. A consideração das percepções locais sobre mudanças pode trazer
indicativos importantes sobre a efetividade da UC, com vistas para uma gestão participativa, assim evidenciar possíveis conflitos
com órgãos fiscalizadores.

Palavras-chave: Áreas de Proteção Ambiental, Mudanças Ambientais, Botos-cinza.

Introdução
No Brasil, as Unidades de Conservação (UC) compõem o principal mecanismo para conservação in situ da biodiver-
sidade (PRIMACK; RODRIGUES, 2001). Tais UC compreendem duas grandes divisões: as Unidades de Proteção Integral e as
Unidades de Uso Sustentável (BRASIL, 2000). Áreas de Proteção Ambiental (APAs), inseridas no contexto de Uso Sustentável,
compreendem a categoria de UC que possui maior área total em território brasileiro (CNUC/MMA, 2014).
Tal categoria tem como objetivo básico “proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegu-
rar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais” (BRASIL, 2000). Para garantir que estes objetivos sejam alcançados, a gestão
participativa e a efetiva implementação do plano de manejo e de seu zoneamento, constituem um tripé fundamental. A presença
de moradores em UC de Uso Sustentável fortalece a necessidade de entendimento da interface entre pessoas e recursos na-
turais, de modo a garantir e monitorar a funcionalidade do uso sustentável com a conservação da natureza.
A zona costeira de Santa Catarina é uma das regiões mais densamente povoadas no Estado e importante polo para ativi-
dades econômicas, tais como portos, indústrias, pesca e turismo. A maior parte dessas atividades utiliza-se dos atributos naturais
para se desenvolver, o que é notório no caso das atividades portuárias, turísticas e pesqueiras (BRASIL, 2011). Esta zona abriga
nove UC Marinho-costeiras, com diferentes instâncias de gestão: cinco federais, duas estaduais e três municipais (ECOMAR,
2010) e diversas categorias de manejo.
A APA de Anhatomirim, localizada ao norte da ilha de Santa Catarina foi criada em maio de 1992 e se enquadra como
UC de uso Sustentável, o que possibilita a permanência de populações em seu interior e exploração sustentável de recursos
(BRASIL, 2011). A criação desta UC tem como objetivos fundamentais a preservação dos remanescentes de Floresta Ombrófila
Densa e proteção das áreas de alimentação, reprodução e descanso da população de boto-cinza (Sotalia guianensis), que tem
nesta região o limite austral de sua ocorrência (SIMÕES-LOPES, 1988).
Estudos recentes sugerem que a população de Sotalia guianensis, residente na Baía Norte vem demonstrando uma
tendência de alteração em seus padrões de ocupação de áreas, onde se tem observado uma gradual diminuição da frequência
de relatos de avistagem dessa espécie nas áreas onde, no passado eram comumente avistadas, como na Baía dos Golfinhos,
chamada também de Baía dos Currais (BRASIL, 2013).
Nos últimos 23 anos, além da tendência de alteração nos padrões de ocupação dos golfinhos, a APAA e o seu entorno vem
sofrendo um acelerado desenvolvimento urbano e intensa atividade turística gerando ou intensificando problemas ambientais e
estruturais, tais como ocupação das encostas, tratamento de esgotos domésticos e poluição (FLORIANI, 2005). Diversos outros
componentes da APAA, apresentam-se ameaçados por este acelerado desenvolvimento urbano, como: a avifauna, herpetofauna,

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mastofauna, por perda de seus habitats originais e os recursos pesqueiros, com a depleção de estoques ao longo dos anos
(BRASIL, 2013).
Relatar a percepção da comunidade local quanto a mudanças ambientais é de fundamental importância para o enten-
dimento e avaliação da situação das UC e para averiguar se estas estão cumprindo, de fato, o papel da conservação biológica
com integração da comunidade local. Considerando-se a relevância das populações humanas locais como condições para a
conservação da biodiversidade, a Etnobiologia tem como objetivo analisar a classificação das comunidades humanas sobre a
natureza, em particular sobre os organismos (BEGOSSI, 1993). Investiga como a natureza é vista, manejada e apropriada pela
população humana.
Os estudos sobre Etnoecologia visam também contribuir com estratégias para a conservação da biodiversidade e melho-
ria da qualidade de vida humana. Os esforços conservacionistas devem, também, estar endereçados para os problemas sócio-
econômicos destas populações locais que dependem direta ou indiretamente da biodiversidade (HANAZAKI, 2003). Assim, o
conhecimento ecológico tradicional pode complementar o conhecimento científico através do fornecimento de experiências
práticas derivadas da convivência nos ecossistemas e respondendo a mudanças deste, numa perspectiva que converge com as
propostas de manejo adaptativo (HOLLING; BERKES; FOLKE, 1998).
Sob o enfoque da Etnoecologia, o presente estudo visa compreender e avaliar a percepção da comunidade local da
Costeira da Armação quanto às mudanças ambientais locais, os conflitos e expectativas referentes à APAA e o delineamento
das áreas atuais de ocupação da espécie S. guianensis. Como referência temporal inicial partiremos dos registros de Ferreira,
Hanazaki & Simões-Lopes (2006) sobre os conflitos ambientais e a conservação do boto-cinza na visão de uma comunidade da
APA de Anhatomirim.
O objetivo geral deste trabalho é de investigar a percepção da comunidade local quanto a mudanças ambientais na APAA
e seu entorno, tanto em relação ao ambiente quanto em relação aos botos-cinza.

Metodologia
Área de estudo
A APA de Anhatomirim está localizada no município de Governador Celso Ramos, compreendendo área marinha e ter-
restre com um total de 4.602,6 hectares (WEDEKIN; DAURA-JORGE; SIMÕES-LOPES, 2002). A área marinha da APA de Anha-
tomirim é constituída por enseadas e praias, incluindo a Ilha de Anhatomirim, onde se localiza a Fortaleza de Santa Cruz, a En-
seada da Armação e a Baía dos Currais. A população humana residente no interior da APA está distribuída em seis localidades:
Areias de Baixo, Caieira do Norte, Praia do Antenor, Costeira da Armação, Fazenda da Armação e Armação da Piedade. Como
núcleo adjacente à Baía dos Golfinhos, local de maior incidência dos botos da espécie S. guianensis, a comunidade da Costeira
da Armação foi selecionada para o estudo. A comunidade da Costeira possui como principal prática econômica a pesca arte-
sanal e, mais recentemente, o turismo.

Planejamento da amostragem
O cálculo do esforço amostral e delineamento foi baseado no universo de 282 moradores da comunidade e 10% de erro
amostral (BARBETTA, 2002), seguindo os critérios de inclusão: ser maior de 18 anos e residente fixo ou temporário da Costeira
da Armação há pelo menos cinco anos. Após a obtenção de anuências prévias e do consentimento do entrevistado por meio do
aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a coleta de informações foi realizada através de entrevistas individuais,
com questões abertas e fechadas.
As questões visaram analisar a percepção dos moradores locais sobre as mudanças ambientais, estruturais e sociais
percebidas na UC e seu entorno. Cada evento percebido como mudança foi classificado como mudança positiva, negativa ou
neutra, pelo próprio entrevistado. Os resultados obtidos nas entrevistas foram analisados através de estatística descritiva (eg.
porcentagens, médias) e comparados com a literatura.

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Resultados
Características da população amostrada
Foram realizadas 76 entrevistas,entre os meses de dezembro de 2014 e fevereiro de 2015, com moradores adultos, sendo
41 homens (54%) e 35 mulheres (46%), com média de idade de 52 anos e a maioria de origem local. Dos entrevistados, 35% são
pescadores, 21% são donas-de-casa, 16% são aposentados, 8% trabalham com atividades ligadas ao turismo (comerciantes,
restaurantes e embarcações de turismo) e 15% possuem outras ocupações ou desempregados (funcionário público, autônomo
e lavrador) (Figura 1).

Figura 1. Ocupação dos moradores entrevistados na comunidade da Costeira da Armação,


Área de Proteção Ambiental de Anhatomirim, Santa Catarina.

Percepção das mudanças ambientais


Todos os entrevistados perceberam mudanças ambientais na APAA e seu entorno. Os entrevistados citaram de 2 a 11
mudanças, sendo o número total de citações de 410. As mudanças percebidas pelos moradores da comunidade foram refe-
rentes à Fauna e Flora local e do entorno (38%) – mais mata, mais animais, desmatamento, presença de Pinus, rios, botos-cinza;
Estruturais (23%) - problemas no saneamento básico, asfaltamento local, construções; Turismo (13%); Fiscalização/Proibições
(13%) - delimitações, arrastão na Baía, defeso, caça e roça; Outros (7%) - marisqueiras, peixes, mato e mar; Pesca Artesanal (6%)
- mudanças nos artefatos de pesca e embarcações (Figura 2 e 3).

Figura 2. Mudanças ambientais relatadas pelos moradores entrevistados na comunidade da Costeira da Armação,
Área de Proteção Ambiental de Anhatomirim, Santa Catarina.

As mudanças relatadas quanto à Fauna e Flora e Fiscalização/Proibições e Turismo apresentaram-se positivas diante da
percepção dos moradores locais, destacam-se Fauna e Flora com 58% das respostas positivas, como aumento da mata nas en-
costas e Turismo com 56% das respostas positivas, relacionadas ao retorno financeiro aos moradores locais. Mudanças relativas
à Pesca artesanal, Estruturais e Outras, apresentaram-se em sua maior proporção de respostas como negativas, destacando-se a
Pesca artesanal, relatada negativamente com 81% das respostas, como as proibições de arrasto artesanal na Baía dos Golfinhos
e Outras mudanças com 73% das respostas negativas, como a mudança na área de ocupação dos botos-cinza.

02: Sistemas de Gestão e Governança


95
1957(1) 2015(2)
Figura 3. Imagens aéreas da Baía dos Golfinhos, adjacente a comunidade Costeira da Armação. As imagens foram tratadas da mesma cor
para melhor visualização das mudanças, como na Fauna e Flora (aumento da mata nativa) e estruturais (asfalto e residências).(1) Imagem
aérea cedida pelo Governo de Santa Catarina - Secretaria de Estado do Planejamento. (2) Imagem aérea Google Maps (2015).

Percepção da mudança da área de ocupação dos botos da espécie Sotalia guianensis


Quando perguntados sobre o que achavam dos botos da região, 54% dos entrevistados relataram que o boto trazia bene-
fícios para a comunidade, como aumento do turismo e ajuda na pesca; 44% relataram que os botos não interferiam em suas
atividades; 1% não soube responder; e 1% relatou que os botos traziam prejuízos para a pesca, pois estes comiam os peixes que
os pescadores artesanais poderiam pescar.
A mudança na área de ocupação dos botos-cinza foi percebida por 84% dos entrevistados, sendo que, quando pergun-
tados sobre observarem os botos em seu local de maior ocorrência, Baía dos Golfinhos, 72% não os observa na Baía, 28% ainda
observam, relatando “de vez em quando”, “raramente vê” e “observo pela manhã antes dos barcos de turismo chegarem”. A
média de anos relatada da mudança de área foi de nove anos e o local atual de maior frequência dos botos citado por 58% dos
entrevistados foi a Baía de São Miguel, localizada nas proximidades da APA de Anhatomirim.
O maior número de citações relatadas quanto às possíveis causas da mudança de área de ocupação da espécie foi
relacionada com a presença de barcos de turismo (escunas) dentro da Baía dos Golfinhos (45 citações). A proibição do arrasto
dentro da Baía, com 19 citações, foi relatada como uma das causas da mudança de área dos botos, pois quando o arrasto era
permitido, os pescadores artesanais relatam que jogavam o chamado “comedio” (peixes pequenos ou sobras de peixes) para os
botos, onde estes viam oportunidade de comida fácil e assim permaneciam no local.
Os mesmos informantes entrevistados que mencionaram sobre o arrasto relataram que os botos migraram para a Baía de
São Miguel, por esta prática não ser proibida ali. Outras citações como causas da mudança foram: lanchas (“voadeiras”), ausên-
cia de comida, poluição da água pelo óleo das escunas, lixo e traineiras (tipo de barco de arrasto) dentro da Baía, as quais não
são permitidas. Uma das sugestões de parte dos entrevistados, para que os botos voltem a frequentar a Baía, com assiduidade,
seria a de proibir a entrada de escunas nesta Baía e diminuir a quantidade destas pela área da APA de Anhatomirim. Entretanto,
é importante destacar que a sugestão não é consensual entre todos os entrevistados.

Discussão
As mudanças locais citadas são mudanças que ocasionam interferência direta para os entrevistados, como problemas de
saneamento básico e proibições e delimitações relacionadas ao uso de recursos, o que pode intensificar conflitos de uso entre mo-
radores e gestão da UC. O relato de mudanças tais como os problemas com a fiscalização na pesca, persistem ao longo do tempo,
sendo relatadas no trabalho de Ferreira, Hanazaki & Simões-Lopes (2006), que coletou dados na mesma comunidade em 2004.
O maior de número de citações relacionadas à Fauna e Flora local e entorno da APAA referiam-se à regeneração da
mata nativa e um aumento no número de animais silvestres. Tal aumento deve-se às proibições de desmatamento e aberturas de
roças no interior da APAA, previstos pelo seu Plano de Manejo. O turismo é uma atividade recente na comunidade, muito intensa
e problemática para alguns moradores locais. Além do retorno financeiro, benéfico para a comunidade, os turistas geram pro-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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blemas ambientais e estruturais, tais como ocupação das encostas, necessidade de tratamento de esgotos domésticos e au-
mento da poluição (FLORIANI, 2005).
Uma sugestão de moradores para a mudança percebida relacionada à área de ocupação dos botos Sotalia guianensis
foi a de proibir a entrada das escunas na Baía dos Currais, local que, há cerca de dez anos apresentava-se como local residente
desta população de botos. A sugestão de organizar e diminuir o número de escunas por toda área da APAA também foi men-
cionada, similar ao que foi apresentado por Ferreira, Hanazaki & Simões-Lopes. Esta percepção dos moradores nos mostra o
seu interesse, para a conservação dos botos-cinza da região que, além de trazer benefícios para a comunidade, como o retorno
financeiro, contribui para a sua conservação.

Conclusões
A consideração das percepções locais sobre mudanças pode trazer indicativos importantes relacionados a conflitos
com órgãos de fiscalização e com a própria UC, onde moradores se sentem prejudicados à medida que muitas restrições são
impostas e não são discutidas alternativas para o seu sustento, principalmente para a comunidade de pescadores artesanais. No
caso de mudanças identificadas como positivas, elas também podem ser indicativos da efetividade de ações de gestão da UC.

Referências
BARBETTA, P. A. Estatística aplicada às ciências sociais. 5ª ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2002.

BEGOSSI, A. Ecologia Humana: Um Enfoque Das Relacões Homem-Ambiente. Interciência, v 18, p. 121-132, 1993.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza: Lei n. 9.985, de 18 de
julho de 2000; Decreto n. 4.340, de 22 de agosto de 2002. Decreto n. 5.758, de 13 de abril de 2006. Brasília: MMA/ SBF, p.76, 2011.

BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservaçãod a Biodiversidade. Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental de
Anhatomirim – Encarte 2: Diagnóstico da APA de Anhatomirim. Florianópolis, p. 35-46, 2013.

BRASIL. Lei 9.985, de 18 de Julho de 2000. Publicada no Diário Oficial da União em 19 de Julho de 2000.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm Acesso em 30 julho 2014.

CNUC/MMA. Tabela consolidada das Unidades de Conservação. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/images/arqui-


vo/80112/UCporCategoria0214.pdf>Acesso em 30 julho 2014.

ECOMAR. 2010. Santa Catarina. Disponível em: www.ecomarbrasil.org. Acesso em 20 março 2014.

FERREIRA, M. C. E.; HANAZAKI, N.; SIMÕES-LOPES, P. C. A. Os conflitos ambientais e a conservação do boto-cinza na visão da
comunidade da APA de Anhatomirim, Sul do Brasil. Natureza & Conservação, Curitiba, v.4, 2006.

FLORIANI, D. C. Situação atual e perspectivas da área de Proteção Ambiental do Anhatomirim – SC. 2005. Dissertação
(mestrado em Geografia), Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.

HANAZAKI, N. Comunidades, conservação e manejo: o papel do conhecimento ecológico local. Biotemas, Florianópolis, v. 16,
n. 1, p. 23-47, 2003.

HOLLING, C. S.; BERKES, F.; FOLKE, C. Science, sustainability and resource management. In: BERKES, F.; FOLKE, C. (eds.)
Linking ecological and social systems: management practices and social mechanisms for building resilience. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1998.

PRIMACK, R.B.; RODRIGUES, E. Biologia da Conservação. Londrina: Ed. Planta. 2001.

SIMÕES-LOPES, P. C. Ocorrência de uma população de Sotalia fluviatilis (Gervais,1853) (Cetacea, Delphinidae) no limite sul de
sua distribuição, Santa Catarina, Brasil. Biotemas, v. 1, n. 1, p. 57-62, 1988.

WEDEKIN, L.; DAURA-JORGE, F.G.; SIMÕES-LOPES, P.C. Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, 3., 2002, For-

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taleza. Desenho de unidade de conservação marinha com cetáceos: estudo do caso do boto-cinza, Sotalia guianensis, na Baía
Norte de Santa Catarina, sul do Brasil. Anais..., Fortaleza, p. 56-62, 2002.

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MALÁRIA E DENGUE: IMPRESSÕES SOBRE A SAÚDE DA POPULAÇÃO RIBEIRINHA
DO PARQUE NACIONAL SERRA DO DIVISOR, ESTADO DO ACRE

Lana, Raquel Martins1; Oliveira, Francisco Giovane Silva De2; Schlosser, Andreus Roberto3; Arruda, Rayanne Alves De.3; Araújo,
Felipe Monteiro De3; Santos, Ana Caroline Santana Dos3; Bastos, Paula Rubia Jornada3; Silva-Nunes, Monica Da3;
Honório, Nildimar Alves4,5 & Codeço, Cláudia Torres6

1.Doutoranda do PPG em Epidemiologia em Saúde Pública, Escola Nacional de Saúde Pública Fiocruz, raquelmlana@gmail.com.
2. Graduando de Biologia, Universidade Federal do Acre. 3. Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Acre.
4.Laboratório de Transmissores de Hematozoários, Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz. 5. Núcleo Operacional Sentinela de Mosquitos
Vetores-NOSMOVE/Fiocruz. 6. Programa de Computação Científica, Fiocruz.

Resumo
Em fevereiro de 2015 foi realizado um inquérito domiciliar junto à população residente do Parque Nacional Serra do Divisor,
localizado no noroeste do estado do Acre, com o objetivo de caracterizar essa população em relação ao perfil socioeconômico
e principalmente em relação à saúde com foco em malária, conhecimento sobre dengue (recente na região) e impressões autor-
referidas sobre a saúde. Os resultados do inquérito mostraram que quase 100% da população relata ter tido malária alguma vez
na vida, mas nos últimos 12 meses, apenas 21%. Em sua totalidade, quase todos os entrevistados tinham conhecimento sobre a
dengue e mais da metade considerava seu estado de saúde como bom (42%). Das principais queixas de saúde, estão problemas
nos rins, coluna e gastrite e as demandas mais mencionadas são a necessidade de médicos, medicamentos e agentes de saúde.

Palavras-chave: Saúde, Malária, Dengue, População Ribeirinha.

Introdução
A Organização Mundial de Saúde aponta a exclusão social como importante causa de desigualdade em saúde (WHO,
2008). A exclusão social, sendo essa definida como o não acesso à direitos, independente da existência de leis que os garan-
tam, retira das pessoas suas formas e instrumentos de crescimento e autodeterminação (OLINDA, 2006). Para compreender e
interferir no binômio exclusão/inclusão e saúde/doença, é necessário aprofundar nos determinantes sociais da saúde a nível
local. Seguindo o modelo de Dahlgren e Whitehead, o conhecimento do ambiente de trabalho, de vida, o acesso aos serviços de
saúde, a habitação, e alimentos, interagem com hábitos e estilos de vida individuais, e é na complexidade dessa interação que
as políticas de redução de iniquidade em saúde devem ser pensadas (DAHLGREN; WHITEHEAD, 1992; BUSS; FILHO, 2007).
O alvo do presente estudo é a população residente no Parque Nacional Serra do Divisor (PNSD), localizado no noroeste
do estado do Acre, na fronteira do Brasil com o Peru. Criado em 1989 pelo Decreto Nº 97.839 (BRASIL, 1989), o PNSD protege
o divisor de águas das bacias hidrográficas do Médio Vale do Rio Ucayali no Peru e do Alto Vale do Rio Juruá no Acre, uma das
áreas de maior biodiversidade do país (PNSD, 1998).
Essa população tem hábito ribeirinho e descendem em sua maioria de nordestinos ex-seringueiros, que antes da implan-
tação do parque, tinham como principal atividade econômica a agricultura de subsistência, além da seringa, pesca, pecuária de
pequeno porte, extrativismo, extração madeireira, caça de subsistência e comercial (PNSD, 1998).
As populações ribeirinhas na Amazônia apresentam especificidades no que tange aos riscos à saúde decorrentes do
ambiente, das condições de vida e de trabalho em que vivem (LIMA; POZZOBON, 2005). Localmente, essas populações estão
expostas à um ambiente de alta diversidade biológica, baixa densidade demográfica, e difícil implementação de medidas sani-
tárias, assim como o difícil acesso aos serviços de saúde, componentes esses, que favorecem a exclusão e o aumento do risco
de adoecer. Além disso, há também um fluxo migratório entre a população ribeirinha e a sede das cidades (PNSD, 1998), o que
favorece o contato com agravos típicos de áreas urbanas.
Nas últimas décadas, ocorreram muitas mudanças no estado do Acre, e em particular na região do Alto Juruá, onde o parque
se localiza. Uma intensificada política de desenvolvimento levou à implantação de diversos assentamentos rurais, inclusive na área
de transição do PNSD, bem como programas de incentivos fiscais para estimular a pecuária e a instalação deatividades de piscicul-

02: Sistemas de Gestão e Governança


99
tura.A pavimentação da BR-364 ligando o Alto Juruá à Rio Branco permitiu a maior mobilidade da população humana, contribuindo
para aumentar a atratividade do Alto Juruá para migração e trabalho, e além disso, para o turismo. Programas de governo como
o “Luz para Todos” e Programas Assistenciais como Bolsa Família, também modificaram a forma de viver dessas populações.
Nesse contexto, duas doenças transmitidas por artrópodes vetores são de importância epidemiológica no estado do Acre,
e interesse particular desse estudo: malária e dengue. A malária é uma doença tratável, mas que pode resultar em alta mortali-
dade, na ausência de assistência. Na região do Alto Juruá, a malária é importante causa de morbidade e carga de doença, tendo
sido registrado epidemias nos últimos 20 anos (SVS/MS, 2014). Os municípios de Mâncio Lima e Rodrigues Alves, municípios
com maior número de casos de malaria do Alto Juruá, relataram, em 2013, um índice parasitário anual de 250 lâminas positivas
por 1000 habitantes por Plasmodium vivax e 80 lâminas positivas por 1000 habitantes, de malária por Plasmodium falciparum
(SVS/MS, 2014). Sabe-se que o Anopheles darlingi, principal vetor da doença no país, está presente nessa região, onde encontra
ambiente favorável a sua manutenção em florestas inundadas e tanques de piscicultura (principalmente em áreas rurais e urba-
nas – fora do PNSD) (REIS, 2015).

Figura 1. Mapa de localização do PNSD no estado do Acre, estados vizinhos e países de fronteira.
Em amarelo, os limites do PNSD no noroeste do Acre. Fonte: ICMBio, 2015.

A dengue, por sua vez, era ausente no Acre até o final dos anos 90, enquanto praticamente todos os estados brasileiros
registravam importantes epidemias (NOGUEIRA et al., 1999). A partir do ano 2000, viu-se a dengue sendo introduzida e dissemi-
nando-se pelo estado do Acre, de forma a tornar-se atualmente uma das prioridades de controle na região (MS/SINAN, 2014).
Em 2014, a primeira epidemia de dengue assolou a região do Alto Juruá com um pico de 200 casos notificados em uma semana
no mês de setembro desse ano. Em 2015, até a semana epidemiológica 23, a taxa de incidência era de 750 casos por 100.000
habitantes (SVS/MS, 2015).
A dengue coloca em risco não só a população local urbana mas aquela que vive no ambiente silvestre e que comuta
entre os dois espaços. A mobilidade da população entre área urbana e ribeirinha expõe essa última aos agravos típicos do meio
urbano, tornando-a de especial interesse para a vigilância epidemiológica e para a assistência em saúde. Do ponto de vista da
vigilância, trata-se também de uma população exposta à novos patógenos, na qual o diagnóstico diferencial é muito difícil devido
às dificuldades de acesso.
Nessa perspectiva, este estudo visa contribuir para um melhor conhecimento das condições de vida da população ribei-
rinha residente no PNSD em relação à exposição à duas doenças de naturezas etiológicas distintas, uma predominantemente
silvestre e local (malária) e outra importada (dengue), para as quais existem políticas públicas bem definidas a nível nacional.
Além disso, caracterizar os principais problemas em relação à saúde da população e o acesso à assistência.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Metodologia
Área de Estudo
O estudo foi realizado no setor norte do Parque Nacional da Serra do Divisor-PNSD (7°16’9°4’ S, 72°43’74° O), ao longo
dos Rios Moa e Azul. O encontro desses dois rios define o início do PNSD, que se estende pela margem direita do Rio Azul, a
montante, e ambas as margens do Rio Moa, também a montante. No Rio Azul, as localidades encontravam-se em sua maioria na
margem esquerda, que constitui uma área de assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
O Rio Moa segue até a Serra do Divisor.
Nesse setor norte, o parque é vizinho de áreas indígenas (Nukini e Naua) e do Projeto de Desenvolvimento Sustentável
(PDS) São Salvador. É também onde se encontram os principais atrativos turísticos do parque, na Serra do Divisor (GUERRA,
2004). O único acesso é por barco, e a sede municipal mais próxima é a cidade de Mâncio Lima, de 4 a 8 horas de viagem, de-
pendendo da embarcação e época do ano.

Descrição da Expedição
O inquérito domiciliar foi realizado em fevereiro de 2015 durante 7 dias por uma equipe de 9 pessoas além de 3 guias
que também foram responsáveis pelo transporte, acomodação e introdução da equipe às comunidades. O ponto de partida foi
o porto de Mâncio Lima, no Rio Japiim, seguindo primeiramente pelo Rio Azul até a Comunidade Bom Sossego e retornando ao
cruzamento dos dois rios, seguindo pelo Rio Moa até a Comunidade Serra do Moa.

Dados
Entrevistas por meio de questionário foram aplicadas ao responsável pelo domicilio, maior de 18 anos, em uma amostra
de 107 domicílios em 14 das 26 localidades ao longo dos rios. A entrevista era feita após a explicação do objetivo da pesquisa e a
assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. O questionário coletou informações sobre: características do domicílio,
hábitos e costumes dos moradores, em particular associado ao risco de malária, características sócio-demográficas, morbidade,
e acesso ao serviço de saúde.
O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação
Oswaldo Cruz (nº 861.871). Além disso foi obtida a autorização do ICMBio para a realização das atividades no PNSD (nº 46911-1).

Descrição das variáveis e Análises


Foram analisadas as variáveis relacionadas à saúde da população, além de variáveis demográficas como idade e sexo
do responsável pelo domicilio. As variáveis “Malária pelo menos uma vez na vida” e “Malária nos últimos 12 meses” (Sim/Não)
foram construídas a partir de perguntas sobre a primeira malária, a última malária e malária nos últimos 12 meses. As variáveis
coletadas sobre dengue foram: “Ouviu falar de dengue (Sim/Não)”, “Já teve dengue” (Sim/Não), “Conhece alguém que já teve
dengue” (Sim/Não) e “Sabe como se pega dengue” (Sim, Não, Parcial). A impressão do entrevistado em relação à sua saúde
foi baseada na pergunta: “O que acha do seu estado de saúde?”, categorizada em Ruim, Regular e Bom, e a pergunta “Quais os
problemas de saúde você tem?”. Em relação aos serviços de saúde, perguntou-se quais as principais demandas para melhorar
a saúde da população.
Análise exploratória das variáveis acima foi realizada utilizando-se gráficos de barra e tabelas de medidas resumo. Os
gráficos foram feitos no software R Core Team versão 3.1.1 (2014).

Resultados
Caracterização da População
Foram entrevistados 23 domicílios ao longo do Rio Azul e 84 no Rio Moa. A Tabela 1 mostra a relação de localidades
visitadas, o número estimado de domicílios por localidade e o número e porcentagem de domicílios entrevistados. Do total de
entrevistados 35% eram do sexo masculino e 65% do sexo feminino. A idade variou de 18 anos (mínimo exigido para a entrevista)
a 76 anos, com média de 39 anos.

02: Sistemas de Gestão e Governança


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Caracterização das condições do domicilio (Luz, Água e Esgoto)
Dentre os domicílios entrevistados, um terço não fazia uso de energia elétrica, recorrendo ao uso de velas, lanternas,
lamparinas e a poronga (iluminação utilizada pelos seringueiros). Os 2/3 restantes fazem uso de energia produzida via gerador.
Normalmente cada domicílio tem o seu gerador, ou dependendo da localidade, um é ligado em mais de um domicílio, e então,
esses dividem as despesas com o combustível, que são altas. O uso do gerador é restrito às primeiras horas da noite, variando
de 1 a 3 horas ligado.
A água utilizada para cozinha e banho é retirada diretamente dos rios, igarapés e cacimba, e normalmente usada sem
tratamento. Alguns moradores relataram o uso de cloro na água de beber, mas esse uso está condicionado à disponibilidade nos
postos de saúde. No comércio, não existe produtos de higienização de água para venda. Nas localidades e/ou domicílios em
que era possível, a fossa é utilizada como sistema de esgoto. No entanto, em algumas localidades o alagamento do rio dá-se até
a porta dos domicílios, assim, a construção de fossa é inviável e as necessidades são feitas na mata.

Renda
Dois terços das famílias entrevistadas recebem algum tipo de auxílio financeiro do governo, sendo o mais comum o bolsa
família. A bolsa verde (assentamentos) e o auxílio pesca (para não pescarem na época de reprodução dos peixes) também foram
constantemente mencionados. Além das bolsas, a renda da população provem predominantemente do cultivo e venda da farinha
de mandioca. Com a redução do valor da saca de farinha, essa atividade encontra-se desvalorizada.

Malária, dengue e saúde da população


Dos 107 entrevistados, 92% relataram ter tido malária pelo menos uma vez na vida. Já nos últimos 12 meses, de fevereiro
de 2014 a fevereiro de 2015, 21% dos entrevistados tiveram malária (Figura 2).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 2. Proporção dos 107 entrevistados residentes do PNSD que relataram ter tido malária, pelo menos
uma vez na vida (3 colunas da esquerda), ou nos últimos 12 meses (3 colunas da direita)

Em relação à dengue (Figura 3), praticamente todos os entrevistados já tinham ouvido falar da doença (97%), enquanto
apenas 3% afirmaram ter tido dengue e 89% conheciam alguém que já teve. Mas somente 34% tinham algum conhecimento so-
bre a transmissão da doença e 2% sabia pelo menos parcialmente como se transmite a dengue, afirmando ser pela água e pelo
mosquito.

Figura 3. Proporção dos 107 entrevistados residentes no PNSD que afirmaram já ter ouvido falar da dengue, ter tido dengue,
conhecer alguém que teve dengue e sabem informar como se pega dengue.

Sobre as impressões da população em relação ao seu estado de saúde, 42% considera ter boa saúde, enquanto 36% con-
sidera ter uma saúde regular e 21% afirma ter a saúde ruim (Figura 4). Dentre as principais queixas estão a pressão alta, problema
nos rins, coluna e gastrite. Alguns entrevistados relataram mais de um problema de saúde (Tabela 2).

Figura 4. Impressões sobre o estado de saúde coletadas em 107 entrevistados no PNSD em fevereiro de 2015.

02: Sistemas de Gestão e Governança


103
Demandas da população e acesso aos serviços de saúde
A falta de médicos e medicamentos foi apontado como o maior problema de assistência de saúde (Tabela 3). Muitas
vezes os entrevistados afirmavam ter acesso apenas ao diagnóstico e tratamento de malária mas que para qualquer outro agravo,
era preciso se deslocar até a cidade de Mâncio Lima. A falta de agentes de saúde também foi apontado como outro problema,
já que anteriormente a municipalização da saúde, em geral, todos os postos tinham a presença constante de agentes. Também
mencionaram o fato de que muitas localidades terem posto de saúde, mas grande parte não está funcionando. Na data da
pesquisa, muitos moradores referiram recorrer à Área Indígena Nukini, onde há um posto de saúde com agente mantido pela
Comissão Pró-Índio do Acre, de esfera federal. A falta de microscopista, enfermeiro e dentista também foram reclamações fre-
quentes. Na maioria das vezes, não pediam a presença diária desses profissionais, sugeriam que fosse uma vez por semana ou
mesmo uma vez por mês.

Discussão
O presente estudo constatou que a população do PNSD em alguns aspectos ainda necessita de maiores investimentos.
Apesar do Programa Luz para Todos, não existe uma distribuição uniforme de energia elétrica, que é totalmente vinculada às
condições de compra de combustível. Isso tem impacto na segurança alimentar, pois a população não tem como estocar alguns
alimentos, recorrendo a formas primitivas de conservação como o sal e o açúcar. As práticas de consumo de água e saneamento
observadas resultam em alto risco de contaminação já que muitas vezes a população toma banho, lava roupa e louça nos mes-
mos corpos d’água utilizados para cozinhar e beber. Estudos em outras regiões similares da Amazônia mostram a alta endemi-
cidade de hepatite A em populações ribeirinhas, claramente relacionado à essas condições precárias de higiene (PAULA et al.,
2001). O desafio, porém, é implantar um sistema eficaz de tratamento de água e esgoto em uma área protegida e com tantas
regiões de difícil acesso. Mesmo com a construção de fossas, determinadas regiões necessitam de uma adaptação, uma vez que
o alagamento impossibilita a construção das mesmas.
Em relação a renda, não existe uma organização que formalize o comércio na região, para escoamento dos produtos
como a farinha de mandioca (principal produção), feijão, milho, entre outros. Além disso, a saca da farinha foi desvalorizada

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104
devido a concorrência com grandes produtores e o combustível para levar a produção de barco é extremamente caro, o que
muitas vezes inviabiliza o escoamento rápido da produção. Portanto, benefícios como o Bolsa Família, Bolsa Verde e Auxílio Pesca
são essenciais para que essa população garanta o mínimo de que precisa para sobreviver.
Ainda sim, nas localidades mais distantes, os moradores só conseguem ir à cidade retirar o benefício bimestralmente,
assim como comprar produtos de primeira necessidade para estoque até a próxima ida. Uma consulta à população, sobre o
interesse e a possibilidade de um serviço mensal de banco móvel poderia ser importante do ponto de vista da inclusão social.
Assim como um comércio mensal com itens de primeira necessidade. Caso fosse realmente uma demanda, poderia ser feita
uma parceria com a população para que isso acontecesse.
A organização em cooperativas para escoamento da produção agrícola, com capacitação e participação intensa da popu-
lação nas decisões e na mão de obra também poderia garantir melhores condições de trabalho e renda, assim como apontado
por SILVA et al. (2013). Mas é importante lembrar, que o PNSD é um parque nacional e por isso tem algumas restrições quanto
a forma de produção agrícola e extrativismo. De acordo com SILVA (2007), é importante ter as populações tradicionais e seu
conhecimento como parceiros na organização de Unidades de Conservação.
Assim como na década de 90, a população ainda recorre a plantas medicinais ou automedicação e somente em último
caso, as famílias se deslocam para a sede municipal de Mâncio Lima ou para o Hospital de Cruzeiro do Sul. Esse padrão de
busca por atendimento se repete em algumas áreas protegidas, como por exemplo na RESEX Catauá-Ipixuna (ANDRADE &
SATO, 2013).
Em alguns domicílios visitados, foram encontrados moradores doentes há vários dias e quando eram questionados o
porquê de não terem buscado atendimento, a justificativa era que no posto mais próximo só tinha atendimento para malária e
já tinham feito o teste, ou então, não estava funcionando e se deslocar para a cidade, era um custo alto, o que no momento não
podiam arcar. Essa situação se mostra uma demanda a ser solucionada pela inclusão social, e, no entanto é delicada, uma vez
que não é possível ter atendimento médico em toda e qualquer localidade devido à falta de recursos humanos e financeiros e a
distância. Por outro lado, as populações locais não têm condições financeiras de se deslocar sempre que necessário e muitas
vezes permanecem doentes até suportarem e de preferência, coincidir com a época de irem a cidade retirar os benefícios e
vender a farinha.
Sobre a malária, a maioria sabia que a transmissão era veiculada pelo mosquito anofelino, também conhecido como
carapanã, mas normalmente, pareciam não acreditar nessa explicação. Isso pode influenciar no uso do mosquiteiro (distribuído
gratuitamente pela equipe de Endemias da região) e outras proteções contra malária. O fato de ter havido uma redução na
transmissão de malária após uma grande epidemia em 2005/2006 (SVS/MS, 2012 e 2014) também faz com que isso não seja con-
siderado um grande problema para a população, resultando em descuido com a proteção e aceitação dos mosquiteiros. Muitos
moradores relataram que os agentes passaram pelas localidades e deixaram os mosquiteiros nos domicílios sem dar muitas
instruções, nesse caso, um trabalho delicado de educação sobre malária deveria ter sido feito, para que os mosquiteiros fossem
bem aceitos e tivessem o fim desejado.
A dengue apesar de ser recente na região, é uma doença conhecida pela população do PNSD devido a campanha em
massa apresentada na televisão, atividade que praticamente todos fazem ao anoitecer enquanto o gerador de luz fica ligado.
Portanto, mesmo nas localidades mais distantes a doença era conhecida e mais da metade dos entrevistados sabia dizer como
se transmite a doença, mesmo essas localidades não sendo propícias ao desenvolvimento do mosquito Aedes aegypti, transmis-
sor do vírus dengue. Entretanto, é essencial esse conhecimento para essas populações, pois de 2 em 2 meses ou uma vez por
mês, eles se deslocam para as cidades mais próximas para retirar os benefícios, quando, então, ficam expostos à dengue. Em
sua maioria, a população não sabia como se prevenir da doença, poucas menções foram feitam sobre evitar acúmulo de água e
uso de repelente.
Interessante notar que, em sua maioria a população se considera com a saúde boa ou regular. As principais queixas apre-
sentadas podem ser um indicativo do tipo de trabalho exercido, que exige bastante esforço físico, o que pode explicar as dores
e problemas na coluna, que provavelmente se confundem com problemas renais. No entanto, as condições de higiene também
podem explicar o alto índice de relatos de problemas estomacais e renais, o último também se confundindo com infecções
urinárias. A pressão alta que apareceu em 19% dos relatos, talvez esteja relacionada com o tipo de alimentação e uso exces-
sivo do sal para conservar alimentos. Seria importante realizar um acompanhamento mais detalhado sobre essas queixas para

02: Sistemas de Gestão e Governança


105
confirmar as verdadeiras causas e propor alguns intervenções que pudessem melhorar a qualidade de vida dessa população.
Sobre as principais demandas mencionadas, é interessante pontuar as grandes dificuldades de se deslocar aos centros
urbanos, uma vez que o deslocamento compromete parte significativa da renda mensal e com a desvalorização da saca de
farinha, isso tem se acentuado. No entanto, quando se referem à presença de médicos, medicamentos e agentes, muitos men-
cionam que poderia ser uma vez por mês, no máximo uma vez por semana, ou mesmo, em localidades mais próximas, para que
desse modo, não ficassem tão dependentes do combustível para terem acesso à saúde.

Considerações Finais
Viver em áreas protegidas é complexo, uma vez que configuram uma diversidade de atores sociais e por consequência,
divergências de ideias, interesses econômicos, políticos, culturais e sociais (CABRAL, 2010). O estabelecimento de políticas
públicas locais deveria ser feito sempre após consulta à população e não decisões fechadas e restritas aos órgãos estatais,
uma vez que em sua maioria, elas têm suas próprias vontades e necessidades, e quando essas políticas são implantadas sem a
vontade dos mesmos, estão fadadas ao insucesso (IRVING, 2006; CABRAL, 2010). Dessa forma, propor políticas públicas para
populações residentes em áreas protegidas, seja na saúde, educação e economia, é um desafio para os gestores, que precisam
identificar as principais carências da população e qual a melhor forma de amenizá-las e um desafio para a população, que pre-
cisa se fazer presente nas decisões que impactam suas vidas.
Dentre a diversidade de determinantes sociais em saúde descritos pelo modelo de Dahlgren e Whitehead (DAHLGREN;
WHITEHEAD, 1992), os fatores hereditários da população do PNSD não foram caracterizados no presente estudo, porém pode
ser fruto de um novo trabalho, com uma equipe especializada na área. No nosso estudo, o foco foi a inclusão social dentro da
saúde, mas ainda há muito o que analisar com os dados coletados sobre educação, renda, hábitos e costumes. Em um panorama
geral, observamos que há evidências de exclusão social e desigualdades dentro dessa população. Concluindo apenas sobre a
saúde, isso é evidente quando os residentes do PNSD precisam recorrer à outras localidades para ter acesso à saúde e quanto
mais distante o local de residência, maior é a exclusão, ou seja, o acesso à assistência.
Como sugestão, a criação de serviços de saúde intermitentes, com prioridades e intervalos bem estabelecidos junta-
mente à população, poderia ser uma alternativa para amenizar a assistência à saúde na região, bem como um barco disponível
somente para encaminhar a população quando necessário, ao local apropriado para o tipo de necessidade do paciente. Vale
ressaltar ainda que seria necessário uma forma de comunicação viável entre os operadores do barco e a população.
A médio e longo prazo, uma política de promoção da saúde, em todos os seus aspectos e com intensa participação
dos moradores, feito em cada localidade (seria impossível realizar essa atividade ao mesmo tempo para todos os residentes
do PNSD, porque algumas localidades são muito distantes e isso acarretaria custos altos à população), seria interessante para
caracterizar à fundo e corrigir os principais problemas identificados como a falta de assistência à saúde, à uma educação de
qualidade, água limpa, esgoto, habitação e alimentação adequadas, trabalho estável e organizado em cooperativas. Ou seja, há
deficiências em todos os setores, setores esses, que trabalham muitas vezes sem parceria, acarretando prejuízo para a popula-
ção, pois é necessário que haja uma ação integrada desses setores para que a exclusão social seja revertida no PNSD.

Agradecimentos
ICMBio, principalmente ao Diogo Koga, Secretarias de Saúde e Endemias de Mâncio Lima, SESACRE, barqueiros Gilson,
Jorge, Genilson, equipe, moradores do PNSD, FAPERJ e CNPq. À Thais I. S. Riback por toda ajuda na confecção dos gráficos.

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ÁREAS PROTEGIDAS: PARA QUEM PROTEGÊ-LAS? O SENTIDO DE
PERTENCIMENTO COMO VIA PARA VALORIZAÇÃO SOCIOCULTURAL
EM ÁREAS NATURAIS PROTEGIDAS

Abreu, Manuela Muzzi de1; Irving, Marta de Azevedo1; Lima, Marcelo Augusto Gurgel de1 & Correa, Frances Vivian1

1.Universidade Federal do Rio de Janeiro, manuelamuzzi@gmail.com

Resumo
As áreas protegidas representam uma das principais estratégias de proteção da natureza e sua criação implica em transforma-
ções socioespaciais no território em que se inserem. Frequentemente são criadas em locais de elevada biodiversidade e que
abrigam também populações tradicionais, que estabelecem seus modos de vida e sua organização socioeconômica com base
na relação direta de uso da natureza. Este artigo apresenta uma discussão teórica resultante de uma dissertação de mestrado do
Programa de Pós-graduação EICOS/UFRJ. Buscou discutir a importância de se considerar estas relações sociais preexistentes
no território para a criação de áreas protegidas, uma vez que se constata a necessidade de valorização sociocultural e de se pro-
porcionar benefícios sociais, para que a importância da conservação da biodiversidade seja incorporada como parte da história
de vida da população local.

Palavras-chave: Pertencimento, Áreas protegidas, Territorialidades, Valorização sociocultural.

Introdução
A criação de áreas protegidas é uma forma de proteger recursos naturais, ecossistemas e biomas de sua degradação
ou extinção, em escalas local e global, haja vista a sobrexploração a que vem sendo expostos desde meados do século XVIII,
período da Revolução Industrial. As mudanças provenientes dos avanços técnico-científicos vêm trazendo consequências desas-
trosas ao ambiente, tais como o desequilíbrio ecológico e a deterioração do próprio modo de vida humano (GUATTARI, 1980).
Estas transformações vêm sendo observadas desde quando o sistema de produção passou a demandar muito mais o uso da
natureza do que nos séculos anteriores. A partir de então, a natureza passa a ser vista como recurso, e vem sendo incorporada
pelo mercado, baseada nos pilares expansionistas nos quais a modernidade capitalista-industrial se constrói (IRVING; GIU-
LIANI; LOUREIRO, 2008).
Assim, a preocupação com a questão ambiental e os debates em relação à proteção de áreas naturais como estratégia
para a conservação da biodiversidade vem se afirmando, cada vez mais, como prioridade em pesquisa e em políticas públicas.
Sua criação traz diversos benefícios em termos de recuperação e manutenção do equilíbrio ecológico de uma região consi-
derada como prioritária para a conservação da biodiversidade local. No entanto, vale considerar que estas regiões não estão
isoladas; se inserem no espaço geográfico e, portanto, interagem de alguma forma com o meio antrópico que está ao seu redor
ou seu interior. Assim, é importante se pensar em maneiras de criar interações positivas que agreguem valor e benefícios àqueles
que convivem com tais espaços, para que compreendam a importância de sua existência e da conservação ambiental de forma
mais ampla.
A premissa deste artigo é que se a população que vive próxima das áreas protegidas não se sentir parte integrante de
tais áreas e, da mesma forma, que tais áreas fazem parte de suas vidas, será bastante difícil que estas percebam seu valor e im-
portância e que apreendam os benefícios da conservação de tal área natural. E isto não é desejável tendo em vista a importância
de se trabalhar sobre os conflitos para que sejam minimizados com o objetivo comum de melhorar a qualidade de vida desses e
também a qualidade ambiental de tais áreas.
O embasamento teórico partiu assim de uma releitura da dissertação defendida em 2015 no Programa de Pós-graduação
em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS), no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, intitulada “Territorialidade e Pertencimento: o olhar local sobre o Parque Estadual do Pico do Itambé”. Nesta, a relação
sociedade-natureza e as implicações sociais das áreas protegidas foram abordadas, trazendo, em seu estudo de caso, o olhar
local sobre a criação do Parque Estadual para compreender de que forma as territorialidades foram desconstruídas e recons-

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truídas, num processo de des-re-territorialização (HAESBAERT, 2012) e como sua relação de pertencimento ao território foi
transformada.
A partir disto, o presente artigo, resultante dessa dissertação, buscou levantar uma reflexão sobre a importância de se
considerar as relações socioeconômicas e culturais preexistentes no território para a criação de áreas protegidas, uma vez que
se constata a necessidade de se valorizar culturalmente a população local e trazer benefícios sociais a essa, para que incorpore a
importância da conservação da biodiversidade e a existência de uma área protegida em seu território, como parte de sua história
de vida.
Para tanto, a metodologia utilizada se baseou em um método qualitativo (MINAYO, 2004) de pesquisa social. A teoria, na
pesquisa social, é entendida como uma aproximação da realidade, numa tentativa de explicação parcial da mesma, procurando-se,
a partir dela, desvelar as subjetividades envolvidas nos significados, motivos, atitudes e valores de determinados grupos sociais.
Segundo esta linha de abordagem, a pesquisa foi fundamentada na leitura crítica sobre a relação sociedade e natureza
e os seus rebatimentos na legislação brasileira sobre as áreas protegidas, importante estratégia adotada para a conservação da
natureza, a partir da segunda metade do século XIX (IRVING; MATOS, 2006). Para avançar neste debate, foram ainda aprofun-
dadas as discussões a respeito das políticas públicas relativas à proteção da natureza no Brasil e de que forma elas abordam a
temática social e os conflitos que implicam. Além disso, foram analisadas em bancos de dados e anais de encontros científicos
como o Banco de Teses da Capes e os Anais do Seminário de Áreas Protegidas e Inclusão Social (SAPIS), em suas seis edições
(2005 a 2013) publicações e/ou pesquisas sobre a temática.

Áreas protegidas: para quem protegê-las?


Para além da própria criação de áreas protegidas e dos mecanismos pelos quais essa ocorre, é importante refletir tam-
bém sobre as implicações do processo de criação e implantação dessas áreas na dinâmica territorial do local em que são inse-
ridas. Sua criação gera diversas consequências, que vão desde intervenções na dinâmica ecológica quanto na reorganização
socioespacial, e esta implica em desdobramentos que influenciam diretamente na vida dos atores sociais locais.
Devido ao fato de que as sociedades constroem um entendimento do que seja a natureza, que é cultural, estas carregam
assim na construção de suas relações sociais e com o meio, uma concepção de natureza. E, por vezes, a visão dissociada entre
natureza e sociedade, resultado de um processo histórico, imprime na sociedade uma noção de dominação humana/cultural
sobre a natureza. No entanto, em outras sociedades que não aquelas urbano-ocidentais e industriais, podem ser observadas
outras formas de se relacionar com a natureza, uma vez que não se enxergam fora dela, compreendendo-se mais em comun-
hão com o meio. E, a atual situação mundial de problemas ambientais globais emergentes, é essencial que se construa um
novo pensamento, que parta de um lugar comum entre natureza e sociedade, considerando também a interdependência entre
cultura e natureza como fundamento básico para perpetuação tanto da diversidade biológica quanto da sociocultural (PORTO-
GONÇALVES, 2011).
De acordo com essa perspectiva, é primordial que se valorize outras formas de se relacionar com a natureza, a exemplo
das populações tradicionais, que tem um vínculo com a natureza, em alguns casos com o sagrado, considerando que a cultura
faz parte da natureza e, a natureza, da cultura (DIEGUES, 2004). Compreendendo a relação sociedade-natureza de forma indis-
sociada, conforme aquela estabelecida por algumas populações com o local onde vivem, para Diegues (2000) é importante que
no processo de criação das áreas protegidas se considere melhor a organização do espaço preexistente. Isto porque elas são
implantadas em lugares já habitados ou utilizados, mesmo que por uma parcela pequena da população, e de uma forma dife-
rente a daquela realizada pela população urbana.
Nesse sentido, o estabelecimento de áreas protegidas, em vez de ser baseado na ideia importada de “natureza selva-
gem intocada”, deveria fundamentar-se na concepção de “paisagem” ou mosaico de ecossistemas e habitats, construindo um
continuum entre porções de matas nativas até áreas de agricultura tradicional que, em muitos casos, constituem territórios de
comunidades tradicionais (DIEGUES, 2000).
No caso de lugares onde a base econômica é primaria, ou seja, a produção está ligada ao cultivo ou extração de recursos
naturais, a relação de populações tradicionais com o meio é de estreita ligação e dependência da natureza. Assim, impor uma
nova ordem a uma realidade previamente estabelecida, nesses casos, pode representar uma forma injusta de se construir uma
proposta de conservação, seguindo os moldes importados de países desenvolvidos. E esse pode ser um problema fundamental

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
110
da criação de áreas protegidas que não visam atender aos interesses dos locais, mas sim de um público externo.
Considerando a criação de um aparato legislativo direcionado a proteção e valorização do conhecimento tradicional e de
sua cultura, que envolve sua relação material e imaterial com o meio, e que os principais instrumentos brasileiros de proteção à
biodiversidade, como a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB, 2000), o Sistema Nacional de Unidades de Conserva-
ção (SNUC, 2000) e o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP, 2006) também incluem a questão da valorização
da sociodiversidade, é importante que haja uma integração das políticas em relação a sua aplicação prática. É necessária uma
releitura de tais instrumentos seguida por uma reinterpretação de forma conjunta, para que uma análise mais ampla seja rea-
lizada, a luz dos direitos garantidos aos povos tradicionais, tais como a autoidentificação, o direito ao uso do território e de seus
recursos, além da continuidade de suas tradições (SANTILLI, 2014).
Tais direitos são garantidos internacionalmente e foram internalizados no Brasil a partir da aprovação da Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada pelo Decreto nº 5.051/2004. Esta convenção legisla sobre os
direitos dos povos indígenas e tribais, mas é abrangente o suficiente para incluir populações tradicionais. Ainda, preconiza a
necessidade do consentimento dos povos diretamente envolvidos para qualquer restrição ao uso dos recursos no território tradi-
cionalmente usado por eles ou ocupado, sobre as possibilidades de reassentamento, ressaltando, inclusive que nas decisões
governamentais se considere o respeito a sua cultura e aos valores espirituais.
Seguindo e reforçando os acordos assumidos pelo país em âmbito internacional, alguns estados brasileiros inovaram
criando legislações específicas sobre o tema, como é o caso da recém criada Política Estadual para o Desenvolvimento dos
Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, Lei nº 21.147, de 14 de janeiro de 2014. Esta dispõe sobre a necessidade
de regularizar a propriedade sobre os territórios tradicionais, na condição de interesse social, para garantir sua reprodução
econômica, cultural e a preservação dos recursos naturais utilizados. Tais compromissos estaduais e nacionais chamam atenção
para a importância da valorização sociocultural e ao respeito à ligação e ao pertencimento da população tradicional com o ter-
ritório. Assim, Santilli (2014) destaca que a interpretação do SNUC deve considerar esses outros instrumentos legais vigentes,
tais como a PNPCT e a Convenção 169 da OIT, inclusive nos casos de criação de unidades de conservação de proteção integral,
se tratando de populações inseridas no território em voga ou próximo dos mesmos.
Entende-se que existe uma relação intrínseca entre diversas práticas culturais que dependem da diversidade biológica
para sua sobrevivência e que, por outro lado, a diversidade biológica também é garantida pelo manejo realizado de acordo com
os conhecimentos tradicionais de grupos sociais (UNESCO, UNEP, 2002). E este argumento é reforçado por Nazarea (2006),
que discute que a cultura local e a memória social são essenciais para a conservação da natureza, pois “possuem o papel de
repositório de alternativas, para que a diversidade cultural e biológica continuem florescendo”. Nessa perspectiva, a base cul-
tural local está diretamente ligada ao processo de conservação da biodiversidade, que possibilita o movimento da sociedade e
na qual apoia sua construção histórica.
Nesse sentido, as áreas protegidas são compreendidas, pela perspectiva de West, Igoe & Brockington (2006), como
“modos de ver, entender e (re)produzir o mundo”. A partir de sua análise antropológica, os autores alegam que a separação
sociedade-natureza reproduz o imaginário ocidental de natureza e cultura para o restante do mundo (GILLISON, 1980; JOHN-
SON, 2000; SEELAND, 1997; STRATHERN, 1980; apud WEST; IGOE; BROCKINGTON, 2006).
Estes autores apontam também importantes lacunas nos estudos sociais relacionados às áreas protegidas, menciona-
ndo que os mesmos carecem de aprofundamento, especificamente no que tange à dinâmica das populações em seu interior
e entorno. Para estes, as relações estabelecidas entre a população local e o ambiente são interpretadas, em geral, de modo
demasiado simplista, sendo geralmente compreendidas apenas como relações associadas ao uso de recursos (TSING, 2003;
WEST, 2005; apud WEST; IGOE; BROCKINGTON, 2006). Tal consideração representa um equívoco, pois nessa generalização
não são consideradas as relações de ancestralidade, de profunda ligação de povos com a natureza, que serve de alicerce para
a construção de sua cultura e de suas relações sociais.
West, Igoe & Brockington (2006) discutem que na literatura sobre áreas protegidas em geral, tais questões ainda não são
abordadas de forma clara e direta, como uma construção de novos espaços. E ressaltam a importância de se questionar “o que a
criação de novos lugares através da intervenção da conservação faz com os lugares sendo simbólica e materialmente remapea-
dos pelas topologias da conservação? Como essas produções do espaço alteram as relações sociais locais com o ambiente das
pessoas? E como alteram o modo com que as pessoas usam e atribuem sentido ao seu ambiente?”.

02: Sistemas de Gestão e Governança


111
No cenário brasileiro, especificamente, estas importantes lacunas são também reafirmadas pelo recente relatório do Ins-
tituto Semeia1, que comprova que apenas na minoria das UC do país são desenvolvidas pesquisas que geram algum benefício
para a população do interior ou entorno (SEMEIA, 2012). Esta constatação leva ao reconhecimento da necessidade de aprofun-
damento na discussão sobre a relação da sociedade com o espaço que habita, para uma melhor compreensão das transforma-
ções “sutis e profundas” (WEST; IGOE; BROCKINGTON & 2006) ocasionadas no modo de vida da população local a partir da
implantação de UC. Da mesma maneira, estas informações tendem a ser essenciais para que se possa interpretar o imaginário
local sobre a natureza preservada e como este se materializa na relação afetiva e de pertencimento destes grupos humanos com
o ambiente natural do qual faz parte ou é excluído, pela via das políticas públicas.
Para apoiar o debate teórico proposto, torna-se importante compreender a noção de territorialidade e a noção de perten-
cimento a ela associada, uma vez que estas dão sentido às construções sociais no espaço habitado. Tal reflexão é necessária
para orientar a análise das transformações territoriais ocasionadas pela implantação de áreas protegidas, especialmente no que
concerne ao modo de vida das populações locais. Nesse sentido, ressaltando a importância de se analisar o território e as ter-
ritorialidades, que representa a relação da população local com o espaço em que habita e constrói suas relações sociais.
Diante do exposto, é possível interpretar a noção de territorialidade também pelo viés da análise de Raffestin, como um
tripé, composto por sociedade, espaço e tempo (RAFFESTIN, 1993 apud ALBAGLI, 2004). Entende-se, portanto que o enfoque
territorial e o seu aprofundamento na discussão sobre territorialidades podem auxiliar na compreensão da dinâmica das relações
sociais e da relação sociedade-natureza em um contexto da criação de áreas naturais protegidas. Isso se justifica uma vez que
estas áreas formam novos territórios em um mesmo espaço, que se sobrepõe a outros existentes a priori (PIMENTEL; MAGRO,
2011). Assim, se sobrepõem também às territorialidades ali vivenciadas.
Esta complexidade de relações sobrepostas que dividem uma espacialidade e uma temporalidade constitui o foco desta
investigação. O questionamento levantado por Haesbaert (2009) inspira as reflexões que se pretende aprofundar:

Dentro do amplo continuum que vai desde os territórios construídos com propósitos meramente
funcionais (uma espécie de “controle de mão única”, típico do produtivismo capitalista) até aqueles
com forte carga simbólica e identitária, como restituir uma territorialização capaz de significar não
apenas um “controle” do espaço, em sentido estrito, mas também a sua produção e vivência em
novas bases, onde “controlar” ou “exercer poder” signifique também “afetar” – na dupla condição
de afetarmos e sermos afetados pelo ambiente que criamos. Pois, como lembra Spinoza, o aumen-
to do nosso poder para agir significa também o crescente poder de sermos transformados – pelo
“afeto” – dos outros e do território que indissociavelmente construímos (HAESBAERT, 2009, p.16).

A partir da compreensão sobre as territorialidades e o que as envolvem em termos de uma base material espacial e de
um corpo subjetivo criado pelas interações sociais territoriais, a reflexão passa a ser dirigida à temática de pertencimento. Este
é um ponto central para que se possam interpretar as territorialidades em um contexto de relação sociedade-natureza e da pro-
teção de áreas naturais.
A dimensão analítica e conceitual de pertencimento é compreendida aqui como um dos aspectos fundadores na cons-
trução das territorialidades, visto que atribui sentido à relação de identificação social de um grupo com determinado território.
Nessa direção, Diegues expressa um entendimento sobre territorialidade compreendendo-a “como noção de pertencimento a
determinado território, em cujos limites se reproduzem crenças mitos, práticas, ancestrais ou não, que reatualizam e revificam a
memória coletiva” (DIEGUES; ARRUDA, 2001 apud RODRIGUES, 2009).
O debate sobre pertencimento tem sido recorrente na literatura relacionada às ciências sociais principalmente no que
tange às questões étnicas, raciais e da participação em grupos sociais ligados ao esporte, à dança, à música, entre outros
(SILVA, 2012; SILVA, 2007). Nesta discussão, o termo é compreendido como uma dimensão subjetiva diretamente ligada à noção
de territorialidade. Uma importante reflexão que vai de encontro a esta fundamentação teórica é apresentada pelo economista
marroquino Hassan Zaoual (2006), que propôs a Teoria dos “sítios simbólicos de pertencimento” para estudar o desenvolvimento
e iniciativas locais nos países do “Sul”.

1
INSTITUTO SEMEIA. Uso público e parcerias para conservação e desenvolvimento: a perspectiva dos gestores de unidades de conservação do Brasil. Análise 2012.
Disponível em: http://www.semeia.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=234%3Aanalise-das-ucs-do-brasil-em-2012&Itemid=58&lang=pt, acesso em:
10/01/14.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Este autor desenvolve sua argumentação com base nos problemas da importação de modelos, técnicas e projetos dos
países desenvolvidos para os países do “Sul”. Defende que é preciso haver uma adaptação à realidade local anterior à implan-
tação destes modelos importados nos países em desenvolvimento. Em sua obra, apresenta diversos casos de fracassos em
projetos que tinham a pretensão de trazer soluções para os problemas de desenvolvimento utilizando a mesma fórmula em
diferentes locais do mundo. Esses casos eram, em sua maioria, desenvolvidos na Europa ou nos EUA e trazidos como proposta
para a América Latina, África e Ásia. A partir de sua pesquisa, baseada em estudos empíricos e apoiada na obra de autores
como Amartya Sen, Zaoual constrói uma teoria que se debruça sobre a epistemologia do “homo situs”, ou o “homem situado”,
em detrimento do “homo oeconomicus”, utilitarista e oportunista. Este “homem situado” seria o “homem vivo concreto, cujo com-
portamento enraíza-se no território em que harmonia pressupõe a consideração da multiplicidade do comportamento humano”
(ZAOUAL, 2006, p.24).
Seguindo os pressupostos de sua teoria sobre os sítios simbólicos de pertencimento, Zaoual (2006, p. 210) define os sítios
como “um imaginário social, moldado pelas contingências e a trajetória da vida comum dos atores considerados”. Para o autor,
os sítios funcionam como uma “identidade imaterial”, que interfere nos comportamentos e nas “materialidades visíveis do lugar
ou região”. Conforme Walliser (2000, apud ZAOUAL, 2006), “o sítio é um vínculo cognitivo entre o ator e seu meio circundante”.
Segundo a perspectiva de Zaoual (2006), o sítio simbólico é uma “entidade invisível”, que se concretiza no modo de vida, na eco-
nomia, na cultura e na organização social. Assim, o sítio está presente em todos os aspectos da vida social, moldando, de certa
forma, o comportamento dos atores no território. E por ser uma “estrutura imaginária” que coordena os territórios, para o autor
esta estrutura atua de forma diferente da lógica do mercado, já que considera a dimensão econômica e social simultaneamente
(ZAOUAL, 2006, p. 18).
Relacionando os territórios “horizontais” e “verticais” de Milton Santos com os sítios simbólicos de pertencimento de Zao-
ual, Ribeiro (2006) reforça a ideia de Santos (2012) sobre a necessidade de se enfatizar as interrelações presentes nos territórios
horizontais. Considerando que “o território, que é simultaneamente espaço herdado e condição indispensável às resistências
sociais, opõe-se aos desenraizamentos estimulados pelo agir hegemônico e às fábulas que acompanham a globalização da
economia” (RIBEIRO, 2006, p. 8). Conforme a autora, o pensamento contra-hegemônico, que procura reforçar a importância da
defesa dos interesses locais, se refere a uma procura baseada na “valorização do território e, sobretudo, das territorialidades”.
A relação entre território e pertencimento é também expressa por Santos quando este define que o território é o espaço
usado. Para o autor, o território usado “é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”
(SANTOS, 2002 apud RIBEIRO, 2006).
Nesse mesmo sentido, para Zaoual (2006) a escala de abordagem mais pertinente para compreender a complexidade
das interações entre sociedade e seu meio é também a do território. O território é então fruto das relações sociais compartilhadas
entre os atores numa “realidade viva”, que é singular em cada espaço.
Ao abordar a temática de pertencimento, Little (2002) utiliza a ideia de homeland para traduzir o sentido de pertencer a
um território. Para o autor, “a situação de pertencer a um lugar refere-se a grupos que se originaram em um local específico, se-
jam eles os primeiros ou não” (LITTLE, 2002, p. 10). Mesmo se referindo ao caso de populações tradicionais e povos indígenas,
o autor afirma que é possível encontrar o sentido de pertencimento em grupos e/ou atores sociais mesmo que estes não tenham
nascido no território, mas que tenham constituído um grupo social e uma relação com o espaço.
Para Callai (2004), os sentimentos de identidade e de pertencimento dos atores sociais em relação ao território são cons-
truídos no espaço vivido, formado pelas diferentes dimensões da vida social e produtiva. E, por meio dos aspectos simbólicos,
como a memória e a cultura, é possível apreender sobre a identidade imaterial do território, que também é expressa material-
mente. Para a autora, a importância deste tipo de análise espacial está na compreensão do que as aparências não revelam como
a história de vida dos sujeitos, abrangendo seus interesses, disputas, motivações e articulações no território (CALLAI, 2004, p. 5).
Na sistematização da teoria dos sítios simbólicos de pertencimento, Zaoual (2006, p. 31) discorre sobre a associação que
ocorre nos sítios entre “os mundos simbólicos e morais dos homens e suas práticas cotidianas”, que traduz os aspectos materiais
e imateriais que coexistem em cada sítio. De acordo com o autor, os sítios não podem ser delimitados como espaços geométricos
pois, na verdade, correspondem ao campo imaterial que permeia a vida social no território.
Para melhor compreender e visualizar a forma pela qual se estruturam os sítios, o autor os organiza em três “caixas”, de

02: Sistemas de Gestão e Governança


113
acordo com seus componentes. A caixa que envolve os conhecimentos dos grupos sociais, que são acumulados e passados
pelas gerações em cada sítio seria a caixa conceitual. Esta forma um verdadeiro saber social, composto de conhecimentos tanto
teóricos quanto práticos. A caixa preta seria aquela que guarda os elementos simbólicos relativos aos atores e grupos sociais,
tais como os mitos, ritos, crenças e valores. Por fim, as técnicas, o modo de fazer e os modelos adotados pelos atores sociais
para agir em cada situação estão relacionados à caixa de ferramentas. Todas as caixas guardam conteúdos próprios a cada sítio,
contudo, os sítios não são inertes e fechados, mas ao contrário, são abertos ao mundo. A analogia das caixas é utilizada pelo autor
para explicar de forma didática o que os sítios guardam. Todavia, as caixas não operam isoladamente, elas interagem a todo o
momento e são acessadas pelos atores mediante as demandas de cada situação.
Nessa perspectiva, a crença possui um papel importante. Isto ocorre porque o sentido de pertencimento ao território so-
mente é realizado a partir do compartilhamento de crenças e de visões de mundo comuns entre os atores, que assim constroem
suas relações sociais (ZAOUAL, 2010). Para o autor, “o homem precisa crer, pertencer a algo e ser integrado em uma sociedade”
(ZAOUAL, 2006, p.16). Nesse sentido, a crença é um elemento que compõe a estrutura de funcionamento dos sítios, pois “a
crença motiva, a norma organiza e o comportamento executa” (ZAOUAL, 2006, p. 48).
Diante da caracterização do autor, os sítios representam, “comunidades de sentido, ou sistemas de pertencimento”. Os
sítios são relativos ao pertencimento dos atores a um determinado território em que constroem suas relações sociais, de ma-
neira geral. Nesse território, os sítios se manifestam em todas as dimensões da vida social, como observado pelo conteúdo das
“caixas”. Mesmo antes de se expressarem de forma material, os sítios existem como “fornecedores de balizamento” aos atores.
O sentido de pertencimento está expresso no sítio, pois este opera como “ponto de enraizamento” nos territórios, onde os sujeitos
encontram uma “área de estabilidade” aos fenômenos sociais, sejam essas materiais ou não (ZAOUAL, 2006, p. 35).
A partir do exposto, a perspectiva dos sítios simbólicos enriquece a análise sobre as territorialidades. Isto porque a
construção dos sítios considera a composição do território em seu viés material e imaterial, a partir da ótica local. Isso se justi-
fica uma vez que “os homens não se comportam da mesma maneira sob todas as latitudes e em todo tempo. Por natureza, são
mutáveis e conjugam vários imperativos ao mesmo tempo, em situações que escapam a toda abordagem monodisciplinar e
monocultural” (ZAOUAL, 2006, p. 36).
Assim, a teoria dos sítios e sua forma de analisar os territórios e principalmente as territorialidades são consideradas
como uma importante inspiração para analisar a organização social, a construção da territorialidade e ao sentido de pertenci-
mento da população local no estudo da dinâmica social e das transformações ocorridas nas regiões nas quais as áreas protegi-
das são criadas.

Considerações finais
A histórica cisão entre sociedade e natureza tem sido um dos principais desafios enfrentados para a implementação de
políticas públicas de proteção da natureza, principalmente no caso das áreas protegidas. Esta é uma temática também a ser
abordada pela pesquisa acadêmica, sobretudo considerando que as questões sociais envolvidas no debate sobre proteção da
natureza estão no cerne de inúmeros conflitos e dificuldades enfrentadas pela gestão pública. Apesar disso, são ainda raras
as pesquisas que incidem sobre esta problemática e, em especial, aquelas que abordam o tema pela perspectiva local. Neste
contexto, a pesquisa psicossocial e a valorização do saber local tendem a ser essenciais para a compreensão da complexidade
envolvida nas subjetividades sobre a natureza que, por sua vez, tem rebatimentos diretos nos modos de vida locais.
Com base nesse argumento, este artigo teve como objetivo central levantar a reflexão sobre a importância de se conside-
rar as relações socioeconômicas e culturais preexistentes no território para a criação de áreas protegidas e que benefícios soci-
ais sejam percebidos associados a tais áreas. Isto com o objetivo de que a população local incorpore a importância da conser-
vação da biodiversidade e a existência de uma área protegida em seu território, como parte de sua história de vida. Assim, esse
estudo foi desenvolvido segundo as perspectivas teóricas orientadoras de Zaoual (2006) e Haesbaert (2012). Este se insere no
debate sobre a criação de áreas protegidas, sendo esta uma das principais estratégias adotadas globalmente e também no caso
do Brasil, para a proteção da natureza. E, nesse viés, partiu-se do entendimento que as políticas públicas devem considerar a in-
dissociabilidade entre natureza e cultura conforme também discutido por Diegues (2000), Irving (2010) e Porto-Gonçalves (2011).
Por essa razão, optou-se pelo aprofundamento da leitura crítica sobre a dinâmica territorial local que se expressa, como
um caminho possível, para a compreensão da forma pela qual a sociedade transforma o espaço e se transforma, conforme dis-

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cutido por Santos (2006) e, também como as territorialidades são constituídas, como debatido por Haesbaert (2010).
A partir dessa discussão, é possível reafirmar que o sentido de pertencimento em relação às áreas protegidas tende a
ser essencial para o reconhecimento das iniciativas para a sua conservação. E assim, que as iniciativas dirigidas à conservação
da biodiversidade somente serão consideradas por parte dos grupos sociais envolvidos se também for valorizada, em políticas
públicas de proteção da natureza, a forma pela qual estes constroem social e historicamente o território.
No entanto, as transformações positivas ocasionadas na região pela criação da área protegida só tenderão a ser inter-
nalizadas pelos atores sociais se estes puderem compreender os benefícios dela decorrentes para os modos de vida locais,
não se sentindo apenas expropriados de suas origens e seu território. Com essa compreensão, e a valorização do sentido de
pertencimento às áreas protegidas, a sociedade poderia então se transformar em aliada do movimento dirigido ao processo de
conservação da natureza.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
116
PERCEPÇÕES DE TRABALHADORES E ESTUDANTES SOBRE A VIVÊNCIA DIÁRIA
EM LUGARES DE NATUREZA PRESERVADA NA CIDADE

Albuquerque, Dayse da Silva1; Sousa, Adria de Lima 2; Higuchi, Maria Inês Gasparetto3 & Kuhnen, Ariane4

1. Universidade Federal de Santa Catarina - PPG em Psicologia 2. Universidade Federal do Amazonas - PPG em Psicologia 3. HIGUCHI, M.I.G.
Pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e Docente do PPG em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas
4. Docente do PPG em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
O contato com a natureza tem sido apresentado como possibilidade para a redução do estresse advindo de atividades que
demandam concentração e respostas a inúmeros estímulos nos grandes centros urbanos. Nesse estudo, procurou-se verificar
as implicações das atividades de trabalho e estudo desenvolvidas em ambientes urbanos de natureza preservada. Foram en-
trevistadas 86 pessoas (50 estudantes e 36 trabalhadores) em dois campi na cidade de Manaus-AM. Buscou-se compreender as
percepções provenientes da vivência diária em fragmentos florestais urbanos. Com viés descritivo e exploratório, a análise de
conteúdo evidenciou percepções associadas à capacidade restaurativa desse ambiente florestado, culminando em sensações de
agradabilidade, em contraponto às possibilidades de perdas de benefícios decorrentes da ausência dessa natureza. Constatou-
se a relevância de investimentos em espaços com elementos naturais para o bem-estar biopsicossocial no desempenho de
atividades cotidianas.

Palavras-chave: Percepção Ambiental, Natureza, Ambiente de Trabalho, Ambiente Escolar, Bem-Estar Psicológico

Introdução
As cidades na Amazônia têm sofrido, assim como as demais metrópoles, um crescimento exponencial e desordenado.
Manaus, capital do Amazonas, já está no rol das grandes e problemáticas cidades, cuja expansão pressiona impiedosamente o
ambiente natural para dar lugar às construções. Apesar da grandiosidade da floresta amazônica, esta vai se transformando numa
paisagem distante e pouco desejada para o perímetro urbano destas cidades (DRAY, 2014). Restam atualmente apenas algumas
áreas protegidas, as quais ocupam 4,75% do perímetro do município. Tal fato contraria o mito de uma natureza próxima e presente
entre os manauenses, apesar de sua reconhecida importância (HIGUCHI, AZEVEDO; FORSBERG, 2012).
A reduzida existência de áreas de natureza preservada nas cidades não apenas compromete sua função ecológica, mas
sobretudo sua função psicossocial. Nas grandes cidades, o entorno é complexo e carregado de estímulos que formam paisa-
gens confusas e repetitivas. Não é difícil prever elevados níveis de estresse que o habitante sofre nesses contextos (MOSER;
ROBIN, 2006). A busca de compensações e reequilíbrio de energia diante desses fatores estressantes pode ser bem-sucedida
no encontro com paisagens que apaziguem o estado de estresse. Essas paisagens geralmente remetem a áreas verdes, infeliz-
mente cada vez mais distantes da cor cinza metropolitana.
Os benefícios da paisagem verde para a saúde têm sido constatados em vários estudos (KAPLAN; KAPLAN, 1989; UL-
RICH et al., 1991). O ambiente natural ganha destaque por apresentar elementos que ativam sentimentos capazes de modificar o
estado de espírito e produzir bem-estar físico e emocional. Atribui-se a esse fato sentimentos biofílicos, isto é uma predisposição
positiva que os seres humanos têm com a natureza a partir do reconhecimento dos seus benefícios e recompensas que oferece
(FEDRIZZI, 2011). Esses benefícios podem disparar aspectos sensibilizadores com relação à necessidade de proteção e cui-
dado ambiental (ALVES, 2011; CORRAL-VERDUGO, 2012).
Louis Wirth (1967), ao refletir sobre o urbanismo como modo de vida, afirma que nesse contexto há um distanciamento
cada vez maior das pessoas em relação aos elementos da natureza. Esse modo de vida predominantemente urbano tem gerado
implicações nos processos de saúde e doença das populações. Tais processos estão, entre outros aspectos, associados ao
afastamento de espaços restaurativos, propriedade inerente à natureza. A esse respeito, Simmel (1987), nos fala da atitude blasé
ou indiferença e embotamento frente a distinção das coisas, uma atitude predominante e possível das pessoas que vivem nas
grandes metrópoles que nos leva a refletir acerca dos impactos que essa atitude provoca no citadino.

02: Sistemas de Gestão e Governança


117
Para entender esse comportamento humano, a Psicologia Ambiental enfatiza a essencialidade do ambiente no qual se
desenvolvem as relações e interações humanas e o modo reciproco que faz com que ambos se afetem, gerando pensamentos,
emoções e comportamentos específicos em seus espaços de vida. Esses espaços são percebidos com o corpo e a partir da
relação com o outro, isto é, o mundo é percebido com todos os sentidos a partir da vivência imediata e também a partir dos sig-
nificados compartilhados diante da intersubjetividade (MERLEAU-PONTY, 1999).
Para Simmel (1987), os problemas mais graves da vida moderna derivam da pretensão do indivíduo de preservar a auto-
nomia e individualidade, desconsiderando a historicidade e a força sociocultural. Esse espaço, onde se dá a experiência dessa
individualidade, da autonomia e liberdade bem como da atitude blasé, é a cidade. O contexto urbano, como qualquer entorno,
desencadeia uma série de estímulos. Por ser um espaço construído pela própria sociedade, ocorre, não raro, a naturalização da
paisagem e de seus acontecimentos sociais onde se condensam aspectos de violências, desigualdades sociais, atos desuma-
nos, catástrofes e desastres ambientais. A cidade tem se tornado, assim, um espaço eminentemente insustentável seja pelo
afastamento da natureza e/ou pela massificação e naturalização do estresse urbano.
A sustentabilidade, vem sendo repensada nesta via de desencontros. Sustentabilidade requer uma distribuição equitativa
dos recursos e de acesso a todos os espaços que viabilizam uma melhor qualidade de vida e bem-estar. Quando o modo de vida
nas cidades não estimula tais requisitos, a sociedade deve discutir modos sustentáveis de existir, pois o que está em jogo é o
próprio existir do sujeito humano (CARVALHO; MANSANO, 2013). Tal reflexão não é simples, mas podemos iniciá-la repensando
a espacialidade presente na cidade. Como se configuram tais espaços nas cidades? Como os espaços de natureza preservada
se comunicam com os citadinos e como esses espaços de natureza preservada são percebidos pelas pessoas no cotidiano
urbano?
Uma forma de mergulharmos nesse imaginário que orienta as práticas de nosso cotidiano, são os estudos de percepção
ambiental. A percepção ambiental está relacionada a aspectos físicos, socioculturais e históricos que moldam as imagens dos
espaços que acessamos. A função de interpretar e construir significados, presentes no processo de formação das percepções
ambientais, define rumos importantes na apropriação e identificação dos lugares (HIGUCHI; KUHNEN, 2011). É nessa trajetória
racional e efetiva que a compreensão do mundo ocorre, fruto dos significados que atribuímos aos lugares que vivenciamos. Esse
processo se estabelece em um mundo no qual a pessoa está inserida, um mundo que envolve aspectos objetivos e subjetivos,
com características que são percebidas ou não, a que se atribui significados ou não, mas que culminam em implicações mútuas
(MERLEAU-PONTY, 1999).
Tais situações e pressupostos teóricos nos impulsionaram a investigar a percepção ambiental de trabalhadores e estu-
dantes que realizam suas atividades dentro de uma área caracterizada como fragmento florestal urbano, já reconhecida como
uma APA. O estudo aqui descrito buscou apreender os benefícios do contato diário dessas pessoas com uma área de natureza
preservada em meio urbano, bem como as implicações diante da possibilidade de perda desse cenário natural.
A proposta se insere na concepção de que tal entendimento pode auxiliar a construção de intervenções que promovam
tanto o bem-estar social quanto uma relação mais sustentável com os recursos naturais. Entende-se sustentabilidade não so-
mente como a capacidade de manter um ambiente e um estilo de vida favorável para si mesmo e para as sociedades futuras,
mas como um estilo que promove bem-estar e uma relação positiva entre a pessoa e seu entorno.

Lócus da Pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida numa Área de Proteção Ambiental (APA) instituída através do Decreto nº 1503/2012 pela
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS), onde se situam um campus universitário e um campus
de pesquisa científica na cidade de Manaus-AM. Localizada na zona centro-sul de Manaus, a APA reúne 759,15 hectares e é
formada pelos fragmentos florestais de um instituto de pesquisa, de uma Universidade Federal, um parque e um conjunto resi-
dencial. Nestas áreas a floresta é nativa com várias espécies de animais silvestres e pequenos córregos de água entrecortados
com alamedas e construções.
O campus universitário abriga o maior fragmento verde em contexto urbano do país e possui 6,7 milhões de metros
quadrados, com apenas 35% de área construída. A área florestal do instituto de pesquisa é de 23 mil metros quadrados, apesar
de não ser primária, está mantida como tal há mais de 40 anos. As duas áreas estão entrecortadas por uma via de rápido acesso
urbano. A APA mantém preservada inúmeras espécies da fauna e flora da região amazônica.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
118
Método
A pesquisa apresenta-se como descritiva, exploratória e de abordagem qualitativa. Teve caráter transversal, por refletir
percepções em espaço e tempo específicos. Para este estudo foram aplicadas entrevistas com roteiros semiestruturados, rea-
lizadas nos espaços em que os participantes desempenham suas atividades diárias.
O estudo apresentado incorpora um recorte de duas dissertações de mestrado (ALBUQUERQUE, 2015; SOUSA, 2015),
respectivamente aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos das Universidades Federais do Amazonas
(UFAM – Proc. 804.214) e de Santa Catarina (UFSC – Proc. 1.044.668).

Participantes
Foram entrevistadas 86 pessoas (F=46; M=40), sendo 50 estudantes de graduação do campus universitário e 36 traba-
lhadores do campus de pesquisa científica, com idade entre 19 e 62 anos. Foram incluídos aqueles com no mínimo um ano de
efetiva atividade no local.

Procedimentos de Coleta e Análise dos dados


A entrevista se deu a partir de um roteiro com perguntas abertas que foram audiogravadas com o devido consentimento
dos participantes. Com tempo médio de 20 minutos, as entrevistas ocorreram entre os meses de janeiro e fevereiro de 2015 nos
períodos matutino e vespertino, nas dependências das instituições escolhidas.
O conteúdo dos áudios foi transcrito integralmente e organizado em planilhas de maneira a facilitar a visualização dos
dados. Após a transcrição, foi realizada a análise de conteúdo (BARDIN, 2011) para compreensão e categorização dos dados
emergentes das entrevistas.
Os dados foram confrontados de maneira a evidenciar pontos comuns e divergentes para o enriquecimento da dis-
cussão dos resultados e explorar os benefícios e implicações do desempenho de atividades laborais e acadêmicas em uma área
de proteção ambiental da região amazônica.

Resultados e Discussão
Contribuições para a qualidade de vida e benefícios para o bem-estar
A natureza tem sido reconhecida como fator de influência positiva no enfrentamento do estresse vivido pelos habitantes
de grandes cidades (BERTO et al., 2010; KAPLAN; KAPLAN, 2011; TYRVAINEN et al., 2014). Comumente, esses benefícios são
associados à visitação de ambientes naturais com os quais se mantém contato esporádico e intencional, contudo, pouco se tem
explorado sobre a percepção daqueles que tem uma convivência diária com esses espaços.
Estudar e trabalhar configuram-se como dimensões existenciais distintas. Os sentidos e significados atribuídos às ativi-
dades laborais e acadêmicas e os respectivos ambientes em que ocorrem, perpassam pelos próprios estágios de desenvolvim-
ento do ciclo vital humano. O ponto de aproximação desse estudo revela-se na convivência com uma área de proteção ambiental
e os benefícios associados a essa vivência por pessoas que desempenham suas atividades nesse local. O contato com a natureza
não se dá por decisão voluntária, mas apresenta-se como pano de fundo da vivência diária em fragmentos florestais urbanos. Am-
bas as atividades demandam concentração e respostas a diferentes estímulos, capazes de gerar estresse e sobrecarga cognitiva.
Seria, pois, a natureza propulsora de bem-estar nesses ambientes quando as pessoas estão envolvidas com distintas atividades?
O estudo evidenciou percepções associadas à capacidade restaurativa desse ambiente florestado, culminando em sen-
sações de bem-estar e qualidade de vida, em contraponto às possibilidades de perdas de benefícios para trabalhadores e estu-
dantes diante do afastamento dessa área.

Trabalhar e estudar em proximidade com a natureza


Residir em uma metrópole, com todos os problemas próprios da urbanização exponencial, e de certa forma não plane-
jada e caótica, é por si só um ambiente já apontado como estressante (SIMMEL, 1987; MOSER & ROBIN, 2006). Estar em um
fragmento florestal urbano inserido nesse contexto urbano para realizar suas atividades laborais e acadêmicas possibilita estímu-
los diferenciados.
Os campi universitário e de pesquisa científica destacam-se na cidade de Manaus como lugares onde a floresta nativa

02: Sistemas de Gestão e Governança


119
foi preservada durante a construção dos prédios, cujas portas e janelas se confundem com a própria vegetação. Esses espaços
foram preservados para abrigar inúmeras espécies silvestres que circulam entre as trilhas e os prédios. São espaços em que os
trabalhadores e estudantes dividem com as plantas e os animais diariamente.
A presença do verde entre os prédios, nas janelas e corredores, traz uma sensação de familiaridade que é evidenciada
por discursos como: “eu acho que pra comunidade acadêmica, eu acho que todos sentem o privilégio de estudar aqui, enten-
deu, tem uma colega minha que diz que é a mata acadêmica”, mas no decorrer do dia-a-dia, com as demandas próprias da
rotina, muito se perde dessa relação.
O reconhecimento do campus universitário como aquele que abriga a maior área verde em contexto urbano do país já
exerce influência sobre a percepção dos discentes, como denota a seguinte fala: “é uma universidade que tá dentro de uma área
de preservação né, acho que a partir disso mesmo, eu acho que é, como é que falam, é a maior área de preservação dentro
da cidade”. É bastante presente no discurso dos universitários a valorização por esses espaços, apesar do distanciamento no
que concerne a um contato mais próximo. Há uma interação majoritariamente mais passiva, voltada para a contemplação em
momentos de pausa e busca de relaxamento.
Ao adentrar o campus de pesquisa científica, os trabalhadores também percebem que a inserção em um fragmento
florestal urbano traz sensações diferenciadas pelas próprias características do ambiente físico e sua estética paisagística. Essas
sensações são caracterizadas a partir da presença do ambiente natural e da paisagem agradável que permite a contemplação:
“O clima diferente que é mais fresco, mais agradável. Fica mais ameno o clima, a gente se sente melhor. É a questão das ár-
vores, às vezes tá florido sabe, bonito, aí a gente para pra olhar, as chuvas de semente, fica bonito”. O próprio clima da região
(quente e úmido) leva à percepção de um microclima diferenciado em ambos os campi, que potencializa a sensação de agra-
dabilidade.
Trabalhar em um ambiente florestado também possibilita sensações de conectividade. Os trabalhadores percebem a
possibilidade de aproximação e interação com essa natureza que estimula o contato e bem-estar através de trocas com o ambi-
ente: “Ao adentrar dentro da instituição eu me sinto bem porque é um lugar arejado, flui uma energia boa. Sinto isso. Sensação
muito boa. Espiritual. Eu tô num ambiente de trabalho onde eu posso me locomover tendo essa ligação com a natureza. É muito
forte isso. Eu me sinto bem. A energia é outra”.
Ao serem questionados acerca da possibilidade dessa proximidade com a natureza trazer contribuições para a qualidade
de vida, os estudantes são unânimes em afirmar os benefícios percebidos. Os benefícios citados englobam aspectos biofílicos
(FEDRIZZI, 2011) associados a fatores ambientais que culminam no restauro psicológico (KAPLAN; KAPLAN, 2011). O bem-es-
tar, dessa forma, é percebido tanto pelos elementos da natureza quanto pelos efeitos psicológicos propiciados pelo contato com
ambiente natural. A preservação da área auxilia na manutenção de um clima agradável, da qualidade do ar, da biodiversidade do
local e da estética paisagística. A diferença é nítida quando se compara o ambiente do campus com outras regiões da cidade,
conforme elucida a fala: “aqui não tem tanta poluição, seja sonora ou poluição [...] de ar, então sempre, de certa maneira, [...]
as árvores tão cuidando da gente porque elas dão ar fresco pra gente e a gente não tá em contato com essa poluição, seja do
ar ou do som”.
Em relação aos efeitos psicológicos, é evidenciada a possibilidade de alívio das tensões diárias em decorrência dos
espaços verdes propiciarem um ambiente silencioso e tranquilo, que permite contemplação e manutenção da concentração. Os
discentes ressaltam que a natureza contribui significativamente para a qualidade de vida nesse aspecto restaurador, como fica
em destaque na fala: “[a presença desses espaços] torna o ambiente mais agradável, menos estressante, porque um ambiente
só prédios se torna mais estressante, o ambiente verde passa essa sensação de relaxamento”.
Embora a presença intensa da natureza seja notada de forma significativa em ambos os campi, para 14% dos trabalha-
dores e 22% dos estudantes, ela tornou-se tão habitual que passa a ser uma característica indistinta, indiferenciada, o que pode
estar associado ao tempo de convivência com o local: “A floresta... é uma reserva diferente de outros lugares. Talvez eu não
perceba porque já trabalho aqui há muito tempo” e “Eu acho que a maioria das pessoas nem repara muito assim, por causa da
área verde [...] não influencia na vida do estudante”.
O trabalho, dado o próprio caráter existencial que ocupa nas vidas das pessoas, proporciona significados que se esten-
dem para além dos limites físicos e laborais, visto que o ambiente é sempre um espaço construído socialmente (FISCHER, s.d.).
Nesse sentido, o ambiente de trabalho traz em sua configuração aspectos de forte presença da natureza (árvores, plantas e

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
120
animais silvestres), que transcendem e se confundem com o próprio trabalho, mesmo que tais significados não sejam comparti-
lhados pela maioria, mas se mostram reveladores da importância do espaço verde na estruturação espacial do trabalho.
Estudar nesses ambientes por sua vez, revela um caráter similar, ainda que as atividades vivenciadas sejam distintas.
Cada campus universitário apresenta elementos próprios, com dimensões e concepções distintas, o que implica nas mais varia-
das percepções daqueles que vivenciam esse espaço diariamente. Os estudantes apropriam-se, atribuem significados, estabe-
lecem avaliações sobre o campus e seus elementos ao transitarem nas distintas configurações fornecidas pelo ambiente físico,
seja natural ou construído (FISCHER, s.d.; GILMARTÍN, 2002).
Os benefícios percebidos em relação ao contato com ambientes naturais, acarreta em uma valorização desses espaços.
A convivência diária induz ao hábito, o que contribui para a compreensão de que mudanças drásticas nesse ambiente podem
gerar implicações associadas a perda de benefícios.

Trabalhar e estudar com a possibilidade de distanciamento da natureza


O trabalho com a possibilidade da ausência de convivência com essa natureza, provoca, na percepção da maioria dos
entrevistados a perda de benefícios para o bem-estar. Trabalhar em um ambiente com a ausência da natureza traria implicações
negativas no desenvolvimento do trabalho e na satisfação de estar ainda ativo nas suas atividades laborais. A possibilidade de
trabalhar sem esse cenário geraria implicações para o próprio bem-estar e desenvolvimento das atividades laborais: “Não seria
a mesma coisa porque o visual também te beneficia muito ou o contrário. Você trabalhar vendo essa paisagem é diferente (...)
você fica aqui em paz, ó a natureza daqui”.
De modo similar à percepção dos trabalhadores, os universitários em sua maioria, ressaltam que a ausência de elemen-
tos naturais no entorno do campus ocasionaria perda de benefícios: “o fato de você caminhar num local preservado, digamos
assim, arejado, é, tem a questão da qualidade de vida, tem a questão do bem estar, tem a questão de saúde, de tudo, eu acho
que a gente é afetado diretamente pelo ambiente que a gente tá, então se é um ambiente bom, um ambiente agradável, então
só tem a refletir positivamente pra gente”. A perda de benefícios faz alusão à impossibilidade de se usufruir dos efeitos proveni-
entes da preservação de uma área natural e seus elementos.
Dessa forma, os universitários citam que haveria um aumento de fatores de influência (GARCÍA-MIRA, 1997; FISCHER,
s.d.) como ruído, aglomeração e temperatura. Tais perdas dificultariam a redução do estresse, a manutenção da concentração e
a melhora do humor, aspectos percebidos como favorecedores de uma relação mais saudável com o ambiente acadêmico. Os
universitários ressaltam que a exclusão da APA os tornaria ainda mais indiferentes e distantes da natureza e descaracterizaria o
campus que é reconhecido por abrigar essa área verde. Repercutiria ainda nos processos de aprendizagem, pesquisa e exten-
são promovidos pela instituição no que tange ao aprofundamento de questões regionais, principalmente para os alunos das áreas
biológicas e agrárias que fazem uso desses espaços para realização de aulas práticas.
Esses dados permitem constatar o que entendemos por apego ao lugar, que implica em dimensões funcionais - espaço
físico interferindo nos comportamentos - simbólicas - conteúdo simbólico, sociocultural e individual - e relacionais - interação
dinâmica entre o envolvimento social cotidiano e as características do ambiente (ELALI; MEDEIROS, 2011). Esses aspectos
refletem a percepção dos trabalhadores e estudantes a respeito da inserção em um fragmento florestal urbano. Considerando
o tempo de convivência, as experiências, memórias, histórias e sentimentos imbricados, não é possível dissociar esse espaço
físico da identidade social na dinâmica existencial dessas pessoas.
Apenas 29% dos trabalhadores e 22% dos estudantes afirmaram que realizar cotidianamente suas atividades em um lugar
sem a presença da natureza não traria nenhum tipo de implicação, pois teriam que se adaptar. Os discentes destacam ainda que
a ausência do entorno verde poderia trazer ganhos no que se refere à acessibilidade e segurança da universidade. A justificativa
daqueles que apresentam uma percepção indiferenciada quanto à ausência do ambiente natural, remete ao embotamento e
atitude blasé discutido por Simmel (1987), precursora de um distanciamento e baixa mobilização a respeito de questões socio-
ambientais.
A percepção desses trabalhadores a respeito desse lugar de trabalho engloba múltiplos elementos e a natureza aparece
ora como figura, ora como fundo, de maneira que vivências positivas são associadas aos significados atribuídos a esse lugar
contando como elemento de vínculo e apego. O tempo de trabalho que esses trabalhadores possuem no campus de pesquisa
científica e os diversos elementos presentes nessa relação, ressaltam o papel da natureza como elemento de agradabilidade e a

02: Sistemas de Gestão e Governança


121
relação de respeito com essa natureza mesmo quando impõe riscos.
A familiaridade com um lugar apresenta-se como um indicador avaliativo importante para valoração positiva ou negativa.
Para Tuan (1980), a familiaridade engendra afeição ou desprezo. Os dados nos revelam que para as pessoas entrevistadas, a
familiaridade com o lugar, no qual há a convivência e presença exuberante da natureza se revela, possibilita uma afetividade
positiva capaz de trazer sentimentos de bem-estar, satisfação e preferência.
Considerando tais percepções, faz-se necessário reconhecer que a rotina laboral e acadêmica pode tornar-se maçante e
cansativa e que o ambiente físico contribui para atribuição de prazer ou desprazer na realização das atividades rotineiras (FELS-
TEN, 2009; RIBEIRO, 2005). O investimento em espaços nesses cenários que possam reduzir essas tensões é uma alternativa
que tem se mostrado promissora, principalmente quando se destacam elementos naturais que permitem proximidade com a
natureza (KAPLAN, 1993; MCFARLAND; WALICZEK; ZAJICEK, 2008; MCFARLAND; WALICZEK; ZAJICEK, 2010; SPEAKE, ED-
MONSON; NAWAZ, 2013).

Considerações Finais
Os resultados instigam reflexões a respeito de questões relativas a sustentabilidade em tempos de emergências ambi-
entais. Estudos anteriores (HARTIG, KAISER & BOWLER, 2001; CORRAL-VERDUGO, 2012) têm mostrado que, de acordo com
a vinculação com o ambiente natural, há uma maior tendência a comportamentos ecologicamente responsáveis e de cuidado
ambiental. Quando uma afetividade positiva é capaz de gerar ações igualmente positivas e sustentáveis e a natureza apresenta-
se como fator de agradabilidade, esses sentimentos são favorecidos. O estudo reverbera possibilidades de (re)construções de
ambientes institucionais nos quais a natureza se faça presente, visto que espaço físico e social constituem-se mutuamente na
atribuição de significados (BOURDIEU, 1997).
No decorrer do processo de desenvolvimento humano, há a vinculação com distintos ambientes institucionais que con-
tribuem com a construção identitária dos sujeitos. Os ambientes escolares e de trabalho auxiliam nesse processo de mediação
quando propiciam benefícios que contribuem para a qualidade de vida dos sujeitos que com eles se relacionam. Dessa forma, a
convivência com ambientes saudáveis repercute na salubridade das pessoas. Nessa pesquisa, acadêmicos e trabalhadores asso-
ciaram as sensações de bem-estar percebidas ao entorno que se constitui como uma área de proteção ambiental, o que nos leva
a crer que há uma necessidade de aprofundar o conhecimento acerca das contribuições de áreas preservadas em meio urbano.
Nesse sentido, esse estudo possibilita suscitar reflexões a respeito de ambientes institucionais saudáveis, satisfatórios
e comprometidos com uma ética voltada para a sustentabilidade. Acredita-se que o investimento em espaços que propiciem
o estreitamento da relação pessoa-ambiente, como os fragmentos florestais urbanos, contribui não somente para o equilíbrio
ecológico, mas para o bem-estar físico e psicossocial das pessoas que vivem na cidade.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
124
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS POSSÍVEIS IMPACTOS AMBIENTAIS NA
EXTRAÇÃO DO SHALE GAS NO BRASIL

Gomes, Andréa dos Santos1 & Fernandes, Amarildo da Cruz2

1. Mestranda em Engenharia Ambiental na Universidade Federal do Rio de Janeiro andrea.gomes@poli.ufrj.br


2. Professor Associado do Departamento de Engenharia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Resumo
A exploração do shale gas através do fracking tem apresentado impactos negativos a nível mundial, com proeminentes riscos à
garantia de fornecimento de água potável, à saúde pública e ao meio ambiente. Estes intempéries motivaram alguns países no
aperfeiçoamento desta técnica, no registro de patentes e em contraponto, na proibição e moratória de seu uso em sua nação.
Através de um estudo exploratório e descritivo utilizando o método qualitativo, a proposta deste trabalho é fazer considerações
sobre os possíveis impactos ambientais causados pelo uso da técnica do faturamento hidráulico aliada à perfuração horizontal
na extração do Shale Gas em território brasileiro, baseado em experiências internacionais, artigos e documentos sobre essa
extração.

Palavras-Chave: Shale Gas, Fracking, Fraturamento Hidráulico, Impactos Ambientais, Perfuração Horizontal.

Introdução
A exploração de Petróleo e gás no país sofreu intenso impacto a partir de 2014 com as inúmeras investigações de cor-
rupção e tomadas de decisões técnicas errôneas, deflagradas pela Polícia Federal Brasileira, que influenciaram diretamente
na economia da principal empresa do setor no Brasil. Em meio à procura por respostas visando definir qual o melhor modelo
energético a ser seguido e quais estratégias, a fim de assegurar o crescimento econômico aliado à garantia do fornecimento
energético nacional, que de acordo com o Ministério de Minas e Energia (MME), a ampliação do uso do gás natural tem espaço
neste cenário.
A exploração do shale gas não consta no Plano Nacional de Energia (PNE) 2030 como estratégia, em contraponto com
a promoção da 12ª rodada de licitações1 para Exploração, Desenvolvimento e Produção de Petróleo e Gás Natural. O PNE 2030
é o primeiro estudo de planejamento integrado dos recursos energéticos realizado no âmbito do Governo brasileiro. Conduzi-
dos pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE em estreita vinculação com o MME, os estudos do PNE 2030 originaram a
elaboração de quase uma centena de notas técnicas. O trabalho fornece os subsídios para a formulação de uma estratégia de
expansão da oferta de energia econômica e sustentável com vistas ao atendimento da evolução da demanda de gás (MONIZ,
2013), segundo uma perspectiva de longo prazo (CHAMBRIARD, 2014). O PNE foi um estudo de planejamento cobrindo não
somente a questão da energia elétrica, como também dos demais energéticos, notadamente petróleo, gás natural e biomassa.
Autorizada em Diário Oficial da União (DOU) pela Resolução nº 6, de 25 de junho de 2013 a realização da 12ª Rodada de
Licitações de blocos para a exploração e a produção de petróleo e de gás natural em 2013, a ser implementada pela Agência
Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), de acordo com as diretrizes e as políticas do MME.
Como objeto da Rodada há oferta de duzentos e quarenta blocos exploratórios totalizando 168.348,42 km² de área, sendo:
cento e dez blocos exploratórios em áreas de Novas Fronteiras Tecnológicas e do Conhecimento nas Bacias do Acre, Parecis,
São Francisco, Paraná e Parnaíba, com o objetivo de atrair investimentos para regiões ainda pouco conhecidas geologicamente
ou com barreiras tecnológicas a serem vencidas, possibilitando o surgimento de novas bacias produtoras de gás natural e de
recursos petrolíferos convencionais e não convencionais, totalizando 164.477,76 km² de área e cento e trinta blocos nas Bacias
Maduras do Recôncavo e de Sergipe-Alagoas, com o objetivo de oferecer oportunidades exploratórias nessas áreas, de modo
a possibilitar a continuidade da exploração e a produção de gás natural a partir de recursos petrolíferos convencionais e não

1
Rodadas de Licitações – A partir da Lei 9.478/1997 (Lei do Petróleo) foi permitida que empresas estatais ou privadas, constituídas sob as leis brasileiras e com sede
e administração no País, realizem atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no País, mediante contratos de concessão, precedidos de licitação;
A partir de então são programadas Rodadas de Licitação com locais pré definidos.

02: Sistemas de Gestão e Governança


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convencionais contidos nessas regiões, totalizando 3.870,66 km² de área.
Entretanto, porque a disponibilização destes Blocos foi feita com sobreposição de Áreas Prioritárias para a Conservação,
Uso Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade Brasileira (Portaria MMA nº 09/2007), a Bacia do Acre, os blocos
estão em quase sua totalidade dentro dessas áreas. Há sobreposições com categorias de Unidades de Conservação que não
permitem este tipo de atividade, áreas de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), por exemplo. Há sobreposição com
a região do Aquífero Guarani, reserva de água localizado em território de 4 países.
De acordo com a Lei 8666/1993 a licitação só poderia ocorrer com a aprovação do projeto básico, que entre outros, deve
ser elaborado com base nas indicações de estudos técnicos preliminares que assegurem a viabilidade técnica e o adequado
tratamento do impacto ambiental do empreendimento. Contudo, onde estão disponibilizados estes estudos?
Mas o que seria gás não convencional, Shale Gas e faturamento hidráulico? Segundo a Nota Técnica da ANP nº 09/2010-
SCM ANP, gás não convencional é uma denominação que agrupa diferentes categorias de gás, como o gás alocado em reser-
vatórios a grande profundidade ou em águas profundas, em formações pouco permeáveis tight gas, shale gas, gás de carvão,
gás de zonas geopressurizadas e hidratos submarinos e árticos.
Para que a exploração deste gás fosse economicamente viável agrupou-se o uso de duas técnicas: o faturamento hidráu-
lico à perfuração horizontal conhecido como fracking, onde é feita a perfuração vertical até a altura da existência do folhelho,
na sequência esta perfuração passa a ser horizontal, após esta perfuração são injetados fluidos, areia, outros granulares com
aditivos em alta pressão para promover fissuras nos folhelhos de forma a permitir a escoada do gás de acordo com a Figura 1. A
composição desses fluidos varia da mistura de água e areia até misturas mais complexas com uma gama de aditivos químicos
(USHR, 2011).
Esses compostos químicos são adicionados com diversas funções, incluindo redução da perda do fluído, dissolução de
minerais, inibição de corrosão, espessamento e redução de crescimento bacteriano (MICHAELS et al., 2010; ZOBACK et al.,
2010; COLBORN et al., 2011; BATLEY; KOOKANA, 2012; GILLEN; KIVIAT, 2012; HOLLOWAY; RUDD, 2013).
No Brasil esta exploração é inédita, assim como não há regulamentação para este tipo de exploração. Por isso em face
às experiências internacionais, artigos e documentos sobre o tema é que este trabalho objetiva fazer uma avaliação prévia dos
possíveis impactos ambientais causados na extração do Shale Gas em território brasileiro.

Figura 1. Funcionamento da Técnica do Fracking – Fonte: http://www.istoe.com.br/reportagens/302929_AMEACA+SUBTERRANEA.

Metodologia
O presente trabalho pode ser classificado como um estudo exploratório e descritivo, e o método utilizado foi o qualita-
tivo. Como estudo descritivo propondo uma revisão bibliográfica e documental analisando artigos, dissertações, teses, livros e
documentos oficiais. O objetivo com o estudo exploratório é pesquisar sobre os impactos ambientais causados pela exploração
de shale gas no cenário mundial e projetá-los numa exploração nacional já autorizada pela ANP em áreas com conflito de uso da
terra, sobreposição geográfica com aqüífero plurinacional com uma técnica exploratória com alto consumo de recursos hídricos
numa realidade de futura escassez de água.

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Linha do Tempo na Exploração do Shale Gas no Brasil
• 18 e 19 de setembro de 2013: Audiência Pública do 12º Leilão – Seminário Técnico Ambiental: Presença dos órgãos
ambientais estaduais
• 03 de outubro de 2013: Parecer Técnico GTPEG2 03/2013
• 19 a 21 de novembro de 2013: Asibama Nacional notifica o MMA, MME e ANP questionando a utilização do faturamento
hidráulico para a exploração do gás não convencional
• 21 de novembro de 2013: Audiência Pública no RJ para discussão da minuta de Resolução para a regulamentação da
exploração de gás não convencional
• 20 de dezembro de 2013: Ministério Público Federal (MPF) do Piauí obtém liminar que suspende exploração do gás
xisto no Estado;
• 11 de abril de 2014: Publicação da Resolução 21 da ANP no DOU;
• 05 de junho de 2014: O juiz da 1ª Vara Federal de Cascavel determina a suspensão imediata e por tempo indeterminado
da 12ª Rodada de Licitações para a exploração de gás de folhelho na Bacia do Rio Paraná;
• 11 de setembro de 2014: MPF/BA ajuíza ação para suspender efeitos da 12ª rodada de licitações para exploração de
gás de xisto;
• 24 de setembro de 2014: Seminário sobre Exploração e Produção de Gás Não Convencional CNRH/MMA;
• 17 de dezembro de 2014: MPF/SP protocola ação civil pública;
• 17 de junho de 2015: Audiência Pública na Câmara dos Deputados para discussão do Projeto de Lei 6904/2013 do
Deputado José Sarney Filho que estabelece medidas para a exploração de gás de folhelho com os seguintes expositores: Sy-
mone Christine de Santana Araújo - Diretora de Gás Natural da Secretaria de Petróleo, Gás Natural e Combustíveis Renováveis do
MME, Silvio Jablonski - Chefe de Gabinete da ANP (*), Edmar Luiz Fagundes de Almeida - Coordenador do Instituto de Econo-
mia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Juliano Bueno de Araújo - Coordenador da Coalizão Não-Fracking Brasil,
Luiz Fernando Scheibe - Professor Emérito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Regulamentação no Brasil
A Resolução ANP nº 21/2014, que regulamenta as atividades de perfuração seguida de fraturamento hidráulico em reser-
vatório não convencional, tem como objetivo estabelecer requisitos para a exploração de gás não convencional dentro de parâ-
metros de segurança operacional que assegurem a proteção à saúde humana e ao meio ambiente. Publicada no Diário Oficial
da União, em 11/04/2014, a Resolução recebeu 150 comentários e sugestões enquanto esteve em consulta pública por 30 dias, a
partir de 17 de outubro de 2013. Mas destas contribuições quantas foram incorporadas nesta resolução?
Em virtude da técnica para exploração de gás não convencional ser bastante polêmica a nível mundial em 2012, a Agên-
cia Internacional de Energia - EIA emitiu o relatório: Golden Rules for a Golden Age of Gas que informa os requisitos para uma
exploração segura, devido ao seu elevado potencial de impactos socioambientais.
A União Europeia em fevereiro de 2014 emitiu a Recomendação 2014/70/EU, apresentando os princípios mínimos para a
exploração e produção de hidrocarbonetos utilizando o fracking com claras restrições sobre a necessidade de preservar, prote-
ger a saúde da população, o meio ambiente, e a transparência na informação aos cidadãos dos Estados Membros.
Enquanto a Resolução ANP nº 21/2014 apresenta definições do fraturamento hidráulico em reservatório não convencio-
nal: técnica de injeção de fluidos pressurizados no poço, em volumes acima de 3.000 m³, com objetivo de criar fraturas em deter-
minada formação cuja permeabilidade seja inferior a 0,1mD (mili Darcy) a definição pela Recomendação 2014/70/EU apresenta
parâmetros mais rígidos no que diz respeito à quantidade de água injetada para a realização do fraturamento (volume igual ou
superior a 1.000 m³).
Outros comparativos podem ser descritos ao longo da tratativa da Resolução Brasileira versus a Recomendação Europeia
enquanto a primeira determina que o Sistema de Gestão Ambiental deverá conter um plano detalhado de controle, tratamento
e disposição de efluentes gerados e que a água utilizada para o fracking deverá ser preferencialmente efluente gerado, água
2
GTPEG – Grupo de Trabalho Interministerial de Atividades de Exploração e Produção de Óleo e Gás - Grupo criado com o objetivo de apoiar tecnicamente a
interlocução com o setor de exploração e produção de petróleo e gás natural, em especial no que se refere às analises ambientais prévias a definição de áreas para
outorga e às recomendações estratégicas para o processo de licenciamento ambiental dessas atividades no território nacional e águas jurisdicionais (Portaria 119,
de 24 de abril de 2008).

02: Sistemas de Gestão e Governança


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imprópria ou de baixa aceitação para o consumo humano ou dessedentação animal, ou água resultante de efluentes industriais
ou domésticos a segunda é mais restritiva quando determina expressamente um plano de gestão das águas a fim de garantir
que a água seja utilizada de forma eficiente durante todo o projeto. A União Europeia se preocupa mais com a eficiência do uso
do que com a natureza do recurso hídrico.
Ao tratar dos produtos químicos utilizados a Recomendação obriga o operador a publicar em seu endereço eletrônico
os produtos químicos (quantidade e composição) em uso, no transporte e armazenagem no fracking com possível impacto à
saúde humana e ao ambiente utilizados no processo, transportados e armazenados enquanto que a Resolução não estabelece
obrigações quanto Porém me parece que a Resolução ANP 21/2014 não evidencia tal grau de preocupação quanto quais e a
quantidade utilizada de produtos químicos, ao contrário do que ocorre na da União Européia, ao determinar que os Estados-
Membros deverão assegurar que é minimizada a utilização de substâncias químicas no fraturamento hidráulico (artigo 10.1, b),
da Recomendação).
Essa norma da ANP também estabelece que para fins de aprovação regulatória do fraturamento hidráulico em reser-
vatório não convencional, o operador deverá garantir por meio de testes, modelagens, análises e estudos, que o alcance máximo
das fraturas projetadas permaneça a uma distância segura dos corpos hídricos existentes, conforme as melhores práticas da
indústria do petróleo, ou seja, parâmetro genérico.
Na passagem da minuta ao texto desta regulamentação algumas alterações foram um tanto questionáveis como no artigo
“V- Declaração de Responsável Técnico Designado pela empresa de que o projeto atende aos requisitos legais aplicáveis e que
foram realizados os testes, modelagens, análises e estudos alinhados com as melhores práticas de engenharia que permitam
concluir que não existe possibilidade técnica de que as fraturas preexistentes ou as geradas durante a atividade alcancem
qualquer corpo d’água existente.” Para “... práticas de engenharia, os quais permitiram concluir que, sendo executado o projeto,
os riscos de falhas preexistentes serem reativadas ou das fraturas geradas alcançar qualquer Corpo Hídrico Subterrâneo exis-
tente foram reduzidos a níveis toleráveis:”.
Quais seriam estes níveis? A Resolução não estabelece o reaproveitamento de efluente no processo do fracking. Entre
outras informações contidas nesta resolução fica explícita a sensível limitação de controle pelo empreendimento com relação aos
riscos eminentes deste processo, análise de água de corpos hídricos, entre outros.
Houve uma manifestação através do Senhor Deputado Federal Rodrigo Maia do Partido Democratas/RJ com o objetivo
de sustar a aplicação da Resolução ANP nº 21, de 10 de abril de 2014, que estabelece os requisitos a serem cumpridos pelos
detentores de direitos de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural que executarão a técnica de Fraturamento Hidráulico
em Reservatório Não Convencional por entender que a forma escolhida para se resolver a questão seja equivocada.
O referido Deputado entende que não se pode definir as condições acima por resolução da ANP e sim estabelecê-las em
lei fazendo referência à Carta Magna, em seu art. 177, §§ 1º e 2º. Entende que tal ato seja um flagrante de inconstitucionalidade.
Contudo, não há certeza de protocolização desta manifestação, tão pouco de sua resposta.

Possíveis Riscos e Impactos Ambientais Associados à Exploração de Shale Gas


INDUÇÃO SÍSMICA
O processo de faturamento hidráulico causa microssísmicos eventos de magnitudes muito baixas para serem detectadas
na superfície. Enquanto que a prática de reinjeção de água de processo pode propiciar eventos de maiores magnitudes. A
variação interna de pressão nas rochas pode influenciar na capacidade selante das falhas existentes, assim fluidos antes con-
tidos podem migrar por entre essas falhas devido a diminuição do atrito. A influência se dará diretamente pelas características
geológicas do lugar (IEA, 2009). Esta análise é de fundamental importância visto que o processo de reinjeção de água residual
do fracking seria uma possível solução do descarte de resíduos líquidos.
O trabalho de Ellsworth (2013) demonstra a tendência de aumento de ocorrência de abalos sísmicos nas porções central
e leste dos E.U.A., e indica claramente, a partir de diversos outros estudos, a clara relação entre a aplicação da técnica de fratura-
mento hidráulico e a ocorrência de abalos sísmicos. Holland (2011) também demonstra uma clara correlação temporal entre a
ocorrência a aplicação da técnica de fraturamento hidráulico e a ocorrência de atividade sísmica, em Oklahoma.
Uma investigação conduzida pela Comissão de de Óleo e Gás de British Columbia, Canadá, conclui que uma série de
abalos sísmicos de magnitude igual ou maior a 3.0 M, ocorridos na região no ano de 2009, “foram causados por injeção de fluido

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durante o fraturamento hidráulico na proximidade de falhas [geológicas] pré-existentes” (BCOGC, 2012). Green e colabora-
dores (2012) também afirmam a correlação entre o registro de sismos de magnitude menor a 3.0 M explicitamente relacionados
com o uso da técnica de fraturamento hidráulico próximo a Blackpool, na Inglaterra, durante o ano de 2012; o estudo apontou
ainda a preocupação quanto a ocorrência de novos eventos sísmicos caso a técnica volta-se a ser utilizada.
A regulamentação desta atividade de exploração no país deve contemplar normas para monitoramento para que alter-
ações no subsolo possam ser antecipadas e ou corrigidas.

REDUÇÃO NA DISPONIBILIDADE DE RECURSOS HÍDRICOS -


RH NOS LOCAIS DOS EMPREENDIMENTOS
O consumo de RH no processo de exploração do gás não convencional estimasse que seja na ordem de 20 vezes mais
que no convencional. Num período sério de questionamento sobre a disponibilização de água no planeta de maneira geral, causa
estranheza a introdução de novo processo no mercado nacional que requeira tamanha proporção de RH.
No Reino Unido para produzir 9 bilhões de m3 estima-se que sejam necessários de com um consumo de água na ordem
de 87 milhões de m3 de água ao necessitar de 2580 a 3000 poços (NOUYRIGAT, 2013). Há a possibilidade do reuso da água de
produção para a perfuração e faturamento, contudo, não há estudos que tratem da disponibilidade e qualidade desta água para
este fim. O que impacta em grande escala ao utilizar água potável.
Outro complicador é a concorrência no uso deste RH, pois no país atualmente a fonte de energia elétrica vem de usinas
hidrelétricas. O país é um dos maiores exportadores de grãos de acordo com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abaste-
cimento (MAPA), o que pode gerar conflito na concorrência pela utilização de RH nos locais disponibilizados pela 12 rodada
de licitações, além do consumo humano, por animais, indústria, entre outros. A regulamentação da exploração deve contemplar
o respeito ao zoneamento da área urbana e rural quanto ao percentual no uso do RH disponibilizado para cada setor ficando
explícita assim a sua limitação.

CONTAMINAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS SUPERFICIAIS E SUBTERRÂNEOS


A grande utilização de produtos químicos, já identificado pelo menos 900 substâncias químicas diferentes, na perfuração
hidráulica já causa preocupação diretamente relacionada com o manuseio, armazenamento e transporte destes produtos (EPA,
2013). O deslocamento destes produtos químicos até a chegada à zona de perfuração provavelmente será feito por transporte
terrestre o que deve ser considerada a possibilidade de tombamento com possíveis vazamentos podendo interferir na qualidade
do solo e da água, tanto superficial quanto por infiltração no solo.
Muitos exploradores desta atividade se reservam do direito do segredo industrial para não informarem com exatidão
quais produtos serão utilizados nos fluidos de injeção o que dificulta a elaboração de um possível plano de emergência em
caso de vazamento, assim como o estudo destes com relação ao comportamento nos ambientes onde serão utilizados e sua
disposição final.
O congresso norte-americano lançou um relatório que menciona o uso de mais de 2.500 produtos utilizados no fratura-
mento hidráulico entre os anos de 2005 e 2009, por 14 empresas de petróleo e gás, contendo ao menos 750 químicos e outros
componentes (USHR, 2011). Esses produtos foram encontrados nos fluídos utilizados no fraturamento hidráulico e também na
água produzida resultante. O relatório destaca dentre esses produtos químicos a presença de 29 compostos químicos “(1) co-
nhecidamente ou possivelmente carcinogênicas para humanos, (2) reguladas pelo Safe Drinking Water Act pelos riscos para a
saúde humana, ou (3) listadas como perigosos poluentes do ar no ´Clean Air Act´” (USHR, 2011).
Dente as substâncias carcinogênicas para humanos, o relatório ressalta a presença de benzeno, registrando ainda que
por questões de propriedade intelectual as empresas de petróleo e gás informaram que “não possuem acesso a informações
sobre os produtos que eles adquiriram de fornecedores dos produtos químicos.” (USHR, 2011).
A perfuração por ser feita em camadas abaixo dos aquíferos é necessária a perfeita vedação chamada neste processo
de cementação para evitar a passagem da água do aquífero ou lençol freático pela tubulação de perfuração para que não haja a
sua contaminação. Michaels et al. (2010) relatam registros de contaminação do lençol freático subterrâneo e de corpos d´água
superficiais por gás metano (JACKSON et al., 2013) e compostos químicos utilizados no processo de fraturamento hidráulico.
Assim como, os cuidados na propagação dos abalos sísmicos de maneira que não atinjam estes corpos d’água. É ne-

02: Sistemas de Gestão e Governança


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cessária muita atenção em virtude de estarem envolvidos nas áreas desta licitação aquíferos de segurança hídrica nacional e
internacional como é o caso do aquífero Guarani considerado como o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço
do mundo que ocupa uma área de 1,2 milhões de Km², estendendo-se pelo Brasil (840.000l Km²), Paraguai (58.500 Km²), Uruguai
(58.500 Km²) e Argentina (255.000 Km²). Sua maior ocorrência se dá em território brasileiro (2/3 da área total), abrangendo os
Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
O auto estudo comportamental dos fluidos de perfuração e a criação de planos de emergência e de contenção a ser ela-
borado pela indústria são procedimentos para empreendedores que estão em outro nível de maturidade, que talvez a legislação
brasileira e a população diretamente ou indiretamente afetada em caso de incidente não estejam seguras de aceitação.

CONFLITO NO USO DA TERRA


A exploração do shale gas diferente do gás convencional tem a durabilidade de produção do poço muito fugaz (VALLE,
2014). No primeiro a produção dura poucos anos num mesmo poço ao contrário do segundo que pode perdurar por décadas.
Requerendo a instalação em novo local para que o campo seja economicamente viável (CORADESQUI, 2013). A instalação re-
quer uma grande quantidade de equipamento no local conforme por ser observado na figura 2.
O que por vezes representa uma nova abertura de área, possivelmente um desmatamento, a implementação de novo
aparato com interferência visual na paisagem do local de maneira continuada. Propiciando grande densidade de poços, a deple-
tação rápida está na faixa de 60 a 90% da produção ao findar o primeiro ano (CHERRY, 2014). As novas perfurações intensificam
os riscos e impactos relacionados às etapas iniciais (STERN et al., 2014).
Ao findar a exploração daquele poço como será a recuperação deste local? Espera-se que a regulamentação da explora-
ção do shale gas contemple a recuperação deste espaço pós exploração.

Figura 2. Exploração de Shale Gas exige grande quantidade de equipamento no local durante as operações
Foto no Canadá - Fonte: CSUG_HydraulicFrac_Brochure.

CONTAMINAÇÃO DO SOLO
Devido ao grande consumo de água no processo de faturamento hidráulico a contaminação do solo pode ser dada tanto
pelo transporte dos produtos químicos utilizados no processo quanto pelo descarte da água de retorno dita flowback.
A flowback com intensa quantidade de produtos químicos já citados anteriormente por USHR, 2011 e compostos tóxicos
naturalmente presentes no subsolo, como arsênio, bário, mercúrio e elementos radioativos (ZOBACK et al., 2010; ROWAN et al.,
2011; RAHN; RIHA, 2012; RIDLINGTON; RUMPLER, 2013) que veem à superfície por arrasto na saía da flowback, o que tende
a conter grandes concentrações de sal (ZOBACK et al., 2010), o que pode gerar uma série de impactos sobre o solo e sobre as
atividades agrícolas.
O armazenamento da flowback e da água de produção deve ser muito bem controlada para que não infiltre no solo e
que não transborde, pois este armazenamento é feito de maneira aberta e próxima ao local de faturamento conforme a figura 3.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 3. Foto de piscinas de flowback e água de produção - fonte: http://www.iee.usp.br/eventos/nov12/Colombo_Shale.pdf.

DESCARTE INADEQUADO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS E LÍQUIDOS


O intenso uso de Recursos Hídricos para este tipo de exploração com a adição de vasta diversidade e quantidade de
produtos químicos requer a preocupação na mesma proporção com o descarte desta água de retorno gira em torno de 10 a 40%
da injetada (SCHEIBE, 2014). Este efluente ou fica acondicionado em piscinas na região próxima à exploração ou é enviado à es-
tação de tratamentos sendo deslocada através de caminhões pipas. Normalmente estas piscinas ficam abertas, como observado
nas figuras 4 e 5 propiciando tanto a interação com o ar, quanto com os operários (KIBBLE et al., 2014).
Deve ser observada a interação dessas piscinas em caso de chuva e/ou alagamento da área, propiciando contaminação
do solo, humana e possivelmente dos corpos hídricos (RAHM et al., 2013). A Resolução 21/2014 da ANP está contemplando essa
possibilidade?

Figuras 4 e 5. Apresentação de Bianca Dieile no Seminário sobre Exploração e Produção de Gás Não Convencional
CNRH/MMA - Enchente em Colorado – Setembro – 2013.

Conclusões
As avaliações preliminares da ANP, aqui no Brasil, aliadas às informações da agência americana de planejamento energé-
tico (EIA, 2011) estimularam o lançamento em 2013 da 12ª rodada de licitações para Exploração, Desenvolvimento e Produção de
Petróleo e Gás Natural ofertando 240 blocos exploratórios, distribuídos em sete bacias sedimentares em áreas de novas fronteiras
nas bacias do Acre, Parecis, São Francisco, Paraná e Parnaíba e em bacias maduras do Recôncavo e de Sergipe-Alagoas como
oportunidades para a geração de energia elétrica com a produção de gás on shore. Contudo, este lançamento em DOU através
da Resolução do Conselho Nacional de Politica Energética (CNPE) nº 6 de 25 de junho de 2013 foi publicado ANTES do parecer
da área ambiental federal contrariando o já estabelecido pela Resolução CNPE nº 08 de 21 de julho de 2003. Este parecer foi
desfavorável e recomendou a não ofertar neste interim tais blocos para exploração. Além de evidenciar a falta de regulamenta-
ção específica. Mesmo contrariando os órgãos ambientais competentes, o MME avançou nas negociações e publicou no DOU
a referida rodada, processo este freado pelo Ministério Público Federal (MPF) que ajuizou ação em diversos estados para sus-

02: Sistemas de Gestão e Governança


131
pender os efeitos da 12ª rodada de licitações para exploração de shale gas, que permanece até a presente data.
Os artigos, trabalhos, pesquisas e intensos debates sobre a exploração do shale gas a nível mundial incentivam uma
reflexão por parte dos órgãos nacionais competentes tanto no setor energético quanto no setor ambiental. A legislação nacional
deve ser respeitada em sua íntegra, assim como a manifestação dos órgãos competentes devem ser consideradas no processo
de abertura a este tipo de exploração: órgãos ambientais, de culturas e populações tradicionais, agricultura devido a concorrên-
cia no uso dos recursos hídricos e de terra. Os exemplos internacionais devem servir como direcionadores aos pontos de conflito
que devem receber intensa atenção antes da abertura a este tipo de exploração. No Brasil desde dezembro de 2013 as licitações
para este tipo de exploração estão suspensas por ação do MPF e a decisão.
Países da Europa como a Alemanha, França, assim como o Estado de Nova Iorque nos Estados Unidos fizeram moratórias
e proibições devidos aos grandes impactos negativos de vazamentos de produtos químicos, contaminação dos corpos hídricos
com metano, rádio e outros produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Estes exemplos negativos devem servir como pontos
de atenção e norteadores a parâmetros que devam ser observados na regulamentação do setor. Assim como o relatório da Agên-
cia Internacional de Energia (EIA) Golden Rules for a Golden Age of Gas e a Recomendação 2014/70/EU podem servir como
balizadores à proposta de Regulamentação do setor no país.
Além de todos os possíveis impactos negativos de larga escala apresentados: contaminação do solo, das águas superfi-
ciais e subterrâneas, indução sísmica, redução na disponibilidade de água, exposição do trabalhador a produtos químicos, con-
flito no uso do solo, a intenção é provocar a seguinte reflexão: neste atual momento de escassez mundial de água, vale correr o
risco em utilizar uma técnica exploratória com consumo de água 20 (vinte) vezes superior à técnica atualmente utilizada? Não há
outras alternativas para fonte de energia disponíveis com estabilidade e segurança para serem utilizadas ao invés de exploração
do shale gas, eólica, hidráulica, solar, maremotriz? Teremos respostas rápidas, um Plano de Emergência e contingência mesmo
sem a transparência 100% dos produtos químicos que serão utilizados no fracking? Como conter uma possível contaminação
do MAIOR MANANCIAL DE ÁGUA DOCE SUBTERRÂNEA transfronteiriço do mundo que com área de 1,2 milhões de Km² ou
melhor como reverter esta contaminação? Já houve tratativa com os outros países envolvidos: Paraguai, Uruguai e Argentina?

Referências
BAMBERGER, M.; OSWALD, R.E. Impacts Of Gas Drilling On Human. New solutions, v.22, n.1, p.51–77, 2012.

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BC OIL & GAS COMMISSION. Investigation of Observed Seismicity in the Horn River Basin. Canada: British Columbia,
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CHAMBRIARD, M. Discurso. In: Rio Oil & Gas Expo and Conference. Rio de Janeiro, 2014.

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nology to Understand the Environmental Impacts of Shale gas Extraction. Disponível em <shalegas_fullreporten.pdf> Acesso
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134
O PROGRAMA “MINHA CASA, MINHA VIDA” E SEUS EFEITOS SOBRE AS ÁREAS
PROTEGIDAS: ESTUDO DE CASO DA MATA ATLÂNTICA PARANAENSE

Sezerino, Fernanda de Souza1 & Tiepolo, Liliani Marilia1

1.PPG em Desenvolvimento Territorial Sustentável (Universidade Federal do Paraná).

Resumo
O litoral do Paraná abriga um dos maiores remanescentes do bioma Mata Atlântica. Apesar da existência de um sistema de Uni-
dades de Conservação (UC) regional, isso não tem garantido a proteção da região. Recentemente, um novo fator tem agravado
esta situação: a criação do Programa “Minha Casa, Minha Vida”, do Governo Federal, como parte do Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC). Desde a sua implantação, inúmeros loteamentos foram licenciados para a construção de novas moradias,
muitas vezes localizados no entorno imediato de áreas protegidas. Este estudo analisou a situação do bairro Porto Seguro no
município de Paranaguá, inserido na zona de amortecimento de duas UC e considerada Zona de Expansão Urbana pelo Plano
Diretor Municipal, onde estão sendo construídos diversos conjuntos habitacionais, colocado a população local e as áreas prote-
gidas em situação de vulnerabilidade.

Palavras-chave: Mata Atlântica, Política Habitacional, Políticas Públicas, Unidade de Conservação.

Introdução
O século passado foi marcado, principalmente no contexto geográfico brasileiro, por um significativo aumento demográ-
fico urbano, trazendo consequências diretas na estruturação e organização das cidades, desregulando ecossistemas e expondo
a população às situações de vulnerabilidade, como afirmam Maior & Cândido (2014). Somado a isso, a expansão urbana sobre
áreas naturais têm aumentado significativamente nas últimas décadas, ocasionando diversos impactos e conflitos socioambien-
tais, visto que, ecologicamente e socialmente são áreas fragilizadas.
Apesar da criação de diversas legislações e instrumentos de ordenamento, gestão ambiental e conservação da biodi-
versidade, principalmente a partir da década de 1930, eles não têm garantido a preservação e conservação dos remanescentes
florestais, da biodiversidade e, consequentemente, dos inúmeros serviços ambientais prestados, como observado no Litoral do
Paraná.
A situação é agravada nas áreas protegidas localizadas em áreas urbanas, como identificado no município de Paranaguá,
que destaca-se no cenário litorâneo pela maior população da região, com cerca de 140 mil habitantes, sendo 96% urbana. A
área territorial do município é de 826 km² e a densidade é de aproximadamente 170 habitantes/km² (IBGE, 2010). O município
também se destaca no cenário econômico estadual, devido à presença do Porto de Paranaguá, de grande relevância na América
Latina pelo escoamento da produção de grãos e farelos. A ocupação urbana do município sempre esteve ligada ao porto e seus
acessos. Com a ampliação da área portuária, os bairros residenciais foram impulsionados para regiões onde estão localizadas
as áreas naturais protegidas.
Recentemente, um novo fator tem agravado as intenções de conservação da natureza na região: a criação do Programa
“Minha Casa, Minha Vida” - PMCMV (Lei Federal Nº 11.977/2009), Política Habitacional do Governo Federal, como parte do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Desde a implantação do Programa, inúmeros loteamentos foram licenciados
para a construção de novas moradias, com recursos do Governo Federal. Ocorre que muitos deles estão localizados no entorno
imediato de Unidades de Conservação, ignorando as legislações ambientais, notavelmente o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC) (Lei Nº 9985/2000 e Decreto Nº 4340/2002), a Lei da Mata Atlântica (Lei Nº 11428/2006) e o Código Flo-
restal (Lei Federal Nº 12651/2012).
Considerando este contexto, esse trabalho teve como objetivo levantar o histórico de criação do PMCMV, contextuali-
zando com a criação de políticas e instrumentos ambientais, e, a partir disso, realizar uma breve análise histórica comparativa
para compreender os impactos socioambientais atuais da construção de moradias de interesse social.

02: Sistemas de Gestão e Governança


135
Metodologia
Para exemplificar a problemática do PMCMV na Mata Atlântica Paranaense, foi analisado o caso da construção dos
conjuntos habitacionais no bairro Porto Seguro em Paranaguá para a relocação de famílias residentes em áreas de risco da
região portuária do município. Porém, localizados no entorno imediato de duas Unidades de Conservação: a Floresta Estadual
do Palmito, de Uso Sustentável, criada em 1998 com 530 hectares inseridos na zona urbana e com seus limites a cerca de 400
metros do bairro Porto Seguro; e a Estação Ecológica de Guaraguaçu, de Proteção Integral, criada em 1992 com 1.150 hectares,
inserida na zona rural.
Para isso foi realizado um levantamento bibliográfico e documental sobre a temática, consulta em portais eletrônicos
oficiais, como do Ministério das Cidades, Ministério do Meio Ambiente, Caixa Econômica Federal, Prefeitura Municipal, dentre
outros, e consulta às políticas, legislações e instrumentos de gestão. Também foi realizado um levantamento e análise de imagens
de satélite disponibilizadas pelo Instituto de Terras, Cartografias e Geociências (ITCG), Secretaria Municipal de Meio Ambiente
de Paranaguá (SEMMA) e do software Google Earth, e visitas in loco para verificação das informações.

Uma breve análise do programa minha casa minha vida no contexto da


conservação da natureza
A entrada do Governo Lula (2003-2010) marca uma nova fase da Política Habitacional no Brasil. Para viabilizar as pro-
postas neste setor, o governo cria, em 2003, o Ministério das Cidades, dividido em quatro Secretarias: Habitação, Saneamento
Ambiental, Transportes e Mobilidade e Programas Urbanos, e diversos mecanismos institucionais de participação social, como
o Conselho Nacional das Cidades, as Conferências da Cidade e o Conselho Curador do Fundo Nacional de Habitação e Interes-
se Social. Somado a isso, ao longo de 2004 é elaborada a Política Nacional de Habitação por meio de quatro instrumentos: o
Sistema Nacional de Habitação, que abrange os subsistemas Habitação de Interesse Social e Habitação de Mercado; o Plano
de Capacitação e Desenvolvimento Institucional; o Sistema de Informação, Avaliação e Monitoramento da Habitação; e o Plano
Nacional de Habitação.
No ano seguinte, em 2005, foi aprovada a Lei Federal Nº 11124/2005, primeira Lei de iniciativa popular pós Constituição
de 1988, após 13 anos de tramitação. Ela regulamentou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), do qual
fazem parte o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e o Conselho Gestor.
Em 2007, já no segundo mandato do governo Lula, é lançado o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), com
recursos financeiros para o planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura no país, mantidos mesmo com a crise
econômica mundial em 2008. A reação do governo à crise foi rápida, adotando medidas de expansão de crédito pelos bancos
públicos para compensar a retração do setor privado, por isso ficou conhecida como uma política anticíclica (NAIME, 2010;
CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Como uma das consequências, pôde ser observado um “boom imobiliário” nessa época, como
observam Cardoso & Aragão (2013).
Com os recursos do PAC é lançado o Programa “Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV), em 2009, com objetivo de criar
condições de ampliação do mercado imobiliário para atendimento das famílias com renda de até 10 salários mínimos. O PM-
CMV foi aprovado pela Medida Provisória Nº 459/2009 e posteriormente convertida na Lei Federal Nº 11977/2009 e Decreto Nº
6962/2009, com a meta de construir um milhão de moradias.
Cabe ressaltar que o programa foi pensado como estratégia para mitigar os efeitos da crise econômica. Desta forma, ele
“transcende a questão habitacional e insere-se num projeto político mais amplo, que tem na indústria da construção civil elemen-
to-chave para dinamização da economia e o consumo como principal mecanismo de inclusão social” (CARDOSO; JAENISCH,
2014). Juntamente com o PAC, esses programas constituíram-se como “motor para a promoção do crescimento econômico do
país”, conforme ressalta Naime (2010).
Além disso, apesar dos avanços no sistema de habitação, como a promoção da participação social e o volume de re-
cursos, as análises do PMCMV revelam que o modelo anterior de produção de moradias não foi totalmente rompido, ou seja, o
modus operandi permaneceu, a iniciativa privada (empresas incorporadoras) continua sendo a promotora da política habitacio-
nal, decidindo onde o empreendimento será construído, a faixa de renda dos beneficiários e as características construtivas dos
imóveis, restando às administrações municipais (ou mesmo à sociedade civil) um papel coadjuvante neste processo (NAIME,
2010; CARDOSO; JAENISCH, 2014).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
136
Nesse desenho institucional, os empreendimentos são construídos e vendidos integralmente para a Caixa Econômica
Federal que o repassa aos beneficiários selecionados a partir de critérios definidos pelas administrações municipais. Assim, as
incorporadoras têm garantia de demanda, não precisam arcar com custos de comercialização e divulgação, além de geralmente
se beneficiar com a doação de terrenos, flexibilização das leis urbanísticas ou redução na tributação oferecida pelas administra-
ções municipais, como explicam Cardoso & Jaenisch (2014).
Essas facilidades explicam a nacionalização de empresas de atuação regional para o segmento popular, como as cons-
trutoras TENDA e MRV, além da migração de grandes empreiteiras para o segmento habitacional, como foi o caso da OAS e da
Odebrecht. Outro problema está na incapacidade dos municípios destinarem terras em volume satisfatório para a habitação so-
cial, que deveriam estar estabelecidos nos Planos Diretores, fazendo com que o problema da terra urbanizada e bem localizada
seja um dos principais gargalos da política habitacional atual (NAIME, 2010).
Em 2011, já no governo Dilma Rousseff, é lançado o PMCMV 2, com algumas mudanças, dentre elas a definição de me-
lhorias do padrão construtivo das unidades habitacionais, permissão de uso misto (residencial e comercial), estímulo a utilização
de soluções energéticas sustentáveis, dentre outras (CARDOSO; ARAGÃO, 2013).
Apesar do volume de recursos financeiros para o setor habitacional ter sido inédito e os resultados numéricos significa-
tivos, que em junho de 2013 atingiu a marca de mais de 2, 7 milhões de unidades construídas, esse modelo, baseado na lógica
de mercado, atingiu predominantemente a classe média, além de ter atendido aos interesses do empresariado da construção
civil (CARDOSO; ARAGÃO, 2013; CARDOSO; JAENISCH, 2014). Além do público privilegiado pela política, Cardoso & Aragão
(2013), apresentam outras críticas ao PMCMV que superam apenas resultados quantitativos: (i) a falta de articulação do pro-
grama com a política urbana; (ii) a ausência de instrumentos para enfrentar a questão fundiária; (iii) os problemas de localização
dos novos empreendimentos; (iv) excessivo privilégio concedido aos setor privado; (v) a grande escala dos empreendimentos
(vi) a baixa qualidade arquitetônica e construtiva dos empreendimentos; (vii) a descontinuidade do programa em relação ao
SNHIS e a perda do controle social sobre a sua implementação; e (viii) as desigualdades na distribuição dos recursos como fruto
do modelo institucional adotado (p. 44).
Parte desses problemas, podem ser explicados pelo fato do Programa ter desconsiderado diversas propostas que es-
tavam presentes no Plano Nacional de Habitação, proposta elaborada durante a campanha eleitoral do Governo Lula, dentre
elas a falta de articulação com a política urbana, como observa Bonduki (2009). Além disso, Cardoso & Aragão (2013) ressaltam
as contradições e a “confusão federativa” da política habitacional atual, visto que a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade
delegaram aos municípios a competência de definir e implementar os instrumentos da política urbana, ou seja, a dimensão da
“terra” é delegada a esfera municipal, enquanto o financiamento está na esfera federal (PMCMV).
Nesse sentido, pode-se observar que o Estado passa a assumir um papel mais de “facilitador”, pois a produção de mo-
radias não é feita diretamente por ele, estando restrito a gerar as condições materiais, institucionais e legais para a efetivação
dos projetos (NAIME, 2010). Cardoso & Aragão (2013) complementam que, a partir do PMCMV 2, o poder público municipal,
despreparado e pressionado por resultados, deixou de ter controle sobre a implantação dos empreendimentos habitacionais de
interesse social, tornando-se meros coadjuvantes desse processo, “atuando mais no sentido do relaxamento dos controles do
que de uma regulação efetiva” (p. 59).
Este contexto da criação e implantação do programa auxiliam na compreensão dos efeitos da construção desses novos
conjuntos habitacionais na conservação dos remanescentes florestais, serviços ambientais e na biodiversidade local. Isso se
deve ao fato da lógica de maximização dos lucros pelas construtoras, que buscam terrenos mais baratos para a construção dos
empreendimentos. Desta forma, pode-se observar que os empreendimentos para as famílias com rendas maiores concentram-
se em áreas mais centrais, enquanto para as famílias de baixa renda, em áreas muito distantes do tecido urbano, como relatam
Cardoso & Jaenisch (2014).
Ocorre que, muitas vezes, a localização dos terrenos mais baratos coincidem com o entorno imediato de áreas protegi-
das, estabelecidas por apresentarem risco de deslizamentos e enchentes, por exemplo, e por tanto, com baixo valor imobiliário,
atraindo os projetos das grandes construtoras. Contudo, aumentam o “custo social” dos empreendimentos, conforme apontam
Cardoso & Aragão (2013). Ressalta-se ainda que essas áreas protegidas possuem regulamentação específica quanto ao uso e
ocupação do solo em suas zonas de amortecimento. O histórico da criação de políticas ambientais é anterior às políticas habita-
cionais, como apontam os estudos de Urban (1998), Little (2003), Pádua (2004) e Medeiros (2006), como é o caso, por exemplo,

02: Sistemas de Gestão e Governança


137
da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Nº 6938/1981), do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei
Federal Nº 9985/2000 e Decreto Nº. 4340/2002) e da Lei da Mata Atlântica (Lei Federal Nº 11428/2006). Apesar de serem criados
anteriormente ao PMCMV, esses aspectos não estão sendo considerados na escolha do local dos empreendimentos e as legis-
lações ambientais têm sido ignoradas e/ou flexibilizadas pela política habitacional atual.
Dentre as flexibilizações, está o processo de licenciamento ambiental desses empreendimentos. A Resolução CONAMA
Nº. 412/2009 estabelece que o licenciamento ambiental de novos empreendimentos destinados à construção de habitações
de Interesse Social seja realizado de modo simplificado, cabendo ao órgão ambiental competente a instituição de critérios de
enquadramento neste caso. Isso se aplica aos empreendimentos de parcelamento de solo de até 100 hectares, no entanto, os
empreendedores resolveram facilmente este problema, subdividindo os megaempreendimentos em vários projetos, como ob-
servado nos estudos de Maricato (2009) e Cardoso & Aragão (2013).
Outro exemplo é referente à definição das Zonas de Amortecimento das UC. Antes mesmo da criação do SNUC (2000),
a Resolução CONAMA Nº 13/1990 já estabelecia que nas áreas circundantes das UC, em um raio de dez quilômetros, qualquer
atividade que possa afetar a biota, deveria ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental. Em 2010 essa resolução foi
revogada pela CONAMA Nº 438/2010. Ela diminuiu os limites de 10 km para apenas 3 km de raio, quando a zona não estiver
estabelecida no ato de criação ou Plano de Manejo da UC. Porém, são exceções as RPPNs, Áreas de Proteção Ambiental (APAs)
e Áreas Urbanas Consolidadas. No caso de empreendimentos não sujeitos a EIA/RIMA a zona de amortecimento considerada
será de 2 km, não se aplicando às Áreas Urbanas Consolidadas, APAs e RPPNs.
No que se refere às Áreas de Preservação Permanente, o novo Código Florestal (Lei Federal Nº 12651/2012), por exemplo,
alterado pela forte pressão do agronegócio, permite a supressão da vegetação nativa em APP em “hipóteses de utilidade pública,
de interesse social ou de baixo impacto ambiental” (Art. 8). Essa exceção já havia sido permitida pela Resolução CONAMA Nº
369/2006 que permite a regularização fundiária em áreas de APP em diversos casos, como relata Quintslr, (2012): (i) ocupações
de baixa renda predominantemente residenciais; (ii) ocupações localizadas em área urbana declarada como Zona Especial
de Interesse Social (ZEIS) no Plano Diretor ou outra legislação municipal; (iii) ocupação inserida em área urbana que possua
no mínimo três dos seguintes itens de infraestrutura urbana implantada: malha viária, captação de águas pluviais, esgotamento
sanitário, coleta de resíduos sólidos, rede de abastecimento de água, rede de distribuição de energia.
No caso das ZEIS, a sua instituição é um dos instrumentos da Política Urbana, prevista no Estatuto da Cidade e definida
na lei do PMCMV como “parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou definida por outra lei municipal, destinada
predominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do
solo” (Art. 47, inc. V). Cabe destacar que a declaração dessas zonas, para então serem consideradas como exceção à legislação
federal, fica a cargo da esfera municipal, como também é o caso do decreto de “Utilidade Pública”, assim como a caracterização
em “Área Urbana Consolidada”, o que pode causar diversos conflitos, visto que as decisões dos governos locais, muitas vezes,
são permeadas por outros interesses que não os sociais.
Considerando esse contexto, Zhouri & Laschetski (2010, p.17) afirmam que a presença do Estado mostra-se carregada
de dubiedade, pois “de um lado, surge como implementador das políticas conservacionistas autocráticas que acirram conflitos
ambientais; de outro, surge como mediador que, por vezes, se posta ao lado das populações atingidas”.

Os efeitos do pmcmv na conservação do litoral do paraná


O município de Paranaguá é um dos sete Municípios do Litoral do Estado do Paraná, sul do Brasil, região costeira inserida
integralmente no bioma Mata Atlântica, hotspot de biodiversidade. Toda a região do Litoral do Paraná possui prioridade “extrema-
mente alta” para a conservação, uso sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade (MMA, 2007). Apesar de grande
parte da área do litoral paranaense estar contemplado nos limites de algum tipo de categoria de Unidade de Conservação,
principalmente aquelas de uso sustentável, que não são consideradas efetivas para a proteção e conservação, todo o sistema de
unidades de conservação regional é caracterizado pela precária gestão, notável pela significativa ausência de planos de manejo,
conselhos gestores, servidores analistas ambientais e de processos de regularização fundiária, o que traz como consequência
inúmeros processos desencadeadores de conflitos ambientais em toda a região.
O histórico de ocupação e crescimento populacional do município tem forte ligação com o porto e seus acessos, via
ferrovia e rodovias (SEZERINO; TIEPOLO, 2013). Com a expansão portuária, diversos bairros foram transformados em zonas in-

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dustriais, estabelecidas pelo Plano Diretor do Município e pelo Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto Organizado de
Paranaguá (PDZPO) e a Mata Atlântica, pouco a pouco e progressivamente desmatada para atender as demandas do comércio
exterior, mesmo sendo um bioma com garantias especiais de conservação segundo a Lei da Mata Atlântica (Lei Nº 11428/2006).
Um dos exemplos é o bairro Vila Becker, localizado no entorno imediato dos quatro terminais de granéis líquidos do Porto
de Paranaguá, sendo um público, o Terminal Público de Álcool do Paraná, e três de empresas privadas: Petrobrás Transporte S/A
(Transpetro), Cattalini Terminais Marítimos S/A e União Vopak Armazéns Gerais (Figura 1). Juntos, possuem uma capacidade
para armazenar 540.781m³ de granéis líquidos (APPA, 2015). A região também apresenta outras empresas, como a Fospar S/A do
ramo de fertilizantes, deixando a população local à mercê de extremo risco e vulnerabilidade.
O bairro Vila Becker não é oficialmente reconhecido pela Prefeitura Municipal, que considera toda essa região como um
único bairro: a Vila Portuária, incluindo os moradores do Canal da Anhaia. Esta região apresenta cerca de 2.220 habitantes e 650
domicílios. A maioria dos moradores são mulheres, somando 52% do total de habitantes. A faixa etária predominante é de adul-
tos entre 30 a 59 anos, representando 34% dos moradores, seguido das crianças e jovens de 0 a 14 anos, cerca de 30% do total
(IBGE, 2010). De acordo com o Plano Diretor e o Zoneamento Urbano Municipal, a Vila Becker está inserida na Zona de Interesse
Portuário (ZIP), que segundo a Lei Complementar Nº 62/2007, “caracteriza-se pelo uso prioritário e preponderante de atividades
portuárias e correlatas, com potencial de impacto ambiental e urbano significativos” e tem como objetivos “dar condições de
desenvolvimento e incrementar as atividades portuárias; concentrar atividades incômodas ao uso residencial; e concentrar ativi-
dades de risco ambiental de forma controlada.
A população da Vila Becker sempre conviveu com os riscos de estar cercada pelas empresas portuárias que operam na
área, mas também por morarem em uma área de influência fluvio-marinha, os manguezais do rio Itiberê. Um dos acidentes que
atingiram a população ocorreu no dia 14 de julho de 2009, com o vazamento de álcool do Terminal Público de Álcool do Porto de
Paranaguá, obrigando várias famílias deixar suas residências. Como medida de resolução do conflito territorial, após esse e ou-
tros graves acidentes que colocaram em riscos a saúde e a vida da população local, o poder público municipal em conjunto com
a Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA) e em parceria com a Companhia de Habitação do Paraná (CO-
HAPAR) iniciou o processo de relocação das famílias para um novo bairro residencial, chamado Porto Seguro.
A região do bairro Porto Seguro, para onde as famílias estão sendo relocadas (Figura 1), está inserida na Zona de Consoli-
dação e Qualificação Urbana 2 (ZCQU-2), que se caracteriza por possuir “áreas consolidadas regulares e irregulares, áreas pas-
síveis de ocupação e proximidade com área de proteção e conservação ambiental”. Essa zona tem como objetivos: I. promover
a ocupação ordenada do território; II. qualificar a paisagem; III. implantar novos usos e atividades, principalmente o habitacional;
IV. ampliar a disponibilidade de equipamentos e serviços públicos; V. ampliar a oferta de infra-estrutura, de forma a possibilitar a
ocupação do território; VI. garantir a integridade do entorno, ambientalmente frágil.

Figura 1. Localização do bairro Vila Becker, totalmente inserido na Zona de Interesse Especial Portuário (ZIEP), à esquerda; e do bairro Porto
Seguro, inserido na Zona de Consolidação e Qualificação Urbana (ZCQU 2), limítrofe à Zona de Consolidação e Expansão Urbana (ZCEU 1) e
à Zona de Restrição à Ocupação (ZRO) onde está inserida a Floresta Estadual do Palmito (FEP), à direita.
Fonte: Dados Prefeitura Municipal de Paranaguá (2009); organização dos autores.

02: Sistemas de Gestão e Governança


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Como o próprio Plano Diretor reconhece, essa região é fragilizada, sob o aspecto ecológico. São áreas nativas de Floresta
Ombrófila Densa de Terras Baixas (florestas de planície) e de Formações Pioneiras de Influência Marinha (restingas), como se
pode perceber na Figura 1, à direita, por isso são áreas naturais sujeitas a inundações. O bairro Porto Seguro está localizado no
entorno imediato de duas Unidades de Conservação que protegem esses ecossistemas: a Floresta Estadual do Palmito, de Uso
Sustentável, criada em 1998 com 530 hectares inseridos na zona urbana e com seus limites a 400 metros do bairro Porto Seguro;
e a Estação Ecológica de Guaraguaçu, de Proteção Integral, criada em 1992 com 1.150 hectares. Estas áreas protegidas estão
distantes cerca de quatro quilômetros entre si.
A ZCQU-2 é limítrofe à Zona de Restrição à Ocupação (ZRO) pela existência de áreas com características naturais que
exigem tratamento especial devido a seu potencial paisagístico e ambiental (PDDI, 2007), onde está inserida a Floresta Estadual
do Palmito. A ZRO tem como objetivos: I. impedir a ocupação de forma a assegurar a qualidade de vida da população; II. preser-
var os manguezais, as margens e as nascentes dos canais de drenagem; III. possibilitar o uso e coleta dos recursos naturais de
forma planejada em compatibilidade com a conservação da natureza, seguindo as diretrizes e os objetivos do desenvolvimento
sustentável; IV. possibilitar a realização de atividades culturais, de lazer, de turismo e de contemplação de forma planejada; e V.
valorizar o potencial paisagístico das áreas de beleza cênica.
Esses ambientes naturais são extremamente importantes na promoção de inúmeros serviços ambientais, como a regula-
ção do regime hídrico, prevenção de assoreamentos e enchentes, regulação do microclima, entre outros, e por isso, são protegi-
dos por diversas legislações ambientais federais, dentre elas, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) (Lei Nº
9985/2000 e Decreto Nº 4340/2002), a Lei da Mata Atlântica (Lei Nº 11428/2006) e o Código Florestal (Lei Federal Nº 12651/2012).
Contudo, todo esse aparato jurídico não tem garantido a conservação dos remanescentes florestais, visto que, conforme re-
latado anteriormente, as legislações ambientais e de ordenamento territorial, como o Plano Diretor, por exemplo, são alteradas
e/ou flexibilizadas, permitindo o licenciamento do desmatamento, loteamento e implantação de diversos empreendimentos em
grandes áreas nativas.
A análise de uma série histórica de imagens de satélite (Figura 2) revela que a ocupação urbana na região do bairro Porto
Seguro é intensificada a partir de 2006, quando é elaborado o Plano Diretor do Município, estabelecendo essas áreas como de
expansão e consolidação urbana. Em 2008 é inaugurado o Instituto Federal do Paraná (IFPR) no bairro, área doada pela Prefeitu-
ra, também se constituindo como um marco da expansão urbana local. Porém, é a partir de 2009, com a criação do PMCMV que
o bairro sofre as maiores transformações, visto que diversos conjuntos habitacionais estão sendo construídos com recursos do
Governo Federal, especialmente por meio do PMCMV e do PAC. Pode-se observar que as dinâmicas de ocupação são bastante
aceleradas a partir de então, permitindo a identificação dos desmatamentos para a construção de novos conjuntos habitacionais.

Figura 2. Evolução da ocupação urbana na região do bairro Porto Seguro, no município de Paranaguá.
onte: ITCG (1996); SEMMA (2009); Google Earth (2006; 2013; 2014).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
140
No caso do Estado do Paraná, o Instituto Ambiental do Paraná (IAP) é o órgão ambiental competente pelos licenciamentos
dos loteamentos e dos empreendimentos habitacionais, que podem ser feito de forma simplificada, de acordo com a Resolução
CONAMA Nº 412/2009. Para a emissão da Licença Ambiental Simplificada (LAS), o IAP exige, dentre outros documentos: o
preenchimento de um cadastro do empreendimento, detalhando ou anexando um croqui de localização, contendo nascentes e/
ou corpos hídricos em um raio de 100 m, vias de acesso principais e pontos de referências para chegar ao local; Certidão Munici-
pal informando a compatibilidade do empreendimento com o estabelecido pelo Plano Diretor e Zoneamento Municipal, quanto
ao uso e ocupação do solo; e um Projeto Simplificado do Sistema de Controle de Poluição Ambiental.
Apesar da exigência de todos esses documentos, o processo de licenciamento ambiental simplificado é pouco transpa-
rente e participativo. No caso dos licenciamentos completos, ou seja, necessidade de emissão de Licença Prévia, Licença de
Instalação e Licença de Operação e de estudos ambientais mais complexos, como é o caso do EIA/RIMA, a legislação ambiental
obriga que os estudos sejam disponibilizados, apresentados e discutidos com a população em audiências públicas. Esse é o
principal mecanismo de participação social nos processos de licenciamento. Porém, no caso dos loteamentos e construção das
moradias no bairro Porto Seguro, os projetos e as licenças dos empreendimentos, bem como os Planos de Controle Ambiental,
não foram disponibilizados para consulta.
Neste sentido, Cardoso & Aragão (2013) relatam que a partir do PAC e do PMCMV a elaboração e implementação da
política urbana e a distribuição dos recursos deixa passar por mecanismos de participação social, refletindo as contradições
de um programa com objetivos ao mesmo tempo econômicos e sociais e que busca resolver o déficit habitacional unicamente
por meio da atuação da iniciativa privada. Esses mecanismos, garantidos na Constituição, se executados nos espaços de par-
ticipação social, poderiam também auxiliar na discussão dos impactos ambientais desse modelo de construção dos conjuntos
habitacionais e, em conjunto com a sociedade, discutir novas propostas e alternativas.
Além dessa, outras consequências das flexibilizações nas legislações podem ser apontadas, como os impactos ambi-
entais causados pelo desmatamento da vegetação nativa, compactação do solo, pressão antrópica sobre as UC e as áreas de
mananciais, dentre outros. Como agravante, pode-se observar que a construção desses empreendimentos imobiliários nessa lo-
calidade, regularizados sob o aspecto jurídico, tem colocado a população em situação de vulnerabilidade socioambiental, como
explicam Mello-Théry, Landy & Zérah (2010). Os autores ressaltam que o desconhecimento de estratégias da política habitacional
pela política ambiental (e vice-versa) resulta em escolhas de locais para ocupação das populações de baixa renda que têm rep-
resentado um alto ônus ao ambiente local, como é o caso das zonas de amortecimento das Unidades de Conservação que “sim-
bolizam a pressão antrópica sobre as áreas protegidas, a exclusão social e as difíceis relações entre políticas públicas” (p. 203).
Na mesma linha, Cartier et al., (2009) trazem indicativos de que a escolha de moradia frente aos riscos ambientais ger-
almente está relacionada com a capacidade financeira dos grupos sociais. Assim, a camada populacional mais pobre não tem
opção de saída destes espaços, fortalecendo os laços entre a vulnerabilidade social e a vulnerabilidade ambiental e propiciando
diversos conflitos socioambientais.
Somado a isso, temos os processos de ocupação irregular, que são facilitados com os novos loteamentos e a abertura de
novas vias de acesso próximas ao bairro. Podemos observar a intensificação de vias e a ocupação no entorno do bairro regula-
rizado, cada vez mais próximo dos limites da Floresta Estadual do Palmito, na análise da Figura 2.
Esse fenômeno explica a “periferização” do entorno de UC em áreas urbanas, que passam a abrigar grande parcela da
população pobre dos municípios. Holz & Monteiro (2008, p. 2) explicam que sempre houve um “descompasso entre o acesso
à moradia e o crescimento populacional” no Brasil. Para os autores, o mercado imobiliário capitalista, os baixos salários, e a
desigualdade social impossibilitaram o acesso à moradia para grande parte da população, o que levou a ocupação de áreas ile-
gais no país. Essas regiões geralmente carecem de infraestrutura urbana e serviços públicos, que, somados aos riscos naturais,
agravam a situação de vulnerabilidade socioambiental da população local e da conservação das áreas protegidas.

Considerações Finais
Apesar de diversas legislações ambientais e instrumentos de gestão terem sido criados anteriormente às políticas habita-
cionais, em especial ao Programa “Minha Casa, Minha Vida” em 2009, podemos observar com este estudo de caso no município
de Paranaguá que esses aparatos jurídicos têm sido ignorados e ou flexibilizados a fim de regularizar a implantação de em-
preendimentos imobiliários em áreas protegidas e seus entornos imediatos. Esse fato prejudica o cumprimento dos objetivos de

02: Sistemas de Gestão e Governança


141
conservação da biodiversidade, dos recursos naturais e dos serviços ecossistêmicos, necessários à vida, dentre eles, em meio a
crise atual, o volume e a qualidade da água, além do objetivo maior, do desenvolvimento sustentável.
O contexto da crise econômica mundial e os objetivos do lançamento do PMCMV em fomentar a construção civil no país
como forma de enfrentamento da crise permite a compreensão do desenho institucional do programa, que deixa a construção
de habitações de interesse social a cargo da iniciativa privada. Porém, parte dos problemas socioambientais identificados na
implantação desses empreendimentos imobiliários poderia ser minimizada por meio do estabelecimento de condicionantes para
recebimento dos recursos, como acontecem em políticas de outros setores, citados por Cardoso & Aragão (2013). Dentre as
condicionantes, poderia estar a exigência de utilização dos instrumentos existentes na política urbana, estabelecidos no Estatuto
das Cidades, e na política ambiental.
Analisando o caso de Paranaguá, podemos perceber os entraves existentes na garantia dos direitos fundamentais da
moradia e do meio ambiente equilibrado, estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Contudo, fica evidente que tanto a pro-
blemática habitacional como a ambiental, para terem resultados efetivos precisam ser planejadas e implementadas em conjunto,
ou seja, são políticas intersetoriais. Conjuntamente, a participação social deve ser assegurada, na tentativa de identificar novas
possibilidades, como por exemplo, a ocupação de “Vazios Urbanos” como alternativa locacional das habitações de interesse
social.
Cabe ainda destacar, que a descentralização promovida pela Constituição é, no mínimo, controversa, pois analisando
os estudos de caso, podemos observar que o poder local tem agido sobre outros interesses, sejam políticos ou econômicos,
permitindo alterações nos planos diretores e zoneamentos a favor da iniciativa privada, em especial do setor imobiliário. Isso pro-
voca efeitos irreparáveis sobre a conservação da biodiversidade e à população local, visto que os inúmeros serviços ambientais
prestados são comprometidos pela expansão urbana sobre as áreas protegidas.
Caso não sejam tomadas novas medidas de reformulação da política ou ao menos, no estabelecimento de novas condi-
cionantes ao acesso dos recursos, e considerando o quadro atual de flexibilização das legislações, podemos afirmar que os
impactos e conflitos ambientais serão intensificados. Desta forma, uma parcela cada vez maior da população estará exposta às
situações de vulnerabilidade socioambiental.

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02: Sistemas de Gestão e Governança


143
A PROBLEMÁTICA DOS CASTANHAIS ACESSADOS PELA
POPULAÇÃO TRADICIONAL DA RESEX ARAPIXI:
AMEAÇA DO DESMATAMENTO DO PAE ANTIMARY

Oliveira, Jardeson Monteiro de1; Silveira, Leonardo Konrath da2; Lopes, Jordan Fonseca3 & Oliveira,
Késsia Monteiro de4

1. Universidade do Estado do Amazonas jardson.17@hotmail.com 2. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade; 3. Centro
Tecnológico do Amazonas; 4. Universidade do Estado do Amazonas.

Resumo
A Reserva Extrativista Arapixi apresenta uma grande ameaça em um de seus principais recursos acessados por sua população
tradicional: as colocações de castanha do Brasil. Devido à delimitação da Resex Arapixi não abranger a totalidade das colocações
de castanha do Brasil, as colocações que ficaram de fora de seus limites encontram-se sob forte ameaça do desflorestamento
proveniente do PAE Antimary. Foram mapeadas todas as colocações de castanha do Brasil nos igarapés acessadas pelos Ara-
pixianos. Através dos dados obtidos foi possível estimar a distância que se encontra o desflorestamento das últimas colocações
de castanha. Estas informações são fundamentais para respaldar o processo de ampliação da Resex Arapixi a fim de que as
colocações de castanha do Brasil sejam englobadas no seu interior, garantindo assim a efetiva proteção destes recursos.

Palavras-chave: RESEX Arapixi, Colocações de Castanha, Arapixianos, Desmatamento, Unidade de Conservação.

Introdução
De acordo com as normas brasileiras, o ambiente, assim como bens ambientais que o integram (conhecidos também
como recursos ambientais tais como água, floresta, flora, fauna, biodiversidade, etc.), são bens de uso comum do povo e, por isso
mesmo, têm sua apropriação e o seu uso privados controlados (BENATTI, 2005).
Em termos de conservação e uso dos recursos naturais da Amazônia, as questões mais urgentes relacionam-se à perda
em grande escala pelo avanço do desmatamento ligado às políticas expansionistas de desenvolvimento desenfreado na região,
especulação de terra, crescimento desordenado das cidades, aumento da pecuária bovina, exploração madeireira, construção
de estradas e agricultura mecanizada (FEARNSIDE, 2003; ALENCAR et al., 2004; LAURANCE et al., 2004). A situação em relação
ao desmatamento é tão crítica que, a mais de dez anos que o Governo Federal criou um Grupo Interministerial a fim de combater
o desmatamento e apontar soluções para minimizar seus efeitos na Amazônia legal (MMA, 2004). Porém não ocorreu como
planejado, pois o desmatamento continuou e continua aumentando ano a ano. A dinâmica e os problemas inerentes à Amazônia
resultam mais da ausência do Estado do que da própria intervenção estatal (CLEARY, 1993).
Nas últimas décadas a Floresta Amazônica vem sendo destruída de forma rápida e constante. A especulação fundiária e
a corrida pelos recursos naturais têm acirrado conflitos fundiários e aumentado os casos de violência e assassinatos no campo,
além de acelerar o processo de desmatamento (BARTHOLO et al., 2005). O avanço crescente da agropecuária e, ainda, as
inúmeras invasões de terras e/ou ocupações desordenadas, são apontados como alguns dos principais fatores que agravam
essa situação, devastando ecossistemas desse importante bioma e às formas tradicionais de vida ali existentes (ICMBIO, 2010).
Apesar de vários órgãos reguladores e fiscalizadores, governamentais e não governamentais promoverem grandes es-
forços para manter a floresta nativa em pé, a floresta Amazônica é derrubada por diversas razões, mas a principal delas é a
expansão das grandes e médias propriedades, responsáveis por 70% do desmatamento (FEARNSIDE, 2003). As populações ex-
trativistas são antagonistas históricos e uma força de resistência contra a absurda cultura expansionista da agricultura e pecuária
extensiva na Amazônia (ALLEGRETTI, 2002). Em termos de conservação e uso dos recursos naturais da Amazônia, as questões
mais urgentes relacionam-se à perda em grande escala pelo avanço do desmatamento ligado às políticas expansionistas de de-
senvolvimento descontrolado na região, especulação de terra, crescimento desordenado das cidades, aumento da pecuária bo-
vina, exploração madeireira, construção de estradas e agricultura mecanizada (ALENCAR et al., 2004; LAURANCE et al., 2004).
A Instrução Normativa n0 3, de 8 de setembro de 1992 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),

02: Sistemas de Gestão e Governança


145
reconhece que áreas de floresta nativa são consideradas improdutivas e, portanto, passíveis de desapropriação para fins de
reforma agrária (BRASIL, 1992). Com isso os fazendeiros, visando dar a terra uma suposta “função social”, executam as der-
rubadas, retiram a madeira com interesse econômico e acaba substituindo a floresta nativa por pastagens, inicialmente para
o uso da pecuária. Após a utilização da pecuária, muitos latifundiários substituem o gado por lavouras e monocultura, que
possuem elevada dependência de insumos externos, como agrotóxicos, os quais contaminam o solo, os aquíferos superficiais
e subterrâneos. Além de afetar diretamente a biodiversidade, ocasionando uma seleção artificial de diversos organismos, im-
pactam diretamente os microrganismos detritívoros encontrados nos solos, e por sua vez auxiliam na decomposição de matéria
orgânica, essenciais para ciclagem de nutrientes e enriquecimento do próprio solo. Como o solo acaba perdendo sua fertilidade,
são necessárias cada vez maiores cargas de nutrientes externos ou agrotóxicos, devido ao fortalecimento de algumas espécies
selecionadas artificialmente, tornando o processo cada vez mais oneroso o que acaba por resultar em abertura de novas áreas.
A Reserva Extrativista Arapixi é uma Unidade de Conservação (UC) de Uso Sustentável, localizada no município de Boca
do Acre, sul do Amazonas. Seus moradores/beneficiários vivem basicamente do extrativismo da castanha do Brasil, do açaí, da
andiroba, do cupuaçu, do cacau “nativo” e da borracha. Em relação a esse último benefício, os baixos preços de mercado, tem
ocasionado uma grande diminuição do número de famílias dependentes deste recurso.
Inicialmente, antes mesmo da criação da Resex Arapixi, a maior parte das famílias fixaram moradia no local onde hoje ain-
da se encontram, devido aos seringais que eram utilizados principalmente na metade inicial do século passado, para a extração
da seringa. Especificamente em relação ao extrativismo da castanha do Brasil, ocorre em um curto espaço de tempo, aproxima-
damente no período de apenas três meses do ano. Ocorrendo nos meses de novembro (últimos dias) a março (primeiros dias),
justamente no período chamado de inverno Amazônico, onde rios e igarapés apresentam maior vazão, o que acaba por facilitar
o deslocamento e transporte da castanha do Brasil.
Apesar da sua grande importância e diversidade, a RESEX Arapixi tem sofrido uma forte pressão atualmente no seu
principal recurso, justamente o recurso acessado pela população tradicional que ali vive e dos quais tanto depende financei-
ramente ao longo de todo o ano. A ameaça em questão refere-se ao avanço do desmatamento localizado nos limites ao sul da
RESEX Arapixi, avançando em direção as diversas colocações de castanha acessadas pelos moradores/beneficiários desta UC.
Este avanço do desflorestamento, tem tornado cada vez mais difícil encontrar animais silvestres em seus respectivos habitats
e, algumas espécies vegetais também vêm sofrendo severos impactos. Em alguns casos correndo o risco de deixar de existir
naquele local. A própria castanha do Brasil (Bertholetia excelsa H.B.K.), provavelmente a espécie de maior interesse comercial
para a população tradicional local, acaba sendo também a espécie mais ameaçada entre todas independentes de fauna ou flora.
O presente artigo tem como objetivo geral apresentar a importância da conservação dos castanhais acessados pela
população tradicional da RESEX Arapixi e a importância fundamental da ampliação desta UC para a proteção dos castanhais. Os
objetivos específicos deste trabalho são o mapeamento dos castanhais acessados pela população tradicional da RESEX Arapixi,
nos igarapés: Fraga, Cedro, Manithiãn, Extrema, São Benedito, São Raimundo e Sossego; embasar a ampliação da RESEX Ara-
pixi através do mapeamento dos castanhais, apresentando informações que justifiquem não somente a conservação do ambiente
em si, mas também garantir a preservação da cultura e dos costumes da população tradicional que acessa e vem utilizando estes
recursos a diversas gerações.

METODOLOGIA
O trabalho foi desenvolvido na RESEX Arapixi, Unidade de Conservação Federal de Uso Sustentável. A RESEX Arapixi
foi criada em 21 de junho de 2006 através do Decreto Presidencial s/n, tendo como objetivos a proteção dos meios de vida e a
cultura da população extrativista residente na área de sua abrangência e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da
unidade. A UC apresenta uma área total de 133.637 hectares, localizada no município de Boca do Acre/AM, a aproximadamente
a 40 quilômetros de distância de sua sede (Figura 1). A UC é praticamente cortada ao meio pelo Rio Purus, apresentando em
seu interior cerca de dezesseis comunidades, com aproximadamente 700 pessoas divididas em 160 famílias. Para fins de melhor
explanação os moradores/beneficiários da RESEX Arapixi serão referidos no texto como Arapixianos.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 1. Localização da Reserva Extrativista Arapixi.

O mapeamento das colocações de castanha do Brasil foi realizado no período de fevereiro a abril de 2015, através de
recursos disponibilizados do Programa Áreas Protegidos Da Amazônia (ARPA). Foram mapeadas todas as colocações de cas-
tanha do Brasil existentes nos seguintes igarapés: Fraga, Cedro, Manithiãn, Extrema, São Benedito, São Raimundo e Sossego. Os
igarapés foram percorridos desde a sua foz no Rio Purus até a última colocação acessada pelos Arapixianos. Vale ressaltar que
não foi objetivo desse trabalho mapear as colocações de pessoas que não eram Arapixianos.
Para o mapeamento das colocações de Castanha do Brasil foram estruturadas duas equipes, as quais foram compostas
por dois técnicos Florestais e por dois Arapixianos que “quebram” castanhas do Brasil naqueles respectivos igarapés a ser
mapeado. Os Arapixianos que compunham cada equipe tinham como função auxiliar na condução da canoa, como proeiro e/
ou popeiro, devido à enorme dificuldade de acesso aos igarapés e pela grande quantidade de árvores, e galhos com espinhos,
caídos no meio deste. Os Arapixianos também tinham a função de guias, orientando a localização de cada colocação, e seus
respectivos “donos” assim como a comunidade onde estes residem.
Foram coletadas as coordenadas geográficas de cada colocação através do uso de dois GPS Garmin Etrex Vista HCx,
utilizando o Datum WGS-84. As coordenadas geográficas foram registradas na sede de cada colocação e registradas em uma
planilha para evitar a perda de dados, assim como foram registrados em cada GPS. A sede das colocações geralmente é chama-
da pela população tradicional como tapiri ou papiri, sendo este o local que é utilizado como base e/ou moradia durante o período
de extração/quebra da castanha do Brasil. Também não foi objetivo deste trabalho mapear cada uma das árvores de castanha
do Brasil que compõem cada colocação, devido à falta de condições técnicas para o desenvolvimento desta atividade. Com a
cheia que atingiu os igarapés e o Rio Purus de fevereiro até início de abril, as atividades tiveram de ser paradas até que as águas
voltassem ao seu normal para aquela época. A retomada das atividades de mapeamento nos Igarapés Fraga e Cedro foram
retomados no dia 06 de abril.
Para análise dos dados foram plotadas as coordenadas geográficas de cada colocação e adicionadas no software Track-
Maker, gerando assim um mapa com os pontos para servir de base e assim confeccionar o mapa principal, com todas as coloca-
ções mapeadas. Por conseguinte, foi utilizada uma imagem do satélite Landsat 7, do mês de julho de 2014. A imagem foi inserida
em um Sistema de Informações Geográficas (SIG), elaborado no software Quantum GIS (QGIS), tendo este sido escolhido por se
tratar de software freeware. Em seguida foram inseridos os shapes com os limites da RESEX Arapixi, Terras Indígenas Camicuã
e Terra Indígena Igarapé Capana, e foram inseridos os pontos coletados referentes a cada colocação. Em seguida foram confec-
cionados os mapas referentes a cada igarapé mapeado. Desta forma foi estruturado o SIG para as colocações de castanha do
Brasil utilizadas pelos Arapixianos.
Foi realizado um levantamento bibliográfico para o embasamento teórico deste trabalho, através da consulta de diversos
documentos da RESEX Arapixi, tais como o Plano de Manejo da RESEX Arapixi, o Decreto Federal que cria a UC, atas de re-
uniões, oficinas e capacitações, livros e, artigos científicos disponibilizados em periódicos acessados viam online.

02: Sistemas de Gestão e Governança


147
Resultados e Discussão
Os igarapés mapeados só são possíveis de trafegar através de barcos e/ou canoas no período do “inverno amazônico”.
Essa estação apresenta a quantidade de água necessária para trafegar pelos igarapés, facilitando o acesso às colocações de
castanha do Brasil e, assim, facilitando também o escoamento desta pela população tradicional. Em outros períodos do ano
não é possível acessar por barco estes igarapés, pois o nível das águas é baixo demais, quase secando os igarapés. Por motivo
desses obstáculos para acessar as colocações de castanha do Brasil no decorrer do ano, estes acabam por se tornar muito mais
suscetíveis às pressões provenientes das áreas invadidas, já que as colocações ficam praticamente abandonadas na maior parte
do ano. Muitas vezes os Arapixianos ficam mais de oito meses sem visitar suas colocações, já que após deixarem suas coloca-
ções no mês de março, a maioria somente retorna no final de novembro ou início de dezembro para “limpar” seus piques e os
próprios igarapés.
A maior parte dos igarapés percorridos é de difícil acesso, sendo que alguns podem levar até três dias para chegar a
ultima colocação que é utilizada pelos Arapixianos. O único igarapé a apresentar fácil acesso foi o Igarapé Sossego, já que o
mesmo pôde ser percorrido de “voadeira” com motor de 40 HPs. O mesmo foi percorrido em somente um dia, levando apenas
algumas horas entre a entrada e saída do mesmo.
Uma das maiores dificuldades é que mesmo “limpando” o igarapé, no início do período da quebra da castanha do Bra-
sil, ao percorrer novamente o igarapé os Arapixianos muitas vezes necessitam fazer todo o serviço novamente, pois devido às
chuvas, que são abundantes neste período, muitas árvores são derrubadas desabando no igarapé. O “tapiri” que os moradores
utilizam, em sua maioria é coberto por telhas de alumínio e/ou palhas, sendo o mais comum à cobertura por palhas. O local é
aberto nos lados, permitindo a entrada de insetos. Os tapiri em sua maior parte são altos, distantes do chão, a fim de dificultar
a entrada de cobras e outros animais de maior porte. Um dos maiores obstáculos encontrado no transcorrer do mapeamento
foi à dificuldade no acesso as colocações. Devido ao nível dos igarapés estarem em seu auge, acabou dificultando o acesso às
colocações, para coletar as coordenadas geográficas, fotos e informações do proprietário.
Em algumas colocações são extraídas mais de 1.200 baldes de castanhas do Brasil, sendo que um balde possui o peso
de 15 kg. Um das menores colocações retira a média de 500 baldes. A grande diferença de uma colocação de castanha do Brasil
para outra ocorre devido à alta quantidade de castanheiras que compõem a colocação propriamente dita. Assim como pode estar
diretamente ligado à idade das próprias castanheiras, já que as mais velhas produzem mais ouriços, os quais “carregam” as cas-
tanhas do Brasil propriamente ditas. Outro fator que impacta diretamente a quantidade de baldes de uma colocação para outra é
a quantidade de árvores de castanha que cada colocação apresenta. Mais uma variável que acaba por influenciar a quantidade
de baldes gerados por colocação é o próprio desmatamento, sendo que os Arapixianos não quebram castanha de árvores que se
encontram em campos, devido à falta de proteção ao Sol, já que estes ficam expostos por muito tempo se não houver cobertura
vegetal para protegê-los da radiação solar.
A primeira comunidade onde teve início os trabalhos de mapeamento foi à comunidade Manithiãn. Foram necessários
aproximadamente quatro dias para mapear todas as colocações no igarapé Manithiãn. Sendo necessárias 36 horas para alcançar
a última colocação deste igarapé e praticamente o mesmo tempo para voltar. Foi utilizada uma canoa pequena e um motor 5,5
HP do Sr. Tonho, Arapixiano daquela comunidade. O Sr. Tonho leva em média dois dias e meio para chegar, não só por causa
da grande distância a ser percorrida, mas principalmente devido aos inúmeros obstáculos já anteriormente citados. A distância
da sua foz no Rio Purus, até a última colocação é de aproximadamente 28,5 km (medidos em linha reta do ponto de entrada do
igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). O motor de 5,5 HP somente é utilizado na “subida” do igarapé, pois para
retornar utiliza-se somente o remo, já que este igarapé apresenta uma grande correnteza. Os remos são utilizados para navegar
seguramente na canoa, podendo levar de cinco a seis dias para retornar à Comunidade Manithiãn, com a canoa devidamente
carregada de castanhas do Brasil. No entanto, mesmo em meio a tantas dificuldades foi possível catalogar todas as dezesseis
colocações utilizadas pelos Arapixianos. Todavia para chegar à última colocação foi necessária uma caminhada de 11,5 km, entre
o igarapé e o último pique da colocação, no meio da floresta.
A maior parte das colocações situadas no Igarapé Manithiãn está posicionada no Projeto de Assentamento Agroextra-
tivista (PAE) Antimary. Infelizmente devido aos limites da RESEX Arapixi terem sido estabelecidos sobre os limites dos títulos
privados que se encontrava naquela área e que foram “englobadas” na criação da UC, algumas colocações de castanha do Brasil
ficaram de fora dos seus limites, neste caso ficando as colocações no interior do PAE Antimary. Das quinze colocações existentes

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no Igarapé Manithiãn acessados pelos Arapixianos, somente três encontram-se dentro dos limites da RESEX Arapixi. As outras
doze colocações situam-se em uma área facilmente suscetível ao desflorestamento, já que não estão sob a tutela direta do IC-
MBIO, representado localmente pela equipe gestora da RESEX Arapixi, não sendo possível uma atuação mais direta naquela
área. A principal preocupação em relação a este igarapé refere-se ao desmatamento proveniente do PAE Antimary encontrar-se a
menos de 1,5 km do último pique da última colocação neste igarapé. Provavelmente este desflorestamento encontra-se muito mais
próximo, já que algumas castanheiras estão localizadas na direção do mesmo e por este trabalho não ter mapeado cada árvore.
No igarapé Extrema foram necessários dois dias e meio para mapear e obter os dados. Para alcançar a última colocação
foi necessário um dia e meio e para percorrer este igarapé foram utilizados uma canoa pequena e um motor 5,5 HP, até onde
o Arapixiano conhecido por DIM tem a sua colocação de castanha do Brasil, neste caso a última colocação daquele igarapé.
O Senhor Dim. leva em média três dias para chegar a sua colocação. Este igarapé é muito estreito, o que acaba bloqueando a
passagem de canoas maiores, assim como é fácil que árvores ou até mesmo galhos caídos acabam por bloquear o caminho,
tornando ainda mais lento o trajeto. A última colocação de castanha do Brasil, a colocação do Senhor Dim. encontra-se distante
do Rio Purus 20,5 km (medidos em linha reta do ponto de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Neste
igarapé é comum encontrar grandes árvores caídas.
Apesar da utilização do motor 5,5 HP na maior parte do igarapé Extrema, o trecho final deste só é acessível através da
utilização de remo. O retorno com a canoa cheia de castanhas do Brasil leva em media de seis a sete dias para retornar à comu-
nidade São José. Na colocação do Senhor Dim. são extraídas em média de 900 a 1000 baldes de castanha do Brasil. O Senhor
Dim. informou que o desmatamento a cada ano encontra-se cada vez mais próximo, e foram derrubadas diversas castanheiras.
Também informou que estão caçando animais de forma desenfreada. O desmatamento fica a quase 3 km de distância da sede
da colocação do Senhor Dim., sendo esta distância provavelmente muito inferior às castanheiras em si, já que as coordenadas
geográficas referem-se a “tapiri” do Senhor Dim. e não a última árvore acessada por este. Após o final do mapeamento o Senhor
Dim. informou que o desmatamento já chegou a sua colocação, onde já encontrou pastagens e campos no entorno de algumas
das castanheiras que compõem sua colocação. Neste igarapé existem dez colocações de castanha do Brasil de Arapixianos. Em
algumas destas colocações são extraídas apenas 400 baldes e em outros mais do que o dobro disso, como no caso da colocação
do senhor Dim., já citada anteriormente.
Na comunidade Nova Amélia, o acesso ao Igarapé São Benedito se dá por meio do lago homônimo a comunidade. Este
foi um dos igarapés que apresentou maior dificuldade, já que o mesmo encontrava-se com muitos galhos e árvores caídas, tor-
nando o deslocamento tediosamente lento. O motivo pelo qual este igarapé encontrava-se desta forma é que nenhum Arapixiano
ainda havia o percorrido até a última colocação no ano de 2015. O Sr. Leno que acompanhou a equipe de mapeamento, declarou
que na maioria das vezes a última colocação, a qual a proprietária é a Dona Wanda, também é a ultima a ser “quebrada”, princi-
palmente devido a necessidade do igarapé “ter mais água”, facilitando o acesso e a navegação.
Os tapiris encontrados neste igarapé apresentavam o mesmo padrão do igarapé Manithiãn e Extrema. Para alcançar a
última colocação também foi necessário o deslocamento em um dia e meio, através de uma canoa pequena e motor de 5,5 HP.
Os Arapixianos que possuem colocações neste igarapé, comumente necessitam de dois dias e meio até três dias para chegar
à última colocação, embora utilizem canoas maiores. No total os Arapixianos precisam de quatro a seis dias entre acessar suas
colocações e retornar a comunidade, já com as castanhas do Brasil devidamente “quebradas”, não sendo considerado o período
necessário para a “quebra” destas. A distância desta última colocação até o Rio Purus é de 20 km (medidos em linha reta do
ponto de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). No igarapé São Benedito foram mapeadas dez colo-
cações de castanha do Brasil, onde na menor colocação são retirados em média 600 baldes e na maior são retirados mais 1.100
baldes de castanha.
O desflorestamento encontra-se cada vez mais próximo da última colocação deste igarapé, localizando-se a apenas 2,5
km de distância do “tapiri” da colocação. O Sr. Leno alegou que já estão sendo sentidos os impactos desta ameaça, pois princi-
palmente diversos animais que antes eram comuns, agora dificilmente são vistos, dificultando a alimentação dos Arapixianos no
período de quebra da castanha.
O Igarapé São Raimundo está situado na comunidade Santo Honorato apresenta a mesma conformidade com os outros
igarapés, sendo estreito, com diversas árvores caídas e com correnteza muito forte. No período em que foi realizado o ma-
peamento das colocações de castanha do Brasil este se encontrava totalmente alagado devido as fortes chuvas do período.

02: Sistemas de Gestão e Governança


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A distância da última colocação neste igarapé até o Rio Purus é de 20 km (medidos em linha reta do ponto de entrada do
igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Para percorrer todo o igarapé foi necessário um dia e meio para chegar
a ultima colocação de castanha do Brasil. Também foi utilizada uma canoa pequena e um motor 5,5 HP. Os Arapixianos que pos-
suem colocações de castanha do Brasil neste igarapé afirmam que gastam geralmente dois dias para chegar a ultima colocação,
pois a canoas que estes utilizam possuírem um tamanho superior àquela que foi utilizada no mapeamento e, assim, impedindo as
manobras no igarapé. A menor colocação de castanha neste igarapé extrai mais de 400 baldes de castanha do Brasil, já a maior
extrai em torno de 1000 baldes. Neste caso a colocação que mais produz fica fora dos limites da RESEX Arapixi.
No igarapé São Raimundo existe sete colocações, sendo que quatro encontram-se fora dos limites da RESEX Arapixi. Os
tapiris que os Arapixianos utilizam neste igarapé são apenas cobertos por palhas. Após a análise dos dados observa-se que o
desflorestamento está a menos de 2,5 km da última colocação de castanha do Brasil.
O penúltimo igarapé mapeado foi o Igarapé Sossego, o qual marca o limite extremo da RESEX Arapixi no Rio Purus.
Como já foi exposto anteriormente o acesso ao igarapé Sossego foi bastante fácil, onde foi possível realizar o mapeamento pelo
meio de uma “voadeira” com motor de 40 HP. Foram necessárias cerca de quatro horas entre acessar a última colocação e retor-
nar até a sede do Seringal Arapixi. O Igarapé Sossego apresenta ótimas condições de navegabilidade, já que não foram encontra-
das quaisquer árvores caídas ou qualquer outro tipo de dificuldade para percorrê-lo. O Igarapé Sossego apresentam condições
de navegabilidade durante quase todo o ano. Segundo o Sr. Luiz da Mata, o qual possui uma colocação neste igarapé, leva em
cerca de um dia para chegar nesta colocação. A distância da última colocação até o Rio Purus é de somente 14 km (medidos
em linha reta do ponto de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Os tapiris neste igarapé também são
cobertos por palhas, alumínio e lonas, sendo aberto dos lados.
Na maioria das colocações encontradas no Igarapé Sossego, são extraídas em media de 600 a 1000 baldes de castanha
do Brasil. Neste igarapé existem oito colocações pertencentes à Arapixianos, onde somente duas encontram-se fora dos limites
da RESEX Arapixi.
O ultimo igarapé mapeado foi o Fraga que tem como seu afluente o igarapé Cedro. Ele está situado na divisa das comu-
nidades Maracaju I e Porto Alegre. Foram necessários seis dias para mapear todas as colocações nestes dois igarapés. Foram
necessários dois dias para chegar à última colocação de castanha do Brasil no Igarapé do Fraga. Após finalizá-lo iniciou-se o
mapeamento em seu afluente, o Igarapé Cedro, onde foram necessários mais dois dias para chegar a ultima colocação e, ainda,
mais dois dias para retornar ao Rio Purus. Para percorrer estes dois igarapé também foi utilizada uma canoa pequena e um motor
5,5 HP. Segundo o Sr. Sabá, este leva aproximadamente quatro dias para chegar a ultima colocação em qualquer um dos igara-
pés, já que estas são muito distantes da foz no Rio Purus, aproximadamente 20 km de distância (medidos em linha reta do ponto
de entrada do igarapé até a última colocação de castanha do Brasil). Nestes igarapés também são encontrados muitos obstácu-
los. Mesmo frente a tantas dificuldades foram mapeadas vinte colocações, as quais os “donos” são Arapixianos. Um dos resulta-
dos surpreendentes é que apenas quatro colocações estão dentro dos limites da RESEX e o restante encontra-se no interior do
PAE Antimary. Os tapiris encontrados neste igarapé apresentam o mesmo padrão dos anteriores. A colocação que extrai menos
castanha nestes igarapés retira entorno de 500 baldes e a maior retira aproximadamente 1200 baldes de castanha do Brasil.
O desmatamento encontrado as últimas colocações destes dois igarapés está a cada dia mais próximo, estando a menos
de 4 km. O impacto deste desflorestamento está cada vez mais visível, devido à escassez de fauna e diversas áreas “aberta”
percebidas em imagens de satélite.
Através da análise das coordenadas geográficas inseridas no SIG da RESEX Arapixi, verifica-se que nos Igarapés Fraga,
Cedro, Extrema, São Benedito, São Raimundo e Sossego, a maior parte das colocações mapeadas nestes igarapés encontram-
se fora dos limites da UC. Estes dados são alarmantes, devido a grande insegurança dos Arapixianos em relação à exposição
de suas colocações nestes igarapés ao desmatamento, já que estas se encontram desprotegidas, sem nenhum segurança. Ao
analisar todos os igarapés, o Igarapé do Fraga foi aquele que apresentou situação mais crítica, pois a maior parte colocações de
castanha dos Arapixianos localiza-se fora dos limites da UC.
Através dos dados obtidos nas colocações mapeadas, verifica-se a grande necessidade de ampliação da RESEX Arapixi,
de forma mais breve possível. Devido ao risco iminente que se encontram estes recursos essenciais acessados pela população
tradicional desta UC, situarem-se fora de seus limites e tão suscetíveis ao desflorestamento proveniente do PAE Antimary. Assim
sendo para garantir a manutenção dos castanhais torna-se essencial que os limites da RESEX Arapixi sejam redefinidos urgente-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
150
mente, englobando todas as colocações de castanha.
Através da análise da localização das colocações plotadas sobre a imagem de satélite, verifica-se que o desflorestamento
encontra-se ameaçadoramente próximo das colocações de castanha e dos próprios limites da RESEX Arapixi. Embora ainda
encontre-se em uma distância média de aproximadamente dois quilômetros das últimas colocações de cada igarapé e uma dis-
tância um pouco maior dos limites da RESEX Arapixi. Mesmo sendo uma distância ainda “segura” entre o desflorestamento e os
limites da RESEX Arapixi, este apresenta uma grande ameaça aos recursos acessados pelos Arapixianos, não só as colocações
de castanha, mas também a diminuição da própria biodiversidade.
Os relatos de diversos Arapixianos apresentam uma realidade preocupante, onde alguns recursos naturais apresentam
sinais de grave diminuição. Animais que antes eram fonte de proteína para alimentação dos Arapixianos, quando estes se encon-
travam em suas colocações para quebrar castanha do Brasil, já não são encontrados tão facilmente. Em algumas colocações já se
observa a derrubada ilegal de castanheiras e de outras árvores protegidas por lei, diminuindo o potencial daquelas colocações.
A questão das colocações de castanha do Brasil ameaçadas pela aproximação constante do desflorestamento proveni-
ente do PAE Antimary é a maior preocupação da equipe gestora da RESEX Arapixi. Devido às colocações encontrarem-se fora
dos limites da UC, o grau de dificuldade para efetuar um controle mais efetivo sob o desflorestamento é muito maior. Como a
RESEX Arapixi é uma UC de Uso Sustentável, pontualmente em seu interior verificam-se desmatamentos, embora estes sejam
realizados com a devida autorização da equipe gestora da UC, tendo como base o Plano de Utilização da própria RESEX, geral-
mente relacionado com o estabelecimento de agricultura de subsistência e/ou SAFs.
Após analisar todos os igarapés com suas respectivas colocações, analisando a proximidade do desmatamento a estas
colocações está sendo elaborada uma proposta de ampliação da RESEX Arapixi, para incluir todas as colocações de castanha
do Brasil que hoje estão fora dos limites da RESEX Arapixi. A área proposta inicialmente é de pelo menos 685.000 km2, ou 68.500
hectares (Figura 2). Para delimitar esta área a ser ampliada, foi delimitado um “bolsão” englobando não só as colocações de
castanha do Brasil, mas também uma distância de pelo menos 1,5 km entre a última colocação e o limite proposto, garantindo
assim que haja uma área que possa servir como amortecimento, mitigando o impacto de qualquer desflorestamento que possa
estar se aproximando destes novos limites da RESEX Arapixi.

Figura 2. Proposta de ampliação da RESEX Arapixi.

02: Sistemas de Gestão e Governança


151
Atualmente para frear a aproximação do desflorestamento, a equipe gestora da RESEX Arapixi tem buscado estabe-
lecer uma maior aproximação com o INCRA, para que juntos possam desenvolver um planejamento conjunto para mitigar esta
pressão. A equipe gestora da UC também tem buscado parceria com o IBAMA e com a Polícia Federal, a fim de estruturar uma
ação mais efetiva de fiscalização nas áreas próximas a RESEX Arapixi, para identificar se os agentes deste desflorestamento são
realmente assentados do PAE Antimary ou se estes são invasores.

Conclusão
Uma das possíveis soluções para amenizar esse grande desmatamento causado pela pressão proveniente do PAE Anti-
mary seria realizar um levantamento cadastral de quem se encontra naquelas áreas. Outro ponto essencial para mitigar esse des-
matamento é manter um controle referente a estas ocupações, acompanhando as atividades ali desenvolvidas, já que a maioria
das áreas “abertas” é utilizada para criação de gado, destoando dos objetivos de um Projeto Agroextrativista. Oferecer acompan-
hamento técnico para que os assentados possam produzir mais com menos área, focando principalmente na recuperação das
áreas desflorestadas com sistemas agrossilvipastorio, associando a conservação ambiental com a rentabilidade.
Através do mapeamento dos castanhais, constatou-se que mais de 65% das colocações de castanhas utilizados pelos
Arapixianos está fora de seus limites, o que os deixa suscetíveis ao desflorestamento proveniente do PAE Antimary. Torna-se
essencial para a gestão da UC garantir a conservação e proteção destes recursos, que tanto impacto gera na economia dos Ara-
pixianos. Também é de fundamental importância proteger esta atividade desenvolvida pela população tradicional da UC, pois
esta gera baixo impacto ao ambiente e, sendo aos Arapixianos a sua principal fonte de recursos, acaba por gerar em resposta
um menor impacto de desflorestamento no interior da própria RESEX Arapixi, já que com os rendimentos provenientes das co-
locações de castanha, acaba por evitar que os Arapixianos busquem outras formas impactantes para obter meios para manter
sua sobrevivência.
A ampliação da RESEX Arapixi busca atender não só a conservação das colocações de castanha do Brasil acessadas
pela população tradicional da UC, mas também evitar que danos mais severos e provavelmente irreversíveis sejam causados
naquela área. Através de sua ampliação será possível garantir através da presença institucional do ICMBIO, neste caso repre-
sentada pela equipe gestora da UC a manutenção e conservação daqueles recursos.

Referências
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02: Sistemas de Gestão e Governança


153
MANEJO ADAPTATIVO DE RISCO E VULNERABILIDADE EM SÍTIOS DE
CONSERVAÇÃO: RELATO DE UMA OFICINA DE CAPACITAÇÃO
NA METODOLOGIA MARISCO

Ibisch, Pierre L.1; Oliveira, Sara Silva de1; Schick, Axel1; Schiavetti, Alexandre2; Camargos, Virginia 3; Santos,
Gildevânio Pinheiro dos3; Senta, Mateus Dala4; Holvorcem, Christiane5 & Cases, Maria Olatz5

1.Centre for Econics and Ecosystem Management 2.Universidade Estadual de Santa Cruz, aleschi@uesc.br
3. RPPN Estação Veracel 4. Ministério da Mata Atlântica 5. GIZ Brasil

Resumo
Apesar de sua elevada fragmentação, causada por séculos de uso, a Mata Atlântica fornece serviços ecossistêmicos essenciais
ao bem-estar de grande parte da população brasileira, cuja manutenção depende de um manejo eficiente dos remanescentes
florestais. Este trabalho relata a primeira oficina de capacitação no Brasil utilizando o método MARISCO (Manejo Adaptativo de
Risco e Vulnerabilidade em Sítios de Conservação) de planejamento adaptativo do manejo de áreas protegidas, realizada em abril
de 2015, utilizando a RPPN Estação Veracel, Sul da Bahia, como um estudo de caso. O método MARISCO é o primeiro a incluir
explicitamente os possíveis efeitos da mudança do clima no planejamento da conservação, e vem sendo aplicado com sucesso
em uma variedade de ecossistemas em vários países. Participaram da referida capacitação técnicos do governo, de unidades de
conservação e acadêmicos.

Palavras-chave: Serviços Ecossistêmicos, RPPN Estação Veracel, Mudança Climática.

Introdução
A relação de não-equilíbrio entre a espécie humana, com suas diversas atividades sócio-econômicas, e os ecossistemas
naturais, cujos recursos e serviços são explorados de forma insustentável e frequentemente destrutiva, vem gerando incertezas
crescentes sobre o futuro tanto dos ecossistemas naturais quanto da espécie humana. Na ausência de perturbações antrópicas,
a biodiversidade global se auto-organiza e auto-regula sustentavelmente, em uma hierarquia de sistemas aninhados, que trans-
ferem matéria, energia e informação entre si, contribuindo para a estabilidade dos ciclos biogeoquímicos e do clima global.
Entretanto, a pressão crescente causada pelas atividades antrópicas perturba o equilíbrio dos ecossistemas e do clima, sendo
impossível prever em detalhes a evolução futura dos serviços dos ecossistemas e do sistema climático global (IBISCH; VEGA;
HERRMANN, 2010; IBISCH; HOBSON, 2014).
A Mata Atlântica é um exemplo claro deste tipo de relação de não-equilíbrio: desde o início da colonização europeia
em 1500, os efeitos cumulativos da expansão agrícola no período colonial, e da industrialização e urbanização que se seguiram
reduziram a vegetação nativa a 12,5% de sua extensão original, distribuída em um grande número de fragmentos florestais, em
sua maioria de pequenas dimensões (FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA; INPE, 2015), e sujeitos à perda gradual de biodiver-
sidade (devido ao isolamento, que reduz o fluxo gênico entre fragmentos) e de cobertura florestal (devido aos efeitos de borda).
Atualmente, a região originalmente coberta pela Mata Atlântica foi reduzida a um mosaico dinâmico de paisagens em grande
parte modificadas pela ação humana, incluindo plantações, pastagens (em uso ou abandonadas), áreas de vegetação nativa em
diferentes estágios de regeneração, silvicultura e sistemas agroflorestais (RIBEIRO et al., 2011).
Como resultado das grandes perdas de habitat sofridas pela Mata Atlântica, uma elevada proporção do seu grande
número de espécies, muitas delas endêmicas (que conferem ao bioma o status de “hot spot” global de biodiversidade), está
criticamente ameaçada de extinção (TABARELLI et al., 2005; GALINDO-LEAL; CÂMARA, 2003). Esta situação, que continua a se
agravar gradualmente, ameaça a manutenção dos serviços ecossistêmicos (especialmente recursos hídricos) fornecidos pela
Mata Atlântica a grande parte da população brasileira. O problema se complica devido ao baixo grau de proteção dos rema-
nescentes florestais da Mata Atlântica: existem aproximadamente 700 áreas protegidas no bioma, mas estas protegem somente
1,62% da região (RIBEIRO et al., 2009).
Assim, o desafio atual é utilizar os recursos limitados existentes para manejar de forma eficiente os remanescentes flo-

02: Sistemas de Gestão e Governança


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restais existentes (e restaurar áreas onde a vegetação nativa foi degradada ou eliminada) de forma a minimizar as perdas de
biodiversidade e cobertura vegetal, evitando o colapso dos serviços ecossistêmicos essenciais ao bem-estar humano.
Nas últimas décadas, a percepção crescente da natureza não-determinística e da interdependência dos sistemas naturais
em diferentes escalas levou ao desenvolvimento de métodos de planejamento adaptativo da conservação. Dentre os métodos
existentes, destacam-se os Padrões Abertos para a Prática da Conservação (Open Standards for the Practice of Conservation),
desenvolvido pela organização não-governamental The Nature Conservancy (TNC), com base em metodologias anteriores1 e,
mais recentemente, o método MARISCO (Manejo Adaptativo de Risco e Vulnerabilidade em Sítios de Conservação),2 baseado
nos Padrões Abertos, e que é a primeira metodologia de planejamento adaptativo do manejo de áreas protegidas a incluir explici-
tamente análises de vulnerabilidade e risco associados à mudança do clima.
O método MARISCO é uma metodologia dinâmica, participativa e multidisciplinar, que proporciona uma visualização
sistemática dos alvos de conservação e seus fatores de estresse e ameaças, que são mapeados por meio da criação de um
modelo conceitual que incorpora as estratégias de conservação existentes e facilita as decisões sobre a criação de novas estra-
tégias, a implementação de processos de monitoramento, a adaptação das estratégias frente a condições que mudam ao longo
do tempo e a gestão do conhecimento adquirido e do não-conhecimento sobre a área sob manejo. O método já foi aplicado em
países da Europa, Ásia, África e América Latina (IBISCH; HOBSON, 2014).
Neste trabalho, relatamos uma primeira aplicação do método MARISCO no Brasil. O Projeto “Biodiversidade e Mudanças
Climáticas na Mata Atlântica”,3 em parceria com o Centre for Econics and Ecosystem Management (Universidade de Eber-
swalde, Alemanha) e o Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Estadual de Santa
Cruz (UESC) realizaram, de 14 a 18 de abril de 2015, em Ilhéus (BA) uma oficina de capacitação na metodologia MARISCO, com
participação de 19 pessoas, incluindo técnicos dos governos estadual e federal, assim como de professores e estudantes de
pós-graduação da UESC e da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
O sítio escolhido como estudo de caso para esta primeira oficina de capacitação foi a RPPN Estação Veracel, pertencente
à empresa Veracel Celulose S/A, situada nos municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, no extremo sul da Bahia. Com
área de 6063 ha de Mata Atlântica, em excelente estado de conservação, a RPPN Estação Veracel é um importante remanescente
florestal da Mata Atlântica no Corredor Central da Mata Atlântica, sendo a maior RPPN da região Nordeste do Brasil dentro do
Bioma Mata Atlântica e um dos núcleos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Segundo Schiavetti, Magro & Santos (2012) das 30 áreas protegidas analisadas quanto a efetividade de manejo no Cor-
redor Central da Mata Atlântica, 50% se encontravam razoavelmente implantadas e somente uma, a RPPN Estação Veracel estava
satisfatoriamente implantada. Os quesitos básicos e determinantes para uma AP alcançar a implementação estavam ligados a
uma situação fundiária regularizada e à existência de instrumento de manejo, de gestores, de funcionários e trabalhos com a
comunidade do entorno/interior.
A RPPN Estação Veracel é coberta por floresta ombrófila densa (CARVALHO, 2011), com algumas áreas de mussununga
(vegetação herbáceo-arbustiva, em solos arenosos), apresentando mais de 307 espécies arbóreas. A fauna da reserva tem ele-
vada biodiversidade, com 38 de mamíferos (FALCÃO; GUANAES; PAGLIA, 2012), 39 de anfíbios (PIMENTA; NUNES; CRUZ,
2007), 302 de aves e 53 de répteis; sendo 37 das espécies de fauna da reserva classificadas como ameaçadas e 54 endêmicas do
Estado da Bahia (CI, 2007). A RPPN possui plano de manejo aprovado pelos órgãos competentes (ICMBio, 2009).

A oficina de capacitação na metodologia MARISCO


Um exercício MARISCO típico inclui um amplo leque de participantes, procurando cobrir todas as perspectivas e interes-
ses ligados à área a ser manejada (IBISCH; HOBSON, 2014). Deve-se incluir participantes com bom conhecimento sobre a área
em questão, assim como representantes de diferentes setores da sociedade (governos, sociedade civil, academia, iniciativa
privada), incluindo pessoas com conhecimento científico e técnico em diferentes áreas (em especial, em ecologia dos ecos-
1
http://www.conservationmeasures.org/wp-content/uploads/2013/05/CMP-OS-V3-0-Final.pdf
2
http://www.marisco.training/further-languages/português/apresentações-do-metodo-marisco/
3
O Projeto Biodiversidade e Mudanças Climáticas na Mata Atlântica é um projeto do governo brasileiro, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), no
contexto da Cooperação Brasil-Alemanha para o Desenvolvimento Sustentável, no âmbito da Iniciativa Internacional de Proteção ao Clima (IKI) do Ministério do Meio
Ambiente, Proteção da Natureza, Construção e Segurança Nuclear da Alemanha (BMUB). Prevê apoio técnico através da Deutsche Gesellschaft für Internationale
Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, e apoio financeiro através do KfW Entwicklungsbank (Banco Alemão de Desenvolvimento), por intermédio do Fundo Brasileiro para
a Biodiversidade – Funbio.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
156
sistemas). O exercício é conduzido de forma participativa, baseada em evidências, e não supõe que se tenha um conhecimento
exaustivo sobre a área a ser manejada e seu entorno: o não-conhecimento é explicitamente levado em consideração durante todo
o processo. Uma equipe de treinadores (facilitadores) e organizadores conduz o exercício, auxiliando os participantes em cada
um dos passos metodológicos envolvidos.
Um exercício MARISCO completo é dividido em quatro fases: Fase I (Preparação e conceitualização inicial), Fase II
(análise sistêmica de vulnerabilidade e risco), Fase III (avaliação abrangente, priorização e formulação da estratégia), e Fase IV
(implementação e gestão do conhecimento (e do não-conhecimento)), como mostrado na Figura 1.

A Fase I da metodologia (preparação e conceitualização inicial) iniciou-se com a apresentação de uma Análise Dia-
gnóstica do Ecossistema (ADE), realizada nas semanas anteriores à oficina, com base em informações compiladas da literatura
científica e de várias fontes, e em visitas de campo à RPPN Estação Veracel e seu entorno. Durante a discussão deste diagnóstico
inicial com os participantes, procurou-se demonstrar como identificar mudanças e riscos inesperados, além de ressaltar a neces-
sidade de uma abordagem sistêmica do planejamento da conservação.

02: Sistemas de Gestão e Governança


157
A RPPN Estação Veracel serve como “stepping stone” entre o Parque Nacional do Pau-Brasil, ao sul, e um maciço florestal
de milhares de hectares ao norte, no município de Belmonte. O seu entorno consiste de um mosaico de propriedades rurais,
algumas das quais pertencentes à Veracel Celulose S/A, incluindo pastagens, plantações, áreas de silvicultura de eucaliptos e
áreas de vegetação nativa. A perda de boa parte da vegetação nativa nestas áreas ocorreu principalmente nas décadas de 1960 a
1980, quando a abertura de novas rodovias (especialmente a BR-101) facilitou a intensificação da extração de madeira na região.
As principais pressões externas que afetam a RPPN são a agropecuária no entorno, cujas áreas de vegetação rasteira
ou de pequeno porte aumentam a exposição da borda da reserva ao sol e ao vento, o que pode levar à gradual degradação da
vegetação nativa (efeito de borda), e a caça ilegal, uma atividade culturalmente arraigada na região, aproveitando-se de estradas
no interior da reserva que já existiam quando a reserva foi estabelecida na década de 1990. Dentre estas estradas, destaca-se
uma estrada municipal que liga Santa Cruz Cabrália ao trecho da BR-367 e que atravessa a RPPN de leste a oeste.
Um importante serviço ecossistêmico fornecido pela RPPN é a proteção de um trecho do Rio dos Mangues, que nasce
fora da reserva, e é utilizado para captação de água no município de Porto Seguro. No entorno da RPPN, como em qualquer área
predominantemente antropizada, os serviços ecossistêmicos têm sua eficiência reduzida.
Após a apresentação da ADE, como um primeiro passo na construção do modelo conceitual do método MARISCO, o
grupo foi orientado a definir o escopo geográfico em torno da RPPN a ser considerado no exercício. Os primeiros elementos
definidos no modelo foram os objetos de conservação (objetos de biodiversidade, serviços ecossistêmicos e objetos de bem-
estar humano) contidos no escopo geográfico definido, assim como os serviços e sistemas sociais que interagem com estes
objetos (Figura 2). A seguir, os participantes definiram uma visão inicial sobre o manejo da RPPN e sua interação com o entorno,
a fim de orientar a elaboração de objetivos e metas a serem definidos na Fase III.

Figura 2. Desenvolvimento do modelo conceitual pelos participantes da oficina.

A Fase II consiste de uma análise sistêmica de vulnerabilidade e risco, aplicando uma análise da situação a fim de esta-
belecer uma boa compreensão da situação atual, passada e futura (num horizonte de 20 anos no passado e no futuro) dos objetos
de conservação e de bem-estar humano. Assim, os participantes foram orientados a incluir no modelo conceitual os atributos
ecológicos chave dos objetos de conservação, os estresses ambientais, as ameaças e seus fatores contribuintes.
Após a inclusão destes elementos, os participantes revisaram o modelo e em seguida avaliaram participativamente o ní-
vel de criticalidade (importância percebida para o estado de vulnerabilidade de um objeto de conservação) dos mesmos, assim
como sua “atividade sistêmica” (quantificação do grau em que um elemento do modelo influencia outros ou é influenciado por
outros elementos), gerenciabilidade (quantificação do grau em que um elemento do modelo pode ser diretamente influenciado
por estratégias e atividades de manejo), o grau de conhecimento sobre os mesmos e sua relevância estratégica (um score que
combina criticalidade atual, tendência atual da criticalidade, criticalidade futura e atividade sistêmica), como ilustrado na Figura 3.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
158
Ao final da Fase II, o modelo conceitual foi revisado pelos facilitadores, de forma a produzir uma versão “limpa” e orga-
nizada, a ser utilizada nas etapas seguintes da metodologia.
A Fase III compreende uma análise das estratégias existentes e o desenvolvimento sistemático de novas estratégias que
permitam uma melhoria efetiva da funcionalidade dos objetos de conservação e de bem-estar humano, a redução das amea-
ças, e a prevenção ou redução da vulnerabilidade e dos riscos. Os participantes aprenderam a avaliar as estratégias de forma
abrangente, visualizando as relações entre as estratégias e os elementos do modelo conceitual, a priorizar as estratégias exis-
tentes e a formular estratégias complementares, baseando-se nos elementos do modelo conceitual.

Figura 3. Discussão dos elementos do modelo conceitual pelos participantes da oficina.

Os participantes avaliaram estas estratégias complementares, e discutiram sua factibilidade, seus impactos, e suas rela-
ções com as estratégias existentes e com os demais elementos do modelo conceitual. Neste processo, os consultores orientaram
o grupo no uso de um pensamento estratégico e sistemático sobre fatores contribuintes, ameaças e estresses, que conduziu à
elaboração de uma “teia de resultados” esperados como consequência da implementação das estratégias. Estes resultados são
ligados entre si por relações de causa e efeito, e seu resultado final esperado é a melhoria da situação e da funcionalidade dos
objetos de biodiversidade e de bem-estar humano (Figura 4). Finalmente, a Fase III também inclui a concepção dos processos
de monitoramento a serem implementados para que se possa mensurar a efetividade das estratégias, assim como diagnosticar
a necessidade de ajustes adaptativos nas mesmas.

Figura 4. Processo de avaliação das estratégias (Fase III).

02: Sistemas de Gestão e Governança


159
A Fase IV da metodologia MARISCO consiste do planejamento operacional e da implementação das estratégias e proces-
sos de monitoramento de resultados e impactos. Também se incluem nesta fase a gestão do conhecimento acumulado e do não-
conhecimento sobre a área sob manejo. Uma vez que em uma aplicação real do método MARISCO esta etapa se estende por um
longo período, não foi possível realizar esta etapa na oficina de capacitação. Após a oficina, os resultados da mesma foram docu-
mentados e digitalizados, produzindo-se versões finais do modelo conceitual, incluindo as estratégias existentes e propostas.

Resultados da oficina
Fase I
O escopo geográfico definido pelos participantes (Figura 5) incluiu o entorno da RPPN, com suas propriedades rurais,
os principais remanescentes próximos de vegetação nativa (incluindo o Parque Nacional do Pau Brasil e a APA de Coroa Ver-
melha), porções das bacias de rios principais da região (rio Buranhém, rio dos Frades e rio Santo Antonio), os centros urbanos
que mais influenciam a reserva (Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália), e regiões costeiras que recebem sedimentos transportados
pelos rios que atravessam a porção terrestre do escopo geográfico (em especial o rio Buranhém), incluindo o Parque Municipal
Marinho do Recife de Fora, importante sítio para a conservação de corais.

Figura 5. Escopo geográfico definido pelos participantes.


O retângulo próximo ao limite leste do escopo é o Parque Municipal Marinho do Recife de Fora.

Os objetos de biodiversidade definidos pelos participantes foram reunidos em quatro grupos interconectados, que com-
preendem toda a biodiversidade presente na região: ecossistemas terrestres (floresta ombrófila densa, mussununga, restinga,
cordões litorâneos), ecossistemas aquáticos de água doce (rios, lagos e brejos), ecossistemas marinhos e costeiros (recifes de
coral, bancos de gramas marinhas, estuários, manguezais e mar aberto) e ecossistemas antrópicos (florestas plantadas, sistemas
agroflorestais, cabruca, plantações, pastagens, areias e represamentos).
O grupo de objetos de conservação “ecossistemas terrestres” continha ainda os objetos “árvores”, “bromélias”,
“orquídeas”, e “animais”, além de objetos representando espécies relevantes da flora, como “pau-brasil” e “jacarandá da Bahia”.
O grupo de objetos “ecossistemas marinhos e costeiros” continha também objetos representando os corais endêmicos e espé-
cies relevantes da fauna marinha, como “baleia jubarte”, “tartarugas marinhas”, “budião azul”, “caranguejo uca”, entre outros.
Os objetos de biodiversidade escolhidos foram associados aos serviços ecossistêmicos que oferecem, classificados pe-
los participantes em três categorias: serviços de abastecimento (água, produção de alimentos, de madeira, recursos genéticos),
de regulação (purificação da água, qualidade do ar, controle de erosão, estabilidade do clima local, sequestro de carbono, pro-
teção da costa) e culturais (beleza cênica, atividades de educação e pesquisa, espiritualidade).
Foram também definidos objetos de bem estar-humano (acesso à água limpa, segurança alimentar, moradia, saúde, em-
prego e renda, desenvolvimento de habilidades e conhecimento, identidade e lazer, entre outros), conectados aos serviços ecos-
sistêmicos dos quais dependem. Também foram incluídos no modelo os serviços sociais (políticas públicas, saneamento básico,

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
160
fornecimento de energia, democracia, etc.) que interagem com os objetos de bem-estar humano, e os sistemas sociais (os três
poderes, órgãos estatais, organizações da sociedade civil, iniciativa privada, etc.) que fornecem ou regulam os serviços sociais.
Esta fase foi concluída com a elaboração de uma visão inicial do manejo da RPPN e demais áreas dentro do escopo
geográfico.

Fase II
Os atributos ecológicos chave definidos pelos participantes foram agrupados em cinco categorias: fatores-mestre (quan-
tidade, qualidade e características físicas da água, estabilização do clima, estrutura, características químicas e fertilidade do
solo), biomassa (que inclui o atributo “cobertura vegetal”), informação e diversidade (flora e fauna nativas, composição e riqueza
de habitat, corais), conectividade e redes (conectividade ecológica, polinização, dispersão, ciclagem de nutrientes, transporte de
sedimentos e nutrientes, espécies de topo de cadeia), e atributos antropogênicos (planejamento das ações humanas).
Os vários estresses sofridos pelos objetos de conservação foram ligados aos atributos ecológicos chave por eles afetados.
Os estresses foram reunidos em categorias aproximadamente correspondentes às categorias de atributos ecológicos chave; por
exemplo, uma das categorias continha os estresses “perda/redução de floresta”, “perda de cobertura vegetal” e “redução de
manguezais”, que afeta primariamente os atributos ecológicos chave da categoria “biomassa”. Dentre o grande número de es-
tresses identificados pelos participantes, incluem-se ainda a perda de espécies, a fragmentação florestal, alterações do ciclo de
vida das espécies, o branqueamento dos corais, mudanças na composição das comunidades, a perda de produção dos sistemas
antrópicos, o aumento de pragas, além de vários estresses sobre o solo e os recursos hídricos.
As ameaças aos objetos de conservação identificadas durante o exercício MARISCO foram reunidas em sete categorias:
mudanças climáticas locais, nível do mar e correntes, manipulação hídrica, manipulação ambiental, uso não-sustentável dos
recursos naturais, extração de organismos e espécies exóticas e invasoras.
Os fatores que contribuem para os estresses e ameaças foram identificados e agrupados em nove categorias: fatores
ligados à governança, fatores institucionais, fatores demográficos, fatores relacionados à produção industrial, fatores naturais,
fatores socioculturais, fatores espaciais, fatores relacionados à infraestrutura, e fatores socioeconômicos.
Seguindo os procedimentos da metodologia MARISCO, várias propriedades relevantes das ameaças, estresses e fatores
contribuintes foram classificados participativamente, utilizando scores discretos, codificados como cores no modelo conceitual.
Estas propriedades incluem: criticalidade atual e futura (avaliada com o auxílio de cenários futuros desenvolvidos durante a ofi-
cina), atividade sistêmica, relevância estratégica, conhecimento e gerenciabilidade.

Fase III
Seguindo os procedimentos da metodologia MARISCO, os participantes identificaram as estratégias existentes (coluna
da esquerda na Tabela 1) e classificaram as mesmas através de scores discretos (com valores de 1 a 4) em relação a vários
quesitos, agrupados em duas categorias: factibilidade e impactos. Os quesitos de factibilidade das estratégias são (a) disponibi-
lidade de recursos, (b) nível de aceitação por parte dos atores relevantes, (c) probabilidade de se beneficiar de fatores externos
(especialmente oportunidades), (d) probabilidade de ocorrência de riscos que podem afetar de forma adversa a eficácia da
estratégia, (e) possibilidade e recursos necessários para adaptar a estratégia diante de eventos imprevistos.
Já os quesitos ligados aos impactos das estratégias são (a) probabilidade de geração de conflitos entre atores envolvidos,
que possam afetar a área sob manejo (b) probabilidade de geração de novos riscos que aumentem a vulnerabilidade dos objetos
de conservação, (c) probabilidade de conflitos com outras estratégias implementadas na mesma área, (d) eficácia na redução
de ameaças, (e) probabilidade de sinergias com outras estratégias, (e) contribuição esperada para o aumento da funcionalidade
dos objetos de conservação, (f) nível de arrependimento potencial (probabilidade de que os recursos investidos em uma estra-
tégia não tragam nenhum benefício colateral caso os impactos esperados não sejam atingidos).
A soma dos scores de cada uma das estratégias existentes para cada um dos quesitos acima é mostrada na Tabela 1. As
estratégias com os scores mais altos seriam as mais factíveis e teriam maior probabilidade de gerar impactos positivos, e menor
probabilidade de gerar impactos negativos, criar conflitos, etc.
A seguir, os participantes identificaram as relações sistêmicas (geração de impactos positivos e negativos, e o grau
destes impactos) entre as estratégias existentes e outros elementos do modelo conceitual: fatores contribuintes, ameaças, estres-

02: Sistemas de Gestão e Governança


161
ses e outras estratégias.
No passo seguinte da análise, os participantes identificaram os fatores contribuintes, ameaças e estresses de alta relevân-
cia estratégica que não são tratados adequadamente pelas estratégias existentes. Esta análise de “lacunas estratégicas” conduz-
iu os participantes a formularem estratégias complementares (coluna da direita na Tabela 1), que foram classificadas utilizando
os mesmos scores discretos utilizados para as estratégias existentes; os scores totais são também apresentados na Tabela 1.
A relação entre cada uma das estratégias complementares propostas e outros elementos do modelo conceitual foi anali-
sada como descrito anteriormente para as estratégias existentes.

O modelo conceitual complexo construído nos passos anteriores foi então revisado, e foi realizada uma análise espacial
da distribuição dos estresses e ameaças, a fim de visualizar onde cada estratégia deveria ser aplicada de forma a maximizar
a redução de ameaças e/ou restaurar o máximo possível a funcionalidade dos objetos de conservação. Finalmente, os partici-
pantes acrescentaram novos itens à visão inicial do manejo, considerando toda a análise realizada desde o início da oficina.
A visão final do manejo da área incluiu o fortalecimento de várias ações e programas estratégicos já presentes no plano de
manejo da RPPN Estação Veracel, e apontou novos objetivos e ações, incluindo (a) a utilização de medidas de adaptação base-
ada em ecossistemas (SEEHUSEN, 2014) para reduzir a vulnerabilidade e os riscos associados com os cenários projetados de
mudança do clima na região e (b) um maior envolvimento e conscientização da comunidade do entorno na promoção de ações
estratégicas que reduzam as ameaças e estresses que afetam os objetos de conservação da região, incluindo a inclusão de faixas
de vegetação natural nas áreas usadas para agropecuária e silvicultura, incrementando a conectividade entre os remanescentes
florestais, aumentando a permeabilidade da matriz da paisagem, e protegendo os serviços ecossistêmicos.
Os participantes recomendaram também o estabelecimento de um corredor ecológico conectando Santa Cruz Cabrália
ao Parque Nacional do Pau Brasil, como uma forma de tornar mais evidente a necessidade de uma gestão dos ecossistemas na-
turais da região que em uma escala mais ampla do que a RPPN Estação Veracel e demais unidades de conservação abrangidas
pelo escopo geográfico.
Em conclusão, esta oficina de capacitação mostrou ser plenamente viável a aplicação da metodologia MARISCO em
outras unidades de conservação no Brasil. O caráter participativo, sistêmico e adaptativo do método, e a inclusão explícita de
(a) um escopo geográfico que se estende além dos limites da unidade de conservação em foco, (b) vulnerabilidade e riscos

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
162
associados à mudança do clima e (c) não-conhecimento tornam o MARISCO uma ferramenta versátil e atual, aplicável em uma
grande variedade de situações. Espera-se que em breve seja possível realizar cursos de formação de formadores na aplicação
do método MARISCO, o que permitirá uma replicação mais eficiente da metodologia em diferentes regiões do Brasil.

Agradecimentos
Agradecemos às comunidades locais e colaboradores da RPPN que disponibilizaram seu tempo para serem entrevista-
dos e conversarem com consultores sobre a região em que habitam. Somos também gratos a todos os participantes da oficina
de capacitação que contribuíram ativamente e de forma inspiradora durante todos os procedimentos, resultando no sucesso
da primeira oficina do método MARISCO no Brasil. O presente trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto Biodiversidade e
Mudanças Climáticas na Mata Atlântica. O projeto é uma realização do governo brasileiro, coordenado pelo Ministério do Meio
Ambiente (MMA), no contexto da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável Brasil-Alemanha, no âmbito da Iniciativa In-
ternacional de Proteção do Clima (IKI) do Ministério Federal do Meio Ambiente, Proteção da Natureza, Construção e Segurança
Nuclear (BMUB) da Alemanha. O projeto conta com apoio técnico da Deutsche Gesellschaft fur Internationale Zusammenarbeit
(GIZ) GmbH e apoio financeiro do KfW Banco de Fomento Alemão.

Referências
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FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA; INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. Atlas dos Remanescentes Flo-
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228p.

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02: Sistemas de Gestão e Governança


163
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Atlântica no Estado da Bahia: desafios e limites. Revista Árvore, Viçosa-MG, v.36, n.4, p.611-623, 2012.

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in the Brazilian Atlantic forest. Conserv Biol., v. 19, n. 3, p. 695–700, 2005.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
164
03
1. Desafios do desenvolvimento
e respostas da sociedade

Este eixo temático está voltado para as


discussões sobre os limites do
desenvolvimento, pressões e ameaças de
atividades impactantes sobre as
realidades locais; abordagens e experiências
de ecodesenvolvimento e ordenamento
territorial incluindo a gestão integrada,
mosaicos, corredores, planos diretores e
planos de manejo; conservação e gestão
marinho-costeira; atividades econômicas
sustentáveis; papel do setor privado nas
paisagens protegidas; e experiências
relacionadas a cenários conciliatórios e
propositivos para a resolução de conflitos.
IMPACTOS SOCIOECOLÓGICOS E ECOFORMAÇÃO EM AMBIENTES
PROTEGIDOS: O CASO DA COMUNIDADE DA BARRA DO TORNEIRO,
JAGUARUNA, SANTA CATARINA

Munari, Amanda Bellettini1,2 & Menezes, Carlyle Torres Bezerra de2,3

1. Mestranda do PPG em Ciências Ambientais, abm@unesc.net 2. Universidade do Extremo Sul Catarinense/Laboratório


de Gestão Integrada de Ambientes Costeiros – LABGIAC; 3. PPG Ciências Ambientais

Resumo
A zona costeira brasileira tem enfrentado, nos últimos anos, um constante processo de degradação ambiental devido à ocupação
desordenada, com a destruição dos ecossistemas naturais e a perda da biodiversidade, dentre outros impactos ambientais. Este
trabalho buscou realizar um diagnóstico socioambiental na localidade de Barra do Torneiro, Jaguaruna, SC, com vistas à cons-
trução de instrumentos de gestão pública ambiental. Essa comunidade situa-se na interface entre a Área de Proteção Ambiental
da Baleia Franca e o estuário da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga. Constatou-se que a área pesquisada encontra-se em um
estado de degradação bastante acentuado, tanto devido à poluição dos recursos hídricos, quanto pela ocupação desordenada
do território, e pelo desconhecimento por parte da comunidade do papel a ser exercido pela sociedade local na gestão do seu
território.

Palavras-chave: Unidades de Conservação, Gestão de Ambientes Costeiros, Qualidade de Vida.

Introdução
A zona costeira brasileira tem enfrentado nos últimos anos um constante processo de degradação ambiental, sobretudo
devido à ameaça de ocupação desordenada e sem planejamento, com a destruição dos ecossistemas naturais e a perda da
biodiversidade e qualidade de vida.
Criada no sentido de buscar conciliar visões muito distintas sobre áreas protegidas, a Lei nº 9.985 de 2000 significou
um avanço importante na construção de um sistema efetivo de áreas protegidas no país. Ela instituiu o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, e estabeleceu critérios e normas para a criação, implantação e gestão das uni-
dades de conservação (BRASIL, 2000a). O processo de elaboração e negociação desse Sistema durou mais de dez anos e gerou
amplos debates no contexto do movimento ambiental até a sua aprovação. Inserido no contexto de instrumentos regulatórios
territoriais, no entanto, ele caracteriza-se por se constituir em um avanço no que diz respeito às possibilidades abertas para uma
efetiva participação da sociedade na gestão dos recursos comuns, e repousa no uso responsável e na igualdade de acesso aos
recursos naturais por meio da participação efetiva da sociedade na gestão publica ambiental.
Em cada unidade de conservação são estabelecidas normas, dependendo da categoria da UC, limitando ou proibindo
a implantação atividades que ameacem extinguir na área protegida as espécies raras da biota regional, dentre outros aspectos.
Conforme definição estabelecida nesta lei (BRASIL, 2000a) a “Unidade de Conservação é o espaço territorial e seus
recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder
Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias
adequadas de proteção” (Art. 2º, Inciso I). Elas são definidas em duas categorias, aquelas de proteção integral, a exemplo dos
parques nacionais e reservas biológicas, e as de uso sustentável, a exemplo das reservas extrativistas e as área de proteção am-
biental – APA, que será objeto do enfoque principal deste trabalho. Esse estudo buscou identificar e compreender os processos
de mobilização e participação de uma comunidade originalmente formada por pescadores artesanais, que no momento passa
por um rápido processo de desagregação e perda de identidade em função do atual processo socioeconômico de ocupação do
seu território.
No caso da área delimitada para a pesquisa, a comunidade da Barra do Torneiro, situada no município de Jaguaruna, pos-
sui também a particularidade de estar localizada na região do estuário da Bacia do Rio Urussanga, um recurso hídrico bastante
degradado por diversas atividades industriais, principalmente pela atividade de mineração de carvão, que causou ao longo de

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


167
muitos anos severos impactos ambientais na região.
Além destes impactos pela mineração e, a perda de identidade e desagregação de seu território a comunidade vivencia
um grande conflito, a revolta contra a APA da Baleia Franca e os Órgãos Públicos, em razão da extração de conchas calcárias e
ocupação desordenada na localidade, fato este relatado no primeiro contato com a comunidade por lideranças locais.
Este aspecto foi considerado relevante neste trabalho, por se constituir em outro importante desafio socioecologico,
considerando que a região estuarina onde está inserida a comunidade da Barra do Torneiro, encontra-se tanto no interior de
uma unidade de conservação, a APA da Baleia Franca, quanto faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, o que enseja e
justifica os esforços para a integração desses dois espaços no sentido de consolidar ações para a gestão integrada e participativa
dos recursos comuns.
No contexto das diretrizes e instrumentos previstos na gestão das áreas de proteção ambiental, está a sua gestão por meio
de um conselho a ser constituído de forma paritária por representantes dos vários segmentos da sociedade e a elaboração do
seu Plano de Manejo, onde serão definidos os critérios e condições de uso dos recursos naturais, que deve representar a con-
cepção básica da construção coletiva de um zoneamento ecológico-econômico. Conforme disposto no art. 3º da Lei 9.433/1997
da Política e Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (BRASIL, 1997), deve haver integração entre a gestão
das bacias hidrográficas e a gestão dos ecossistemas estuarinos e zonas costeiras.
A importância dessa integração deve-se à influência que os recursos hídricos exercem sobre a qualidade da zona cos-
teira, sobretudo no que se refere ao transporte de sedimentos, poluentes e o regime de circulação, entre outros aspectos, o que
deverá ser também objeto de planejamento e gestão tanto no âmbito do comitê gestor dessa bacia hidrográfica, quanto do plano
de manejo em fase de discussão e elaboração por parte do Conselho Gestor da APA da Baleia Franca.
Neste estudo buscou-se, primeiramente, realizar um diagnóstico socioambiental preliminar, no sentido de obter infor-
mações tanto a partir de dados secundários, sobre as características principais da localidade da Barra do Torneiro, situada no
estuário do Rio Urussanga, e a partir dessas informações selecionar metodologias participativas e instrumentos de pesquisa
voltados à construção coletiva de um diagnóstico participativo.
Foi realizado um reconhecimento expedito preliminar das condições ambientais e características básicas do estuário
do Rio Urussanga, com a realização de uma campanha de coleta de dados do meio físico onde está inserida a comunidade,
utilizando em um primeiro momento a coleta de dados da qualidade da água e sedimento aquático, de maneira a identificar as
condições atuais da qualidade ambiental.
O enfoque teórico utilizado teve como referência os instrumentos de pesquisa (ação) formação, com base nos fundamen-
tos necessárias á construção de políticas públicas ambientais e a metodologia DRP- Diagnóstico Rural Participativo, procurando
dar continuidade nos estudos realizado nesta comunidade formada em parte por pescadores artesanais (VOLPATO; FIGUEIRE-
DO; MENEZES, 2011; VERDEJO, 2006). Com base neste diagnóstico preliminar, buscou-se identificar e selecionar metodologias
para o processo de criação de um programa de capacitação comunitária participativa, na perspectiva do ecodesenvolvimento
territorial, procurando resgatar o papel da universidade na construção de processos de gestão pública participativa, e o em-
poderamento da sociedade local.
Neste contexto buscou-se registrar os procedimentos e socializar os resultados obtidos, com a divulgação dos resultados,
de maneira que eles possam servir de subsidio, tanto na elaboração do plano de manejo no âmbito da APA da Baleia Franca,
quanto na gestão dos recursos hídricos no âmbito do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, e de forma integrada com
o plano diretor municipal e o projeto Orla, que encontra-se em fase de construção no município de Jaguaruna. Esses objetivos
estariam desta forma, em consonância com promoção do desenvolvimento de capacidades coletivas e individuais na busca da
participação da comunidade na gestão do uso dos recursos naturais e nas decisões que afetam a qualidade de vida do ambiente,
seja ele físico-cultural ou construído (LIMONT et al., 2008).

Área de Estudo
A área delimitada para a construção deste trabalho está localizada no litoral do Estado de Santa Catarina, como pode ser
observado na Figura 1.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
168
Figura 1. Área de abrangência da Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca. Fonte: ICMBIO, (2014).

No caso da APA da Baleia Franca, a unidade de conservação foi criada em 2000, por um Decreto s/n° (BRASIL, 2000b),
com intuito de proteger a espécie Baleia Franca Austral (Eubalaena australis) que vem para o litoral sul do país para reproduzir.
Este tem por objetivo a aplicação de normas de conduta e manejo das atividades humanas a fim de preservar os recursos nat-
urais e a qualidade de vida das comunidades.
A APA da Baleia Franca situa-se entre Florianópolis até Balneário Rincão, abrangendo nove municípios e, assim, abri-
gando a comunidade da Barra do Torneiro, tornando a comunidade parte da unidade de conservação e tendo por consequência
um regime especial de administração e aplicabilidade de garantias adequadas de proteção.

Resultados e Discussão
A comunidade de Barra do Torneiro está situada no estuário do Rio Urussanga, e está inserida em uma Unidade de Con-
servação, a APA da Baleia Franca. Esta região estuarina da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga tem sido objeto de estudos com
vistas à realização de um diagnóstico ambiental, onde entre os vários estudos, foram realizadas amostragens para diagnosticar a
qualidade da água utilizada pela comunidade como fonte de abastecimento e renda (VOLPATO, 2013; SCHNACK, 2013).
No ano de 2014 foram realizadas As análises físico-químicas foram realizadas pelo IPARQUE no âmbito do projeto PIC
170/GP UNESC no contexto de um trabalho de conclusão de curso (MUNARI, 2014), juntamente com o reconhecimento e le-
vantamento expedito das condições ambientais do estuário do Rio Urussanga, onde está inserida a comunidade de Barra do
Torneiro. Constatou-se que há uma concentração acentuada de algumas substâncias potencialmente nocivas dependendo da
sua concentração, tais como ferro, manganês e zinco, oriundas predominantemente dos movimentos lóticos e do processo de
descarte dos poluentes pela atividade extrativista de mineração de carvão.
Observou-se ainda, a diminuição de concentração de algumas substâncias, na coleta em uma ponte da comunidade,
devido a dissolução dos poluentes ao decorrer do rio, e o pH não teve mudança significativa em relação a outro ponto coletado,
sendo este a 50m da foz do rio; porém, a diferença é acentuada a 50 metros da confluência do Rio Carvão com o Rio Maior, local
este que recebe a maior carga de poluentes, onde se teve um nível de acidez crítico.
Tendo em vista os resultados obtidos através das análises, a comunidade é considerada impactada, considerando os
resultados obtidos para os parâmetros analisados, e que tem origem no transporte de poluentes gerados ao longo da Bacia
Hidrográfica que deságuam na região estuarina. As fontes principais dessa acentuada poluição são as atividades de lavra e

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


169
beneficiamento de carvão, ocorridas mais intensamente no passado, que no entanto, ainda hoje apresenta um grave passivo
ambiental na região formada pelos principais afluentes formadores da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, tais como o Rio
Carvão, Rio Deserto e Rio América, que encontram-se bastante poluídos devido aos rejeitos sólidos e efluentes ácidos oriundos
das atividades de mineração de carvão mineral.
As empresas mineradoras, durante muito tempo, descartaram as águas ácidas de mina no leito do rio e, devido à exis-
tência de áreas de passivos ambientais não recuperados, os resíduos e a drenagem ácida não tratada acabam por contaminar
grande parte da Bacia Hidrográfica. Consequentemente, a comunidade de Barra do Torneiro que se encontra à jusante, recebe
toda a carga poluidora proveniente desta atividade, pois está localizada às margens do rio Urussanga, no seu próprio estuário,
na divisa entre os municípios de Jaguaruna e Balneário Rincão.
Além da atividade de extração do minério, pode-se observar que o estuário recebe também carga de poluentes domésti-
cos decorrentes do crescimento populacional, principalmente no verão, e ocupação urbana desordenada derivada da falta de
planejamento e de saneamento público ambiental na localidade. Há ainda várias outras atividades potencialmente poluidoras,
tais como as atividades de rizicultura com uso intensivo de agrotóxicos que resultam na contaminação do solo e os recursos
hídricos, além da extração de areia, que muitas vezes é realizada de forma inadequada ambientalmente.
Isto tudo, se deve, em grande parte, à deficiência na percepção e sensibilização de parte da comunidade sobre os
impactos socioambientais das atividades econômicas, além da deficiência na infraestrutura e de pessoal para a fiscalização e
controle por parte dos órgãos públicos, e conforme muito relatado em depoimentos de representantes da comunidade (VOL-
PATO; FIGUEIREDO; MENEZES, 2011), devido ao descaso de algumas instituições governamentais, que não tem cumprido o
seu papel no que diz respeito à adoção de políticas públicas para melhoria da qualidade de vida da comunidade, em todas as
suas dimensões.
A partir de pesquisa bibliográfica e conversas com lideranças da comunidade, bem como atas da reunião do Con-
selho Gestor da APA da Baleia Franca, identificou-se vários conflitos socioambientais nesta região, dentre os quais a questão
da proposição por parte de uma empresa mineradora para a extração de conchas calcárias no interior da Lagoa do Camacho,
situada no município de Jaguaruna e no interior desta unidade de conservação.
Ao longo dos debates que se seguiram na câmara técnica (CT) do Conselho Gestor da APA da Baleia Franca, e nas re-
uniões plenárias abertas a toda à sociedade, esse conflito ficou bastante aguçado. Representantes da comunidade e a maioria
dos conselheiros se colocaram contra essa atividade de mineração no interior da lagoa, e representante da empresa mineradora
e alguns moradores com visível interesse nesta atividade defendiam a sua realização neste local. A justificativa por parte desses
últimos seria que, a empresa mineradora ajudaria os pescadores no desassoreamento da lagoa do Camacho, abrindo o acesso
da lagoa ao mar. No entanto, os estudos realizados pela CT, com participação dos diversos seguimentos da sociedade local,
sobre as atividades e técnicas a serem utilizadas previstas no Projeto de Lavra e no EIA-RIMA, juntamente com o conhecimento
e o saber das populações locais de pescadores artesanais, apontaram para os riscos socioecológicos desta atividade, caso ela
fosse autorizada pelos órgãos ambientais com a anuência do CONAPA da Baleia Franca. Dentre estes riscos, a remoção dos
sedimentos de fundo da lagoa e os danos que poderia na biota aquática, em todos os seus níveis tróficos, considerando inclusive
em sua base as comunidades planctônicas.
Neste sentido, foi alertado o problema de dependência dos pescadores para com a empresa mineradora, que utilizou a
questão da abertura da Barra do Camacho como moeda de troca, no caso para o apoio de sua atividade de extração de conchas
no interior da lagoa, onde a empresa manteria a Barra do Camacho aberta, quando esta atribuição seria do poder público, a
abertura da barra atendendo a uma demanda dos pescadores, sem levar em consideração os riscos da possível inviabilidade na
atividade pesqueira no futuro, devido à perda da biodiversidade como conseqüência da alteração na base da cadeia alimentar,
dentre as suas causas, em função da remoção dos sedimentos aquáticos e a destruição das comunidades planctônicas.
Em audiência pública realizada para a apreciação do EIA-RIMA elaborado pela a empresa mineradora, que contou com
a participação de representantes de toda a sociedade local, o Conselho Gestor da APA da Baleia Franca se posicionou contra a
realização da atividade, diante dos riscos da degradação provinda da extração de conchas e o comprometimento das atividades
pesqueiras e da própria condição ambiental da lagoa após a realização da atividade de extração mineral.
Posteriormente as divergências surgidas neste processo de discussão gerou um conflito que se estendeu para além das
sessões do CONAPA da Baleia Franca, opondo localmente opositores e defensores desta atividade, e fez com que parte das pes-

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170
soas que apoiavam a empresa mineradora passasse a se colocar contra a própria existência desta unidade de conservação, não
reconhecendo a importância do seu papel para a proteção e gestão dos recursos naturais da região. E, neste contexto, descon-
siderando inclusive um dos seus objetivos na condição de uma unidade de conservação de uso sustentável, que é o de buscar
harmonizar a proteção ambiental com a realização de atividades econômicas no interior do seu território.
Esse primeiro grande conflito que ocorreu no início do processo de formação do Conselho Gestor da APA da Baleia
Franca, sobretudo no período de 2005 a 2010, foi seguido por outros conflitos no interior do seu território, tais como aqueles
resultantes da proposição para a criação de uma Reserva Extrativista (RESEX) para a pesca artesanal na região do Cabo de
Santa Marta em Laguna, e para a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) na região localizada entre os
municípios de Imbituba e Garopaba.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que esta pesquisa constatou a existência do aumento do número de conflitos rela-
cionados com o processo de criação da APA da Baleia Franca, notadamente no período inicial de constituição e consolidação
do Conselho Gestor, simultaneamente estava ocorrendo um processo gradual de fortalecimento das instâncias democráticas
de decisão e o empoderamento dos conselheiros. Neste processo, deve-se destacar a importante contribuição de um núcleo
de professores e acadêmicos vinculados ao Núcleo Transdisciplinar de Desenvolvimento e Meio Ambiente (NMD), da UFSC,
coordenado pelo prof. Paulo Freire Vieira, por meio dos processos de pesquisa (ação) formação, com a capacitação comunitária
e ecoformação.
Desta forma, neste processo de avanços e retrocessos em termos de sensibilização para as questões socioecológicas,
várias instituições conselheiras representantes da sociedade local se constituíram como parte atuante na condição de protago-
nistas e atores locais, onde os vários conflitos que afloraram foram sobretudo, decorrentes das diversas formas de apropriação e
uso dos recursos naturais, com implicações na geração de emprego e renda, entre elas as atividades de pesca, turismo, minera-
ção e uso do território por meio da especulação imobiliária e da urbanização sem a construção de políticas públicas articuladas
e consistentes.
Neste contexto, a pressão resultante contra as ações realizadas com vistas à consolidação do Conselho Gestor da APA
da Baleia Franca foi resultante em grande parte, devido aos interesses políticos e econômicos contrários, tais como do setor
imobiliário, da mineração e da pesca industrial. Também deve-se creditar à esta dificuldade para a sua consolidação, à falta de
conhecimento por parte da comunidade no que diz respeito aos objetivos de criação de uma unidade de conservação de uso
sustentável, e do papel a ser exercido de forma participativa e cidadã por todos aqueles que fazem parte deste território espe-
cialmente protegido.
Considerando assim a fragilidade no que diz respeito à carência de conhecimento da população local quantos aos seus
direitos e deveres na gestão dos recursos comuns, parte da comunidade pode ser influenciada por informações distorcidas
disseminadas por aqueles que possuíam interesses estritamente econômicos sem uma visão de longo prazo na perspectiva de
outro modelo de desenvolvimento, que leve em consideração o uso de forma justa e prudente dos recursos comuns, tal como
proposta no processo de ecodesenvolvimento territorial solidário. No contexto da busca de alternativas ao atual modelo de
desenvolvimento atualmente hegemônico no sistema capitalista, a concepção do ecodesenvolvimento territorial aponta na pers-
pectiva do planejamento e gestão de forma compartilhada, tendo como enfoque a participação da sociedade local, na condição
de protagonista das mudanças realizadas na perspectiva da gestão dos recursos naturais de forma justa, equitativa e solidária,
buscando construir um modelo de território sustentável sob as dimensões ecológica, social, política, econômica, ética e cultural
(SACHS, 1993).
Para uma melhor compreensão deste novo modelo de desenvolvimento, as instituições de ensino, dentre as quais se
destacam as universidades, são diretamente interpeladas e solicitadas a oferecerem sua contribuição ao fomento do bem-estar
das populações que vivem em seu entorno. Nessa perspectiva, estas assumem novas funções, que se materializam na forma de
serviços à coletividade ou à comunidade (TREMBLAY; VIEIRA, 2011).
Além de um compartilhamento, de uma visão sistêmica do mundo, de uma ética ecológica e do reconhecimento da
importância do diálogo de saberes nos espaços de planejamento e gestão, as estratégias integrativas conduzidas neste nível
refletem a adoção de um ponto de vista essencialmente operacional-pragmático. Elas retiram os pesquisadores de suas “torres
de marfim”, envolvendo-os ativamente no atendimento de demandas sociais urgentes, associadas à construção de saídas viáveis
para os atuais dilemas da civilização industrial-tecnológica (VIEIRA et al., 2010).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


171
Os aspectos essenciais desta nova linha de reflexão – universidade/sociedade - contribuíram neste estudo de caso, na
perspectiva de possibilitar uma maior compreensão acerca das necessidades destes grupos sociais que compartilham o seu
território com instituições de ensino e pesquisa da região.
As comunidades colocam-se em evidência devido ao seu modo de produção autônomo (fortalecimento da capacidade
auto-organizadora de indivíduos, grupos e comunidades na busca de satisfação de suas necessidades básicas – materiais e
intangíveis) e heterônomo (fortalecimento do controle da gestão do patrimônio natural e dos serviços coletivos) (VIEIRA, 2011).
Neste contexto, emerge também o conceito de Racionalidade ambiental, diante da necessidade da construção de forma compar-
tilhada de estratégias para a articulação das condições que estabeleçam novas relações e padrões de produção e consumo, por
meio de processos ecológicos, tecnológicos e culturais, com base em condições de sustentabilidade (LEFF, 2007).
A participação da universidade através dos pesquisadores como cidadãos bem informados, dotados de julgamento
crítico e cada vez mais capaz de negociar construtivamente significações, intenções e valores com outros atores munidos de
diferentes visões de mundo, motivações e experiências de relacionamento com o meio ambiente pode ser projeto de uma nova
sociedade baseada na preservação dos recursos naturais (VIEIRA, 2011). Sachs (1986), diz que é “em casa” que se constrói um
mundo aceitável para as gerações de hoje e de amanhã, compromissado com a eficiência econômica, a justiça social e a preser-
vação dos serviços ecossistêmicos vitais.
Além disso, percebeu-se outro grande problema na pesquisa, que foi à deficiência no acesso ao conhecimento e o
domínio dos fundamentos básicos da legislação ambiental por parte da comunidade local. O acesso às informações relaciona-
das às questões ambientais e a construção do conhecimento de forma compartilhada são fundamentais para a resolução dos
conflitos vivenciados pela população local.
A capacitação da comunidade através de oficinas educativas baseadas em metodologias participativas seria de grande
utilidade para a compreensão e entendimento da comunidade quanto aos objetivos e estrutura organizacional de conselhos ges-
tores de unidades de conservação, na perspectiva da gestão dos recursos naturais de forma compartilhada e solidária.
Neste sentido, a capacitação de lideranças locais com vistas a sua participação no processo de elaboração do plano de
manejo da APA da Baleia Franca constitui-se em um importante fator de inserção da comunidade no processo de gestão partici-
pativa dos recursos comuns, na perspectiva do ecodesenvolvimento territorial. Esse processo poderá ser conduzido por meio da
integração e do somatório dos esforços coordenados pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga em articulação com
os esforços que vêm sendo realizado no contexto do processo de fortalecimento e consolidação do CONAPA da Baleia Franca.

Conclusão
Levando em consideração os resultados obtidos no presente trabalho, os dados preliminares obtidos no diagnóstico am-
biental confirmaram a existência de carga de poluentes oriundos da atividade extrativista de mineração, bem como seu depósito
no sistema estuarino e consequentemente no ambiente marinho-costeiro. Dentre vários aspectos a serem melhor aprofundados,
alguns deles poderão contribuir para a reversão do atual processo de degradação da localidade pesquisada e que estão apre-
sentadas a seguir:

a) A construção de espaços de ecoformação de maneira articulada entre as instancias já constituí-


das no território onde está inserida a comunidade da Barra do Torneiro, dentre as quais o Comitê
Gestor da Bacia do Rio Urussanga e o Conselho Gestor da APA da Baleia Franca, com a participa-
ção da universidade local no sentido entre capacitação da comunidade de promover a construção
de políticas públicas socioambientais para a gestão dos recursos naturais;
b) O acesso da comunidade ao conhecimento da legislação ambiental vigente, com vistas a uma
melhor compreensão dos processos de fiscalização e controle, dentre os quais os processos de
licenciamento por parte dos órgãos públicos, a obtenção dos alvarás e licenças para construção
de habitação;
c) A criação de espaços para a construção e socialização do através do conhecimento técnico - cienti-
fico produzido pelas universidades na região, de forma compartilhada com os saberes das popula-
ções tradicionais, dentre eles os pescadores artesanais, possibilitando entre outros aspectos, dar su-
porte no processo iniciado de elaboração do Plano de Manejo da APA da Baleia Franca, bem como nos
processos de planejamento e gestão no contexto do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga;

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
172
d) A maior disponibilidade de espaços de socialização e apropriação do conhecimento por parte
da comunidade, na forma de oficinas de capacitação, com o uso de metodologias participativas,
possibilitando uma maior segurança e domínio de informação em audiências públicas e reuniões,
possibilitando uma maior compreensão sobre as atividades desenvolvidas nos processos de
gestão ambiental por parte da APA da Baleia Franca.

A comunidade atualmente encontra-se em processo de construção de um sistema de gestão ambiental, na busca da


reversão do atual processo de degradação, tendo sido iniciado um processo de regularização de habitações e atividades extra-
tivistas, e neste contexto seria de fundamental importância tanto à apropriação por parte da comunidade local, do conhecimento
da importância de sua participação no processo de gestão pública ambiental de unidades de conservação, bem como nos
processo de gestão dos recursos hídricos em comitês de bacias hidrográficas. Estes dois últimos aspectos devem-se ao caráter
especial da localização da comunidade pesquisada, por ela estar situada ao mesmo tempo no interior do território da APA da
Baleia Franca, e no estuário da Bacia Hidrográfica do Rio Urussanga, portanto, em uma região com características ecossistêmi-
cas importantes.
Por fim, agradecemos a UNESC por todo o suporte em termos de recursos financeiros provenientes de projeto aprovado
no edital de fomento à consolidação de grupos de pesquisa interno, o GP UNESC (2014-2016), e ao Projeto Pró-Stricto do Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciências Ambientais - PPGCA/UNESC, bem como aos moradores da localidade da Barra do Tor-
neiro que deram todo o apoio na disponibilização de barcos para as coletas de água e sedimento na região do estuário.

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174
O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NA PROMOÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM GAROPABA (SC)

Costa, Viegas Fernandes da1 & Reis, Clóvis2

1. Professor de História do IF-SC e Mestrando em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB), viegasfernandesdacosta@gmail.com;


2. Doutor em Comunicação. Professor do PPG em Desenvolvimento Regional (PPGDR/FURB).

Resumo
O artigo propõe o debate a respeito dos vestígios arqueológicos pré-coloniais remanescentes no município de Garopaba (SC),
que integra a APA da Baleia Franca, e suas possibilidades na promoção do desenvolvimento sustentável por meio do turismo
arqueológico. A partir de uma discussão teórica das dimensões política, ideológica e econômica dos processos de patrimoniali-
zação, e do entendimento das dimensões do desenvolvimento sustentável apresentadas por Sachs, compreende-se o patrimônio
cultural (e, por extensão, o arqueológico) enquanto componente fundamental para uma perspectiva de desenvolvimento que não
seja teleológica e economicista. É neste sentido que se apresenta a proposta do turismo arqueológico, potencialmente capaz de
contribuir para alternativas de trabalho e renda e para a proteção e preservação dos sítios arqueológicos existentes na região.

Palavras-Chave: Desenvolvimento Sustentável, Turismo Arqueológico, Patrimônio Arqueológico Pré-Colonial

Introdução
O objetivo deste trabalho é debater as possibilidades que os vestígios pré-coloniais apresentam para a promoção do
desenvolvimento sustentável no município de Garopaba, que integra a Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca.
A APA da Baleia Franca foi instituída através de Decreto assinado pela Presidência da República em 14 de setembro
de 2000. Abrange uma área de 156 mil hectares do litoral centro-sul de Santa Catarina, com uma extensão de 130 quilômetros
e envolvendo 9 municípios (do sul de Florianópolis a Balneário Rincão). Desta área, 80% é marinha e 20% costeira. Sua gestão
está sob responsabilidade do ICMBio, e conta com um Conselho Gestor (CONAPA) que congrega os diferentes atores do ter-
ritório. O propósito principal da APA é a preservação da Eubalaena australis, que utiliza esta faixa do litoral brasileiro para a sua
reprodução. Dentre o corpo de objetivos que buscam garantir a sustentabilidade do território está o de ordenar o uso turístico
e recreativo da região, a ser contemplado no Plano de Manejo, cuja elaboração está na fase da caracterização e diagnóstico
(ICMBIO, 2015).
Em 2015 o SEBRAE apresentou para a região o Projeto de Fortalecimento do Ecoturismo de Observação de Baleias,
para o qual foi organizado um comitê gestor que reúne diferentes atores territoriais. O projeto propõe articular os municípios de
Garopaba, Imbituba e Laguna em uma perspectiva de planejamento regionalizado do turismo, e tem como principal objetivo
posicionar a região da APA da Baleia Franca, até o ano de 2017, como destino turístico de excelência no segmento de ecoturismo,
obtendo a primeira indicação geográfica de turismo no Brasil1. Entre seus conceitos norteadores está o envolvimento dos atores
locais no desenvolvimento territorial, o que o coloca em diálogo com os propósitos da APA da Baleia Franca, e com as possibili-
dades de uma nova perspectiva para o turismo na região, até este momento centrado no estímulo ao turismo de massa.
Dos três municípios envolvidos no projeto do SEBRAE para a APA, Garopaba apresenta a maior dependência econômica
ao turismo, especialmente o de verão. Esta característica leva a população local a viver de empregos informais e concentrados
principalmente na temporada turística (dezembro a março). Essa sazonalidade implica em uma série de passivos ambientais,
sociais e urbanos.
Considerando os debates travados no contexto da APA da Baleia Franca, principalmente naquilo que diz respeito ao
planejamento de um turismo sustentável, tendo a observação de cetáceos como seu principal atrativo, torna-se oportuno conside-
rar também o patrimônio arqueológico da região, especialmente no município de Garopaba, que apresenta grande diversidade
de sítios arqueológicos. Neste sentido, este trabalho discute o turismo arqueológico como estratégia potencialmente capaz de

1
Conforme apresentado pelo consultor Rafael Freytag ao Comitê Gestor do Projeto, em reunião realizada na Secretaria de Desenvolvimento Regional de Laguna em
julho de 2015.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


175
contribuir para novas perspectivas de desenvolvimento local que sejam sustentáveis, além de fomentar a proteção e preservação
dos sítios arqueológicos remanescentes.

O vestígio arqueológico enquanto patrimônio


Se, por um lado, o Brasil herdou a tradição latina de patrimônio, que “considera a propriedade privada sujeita a restrições,
derivadas dos direitos dos outros ou da coletividade em geral” (FUNARI; PELEGRINI, 2006, p. 17-18), por outro, seu reconheci-
mento estatal e sua proteção por meio de políticas de salvaguarda são regidas por interesses ideológicos, econômicos e identi-
tários. Para ilustrar a questão, citamos aqui o caso apresentado pelo antropólogo Gilberto Velho, que em 1984 atuou como relator
do processo de tombamento do terreiro de Candomblé Casa Branca em Salvador (BA). A partir desta experiência, Velho (2006)
discutiu a preservação do patrimônio cultural enquanto ato político, antes mesmo de técnico, e mostrou os conflitos presentes
nos processos de tombamento e preservação patrimoniais especialmente, naquilo que chamou de negociação da realidade.
Para Velho (2006), o tombamento do terreiro Casa Branca representou o primeiro movimento pelo qual o Estado re-
conheceu oficialmente a tradição afro-brasileira. A situação era inédita, principalmente porque se tratava de um terreno sem
monumentalidade, mas que possuía sacralidade para a comunidade do candomblé. A falta de monumentalidade se somou às
dificuldades de ordem ideológica, política e econômica. O debate em torno do tema na sociedade baiana foi intenso, e na reunião
que definiu o tombamento estiveram presentes diversos atores locais, o que demonstra o interesse pela disputa dos lugares de
memória entre as diferentes esferas do Estado, a sociedade civil e a iniciativa privada. Por isso, o tombamento do terreiro Casa
Branca significou “a afirmação de uma visão de sociedade brasileira como multiétnica, constituída e caracterizada pelo plura-
lismo sociocultural” (VELHO, 2006, p. 240).
Tombar um patrimônio, ou reconhecê-lo como bem comum, implica atuar sobre o campo simbólico e econômico, con-
forme percebemos no caso apresentado por Velho. No simbólico, a construção e o reconhecimento de identidades; no econômi-
co, o conflito entre interesses públicos e privados. A discussão é extensa, mas importa ressaltar que, no caso específico do
patrimônio arqueológico pré-colonial brasileiro, o problema é o mesmo. Primeiramente, sua negação. A tradição luso-brasileira
carrega em suas bases o catolicismo, que influencia no tipo de relação que estabelecemos com o patrimônio arqueológico pré-
colonial. Especificamente no caso catarinense, se por um lado os jesuítas tiveram um papel importante no registro e nas pesqui-
sas dos vestígios pré-coloniais, principalmente com o padre João Alfredo Rohr, que investigou uma grande quantidade de sítios
(ROHR, 1984); por outro, contribuíram para que o reconhecimento destas civilizações ficasse limitado ao aspecto da curiosidade
histórica exposta em museus, e não como elemento significativo de composição identitária contemporânea. Para exemplificar
este paradoxo, citamos o caso do “Santinho”:

Na Praia do Santinho, em Florianópolis, até o ano de 1946 os pescadores locais faziam oferendas
e rezavam, pedindo proteção e boa pescaria, em frente a uma arte rupestre com o formato de um
pequeno santo, que era a figura de um antropomorfo com a cabeça constituída por um círculo
concêntrico. Tal “Santinho”, que deu nome à praia, foi arrancado do lugar pelos padres que acha-
vam que aquilo era um sacrilégio e nunca mais foi encontrado. É um caso raro em que um símbolo
sagrado pré-histórico continua sendo sagrado até os dias de hoje (LUCAS, 1996, p.16)

Lucas (1996) relata que após a remoção do “Santinho”, que teria sido levado ao Colégio Catarinense, dos jesuítas, a
comunidade local protestou, cercando a escola e exigindo a devolução da imagem, em claro exemplo de como um vestígio ar-
queológico pode ser reconhecido como patrimônio comum e elemento de identidade. Percebe-se que o tratamento dispensado
ao “Santinho” vai ao encontro do relato de Velho (2006) sobre o terreiro Casa Branca, já que em ambos os casos encontramos a
disputa pelo simbólico mediada por uma sacralidade considerada espúria pela tradição hegemônica. Tradição que é ideológica,
e que influenciará discursos e práticas de desvalorização do patrimônio arqueológico pré-colonial brasileiro, muitas vezes con-
siderado menor e sem valor, como no caso de Garopaba, onde, em 1975, a prefeitura “mandou quebrar a marretadas os amo-
ladores do Costão da Casqueira para aproveitar as pedrinhas negras no calçamento da praça central” (LUCAS, 1996, p. 109).
Ressalta-se que o patrimônio cultural e, neste, o arqueológico, não está dado em si, na medida em que resulta das rela-
ções de poder que o ressignificam. Assim, vestígios do passado, para serem considerados patrimônio, ficam sujeitos a um pro-
cesso de “seleção consciente do que se deseja legar ao futuro, que mostra que algo é valioso individualmente ou socialmente”

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(GUIMARÃES, 2012, p. 6). A patrimonialização como resultado das relações de poder ajuda a explicar, por exemplo, a pequena
quantidade de sítios arqueológicos tombados no Brasil, o baixo investimento na pesquisa e o abandono ao qual muitos sítios es-
tão relegados. Vestígios arqueológicos passam à condição de patrimônio no momento em que são apropriados pela comunidade
e/ou pelo aparato burocrático-estatal como bens comuns aos quais são conferidos sentidos e, muitas vezes, funções. O tipo de
sentido e função conferidos ao patrimônio arqueológico resultam também das disputas em torno das diferentes perspectivas de
desenvolvimento. Najjar e Najjar (2006), ao discutirem o papel educativo do IPHAN, identificam neste o principal sujeito institu-
cional na preservação do patrimônio arqueológico brasileiro. Entretanto, “apesar da Lei que cria o Instituto reconhecer a Arqueo-
logia como produtora de uma memória da nação (...), ela, de fato, nunca foi apropriada como tal” (NAJJAR; NAJJAR, 2006, p. 179).
A razão disto, segundo os autores, está no fato da arqueologia brasileira dedicar-se principalmente às sociedades pré-coloniais, e
de que o reconhecimento da participação destas sociedades na constituição da cultural nacional não é prioridade dos órgãos de
cultura brasileiros. Ou seja, a política relega os sítios arqueológicos brasileiros à destruição, atendendo a interesses simbólicos
e econômicos restritos.
No Brasil, as discussões do patrimônio cultural e, de forma mais recente, do patrimônio arqueológico, reforçaram-se com
as possibilidades de renda que podem resultar do seu aproveitamento, principalmente por meio do turismo cultural. Daí a neces-
sidade de se compreender o patrimônio arqueológico, sua valoração e sua apropriação pela comunidade enquanto patrimônio
cultural e a partir dos debates sobre as perspectivas de desenvolvimento, de modo que sua exploração (quando e onde esta for
estimulada) ocorra a partir das dimensões do desenvolvimento sustentável apresentadas por Sachs (2006a).

Patrimônio arqueológico e desenvolvimento.


Discutir a relação entre patrimônio arqueológico e desenvolvimento é tarefa complexa, principalmente porque não há
consenso a respeito do conceito de desenvolvimento, mesmo quando delimitado por categorias, como a de “sustentável”. Ortiz
(2008) alerta que o termo desenvolvimento pode encobrir realidades que se excluem, e, portanto, a primeira questão a ser colo-
cada diz respeito a que tipo de desenvolvimento estamos nos referindo. A percepção de desenvolvimento cujo sentido filia-se à
noção de progresso econômico, tecnológico e de valores políticos, como o da democracia, por exemplo, é, segundo Ortiz, uma
invenção da modernidade ocidental. Ortiz argumenta ainda que há múltiplas modernidades, assim a preocupação passa a ser
propor uma reflexão diferente da teleológica, que concebe a ideia de desenvolvimento como algo que obedece a um sentido
único e a modernidade como uma categoria absoluta.
A partir da década de 1960, as alterações ambientais promovidas pela ação humana e os riscos de um conflito bélico
generalizado alertaram para a necessidade de se discutir o modelo hegemônico de desenvolvimento. Neste sentido, é possível
elencar três marcos internacionais para esta discussão no século XX: Conferência das Nações Unidas em Estocolmo (1972),
Relatório Brundtland (1987), Cúpula da Terra no Rio de Janeiro (1992). Nestes marcos a ideia de sustentabilidade começa a
ser apresentada como alternativa de desenvolvimento. No Relatório Brundtland, por exemplo, compreendeu-se por desenvolvi-
mento sustentável aquele que atende as necessidades da geração presente, garantindo às gerações futuras dispor dos recursos
para atender as suas. Este mesmo documento, segundo Cooper et al. (2007), arrolou os princípios básicos da sustentabilidade,
dentre os quais está a proteção da herança cultural humana. Fazemos este destaque por integrar o patrimônio arqueológico a
esta herança cultural humana. Este mesmo princípio já estava presente na Conferência da Unesco de 1972, na qual foi adotada
a primeira convenção referente ao patrimônio mundial, cultural e natural.
Diante da possibilidade de esgotamento dos recursos naturais, se mantidos os hábitos de consumo e o crescimento de-
mográfico, Sachs (2006a) propôs o conceito de ecodesenvolvimento, ou desenvolvimento sustentável. Nesta perspectiva, contes-
tou um modelo de desenvolvimento ancorado exclusivamente no crescimento econômico, e propôs um novo modelo ancorado
sobre cinco dimensões: sustentabilidade social, sustentabilidade econômica, sustentabilidade ecológica, sustentabilidade espa-
cial e sustentabilidade cultural. (SACHS, 2006a, p. 181-182). Argumentou que o crescimento econômico não promoveu equidade
social, pelo contrário, aprofundou índices de pobreza, e por isso insistiu na necessidade da dimensão ecológica como garantia
para a sobrevivência humana. Como forma de ação, defendeu que uma estratégia de desenvolvimento só tem sucesso se contar
com a participação da comunidade local, e que as estratégias de transição para este novo modelo de desenvolvimento devem
derivar de políticas públicas de planejamento capitaneadas pelo Estado.
Em 1995, Sachs (2006b) apontou a necessidade de um desenvolvimento com foco no ecológico e no social, e defendeu

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


177
a necessidade de se pactuar valores éticos capazes de assegurar a sustentabilidade da vida, o uso da ciência e da tecnologia
para garanti-la, e o papel do Estado como regulador e fomentador de políticas relacionadas ao desenvolvimento. As bases para
este paradigma de desenvolvimento, segundo Sachs, são a prudência ecológica, a solidariedade para a equidade, a eficiência
econômica e “o social no comando, o ecológico enquanto restrição assumida e o econômico recolocado em seu papel instru-
mental” (SACHS, 2006b, p. 266). Em síntese, as proposições de Sachs têm, como fim último, o princípio da sustentabilidade
baseada no protagonismo dos sujeitos a partir de seus territórios locais.
Segundo Mielke & Gandara (2009), no contexto de um mundo globalizado que gerou processos de flexibilização e des-
centralização, é possível perceber um movimento de endogeinização das perspectivas de desenvolvimento, no qual o território
começou a ser visto como agente de desenvolvimento. Neste debate, a atividade turística passa a ser compreendida “não so-
mente como ator coadjuvante, mas também como ferramenta de fomento de geração de renda e emprego para as comunidades
locais. Ou seja, tem sido visto como instrumento estratégico de desenvolvimento econômico” (MIELKE; GANDARA, 2009, p. 86).
Esta relação entre turismo e desenvolvimento econômico endógeno é compartilhada por diversos autores, dentre estes Brenner
(2005), que ao discutir o turismo cultural, chama a atenção para a contribuição desta modalidade de turismo no desenvolvimento
endógeno de uma comunidade, não apenas porque valora economicamente o patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial,
mas porque se apresenta como promotor da sustentabilidade no processo de desenvolvimento. Sustentabilidade relacionada
não apenas aos aspectos materiais, mas também aos simbólicos, dentre os quais a valorização da memória histórica como
importante elemento constituidor de identidade. Ressalta-se também que um turismo que parte do patrimônio cultural de deter-
minado território, “representa um método de desenvolvimento turístico sustentável porque respeita o patrimônio de uma área e
habilita seus habitantes, gerando uma base verdadeira para o desenvolvimento” (BRENNER, 2005, p. 367).
A proposição de um turismo arqueológico convida para o debate travado no âmbito do saber arqueológico, de modo a
observarmos como seus profissionais estão compreendendo seu papel social, e de que modo a relação turismo – arqueologia
pode ser (ou/e é) recebida por estes. Neste sentido, recorremos a Bastos (2008) que, ao analisar as atividades desenvolvidas
pelos arqueólogos na Zona da Mata Mineira, tece interessantes observações a respeito da relação entre a arqueologia e o de-
senvolvimento regional.
Bastos (2008) chama atenta para uma “nova arqueologia brasileira”, preocupada em “modificar realidades locais através
da sua práxis educativa, participativa e inclusiva”. A gênese desta nova arqueologia estaria nos Estudos de Impacto Ambiental,
e hoje se estende amplamente, convocada que é, inclusive, pelos interesses do mercado e pelas necessidades da arqueologia
preventiva. Ao refletir sobre o papel a ser desempenhado pela arqueologia brasileira no desenvolvimento regional, compreende
este desenvolvimento como aquele que consiste no conjunto das “ações e atividades que geram oportunidades de engajamento
sociais, econômicas e culturais realizadas no âmbito do território envolvente e que dele tirem proveito de forma direta e/ou
indireta” (BASTOS, 2008, p.7). A partir da perspectiva da arqueologia e da prática profissional do arqueólogo considerando os
trabalhos desenvolvidos na Zona da Mata Mineira, constatou que a aproximação do trabalho do arqueólogo com os municípios
valorizou o poder local e fortaleceu ações decididas conjuntamente. Isto porque os atores locais, segundo Bastos, possuem
um sentimento de pertencimento, de ser e estar em um lugar, onde estabelecem suas relações sociais. Daí a necessidade de
se desenvolver um trabalho “interpessoal, interinstitucional, interdisciplinar, interétnico e transversal que possibilite o exercício
pleno dos direitos culturais” (BASTOS, 2008, p.10), avançando para aquilo que Santos (2007) chama de cidadania cultural. Este
trabalho deve ser anterior ao próprio uso turístico do patrimônio arqueológico, na medida em que este só “será instrumento de
desenvolvimento turístico após ter sido instrumento de Educação Patrimonial e inclusão social” (BASTOS, 2005, p. 65), de modo
a garantir a dimensão da sustentabilidade. É sob a ótica da cidadania cultural que a relação entre o patrimônio arqueológico e o
turismo concorre para uma perspectiva de desenvolvimento regional que ultrapassa a lógica trabalho e renda.
Neste sentido, Bastos (2008) chama a atenção para a necessidade da arqueologia trabalhar junto às comunidades locais
e, em especial, aos grupos vulneráveis, contribuindo com a inclusão social destas comunidades e grupos. Aqui estabelecemos
um ponto de convergência entre as proposições de Bastos para a arqueologia, e as premissas para o sucesso ou fracasso do
desenvolvimento local, apresentadas por Mielke & Gandara (2009). Segundo estes autores, são premissas para este tipo de de-
senvolvimento “o envolvimento dos atores locais, que têm importância fundamental como protagonistas dos processos (...) e as
questões organizativas, sociais e políticas dos mesmos, sejam institucionais, públicas ou privadas” (MIELKE; GANDARA, 2009,
p. 91-92).

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É nesta mesma lógica que Barretto (2009, p. 191), ao discutir o planejamento do turismo cultural/étnico, afirma que “no
ato de planejar turismo étnico, deve-se partir do princípio inerente aos direitos humanos de que, em primeiro lugar, quem pre-
cisa decidir sobre uma economia baseada no turismo ou não são os membros da comunidade.” Brenner (2005, p. 370) também
argumenta neste sentido, afirmando que “todos os esforços para promover o turismo cultural sustentável devem basear-se ab-
solutamente em uma cooperação ativa com as culturas locais”. E Veloso e Cavalcanti, ao discutirem especificamente o turismo
arqueológico, escrevem que este:

(...) apresenta-se hoje como um importante veículo de desenvolvimento socioeconômico em diver-


sas localidades além de ser um potencial campo de pesquisas para o conhecimento das popu-
lações humanas do passado. Constata-se também que esse pode ser aproveitado como fonte de
cidadania cultural (VELOSO; CAVALCANTI, 2007, p. 166)

Bastos (2008), portanto, defende a participação ativa da comunidade nas diferentes etapas do trabalho arqueológico,
entende o patrimônio arqueológico enquanto patrimônio cultural de uso comum e de alcance social, e acredita que as mudan-
ças de paradigma da Arqueologia ajudam a explicar o interesse de outras atividades econômicas, dentre estas, o turismo, pelo
patrimônio arqueológico. Assim, para além de representar alternativa de renda às populações locais dos sítios arqueológicos, o
envolvimento destas no turismo arqueológico deve representar, em primeiro lugar, um processo educativo que a fará olhar para
o patrimônio arqueológico de modo a valorá-lo simbolicamente. Esta perspectiva remete às reflexões de Sachs (2006a), Max-
Neef (2012) e Sampaio (2005), que defendem como condição para que uma estratégia de desenvolvimento sustentável possa ter
sucesso, a participação dos grupos e comunidades locais enquanto sujeitos do seu próprio desenvolvimento. Já Manzato (2013)
alerta para o fato de que, quando explorado exclusivamente em sua perspectiva econômica, o turismo em sítios arqueológicos
acaba promovendo desequilíbrios. Conforme Guimarães (2012, p. 54), “para o turismo arqueológico, a busca pela sustentabili-
dade deve ser no sentido mais amplo do termo, em todos os seus eixos: ambiental, social, econômico e cultural”.
Portanto, a valoração simbólica dos sítios arqueológicos, somada ao trabalho de educação patrimonial e à valoração
proveniente de sua potencialidade econômica enquanto atrativo turístico e aos produtos daí decorrentes, potencializará as pos-
sibilidades de preservação dos sítios como lugares de identidade e de renda. Assim, podemos partir do pressuposto de que um
projeto que proponha o investimento turístico tendo como atrativo também os vestígios arqueológicos pré-coloniais existentes
no município de Garopaba, necessita prever uma relação dialógica entre poder público (gestor local do turismo), ente federal
(IPHAN) e operadores do turismo principalmente com as populações locais, garantidoras da proteção dos sítios e dos valores
simbólico/identitários a estes relacionados.

A questão em Garopaba
O município de Garopaba, inserido na APA da Baleia Franca, possui uma população de 20.545 habitantes (IBGE, 2014) e
sua principal atividade econômica é o turismo de verão, compreendido entre os meses de dezembro a fevereiro, período em que
a cidade recebe grande fluxo de turistas.
Sua fundação remonta ao estabelecimento de uma armação baleeira em 1793. As armações baleeiras constituíram-se
como o principal empreendimento industrial do período colonial brasileiro no litoral catarinense. A esta armação transferiu-se a
força de trabalho escrava de origem africana, e a presença de seus descendentes é bastante significativa no município, resul-
tando inclusive no reconhecimento de dois quilombos (Aldeia e Morro do Fortunato). É a partir da Armação Baleeira que se inten-
sificou a ocupação de Garopaba, especialmente pelo elemento açoriano, que se dedicou às atividades pesqueiras e agrícolas.
No final da década de 1970 tem início a explosão demográfica de Garopaba, principalmente pela chegada de represen-
tantes da contracultura e surfistas, a maior parte provinda do Rio Grande do Sul. Este movimento migratório dobrou a população
local entre 1977 e 2014, alterando profundamente a paisagem. De pequena cidade dedicada à pesca artesanal, à agricultura e ao
extrativismo da madeira, transformou-se em importante balneário e polo de atração populacional. Sua malha urbana expandiu-se
horizontalmente, avançando sobre áreas até então ocupadas por pastagens e florestas, e seu centro histórico, antiga armação
baleeira em torno da qual se espraiou a antiga vila de pescadores com seu casario de arquitetura de base açoriana e ruas estrei-
tas, é hoje alvo do processo de gentrificação.
Para além das transformações da paisagem urbana, estão as alterações da paisagem cultural. Saberes e fazeres ligados

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à ocupação de base açoriana, e às respostas desta aos desafios locais, foram perdendo espaço. Práticas comunitárias como a
farinhada e a pesca artesanal da tainha, importantes elementos identitários, tornam-se cada vez menos comuns no cotidiano
garopabense. A forte imigração de pessoas, notadamente do Rio Grande do Sul, alterou radicalmente a dinâmica do sistema
cultural local.
Conforme apontado por Laraia (1986), a mudança cultural pode ser operada por dinâmicas internas e externas. No caso
de Garopaba, as dinâmicas externas, representadas pela explosão demográfica resultante não de um crescimento vegetativo,
mas do movimento migratório, promoveram uma rápida e intensa reconfiguração da paisagem cultural local a partir da década
de 1980, resultando em uma ruptura entre o cotidiano e as referências simbólicas dos moradores antigos para com as popula-
ções recentes, muito mais numerosas, provocando a desterritorialização da cultura tradicional.
Naquilo que tange ao patrimônio cultural de Garopaba, a intensa e recente alteração da paisagem humana local e o pro-
cesso de gentrificação podem significar a destruição de importantes marcos paisagísticos e simbólicos, bem como a eliminação
de saberes, fazeres e sensibilidades tradicionais. Isto ocorre não tanto pela irrupção dos recentes elementos culturais exógenos,
mas principalmente pela ausência de uma política municipal que garanta o debate permanente e a preservação efetiva do pa-
trimônio cultural local, bem como a inexistência de equipamentos públicos culturais, já que a cidade não possui um órgão espe-
cífico para a cultura, arquivo histórico, museu ou qualquer outra instituição que discuta especificamente as questões pertinentes
ao patrimônio cultural, sendo que apenas recentemente teve início o debate em torno da criação do sistema municipal de cultura.
Para além dos seus atrativos naturais (praias, lagoas e trilhas), Garopaba dispõe também de interessantes e importantes
vestígios arqueológicos pré-coloniais, cuja presença humana pode remontar a datas anteriores aos 4 mil anos antes do presente.
No Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA/IPHAN) estão registrados cinco sítios arqueológicos dentro dos limites
municipais, dos quais um apresenta média relevância e dois alta relevância. Há também uma diversidade de tipos de sítios no
município: sambaquis, oficinas líticas, sítios ceramistas e um sítio com inscrições rupestres. Além destes cinco sítios registrados
junto ao CNSA/IPHAN, há uma grande variedade de vestígios arqueológicos pré-coloniais das culturas sambaquieira, itararé e
carijó distribuídas pelo território. É comum os moradores da região encontrarem objetos líticos e sepultamentos quando aram a
terra ou cavam o solo para construir os fundamentos das casas.
A região na qual Garopaba está inserida é resultado de múltiplas ocupações identitárias, desde os tempos pré-coloniais.
Estudos arqueológicos desenvolvidos por João Alfredo Rohr (1984) já apontavam para a presença humana no litoral centro-sul
desde aproximadamente 7 mil anos AP. Tradições como a Umbu e a Humaitá, assim como sociedades sambaquieiras e, mais
recentemente (1500 AP), povos ceramistas Itararé e Carijó, habitaram em diferentes tempos a região. Entretanto, não há proteção
nos sítios arqueológicos localizados no município de Garopaba, que estão expostos ao intemperismo, ao turismo desordenado,
à expansão urbana e às ações de vândalos, conforme já apontamos (COSTA, 2014a).
As oficinas líticas estão localizadas junto a praias de grande fluxo de pessoas, como as da Vigia e da Barra. Não há
atividade de interpretação das mesmas, tampouco atividades sistemáticas de educação patrimonial das comunidades locais.
O fluxo de turistas sobre os vestígios e os saques vêm promovendo seu desaparecimento. O mesmo ocorre com o sambaqui
da localidade denominada de Barra. Sambaquis são marcos arquitetônicos construídos pelos povos sambaquieiros há até mil
anos antes do presente, e depois ocupados por povos ceramistas. Edificados com conchas acumuladas sistematicamente por
diversas gerações, guardam em seu interior sepultamentos, utensílios líticos e ósseos e vestígios de vida cotidiana. O sambaqui
da Barra está bastante destruído e saqueado, e abriga trilhas utilizadas por turistas e moradores locais sem qualquer controle ou
estudo de impacto.
Já na Ponta do Galeão, importante paisagem turística da cidade, que apresenta monólitos esculpidos pela ação do in-
temperismo, trilhas e grandes paredões rochosos junto ao mar, encontra-se um sítio arqueológico classificado no IPHAN como
de alta relevância, e que apresenta inscrições rupestres. Este sítio integra uma área que se estende da Ilha de Santa Catarina a
Garopaba. Prous (1992), ao tratar dos sítios rupestres da tradição litorânea catarinense, encontrados nesta área, afirma que “esta
tradição, muito bem circunscrita, não pode ser comparada com nenhum outro conjunto rupestre conhecido atualmente; trata-se
certamente de uma criação local” (PROUS, 1992, p. 513). A constatação de Prous reforça a importância dos estudos destas ins-
crições rupestres, cujos autores e significados permanecem ainda indeterminados, bem como seu potencial de atrativo para o
turismo arqueológico na região. A despeito de sua importância, a ausência de fiscalização e controle do acesso ao sítio, torna-o
suscetível aos atos de vandalismo (COSTA, 2014a).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Em pesquisa realizada com professores da rede municipal de ensino de Garopaba (COSTA, 2014b), verificou-se que
59% destes profissionais afirmam conhecer os vestígios arqueológicos existentes no município. Ainda que o percentual indique
a maioria dos professores, é alto o número que desconhece estes vestígios (41%), principalmente se consideramos o fato de que
alguns destes sítios, como as oficinas líticas e o sambaqui acima citados, estão localizadas em áreas de fácil acesso e em locais
de grande circulação de pessoas.

Considerações finais
Ainda que o patrimônio arqueológico deva ser estudado e preservado pelo seu valor intrínseco, é sabido que isto dificil-
mente ocorre. Para muitos, o argumento do turismo arqueológico enquanto promotor desta preservação pode soar como uma
espécie de desculpa para incrementar exclusivamente a economia do turismo no âmbito local. Barretto (2007) entretanto, demon-
stra, através de uma série de exemplos distribuídos no Brasil e em diversos países, como o turismo cultural contribuiu para o
fortalecimento e para a promoção de identidades locais e atividades tradicionais e para a preservação de patrimônios materiais
e imateriais em processo de destruição e desaparecimento, não fosse sua apropriação pelas comunidades locais a partir da
valoração destes patrimônios por meio da atividade turística. Embora muitas vezes o investimento no turismo cultural promova
a fetichização de manifestações culturais, quando planejado em diálogo com as comunidades locais, garante a preservação
do patrimônio cultural e fomenta, a partir das forças endógenas, a economia local e o próprio reconhecimento das identidades
locais.
Outro elemento importante a ser considerado está relacionado ao perfil do turista do turismo cultural, já que este, dife-
rentemente do turista do turismo de massa (que atualmente representa o principal investimento da economia do turismo em
Garopaba) tende a impactar menos na realidade local naquilo que diz respeito aos aspectos da degradação da sociedade recep-
tora e seus atrativos. É o que defendem Cooper et al. (2007, p. 280) quando afirmam que “(...) os turistas que pertencem a grupos
de charter ou de massa, provavelmente terão um impacto social e cultural maior que aqueles que pertencem às categorias de
turistas exploradores, aventureiros e étnicos.” Assim, considerando os aspectos teóricos e a caracterização do espaço e dos
vestígios arqueológicos remanescentes no município de Garopaba aqui apresentados, bem como o Projeto de Fortalecimento do
Ecoturismo de Observação de Baleias apresentado pelo SEBRAE a municípios que integram a APA da Baleia Franca, tornam-se
possíveis algumas proposições.
A primeira diz respeito à necessidade de se considerar a presença de importantes vestígios arqueológicos pré-coloniais
em Garopaba quando da discussão de um modelo de desenvolvimento sustentável. Estes vestígios integram o patrimônio pai-
sagístico da cidade, que precisa ser preservado. O modelo de desenvolvimento econômico atual, entretanto, estruturado sobre
a sazonalidade do turismo “sol e mar” não assegura a sustentabilidade, promovendo impactos ambientais, sociais e identitários
significativos.
A segunda diz respeito ao intenso e não planejado crescimento populacional. A constatação implica, além de urgentes
estudos de planejamento urbano, a necessidade de trabalhos de educação patrimonial como meio de desenvolver a cidadania
cultural e o reconhecimento de uma identidade local capaz de dialogar com os elementos exógenos sem se destruir. Este tra-
balho de educação deve considerar os vestígios arqueológicos pré-coloniais, contribuindo para a sua patrimonialização, interpre-
tação e incorporação às narrativas locais.
A terceira considera as possibilidades do turismo arqueológico. Esta segmentação de turismo, por se desenvolver em
espaços frágeis e únicos, exige planejamento, interpretação e participação de diferentes atores: poder público local, poder pú-
blico federal, comunidades locais, entidades privadas e do terceiro setor. Como já apontaram Bastos (2005 e 2008), Guimarães
(2012) e Manzato (2013), o turismo arqueológico sustentável, se planejado em complementaridade a rotas e circuitos que en-
volvam diferentes segmentos turísticos, alguns já existentes em Garopaba e região (turismo, turismo de observação de baleias,
turismo cívico), e outros identificados potencialmente (turismo rural, turismo étnico, turismo comunitário de base local, turismo
gastronômico), pode contribuir para o desenvolvimento sustentável e, por consequência, na ressignificação e proteção dos atuais
vestígios arqueológicos, alçando-os à condição de patrimônio socialmente reconhecido. O turismo arqueológico em Garopaba
pode representar, também, uma alternativa para reduzir à dependência em relação à sazonalidade do turismo de verão e um
estímulo à fixação da população local, na medida em que signifique, também, oportunidade de trabalho e renda.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


181
Por fim, considerando a dimensão política e ideológica dos processos de patrimonialização, o debate a respeito dos vestí-
gios arqueológicos pré-coloniais precisa necessariamente mobilizar as comunidades locais de Garopaba, por meio da articula-
ção destas com os demais atores do território, como as instituições de ensino e de pesquisa com atuação na região, entidades
representativas das populações locais e das atividades econômicas tradicionais, organizações do terceiro setor e representantes
do trade turístico.
Planejar o turismo local para além da dependência de um turismo sazonal e de massas, considerando a existência de
vestígios arqueológicos pré-coloniais importantes no município e as proposições aqui apresentadas, pode criar as possibilidades
para um empoderamento da população local sobre seu território no sentido da construção de perspectivas de um desenvolvi-
mento endógeno sustentável, atendendo assim aos objetivos da APA da Baleia Franca. Persistir na promoção do turismo “sol é
mar” como a principal estratégia de desenvolvimento no município, é persistir em uma estratégia que se comprova insustentável,
na medida em que, considerando as categorias apresentadas por Sachs, põe o econômico no comando, desconsidera o ecológi-
co enquanto restrição assumida e coloca o social no papel instrumental, ou seja, não é ecologicamente prudente, socialmente
solidário e tampouco eficiente sob o aspecto econômico no longo prazo. A observação dos índices de desenvolvimento humano
do município, inferiores à média estadual, são um dos elementos que reforçam esta conclusão. Elementos que se somam à
descaracterização identitária, ao desaparecimento das atividades econômicas tradicionais, aos processos de gentrificação e à
degradação ambiental.

Referências
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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


183
CARBONO ESTOCADO NOS PLANTIOS DE RECUPERAÇÃO DE APP
E RL NOS IMÓVEIS DA AGRICULTURA FAMILIAR

Medeiros, João de Deus1; Stefani, Marcia Rosana2; Prochnow, Miriam3 & Schaffer, Wigold Bertoldo3

1. Universidade Federal de Santa Catarina, j.d.medeiros@ufsc.br. 2. Grupo Pau-Campeche, mstefani@gmail.com


3.Apremavi, miriamscverde@gmail.com; wigold.schaffer@gmail.com

Resumo
O estudo avalia reflorestamentos para recuperação de APP em pequenas propriedades da agricultura familiar situadas no Alto
Vale do Itajaí. Foram instaladas parcelas de 100 ou 200 m2, e todas as árvores com DAP a partir de 5 cm foram identificadas e
medidas. A partir dos dados coletados foi calculada a biomassa acima do solo com o uso de equações alométricas, uma regional
e a indicada pelo IPCC. O carbono estocado foi estimado pela multiplicação dos valores de biomassa pelo fator 0,47. Foram
avaliadas as diferenças entre as metodologias de quantificação de biomassa propostas pelo Painel Intergovernamental sobre
Mudanças do Clima (IPCC) e utilizando a equação regional. Os dados obtidos com as equações regional e do IPCC mostram,
respectivamente, biomassa de 371,2 e 371,4 Mg.ha-1 , e estoque de carbono de 155,8 e 155,9 Mg.ha-1 . Os resultados demons-
tram que a contribuição prestada com a manutenção ou recuperação das APP das pequenas propriedades da agricultura familiar
é bastante significativa.

Palavras-Chave: Carbono; Agricultura Familiar, Área de Preservação Permanente, Mata Atlântica.

Introdução
O território brasileiro possui cerca de 64% de sua extensão ocupada por florestas nativas (ABRAF, 2006). Desse percen-
tual, 15% correspondem à área do bioma Mata Atlântica. Entretanto, neste bioma hoje restam 8,5 % de remanescentes florestais
acima de 100 hectares. Somados todos os fragmentos de florestas nativas acima de 3 hectares, temos atualmente 12,5% (SOS
MATA ATLÂNTICA, 2015). Apesar da devastação acentuada, a Mata Atlântica abriga enorme riqueza biológica e alto grau de
endemismo, características que contribuíram para torná-la um hotspot, áreas onde são encontradas grandes concentrações de
espécies endêmicas e altas taxas de perda de habitat (MYERS et al., 2000).
A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC) procura implementar a Redução de
Emissões do Desmatamento e Degradação (REDD), como uma forma de pagamento por serviços ambientais, em que o valor
de armazenamento de carbono pelas florestas ameaçadas por desmatamento e degradação é reconhecido financeiramente
(GHAZOUL et al., 2010). Para operacionalizar esse mecanismo é necessário realizar estimativas confiáveis da biomassa e do car-
bono das florestas. Para obter esta estimativa de biomassa em determinada floresta, são necessários um inventário da vegetação
por meio de parcelas, a aplicação de equações alométricas apropriadas e a extrapolação dos resultados (CHAVE et al., 2004;
HENRY et al., 2010).
Segundo Crow e Schlaegel (1988), as variáveis comumente utilizadas em equações de biomassa são o diâmetro à altura
do peito (DAP) e a altura total (h), podendo, em muitos casos, serem combinadas, gerando a variável (DAP2h). Com relação ao
número de variáveis independentes, Higuchi et al. (1998) citam que modelos de equações alométricas com apenas uma variável
independente (DAP), apresentam resultados tão consistentes quanto os modelos que utilizavam também a altura (h). No entanto,
Santos (1996) afirma que uma equação de biomassa que considera tanto o diâmetro quanto a altura deve produzir estimativas
melhores do que uma equação que utiliza apenas o diâmetro, por causa da informação adicional fornecida pelo conhecimento
da altura.
O carbono estocado por um ecossistema florestal está compartimentado em: 45-55% na biomassa acima do solo (fuste,
casca, galhos e folhas); 20-26% na biomassa abaixo do solo (raízes); 20% no próprio solo (respiração das raízes e respiração
heterotrófica dos micro-organismos edáficos) e 6-8% na serapilheira (MUUKKONEN, 2006; QURESHI et al., 2012). Estes valores,
no entanto, variam conforme o estágio de desenvolvimento da floresta. Segundo Ketterings et al. (2001), a estimativa de biomassa
acima do solo (AGB) é imprescindível aos estudos do balanço global de carbono.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


185
Diversos fatores afetam a biomassa e a produtividade nas formações florestais, dentre estes destaca-se a idade do povoa-
mento, a variabilidade genética, a nutrição, a altitude, a umidade do solo e os desbastes ou tratos culturais. O total de biomassa
acima do solo também varia por região geográfica, tipo de região (úmida, encharcada ou seca), tipologia e estrutura florestal e o
grau de distúrbio da floresta (BROWN; GILLESPIE; LUGO, 1989).
As estimativas de volume e biomassa em diferentes partes das árvores e nos compartimentos das florestas, projetam as
quantidades de carbono pela utilização de fatores de conversão, ou seja, de forma indireta. Considerando que a biomassa seca
contem aproximadamente 50% de carbono, o IPCC admite que o carbono estocado na biomassa pode ser determinado por meio
da multiplicação das estimativas de biomassa obtidas pelo fator 0,5.
Apesar da grande importância biológica da Mata Atlântica, poucos estudos foram feitos com base em medições diretas
de biomassa para o desenvolvimento de modelos alométricos. Isso se deve, principalmente, pelo fato de a Mata Atlântica ser
protegida por lei, tornando restrita a estimativa de biomassa por métodos diretos (destrutivos). Adicionalmente, pouco tem sido
publicado acerca da restauração da Mata Atlântica, apesar de sua importância como bioma brasileiro e hotspot global para a
conservação. O presente trabalho procura quantificar a biomassa e o estoque de carbono em uma área de Floresta Ombrófila
Densa, localizada no Alto Vale do Itajaí, SC, contemplando avaliação de plantios de restauração de áreas de preservação perma-
nente, em 10 pequenas propriedades de agricultores familiares, gerando subsídios para a avaliação da importância da contri-
buição das pequenas propriedades da agricultura familiar para a redução de emissões de gases de efeito estufa.

Metodologia
Foram selecionados 10 pequenas propriedades de agricultores familiares, localizadas em três municípios do Alto Vale
do Itajaí (Atalanta, Braço do Trombudo e Taió), onde plantios de restauração de áreas de preservação permanente haviam sido
implantados com apoio da entidade ambientalista Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida - APREMAVI. Na
área desses plantios de restauração foram instaladas parcelas de 100 ou 200 m2, onde se efetuou o levantamento propriamente,
com a medição in loco, adotando-se a metodologia consagrada em levantamentos fitossociológicos, registrando-se em todas as
parcelas amostradas dados de DAP e altura de todos os indivíduos, sua identificação taxonômica, seguida de dados qualitativos
da formação, com informações sobre serapilheira, epífitos, lianas e estratificação.
As espécies identificadas tiveram sua denominação em conformidade com a Lista de Espécies da Flora do Brasil (2015),
acessada através da pagina eletrônica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A estimativa da biomassa acima do solo foi realizada usando-se o método não destrutivo, considerando a biomassa do
fuste e dos compartimentos florestais de ramos e folhas. Foram adotadas duas equações alométricas para esse fim, sendo uma
delas aquela recomendada pelo IPCC e uma regional.
A Equação Regional adotada foi aquela ajustada por Amaro (2010):
BFcc = 0,024530*DAP2,443356*Ht0,423602

em que:
BFcc: biomassa do fuste com casca

A biomassa dos galhos (BGcc) foi estimada considerando que essa representa 25,96% da biomassa do fuste com casca:
BGcc = 0,2596*BFcc

A biomassa estocada nas folhas foi estimada com base em estudos realizados por Drumond (1996), que estabeleceu
que a biomassa das folhas (BFO) representa 4,45% da biomassa do fuste com casca:
BFO = 0,0445* BFcc

A biomassa acima do solo (AGB) foi obtida por meio do somatório da biomassa dos fustes, dos galhos e das folhas:
AGB = BFcc + BGcc + BFO

Adotando a equação recomendada pelo IPCC (2003) a biomassa acima do solo (AGB) foi estimada utilizando-se

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
186
a equação alométrica proposta por Brown, Gillespie e Lugo (1989):
AGB = 34,4703 - 8,0671*DAP + 0,6589*DAP2

em que:
AGB = biomassa acima do solo, em kg; e
DAP = diâmetro à altura do peito, em cm.

O carbono estocado na biomassa foi estimado por meio da multiplicação dos valores de biomassa pelo fator 0,47 para
espécies arbóreas, conforme recomendação do IPCC (2006).

Para análise das diferenças de estocagem de biomassa e carbono entre as distintas metodologias, utilizou-se a equação:
Df: [MIPCC - MREG / MIPCC]*100

em que:
Df = diferença entre as metodologias, em %;
MIPCC = estoque de biomassa e carbono pela metodologia do IPCC, em ton. ha-1; e
MREG = estoque de biomassa e carbono pela metodologia utilizando equações regionais, em ton. ha-1.

Resultados
Os dez plantios de restauração avaliados mostram idades variando de 7 a 28 anos, e a partir do inventário dos mesmos
obteve-se uma media de diâmetro a altura do peito de 15,1 cm, e uma altura média de 8,6 m (Tabela 1).
As principais espécies botânicas amostradas são apresentadas na Tabela 2, dentre as quais figuram a Araucaria
angustifolia, Euterpe edulis, Mimosa scabrella e Handroanthus chrysotrichus como as mais frequentes.
A partir dos dados obtidos nos inventários realizados os valores médios de biomassa e carbono obtidos foram, respec-
tivamente, com a equação regional 371,2 Mg/ha e 155,8 MgC/ha , e com a metodologia do IPCC 371,4 Mg/ha e 155,9 MgC/ha.
A análise dos resultados indica que a diferença dos valores obtidos com as diferentes metodologias foi bastante pequena. Das
10 áreas avaliadas apenas duas apresentaram diferenças superiores a 5%, sendo que a maior diferença observada foi de 6,5%.
Os valores de biomassa variaram de 86,7 Mg/ha a 791,5 Mg/ha. O menor valor esta associado ao plantio mais recente (7 anos);
o valor mais elevado foi obtido num plantio com 12 anos. Dentre os plantios mais antigos (28 anos) o maior valor obtido foi de
404 Mg/ha.
A diferença entre as metodologias empregadas variou de 0,4 a 6,5 %. Apenas em duas áreas amostradas a diferença entre
as metodologias foi superior a 5% (Tabela 1).

Tabela 1 - Dados Quantitativos dos Plantios de Restauração


em pequenas propriedades de agricultores familiares

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


187
Tabela 2 - Principais Espécies Botânicas Amostradas em Plantios de Restauração em
pequenas propriedades de agricultores familiares

Discussão e Conclusões
O método indireto de quantificação de biomassa baseia-se no uso de relações empíricas entre a biomassa e outras
variáveis da árvore (DAP, altura total) (SALATI, 1994), relações essas expressas por meio de modelos estatísticos (SANQUETTA;
BALBINOT, 2004). Esse método é considerado alternativa mais precisa do que o método direto, visto que neste último as infor-
mações obtidas costumam vir de parcelas de pequeno tamanho, em pequeno número e selecionadas de forma intencional,
geralmente em áreas que sejam mais representativas do todo (BROWN; GILLESPIE; LUGO, 1989). Essa conduta pode introduzir
erros de tendência nas estimativas, o que pode levar a super ou subestimativas da biomassa média da floresta avaliada.
As estimativas de biomassa obtidas indiretamente, com a adoção de equações alométricas, é recomendada pelo IPCC,
que recomenda a adoção, sempre que possível, de equações regionais. Essa recomendação procura trazer maior precisão as
estimativas de biomassa e estoques de carbono.
O potencial de estoque de carbono para a região do Alto Vale do Itajaí é conhecido apenas por valores médios adotados
para toda a Mata Atlântica, criando assim generalizações que, em alguns casos, se afastam da realidade regional. A adoção da
equação alométrica regional atende a recomendação do IPCC, já que a mesma foi desenvolvida para uma condição florestal
mais próxima (área de Mata Atlântica), e com adoção de duas entradas, no caso as variáveis DAP e altura. Ao avaliarmos com-
parativamente a equação do IPCC, que adota apenas o DAP como variável, com a equação regional que emprega duas variáveis
(DAP e altura), observamos que os valores obtidos são muito próximos. A maior diferença observada ficou em 6,5%, mostrando-se
praticamente indiferente a escolha da equação. Assim, o emprego da equação do IPCC, pode ser adotado para estimativas de
estoque de carbono na região avaliada.
Os resultados obtidos mostram números bastante promissores, o que pode ser explicado pelo clima regional, os cui-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
188
dados culturais e notadamente nos casos de APP de margem de curso d´água, a condição particularmente fértil dos solos e a
constante disponibilidade hídrica. As obrigações de restauração de áreas degradadas estabelecidas na legislação, especifica-
mente na lei 12.651, de 25 de maio de 2012, para áreas de preservação permanente e reserva legal de propriedades rurais abrem
a possibilidade de incluir a restauração como uma das estratégias para conservação da Mata Atlântica, e para mitigação dos
efeitos das mudanças climáticas, ampliando assim a importância da função socioambiental das pequenas propriedades rurais
da agricultura familiar.
Já a partir dos 15 anos os plantios atingem valores de estoque de carbono próximo de 100 MgC/ha, destacando assim
o grande potencial dessa região, o que pode ser explicado pelas características típicas da região do Vale do Itajaí, onde as
condições para o desenvolvimento da vegetação florestal são excepcionalmente favoráveis.
Segundo Klein (1979) originalmente quase toda a área do Vale do Itajaí estava coberta por uma luxuriante vegetação
florestal densa e úmida, predominando a mata pluvial da encosta atlântica (Floresta Ombrófila Densa). Serras de pouca altitude
limitam do lado interior uma área caracterizada por florestas densas no interior das quais se desenvolve muitas epífitas e lianas.
Entre os rios da costa catarinense, o de maior vulto, é o Rio Itajaí-açu que banha as terras mais férteis desta região, originadas
por um complexo de rochas pertencentes às mais variadas formações. A pluviosidade na região é elevada, com valores acima
de 1500 mm por ano. As chuvas se distribuem por todos os meses do ano. Quanto à umidade relativa, esta é muito elevada, apre-
sentando médias acima de 85%. O regime térmico mostra maior oscilação, com o mês de julho (o mais frio) apresentando médias
inferiores a 15° C, e com as temperaturas máximas (verão) podendo superar os 40°C. A área do vale do Itajaí é grandemente
resguardada contra os ventos frios do sudoeste, provenientes do planalto e por outro lado é beneficamente influenciada pelas
temperaturas moderadas do oceano. As serras situadas a oeste e sul agem no sentido de conservar mais elevada a temperatura
regional, enquanto o oceano apresenta influencia moderadora. A radiação solar atinge valores próximos a 1800 horas por ano,
enquanto a evaporação é bastante fraca, em virtude do elevado grau de umidade relativa do ar, raramente ultrapassando os
500mm anuais.
Ainda segundo Klein (1979) as características edafo-climáticas da região, altamente favoráveis ao desenvolvimento da
vegetação faz com que o retorno dos plantios de restauração seja altamente promissor, superando a média registrada em ou-
tras regiões ou formações da Mata Atlântica. A adoção de técnicas de condução dos plantios de restauração é outro elemento
importante. Com a adoção de técnicas de condução corretas são otimizados os resultados, tanto na seleção de espécies mais
promissoras como nos cuidados pós-plantio, resultando em ganhos de biomassa significativos. Os plantios de restauração con-
duzidos pela APREMAVI na região do Vale do Itajaí mostram isso, demonstrando de forma objetiva a grande contribuição que
representam para o enfrentamento das mudanças climáticas decorrentes da elevação de emissões antrópicas dos gases de
efeito estufa, notadamente do dióxido de carbono (CO2). Considerando a predominância de pequenas propriedades da agri-
cultura familiar na região, os resultados obtidos indicam que a contribuição delas para a redução de emissões e mitigação dos
efeitos das mudanças climáticas é significativa, e a disseminação de metodologias acessíveis para a quantificação dos estoques
de carbono mostra-se como uma boa alternativa para qualificar as pequenas propriedades da agricultura familiar aos programas
de pagamento por serviços ambientais.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
190
LA METODOLOGÍA DE GESTIÓN DEL PAISAJE APLICADA EN EL ÁREA DE
PROTECCIÓN AMBIENTAL DE LA BALLENA FRANCA – BRASIL, COMO
INSTRUMENTO DE GESTIÓN TERRITORIAL EN ÁREAS PROTEGIDAS

Delfino, Deisiane1 & Pèlachs Mañosa, Albért2

1. Doctoranda, becaria CAPES/Departamento de Geografía/Universidad Federal de Santa Catarina/Universidad Autónoma de


Barcelona, deisidelfino@gmail.com; 2. Departamento de Geografía, Universidad Autónoma de Barcelona, albert.pelachs@uab.cat

Resumo
La creación de Áreas de Protección Ambiental (APA) en Brasil está ligada a la necesidad de planificación territorial en áreas de
características biológicas relevantes. Tiene el propósito de promover el uso sostenible de los recursos y organizar la ocupación
del suelo, de modo que se establezca un proceso de desarrollo territorial sostenible. Frente las APA, el APA de la Ballena Franca
(APABF), surge como una referencia en la concepción del nuevo paradigma de gestión territorial. El APABF convive con el de-
safío de conciliar la conservación de los recursos y los valores del territorio con el desarrollo económico y la urbanización. La
gestión del paisaje se presenta como una herramienta novedosa para la gestión en las APAs, a través de la identificación de los
valores y de la integración de las políticas, posibilitando la gestión más integrada y sistémica de los recursos y, especialmente,
de los valores que justifican la existencia y la conservación del área protegida.

Palabras clave: Áreas de Protección Ambiental, APA de la Ballena Franca, Gestión Territorial, Gestión del Paisaje, Valores.

Introdução
Las Áreas de Protección Ambiental (APA) - de acuerdo con el Sistema Nacional de Unidades de Conservación brasileño
(SNUC), ley 9985/2000 - son unidades de conservación ambiental de uso sostenible. La creación de las APA está ligada a la
necesidad de la institución de una planificación territorial en áreas que tengan características biológicas relevantes. Tiene el
propósito de conservar estas áreas, así como, promover el uso sostenible de los recursos y organizarla ocupación del suelo, de
modo que se establezca un proceso de desarrollo territorial - buscando conciliar la protección de los recursos naturales con el
desarrollo económico y social.
La gran mayoría de las APA federales brasileñas (78%) fueron creadas entre los años 80 y 90 y representa todos los bio-
mas. El bioma más bien representado es el Marino, que sumado a la Foresta Atlántica, representa el 46,2% de las áreas protegi-
das del país (ICMBIO, 20141).
Desde su creación, las APA han sido fuente de conflictos con los agentes territoriales (propietarios de tierras, usos del
suelo, explotación de los recursos naturales, etc.). Pero, también, por malas practicas de gestión y porque se integra a una es-
tructura administrativa muy cargada de figuras (CORTE, 1997; MACEDO, 2008; GRANJA, 2009; MARTINS, 2012; MARQUES;
OLIVEIRA, 2012).
En el caso de las APA en el contexto urbano, cuando su territorio abarca varios municipios, y estos tienen la obligación
de elaborar sus Planes Directores, existe el conflicto relacionado con la superposición de las políticas y herramientas de gestión
(GRANJA, 2009).
El APA de la Ballena Franca (APABF), ubicada en la zona costera marina, en el sur del Brasil, con área de 156.100 hec-
táreas, fue creada en 2000 con el objetivo de proteger la especie de la Ballena Franca (Eubalaena australis) – que frecuenta el
área entre los meses de julio y noviembre, sobretodo para reproducirse – y promover el ordenamiento territorial y marítimo en el
área, que implica directamente nueve municipios.
El territorio compuesto por el APABF ha tenido un significativo aumento poblacional desde la década de 1970, pasando
de 326.069 habitantes a 848.494 habitantes en 2010. Un crecimiento del 175%, en 40 años, de población rural (58%) a población
urbana (87%). (IBGE, 1970; 2010). Un proceso que ha comportado transformaciones considerables de los paisajes costeros ma-
rinos y la pérdida de algunos de los valores más singulares del territorio del APA de la Ballena Franca.

1
Disponible en www.icmbio.gov.br, acceso en 15/07/2014.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


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Ante este contexto, se plantean algunas cuestiones: ¿Quiénes son los grupos de actores que promueven la transfor-
mación del paisaje en el territorio del APABF y como están representados en su consejo gestor? ¿Cuáles son las políticas de
gestión territorial y urbanística que inciden en el territorio del APABF? ¿Qué valores del paisaje los actores atribuyen al territorio
del APABF y cómo pueden contribuir a su ordenamiento y a su gestión territorial?
Así, el presente estudio tiene por objetivo presentar las políticas, los actores y los valores que inciden sobre el paisaje del
APA de la Ballena Franca y la gestión del paisaje como herramienta de ordenación y gestión territorial en las áreas protegidas.

Metodología
Para el desarrollo de la investigación se ha utilizado el marco teórico metodológico sobre la gestión del paisaje y los va-
lores del paisaje europeo y catalán (NOGUÉ; SALA, 2006; 2009; BUSQUETS; CORTINA, 2009).
Para el análisis de la gestión en el territorio del APA de la Ballena Franca, se ha considerado más allá de sus límites
jurídico políticos. Lo que se ha determinado como territorio del APABF es el área compuesta por los nueve municipios que la
componen. El modelo de análisis se basa en el del GTP (Geossistema-Territorio-Paisaje) (BERTRAND, 2000).
Los actores seleccionados para el análisis han sido: a) Los consejeros del Consejo Gestor del APABF en el periodo 2012-
2014; b) Entrevistas semiestructuradas con actores indicados según muestreo por bola de nieve (COLEMAN, 1958; GOODMAN,
1961); c) Entrevistas semiabiertas con el equipo gestor del APABF; d) Análisis de actas de las reuniones del consejo gestor en
el periodo 2006-2015. Es un trabajo de investigación participante y cualitativo. El análisis de los datos fue hecha a través de la
combinación del método cualitativo deductivo e inductivo, con el uso del software AtlasTi.

La Gestión del Paisaje como Herramienta de Gestión y Ordenación del


Territorio en Áreas Protegidas
El paisaje ha ganado importancia en los procesos de gestión en Europa en los años 1990, con la redacción del primer
proyecto del Convenio Europeo de Paisaje, firmado en 2000. El Convenio es resultado de la preocupación por la aceleración del
proceso de transformación del paisaje en función de la economía mundial y de la globalización. Reconoce que el paisaje es un
importante elemento que contribuye a la formación de las culturas locales, patrimonio natural y cultural, recurso económico; y
contribuye, además, a la consolidación de las identidades (CONSEJO DE EUROPA, 2000; ZOIDO, 2009).
El paisaje es un elemento importante de la calidad de vida de las poblaciones en todas partes y su protección, gestión
y ordenación implica derechos y responsabilidades para cada persona (CONSEJO DE EUROPA, 2000). Constituye un pilar en
la construcción del sentido colectivo, en la configuración de la identidad social, dotada de valores que posibilitan evaluar su
evolución y definir políticas para su gestión (NEL.LO, 2012). De acuerdo con esta visión sobre el paisaje, el Convenio Europeo
del Paisaje (CEP), la define como “cualquier parte del territorio, tal como es percibida por las poblaciones, cuyo carácter resulta
de la acción de factores naturales y/o humanos y sus interrelaciones”. Y, de este modo, ha determinado medidas de gestión y
ordenación del paisaje para todo el territorio (CONSEJO DE EUROPA, 2000).
Entre los puntos innovadores de la política de gestión del paisaje europea está la calificación del paisaje considerando
sus valores particulares atribuidos por los actores sociales y, la integración del paisaje a las políticas de ordenación del territorio,
urbanística, ambiental y otras políticas que puedan tener efectos directos o indirectos sobre el paisaje. El convenio se refiere al
paisaje, no solo en su dimensión natural o a las unidades geográficas del paisaje tradicionales, sino al paisaje en su totalidad,
configurando una visión sistémica, multidimensional e integradora.
En el ámbito de la aplicación del CEP y la elaboración de las políticas de gestión y ordenación del paisaje, la Comunidad
Autónoma de Cataluña (España), ha desarrollado una de las políticas más ambiciosas y pioneras en el contexto europeo (ZOIDO,
2009; NEL.LO, 2012). En 2005, se aprobó la ley 8/2005 del Paisaje de Cataluña que tenía por finalidad promover “el reconocimien-
to, la protección, la gestión y la ordenación del paisaje, a fin de preservar sus valores naturales, patrimoniales, culturales, sociales
y económicos en un marco de desarrollo sostenible” (GENERALITAT DE CATALUNYA, 2005).
La implementación de la política de gestión de paisaje en Cataluña ha sido posible con la creación del Observatorio del
Paisaje y la elaboración de los Catálogos del Paisaje, ambos previstos en la ley 8/2005. Los catálogos clasifican los valores del paisaje
desde todos los puntos de vista (material e inmaterial). De acuerdo con Nogué y Sala (2009), los catálogos son una importante her-
ramienta de gestión del paisaje, y son la base de los objetivos de calidad paisajística que sirven para marcar directrices a la ley.

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La identificación de los valores es tenida como una de las etapas más importantes de todo el proceso, porque implica la parti-
cipación de los ciudadanos. “[…] no todos los paisajes tienen el mismo significado para la población y, por otro lado, a cada paisaje se
le puede atribuir diferentes valores y en grados distintos, según el agente o individuo que lo percibe”. (NOGUÉ; SALA, 2009, p. 422).
De acuerdo con Nogué y Sala (2009) los valores pueden ser determinados de acuerdo con las siguientes características:
a) Valores estéticos: elementos estéticos ligados al sentimiento de belleza que el paisaje puede transmitir, en función de su signifi-
cado cultural que ha adquirido a lo largo de la historia. b) Valores naturales y ecológicos: elementos que determinan la calidad del
medio ambiente natural, relacionados con las áreas de especial interese natural. c) Valores Productivos: elementos relacionados
con la capacidad de un paisaje de proporcionar beneficios económicos en los diferentes sectores, como el turístico, agrícola,
industrial, mineral, etc. d) Valores históricos: elementos materiales concretos producidos por el ser humano en el paisaje, las
construcciones más relevantes hechas por el hombre a lo largo de la historia. e) Valores de uso social: elementos relacionados
con el ocio, placer, práctica de deportes, terapias, etc. f) Valores religiosos y espirituales: relacionados con las prácticas y cre-
encias religiosas. g) Valores simbólicos e identitários: elementos que poseen una fuerte carga simbólica o de identidad para las
poblaciones locales, teniendo en cuenta la relación de pertenencia.
De acuerdo con Nel.lo (2012) los valores del paisaje se encuentran en riesgo por el impacto de las dinámicas territoriales.
Por este motivo, la preservación de los valores es esencial para el bienestar, la calidad de vida y la cohesión social. Lo que implica
la elaboración de políticas específicas del paisaje, integradas con el planeamiento territorial y urbanístico.
De acurdo con Sala y Moles (2014), cada vez más, las instituciones locales, como los ayuntamientos, ven el paisaje como el
posible motor para su desarrollo: un atractivo local, una señal de civilidad y una vía para incrementar la identidad y la calidad de vida
de las personas. En el contexto de la globalización, la calidad del paisaje puede volverse un factor de diferenciación del territorio
y competitividad para los municipios y la singularización de los territorios, una manera de ser más fuerte frente al mundo global.
Las políticas del paisaje mejor desarrolladas en Europa son aquellas que disponen de estrategias articuladas entre sí y
que cuentan con la participación ciudadana y de los agentes públicos y privados del territorio (SALA; MOLES, 2014). Es decir,
que se acercan a los principios de la gobernanza.
En el contexto de este estudio la gobernanza2 adquiere un papel sustancial, una vez que, en Brasil, el SNUC, prevé que
la gestión de las áreas protegidas cuenta con la participación de la sociedad a través de la formación de un consejo gestor, que
contemple representantes de todos los sectores sociales.
Teniendo en cuenta el marco teórico metodológico de gestión del paisaje, cabe ahora presentar su relación con las APA
en Brasil. Los estudios y los datos sobre las APA, demuestran la importancia que estas unidades han asumido frente al campo de
las unidades de conservación ambiental brasileñas. Asimismo, las APA también poseen ciertas peculiaridades que les confieren
el carácter de territorios ambientales, en el sentido de territorio usado y vivido, material y simbólico.
Las APA son creadas con el objetivo de proteger las áreas de especial interés ecológico y los recursos naturales explota-
dos por las poblaciones tradicionales – y no solo por estas. Estos territorios - en el sentido material concreto - son sobretodo,
territorios jurídico-políticos , controlados por el poder público. Al mismo tiempo, representan el territorio en su dimensión cultural
- en el sentido material, simbólico y de apropiación - a partir del momento en que existen grupos de actores, que pertenecen a
ese territorio, desenvuelven sus actividades y hacen diferentes usos de ellos y les atribuyen diferentes valores. No obstante, con-
stituyen territorios económicos, una vez que sus recursos son aptos, no solo para las comunidades tradicionales, sino también,
para empresas e industrias.
Por lo tanto, el proceso de institución y gestión de áreas de protección, implica reconocer la existencia de los actores que
participan, su relación con el territorio, las territorialidades y los conflictos desencadenados en el uso de los recursos. A partir
del momento en que se reconoce una APA como un territorio, es posible avanzar en el proceso de gestión de la unidad, para el
proceso de gestión territorial. Este es el primer gran avance en el contexto del APA de la Ballena Franca.
El segundo punto de discusión en el presente estudio es la importancia de los valores territoriales, identificados a partir
2
Por gobernanza se entiende el proceso social de planteamiento e gestión de los recursos públicos, “en modo de interdependencia – asociación – coproducción –
corresponsabilidad entre el gobierno y las organizaciones privadas y sociales”. (AGUILAR, 2006 apud BARRAGAN, 2014). Teniendo en cuenta el contexto litoral del
APA de la Ballena Franca, aun considerase aquí el referencial de gobernanza para la gestión integrada de áreas litorales y para los ecosistemas costero marinos, que
además de presentar los principios específicos de la gobernanza, enfoca en el funcionamiento y los limites de este ecosistema (BARRAGAN, 2014).
3
Haesbaert (2013) agrupa la concepción de territorio a partir de tres vertientes: 1) jurídico-política donde el territorio es visto como un espacio delimitado y controlado
generalmente por la figura del Estado. 2) cultural, donde el territorio posee un sentido más subjetivo, producto de la apropiación de un determinado grupo sobre su
espacio. 3) económico, resultado de las relaciones económicas del choque entre las clases sociales.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


193
de la metodología de valores del paisaje utilizada en la gestión del paisaje en Cataluña. El paisaje es un importante elemento en
la constitución de unidades de conservación. Sin embargo, es en el ámbito de las unidades de conservación de uso sostenible,
donde se revela en su sentido más amplio – el paisaje como resultado dinámico de la interfaz sociedad y naturaleza a lo largo del
tiempo. El paisaje se presenta como un elemento clave en la constitución de las APA, ya que uno de los mayores desafíos para
las APA es equiparar el uso de los recursos y la conservación de estos con el desarrollo económico.
Teniendo en cuenta la experiencia del APA de la Ballena Franca, se propone que el paisaje sea el elemento de enlace en-
tre los municipios y el APA. Por lo tanto, es fundamental reconocer el paisaje como un instrumento de gestión territorial y avanzar
en el reconocimiento de los valores del paisaje, para contribuir en la consolidación de un proyecto de gestión territorial en el APA
a través de los valores comunes, de forma sostenible, integrada, sistémica y participativa.
Además, es importante destacar que entre las categorías de áreas protegidas del International Union for Conservation of
Nature (IUCN), las APA en Brasil aparecen como un ejemplo de aplicación de la categoría V, denominada de Paisaje terrestre/
marino protegido (PHILLIPS, 2002). De acuerdo con la IUCN los paisajes terrestre/marino corresponden a las áreas protegi-
das “en la que la interacción entre los seres humanos y la naturaleza ha producido un área de carácter distintivo con valores
ecológicos, biológicos, culturares y estéticos significativos” (DUDLEY, 2008, p. 25, grifo nuestro). Esta categoría es con-
siderada única entre las demás categorías de áreas protegidas en el mundo, porque considera la intervención y la interacción hu-
mana, conjuntamente. Abarca paisajes más extensos y múltiples valores, paisajes valiosos por su biodiversidad y riqueza cultural.

La Gestión Territorial en el APA de la Ballena Franca, Santa Catarina, Brasil:


Políticas, Actores y Valores
El APA de la Ballena Franca fue creada en 2000 para proteger la especie de la Ballena Franca (Eubalaena australis),
frente la amenaza de extinción en el territorio brasileño. Sin embargo, este no es el único objetivo del APABF, entre sus objetivos
está la promoción de la ordenación territorial en su área de influencia, compuesta por nueve municipios del litoral centro sur
catarinense, en Brasil.
El paisaje del APABF es bastante diversificado y singular, resultado de una combinación de agentes y procesos naturales
específicos de la zona costera marino sur catarinense y de la actuación humana en diferentes periodos históricos – sobretodo,
de origen indígena, azoriana e italiana, ligada a las actividades culturales y económicas de cada época. Los tres grandes pilares
ecológicos del paisaje del APABF son la ballena, el mar, las dunas y la vegetación nativa. Pueden ser vistos en un área de cerca
de 130 km de playas con dunas, lagunas, estuarios de grandes ríos, marismas, selvas densas, vegetación de restinga y rema-
nentes de manglares. Por otro lado, los pilares culturales del paisaje del APABF son las comunidades tradicionales y toda la cultura
ligada a la pesca artesana. Asimismo, su paisaje esta compuesto por concheros, centros históricos, paisajes rurales y urbanos;
infraestructuras como el puerto, el aeropuerto y las autopistas; las actividades turísticas de verano, agrícola, industrial y la pesca.
Entre las amenazas para la gestión del APABF, se destacan el crecimiento del mercado inmobiliario y de la urbanización
en las playas, la ocupación y degradación de áreas de dunas y vegetación de restinga, el crecimiento poblacional, el turismo de
masas estacional y la pérdida de valores singulares (DELFINO; BELTRAME, 2014a).
Además de promover la gestión de la unidad y de sus recursos, los gestores del APA han promovido la gestión territorial:
a) por la participación del Consejo Gestor en las decisiones pertinentes al territorio; b) por el diálogo con actores estratégicos
como los empresarios y los ayuntamientos, en el intento de influenciar en las políticas públicas locales y regionales; c) por
considerar los valores locales en la gestión de la unidad; d) promover la gestión integrada con otras unidades de conservación
ambiental (DELFINO; BELTRAME, 2014b).

La superposición de políticas y escalas de gestión


El SNUC es la política responsable para la creación, implementación y gestión de unidades de conservación ambiental
en Brasil. No obstante, en el contexto de un área protegida hay que considerar otras políticas de acuerdo con el contexto en que
está inserida. El APA de la Ballena Franca es un área protegida marino costera federal, ubicada en el bioma de la Foresta Atlántica
en el estado de Santa Catarina.
Para su efectiva gestión hay que considerar las políticas implicadas en este contexto en los tres diferentes niveles de
gestión gubernamental: federal, estadual (Santa Catarina) y municipal (Cuadro 1).

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Se ha constatado que la mayoría de estas políticas indican la promoción del desarrollo sostenible y la gestión democráti-
ca de los territorios, como medio para alcanzar sus objetivos. Aunque, los gestores del APABF se enfrentan al problema de la
creciente desarticulación y desintegración de los órganos gestores en relación a la ejecución de tales políticas - una vez que sus
objetivos y áreas de implementación se sobreponen.

Las escalas regionales de gestión


El APABF comprende nueve municipios (Figura 1), 156.100 hectáreas de área protegida y una costa de cerca de 130
kilómetros, comprendiendo cinco cuencas hidrográficas. Teniendo en cuenta este contexto, se ha buscado identificar cuáles
son las diferentes escalas de gestión que implican decisiones en el territorio y en los municipios del territorio del APA (Figura 1):
la gestión de unidades de conservación, gestión de cuencas hidrográficas, la gestión costera, las secretarias de desarrollo del
Estado, las asociaciones de municipios y la gestión urbanística municipal de cada uno de los nueve municipios.

Figura 1. Escalas de gestión en el territorio del APABF. Siglas: APA (Área de Protección Ambiental), PEST (Parque Estadual Serra Tabuleiro),
GERCO (Gestión Costera), CH (Cuenca Hidrográfica), SDR (Secretaria de Desarrollo Regional), AMREC (Asociación de Municipios de la
Región Carbonífera), AMUREL (Asociación de Municipios de la Región de Laguna), GRANFPOLIS
(Asociación de Municipios de la Grand Florianópolis). Fuente: elaborado por los autores.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


195
De los municipios que componen el APABF, ocho son costeros y tienen como característica común el paisaje litoral y los
ecosistemas costeros marinos. Tubarão, aunque sin ser costero, en él se encuentra el principal río que desagua directamente en
el complejo lagunar más grande e importante del territorio.
De acuerdo con las escalas de gestión presentadas (Figura 1), los municipios están distribuidos entre las diferentes ins-
tituciones de gestión regional, políticas, administrativas y ambientales - siendo el APABF la única que congrega todos. Aún así,
el APABF está subdividida en tres sectores para mejorar la gestión del territorio (norte, sur y central). Según el equipo gestor del
APA, esta división forma parte de una estrategia de gestión según las características de cada sector.

Los actores implicados


Entre los grupos de actores, se ha verificado que los principales conflictos giran en torno a los recursos y los valores del
paisaje de la zona costera marina. Entre ellos, se puede destacar el importante papel de los municipios, los agentes inmobiliarios,
los residentes nativos y sus descendientes, y los inmigrantes provenientes de otras regiones. Estos grupos de actores de alguna
manera compiten por el mismo objeto - el paisaje de las playas (cuadro 2), aunque lo hacen con diferentes estrategias, atribuyén-
doles diferentes valores y generando diferentes conflictos (DELFINO; BELTRAME, 2015).

De acuerdo con los actores encuestados los principales conflictos pasan por la existencia de políticas urbanas munici-
pales poco claras, o poco conocimiento sobre las políticas que inciden sobre el paisaje del APA. Algunos grupos de actores
presentan una visión distorsionada sobre el APABF, creyendo que esta es un obstáculo al desarrollo de los municipios.

El Consejo Gestor
El Consejo Gestor del APABF (CONAPABF) fue creado en 2005, con la participación de 42 instituciones de represen-
tación de los sectores público, económico y social. El CONAPABF tiene por objetivo garantizar la gestión participativa e integrada
del APABF, a través de acciones que aseguren la protección de la diversidad biológica y cultural, la regulación de la ocupación

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
196
del suelo y la sostenibilidad del uso de los recursos naturales (IBAMA, 2006). El consejo está compuesto 1/3 por institucio-
nes del sector público, 1/3 por los usuarios de los recursos del territorio y 1/3 por ONGs ambientalistas (Figura 2).

Figura 2. Composición del Consejo Gestor por grupo de actores, entre 2006-2014. Fuente: elaborado por los autores.

La representación en el consejo ha variado de acuerdo con el grupo de actores y el periodo de gestión. Sin embargo, se
ha verificado que el sector de usuarios fue el único que siempre ha completado las plazas disponibles (1/3), puesto que, el sector
de las ONGs ambientalistas ha encontrado dificultades para completar 1/3 de las plazas en el CONAPABF.
Otro factor a ser considerado, es que el municipio de Imbituba fue el que siempre tuvo más representaciones en el con-
sejo; y que los municipios de Paulo Lopes y Palhoça estuvieron sin representantes hasta 2014, cuando Palhoça ingresó con un rep-
resentante en el sector de usuarios. Actualmente, de los nueve ayuntamientos, apenas cuatro tienen representación en el consejo.

Los valores del paisaje del APA


Los principales conflictos en el APABF giran en torno a la ordenación del uso del suelo y de los recursos naturales en el
paisaje costero. Las playas son un elemento común a ocho de los nueve municipios del APABF.
Los grupos de actores encuestados, aunque atribuyen diferentes valores al paisaje en el APABF, destacan el importante
papel del paisaje costero para la manutención de los valores y para el desarrollo del territorio (Cuadro 3). En la identificación
de los valores, los actores cuando son cuestionados, atribuyen al APABF los mismos valores que atribuyen a los municipios que
representan.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


197
Observaciones Finales
Teniendo en cuenta las dificultades de gestión sufridas por las unidades de conservación brasileñas, el Área de Protec-
ción Ambiental de la Ballena Franca, protagoniza un innovador modelo de gestión en el campo de las áreas protegidas. Los
gestores del APABF, la conciben como un territorio, dotado de valores singulares, donde hay distintos intereses, actuación de
múltiples grupos de actores, relaciones de poder y, consecuentemente, diferentes estrategias en torno al uso de los recursos
ambientales - los naturales y los culturales – y de apropiación de sus valores. Su actuación consiste en promover el diálogo con
los diferentes actores implicados y romper con el paradigma de que las áreas protegidas son un obstáculo para el desarrollo
económico. Sin embargo, aún se encuentran con muchas resistencias, sobretodo, por parte de los agentes económicos y los
gestores municipales.
Tales resistencias se materializan en la flexibilización de las leyes de uso y ocupación del suelo urbano litoral por los mu-
nicipios, en el no cumplimento de las leyes ambientales, en la visión distorsionada de que las áreas protegidas son restrictivas
e impiden el desarrollo económico. Sin embargo, algunas iniciativas de diálogo han apostado en medidas de concertación que
beneficien a todos los actores implicados. Iniciativas estas en las que los agentes privados adecuarán sus emprendimientos a
una serie de sugerencias por parte de los gestores del APA, siendo más sostenible con los valores del territorio.
Teniendo en cuenta que: 1) el APABF es una área protegida que considera la interacción entre las comunidades y la natura-
leza, y además, que de esta interacción resultan ciertos valores distintos y singulares a su territorio; 2) los conflictos de gestión que
enfrenta; 3) la necesidad de articulación y de integración entre las políticas y los actores en diferentes escalas; 4) el territorio del
APABF extrapola los límites político jurídicos utilizados para la elaboración del plan de manejo; esta investigación buscó un marco
teórico metodológico capaz de contribuir a la gestión territorial en el APA de la Ballena Franca, pautada en la gestión del paisaje y
en los valores del paisaje. Una herramienta útil en manos de los actores, aquellos que viven y sienten el paisaje a cada día.
El paisaje litoral es el que ha sufrido más transformaciones por el crecimiento poblacional y la urbanización de las playas.
Los agentes inmobiliarios, los agentes públicos municipales, la población nativa ligada a la cultura pesquera y los inmigrantes,
son considerados en este estudio como actores clave para la gestión del área.
Sobre la participación de los municipios en el consejo gestor, son los municipios del sector central del APABF los que
tienen la mayor participación desde el principio. Los ayuntamientos, en especial, demuestran poco interés en participar del
consejo, siendo su aportación esencial, una vez que son responsables por la implementación de las políticas urbanísticas mu-
nicipales.

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Sobre las políticas, el territorio del APABF cuenta con una serie de políticas a diferentes escalas de gestión, que están de-
sarticuladas entre sí y su superposición compromete la efectiva gestión de los recursos, una vez que, en algunos casos, como en
los planes directores municipales, presentan incoherencias en el uso y ocupación del suelo con la conservación de los recursos
y sus valores.
Entre los valores identificados, se ha verificado que los actores, en general, reconocen dos grandes ejes: uno, ligado a
los valores estéticos y los ecológicos; otro, ligado a los valores simbólicos y de identidad. Sin embargo, en sus discursos apuntan
otros valores y otras categorías mucho más específicas y propias del territorio, que pueden contribuir a la gestión del APABF.
La gestión del paisaje posee visión sistémica, integradora, más amplia, de mejora constante del paisaje y se presenta
como una importante herramienta de gestión de territorios en áreas de protección ambiental, porque presupone la concertación
entre los actores envueltos en la mejora de la calidad del paisaje y de la conservación de sus valores.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
200
AS MULHERES EXTRATIVISTAS NA RESEX MARINHA DO PIRAJUBAÉ:
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DE VALORIZAÇÃO DOS SABERES E
HABILIDADES FEMININAS NO DESENVOLVIMENTO DAS
ATIVIDADES DA PESCA ARTESANAL

Laci Santin, Laci1 & Horton, Emily Y.2

1. Analista Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, Reserva Extrativista Marinha do
Pirajubaé. laci.santin@icmbio.gov.br 2. Doutoranda do PPG em Conservação Integrativa e Antropologia,
Universidade da Georgia - USA. eyhorton@uga.edu

Resumo
O objetivo deste artigo é refletir sobre as relações de gênero e o papel das mulheres na Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé
(RESEX Pirajubaé). Apesar da importância das contribuições das mulheres nas atividades da pesca, existem grandes lacunas de
informação sobre o papel das mulheres na RESEX Pirajubaé, bem como sobre sua participação pública, historicamente limitada.
Este artigo tem por finalidade destacar a necessidade de se aprofundar no entendimento das relações de gênero na pesca e
de promover uma maior inclusão e visibilidade das mulheres nesta área protegida. As autoras se propõem ainda, por meio de
uma troca colaborativa de conhecimentos, a sensibilizar sobre a necessidade de realizar estudos aprofundados sobre o papel
das mulheres na cadeia produtiva das atividades extrativistas e sua importância na reprodução da cultura e modo de vida das
populações pesqueiras.

Palavras-Chave: Relações de Gênero, Pesca, Reserva Extrativista Marinha, Gênero e Desenvolvimento, Inclusão Social.

Introdução
Reservas extrativistas: do terrestre à marinha
Ao longo das últimas três décadas as Reservas Extrativistas (RESEX), uma categoria de unidade de conservação de uso
sustentável, se espalharam por todo o Brasil. O objetivo das RESEX é salvaguardar os meios de subsistência e culturas das popu-
lações tradicionais e conservar os recursos naturais (DE MOURA et al., 2009, p. 618). Embora este modelo de área protegida
tenha se originado das lutas de grupos amazônicos para garantir o acesso aos territórios e o uso de recursos naturais essenciais
para o modo de vida e cultura dessas populações, especialmente dos seringueiros (GLASER & OLIVEIRA, 2004, p. 226; DE
MOURA et al., op. cit., p. 618), em tempos mais recentes, uma segunda geração de reservas extrativistas surgiu em ambientes
marinhos ao longo do litoral do Brasil. São as chamadas Reservas Extrativistas Marinhas ou Marinho-Costeiras, que hoje somam
aproximadamente 19 RESEX ao longo do litoral brasileiro, abrangendo cerca de 835 mil hectares (SANDERS; GREBOVAL;
HJORT, 2011, p.14). As RESEX marinhas representam um dos esforços mais significativos do governo federal para a proteção
dos recursos de uso comum dos pescadores artesanais, através da cogestão (DE MOURA et al., op. cit., p. 617), um processo
em que os governos e as comunidades partilham poder e responsabilidades (SILVA, 2004, p. 419).
Este artigo se centra na dinâmica do gênero na primeira reserva extrativista marinha criada no Brasil, a Reserva Extra-
tivista Marinha do Pirajubaé (RESEX Pirajubaé), uma unidade de conservação urbana localizada no bairro da Costeira do Pira-
jubaé, junto à baía sul da ilha de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. O escopo deste trabalho se limita a fazer uma
introdução à questão de gênero na RESEX, discutindo gênero, desenvolvimento e inclusão social das populações tradicionais,
sem a pretensão de aprofundar nas discussões sobre teoria de gênero neste momento, o que requereria de estudos e pesquisas
mais abrangentes.

Gênero e mulheres
Embora o foco deste artigo seja sobre mulheres e gênero, deve-se enfatizar que sexo e gênero não é a mesma coisa
(BENNETT, 2005, p. 452), uma vez que sexo se refere a diferenças biológicas entre homens e mulheres e gênero se refere aos
papéis socialmente construídos e que são atribuídos a cada sexo. Assim, a análise de gênero considera os papeis de homens

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


201
e mulheres em diferentes sociedades e pode contribuir para o entendimento de como esses papeis podem afetar quem tem
influência, poder e capacidade de tomar decisões sobre como os recursos são distribuídos e usados(MATTHEWS; JAMIE;
EASKEY, 2012, p. 8).
As relações de gênero podem, assim, influenciar fortemente algumas variáveis, tais como, a forma de como as decisões
são tomada a nível individual e familiar, na divisão do trabalho, diferentes papéis dentro da família ou o uso do tempo (DI CI-
OMMO & SCHIAVETTI, 2012, p.17). Enquanto gênero e mulheres não são sinônimos, iniciativas que tentam incorporar questões
de gênero muitas vezes visam capacitar às mulheres por meio de engajamento mais equitativo com a tomada de decisão e outros
processos; este objetivo decorre do reconhecimento de que a dinâmica de gênero muitas vezes cria desigualdades, especial-
mente em termos de estatuto, posição social, e poder das mulheres (MATTHEWS; JAMIE; EASKEY, op. cit., p. 8).

Gênero e desenvolvimento
Desde a década de 1980, a questão de gênero dentro do contexto de desenvolvimento tem recebido cada vez mais aten-
ção (BENNETT, 2005, p. 453). A inclusão da perspectiva de gênero é uma abordagem adotada por inúmeras entidades, tais como
o Banco Mundial, para garantir “que o gênero seja incorporado em todos os níveis do processo de desenvolvimento, em todos
os níveis da elaboração de políticas, planejamento orçamentário e de avaliação, de modo que ele seja integrado na forma como
o governo opera” (BENNETT, op. cit.).
Apesar de muitos elogiarem essa incorporação sistêmica das questões de gênero em programas formais, esta visão
não é isenta de críticas. Por exemplo, a tendência em se confundir gênero com mulheres traz como consequência que ho-
mens, igualmente em situação de vulnerabilidade social, são muitas vezes excluídos de programas de desenvolvimento com
foco em gênero (NYANCHAM-OKEMWA, 2000, p. 4). Algumas posições contrárias às políticas neoliberais argumentam que a
atenção do Banco Mundial à questão de gênero no desenvolvimento econômico é realmente uma maneira de incorporar mais
mulheres ao mercado e, portanto, coloca-as em risco de serem reduzidas à produtoras e comerciantes (BENNETT, op. cit., p.
453). Outros criticam as iniciativas de desenvolvimento focado no gênero por assumir que as mulheres são vítimas de estruturas
patriarcais, tratando-as como receptoras passivas do desenvolvimento focado no gênero, ao mesmo tempo em que assumem
que os membros das redes de mulheres são homogêneas e mutuamente preocupados com a abordagem de questões comuns
(NYANCHAM-OKEMWA, op. cit., p. 3). Finalmente, alguns destacam que o conceito de gênero é uma construção sociocultural
em grande parte baseada em tradições filosóficas ocidentais e europeias e que muitas vezes não se encaixa facilmente dentro
de outros contextos socioculturais, observando que seria uma falácia supor que a equidade de gênero e emancipação feminina
são verdades e objetivos universais (BENNETT, op. cit., p. 452).
Tais críticas podem ajudar profissionais e acadêmicos a serem mais cautelosos em relação a aceitação e propensão
enquanto ao aumento da sensibilidade nas inter-relações e interconexão entre os sexos masculinos e femininos (BENNETT, op.
cit., p. 453). No entanto, apesar dessas críticas, e devido às desigualdades observadas, é crescente a atenção dada a questão de
gênero e ao papel das mulheres na pesca.

Gênero e pesca
Embora o envolvimento das mulheres na captura, processamento, finanças e comercialização da pesca seja essencial, o
papel destas e as dinâmicas de gênero na gestão e políticas da pesca é frequentemente ignorado e pouco estudado (HARPER
et al., 2014, p. 56). Lacunas de informação podem ser agravadas pelo discurso acadêmico que repete narrativas dominantes (por
exemplo, pesca como masculino) e torna as perspectivas femininas silenciosas ou invisíveis (WOORTMANN, 1992, p. 2). Muitos
dos que trabalham em questões de gênero e de pesca ao longo da última década, quase por unanimidade, concordam que um
dos principais obstáculos para a melhoria da equidade de gênero é a falta de dados desagregados por gênero em atividades
relacionadas com a pesca (HARPER et al., op. cit., p. 57). Há também uma necessidade de compreender a relativa ausência de
mulheres nos processos de co-gestão costeira dos recursos marinhos e os fatores que encorajam (ou desencorajam) a partici-
pação das mulheres nesses processos, e potenciais conexões com as questões de gênero (DI CIOMMO & SCHIAVETTI, op.
cit., p. 16).
Como destacam Di Ciommo e Schiavetti (2012), quando a gestão dos recursos naturais nas comunidades pesqueiras
é baseada predominantemente na população masculina, é difícil entender a amplitude das ameaças de recursos, conflitos e

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oportunidades disponíveis. A promoção da participação das mulheres nos processos de gestão pode ter implicações impor-
tantes para a redução da pobreza e melhoria da qualidade de vida das mulheres e suas famílias (HARPER et al., op. cit., p. 56; DI
CIOMMO & SCHIAVETTI, op. cit., p. 17). As mulheres têm muito a contribuir, inclusive em termos de conhecimentos, inovação,
perspectiva, experiência e habilidades. Além disso, incluir a sensibilidade de gênero nos processos de gestão é especialmente
importante considerando que, enquanto mulheres e homens muitas vezes têm desafios e necessidades semelhantes, algumas
questões são específicas para os homens e outras para as mulheres (DI CIOMMO & SCHIAVETTI, op. cit., p. 22).
A identidade como pescador, da mesma maneira como acontece na agricultura, historicamente é atribuída aos homens
pelas relações externas que estabelecem, em especial, financeiramente com o mercado. Já as relações internas na família e na
comunidade são fortalecidas e mantidas pelas mulheres. É a mãe e esposa que cuida da saúde, alimentação e religiosidade da
família (SANTIN, 2004, p. 235). O trabalho da mulher, mesmo sem contar a dupla jornada feminina, é tratado como “leve”, com remu-
neração inferior ao homem, no entanto, e considerando que ambos os trabalhos requeiram o mesmo número de horas, “o esforço
físico exigido por um tem como contraponto a habilidade, a paciência e a rapidez requeridas pelo outro” (PAULILO, 1987, p. 67).

Metodologia
Este trabalho foi elaborado a partir da experiência conjunta das autoras. A partir de estágio realizado por uma das autoras
junto à RESEX Pirajubaé/SC, nos meses de junho e julho de 2015, complementado com experiência em acompanhamento de
pesquisas de campo na RESEX Marinha de Cururupu/MA, no ano de 2014, e ampliado com a experiência profissional da outra
autora que trabalha como analista ambiental no ICMBio, sendo os últimos cinco anos junto a Reserva Extrativista Marinha do
Pirajubaé. Também foram realizadas análises de publicações e pesquisas sobre a RESEX Pirajubaé, artigos científicos sobre
gênero e pesca e dados secundários, como participação em reuniões e atividades em grupo com os(as) extrativistas, conversas
informais com extrativistas e suas famílias (homens e mulheres) e observação participante.

Resultados e Discussão
A Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé foi a primeira reserva extrativista marinha criada no Brasil, em junho de 1992,
mediante o Decreto Federal nº. 533 de 20 de maio de 1992. A RESEX Pirajubaé tem por finalidade assegurar o uso sustentável e
a conservação dos seus recursos naturais, protegendo os meios de vida e cultura das populações tradicionais que utilizam esses
recursos. Possui uma área real de 1.712 ha, composta por 759 ha de mangue e 953 ha de área marítima, onde pescadores arte-
sanais e coletores do molusco bivalve conhecido como berbigão (Anomalocardia brasiliana) extraem os recursos que permitem
a manutenção do modo de vida e reprodução social dessas populações.
O mangue e os bancos de areia da RESEX oferecem condições para a reprodução, alimentação e crescimento de diver-
sas espécies de peixes, moluscos e crustáceos que são capturados no interior e fora da unidade de conservação. Por dispor do
maior e o menos alterado manguezal na baía sul da ilha de Florianópolis, este ecossistema também contribui indiretamente na
manutenção dos estoques pesqueiros da região.

Considerações e desafios de gênero na RESEX Pirajubaé


Atualmente ainda é limitada a compreensão sobre a dinâmica de gênero e o papel das mulheres na pesca artesanal den-
tro da RESEX. No entanto, há interesse de parte de servidores do ICMBio, bem como de alguns pesquisadores, em ampliar a
participação e inclusão das mulheres nos processos de cogestão e tomada de decisão na RESEX, incorporando considerações
de gênero nos processos institucionais e de pesquisa. Este artigo é um reflexo desse interesse. Apesar de numerosos desafios,
existem oportunidades para essa inclusão.
Na RESEX Pirajubaé observam-se duas formas de trabalho em que as mulheres atuam nas atividades pesqueiras. Nas
atividades no mar, as mulheres operam somente na extração do berbigão nos bancos de areia, e em um número reduzido, em
função de ser uma atividade que requer grande resistência e esforço físico. A maior parte das trabalhadoras realiza trabalho em
terra, na atividade de cozimento e desconche do berbigão e junto aos ranchos, no recebimento e limpeza do pescado e ativi-
dades complementares da pesca.
Para identificar lacunas de informação e conhecimentos existentes sobre gênero e o papel das mulheres na RESEX Pi-
rajubaé, foram revisados quatro publicações de pesquisa sobre a reserva. Cada documento foi analisado por seu compromisso

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


203
com as questões de gênero e o papel das mulheres no contexto da RESEX. Em todos os estudos a discussão relativa a esta
temática é muito limitada. A maioria das referências às mulheres nas publicações é em relação ao seu papel como descasca-
deiras ou desconchadeiras. Esta atividade compõe a cadeia produtiva do berbigão, desempenhando um papel importante na
atividade de processamento para venda do produto a nível local. A maioria dos entrevistados especificamente referenciados nas
publicações é do sexo masculino. Apresentamos a seguir uma breve revisão de cada publicação.
Seguindo uma ordem cronológica, o primeiro documento revisado foi publicado em 2009, como parte da primeira fase da
elaboração do Plano de Manejo Participativa da RESEX. Essa publicação é de especial importância, uma vez que é uma revisão
e síntese de 176 trabalhos científicos ou técnicos junto à RESEX (ICMBIO, 2009, p. 25), em sua maioria, trabalhos relacionados
à gestão ou às ciências biológicas. A autora enfatiza que há uma lacuna de informações referentes aos aspectos sociais, culturais
e econômicas de extração. Ela também acrescenta que há uma necessidade de compreender as relações de gênero em ativi-
dades de extração e de atuação em toda a cadeia produtiva, desde a extração inicial até o consumo final (ICMBIO, op. cit., p. 58).
Enquanto há uma discussão limitada de gênero no relatório, a autora menciona o envolvimento das mulheres nas atividades de
desconche e descreve as condições de trabalho como precárias e insalubres (ICMBIO, op. cit., p.14). Por exemplo, ela observa
que as mulheres utilizam madeira para cozinhar o berbigão antes de descascar, resultando em “uma fumaça insuportável no lo-
cal” (ICMBIO, op. cit.).
O segundo documento é uma monografia para obtenção do grau de bacharel em geografia, publicada em 2013 e intitu-
lada: A Gestão dos Recursos de Uso Comum na Área da Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé (TEBET, 2013). Neste estudo
foram realizadas entrevistas com quatro pessoas (TEBET, op. cit., p.14), que se presume sejam do sexo masculino. Semelhante
a outras publicações, há uma discussão limitada de gênero e mulheres. No entanto, o autor menciona que na área da reserva,
durante a década de 1950, a pesca foi realizada predominantemente por homens (TEBET, op. cit., p. 29), no entanto, fornece uma
breve descrição das “descascadeiras” de berbigão:

“em sua maioria mulheres dos extrativistas, as quais, embora não trabalhem no mar, estão intima-
mente relacionadas com a cadeira produtiva do berbigão, pois todo produto antes de ser comer-
cializado tem que passar pelas mãos delas” (TEBET, 2013, p. 41).

Ao fornecer uma visão histórica da área da reserva, o autor menciona as famílias locais em diversas ocasiões, no entanto,
há uma discussão limitada sobre as funções específicas de mulheres e homens no contexto familiar.
O terceiro documento revisado foi um estudo antropológico encomendado pela RESEX Pirajubaé como requisito prévio
para o cumprimento de condicionante ambiental de educação ambiental integrante do “Processo de Autorização de Licencia-
mento Ambiental da Rodovia Diomício de Freitas e Acesso ao Novo Terminal de Passageiros do Aeroporto de Florianópolis”
(PROSUL, 2014, p.5). O documento foi elaborado pela empresa PROSUL e publicado em 2014. Os autores relatam que mais
de 100 pessoas foram entrevistadas para o estudo com base no cadastro dos extrativistas (em sua maioria do sexo masculino)
cedido pelo ICMBio (PROSUL, op. cit., p. 5 e 12).
Apesar de o estudo ter como objetivo “identificar e descrever as habilidades, saberes, agentes, gênero e gerações en-
volvidos na atividade extrativista local” (PROSUL, op. cit., p.5), a menção de gênero no documento é muito limitada Os autores
discutem brevemente o desconche de berbigão, que é comumente realizado pelas mulheres (PROSUL, op. cit., p. 33). Eles
também fornecem informações sobre a cadeia produtiva do berbigão e alguns desafios econômicos e laborais que famílias extra-
tivistas enfrentam (PROSUL, op. cit., p. 35-36). Dentro deste contexto, um extrativista é citado desabafando sobre as dificuldades
que ele e sua esposa enfrentam:

“Aqui a gente trabalha como um escravo para o atravessador... ela descascava quinze, vinte, trinta
quilos de berbigão em um dia [referindo-se a esposa]. Começava as seis horas da manhã e ia até
as dez horas da noite. E o que foi que eu ganhei na vida? Problema na coluna” (PROSUL, op. cit.,
p. 35-36).

No documento também se faz uma referência explícita ao gênero em relação às tensões entre moradores “tradicionais”
e moradores que vivem há menos tempo na região e que usam a área de Reserva. Os autores atribuem os conflitos entre esses
grupos às diferenças em “características de valorização da unidade familiar, de gênero, e no exercício das atividades domésticas

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204
e culturais” (PROSUL, op. cit., p. 41), no entanto, não existe uma análise mais profunda do tema.
Note-se que esse estudo não atingiu completamente seus objetivos declarados da investigação e no Termo de Referên-
cia proposto, não tendo sido, por este motivo, aceito como um estudo que atenda a demanda requerida pelo ICMBio/RESEX,
e a condicionante foi considerada não cumprida. Neste contexto, é relevante questionar a efetividade de se realizar um estudo
antropológico por uma empresa contratada que está diretamente ligada aos impactos socioambientais potencialmente negativos
sobre as populações locais estudadas.
A quarta publicação é um livro denominado “A Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé: sujeitos, memórias e saberes
etnobiológicos”, organizado pela professora Liz Ribas (RIBAS, 2014) como produto de pesquisa etnobiológica, escrito em co-
autoria e com a participação efetiva de dez extrativistas (7 homens e 3 mulheres) da RESEX. Esta publicação foi bem recebida
pelos autores participantes devido à inclusão dos atores locais e a valorização de seus conhecimentos e perspectivas. Assim, ele
pode servir como um modelo metodológico para futuras publicações de pesquisa colaborativa que incorporam explicitamente
considerações de gênero e mulheres.
De todas as publicações esta é a que tem mais informações sobre as descascadeiras. Quando o desconche de ber-
bigão não é feito pela pessoa que o extrai (normalmente do sexo masculino), este é feito muitas vezes por outros membros da
família, especialmente mulheres (esposas, mães, tias) (RIBAS, 2014, p. 28). Ribas observa que, apesar do fato de os meios de
subsistência de muitas mulheres dependerem diretamente desse recurso, as descascadeiras normalmente não são cadastradas
e formalmente reconhecidas como extrativistas na reserva. O informante Nº 5 comenta sobre esta situação, bem como sobre o
contexto laboral de desconchamento:

“Assim, é uma polêmica bem grande, dentro da associação, reconhecer as descascadeiras como
extrativistas – eu acho que tem que reconhecer. Elas vivem (indiretamente) do extrativismo! [...] eu
sempre digo: “eu prefiro tirar (extrair) do que ficar aqui descascando”. Porque aqui [na atividade
de “desconchamento”] é mais psicológico a coisa, porque é muito repetitivo, e muito quietinho, né
[...]. Trabalham de segunda a sexta-feira e de sábado até meio dia. Então, é muito sofrido! O braço
não vai ficar apoiado – tem que ficar suspenso porque tem que trabalhar com a mão aqui: isso aí
cansa! Daí dói as costas, porque fica aqui (Informante Nº 5)” (RIBAS, 2014, p. 28-29).

Ribas (2014, p. 29) também observa que, embora a pesquisa sobre descascadeiras não foi feita para esta publicação,
são necessários mais estudos sobre as pessoas que participam desta atividade. Como os mercados locais têm preferência pelo
berbigão sem casca, as pessoas envolvidas no “desconchamento” desempenham um papel muito importante na cadeia produ-
tiva. No entanto, a valorização do trabalho e a compensação financeira que as mulheres recebem para a realização desta tarefa
tediosa é notavelmente baixa. Por exemplo, um informante relatou que, em média, uma descascadeira ganha 150-200 reais por
semana, trabalhando o dia todo (RIBAS, op. cit., p. 73-74). Também, de acordo a mesma autora, é relevante considerar que, para
obter cerca de 1,2 kg de carne (berbigão sem casca) requer descascar aproximadamente 20 kg de berbigão.
Por sua vez, a publicação de Ribas (op. cit.), além de observar o papel das mulheres na produção de berbigão, também
menciona brevemente o envolvimento histórico das mulheres na extração deste molusco. Um informante descreve como, no pas-
sado, as mulheres iam para uma determinada praia para recolher manualmente o berbigão, cujas conchas eram então vendidas
a uma fábrica local de cal.
Acredita-se que em estudos futuros, uma reexploração da história das diversas perspectivas, incluindo as das mulheres,
poderia ajudar enriquecer a compreensão sobre o contexto atual da reserva.

Necessidade de maior reconhecimento e valorização das mulheres,


suas contribuições econômicas e socioculturais.
A maior parte da produção de berbigão vendida em Florianópolis e região é de produto descascado. No entanto, é im-
portante notar que o valor da produção entregue aos compradores locais não leva em consideração o valor do trabalho e da mão
de obra feminina no desconche. Em média, o produto in natura, ou seja, o berbigão na concha é vendido ao preço de R$ 1,00
até R$ 2,00/kg. Considerando-se que para se produzir um quilo de carne de berbigão desconchado são necessários aproxima-
damente 18 kg de produto in natura, a priori, um quilo de carne de berbigão custaria minimamente entre R$ 18,00 a R$ 36,00/kg.

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No entanto, segundo relato dos próprios extrativistas, essa carne é entregue ao comprador local a um preço que varia entre
R$ 10,00 a R$ 12,00/kg e chegando ao consumidor final a um valor de R$ 18,00 a R$ 22,00/kg. Questionados sobre as evidentes
perdas nessa transação, os mesmos aludem à tradição cultural e a demanda do consumidor em Florianópolis, pois se subirem
os preços a valores reais, têm receios de não venderem toda a produção, em função de uma potencial retração do mercado.
Também manifestam temor de que poderiam perder seus compradores, uma vez que os extrativistas competem entre si pelo
acesso ao mercado, de maneira que outros poderiam continuar oferecendo o produto a preços mais baixos a seu comprador.
A partir de uma lente estritamente econômica e deixando de lado considerações socioculturais, este arranjo dos preços parece
inadequadamente baixo e insuficiente para compensar justamente o trabalho das mulheres. Este é apenas mais um elemento
que comprova a invisibilidade do esforço e das habilidades que o trabalho feminino representa nessa cadeia produtiva, em que
seu ganho é diluído e sacrificado junto a um conjunto de outros fatores.
A desvalorização econômica da contribuição das mulheres na cadeia produtiva dos produtos do mar, não é exclusiva da
RESEX Pirajubaé. Um estudo realizado na RESEX Marinha de Corumbau (Bahia) mostrou que, enquanto as mulheres agregam
valor aos produtos da pesca através de atividades de processamento (limpeza e salga) muitas vezes não são compensadas
financeiramente por seu trabalho porque as atividades são feitas em casa e são vistos como ajudando o marido (DI CIOMMO &
SCHIAVETTI, op. cit., p. 18).
Além de trabalhar no desconche do berbigão e no processamento do pescado, as mulheres também preparam e coz-
inham o alimento para a família, limpam a casa e desenvolvem todo tipo de atividade doméstica, cuidado dos filhos e de outros
membros da família, desenvolvendo cotidianamente uma dupla jornada laboral, além de, executarem outras atividades de sub-
sistência que contribuem para a renda familiar, especialmente em trabalhos de faxina doméstica para terceiros.

As mulheres desconchadeiras de berbigão não são consideradas como extrativistas


Atualmente estão cadastrados na RESEX um total de 139 extrativistas, dos quais somente 13 são mulheres e, entre estas,
apenas quatro se auto identificam como pescadoras artesanais, se dedicando a coleta de berbigão. As demais mulheres cadas-
tradas se identificam como desconchadeiras (ou descascadeiras) de berbigão e faxineiras.
No caso específico do berbigão, chama à atenção a ausência da auto identificação como extrativista para o restante das
mulheres cadastradas como desconchadeiras, assim como a ausência de cadastro de um número significativo de mulheres, que
se estima poderia chegar a mais de duas dezenas, que se dedicam a esta atividade junto com seus maridos e familiares, ou ain-
da, vendendo sua mão de obra a outro coletor para o desconche do berbigão, sem vínculos empregatícios e consequentemente,
sem direitos trabalhistas.
Igualmente não estão contabilizadas as demais mulheres, em geral esposas, filhas e parentes dos pescadores artesanais,
que em muitos casos auxiliam nas atividades junto aos ranchos no recebimento e limpeza do pescado e atividades complemen-
tares da pesca.
Esses dados por si só nos revelam a invisibilidade do trabalho feminino na pesca artesanal, esclarecendo que o termo
aqui inclui todas as demais atividades extrativistas no território da RESEX Pirajubaé. Esta invisibilidade é frequentemente refor-
çada institucionalmente em várias escalas, incluindo a familiar, local e federal. Por exemplo, dentro do contexto familiar na RESEX
Pirajubaé várias mulheres se auto identificam como “mulher de extrativista”, uma vez que seu trabalho é considerado apenas
como “ajuda”. De acordo com Paulilo (1987, p. 67), esta concepção está vinculada ao papel social do homem que tradicional-
mente é de prover o sustento da casa, já que nesta visão a mulher “não precisa trabalhar o ano todo”, emprega-se apenas para
“ajudar em casa”, ganha só “um dinherinho a mais”. Este fato pode contribuir para que as mesmas não se vejam como sujeitas
de direito para se cadastrarem como pescadoras artesanais junto ao Ministério da Pesca e à RESEX.
Essa ênfase nas contribuições das mulheres dentro da pesca como “mulher de extrativista” ou apenas como ajuda tam-
bém aparece em um estudo realizado pela antropóloga Rose Mary Gerber (2013) com pescadoras no litoral de Santa Catarina.
“A atividade não é vista como profissão, mas como obrigação de esposa de pescador”. A invisibilidade profissional das mulheres
também se manifesta na escala institucional local. Por exemplo, as mulheres extrativistas enfrentam obstáculos para ter seu ofício
reconhecido, até mesmo pela Associação Caminho do Berbigão, que apesar de reconhecer verbalmente a importância do tra-
balho das desconchadeiras, ainda não pode fazer as alterações necessárias no estatuto da organização para incluir as mulheres
que trabalham nessa atividade como extrativistas.

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Na escala federal, essa invisibilidade se manifesta na política de reconhecimento formal, o que tem implicações legais
importantes em termos de benefícios, proteção social, e acesso a recursos. De acordo a Gerber (op. cit.), “o Ministério da Pesca
e o INSS mal reconhecem a existência de mulheres pescadoras, essas profissionais são privadas de outros benefícios, como o
auxílio-maternidade e o seguro defeso”. A antropóloga também observa que para se aposentar, são consideradas ‘esposas de
pescadores’. Caso o marido não trabalhe com pesca elas têm dificuldade de acesso ao direito à aposentadoria.

Agregação de valor a produção extrativista


Uma alternativa para valorização da cadeia produtiva da atividade extrativista é a agregação de valor aos produtos obtidos
do mar. No entanto, por se tratar de produtos de origem animal, as exigências burocráticas e técnico-sanitárias estão muito distan-
tes da realidade, habilidades e capacidades financeiras das extrativistas. Arranjos organizacionais vêm sendo feito neste sentido,
porém, a ausência de capital social dificulta a coletivização da produção, num curto prazo. Há necessidade de investimentos
produtivos e de capacitação de longo prazo, com vistas a aprimorar as experiências gastronômicas locais. Um fator que motiva
e gera interesse nos extrativistas é a classificação do berbigão junto à “arca do sabor” do movimento internacional Slow Food,
que busca valorizar produtos gastronômicos que possuem valor cultural e tradicionalidade e que estejam em risco de serem
esquecidos pelas novas gerações.

Espaços de tomada de decisões


Semelhante à RESEX da Ponta do Corumbau (Bahia), na RESEX Pirajubaé “as Associações de Pescadores ou reuniões
com os representantes da administração da RESEX são espaços políticos frequentados majoritariamente pelos homens” (DI
CIOMMO, 2007, p.159 -160). A RESEX Pirajubaé possui um Conselho Deliberativo composto com 31 membros, dos quais 17 são
representantes da população tradicional, no entanto, apenas três mulheres ocupam estas representações, e suas participações
nas reuniões e grupos de trabalhos são ainda incipientes. Assim, há necessidade de aumentar a participação e a representação
feminina nos processos de tomada de decisão.

Considerações Finais: Desafios e oportunidades na gestão da RESEX Pirajubaé


Diante do amplo desafio de promover a inclusão social desse grupo social, e em especial das mulheres extrativistas,
vislumbram-se algumas oportunidades e ações que vêm sendo desenvolvidas pela equipe gestora da unidade de conservação.

Inclusão das mulheres nas categorias extrativistas


A partir de 2009, a RESEX iniciou um amplo trabalho, fundamentado nos princípios da educação ambiental crítica, de for-
mação em gestão ambiental participativa com a comunidade e que culminou, entre outros avanços, com a criação do Conselho
Deliberativo da UC, a reorganização dos extrativistas em uma associação, a Associação Caminho do Berbigão – ACB, hoje deten-
tora do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso – CCDRU e a definição das categorias e critérios para serem reconhecidos
como extrativistas e receberem a carteira de usuários e beneficiários da RESEX.
Por ser uma construção social, é um processo dinâmico construído com diferenças de poder e interesses, necessidades,
histórias e aspirações heterogêneas. Dentro dessa complexidade desafiadora, as dinâmicas de gênero e de mulheres podem
ser involuntariamente negligenciadas. Portanto, um dos aspectos em revisão é a inclusão das mulheres como extrativistas nas
categorias existentes. Este processo já está em andamento no processo participativo para a definição do novo perfil da família
beneficiária, revisando os critérios e categorias extrativistas existentes.

Valorização dos integrantes da cadeia produtiva do berbigão


Em Florianópolis e região o consumo de berbigão é uma tradicionalidade. Existe uma série de comidas tradicionais ela-
borados em base no berbigão, como é caso do pastel de berbigão, do ensopado de chuchu com berbigão e do lambre-lambe1.
Apesar de muito apreciados pela população, poucos conhecem os esforços e as ameaças dos integrantes da cadeia produtiva
desse molusco. Gestões vêm sendo feitas para, após a recuperação dos bancos de produção de berbigão, investir na capacita-
ção técnica e operacional para que as mulheres extrativistas possam desenvolver atividades ligadas à produção de alimentos,
1
Lambe-lambe é um prato a base de arroz e berbigão na sua concha, semelhante a um risoto.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


207
gerando maior valorização e valor agregado à produção, de maneira a dar maior visibilidade a seu trabalho e aos elementos que
formam essa cadeia produtiva.

Diagnóstico Participativo com Enfoque de Gênero


Como mencionado no início deste trabalho, as reflexões de gênero aqui expostas são pouco aprofundadas devido as
grandes lacunas de informações existentes sobre o tema. A realização de um Diagnóstico Participativo com Enfoque de Gênero,
similar ao realizado na Reserva Extrativista Marinha da Ponta do Corumbau (Bahia) “com o objetivo do contribuir para a inclusão
dos diversos interesses das comunidades, em especial o ponto de vista feminino, no manejo da área protegida” (DI CIOMMO
2007, p.15) é uma das ações a ser desenvolvida na próxima fase do Plano de Manejo Participativo da RESEX Pirajubaé. Será uma
oportunidade para ouvir e incluir mais fortemente as mulheres e as questões de gênero no Plano de Manejo da RESEX, dando
maior visibilidade a esta categoria de extrativistas, com maior destaque às histórias, conhecimentos, importância, necessidades
e perspectivas dessas mulheres. Apesar da história complexa e do contexto da RESEX, uma lente de gênero representa uma
oportunidade de construção colaborativa de novas visões e significados de gestão dos recursos naturais.

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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


209
FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE CONDUTORES AMBIENTAIS LOCAIS:
ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO DO TURISMO SUSTENTÁVEL
EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO GAÚCHAS

Silva, Celson Roberto Canto1; Cunha, Aline Moraes2; Bazotti, Leandro dos Santos3 & Nascimento, Cristina Alves4

1. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, celson.silva@poa.ifrs.edu.br.


2. PLANTUR Consultoria em Turismo; Centro Universitário Metodista – IPA, alinetur@yahoo.com.br
3. Atlas Alpinismo; Associação Porto Alegrense de Escalada Canionismo e Alta Montanha (APECAM); Consultor da MINAS Outdoor
Sports, atlasalpinismo@terra.com.br. 4. Mestranda em Sustentabilidade na Gestão Ambiental,
Universidade de São Carlos, cristina.anascimento@hotmail.com

Resumo
O presente artigo faz a reflexão sobre uma experiência de formação e organização de condutores ambientais locais, realizada
a partir de 2012, pelo IFRS, Campus Porto Alegre, através do PRONATEC. Para a correta compreensão da construção teórica
e prática realizada, o artigo inicia pelo resgate conceitual e histórico do Turismo Sustentável e do Ecoturismo em Unidades de
Conservação, passando ao necessário esclarecimento sobre o papel dos condutores ambientais locais e o reconhecimento
da atividade. Em seguida, trata das metodologias empregadas nos cursos e os resultados alcançados. Com esta configuração
busca compartilhar uma experiência exitosa, colaborando na construção de novas alternativas de estruturação do Turismo Sus-
tentável, que promovam a educação ambiental, a conservação da natureza e a geração de renda, agregando as comunidades do
entorno às Unidades de Conservação.

Palavras-chave: Turismo Sustentável, Unidades de Conservação, Condutores Ambientais Locais.

Turismo Sustentável
Na busca por um turismo que valorize a diversidade e proporcione experiências individualizadas, através da diferen-
ciação de atrativos, produtos e serviços, valorizando e preservando os patrimônios naturais e culturais dos destinos, o turismo
é reconhecido como um conjunto de relações humanas que, amparado por um sistema, ultrapassa as fronteiras econômicas,
financeiras e industriais, situando-se numa dimensão que sintetiza o conhecimento científico e as aspirações dos indivíduos
(MOLINA, 2005).
O turismo figura o campo das ciências sociais através da sociologia e da antropologia. A primeira constrói um olhar ex-
terno, adquirindo seu papel na organização e no processo social como um todo. A segunda tenta avaliar a sua dinâmica interna,
considerando suas dimensões culturais e interculturais (STEIL, 2002).
Segundo Steil (2002), a formação de uma área de estudos sobre o turismo nas ciências sociais é antecedida por Veblen,
no livro The theory of the leisure class, lançado em 1889, e considerado o primeiro trabalho sociológico sobre o turismo. A
publicação refere-se à evolução do lazer no processo de constituição das classes sociais, estabelecendo uma associação entre
turismo e lazer. O autor constata que o lazer, o qual caracterizou a elite aristocrática pré-capitalista, também passa a ser assumido
pela nova elite, que também passa, em um mundo fundado sobre o valor absoluto do trabalho a ostentar como meio de distinção,
a sua inatividade em forma de lazer.
Na França, em 1950, ainda de acordo com Steil (2002), o sociólogo Friedmann destacou o lazer como uma experiência
de recomposição da personalidade do trabalhador, fragmentada pelo trabalho mecânico que se generalizou após a Segunda
Guerra Mundial, através do modelo fordista de produção industrial. Esta análise, em contraposição à tese do lazer alienado e os-
tentatório, apresenta pela primeira vez o lazer compensatório, tendo as férias como “cano de escape para as tensões produzidas
pela atividade produtiva” (STEIL, 2002, p. 54).
Seguindo na interpretação do turismo no campo da sociologia, Steil (2002) aponta três correntes, de relevante importân-
cia: a primeira é o “simulacro do real”, a segunda “os estudos da religião através da teoria dos rituais” e a terceira o “turismo e
consumo”. Tomamos aqui apenas a terceira corrente, apoiada por Campbell (1987) e Urry (1996) que, com a classificação das

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


211
atividades de lazer e turismo como objeto de status social, também passam a considerar o turismo como “objeto de consumo”
da sociedade moderna.
Conforme Campbell (1987, apud STEIL, 2002, p.65), inseridos no espírito do capitalismo, “os indivíduos não procuram a
satisfação nos produtos, mas através deles. A satisfação nasce da expectativa, da procura do prazer, que se situa na imaginação”.
Assim os turistas não consomem os lugares, mas através destes buscam a “realização de um desejo que povoa a sua imagina-
ção”.
Urry (1996) considera que é difícil entender a natureza do turismo contemporâneo sem avaliar como suas atividades são
construídas em nossa imaginação pela mídia. Desta forma, o autor considera o “velho turismo” e o “novo turismo”. O primeiro es-
taria ligado ao “consumo de massa fordista” que “reflete, sobretudo o interesse dos produtores” e o segundo estaria relacionado
ao “consumo diferenciado pós-fordista”, que “caracteriza-se pela prevalência dos consumidores”. Sendo assim, o velho turismo
trabalhava com base em “empacotamentos e padronizações”, enquanto o novo turismo passa a trabalhar de forma mais flexível,
buscando melhor atender a demanda do mercado consumidor.
Frente a isso, Molina (2004) avalia que com a pós-modernidade, as descontinuidades do entorno, a mudança, a transfor-
mação e o estilo dinâmico passaram a ser estruturas da cultura e da sociedade de forma geral, impactando particularmente o
turismo. Bem como a instalação de sistemas mais personalizados tanto de produção como de consumo, reconhecendo a mobi-
lidade e a mudança na busca pelo único. No turismo, tratando de destinos e de suas ofertas, o autor adverte quanto à “busca de
identidade - de uma ou várias identidades simultâneas – através das expectativas de demanda” e que esta “é altamente mutante,
dinâmica e volátil” (MOLINA, 2004, p.27).
Molina (2004) aponta o surgimento de um novo turista a partir dos novos modelos de consumo e destaca uma mudança
na atitude do mesmo, de passiva, que aceita o que lhe vendem, para uma atitude ativa, onde passa a selecionar as atividades de
seu interesse. Este novo turista quer mais do que belas paisagens e descanso, quer experiências únicas, quer o contato com os
saberes e fazeres típicos de cada lugar.
Abordando a construção de um novo turismo, de base local, Cavaco (2011) trata também do novo turista e nos traz uma
boa descrição quanto à suas expectativas. Para a autora, “o turista de hoje procura o novo, no sentido do diferente, do único,
básicos na atratividade turística” (CAVACO, 2011, p.147).
Porém, tratando do consumo turístico, Reis (2008, p.127) destaca que “para viajar, é necessária uma renda excedente,
devido aos custos que o turismo acarreta”. Afirma, assim, que o turismo se efetiva a partir do momento em que o “turista em po-
tencial” se dispõe a realizar o consumo de todos os bens e serviços envolvidos na viagem. Deste modo, o autor define consumo
turístico como a “aquisição de bens e serviços que atendem às necessidades do turista” (REIS, 2008, p.129). Tais necessidades
podem surgir antes mesmo da viagem, assim “tudo o que for consumido antes, durante e depois da viagem, e que a ela estiver
relacionado, é considerado consumo turístico”; sendo bens e serviços diretamente relacionados ao turismo, transporte, hospeda-
gem e atividades recreativas (consumo primário), ou bens e serviços consumidos tanto pelos visitantes quanto por qualquer outra
pessoa, como protetores solares, pilhas e cartões telefônicos (consumo secundário) (DIAS, 2005)
Com estas reflexões, Reis (2008) destaca também a importância econômica deste consumo para as comunidades recep-
toras, afirmando que “as trocas em dinheiro determinam, em parte, a dinâmica entre demanda e oferta turística. Isso porque,
quanto mais turistas visitam uma cidade, maiores são as receitas das empresas turísticas” (REIS, 2008, p. 127). Assim, aponta que
uma estratégia empregada pelos gestores do turismo é tentar elevar o nível de gastos dos turistas que frequentam uma locali-
dade, entendendo que quanto mais se consome produtos locais, mais lucrativa será a atividade turística e mais chances de que
esta se torne economicamente viável e com menos impactos ambientais negativos. Essa ideia surge dos resultados observados
em destinos caracterizados pelo Turismo de Massa, em que os gastos diários dos turistas com produtos locais nas comunidades
são menores em comparação com outras modalidades de turismo (REIS, 2008).
Da mesma forma, o Ministério do Turismo - MTUR reconhece a geração e o aumento das compras locais, o aumento da
renda local e a melhoria dos padrões de conservação do ambiente natural como impactos econômicos positivos do turismo, visto
que este estimula a economia local e, com a consequente melhoria da qualidade de vida das comunidades receptoras, estas ten-
dem a colaborar com a preservação e conservação dos espaços naturais, cada vez mais procurados pelos turistas (MTUR, 2007).
Assim, buscando um novo turismo, que considere as demandas e motivações trazidas pelo consumidor, ou pelo novo tu-
rista que apresenta e reflete uma mudança de comportamento e hábitos de consumo dos atores envolvidos na atividade turística

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
212
como um todo, passa-se a planejar no Brasil estratégias para o desenvolvimento do setor de forma sustentável. Desta forma, o
MTUR destacou como elemento norteador de suas ações, que a relação entre o turismo e a sustentabilidade deveria seguir os
princípios da sustentabilidade ambiental, econômica, sociocultural e político-institucional (MTUR, 2010).
Com o intuito de desenvolver produtos turísticos sustentáveis em harmonia com o meio ambiente e a cultura local, fa-
zendo com que as comunidades deixem de ser apenas espectadoras do processo de estruturação do setor, foi adotado também
no Brasil o conceito de Turismo Sustentável, elaborado pela Organização Mundial do Turismo (OMT), que o define como:

[...] a atividade que satisfaz as necessidades dos turistas e as necessidades socioeconômicas


das regiões receptoras, enquanto a integridade cultural, a integridade dos ambientes naturais, e a
diversidade biológica são mantidas para o futuro (MTUR, 2010, p.30).

Com esta reflexão quanto ao turismo, suas interfaces conceituais e a delimitação de novos paradigmas na busca de um
“novo turismo” que o seja sustentável, passamos a considerar na próxima seção estratégias de aproximação entre visitantes e
visitados, que buscam proporcionar maior interação e valorização dos saberes e fazeres locais, ao mesmo tempo em que gerem
renda, melhoria de autoestima, oportunidades de equidade e autonomia.

Unidades de Conservação, Ecoturismo e as Atividades Ecoturísticas


De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC (BRASIL, 2000), as Unidades de Conservação
(UC) são:

[...] espaços territoriais e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com ca-
racterísticas naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Publico, com objetivos de con-
servação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias
adequadas de proteção (BRASIL, 2000).

Machado (2005) ressalva que as UC são áreas protegidas para manter espaços naturais de valor, evitando assim, a destru-
ição de seus ecossistemas. Essas unidades buscam, entre outras coisas, meios que tornem propícia a interação do homem com
o meio ambiente.
As UC que integram o SNUC estão divididas em dois grupos com características próprias, denominadas: Unidades de
Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável (COSTA, 2002). As Unidades de Proteção Integral têm o objetivo de preservar a
natureza de forma a assegurar a manutenção dos ecossistemas, sendo permitido apenas o uso indireto de seus recursos naturais,
exceto os casos previstos na lei. São elas: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, e Refúgio
de Vida Silvestre (BRASIL, 2000). Irving (2002) acrescenta que a visitação é permitida apenas nas três últimas tipologias, porém
precisa estar sujeita às normas do Plano de Manejo.
Já as Unidades de Conservação de Uso Sustentável têm o objetivo de conservação da natureza, compatibilizado com o
uso sustentável de uma parcela dos seus recursos naturais. São elas: Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse
Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, e Reserva Par-
ticular do Patrimônio Natural, categoria que permite visitação para recreação e lazer (BRASIL, 2000).
Segundo Bensusan (2006), a UC que serviu de exemplo para o Brasil e para o mundo foi o Parque Nacional de Yellow-
stone, criado em 1872, nos Estados Unidos, pois este foi o primeiro espaço legalmente protegido destinado à utilização pública
no mundo. No Brasil, segundo Machado (2005), o primeiro parque a ser criado, em 1937, no Rio de Janeiro, foi o Parque Nacional
de Itatiaia, com finalidades científicas e turísticas.
Em se tratando de segmento turístico em expansão no Brasil, que se apresenta como alternativa ampla e viável para a
promoção de processos de desenvolvimento em território nacional, Oliveira Junior (2010) destaca o entendimento quanto à es-
sência conflituosa do Ecoturismo. Assim, aponta que parte dos autores e especialistas em Ecoturismo estudados por ele refere-
se a uma mudança de percepção com relação à natureza, em que esta deixa de ser vista apenas como fornecedora de recursos
e passa a ser vista enquanto capital e reserva futura de valores, sendo influenciada também pelas novas tecnologias que através
de novas formas de utilização/exploração passam a considerar a natureza também como produto ou mercadoria. Partindo desta
reflexão, ressalta que “o ecoturismo é um fenômeno recente, cuja complexidade abrange questões socioeconômicas, políticas,

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


213
culturais e ambientais.” Desta forma é assunto destacado em cenário internacional e nacional por envolver interesses econômi-
cos, ao mesmo tempo que possui dependência absoluta da natureza, fator que o diferencia dos demais segmentos de turismo
(OLIVEIRA JUNIOR, 2010, p.95)
Considera-se então, que diante da diversidade de segmentos com interface ao meio natural, o Ecoturismo enquanto
produto turístico distingue-se dos demais por agregar valor a sua matéria-prima, à natureza no contexto ambiental, econômico e
sociocultural, além de ser uma alternativa ao turismo de massa (WEARING; NEIL, 2001).
Para Ruschmann (2006), o Ecoturismo é um dos segmentos turísticos que mais tem respeito e compromisso para com a
natureza, e a conexão entre desenvolvimento econômico e conservação das áreas naturais deve estar presente, além de acarretar
responsabilidade social dos viajantes para com o meio visitado. Dias (2003) ressalta que o ecoturismo não é somente uma viagem
para a natureza para desfrutar e estudar sua paisagem e seus atrativos de flora e fauna, mas também uma concepção social e
econômica. Objetivando melhorar as condições de vida das populações locais, ao mesmo tempo em que preserva os recursos
e o meio ambiente, compatibiliza o meio natural e o cultural na prática turística.
Costa (2002), ressalta que todo local ecoturístico deve: contribuir para a proteção das áreas naturais; promover o uso
sustentável dos recursos; procurar reduzir ao mínimo os impactos negativos sobre o entorno natural e sociocultural; conter el-
ementos educacionais e de interpretação; ser organizado para pequenos grupos, que tenham a motivação principal de apreciar
a natureza, bem como as culturas tradicionais que prevalecem nas áreas naturais; e envolver as populações locais no seu plane-
jamento. Conforme Machado (2005), a definição de Ecoturismo desenvolvida no Brasil pelo Grupo de Trabalho Interministerial,
em 1994, assinada pelo então Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, e pelo Instituto
Brasileiro de Turismo – EMBRATUR, apontou que:

É um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cul-
tural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através
da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações envolvidas (MACHADO,
2005. p. 27).

Conceito este que posteriormente foi adotado pelo Ministério do Turismo brasileiro, como conceito oficial de ecoturismo
no Brasil, a ser norteador das políticas públicas direcionadas ao segmento (MTUR, 2010).
Quanto aos destinos de Ecoturismo no estado do Rio Grande do Sul, Machado (2005) afirma que as iniciativas concretas
de projetos ecológicos para o Turismo tiveram início em 1991, com a criação da Comissão Estadual de Turismo Ecológico -
CETE, que era integrada pela Companhia Rio-grandense de Turismo - CRTUR, IBAMA/RS, Departamento de Recursos Naturais
Renováveis, Secretaria Estadual da Agricultura e a Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul -FZB.
Considerando a relevância das UC como importantes ferramentas de conservação e manutenção da integridade da bio-
diversidade e dos processos naturais, elas têm se firmado como espaço ideal para as práticas de Ecoturismo e suas diversifica-
das atividades, em conformidade com o MTUR (MTUR, 2010), que observa a possibilidade de desenvolvimento de uma grande
variedade de atividades no âmbito do Ecoturismo, ressalvando que:

[...] as atividades ecoturísticas devem seguir premissas conservacionistas e ser estruturadas e


ofertadas de acordo com normas e certificações de qualidade e de segurança de padrões reco-
nhecidos internacionalmente (MTUR, 2010, p. 26).

Ainda de acordo com este Ministério (MTUR, 2010), as atividades ecoturísticas mais frequentes e permitidas em UC são:
observação de fauna e flora; observação de formações geológicas, que consiste geralmente em caminhada por área com carac-
terísticas geológicas peculiares e que oferecem condições para discussão da origem dos ambientes, sua idade e outros fatores;
mergulho livre no mar, rios, lagos ou cavernas; caminhadas de um ou mais dias; safáris fotográficos para registrar paisagens
singulares ou animais; trilhas interpretativas, com percursos autoguiados ou com acompanhamento de profissionais qualificados.
Segundo Vallejo (2013), a visitação representaria uma atividade de grande potencial para incrementar os recursos
econômicos em UC. Tratando-se dos benefícios econômicos, por exemplo, Medeiros e Young (2011) concluíram que um incre-
mento da visitação nas UC federais e estaduais brasileiras poderia gerar o rendimento anual de cerca de R$ 2,2 bilhões.
Como o Ecoturismo e suas atividades utilizam os recursos naturais e culturais do local, é essencial que ele se desenvolva

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
214
com base nos princípios sustentáveis, estimulando o desenvolvimento em longo prazo, a preservação permanente da biodi-
versidade local e a justiça social com a população. Com este entendimento, passamos a tratar da somatória do ecoturismo ao
desenvolvimento sustentável.

Do Guia ao Condutor Ambiental Local


No sentido de desenvolver o turismo sustentável em todas as suas vertentes, colaborar na educação ambiental dos visi-
tantes e na busca da efetivação da quebra de paradigmas excludentes, adotou-se a estratégia de agregar os saberes e fazeres
dos moradores das áreas de entorno das Unidades de Conservação, gerando oportunidades de trabalho e renda e, assim, co-
laborando no afastamento dos autóctones da vulnerabilidade social em que geralmente se encontram.
Dentre as possibilidades de atuação para condução ligadas a ambientes naturais e institucionalmente formalizadas,
existem três profissionais: o guia de turismo especializado em atrativos naturais, o condutor de turismo de aventura e o condutor
ambiental local. Dentre estes, na atividade turística, a atuação do guia de turismo foi a primeira a ser reconhecida, através da Lei
nº. 8.623/1993, que em seu Art. 5º constitui como atribuições do Guia de Turismo:

a) acompanhar, orientar e transmitir informações a pessoas ou grupos em visitas, excursões urba-


nas, municipais, estaduais, interestaduais ou especializadas dentro do território nacional;
b) acompanhar ao exterior pessoas ou grupos organizados no Brasil;
c) promover e orientar despachos e liberação de passageiros e respectivas bagagens, em termi-
nais de embarque e desembarque aéreos, marítimos, fluviais, rodoviários e ferroviários;
d) ter acesso a todos os veículos de transporte, durante o embarque ou desembarque, para orien-
tar as pessoas ou grupos sob sua responsabilidade, observadas as normas específicas do respec-
tivo terminal;
e) ter acesso gratuito a museus, galerias de arte, exposições, feiras, bibliotecas e pontos de inte-
resse turístico, quando estiver conduzindo ou não pessoas ou grupos, observadas as normas de
cada estabelecimento, desde que devidamente credenciado como Guia de Turismo;
f) portar, privativamente, o crachá de Guia de Turismo emitido pela Embratur. (BRASIL, 1993).

Quanto ao Condutor de Turismo de Aventura, foram atribuídas responsabilidades através de normas técnicas criadas através
de parceria firmada entre o MTUR e a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) através do Programa Aventura Segura
(PAS), que deu direcionamento ao segmento no Brasil, sendo reconhecido internacionalmente por esta iniciativa (ABETA, 2009).
De acordo com o Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE, 2014) “é apropriado que se estabeleçam
requisitos focalizados nas competências mínimas consideradas essenciais e necessárias aos profissionais que atuam como con-
dutores de Turismo de Aventura”. Neste sentido, o MTUR também colaborou ao lançar o manual de boas práticas do condutor,
que aponta as competências e responsabilidades necessárias à atuação profissional destes.
Apesar da NBR 15285 “Competência de Pessoal”, que diz respeito às competências mínimas para o condutor de turismo
de aventura, não fazer parte do arcabouço legal brasileiro, assim como o condutor ambiental e o guia de turismo especializado
em atrativos naturais, ou ainda conforme a NBR 15331, referente ao sistema de gestão da segurança, que se tornou obrigatório
quando promulgado o Decreto de 2010 que regulamenta a Lei Geral do Turismo nº 11.771/2008, é oportuno os condutores ambi-
entais se apropriarem dos procedimentos descritos neste manual, pois ele aborda relevantes competências pertinentes a todo o
profissional que atua em meio a natureza. No caso de algum sinistro, por exemplo, não havendo lei especifica, o aparato jurídico
pode fazer valer as normas técnicas existentes em áreas correlatas, ou seja, é de sua responsabilidade estar informado sobre as
recomendações presentes nas NBRs.
A formalização do condutor ambiental propriamente dita ocorreu através da Instrução Normativa do ICMBio nº 08/2008,
que estabelece “normas e procedimentos para a prestação de serviços vinculados à visitação e ao turismo em Unidades de Con-
servação Federais por condutores de visitantes” (ICMBIO, 2008), de forma a dar acesso às comunidades de entorno para que
atuem nestas UC, desde que atendam as demandas de qualificação estipuladas na normativa.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


215
Recentemente, a Portaria 27/2014 do MTUR, ao estabelecer requisitos e critérios para o exercício da atividade de Guia de
Turismo, reconheceu o condutor de visitantes em UC como:

[...] o profissional que recebe capacitação específica para atuar em determinada unidade, ca-
dastrado no órgão gestor, e com a atribuição de conduzir visitantes em espaços naturais e/ou
áreas legalmente protegidas, apresentando conhecimentos ecológicos vivenciais, específicos da
localidade em que atua, estando permitido conduzir apenas nos limites desta área. (MTUR, 2014).

Partindo das reflexões teóricas abordadas, passamos ao relato da experiência realizada no Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul -IFRS, Campus Porto Alegre.

Formação e organização de Condutores Ambientais Locais pelo IFRS,


Campus Porto Alegre – Método e Prática
No intuito de contribuir para o fortalecimento da educação ambiental no âmbito do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação e promover a geração de emprego e renda através da formação de profissionais capacitados para atuarem na con-
dução de grupos de visitantes, consequentemente fomentando o turismo sustentável, o Instituto Federal de Educação Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Porto Alegre, através do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego (PRONATEC), ofertou a partir de 2012 os cursos de Monitor Ambiental e Condutor Ambiental Local.
No período de setembro de 2012 a junho de 2014 foram ofertadas três formações. As duas primeiras turmas, uma de
monitores e outra de condutores ambientais locais, não foram direcionadas à atuação em uma Unidade de Conservação especí-
fica, enquanto a terceira turma foi direcionada especificamente a formar condutores para atuarem no Parque Estadual de Itapuã,
localizada em Viamão, município da região metropolitana de Porto Alegre, RS.
Em conformidade com a Instrução Normativa do ICMBio nº 08/2008 (ICMBIO, 2008), os cursos de Monitor Ambiental e
Condutor Ambiental Local, oferecidos pelo IFRS, foram estruturados em 160 e 200 horas, respectivamente, divididos em cinco
módulos: Orientação Profissional e Cidadania; Meio Ambiente e Cultura (Técnicas de Observação e Identificação da Fauna e
Flora Regionais; Geografia do RS Aplicada ao Turismo; História Aplicada ao Turismo Regional); Turismo e Sustentabilidade; Tra-
balho do Condutor Ambiental Local e Segurança e Primeiros Socorros.
Os cursos foram ministrados por professores Especialistas, Mestres e Doutores, com aulas teórico-práticas, baseadas
na aplicação de metodologias e ferramentas participativas vivenciais em Unidades de Conservação. Desta forma, complemen-
tarmente às atividades em sala de aula, que faziam uso de ferramentas e equipamentos multimídia, bem como de dinâmicas e
atividades integrativas e cooperativas, também foram proporcionadas saídas de campo a UC do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina. Nestas visitas, inclusive, realizou-se uma atividade de integração com a Associação de Condutores UATAPI, formada a
partir de um curso de Condutores Ambientais ofertado pelo Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Santa Cata-
rina (IFSC), de forma a fomentar e colaborar na fundação de uma associação para os condutores de Porto Alegre.
Como forma de apoio e fomento à organização solidária de um espaço de trabalho para os condutores formados em Porto
Alegre, a Incubadora Tecno-Social do IFRS – Campus Porto Alegre passou a apoiar a formação de uma associação que congre-
gasse os egressos dos cursos. Isto foi concretizado em 2014, quando foi criada a Associação Porto Alegrense de Condutores
Ambientais (APACA), uma instituição da sociedade civil, sem fins lucrativos, criada através da idealização de alunos egressos
destes cursos.
Em 2013, antes de sua fundação, a Associação iniciou sua trajetória firmando parceria com a Incubadora Tecno-Social
no intuito de organizar os condutores nos princípios da Economia Solidária. Neste período de organização, os profissionais en-
gajados no empreendimento, junto com o governo do estado do Rio Grande do Sul, foram responsáveis pela proposição de uma
base legal que regulamentou a atividade de condução de visitantes nas Unidades de Conservação (UC) estaduais. Com isso, em
3 de janeiro de 2014, foi promulgada a Instrução Normativa SEMA nº 01/2014, que estabeleceu normas e procedimentos para a
prestação de serviços relacionados à visitação e ao turismo em UC de responsabilidade do estado por condutores ambientais
autônomos (RIO GRANDE DO SUL, 2014).
Após isto, a APACA trabalhou no reconhecimento da atividade frente as UC do município de Porto Alegre, realizando
encontros periódicos com representantes da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM) na perspectiva da criação de uma

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
216
legislação semelhante. A proposta foi elaborada, apresentada e encontra-se em processo de avaliação pelo órgão.
Entre 2013 e 2014, a Associação elaborou de maneira coletiva seu Estatuto Social, uma medida fundamental para sua
oficialização. Sendo assim, em 31 de março de 2014, ocorreu a Assembleia de Fundação da APACA, realizada no IFRS, Campus
Porto Alegre. A reunião contou com a participação de 15 pessoas, as quais se tornaram os associados fundadores da entidade.
Desde 2014, em parceria com a Incubadora Tecno-Social do IFRS – Campus Porto Alegre, a Associação participa de pro-
jeto de pesquisa e extensão desenvolvido junto ao Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares (PRONINC),
realizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Este projeto possibilitou o desenvolvi-
mento de duas capacitações continuadas para os associados da APACA, em Parques Naturais Municipais de Porto Alegre,
focando nos conhecimentos práticos relacionados à área, como o histórico das UC, à avifauna e flora local, além de capacitação
em dinâmicas de grupo em áreas naturais e elaboração de projetos de educação vinculados às mesmas.
Além dos cursos supracitados, pode-se destacar a participação da APACA em um Nivelamento sobre Economia Solidária,
proposto pela UFRGS/IFRS, em Porto Alegre. Quanto à participação da entidade em eventos, destaca-se sua participação no
“The Ecotourism and Sustainable Tourism Conference” (ESTC), realizado em Bonito (MS), no qual foi apresentado o traba-
lho “Formation of Environmental Drivers such as Local Development Strategies through Ecotourism UC”; e na 15ª Mostra de
Pesquisa, Ensino e Extensão do IFRS (Mostratec), promovida pelo IFRS, Campus Porto Alegre, onde foi apresentado o relato
“Ecoturismo e Economia Solidária: a trajetória da Associação Porto Alegrense de Condutores Ambientais (APACA)” (RUMPEL;
CANTO-SILVA, 2014).
A Associação ainda divulgou seu trabalho em eventos locais, expondo as atividades desenvolvidas no I Dia de Econo-
mia Solidária do IFRS – Campus Porto Alegre, elaborado pelo IFRS, Campus Porto Alegre; na Feira Internacional de Economia
Solidária, realizado em Santa Maria, RS; dentre outros encontros.

Reflexões e desdobramentos desta experiência


Como principais resultados alcançados desta experiência inovadora no Rio Grande do Sul, até o momento podemos
destacar: a formação de 60 Monitores/Condutores Ambientais para atuarem nas UC de Porto Alegre e Região Metropolitana; a
criação da APACA e a publicação da normativa que estabeleceu normas e procedimentos para a prestação de serviços nas UC
do Estado do Rio Grande do Sul por condutores ambientais autônomos.
A realização das duas primeiras turmas, que não tinham sua formação direcionada a atuação em nenhuma Unidade de
Conservação especifica, proporcionou a agregação de diferentes públicos, responsáveis pela organização e fundação da APACA.
Na turma aberta especificamente aos moradores da comunidade de Itapuã, objetivando a formação de condutores am-
bientais que atuem no Parque Estadual de Itapuã, a adesão comunitária tem apontado como benefícios iniciais a articulação e
ordenamento dos serviços turísticos na comunidade, como a revitalização de associações locais ligadas ao turismo e/ou ao de-
senvolvimento local; assim como o surgimento de novas lideranças que possam fortalecer o turismo sustentável na região. Cabe
destacar que, apesar dos esforços dispensados para a formação de condutores ambientais locais, somente agora, passado um
ano da realização do processo formativo, está sendo viabilizada, por parte dos órgãos gestores da UC, a atuação comercial dos
mesmos nos espaços do Parque. Isso evidencia que muito ainda deve ser feito junto aos órgãos gestores dos sistemas de UC no
sentido de sensibilizá-los para a importância da inclusão social nessas áreas.
Com estes resultados, que consideramos iniciais, visto as primeiras articulações nos âmbitos municipais e regionais rea-
lizadas e os espaços já conquistados, apontamos como exitosa esta experiência de integrar a formação de Monitores/Condutores
Ambientais com o fomento à Economia Solidária e o desenvolvimento do turismo sustentável em áreas protegidas.

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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


219
ALTERNATIVAS PARA QUALIFICAÇÃO DO TURISMO NO PARQUE NACIONAL DE
SÃO JOAQUIM (PNSJ) - SANTA CATARINA - BRASIL

Omena, Michel Tadeu Rodrigues Nolasco de1; Schimalski, Marcos Benedito2 & Castilho, Pedro Volkmer de3

1. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Parque Nacional de São Joaquim,


michel.omena@icmbio.gov.br 2. Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Agroveterinárias de
Lages, schimalski@uol.com.br; 3. Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC -
Centro de Ciências Agroveterinárias de Lages, volkmerdecastilho@gmail.com

Resumo
O Parque Nacional de São Joaquim, localizado no estado de Santa Catarina - Brasil, é uma área protegida natural bastante visi-
tada por conta de suas belezas naturais. A necessidade de uma estrutura física adequada e melhores mecanismos de interação
com os visitantes nos motivou a buscar soluções através de reuniões com diversos setores da sociedade. Das ideias sugeridas,
algumas foram submetidas a testes práticos: criação de página na internet para divulgação; instalação de outdoor na entrada
do parque; elaboração de um áudio-guia; e exposição interpretativa na sede. Tais ações aprimoraram a experiência turística e
sensibilizaram os visitantes acerca da importância ecológica do local. Sugerimos à administração do parque incluí-las na pauta
de elaboração de seu Plano de Manejo.

Palavras-chave: Morro da Igreja, Pedra Furada, Sustentabilidade, Unidade de Conservação.

Introdução
O desejo de estar em contato com a natureza e admirar as belezas naturais podem ser considerados algumas das mais
antigas preferências humanas, concretizada na realização de atividades recreativas tais como passeios ao ar livre, piqueniques e
até caçadas, em países onde esta prática é permitida (TAKAHASHI, 1998). Reforçando esta afirmação, Peccatiello (2007) declara
que há atualmente entre as pessoas uma tendência a buscar lugares que tenham características naturais significativas, ou ma-
neiras de melhorar sua qualidade de vida, ou simplesmente condições de renovar suas energias. Em anos recentes, em quase
todo o mundo a preservação de parques naturais tem estado em conflito com o aumento do número de visitantes, que chegam
com interesses diversos: realização de experiências científicas, exploração de terrenos inóspitos, ou turismo de aventura. A partir
disso, Benayas e Muñoz-Santos (2012) desenvolveram uma proposta de metodologia para a gestão de áreas protegidas voltadas
ao uso público. No Brasil, embora a demanda turística por áreas silvestres seja crescente, ainda esbarramos em questões de viés
ultra-conservacionista ligadas ao uso controlado dessas áreas.
O conceito de parque natural no Brasil sempre resultou de uma visão técnico-científica focalizada na importância da
manutenção da biodiversidade. Esta abordagem criou problemas para usuários potenciais desses parques, particularmente
turistas (MAGRO; PIMENTEL, 2007). De fato, não é fácil para gestores de áreas protegidas descobrirem fórmulas que garantam
o equilíbrio entre o princípio ecológico e a necessidade social. Nos Parques Nacionais americanos, como o de Yellowstone,
considerado o mais antigo deste país (HAINES, 1996), não se discute mais a possibilidade de utilização, mas o tempo e a quali-
dade da visitação. A classificação das áreas está relacionada mais com tempo de permanência do turista do que a quantidade
de visitantes. Na América do Sul, a história dos parques nacionais inicia-se na Argentina com a criação, em 1922, do Parque
Nacional del Sud, atualmente Parque Nacional Nahuel Huapi, a partir da doação de terras do Sr. Francisco Pascasio Moreno ao
governo argentino, com o intuito de preservar diversos ecossistemas, tais como o ecossistema dos Andes Patagônicos (PARQUE
NACIONAL NAHUEL HUAPI, 2014). No Brasil, o Parque Nacional de Itatiaia, entre os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e
São Paulo, foi criado em 14/06/1937 e é considerado o nosso primeiro parque nacional (ICMBIO, 2014).
A lei brasileira estabeleceu, em 2000, que os parques devem promover a recreação em contato com a natureza e o tu-
rismo ecológico (BRASIL, 2000). Em 2006, o IBAMA formulou algumas questões que serviram como diretrizes para sua atuação
como órgão gestor das áreas de conservação. Por exemplo (BRASIL, 2006):
• quais iniciativas estão em andamento?

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


221
• as expectativas dos visitantes quanto à qualidade e variedade das experiências, sua segurança e necessidade de co-
nhecimento estão sendo atendidas?
• o planejamento e a gestão da visitação estão de acordo com o manejo da área?
Em 2007 foi criado o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para responder pela gestão
das áreas protegidas brasileiras. Percebemos, no entanto, que falta realizar um planejamento mais abrangente e direcionado
para o uso público dos parques naturais, especialmente na esfera federal, que têm sido tratados, com raras exceções, como se
fossem Reservas Biológicas, uma categoria de área natural que é gerida segundo regras mais restritivas e até proibitivas no que
se refere à visitação pública (OMENA, 2014). Atualmente a visitação do Parque Nacional de São Joaquim (PNSJ) é disciplinada
pela Portaria n° 85, do ICMBio, publicada em 25/07/2012 (BRASIL, 2012), que estabelece as regras de visitação, válidas até a
elaboração e efetivação do Plano de Manejo da Unidade. Embora essa regulamentação tenha eliminado o caráter de ilegalidade
da visitação ao parque, há necessidade de se avançar na proposição de medidas que qualifiquem a visitação.
Quando se compara o número de veículos estipulado na Portaria n° 85 (200 veículos/dia) com a Capacidade de Carga
Efetiva do parque (146 veículos/dia), chega-se à conclusão que é necessário melhorar as condições de visitação. A Capacidade
de Carga Efetiva e outros dados de visitação estão discriminados no trabalho de Omena (2014) e serviram de base para a elabo-
ração do presente documento.
Como exemplo, o Rocky Mountain National Park, um dos cinco parques mais visitados dos Estados Unidos, começou a
encontrar problemas em seu sistema de transporte de visitantes e está buscando alternativas para evitar a formação de longas
filas e congestionamentos (HUNT et al., 2011). Situação semelhante a que ocorre no PNSJ em ocasiões de grande movimentação
turística. O presente estudo experimentou alternativas para ordenar, aumentar e qualificar a visitação ao parque, de modo que
os visitantes reconheçam mais facilmente que se encontram em uma típica área protegida. Tais alternativas procuraram atender
ao que foi legalmente estabelecido para a eliminação ou minimização dos impactos que já ocorrem na área do mirante natural
do Morro da Igreja.

Materiais e Métodos
Localização do mirante do Morro da Igreja e do Parque Nacional
Chega-se ao mirante do Morro da Igreja (Figuras 1 e 2) por um acesso de 17 Km a partir da Rodovia SC-370, em Urubici
(bairro Esquina) até o portal do parque, e daí por mais 10 km até o local de visitação, que se encontra dentro da área de jurisdição
do Destacamento de Controle do Espaço Aéreo do Morro da Igreja (DTCEA – MDI), uma guarnição do Comando da Aeronáutica
ligada ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo II (CINDACTA II). Do local é possível avistar a Pedra
Furada, a principal atração do parque (Figuras 1 e 2).

Figura 1. Localização do mirante do Morro da Igreja e do Parque Nacional de São Joaquim.


Fonte: Os autores. Coordenadas de referência: 28° 7’ 34,2’’ S e 49° 28’ 45,5’’ O, DATUM WGS 84.

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Figura 2. Mirante natural do Morro da Igreja em dia de grande movimentação turística.
Fonte: Foto divulgada no Jornal Diário Catarinense e no programa de Televisão “Jornal do Almoço”, do grupo RBS/TV/SC, em 06/2010.

Entrevistas e período do trabalho


Durante 18 meses, de 01/01/2013 a 31/07/2014, realizamos diversas entrevistas individuais informais e reuniões, do tipo
brainstorming, para coletar ideias que pudessem ser aplicadas à gestão do uso público do parque. A participação nos grupos de
discussão foi registrada em listas de presença. Do conjunto de ações propostas, algumas foram posteriormente implementadas
e os resultados avaliados.

Resultados
As reuniões realizadas tiveram a seguinte participação e frequência:
1) autoridades municipais: Prefeito, Secretário de Turismo, Promotor, Polícia Militar e Civil, Assessor de Impressa da Pre-
feitura: 1 reunião;
2) membros do Conselho Municipal de Turismo de Urubici: 1 reunião;
3) condutores de visitantes: 2 reuniões;
4) vereadores e proprietários de meios de hospedagem: 3 reuniões;
5) Comandante da Aeronáutica local, servidores e funcionários do parque: várias reuniões;
6) Conselho Consultivo, formado por representantes dos quatro municípios abrangidos pelo parque: Urubici, Bom Jardim
da Serra, Orleans e Grão Pará: várias reuniões;
7) entidades ambientalistas e universidades públicas e particulares: várias reuniões.
Exceto as reuniões realizadas com o Comandante e a equipe do parque, todas foram convocadas por carta ou convite, e
a participação registrada em listas de presença e fotografias (Figura 3).

(a) (b)
Figura 3. Reuniões propositivas: (a) Condutores Credenciados; (b) Conselho Consultivo do parque. Fonte: Os Autores.

As soluções propostas nas reuniões foram divididas em dois grupos: ações a serem implantadas e avaliadas; e ações
em estudo.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


223
Ações implantadas e avaliadas
Criação de página na internet e facilidade de agendamento de visitas
O primeiro passo foi aumentar a exposição do parque à percepção pública através da criação de um site (www.icmbio.
gov.br/parnasaojoaquim) contendo informações constantemente atualizadas sobre o local. Interessados poderão fazer reservas
para visitação através do e-mail agendamentoparque@hotmail.com e garantir antecipadamente seu acesso, já que a Portaria n°
85 do ICMBio só permite a entrada de 200 veículos por dia.

Estacionamento para ônibus e micro-ônibus


Um dos problemas apontados pelos condutores de visitantes foi o longo tempo de espera na fila de veículos que aguar-
dam liberação de entrada no parque e a necessidade de uma área exclusiva para estacionamento dos ônibus e micro-ônibus.
Esses veículos passaram então a ser dispensados de esperar na fila sempre que houver vaga de estacionamento. Na prática,
os ônibus e micro-ônibus devem deixar os passageiros no mirante e retornar ao estacionamento posicionado antes das vagas
destinadas aos carros de passeio. Tal medida descongestionou significativamente o espaço de movimentação dos turistas no
local de visitação.

Instalação de outdoor
Nos finais de semana e feriados, a fila de carros na portaria do parque (Figura 4a) é um fator de irritação, pois a espera
pode durar mais de 1 hora (se o estacionamento estiver lotado, a entrada de um carro está condicionada à saída de outro). A
instalação de um outdoor (Figura 4b) com a fotografia da Pedra Furada visou entreter o visitante e garantir que nos dias de baixa
visibilidade ele possa ao menos levar uma fotografia indireta do atrativo.

(a) (b)
Figura 4. (a) Fila de veículos na entrada do parque; (b) Fotografia do outdoor (6m X 2,4m) ao lado do portal de entrada. Fonte: Os autores.

Áudio-guia e exposição interpretativa.


Ao longo dos 10 Km da estrada que se estende do portal até o mirante há diferentes paisagens, atrativos e belezas que o
visitante normalmente não percebe, talvez devido ao desejo de chegar rápido ao mirante e à falta de estímulos durante o trajeto.
Este fato levou à elaboração de um áudio-guia em parceria com o Núcleo de Pesquisas em Fauna Silvestre da Universidade
do Estado de Santa Catarina (NUPAS/UDESC/Lages/SC), com o objetivo de aumentar a capacidade de carga do local e aper-
feiçoar a visitação. O áudio, disponibilizado em compact disc (CD), traz informações diversas (história do parque, velocidade
permitida, etc) e destaca certos pontos de parada ao longo do trajeto. Acreditamos que essa medida possa diminuir o risco de
acidentes, aumentar o tempo de deslocamento e enriquecer a experiência turística. De início, os pontos de parada foram mar-
cados com postes amarelos e vermelhos e identificados segundo as faixas do CD. Para fins de avaliação, 59 veículos escolhidos
aleatoriamente receberam o CD e tiveram seus horários de entrada e saída anotados. Depois, alguns turistas foram entrevistados
informalmente para opinar sobre a sincronização do áudio-guia com os pontos de parada e também sobre seu conteúdo. Com

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
224
apoio do NUPAS/UDESC/Lages/SC, COMTUR e parceiros particulares, uma exposição sobre a fauna silvestre catarinense foi
instalada na sede do parque.

Ações em estudo (de provável implantação futura)


Instalação de webcam
Propõe-se uma parceria entre os meios de hospedagem, a Secretaria de Turismo de Urubici, a Rede de TV SBT e o DT-
CEA-MDI para a instalação de uma câmera de vídeo no Morro da Igreja que mostre a Pedra Furada em tempo real, pela internet
ou pela televisão: uma webcam de divulgação do parque que também permitirá conhecer as condições de visibilidade do local
(nevoeiros são frequentes antes de decidir visitá-lo.

Realização de eventos
A beleza cênica do local associada às condições de fácil acessibilidade frequentemente incentivam a prática de diver-
sas atividades esportivas ou de lazer tais como maratonas, corridas de bicicleta, e encontros de motociclistas. Essas atividades
demandam uma estratégia diferenciada de atendimento e segurança para que sua realização não perturbe substancialmente
a visitação cotidiana. Percebemos que tais eventos devem se restringir ao horário vespertino, preferencialmente após as 16h,
quando o fluxo de turistas é reduzido.
Além disso, considerando que esses eventos são rotineiramente organizados e executados por associações e empresas
privadas com fins lucrativos - e portanto fogem ao padrão de visita de contemplação tradicional, um retorno financeiro em favor
do parque é uma possibilidade que deve ser analisada apropriadamente.

Infraestrutura
Salientamos que o Parque Nacional de São Joaquim não possui infraestrutura adequada para seu próprio funcionamento
e para o atendimento dos turistas. Dentre as necessidades de maior urgência (que requerem soluções de curtíssimo prazo),
apontamos a de uma reforma (ou readequação) completa do portal, incluindo a construção de sanitários para visitantes e outras
facilidades para funcionários e turistas.
Notamos também a necessidade de benfeitorias no mirante, tais como (1) construção de guarda-corpos, (2) construção
de passarelas para minimizar os impactos às turfeiras, e (3) ampliação da área de manobra de veículos. Além disso, será im-
portante iniciar as tratativas para a construção de um centro de visitantes dentro do parque, pois atualmente o atendimento é
prestado fora do parque, na sede situada na área urbana de Urubici. Estudos devem ser realizados para detalhamento e objeti-
vação desses problemas.

Transporte turístico
Da observação direta, dos dados de visitação fornecidos pela administração do parque (Tabelas 1 e 2), e também diante
da perspectiva de crescimento do fluxo de veículos (que está sempre limitado à capacidade do estacionamento), parece razoável
e ecológico recomendar o uso futuro de vans para transporte coletivo dos turistas até o mirante. Reuniões devem ser convocadas
para estudar com a comunidade estratégias e ações nessa direção.
O aumento substancial de turistas em 2012 e 2013 (Tabela 1) deveu-se à precipitação de neve, que costuma ter um forte
apelo estético.

O ano de 2013 acusou os maiores picos de visitação no intervalo de tempo considerado (Tabela 2), novamente devido a
ocorrência de neve.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


225
Visitação noturna
Resultados preliminares de alguns projetos de pesquisa indicam haver grande diversidade de espécies animais no
parque (estudos oficiais ainda não foram publicados). Visitas guiadas podem ser uma maneira de observar esses animais à noite,
pois se tornam mais ativos e se aproximam da estrada livre de tráfego. Análises técnicas são necessárias para avaliar o impacto
ecológico e a viabilidade dessa iniciativa.
Propõe-se também a realização de passeios noturnos para observação do céu. Embora não seja uma prática comum
na região, a atividade poderia interessar aos aficionados da astronomia, por exemplo. Pensamos que a área mais conveniente à
contemplação de estrelas seja a região de Santa Bárbara, ao sul do parque.

Discussão
A gestão de um parque ecológico sempre deverá assegurar a conservação das áreas protegidas, a satisfação dos visi-
tantes, e, quando possível, retornos financeiros para a população local. Essas metas estão presentes, em diferentes níveis de
desenvolvimento, tanto em parques brasileiros como em parques estrangeiros (BENAYAS; MUÑOZ-SANTOS, 2012).
Estratégias que levem em conta as peculiaridades de cada local, minimizem ou eliminem as ameaças de depredação,
e valorizem o patrimônio natural são ações que aperfeiçoam a gestão do uso público e aumentam a qualidade da visitação em
parques nacionais. Planejar e testar alternativas são os primeiros passos na direção de uma experiência turística mais rica e
ecológica (OMENA, 2014).
A implantação de uma página na internet divulgando as regras de visitação do parque e oferecendo o serviço de agenda-
mento de visitas por correio eletrônico mostraram-se ferramentas eficazes de comunicação com o visitante.
No Rocky Moutain National Park, no estado do Colorado, EUA, observou-se uma preferência dos visitantes em dirigir
seus veículos, porém em geral aceitam utilizar o transporte fornecido pela administração do parque, nos casos em que o excesso
de carros possa comprometer a comodidade do passeio (HUNT et al., 2011). Este fato demonstra que normalmente os turistas
são capazes de priorizar soluções coletivas em detrimento de soluções individualistas. De fato, observamos que a reserva de
uma área exclusiva para estacionamento de ônibus e micro-ônibus no Parque Nacional de São Joaquim teve fácil aceitação, pois
os visitantes entenderam que se tratava de algo vantajoso para todos.
Percebemos que diversos visitantes utilizaram o outdoor instalado na proximidade do portal do parque para tirar fotogra-
fias e sociabilizar enquanto aguardavam liberação de entrada. Portanto, o equipamento atendeu a finalidade pretendida.
O tempo médio de visitação de 29 minutos (OMENA, 2014) foi acrescido em 14 minutos (50%), em média, para os
59 veículos escolhidos que fizeram o trajeto com um áudio-guia. A sincronia do áudio com os pontos de parada necessita de
pequenos ajustes para os carros de passeio. Para os veículos mais lentos (ônibus e vans), a sincronia deve ser diferente. Para
motocicletas, o áudio-guia não se aplica. Sugerimos que as cores dos postes sejam padronizadas em vermelho e que indiquem
explicitamente a faixa do CD correspondente a cada ponto de parada. O recurso teve receptividade bastante positiva.
A exposição interpretativa na sede do parque agregou informações ao passeio e aumentou a percepção pública acerca
da importância da área que será visitada. Centros de interpretação ambiental e centros de visitantes são espaços de promoção
da vida selvagem e contribuem positivamente para a satisfação do turista (CURY, 2002). Futuramente, questionários e entrevistas
poderão confirmar a eficácia da iniciativa em sensibilizar os visitantes para as questões ecológicas locais.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
226
A necessidade de manutenção contínua de uma câmera de vídeo instalada no mirante (webcam) pareceu a principal
dificuldade para o funcionamento de um sistema de divulgação do local em tempo real, pois a alta umidade, os ventos fortes, e
outras intempéries são fatores que complicam sua implantação e funcionamento. Portanto, até julho de 2015 esta ação não tinha
sido implantada e seus resultados não puderam ser avaliados
Eventos de esporte e lazer ainda não geram retorno financeiro para o parque e a marca “Parque Nacional de São Joa-
quim” não tem sido divulgada satisfatoriamente. A situação começou a mudar, porém, depois da efetivação do controle de visi-
tantes na estrada do Morro da Igreja. Na ausência de um Plano de Manejo, a administração do ICMBio e o Conselho Consultivo
deverão discutir o assunto mais detidamente.
O melhoramento da infraestrutura (banheiros, passarelas, e outras facilidades) agregará qualidade e segurança à visita-
ção. O recente crescimento do turismo na região demanda providências urgentes nesse sentido. Sugerimos um levantamento de
necessidades e a elaboração de um projeto arquitetônico através de concurso público.
Os atrativos visuais da estrada de acesso ao mirante pode se tornar um forte motivo de interesse turístico. Segundo pes-
quisa feita no Acadia National Park, no estado americano do Maine, os turistas preferem trafegar por estradas que apresentem
diversidade de belezas cênicas (HALLO; MANNING, 2009).
A adoção de transporte coletivo para visitação é uma solução aceitável, mas deve ser discutida amplamente com a comu-
nidade, pois provavelmente afetará a dinâmica turística do parque.
Considerando os dados da Tabela 2 e pensando em substituir a visitação de veículos particulares por vans credenciadas,
calculamos, a título de exemplo, que teriam sido necessárias cerca de 60 vans de 8 lugares, excluído o condutor, fazendo três
viagens por dia para atender o público que visitou o parque no dia 19 de julho de 2014 (1454 visitantes, a maior movimentação do
ano). Para os dez dias de maior movimento do mesmo ano (fins de semana de julho e feriados), o número de vans teria oscilado
entre 47 e 60, também fazendo três viagens por dia. Para atender, porém, a demanda média anual de visitação, o número de
viagens teria sido menor, cada van fazendo 2 viagens por dia. Em meses de baixa visitação (fevereiro e outubro, por exemplo) e
dias úteis, quando o fluxo de visitantes é pequeno, um número menor de vans pode funcionar em regime de rodízio permanente
(a estipulação de horários de visitação pode concentrar mais passageiros e otimizar as viagens). Liberar a entrada de veículos
particulares nessas ocasiões também é uma possibilidade.
A administração do parque poderá se encarregar do credenciamento e capacitação dos prestadores de serviço, além de
monitorar os preços das tarifas e a qualidade do serviço. Havendo disponibilidade de vans com mais de 8 lugares, o número de
credenciados diminui. Por exemplo, para veículos com 14 assentos, o cálculo anterior resultaria em 35 vans fazendo três viagens
por dia para atender aquela demanda. A legislação brasileira, porém, é mais exigente para a habilitação de motoristas de veícu-
los grandes com passageiros.
O uso de ônibus e micro-ônibus não seria prático para o transporte diário dos visitantes, pois são grandes e sua dirigi-
bilidade é mais difícil nas subidas e curvas. Podem servir como recurso adicional em dias de maior movimento, a fim de reduzir
o número de viagens e, consequentemente, o tráfego na estrada de acesso.
Na ocorrência de neve, que historicamente está associada aos maiores picos de visitação, esquemas especiais de
transporte devem ser elaborados. Supomos também que, no início, muitos visitantes podem não querer utilizar o serviço de
transporte, ou desistir do passeio se não puderem chegar ao mirante usando seus próprios veículos. Por outro lado, podemos
supor também o surgimento de estacionamentos particulares, lojas de souvenirs, e outros serviços agregados ao transporte que
fomentarão a economia local. Investimentos particulares são necessários. As vans têm custo elevado e a quantidade requerida
não é modesta. As considerações do presente estudo são preliminares e devem ser amplamente debatidas com a sociedade e o
órgão gestor do parque.
Visitação noturna guiada poderá ser uma atividade interessante, à semelhança dos parques africanos que sempre
atraíram turistas para safaris de observação de grandes animais: leões, rinocerontes, elefantes, etc. A fauna de áreas protegidas
é um chamariz importante. No Parque Nacional de Kibale, na Uganda, 90% dos visitantes são estrangeiros e vêm à procura de
chimpanzés (HARDING; OBUA, 1996). O turismo de avistamento de baleias é outro exemplo do interesse que certos animais
despertam nas pessoas. Entre os anos de 2005 e 2010, Corrêa e colaboradores (2011) pesquisaram 742 passeios embarcados na
Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, no sul de Santa Catarina, aonde os turistas vêm anualmente avistar a Baleia Franca
(Eubalaena australis). Entretanto, não existem pesquisas específicas sobre a diversidade da fauna no Parque Nacional de São

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


227
Joaquim, particularmente sobre as possibilidades de conhecê-la em safáris noturnos. Há uma tendência a se privilegiar animais
do topo da cadeia alimentar e transformá-los em símbolos. A onça-parda (Puma concolor), espécie ameaçada de extinção e de
díficil avistamento, é o animal mais popular do parque. Acreditamos, porém, que outros carnívoros e cervídeos podem ser avis-
tados com mais facilidade em roteiros ecológicos guiados.
Passeios para observação do céu, integrados aos safaris ou separados, podem também ser oferecidos como “turismo
astronômico” e atrair mais visitantes.
A implantação do ordenamento turístico na visitação do Morro da Igreja/Pedra Furada em novembro de 2013 exigiu
grandes esforços. Depois da implantação do sistema, outras ações se tornaram necessárias, principalmente as de qualificação
do turismo: melhorias diversas no atendimento ao público e conscientização dos visitantes acerca da importância e do valor do
patrimônio natural.
As ações que foram propostas aqui (implantadas ou não) podem ser reproduzidas em outras áreas protegidas, inclu-
sive aquelas com pequena visitação. Estas podem promover safaris “ecológicos” ou “astronômicos”, estreitar a comunicação
com a sociedade pela internet, ou mesmo divulgar seus atrativos por imagens captadas por uma webcam para um telejornal
local. A aproximação entre sociedade e parques naturais é fundamental para a valorização dessas áreas. Sensibilizar a população
sobre sua importância é a chave para a conservação da biodiversidade que elas guardam.

Conclusão
O desafio que um gestor e sua equipe enfrentam para equilibrar todos os objetivos de uma área protegida natural,
tendo de conciliar turismo ecológico com preservação ambiental, requer a realização de diversas ações estratégicas. Nesse
contexto, as atividades implantadas e descritas no presente trabalho (criação de página de divulgação na internet; possibilidade
de agendamento por correio eletrônico; mudança da área de estacionamento de ônibus e micro-ônibus; instalação de outdoor
ao lado do portal; e reforma da sede do parque) tiveram boa receptividade e já começaram a gerar benefícios em termos de
qualidade de uso. A adoção de um áudio-guia para orientar a visitação também foi aprovada pelo público. Sua implantação de-
finitiva depende de ajustes técnicos que estão em andamento. Sugerimos que as propostas que não foram colocadas em prática
por razões diversas sejam reapresentadas à comunidade a fim de serem implantadas com o apoio de parceiros. E que estas
propostas, mais as ações já implementadas, façam parte do Plano de Manejo do parque. Prevendo-se neste apoio financeiro
da União para implantação e manutenção destas. Ações de qualificação da experiência turística (melhoramentos em geral e
conscientização) poderão quebrar o paradigma dos “parques-fortalezas”: áreas de preservação fechadas à população em geral.
Observamos que, na prática, é possível tornar os visitantes mais conscientes da importância das áreas naturais protegidas,
especialmente os parques. Para isso, é indispensável conduzir a visitação de modo organizado e qualificado, executando ações
planejadas pelo órgão gestor e comunidade. Sem prejuízo dos objetivos de conservação, tais áreas podem ser transformadas
em áreas de referência em lazer de qualidade.

Referências
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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


229
O TURISMO E OS DESAFIOS ESTRATÉGICOS PARA A CONSERVAÇÃO DA
BIODIVERSIDADE E INCLUSÃO SOCIAL NOS
PARQUES ESTADUAIS DO RIO DE JANEIRO

Irving, Marta de Azevedo1; Lima, Marcelo Augusto Gurgel de2; João, Cristina Gerber 3; Oliveira, Maria Elizabeth de4; Prado,
Mariana Oliveira5 & Abreu, Manuela Muzzi6

1. PPG em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social e PPG em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Universidade
Federal do Rio de Janeiro e INCT/PPED/CNPq. marta.irving@mls.com.br 2. Doutorando em Psicossociologia de
Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. maglturismo@gmail.com 3. Pós-doutoranda no PPG Eicos -
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. cgerberj@gmail.com 4. Doutoranda em Políticas
Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio de Janeiro. elizabetholiverbr@yahoo.com.br 5. Mestranda do PPG Eicos
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. marianaprado89@gmail.com 6.Mestre em
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro e INCT/ PPED/CNPq. manuelamuzzi@gmail.com

Resumo
Com o maior número de Unidades de Conservação federais do Brasil, o segundo estado em atividade econômica e porta de
entrada do turismo internacional no país, o Estado do Rio de Janeiro possui como um dos seus principais desafios estratégicos,
na perspectiva de sustentabilidade, o planejamento do turismo em áreas protegidas. Esse contexto gera tensões para a gestão
da biodiversidade e demanda esforços governamentais para a compatibilização de políticas públicas de desenvolvimento e de
proteção da natureza. Com base neste breve recorte, o artigo buscou investigar o “Estado da Arte” do desenvolvimento turístico
em parques do Rio de Janeiro, considerando a sua potencialidade para inclusão social e para a própria conservação da biodi-
versidade. Os resultados indicam que as ações em planejamento de projetos turísticos são ainda incipientes, muito embora, os
parques possuam elevado potencial para uso turístico.

Palavras-chave: Turismo, Parques, Políticas Públicas, Inclusão Social, Rio de Janeiro.

Introdução
A relação natureza e sociedade, assim como, as interfaces relacionadas às questões do desenvolvimento, da conserva-
ção da biodiversidade e da inclusão social vem sendo, atualmente, uma das principais reflexões no âmbito das políticas públicas
no Brasil e, especificamente no Estado do Rio de Janeiro devido à tendência de crescimento do uso turístico em parques, moti-
vado também pela realização de importantes eventos internacionais que foram e estão sendo planejados para o Estado do Rio de
Janeiro. E, nesta perspectiva, o turismo vem sendo abordado, nos últimos anos, em planejamento turístico, como uma relevante
alternativa para a inclusão social no país. No plano nacional, torna-se importante destacar que este tema vem sendo um dos
principais objetivos do atual Plano Nacional de Turismo 2013-2016 - “O Turismo fazendo muito mais pelo Brasil” (Plano Nacional
do Turismo PNT 2013-2016, BRASIL, 2013). Isto porque, o Governo Federal, assim como, o Ministério do Turismo (MTUR) identi-
ficam no setor turístico uma “forte solução para o crescimento sustentado e sustentável do país, com redução de desigualdades
regionais, inclusão social e geração de emprego e renda” (BRASIL, 2013).
Para isso, entre outras ações estratégicas, insere-se no atual PNT (2013-2016) a ampliação do foco social e caracterizando
o momento como sendo de forte indução para uma nova fase do turismo no país. E, com isto, o fortalecimento das políticas
públicas de turismo deverá ser capaz de contribuir para a geração de novos empregos, visando proporcionar melhorias na distri-
buição de renda e na qualidade de vida das populações locais. Além disto, o PNT 2013-2016 objetiva ainda “valorizar, conservar
e promover o patrimônio cultural, natural e social com base no princípio da sustentabilidade” (BRASIL, 2013, p. 46). A finalidade
dessa ação, segundo o documento analisado, é garantir o apoio a eventos que fortaleçam o desenvolvimento do turismo, “de
caráter tradicional e de notório conhecimento popular, que comprovadamente contribuam para promoção, fomento e inovação
dos processos da atividade turística do destino” (BRASIL, 2013, p. 46).
No contexto estadual, é relevante enfatizar que o Rio de Janeiro representa a porta de entrada do turismo internacional

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


231
no Brasil e tem um grande potencial para a expansão do turismo nos próximos anos. Por sua vez, o Estado também contará com
limitações e riscos envolvidos neste processo que precisarão ser avaliados e equacionados em políticas públicas. Uma outra
questão que precisa ser considerada é o fato do Estado do Rio de Janeiro possuir a maior concentração de áreas protegidas do
bioma Mata Atlântica1 no Brasil e o segundo estado com o maior número de Unidades de Conservação (UC) do país. No entanto,
estas áreas encontram-se fortemente pressionadas pela ação antrópica, já que este Estado é o segundo em atividade econômica
do país (IRVING et al., 2013). Assim, além das crescentes pressões econômicas sobre a base de recursos naturais, influenciadas
pela expansão industrial e urbana e pelas transformações socioeconômicas impostas pela dinâmica em curso, o Estado poderá
ainda sofrer com os efeitos da realização de grandes eventos internacionais de alcance global que já tiveram e ainda terão o
Estado do Rio de Janeiro como sede.
Esse contexto gera tensões permanentes para a gestão da biodiversidade e demanda esforços governamentais sistemáti-
cos para a compatibilização de políticas públicas de desenvolvimento e de proteção da natureza, principalmente no caso dos
parques, que tipificam como nenhuma outra categoria de manejo de áreas protegidas, a cisão histórica entre sociedade e na-
tureza (IRVING; MATOS, 2007).
No entanto, são ainda limitados os estudos e pesquisas capazes de interpretar o “Estado da Arte”, com relação ao
desenvolvimento do turismo nos parques no Rio de Janeiro e seu entorno e, os desafios para a integração das políticas públicas
com este objetivo. Este tipo de informação é essencial em planejamento turístico e também para a consolidação de políticas de
proteção da natureza, historicamente dissociadas de uma perspectiva estratégica de desenvolvimento regional, a médio e longo
prazos.

Etapa metodológica
Com base neste recorte e nas premissas teóricas anteriormente mencionadas, este artigo buscou investigar o “estado da
arte” do desenvolvimento turístico em parques estaduais do Rio de Janeiro, considerando a sua potencialidade para inclusão so-
cial e para a própria conservação da biodiversidade. E para isto, tendo em vista os desafios de integração das principais políticas
públicas norteadoras de turismo e proteção da natureza: Diretrizes para uma Política de Ecoturismo (EMBRATUR/IBAMA, 1994),
Plano Nacional de Turismo 2013-2016 (BRASIL, 2013), que consolida a Política Nacional de Turismo, e de proteção da natureza
(Sistema Nacional de Unidades de Conservação (BRASIL, 2000) e Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (BRASIL,
2006) e seus desdobramentos.
Com base no objetivo realizou-se uma análise crítica e aplicada sobre o tema, tendo como insumos dados de campo
envolvendo a percepção das esferas gerenciais sobre o tema, para que se pudesse contribuir, efetivamente, para o planejamento
da gestão pública dirigida a este setor.
Para este artigo foram selecionados sete parques instituídos até 2002 (sendo, portanto os mais antigos) e sob a gestão
direta do INEA (Instituto do Ambiente do Rio de Janeiro), muito embora novos parques tenham sido criados em 2012/2013 e al-
guns estejam sob a gestão municipal.
O Quadro 1, a seguir, sistematiza os documentos legais de criação dos parques estudados no âmbito deste artigo:

1
O Estado do Rio de Janeiro abriga a maior concentração de áreas protegidas do bioma Mata Atlântica do país e compõe a Reserva da Biosfera, internacionalmente
reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO. No entanto, apesar de contar com 16,73% da Mata Atlântica
do país, em função dos diferentes ciclos econômicos baseados na exploração sistemática dos recursos naturais, restam hoje na área do Estado somente alguns frag-
mentos isolados do bioma que, somados, perfazem 7.346,29 km², cerca de apenas 17% da sua cobertura original (IRVING et al., 2013).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
232
Com este entendimento, as etapas metodológicas que orientaram o artigo estão descritas a seguir:
• Análise de documentos norteadores de políticas públicas e/ou diretrizes internacionais, nacionais e estaduais sobre o
tema, envolvendo o período entre a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - Rio 92 e ano
de 2013, ano final da etapa de pesquisa. No âmbito internacional, a presente análise considerou a Convenção da Diversidade Bi-
ológica e os seus desdobramentos nas Conferências das Partes (COPs), as resoluções da IUCN (International Union for the Con-
servation of Nature) e, os documentos oficiais da World Tourism Organization (UNWTO), no período. No plano nacional, foram
interpretados o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), a Política Nacional de Biodiversidade, o PNAP (Plano Es-
tratégico Nacional de áreas Protegidas), os Planos/Políticas de Turismo 2003/2007 e 2007/2010 e os documentos recentes sobre as
bases da nova política de turismo e os seus desdobramentos aplicados ao tema em questão. Na esfera estadual, foram mapeados
os programas, atualmente, em implementação no âmbito da Secretaria de Turismo e do Instituto Estadual do Ambiente (INEA/RJ);
• Pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema em foco envolvendo as pesquisas em curso registradas nos sistemas
de autorização do INEA, Banco de Teses da Capes e anais de eventos de referência sobre o tema, além de relatórios contendo a
sistematização de dados secundários sobre os parques do Rio de Janeiro, com ênfase no processo de desenvolvimento turístico,
incluindo relatórios técnicos, planos de manejo, atas de reuniões de conselhos, entre outros documentos. Esta etapa permitiu
contextualizar, em um plano estratégico, a temática de pesquisa;
• Elaboração de instrumentos de pesquisa de campo e identificação de interlocutores da gestão pública relacionados à
temática do turismo em parques;
• Realização e análise qualitativa das entrevistas com atores institucionais da gestão. Todas as entrevistas foram gravadas
e transcritas e os questionários dirigidos aos interlocutores institucionais, sistematizados em uma base de dados do projeto. As
entrevistas permitiram levantar, através da ótica do cotidiano da gestão dos principais parques estaduais, os problemas e desa-
fios enfrentados para a consolidação do turismo nestas áreas, segundo o compromisso de sustentabilidade socioambiental;
• Elaboração de uma matriz-síntese sobre restrições e potencialidades para o desenvolvimento turístico nos parques do
Estado do Rio de Janeiro que, pedagogicamente, sintetiza os resultados aplicados da pesquisa e as principais recomendações
dirigidas às políticas públicas.

Síntese dos resultados obtidos


A metodologia foi desenhada de maneira a permitir que o objetivo do artigo pudesse ser alcançado tendo como premissa
a proposta de construção de conhecimento compartilhado entre a academia, a gestão pública e os demais setores da sociedade
envolvidos no debate.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


233
Com este balizamento, foi possível identificar que, em geral, a produção científica relacionada ao turismo em Parques no
Estado do Rio de Janeiro abordam, principalmente, temas como turismo em sua relação com a conservação da biodiversidade,
análise de políticas públicas de turismo, diagnóstico e monitoramento turísticos, além de estudos sobre o perfil de turistas. A
maior parte das pesquisas concentra-se nos Parques mais antigos, como Ilha Grande e Pedra Branca. Em tais parques foram en-
contradas, no levantamento realizado, respectivamente 124 e 114 produções científicas. No entanto parques mais recentes como
os Parques Estaduais do Cunhambebe e da Serra da Concórdia, foram foco de apenas 15 produções científicas, no período
compreendido da pesquisa. Além disso, a produção cientifica sobre a temática do turismo é, em geral, escassa, representando
menos que 7% do total de teses, dissertações e pesquisas registradas na Capes sobre os parques do Rio de Janeiro. E, no caso
de alguns parques estaduais, os únicos dados disponíveis estão sistematizados na presente pesquisa, apoiada pelo INEA, no
âmbito e executada pelo Grupo de Pesquisa Governança, Biodiversidade, Áreas Protegidas e Inclusão Social (GAPIS/IP), da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro. É também este grupo uma importante referência com relação a todos os Parques estudados,
com produções científicas em congressos, quanto em periódicos especializados, teses e dissertações.
Assim, embora este seja um tema estratégico para o desenvolvimento sustentável do Estado, em uma projeção de cenári-
os de curto, médio e longo prazos, as pesquisas em curso estão ainda aquém das demandas de planejamento, o que tende a exi-
gir dos órgãos públicos um esforço dirigido a este tema nos próximos anos, principalmente quando se considera a limitação de
informação qualificada para orientar as políticas públicas de proteção da natureza e de turismo em sua articulação nos parques
do Rio de Janeiro, focos privilegiados para o desenvolvimento turístico nos próximos anos.
É importante mencionar que na cronologia de criação dos parques analisados neste trabalho, o processo não foi contínuo
como ilustram a Quadro 2 e a Figura 1 a seguir. E, sendo assim, evidentemente que o conhecimento produzido reflete este processo.

Figura 1. Representação esquemática da cronologia do processo de criação de Parques no Rio de Janeiro, envolvendo também os
parques em gestão compartilhada com a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro; fonte: Irving et al. (2013).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
234
No plano da gestão, os conselhos são mais recentes e a sua instalação decorreu da criação do Sistema Nacional de Uni-
dades de Conservação (SNUC), em 2000 (BRASIL, 2000). Esta afirmação está a seguir ilustrada na Quadro 3:

A maioria dos parques dispõe de Conselhos. Apenas os mais recentes estão ainda em processo de instalação desses
fóruns de gestão, observa-se, entretanto, que apenas dois parques possuem câmaras técnicas de turismo instaladas: Parque
Estadual do Desengano e o Parque Estadual Serra da Tiririca.
Com relação aos Planos de Manejo, instrumentos essenciais da gestão para orientar o planejamento turístico nas áreas
protegidas, apenas quatro parques estaduais tem planos de manejo: Parque Estadual do Desengano, Parque Estadual da Ilha
Grande, Parque Estadual da Serra da Concórdia e Parque Estadual Três Picos.
No caso dos Planos de Uso Público, embora sejam documentos técnicos essenciais para orientar o desenvolvimento do
turismo e demais usos do parque apenas os Parques estaduais do Desengano, da Serra da Concórdia, dos Três Picos e Cunham-
bebe possuem-no para orientar o planejamento de Uso Público.
Com relação ao levantamento de perfil de visitantes são poucos os parques que contam com essa informação para orien-
tar o processo de planejamento turístico e as estratégias de gestão. São eles: Parque Estadual da Ilha Grande, Parque Estadual
de Pedra Branca, Parque Estadual Serra da Tiririca, Parque Estadual Três Picos e Parque Estadual de Cunhambebe. Além disso,
esse tipo de levantamento não é orientado por uma metodologia padronizada que permita a comparação de dados ou a projeção
de cenários para o planejamento integrado do turismo nos parques estaduais do Rio de Janeiro.
Considerando o panorama sobre o contexto dos parques do Rio de Janeiro, alguns obstáculos são reconhecidos para o
desenvolvimento do turismo e esses estão representados graficamente na Figura 2 a seguir:

Figura 2. Representação esquemática dos principais problemas identificados para o


desenvolvimento do turismo nos parques do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


235
Os principais obstáculos reconhecidos pelos gestores correspondem à comunicação deficiente e à limitação de iniciati-
vas de educação ambiental essenciais no caso da categoria de manejo parque.
Reconhecidas estas limitações, algumas recomendações são também propostas para assegurar o desenvolvimento do
turismo nos parques, conforme representado esquematicamente na Figura 3:

Figura 3. Representação esquemática das principais recomendações identificadas para o desenvolvimento do turismo nos parques
do Rio de Janeiro, pela perspectiva dos gestores dos parques pesquisados no Estado do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).

As principais recomendações identificadas para o aprimoramento do processo pela ótica da equipe de gestão são as
seguintes: desenvolvimento de estudos de capacidade de carga; investimento em capacitação profissional; melhoria nas estra-
tégias de comunicação; desenvolvimento de ações de educação ambiental; realização de inventários turísticos; ações de orde-
namento turístico e planejamento estratégico, com este objetivo.
Pela perspectiva dos conselheiros dos parques estudados (e entrevistados) as questões identificadas como problemáti-
cas para o desenvolvimento do turismo incidem principalmente sobre: gestão inadequada do uso público; impactos da visitação
e dificuldades de acesso e infraestrutura (Figura 4).

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236
Figura 4. Representação esquemática das principais obstáculos identificados para o desenvolvimento do turismo nos
parques do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).

Esses atores reconhecem que algumas ações seriam necessárias para superar alguns dos problemas identificados con-
forme esquematizado na Figura 5 a seguir:

Figura 5. Representação esquemática das principais obstáculos identificados para o desenvolvimento do turismo nos
parques do Rio de Janeiro. Fonte: Irving et al. (2013).

As principais recomendações dos conselheiros para o desenvolvimento do turismo nos parques objeto do trabalho se
referem à necessidade de planejamento de novos atrativos; melhores condições de trabalho para a gestão; limitação e controle
de visitação; aprimoramento da sinalização e orientações aos visitantes e fortalecimento do diálogo e parcerias com as popula-
ções do entorno.
Estas informações se completam com alguns resultados obtidos através de debates realizados durante o Seminário
“Desafios para o turismo em Parques do Rio de Janeiro”, O Seminário gerou uma série de recomendações concentradas nos
seguintes eixos: Comunicação, com destaque para a necessidade de divulgação da unidade de conservação para a sociedade e
a realização de atividades de educação ambiental; Fortalecimento da Segurança Pública, um problema que não atinge somente
os Parques situados na região metropolitana do Rio de Janeiro, mas é recorrente em todo o estado; Regularização Fundiária, como

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


237
condicionante para o estabelecimento de planos de uso público para os Parques. Além desses eixos, um elemento transversal
ressaltado no evento foi a importância da gestão participativa destas áreas, a partir da realização de diagnóstico e estratégias de
planejamento que incluam os diferentes atores sociais vinculados ao turismo em Parques o Rio de Janeiro.

Considerações finais
Conforme anteriormente mencionado, este artigo buscou estabelecer uma linha de base capaz de ilustrar o “Estado da
Arte” no desenvolvimento turístico nos parques do Rio de Janeiro no sentido de contribuir para o planejamento do setor mas tam-
bém funcionar como registro para as iniciativas de monitoramento de alguns projetos em curso como o Projeto Fortalecimento
e Implantação da Gestão do Uso Público para o Incremento da Visitação nos Parques Estaduais do Rio de Janeiro (INEA, 2012),
além de ações de políticas públicas associadas à realização dos grandes eventos internacionais que já aconteceram e ainda
estão por acontecer no Rio de Janeiro nos próximos anos.
Os resultados desta pesquisa parecem indicar que as ações em planejamento e implementação de projetos turísticos são
ainda muito incipientes nos parques do Estado e embora tenham um elevado potencial para uso turístico, são pouco conhecidos
e dispõem de informações limitadas dirigidas ao público usuário, a infraestrutura disponível é ainda incipiente para as demandas
de visitação em caráter de rotina e apenas alguns parques dispõem de uma base de dados de pesquisa sobre a área protegida.
E também no caso das pesquisas registradas são ainda raras aquelas dirigidas ao turismo.
Um outro elemento crítico a ser considerado é a deficiência de estratégias de comunicação e difusão das áreas protegi-
das para a sociedade, aliada em alguns casos, à dificuldade de acesso, além de outros problemas críticos sob a ótica da gestão
como o funcionamento dos conselhos muitas vezes pouco conectado com a temática em foco, Planos de Manejo nem sempre
aplicáveis às demandas de planejamento turístico e inúmeros problemas relacionados a conflitos fundiários o que, em tese,
inviabilizaria ações mais consolidadas de desenvolvimento turístico em razão deste tipo de pendência jurídica com relação ao
próprio parque.
Por outro lado, embora projetos e programas estejam em desenvolvimento pelos Ministérios de Turismo e Meio Ambiente
e, no caso especifico do Rio de Janeiro também pelo INEA, em associação à projeção de aumento da visitação dos parques do
Estado do Rio de Janeiro (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2010; INEA, 2012), as ações parecem ainda desar-
ticuladas, no plano estratégico, entre as esferas de governo e entre as diretrizes das políticas públicas de turismo e proteção da
natureza. Assim, os parques são objeto de programas governamentais, mas a gestão se concentra na implementações de ações
isoladas, o que pode significar que as ações em curso tenham apenas efeitos pontuais e com duração limitada. Isto porque todas
estas ações demandam salvaguardas em termos de garantia de continuidade e articulação do turismo em parques na lógica de
circuitos, envolvendo não apenas a questão de visitação de espaços naturais reservados mas também de sua articulação com a
cultura local e com a garantia de inclusão social segundo novas bases de planejamento.
Embora esta seja uma pesquisa exploratória e qualitativa, ela pode ilustrar o vasto campo de inovação para a geração de
conhecimento em turismo no Rio de Janeiro, campo este ainda em construção.

Referências
BRASIL. MINISTÉRIO DO TURISMO (MTUR). Plano Nacional de Turismo 2013-2016: O turismo fazendo muito mais pelo
Brasil. Brasília: MTUR, 2013.

BRASIL. Lei n 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, parágrafo 1, incisos I, II, III, VII da Constituição Federal,
institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC. Brasília, 2000.

BRASIL. Decreto n 5.758, de 13 de abril de 2006. Regulamenta o art. 84, incisos IV e VI da Constituição Federal, institui o Plano
Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP. Brasília, 2006.

EMBRATUR/IBAMA. BRASIL. Diretrizes para uma Política Nacional de Ecoturismo. Brasília: EMBRATUR,1994.

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (Estado). Decreto nº 42.483 de 27 de maio de 2010. Estabelece diretrizes para
o uso público nos parques estaduais administrados pelo Instituto Estadual do Ambiente – INEA e dá outras providências. 2010.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
238
INEA. INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE. RIO DE JANEIRO (Estado). Projeto Fortalecimento e Implantação da
Gestão do Uso Público para o Incremento da Visitação nos Parques Estaduais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: INEA,
2012.

IRVING, M. A. et al. Relatório Final do Projeto FAPERJ Turismo em Parques Estaduais do Rio de Janeiro: Desafios Es-
tratégicos para a conservação da biodiversidade e inclusão social. 2013.

IRVING, M.A.; MATOS, K. 2007. Gestão de parques nacionais no Brasil: projetando desafios para a implementação do Plano
Nacional Estratégico de Áreas Protegidas. Floresta e Ambiente, v.13, n.2, p. 89-96, 2006.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


239
TRAVESSIA: ADENTRANDO OS GROTÕES DO ESPINHAÇO

Bulhões, Tainá Gonçalves1; Gontijo, Bernardo Machado & Silva, Gabrielly3

1. IGC/Universidade Federal de Minas Gerais, taina_gbulhoes@yahoo.com.br 2. IGC/Universidade Federal de Minas Gerais,


gontijobm@yahoo.com.br 3. IGC/niversidade Federal de Minas Gerais, gabi.1711@hotmail.com

Resumo
Sustentado em sua expressiva biodiversidade, a região mineira da Serra do Espinhaço, selecionada para realizarmos esse
estudo, por ela ser reconhecida como área prioritária para a conservação de seus biomas, como também, por sua grande
diversidade sociocultural, com suas comunidades tradicionais e tem despertado o desenvolvimento do turismo. Diante dessa
situação é possível apontar contradições na formação deste espaço, já que outras atividades de uso da terra são proibidas. Assim
propomos compreender de que forma a iniciativa de formatação do roteiro turístico Travessia dos Parques e Vilarejos, no âmbito
do Mosaico do Espinhaço, pode influenciar, nessa nova dinâmica territorial, as comunidades envolvidas. Observamos que esse
roteiro se pauta na valorização da cultura, já que tem as comunidades como atrativos, o que pode fortalecer a identidade local.

Palavras-chave: Turismo, Travessia, Unidades de Conservação, Mosaico do Espinhaço.

Introdução
Na modernidade, um dos marcos da temática ambiental se refere ao alerta do elevado grau de uso dos recursos naturais
e a destruição da biodiversidade, que levou à criação de áreas naturais protegidas, que visem a proteção e/ou conservação da
natureza e sua biodiversidade.
Entende-se aqui por biodiversidade o conceito que a considera não apenas por sua variabilidade genética e a diversi-
dade de espécies e ecossistemas, como também a diversidade cultural humana. A diversidade cultural manifesta-se pela diver-
sidade de linguagem, crenças religiosas, práticas de manejo da terra, arte, musica, estrutura social, seleção de cultivos agrícolas
e construção de territorialidades.
Sustentado em sua expressiva biodiversidade, foi feito um recorte na região mineira do Alto Jequitinhonha, que sobrepõe,
nesse caso, a Serra do Espinhaço, para realizarmos esse estudo, uma vez que essa última foi reconhecida como área prioritária
para a conservação de seus biomas. Neste sentido, cientistas e ONG ambientalistas, voltados a pesquisas de conservação da
biodiversidade, com o apoio de órgãos ambientais governamentais, “agruparam informações decorrentes de estudos sobre a
Serra do Espinhaço e chegaram a afirmar a existência de mais de seis mil espécies em sua biota” (GONTIJO, 2008), alertando,
nesse sentido, que

Se não tomarmos cuidados quanto à preservação do que ainda resta de biodiversidade na Ca-
deia do Espinhaço e em seus biomas adjacentes, estaremos na eminência de sofrer um grande
“terremoto ambiental” já que estamos, como mostra a geografia de nossa “tectônica ambiental”,
localizados bem em cima de seu hipotético epicentro (GONTIJO, 2008, p.13).

Bem como, observa-se nesse território, de acordo com Rodrigues & Miné (2012), sua grande vitalidade social (frente às
outras macrorregiões brasileiras) por suas comunidades tradicionais, sociedades indígenas e núcleos quilombolas que buscam,
hoje, resgatar suas identidades por meio de movimentos de resistência.
A Serra do Espinhaço meridional, na região de Diamantina-MG, passou por um processo diferenciado de ocupação huma-
na. Levas de garimpeiros foram para essa região por volta do século XVIII à procura de ouro e posteriormente de diamantes (SAN-
TOS, 1968). No auge da exploração diamantífera, haviam na região cerca de 5000 negros escravizados (MACHADO FILHO, 1985).
Com as fugas, o declínio da exploração dos diamantes e a abolição da escravatura, essa população negra foi se refugiando em
recantos isolados, desenvolvendo diversas formas de convivência com esses locais, com diferentes formas de reprodução sociocul-
tural e produtiva. Formaram-se então, comunidades quilombolas, além de outras categorias de povos e comunidades tradicionais.
Diante do seu grande valor ambiental, diversas UC foram criadas, dentre algumas podemos citar o Parque Estadual do

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


241
Pico do Itambé, Parque Estadual do Rio Preto, Parque Estadual do Biribiri, Parque Nacional das Sempre-vivas, dentre outras ca-
tegorias de UC que ocasionou na criação do Mosaico do Espinhaço: Alto Jequitinhonha – Serra do Cabral, o que gerou uma nova
dinâmica territorial que influencia diretamente o modo de uso da terra das comunidades tradicionais que vivem nesse território,
o que tem ameaçado diversas comunidades e gerado uma série de conflitos socioterritoriais. Alertamos que

Assim como a devastação das florestas destrói definitivamente espécies vegetais úteis, a devas-
tação ou a mutilação de grupos sociais diferentes do nosso suprime modos de viver e de pensar,
bem como destrói saberes que representam um germe de alternativa para a desumanização ace-
lerada que estamos vivendo (MARTINS, 1993, p.12).

Dessa forma propomos nesse artigo compreender de que forma a iniciativa de formatação do roteiro turístico Travessia
dos Parques e Vilarejos, no âmbito do Mosaico do Espinhaço, pode influenciar, nessa nova dinâmica territorial, as comunidades
envolvidas.
Para isso nosso percurso metodológico iniciou com a realização da caracterização da região estudada à luz de revisão
bibliográfica sobre a legislação de proteção da natureza. Seguido pela contextualização com o Mosaico de Unidades de Con-
servação do Espinhaço: Alto Jequitinhonha e Serra do Cabral. Foi realizada também uma revisão sobre o turismo convencional e
turismo pessoalizante, que nos orientou para compreendermos de que forma essa atividade incide nos “grotões do Espinhaço”.
E, por fim, a verificação da situação estudada por meio da pesquisa empírica, que se deu pela realização de parte da Travessia
dos Parques e Vilarejos, mais especificamente, o trecho de aproximadamente 60km que liga os Parques Estaduais do Pico do
Itambé e do Rio Preto e passa pela Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos. Cabe ressaltar, que a escolha desse trecho foi
devido à acentuada relação conflitiva entre os Parques e a Comunidade, onde observamos que a atividade turística impulsionada
pela Travessia influencia uma nova situação em que o turismo oferece uma possibilidade de reduzir o conflito instaurado.

O Espinhaço natural
A Serra do Espinhaço, também conhecida como cordilheira e cadeia, que se inicia em Minas Gerais e adentra a Bahia até
a divisa com o Piauí, constitui um grande divisor entre as bacias hidrográficas do centro-leste brasileiro e a do Rio São Francisco
(COMIG & IGC/UFMG, 1997 apud MONTEIRO, 2011). Segundo Saadi (1995), a denominação “serra” esconde uma realidade
fisiográfica que é mais bem definida pelo termo “planalto”.
Acrescente-se, ainda, que a porção mineira da serra detém a maior parte dos estudos já realizados, sobretudo geológi-
cos, nos quais se ressalta a importância de se fortalecer as compreensões acerca de sua biota e sua diversidade sociocultural.
Neste sentido, cientistas e ONGs ambientalistas, voltados a pesquisas de conservação da biodiversidade, com o apoio de órgãos
ambientais governamentais, “agruparam informações decorrentes de estudos sobre a Serra do Espinhaço e chegaram a afirmar
a existência de mais de seis mil espécies em sua biota” (GONTIJO, 2008).
Entretanto, para Gontijo (2008, p.13), a Cadeia do Espinhaço segue ainda “desconhecida em grande parte de sua exten-
são, especialmente se for considerado seu elevado grau de endemismos”. Mas não são apenas as características fisiográficas
que conservam todo valor do Espinhaço. Devemos atentar para as especificidades culturais que se desenvolverem e são manti-
das ainda hoje. O sincretismo do sagrado ao profano, as diversas produções manuais e artesanais, as crenças e modos de vida
únicos e de estreita relação ao ambiente natural.
A presença marcante da Serra do Espinhaço na paisagem proporciona à região grande visibilidade para a atividade
turística, observando que a Serra do Espinhaço recebeu pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), em 2005, o título de “Reserva da Biosfera”. Nesse contexto, pesam as raridades (LEFEBVRE, 1991), em que
os elementos da natureza passam, no âmbito do sistema capitalista de produção, a ter maior valor de troca.
Gontijo (2008) aponta que biólogos e ecologistas, em geral, tendem a reduzir a questão da conservação da serra à criação
de Unidades de Conservação (UC), se possível daquelas mais restritivas, como mecanismo que impediria os efeitos de uma
crescente pressão antrópica. Muitos desses profissionais são cientistas envolvidos na criação das UC já existentes na Serra do
Espinhaço. Defendendo a proteção integral para que determinadas espécies possam ser preservadas, e muitas vezes esque-
cendo ou não levando em consideração os diversos fatores sociais dispostos em seu entorno.
Diante da realidade formada pela concepção histórica desse território, a influência atual da criação de UC na região é

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
242
possível apontar contradições na formação deste espaço (BULHÕES, 2013). De um lado o contexto da ocupação do território de
Minas Gerais apresenta a manutenção de diversas comunidades tradicionais e induziu a repercussão de traços culturais ligado
ao rural tradicional e do outro a expansão de áreas destinadas a proteção e conservação da natureza que coíbem atividades
intrínsecas aqueles modos de vida.
Considerando, ainda, o modo de produção capitalista do espaço, temos que o elevado valor ambiental e sociocultural da
Serra do Espinhaço confronta sua alta relevância econômica, principalmente para a mineração, agroindústria e, atualmente, para
a silvicultura, atividades com impactos ambientais expressivos.
De acordo com Bulhões (2013) atenção para a proteção do Espinhaço por meio das UC vem desencadeando uma nova
dinâmica territorial. A concepção de UC introduziu não apenas um novo formato de produção do espaço como também o dis-
curso da atividade turística como opção acessível e condizente para manutenção econômica desses territórios, já que outras
atividades de uso da terra são proibidas.
A lei nº 9.985 de julho de 2000 instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) com objetivos de contri-
buir para a manutenção da diversidade biológica, proteger as espécies ameaçadas de extinção, colaborar para a preservação e
a restauração de ecossistemas naturais, promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais e a utilização dos
princípios e práticas de conservação da natureza no processo de desenvolvimento, ajudar na gestão das áreas protegidas, entre
outros. O SNUC define Unidades de Conservação (UC) como

o espaço territorial com limites definidos, que possuam características naturais relevantes e im-
portantes recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com objetivos de conservação,
legalmente instituído pelo Poder Público e sob regime especial de administração, apropriadas à
sua proteção (BRASIL, 2000).

Neste sentido, o turismo vem sendo tratado como uma das principais alternativas seja no âmbito social ou econômico,
para promover o desenvolvimento de diversas localidades (BULHÕES, 2013). Associado também a outras diversas atividades
integrando comunidades e Unidades de Conservação.
As Unidades de Conservação integrantes do SNUC dividem-se em dois grupos, com características específicas, as
UC de Uso Sustentável e de Proteção Integral. Segundo o SNUC (BRASIL, 2000) o grupo das UC de Uso Sustentável tem como
objetivo compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. Já o grupo das
UC de Proteção Integral tem como objetivo básico preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos
naturais, e é neste último grupo que se enquadra o contexto desta pesquisa.
A definição das UC anterior a criação do SNUC se baseou pela oposição da natureza à cultura, logo pela dicotomia so-
ciedade/natureza, resultando que temas como cidadania, participação e controle social ficassem, por muito tempo, ausentes na
discussão da “questão ambiental”.
Considerando que o processo de criação de UC está embasado nas ideias preservacionistas importadas dos países industri-
alizados, o que não reflete as aspirações, e os conceitos sobre a relação homem/natureza dos países latino-americanos em desenvolvi-
mento sendo criticado por alguns autores em relação à forma como foram adotados os procedimentos no Brasil (MONTEIRO, 2011).
O SNUC inclui os Parques Nacionais no grupo de Unidades de Proteção Integral, ou seja, eles admitem apenas o uso
indireto de seus recursos naturais, proibindo a comunidade e turistas, de coletarem, consumirem ou destruírem esses recursos.A
categoria dos Parques permite apenas a pesquisa cientifica e a visitação turística sujeitas a autorização e restrições, também
destinadas a zona de amortecimento.
Essa categoria tem sido amplamente implantada no estado, desconsiderando a sociobiodiversidade que apresenta. Essas
características deveriam implicar na criação de UC da categoria uso-sustentável, que consiga equilibrar a conservação ambiental
e os modos de vida locais. A teoria exposta por Monteiro (2011) atenta para a problemática das UC de proteção integral, que

Forjadas no imaginário urbano moderno, tendo como referência a dicotomia sociedade/natureza,


as UC de proteção integral, demandam a retirada de antigos moradores de seu interior para a
preservação da natureza. Comumente, essas unidades são materializadas em espaços rurais,
sobrepondo-se a territórios materiais e imateriais constituídos historicamente pelas comunidades
que ali habitam (MONTEIRO, 2011, p. 14).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


243
Revelando as UC como marcos históricos que desencadeiam uma nova dinâmica e influenciam transformações socioespa-
ciais. A se considerar Minas Gerais berço da ruralidade e das relações socioambientais resultantes dessa característica, cabe
ressaltar que essa transformação muitas vezes não ocorre de maneira gradual e pacifica, mas sim de forma impositiva e conflitante.
Observa-se, então, que a situação conflitiva entre comunidades tradicionais e projetos e estratégias hegemônicas de
domínio territorial é histórica e ainda permanece. As diversas restrições e limitações de uso do território ocasionada pela criação
de UC veio associada a promessa de uma nova complementação de renda através do turismo. Contudo esse ainda se apresenta
incipiente no que tange as comunidades localizadas em grotões distantes, em contraposição aos altos índices de visitação
turística que as UC do Mosaico do Espinhaço apresentam.

O Mosaico do Espinhaço
Os Mosaicos de áreas protegidas tem o intuito de fomentar uma melhor gestão das Unidades de Conservação, a fim
de buscar maior eficiência em relação aos recursos financeiros, participação social, com uma gestão integrada e participativa.

Quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próxi-


mas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um
mosaico, a gestão do conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa, considerando-se
os seus distintos objetivos de conservação, de forma a compatibilizar a presença da biodiver-
sidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional
(BRASIL, 2000).

O Mosaico do Espinhaço: Alto Jequitinhonha – Serra do Cabral (Figura 1) foi criado legalmente em 2010 abrangendo 24
municípios, com 19 Unidades de Conservação de responsabilidade, federal, estadual e municipal. São elas: Parque Nacional das
Sempre-Vivas, Monumento Natural Várzea do Lageado, Parques Estaduais Biribiri, Rio Preto, Pico do Itambé, da Serra Negra, da
Serra do Cabral e Estação Estadual da Mata dos Ausentes. Além das zonas de amortecimento, e as UC de uso sustentável APA
Estadual Água das Vertentes e APAs Municipais Felício dos Santos, Rio Manso, Serra do Gavião, Serra de Minas, Barão e Capi-
vara, Serra do Cabral – Lassance, Serra do Cabral Augusto de Lima, Serra do Cabral de Buenópolis, Serra do Cabral de Joaquim
Felício, Serra do Cabral de Felício, Serra do Cabral Francisco Dumont.

Figura 1. Área do Mosaico do Espinhaço. Fonte: Mosaico do Espinhaço (2015).

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As Unidades de Conservação passam por dificuldades em conseguir recursos para manutenção, logística e equipe
das áreas. Com isso, várias atividades passam por ameaças como modificações no ecossistema, a má utilização dos recursos
biológicos e muitas UC não encontraram a melhor forma de manejo do fogo. Assim, as ações mais trabalhadas em Unidades de
Conservação são: prevenção de incêndios, mobilização e treinamento das equipes além de trabalhos relacionados com educa-
ção ambiental.
Os principais motivos de criação de mosaicos, segundo Pinheiro (2010), são o aumento da escala para conservação,
benefícios sociais e político-institucionais, ampliação na participação fortalecendo assim as UC; otimização de recursos e in-
fraestrutura, redução dos conflitos; relação estimula a relação e integração dos moradores do entorno com a área protegida, além
de proporcionar melhor relacionamento e possibilitar até mesmo o desenvolvimento territorial.
Os 24 municípios que abrangem o Mosaico do Espinhaço, possuem características naturais do nordeste de Minas, com
domínios da Mata Atlântica, Campos Rupestres, Campos de Altitude do Espinhaço. Dentre várias singularidades, essas carac-
terísticas vegetacionais da região faz com que o Mosaico do Espinhaço se destaque por suas transições. Para Azevedo (2009)
a visão do Mosaico do Espinhaço é “conservar e desenvolver de forma sustentável um segmento representativo da cadeia do
Espinhaço que integra cerrado, campos rupestres e mata atlântica”.
Um desafio muito grande para o funcionamento e gestão do Mosaico são as várias lacunas do aparato institucional, os
conflitos gerados muitas vezes por falta de comunicação, desde a falta de nivelamento e baixa apropriação até a linguagem
utilizada pouco acessível. É de grande interesse a participação efetiva tanto dos gestores e equipes, quando das comunidades
e sociedades envolvidas, para assim ser feita de forma beneficiária. Além disso, aumenta os atores envolvidos nos processos e
desafios enfrentados, fortalecendo assim laços de forma retroalimentar o mosaico. A partir do conselho consultivo do mosaico se
faz a principal forma de possível participação social na gestão das UC.

Caminhando no Espinhaço: do turismo convencional ao pessoalizante


Entende-se o turismo como uma atividade que se desenvolve no espaço, produzindo-o e reproduzindo-o e, também,
promovendo o movimento de pessoas para vários lugares, em busca de consumi-los (RODRIGUES, 1997 apud BEDIM, 2007).
As forças produtivas que envolvem o turismo não apenas intervém como recriam modos de organização socioespacial.
O turismo, enquanto esfera produtiva diferenciada, provoca a coexistência, a (des)integração ou a superposição de distintas for-
mas de relações de produção, engendrando e acentuando desigualdades a partir dos diferenciados ritmos de desenvolvimento.
À articulação produtiva que define a prestação de serviços diretos ou indiretos ligados ao turismo, Bedim (2007) indica
que, agregam-se processos sociais, costumes, espaços, indivíduos e grupos humanos - os quais possuem ritmos diferenciados
de transformação na história, assim como a formação econômico-social que os envolve.
O turismo é, em si, um fenômeno social moderno nascido das contradições da própria maquinaria produtiva da moderni-
dade. Assim Bedim (2007) o considera produto do processo histórico moderno, se inserindo entre as inúmeras concepções da
modernidade e suas tendências econômicas, políticas, culturais e ambientais a transformar o mundo.

Traz consigo a importância da era moderna na experiência ocidental; signo de um mundo sem
fronteiras, porém delimitado em si; a compressão tempo-espaço a produzir contradições ao redu-
zir as distâncias aparentes entre os homens e os últimos ‘refúgios naturais’ da Terra (BEDIM, 2007).

Portanto, para além de disseminar padrões globais a sociedade urbano-industrial globalizada tem apontado uma tendên-
cia de revalorização da cultura rural e de expressões arcaicas, mais simbólicas e de maior proximidade com a natureza. De-
vemos perceber que o turismo faz uso dessa tendência para vender experiências, podendo ocasionar em resultados positivos ou
negativos, tanto para turistas como para as localidades visitadas.
Com a evolução da consciência ecológica por parte da sociedade e a criação de Parques Nacionais em diversos países,
surgem as atividades turísticas focadas na visitação desse tipo de unidade de conservação.

A criação de Parques Nacionais e demais áreas naturais protegidas tem sido um dos principais ele-
mentos de estratégia para conservação da natureza, em particular nos países do terceiro mundo.
Desde seu início, os Parques Nacionais foram estabelecidos para fornecer às populações urbanas
meios de lazer e contemplação do mundo natural (DIEGUES, 1997, p. 85).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


245
O ecoturismo também teve grande representatividade na pesquisa de demanda realizada pelo Estado. Isso se deve por
dois fator, o primeiro porque o Estado carrega a simbologia de ruralidade e portanto de maior proximidade com a natureza e por
outro lado pelo alto índice de visitação dos parques, esse movimento tem incentivado um outro olhar para o turismo de Minas
Gerais.
Contudo, mesmo sendo dois motivadores de viagem que tem potencial para aflorar uma atividade turística pessoalizante
não é isso que observamos em grande parte dos casos, já que a relação mantida entre turistas e os locais visitados é de sobre-
posição e superioridade, e não uma relação de assimilação, troca e aprendizagem mutua.
De acordo com Gontijo & Rego (2001) uma atividade turística pessoalizante abarca o desenvolvimento de uma atividade
ambientalmente integrada

que leve em conta as particularidade das paisagens humanas e naturais brasileiros. (...) Tal ativi-
dade turística, neste caso, deve ser entendida enquanto um processo de (re)descoberta desse
nosso patrimônio humano e natural, no qual diversos tesouros permanecem ocultados por uma
atitude administrativa totalizante.

De acordo com esses autores o conceito de uma atividade turística pessoalizante provocaria a percepção da paisagem
para além do primeiro olhar, limitado ao ISSO, o olhar apenas horizontal “e onde a maior parte do turismo convencional se res-
tringe. A partir desse primeiro olhar, inicia-se uma busca tanto interior, na direção do EU de cada um, tanto exterior, na direção
do TU” (GONTIJO; REGO, 2001, p.10).
Compreende-se, assim que a relação, o menos distanciada possível, do turista com os nativos dos lugares visitados (EU-
TU), o permitiria ampliar sua percepção e experiência desse lugar (EU-ISSO), escapando assim da superficialidade do primeiro
olhar. De acordo com Buber (apud GONTIJO; REGO, 2001, p.10)

Para a pessoa, o EU-TU tem mais prevalência, anterioridade, e por isso, informa e atualiza o EU-
ISSO. O mundo do ISSO – ao qual a pessoa não pode renunciar – deve ser legitimado e atualizado
pelo encontro. É dele que vem a inspiração dos limites para o domínio e a manipulação do mundo
do ISSO.

Turistas entram e saem de museus e parques, assistem representações da cultura, experimentam as receitas locais, to-
mam banho de cachoeira; registram tudo em vários gigabyte de fotografias, mas não se deixam abertos a relação EU-TU e criam
uma relação superficial com o EU-ISSO. Percebendo a paisagem de forma fragmentada, e nesse caso Gontijo & Rego (2001)
lembra que, “por mais fragmentada, e muitos turistas agem dessa forma, ela permanece como um todo indivisível no qual muito
mais elementos poderiam ser revelados se o olhar do observador fosse mais atento”.
Vemos aqui que o turismo, até então citado como uma possível substituição econômica às atividades que foram proibidas
às comunidade locais não tem alcançado esse objetivo, já que a atividade se restringe aos limites dos Parques.
Porém a proposta de roteiro Travessia dos Parques e Vilarejos propostas para o Mosaico de Unidades de Conservação
do alto Jequitinhonha Serra do Cabral pode alterar essa situação, desencadeando o movimento para uma atividade turística pes-
soalizante, que atinja positivamente as comunidades que ficaram à margem das UC e sujeitas as suas normas

Travessia: a caminho de outro turismo no Mosaico do Espinhaço


As travessias fogem desse conceito. Seu público é atraído pelo isolamento e tradicionalidade dos lugares que fazem
desse trajeto uma experiência e uma aprendizagem de vida, objetivo de uma travessia é o trajeto, o caminho nos leva de encontro
a natureza e ao estado natural do homem. Ignorar esse fato é também ignorar os perigos e experiências da vida. Situação narrada
em Grande Sertão Veredas

Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido com a ideia dos
lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa;
mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se
pensou. Viver não é muito perigoso? (ROSA, 1986, p. 26)

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
246
Em Grande Sertão Veredas, Rosa (1986) se utiliza da metáfora travessia para sugerir que o “real” não se encontra no início
nem no fim das jagunçadas protagonizadas por Riobaldo Tatarana e Diadorim nos sertões de Minas e Goiás, mas sim durante o
percurso que medeia a passagem entre o “homem humano” e os anseios de seu espírito (SOETHE, 2007).
Travessia, não só no sentido de atravessar de um ponto a outro, mas no sentido de

sair do espaço urbano da região metropolitana, do lugar onde vivo e me sinto ‘confortável’, se sua
paisagem construída sobre o concreto e o asfalto [...], onde cada território é disputado para fins
econômicos, políticas e culturais...e chegar até o espaço rural de uma região que muitos ainda
consideram a ‘mais pobre’ de Minas Gerais (quiçá do Brasil), mas, na verdade, é o lugar de vivên-
cia de uma gente hospitaleira, solidária, humilde [...], situada em meio a paisagens de resquícios
dos cerrados, da mata atlântica, das veredas e, sobretudo, de extensos monocultivos de eucalipto,
onde os elementos da cosmovisão quilombola (capelas, rosários, cruzeiros, chifres de boi, etc.)
também se misturam ao “natural” e, assim, conformam o patrimônio histórico-cultural das comuni-
dades (DINIZ, 2013, p. 25).

Observa-se assim que algumas comunidades no interior do Mosaico começam a serem atingidas por uma modalidade
de turismo que, ainda, se faz pouco impactante. Isso se dá porque ao longo da travessia nos deparamos com vários caminhos
possíveis, em que, as vezes, optamos pelo caminho mais fácil - ou que acreditamos ser o mais fácil – em outras nem tanto, algu-
mas vezes erramos e noutras acertamos.
Mas essa é a condição da nossa existência e são os percalços do caminho, que cada um que está realizando a travessia,
avalia sua vida – nem se for somente pelo aspecto físico – e se “prepara” para uma aproximação diferenciada com as comuni-
dades que recepcionarão nos pernoites da travessia. E o passo a passo, o andar sem saber quando chegar, principalmente aos
caminhos desconhecidos.

Travessia dos Parques e Vilarejos do Mosaico


A travessia dos Parques e Vilarejos parte do resgate de antigas rotas utilizadas por tropeiros no período colonial da ex-
tração de ouro e diamantes na região. Essa rota está inserida no Mosaico do Espinhaço passando pelo corredor ecológico que
busca a conexão de quatro UC de proteção integral, os Parques: Nacional das Sempre vivas, Estadual do Biribiri, estadual do Rio
Preto e Estadual do Pico do Itambé, já descritas.
Dentre as comunidades envolvidas destacamos as que detêm fortes características rurais como Mendanha, Abóboras,
Capivari, Pinheiro e São João da Chapada. A travessia passa, também, pela comunidade quilombola Mata dos Crioulos, mas espe-
cificamente nos povoados de Covão e Bica d’Agua, e nas comunidades quilombolas de Macacos e Quartel do Indaiá (Figuras 2 e 3).

Figuras 2 e 3. Caminhando na travessia e Povoado de Bica d’água. Fonte: Próprio autor.

A travessia possui aproximadamente 118 km e permite, além da possibilidade de aproximação e de maior conhecimento
da natureza da região, conhecer parte da história e da cultura nacional, que tem origem nessa região. Ao passar por comuni-
dades tradicionais, dentre rurais e quilombolas é possível apreciar a culinária, o artesanato, manifestações culturais e religiosas,
além do modo de vida local.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


247
Conclusão
Observamos que o roteiro da Travessia de Parque e Vilarejos, ao integrar as comunidades tradicionais, que ate então não
estavam inseridas no turismo que as UC tem incentivado, pode reduzir os conflitos já que essa proposta oferece as comunidades
um incremento a sua renda, que havia sido comprometida devido as proibições de uso de recursos naturais, ressaltando pontos
positivos que as UC trazem as comunidades, em detrimentos dos pontos negativos.
Além disso esse roteiro se pauta na valorização da cultura local, já que tem as comunidades como atrativos, o que pode
fortalecer a identidade local e favorecer a manutenção de sua cultura. Esse fato foi observado durante a realização de um trecho
da Travessia dos Parques e Vilarejos, na Comunidade Quilombola Mata dos Crioulos, o aumento do numero de turistas que
realizam a travessia tem levado, alem do incremento econômico pela prestação de serviços dos moradores aos turistas, a reafir-
mação cultural da comunidade, já que os visitantes, ao se demonstrarem curiosos e interessados sobre a história desse lugar e
sobre o modo de vida dessas pessoas influenciam esse movimento.
Atentamos também que outro de tipo de turismo, que busca ressaltar as experiências de comer e dormir juntos, a neces-
sidade de solidariedade e colaboração de quem caminha junto pode influenciar positivamente em outro olhar para o mundo, e
nossa relação com espaço, com a natureza e com as pessoas.

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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


249
PRÁTICAS, SABERES E A CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE EM ANDRÉ DO
MATO DENTRO, SUBSÍDIO A PROPOSTA DO MOSAICO RDS E PARNA SERRA DO
GANDARELA EM MINAS GERAIS – POR QUE E PARA QUEM?

Dias, Janise Bruno Dias1 & Pena, Lucas Luiz Senhorine2

1. Departamento de Geografia, Universidade Federal de Minas Gerais, janisebdufmg@gmail.com 2. Bolsista de IC do CNPQ,


graduando em Geografia, Universidade Federal de Minas Gerais, lucassenhorine91@gmail.com

Resumo
A Serra do Gandarela, Quadrilátero Ferrífero (MG), abriga comunidades rurais que vivenciam conflitos pela expansão da minera-
ção e pela criação do PARNA da Serra do Gandarela. Partindo de uma reflexão sobre os conceitos de conservação/preservação
da biodiversidade, buscou-se estudar a comunidade de André do Mato Dentro, escolhida pelo seu protagonismo no processo
da proposta de uma RDS reivindicada na área, no intuito de verificar o favorecimento das práticas/saberes agrícolas locais para
a conservação da biodiversidade. Para isso identificou-se e mapeou-se tais práticas por meio de uma cartografia falada por agri-
cultores locais. Os resultados mostraram que a comunidade local desenvolve um elevado número de práticas e técnicas baseada
em seus saberes e suas experiências sobre elementos oriundos da natureza, podendo, ao longo de anos, vir contribuindo de
forma distinta para a conservação da biodiversidade local.

Palavras-chave: Unidades de Conservação, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Conservação da Biodiversidade, Práticas/


Saberes Agrícolas.

Introdução
Em 13 de novembro de 2014 foi decretado pela presidência da república federativa do Brasil mais um Parque Nacional,
o Parque Nacional da Serra do Gandarela (PARNA Serra do Gandarela1). O Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela
(MPSG) recebeu com preocupação a notícia. A reação ao decreto se deu não pela notícia que colocaria um ponto final num
longo processo de mobilização e participação social que se iniciou em 2007 com o apoio de diversos grupos sociais que se
sensibilizaram e lutaram pela preservação e conservação da área da Serra e seu entorno. O que trouxe o estarrecimento foram
os limites da área da Unidade de Conservação federal, de proteção integral, decretada após um longo processo de negociações.
O PARNA aprovado não refletiu nem o processo social democrático que amparou o seu pleito, muito menos contemplou a pro-
posta encaminhada pelo Instituto Chico Mendes de Proteção a Biodiversidade em 2010 (ICMBIO, 2010) e apoiada pelo MPSG,
após vários estudos de campo fundamentado em pesquisas científicas e intenso trabalho junto das comunidades envolvidas.
Além disso, negligenciava a proposta da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Alto Rio São João demandada pelas
comunidades locais e incorporava ao Parque parte da área proposta para a RDS deixando fora do limite do PARNA, ou seja, sem
proteção integral, áreas de ecossistemas singulares, importantes para proteção de espécies endêmicas, de floresta primária e
as mesmas áreas de cabeceira e recarga de aquíferos, que drenam tanto para a bacia do Rio das Velhas quanto para a bacia do
Rio Doce, do qual o rio São João é tributário. Com isso as atividades agrícolas e extrativistas praticadas pelos moradores locais
ficaram inviabilizadas pelas restrições impostas pela UC de proteção integral (ROJAS; PEREIRA; DIAS, 2015).
Segundo o ICMBio (2015), a proposta que apresentaram levou em consideração as necessidades das populações dos
municípios, numa região que há séculos tem na mineração a atividade que gera a maior parte de sua renda. Das negociações
resultou uma proposta que conciliou a criação do Parque Nacional com quase todos os empreendimentos de mineração que
estavam em licenciamento quando a proposta do Parque foi entregue, favorecendo os empreendedores que querem trabalhar,
gerar emprego e renda, mas reconhecem a importância ambiental da região, de suas águas e de sua biodiversidade. No entanto,
no limite decretado, grande parte da área da Serra com prioridade comprovada de preservação foi deixada sem proteção, área
essa cobiçada por licenciamentos de mineração desde o início do processo de reivindicação do Parque.

1
O Parque decretado, segundo o decreto (DOU, 2014), abrange uma área de 31.2840 hectares, ou seja, sete mil hectares a menos do que a proposta original e viabiliza
as atividades minerárias na região.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


251
Diante desse fato, este trabalho tem por objetivo estudar a comunidade de André do Mato Dentro, escolhida pelo seu pro-
tagonismo no processo da construção e proposta da RDS, e como estudo empírico fundamentar uma reflexão sobre os conceitos
de conservação/preservação da biodiversidade e fornecer argumentos para a necessária implementação da RDS reivindicada
nessa área. Para isso identificou-se e mapeou-se as práticas/saberes agrícolas locais e analisou-se o favorecimento dessas à con-
servação da biodiversidade do ambiente local por meio de uma cartografia falada por agricultores locais. Os resultados foram
aqui sistematizados por meio de um croqui acompanhado por uma tabela síntese. A partir das análises verificadas, é possível
constatar que a comunidade local desempenha um elevado número de práticas, a sua própria maneira de organizar suas técni-
cas baseadas em seus saberes, experiências e nos elementos oferecidos pela natureza que podem contribuir de forma distinta
para a conservação da biodiversidade local.
O artigo está assim organizado: um texto introdutório que apresenta o contexto de criação do PARNA Serra do Gandarela,
no segundo item apresentou-se uma síntese da proposta da RDS Alto Rio São João e o protagonismo da Associação dos mora-
dores de André do Mato Dentro, no terceiro item traçou-se a proposta dessa pesquisa para a comunidade de André do Mato
Dentro e sua inserção no contexto da criação do PARNA, no quarto item descreveu-se os caminhos da pesquisa, já no quinto item
expuseram-se então os resultados e reflexões sobre os dados empíricos encontrados e por fim em nossas considerações finais
discutimos a relação entre as práticas e saberes dos agricultores de André do Mato Dentro, a conservação da biodiversidade
local e a demanda pela RDS.

A proposta da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Alto Rio São João


Essa proposta teve como base a pesquisa de Lamounier et al. (2011) que sugeriram que uma área de 4.357 ha (porção
central da Serra), que inclui as comunidades de André do Mato Dentro, Cruz dos Peixoto, Conceição do Rio Acima e Galego se
insere perfeitamente nos objetivos de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável2, pelas atividades já desenvolvidas pelos
moradores e pela preocupação com as questões ambientais. Nessas áreas das comunidades “(...) já se desenvolvem práticas
agroecológicas, desenvolvimento de agricultura familiar e atividades de apicultura. A população conhece as características dos
ecossistemas locais e parece utilizar formas pouco impactantes de utilização e exploração de seus recursos. Além de incentivar
a conservação e a busca de práticas de exploração controlada (...) essa Reserva de Desenvolvimento sustentável poderia se
constituir como uma zona de amortecimento para as demais unidades de conservação próximas” (Lamounier et al., 2011, p.188).
Os autores apontam, baseado no SNUC e nas condições ambientais levantadas na pesquisa, que tendo em vista o alto grau de
preservação dos ecossistemas locais, sua diversidade e área de extensão, foi possível identificar e propor três categorias de
unidades de conservação mais apropriadas para a área: uma de proteção integral (Parque) e duas de uso sustentável (Reserva
de Desenvolvimento Sustentável e Área de Relevante Interesse Ecológico). Confirmando que “(...) esse mosaico de áreas pro-
tegidas poderá trazer grandes benefícios a esta parte do Quadrilátero Ferrífero, tanto do ponto de vista da conservação quanto
da promoção de novas atividades econômicas mais sustentáveis, como o turismo, além da possibilidade do desenvolvimento de
trabalhos científicos e projetos voltados para educação ambiental” (LAMOUNIER; CARVALHO; SALGADO, 2011, p. 189).
A RDS Alto Rio São João apareceu como resposta ao temor quanto ao impacto da criação de uma unidade de proteção
integral sobre atividades econômicas e de subsistência desenvolvidas pelas comunidades. Essa situação havia levado uma
parcela da população a posicionar-se contra a criação do Parque. A possibilidade de constituição de uma unidade conservação
de uso sustentável em parte da área, apresentada pelos analistas ambientais do ICMBio, gerou interesse na comunidade de
André do Mato Dentro, que solicitou uma nova reunião para esclarecimento referente às características, funcionamento e forma
de criação deste tipo de unidade. Partiu da Associação Comunitária Rural de André do Mato Dentro e Arredores (ACRAMDA) e
posteriormente outras dos arredores, a iniciativa de solicitar ao Instituto Chico Mendes para Conservação da Biodiversidade a
instauração de processo para criação da referida unidade de uso sustentável, fundamentado no objetivo básico da RDS previsto
no Art. 20, § 1o da lei No 9.985/2000, Lei do SNUC3, propondo o recorte para a reserva (ACRAMDA, 2011).

2
(...) no SNUC, essa categoria deve incluir áreas naturais que abrigam populações tradicionais, que utilizam os recursos naturais de forma sustentável, mantendo
as condições ecológicas ambientais, que possam valorizar, conservar e aperfeiçoar seus conhecimentos e técnicas de manejo do ambiente” (LAMOUNIER; CAR-
VALHO; SALGADO, 2011).
3
“preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e
exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente,
desenvolvido por estas populações” (Art. 20, § 1o da lei No 9.985/2000, Lei do SNUC, BRASIL, 2000)

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
252
Esse movimento é apontado por Rojas, Pereira & Dias (2015) como “espaço de resistência” onde as comunidades locais
também se mobilizaram e reivindicaram seus “espaços”, frente ao comprometimento e inviabilização das suas atividades agrí-
colas e extrativistas. Essas comunidades se organizaram e mobilizaram frente a um modelo de área protegida considerado um
modelo de preservação da natureza dominante (ROJAS; PEREIRA, 2015; DIEGUES, 2001; COLCHESTER, 2000) encontrando na
categoria RDS uma proposta que inclui as populações humanas e seus direitos de uso/apropriação do território.
A proposta de criação de uma RDS, então surge para que os moradores locais pudessem dar continuidade a seus modos
de vida. Diante da reivindicação da comunidade de André do Mato Dentro, durante reunião com representantes do ICMBio sobre
a proposta de criação do PARNA Serra do Gandarela, os analistas ambientais reconduziram a proposição de Parque para Reser-
va de Desenvolvimento Sustentável compatibilizando a proteção integral do PARNA Serra do Gandarela com as demandas e
interesses dos moradores (Rojas, 2014). As duas propostas das sete comunidades locais foram unificadas pelo ICMBio em 2012,
vislumbrando a criação de uma única RDS com uma extensão de 9,165 hectares (ICMBIO, 2012). Essa proposta única tinha por
objetivo “ampliar as possibilidades de garantias à proteção ambiental de modo mais compatível às formas de uso sustentável das
comunidades de pequenos agricultores familiares da região” (ROJAS, 2014) e propor um “mosaico de unidades de conservação”
compondo a proposta do PARNA Serra do Gandarela e RDS para cumprir a função como zona de amortecimento de conservação
do entorno do PARNA promovendo novas atividades econômicas locais mais sustentáveis voltadas para desenvolvimento local,
conforme vislumbrado por Lamounier, Carvalho & Salgado (2011). Além disso, a proposta do mosaico de UC foi um importante
argumento para deter o avanço da mineração na região, por isso foi bem recebida pelos integrantes do MPSG (Figura 1).

Figura 1. Proposta do Mosaico PARNA e RDS da Serra do Gandarela apresentada pelo ICMBio (2012)

Com o pedido de criação da RDS, os moradores aparecem como atores políticos coletivos que se colocam como partíci-
pes na distribuição do poder e nas decisões sobre a o destino da exploração dos potenciais naturais inseridos em seu território.
A visibilização política, social e cultural dessas comunidades alcançada pela reivindicação de suas necessidades territoriais, evi-
denciou a necessidade do debate sobre outras formas de conservação da natureza pautada na realidade local e na manutenção
da sociobiodiversidade (ROJAS, 2014).

Práticas, saberes e a conservação da biodiversidade em André do Mato Dentro


A pesquisa aqui presente se desenvolveu no subdistrito de André do Mato Dentro, bacia do córrego Maria Casimira, a
montante do rio São João, Bacia do Rio Doce, município de Santa Bárbara, MG. A ACRAMDA tem protagonizado todo o processo
político de resistência, tanto no que diz respeito a construção e encaminhamento da proposta da RDS como também como atores
políticos colocando questionamentos e fomentando discussões com os representantes do ICMBio responsáveis pela proposta
do PARNA. Por esse motivo a comunidade foi escolhida como objeto/área de estudo empírico para fundamentar uma reflexão

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


253
sobre o conceito de conservação/preservação da biodiversidade e fornecer argumentos para a necessária implementação da
RDS nessa área. Como base para nossa reflexão, estamos considerando o conceito de biodiversidade como parte de uma cons-
trução cultural e social, não incluindo apenas espécies e seu retorno econômico, mas também técnicas de cultivo e modos de
conservação que são utilizadas durante gerações e fazem parte da tradição de alguns povos e comunidades. O objetivo dessa
pesquisa pautou-se em identificar as práticas/saberes agrícolas locais e analisar o favorecimento dessas à conservação da biodi-
versidade do ambiente local. Possuindo uma paisagem singular, a área em que se localiza a comunidade estudada é uma região
de uma exuberante Floresta Estacional Semi-decidual que cresce sobre uma diversidade geológica, de formas de relevo e solos,
e abriga entorno de 34 famílias, e é reconhecida pela relevância ambiental e prioridade para conservação da biodiversidade. A
região conhecida pelas atividades minerárias que remontam do século XVI, coexistem com atividades agrícolas de subsistência
e o extrativismo vegetal.
As concepções clássicas adotadas inclusive pela CBD (Convenção da Diversidade Biológica) considera a biodiversidade
como a “variabilidade entre seres vivos de todas as origens, inter alia, a terrestre, a marinha e outros ecossistemas aquáticos e os
complexos ecológicos dos quais fazem parte: isso inclui a diversidade no interior das espécies entre as espécies e entre espé-
cies e ecossistemas”. A WWF/IUCN, em 1980, definiu a conservação como “o manejo do uso humano de organismos e ecossiste-
mas, com o fim de garantir a sustentabilidade desse uso. Além do uso sustentável, a conservação inclui proteção, manutenção,
reabilitação, restauração e melhoramento das populações (naturais) e ecossistemas.” Partindo do fato de que o homem tem uma
relação primordial com a terra, base de nossa existência e é daí que partimos para descobrir o mundo (DARDEL, 1956) e que
tem sido assim desde sempre, autores como Miranda (2004) e Gomez-Pompa & Kaus (1990), Posey (1986), Balée (1988, 1989,
1993) apud Diegues (2000) defendem enfoques alternativos como a Etnoconservação ou a sociobiodiversidade. Miranda (2004)
discute a conservação partindo do fato de que quando os colonizadores chegaram ao Brasil o continente já era ocupado por
outros povos há pelo menos 8.000 anos. E esses já haviam modificado essas paisagens em beneficio próprio.
Dessa forma, a hipótese investigada foi de que a manutenção das práticas agrícolas e socioculturais reproduzidas por
essas comunidades rurais, para sua subsistência, de alguma maneira deve contribuir para a sustentabilidade e manutenção dos
ecossistemas locais, mantendo a resiliência dos sistemas. E, amparados por essa abordagem, fizemos campos de experiencia-
ção visitando quintais, conversando com os moradores, mapeando algumas práticas/saberes que caracterizam a relação desses
com seu lugar de vida. Estes resultaram em impressões sobre a comunidade aqui apresentados. Como resultado produziu-se
uma cartografia falada das práticas, a partir das impressões dos moradores/agricultores de André do Mato Dentro, um dos ob-
jetos de reflexão de nossa hipótese. Por outro lado, esses resultados constituíram um banco de dados primários sobre a conser-
vação da biodiversidade local e as práticas socioculturais ali construídas, já que este ainda não existe (DIAS; PENA, 2015). Aqui
será apresentado uma síntese das práticas e saberes levantados e um ensaio de espacialização dessa cartografia falada pelos
agricultores/moradores de André do Mato Dentro. Com isso esperamos, com dados empíricos, dar conhecimentos às práticas e
saberes tradicionais conservados por essas comunidades em sua contribuição na conservação da biodiversidade local, fortale-
cendo a necessidade da constituição da RDS reivindicadas por essas comunidades.

Os caminhos da pesquisa em André do Mato Dentro


A etapa inicial da pesquisa se deu por meio da leitura de obras relacionadas ao aporte teórico metodológico definido para
investigação pelo objetivo da pesquisa, com o intuito de construir uma linha de condução de estudo que subsidiasse a aborda-
gem dos conceitos propostos para discussão no estudo, quais sejam: conservação e biodiversidade. Utilizou-se de estudiosos
adeptos do wilderness como Muir, Thoreau (apud DIEGUES, 2000) e Nash (apud DIEGUES, 2001), contrapondo-os a autores
da Etnoecologia4 e Agroecologia5 quais sejam, Ellen (1989) apud Diegues (2001), Diegues (2000) e Altieri (2009). Dessa forma
foi possível a construção de um arcabouço teórico-metodológico que permitisse a consolidação de definições e interpretações
conceituais. Num segundo momento, baseado em dados primários e secundários já produzidos sobre a área de estudo, foi
possível contextualizar e caracterizar a área de estudo no que concerne a seus atributos naturais e socioeconômicos, além do

4
Área do conhecimento oriunda da Etnociência que estuda a natureza segundo os conceitos e perspectivas linguísticas do homem (DIEGUES, p. 37, citando POSEY,
1987; GOMEZ POMPA, 1971; BALÉE, 1992; MARQUES, 1991).
5
Trata-se de uma nova abordagem que integra os princípios agronômicos, ecológicos e socioeconômicos à compreensão e avaliação dos efeitos das tecnologias so-
bre os sistemas agrícolas e a sociedade como um todo. Ela utiliza os agroecossistemas como unidade de estudo, ultrapassando a visão unidimensional (...)incluindo
dimensões ecológicas, sociais e culturais (ALTIERI, 2009, p.23)

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
254
reconhecimento da mesma (DIAS; PENA, 2015).
A partir disso, por meio de imagens de satélite fornecidas pela ferramenta Google Earth prosseguiu-se o reconheci-
mento da região e demarcação de áreas a serem mapeadas. Inclui-se também na etapa pré-campo a elaboração de um roteiro
de entrevistas fundamentado em questões referentes às técnicas de manejo e a biodiversidade locais. A adoção pelo roteiro de
entrevistas é válida, pois o mesmo permite interpretar as experiências do individuo e o contexto em que foram experimentadas
(GOLDENBERG, 2004, p.19), ademais, o roteiro de entrevista extrapola questões previamente elaboradas. Já que através das
histórias e experiencias individuais expostas pelo entrevistado é possível apreender a construção e o desenvolvimento da região
(GOLDENBERG, 2004, p. 21), dessa forma a comunicação com o habitante local favorece um intercâmbio de informações e idé-
ias. O número de entrevistas não foi previamente delimitado, visto que há possibilidades de surgirem novas informações e diante
disso a pesquisa se torna passível de novas análises e interpretações (DUARTE, 2002, p. 143-144).
A sistematização dos dados foi direcionada, sobretudo aos aspectos qualitativos, mediante os dados coletados em campo
definimos uma tabela como a melhor forma de representar nossas informações. Uma vez que a população da comunidade é
caracterizada por exercer práticas diversas, que contribuem para o enriquecimento de nossa pesquisa. A opção por dados quali-
tativos beneficia a apreensão ao estudarmos as relações complexas, em detrimento de nos limitarmos a estudar apenas variáveis
expostas por dados isolados (GÜNTHER, 2006, p. 202; FLICK; COLS, 2000 apud DIAS; PENA, 2015). Diante da análise do roteiro
de entrevistas realizado no trabalho de campo, foi elaborada uma divisão dos 8 entrevistados - 8 famílias - segundo os atributos
das práticas desempenhadas pelos mesmos, as práticas foram divididas em duas categorias conforme sua participação na ma-
nutenção da biodiversidade6 local (DIAS; PENA, 2015).
A filtragem dos 8 entrevistados se deu devido à três princípios: a variação no que concerne ao tipo de práticas entre cada
um dos entrevistados (apesar de observadas algumas semelhanças entre os entrevistados). O vínculo e o tempo de ocupação na
comunidade de cada. E a disponibilidade para a realização de entrevistas e visitas às propriedades. Além disso, boa parcela dos
entrevistados (excetuam-se os entrevistados 4 e 3) participam frequentemente das reuniões entre os moradores da comunidade,
fato este que releva a relação entre os entrevistados e o universo total de famílias.
O diálogo com os entrevistados 1, 5 e 6 contribuiu para uma análise genérica das presumidas 34 famílias, devido ao co-
nhecimento de tais entrevistados a respeito da população local e de seu ambiente. Desse modo, foi possível verificar a conjuntura
da comunidade, a partir da perspectiva dos entrevistados supracitados, constatou-se, por exemplo, o eucalipto como a maior
fonte de renda dos habitantes da comunidade durante a década de 1990. Ainda que o universo de 8 entrevistados corresponda
aproximadamente à cerca de 23,5% do total de famílias em André do Mato Dentro, o caráter mais preponderante foi a entrevista
com os entrevistados 1, 5 e 6 e o saber histórico local dos mesmos.
Categoria 1: Práticas que contribuem para a manutenção da biodiversidade - Formas de manejo e domesticação
das espécies envolvendo o aproveitamento de alguma forma da mata natural e dos produtos produzidos pela família (esse foi o
critério de maior relevância na delimitação das categorias). Diversidade de produção superior a três (excetuam-se as hortas7).
Percentual de mata preservada após a instituição das práticas igual ou superior a 50% (aproximadamente) na propriedade da
família. Família que realiza mais de três práticas. Categoria 2: Práticas que contribuem pouco ou em nada na manutenção
da biodiversidade - Formas de manejo e domesticação das espécies em que verificou-se a ausência do aproveitamento da
mata natural e dos produtos produzidos. Diversidade de produção inferior a três (excetuam-se as hortas). Percentual de mata
preservada após a instituição das práticas inferior a 50% (aproximadamente) na propriedade da família. Família que realiza um
número inferior a três práticas.
Considerou-se o número de práticas como um critério de seleção, já que o número de práticas pode ser um indicador
responsável pela manutenção da biodiversidade, entretanto a forma como a prática é desempenhada é muito mais decisiva no
que diz respeito à manutenção. Diante disso, o número de práticas é um fator complementar no critério estabelecido. A diversi-
dade de produção é referente aos produtos agrícolas, plantados ou que brotaram de forma natural (sem a interferência antrópica
direta). O percentual de mata preservada está intimamente associado ao tipo de prática, porém foi identificado o mesmo tipo de
prática, abrangendo uma extensão de área diferente.

6
Biodiversidade nesse caso é definida quanto à variabilidade entre os seres vivos e a forma de domesticação e conhecimento das espécies, que permitem construir
e conservar a identidade cultural e social, sobretudo de comunidades e povos tradicionais (Diegues, 2000 p.1-3)
7
Visto que todas as famílias possuem horta, portanto foi necessário desconsiderar as hortas para estabelecer um critério mais rigoroso acerca das categorias definidas.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


255
Para refletir: uma cartografia falada de práticas e saberes agrícolas
A comunidade apresentou diferentes tipos de práticas, entretanto, as práticas observadas são compartilhadas pela maio-
ria das famílias entrevistadas. As práticas demonstraram uma variação de acordo, sobretudo, com o uso e ocupação do solo.
As práticas desenvolvidas pela comunidade estão relacionadas principalmente à agricultura8, plantio de eucalipto, apicultura,
piscicultura, criação de gado leiteiro. As práticas envolvidas na agricultura compreendem a adubação orgânica, a aplicação
de água de cinza, plantio conforme fases da lua e a limpeza do terreno através do uso de foice e enxada. O adubo orgânico é
produzido com o esterco do gado da própria família, ou de conhecidos, esse esterco é misturado com folhas e restos de frutos
já muito maduros, já a mistura de água e cinza é utilizada como um defensivo capaz de controlar pragas. Deve-se ressaltar que
devido à heterogeneidade das propriedades do solo algumas famílias demandam de uma freqüência menor ou maior desses
tipos de práticas. Alguns produtos são cultivados segundo as fases da lua, um exemplo que permite ilustrar essa prática, é o
plantio da mandioca, batata e banana, as duas primeiras são plantadas no período da lua minguante, pois nessa época o que “da
no chão míngua” (entrevistado 1), porém a banana tende a ser plantada na fase da lua crescente ou cheia, já que a lua exerce
uma influência positiva no solo.
A limpeza do terreno não acarreta na retirada de espécies nativas, é realizada somente a poda dessas espécies, nas plan-
tações de eucalipto9 - atividade na região já desempenhada por grande parte das famílias. A poda é comum e feita pela demanda
de corredores de ar para permitir ao eucalipto “respirar”. As entrevistas confirmaram a relevância deste que é um dos elementos
de maior significância na composição da paisagem local. O eucalipto é um personagem fundamental na história da comunidade,
isso se deve a sua importância em um momento de transição, em que os habitantes da comunidade foram obrigados a interrom-
per por questões de caráter legal o desmatamento da mata nativa que inclui um fragmento de Floresta Estacional Semidecidual.
Diante desse novo contexto as famílias da comunidade iniciaram o plantio do eucalipto como uma nova fonte de renda, porém as
siderúrgicas ainda permaneciam como o grande fator motivador que impulsionava a comercialização da madeira.
A tabela 1 atesta a participação do eucalipto na constituição da comunidade, contudo o entrevistado 8, foi o único a não
possuir uma plantação de eucalipto. O motivo é devido às elevadas multas impostas pelo corte de árvores, sobretudo de espé-
cies nativas e o fato do eucalipto plantado na região favorecer a extinção de nascentes (entrevistado 8). Relevante parcela dos
entrevistados empenhou-se em retirar o mínimo necessário para estabelecer ali sua agricultura e pasto. O tamanho da área do
terreno não está sempre associado com uma variedade de produtos alta, visto que o entrevistado 1 e 5 apesar de não possuírem
a maior área, apresentaram uma diversidade de produtos10. Entretanto, o eucalipto além de comercializado como madeira de
escoramento destinada à construção civil, também é manipulado para a produção de mel local, durante a florada as abelhas -
espécie africanizada - são atraídas. A conservação de espécies nativas11 também contribuiu para a apicultura praticada na região,
e até mesmo a Brachiaria, espécie exótica, participa do processo de produção do mel.
O plantio de cana de açúcar também constitui a agricultura local, algumas famílias produzem garapa proveniente da
cana-de-açúcar, outra forma de aproveitar a cana de açúcar é misturar o que sobrou da cana após sua trituração com a ração
para o gado (o mais comum na região é o leiteiro), isso garante volume ao gado, assim como a Brachiaria plantada por algumas
famílias (entrevistado 2). Porém também foi possível observar pastos naturais, um dos entrevistados mantém sua criação, sobre-
tudo para não permitir que o pasto fique muito alto (entrevistado 8).

8
A agricultura na comunidade é caracterizada pela produção de subsistência, em raras ocasiões quando há excedente de produção, os produtos são comercializados
com famílias da comunidade ou de comunidades no entorno.
9
As espécies de eucalipto identificadas são denominadas como grande, branco, clonado e Urophylla. (entrevistados 1, 5 e 6)
10
Milho, inúmeras espécies frutíferas, por exemplo, abacate, laranja, morango, açaí, lichia, banana, limão, abacaxi, graviola, mexerica. Espécies aplicadas na
produção de chás: Melissa (tratamento de insônia), Gravatá (curar bronquite) e Cana-de-Macaco (tratar de inflamações).
11
Varão de São José, Assa Peixe, Folha miúda, Cachorro Magro, Alecrim do campo, e outras.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
256
Três das famílias entrevistadas criam peixes, as espécies Piau, Tilapia, Cará, Matrinxã e Bagre foram observadas nos
tanques, são alimentadas com ração e frutas produzidas no terreno das famílias, por exemplo, abacate e amora. Porém a criação
de peixe não remete apenas como uma fonte de proteínas às famílias, também têm o hábito de pescar como forma de distrair e
relaxar após os trabalhos rotineiros. A “camaradagem” (entrevistados 4 e 3) é usual entre algumas famílias, seja na produção do
mel ou na utilização do pasto12 de outra família, o manejo e as demais práticas por vezes são exercidas coletivamente, a capina
é um exemplo desse fato.
A coleta de musgo é outra atividade efetuada na região, porém esse tipo de atividade se restringe a um número bem
menor de famílias (entrevistado 8). A coleta do musgo na comunidade é uma das atividades de menor degradação da natureza,
a vegetação é retirada apenas nos locais onde se pretende criar trilhas que levem até o musgo. A fauna local, como a anta, par-
ticipa da construção das trilhas, pois esse tipo de animal na maioria dos casos procura por alimento em campos abertos, locais
onde comumente há musgo (entrevistado 8). A figura 2 mostra a localização da comunidade e das moradias dos entrevistados,
exibindo a classificação nas categorias propostas.
Diante da maneira como as famílias da comunidade fazem uso dos recursos disponíveis, do conhecimento que adquiri-
ram com seus antepassados (entrevistados 1 e 6), a população local por meio das suas práticas e saberes tradicionais promove
a conservação da natureza. Apesar de algumas famílias adotarem ações mais depredatórias, em sua maioria a população local
manifesta preocupação com a conservação da natureza e as práticas empregadas refletem essa inquietação, a baixíssima apli-
cação de insumos químicos é um dos fatores que corroboram com a forte relação da comunidade com a natureza e a biodiver-
sidade que a compõe.

Nesse caso é cobrada uma pequena quantia no valor de R$10,00 por cabeça de gado, entretanto segundo o entrevistado 4, o valor é muito abaixo do real valor a
12

comumente cobrado.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


257
Figura 2. (a) Localização da comunidade de André do Mato Dentro na SG (MELO, 2014). (b) Localização das moradias e
categorias dos entrevistados na área da bacia do córrego Maria Casimira, SG (Fonte: PENA, 2015).

Considerações para o porvir


A conservação da biodiversidade local foi verificada na área estudada da comunidade de André do Mato Dentro, o grau
de conservação presente na região se dá, sobretudo devido ao manejo e práticas desempenhadas pelos moradores da comuni-
dade. Entretanto, é evidente que alguns habitantes da comunidade contribuem com um maior número de práticas se compara-
dos a outros. Nossa investigação foi pautada na conservação da biodiversidade pelos habitantes da comunidade. Deve-se ressal-
tar que o número de práticas efetuadas por uma família, a diversidade de tais práticas, leva em consideração diversos aspectos,
como o próprio objetivo do habitante com as práticas, as características do solo e seu conhecimento para manejar as espécies.
A transmissão e utilização desses saberes por gerações ajudam a definir e construir a cultura das comunidades, contudo,
é possível que alguns conhecimentos tradicionais se percam, devido a novos contextos e desafios impostos pelo meio onde habi-
tam, ou caso haja alguma interferência sócioeconômica no local habitado pela comunidade como sustentado por autores como
Pereira & Diegues (2010). A preservação da natureza proporcionada por essas comunidades extrapola as técnicas desenvolvidas
durante gerações e empregadas no processo de manejo, considerando também os sentimentos produzidos pelos sujeitos que
podem variar de gratidão com a terra, sol, chuva e fauna, ou o próprio medo desses constituintes da natureza, mostrado em
estudos pelos autores citados.
Mas a própria postura política dessas populações protagonizando movimentos de reivindicação dos seus espaços de
vida e se apropriando dos instrumentos políticos disponibilizados pelas instancias de poder reforçam a sua relação com estes
lugares de vida que elas ajudaram a construir, proteger e preservar. Essa visibilização política alcançada por essas comunidades
reforçam e evidenciam a necessidade do debate sobre outras formas de conservação da natureza pautada na realidade local e na
manutenção da sociobiodiversidade. Formas essas que hoje, na Serra do Gandarela –MG, podem se concretizar na implemen-
tação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável reivindicada pelas comunidades rurais de seu entorno.

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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
260
O MOSAICO CARIOCA DE ÁREAS PROTEGIDAS E O MODELO DE
DESENVOLVIMENTO URBANO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Pena, Ingrid Almeida de Barros1 & Rodrigues Camila Gonçalves de Oliveira2

1. Associação de Amigos do Mosaico Carioca; 2. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Resumo
O mosaico de áreas protegidas é um instrumento criado no âmbito da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação, e tem sido discutido e implementado como um mecanismo de ordenamento e gestão do
território. O Mosaico Carioca é formado por 19 unidades de conservação, das três esferas governamentais. Possui a particulari-
dade de estar inserido no contexto urbano, situado no município do Rio de Janeiro, uma cidade que vem sofrendo transformações
na sua configuração geradas a partir de interesses diferenciados que raramente contemplam a conservação da biodiversidade.
Por meio de uma abordagem qualitativa, o objetivo da pesquisa é apresentar a contextualização socioespacial da área que
compreende o Mosaico Carioca, com destaque para a sua inserção na malha urbana, mais especificamente numa metrópole
fortemente associada ao modelo de desenvolvimento urbano neoliberal.

Palavras-chaves: Áreas Protegidas, Desenvolvimento, Mosaico Carioca

Introdução
O mosaico de áreas protegidas é um instrumento criado no âmbito da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e tem sido discutido e implementado como um mecanismo de ordenamento
e gestão do território. Os mosaicos são criados no caso da existência de um conjunto de unidades de conservação de catego-
rias diferentes ou não e outras áreas protegidas públicas ou privadas, justapostas ou sobrepostas. Estes espaços, destinados à
preservação e utilização sustentável da natureza pressupõem a gestão integrada de todas as unidades de conservação e demais
áreas protegidas, que possuam características ecossistêmicas em comum, pertencentes a diferentes esferas de governo ou não
(BRASIL, 2000).
Dentre os mosaicos criados desde 2002, o Mosaico Carioca, situado em sua maior parte no município do Rio de Janeiro,
com pequenas partes nos municípios de Nova Iguaçu e Nilópolis, tem a particularidade de integrar diversas UC em meio ao
espaço urbano. Foi reconhecido oficialmente em 11 de julho de 2011 pelo MMA, através da portaria de Nº 245. Tem cerca de
35.000 hectares, e a gestão das UC é realizada pelas três esferas governamentais (federal, estadual e municipal).
Imerso em um contexto urbano, o Mosaico Carioca além de ter como finalidade a conservação da biodiversidade, tam-
bém pretende funcionar como um instrumento de gestão do uso e ocupação do espaço, e neste sentido seus desafios são
acentuados por impactos diretos e indiretos de questões comuns às grandes metrópoles: segregação socioespacial, pressão e
especulação imobiliária, habitação, falta de saneamento básico, etc.
Este trabalho visa apresentar a contextualização socioespacial da área que compreende o Mosaico Carioca, com des-
taque para a sua inserção na malha urbana, mais especificamente numa metrópole fortemente associada ao modelo de desen-
volvimento urbano neoliberal, que busca facilitar a ação do mercado e abrir frentes de expansão do capital financeirizado, o que
influi nos usos e fluxos da cidade (ROLNICK, 2013).
O trabalho foi organizado em duas partes: a primeira consiste na caracterização do Mosaico Carioca, com a exposição
das UC que dele fazem parte e o processo de criação. Para a carcaterização deste mosaico foram utilizados como métodos pes-
quisa bibliográfica e análise de dados secundários. Para tratar do processo de criação, em virtude da inexistência de referências
bibliográficas para tal, utilizaram-se como fontes as informações coletadas em entrevistas realizadas na pesquisa de mestrado
de autoria de Pena (2015). A segunda parte compreende a análise da cidade do Rio de Janeiro na presente década (2010), num
cenário de “megaeventos, meganegócios, megaprotestos” (VAINER, 2013, p. 37), problematizando a forma como o modelo de
desenvolvimento urbano neoliberal adotado no âmbito da gestão pública municipal e estadual, vem acentuando a segregação e
viola os direitos à cidade. O método para esta parte foi pesquisa bibliográfica, a partir da contribuição principalmente de Sanchéz

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


261
(2012), Vainer (2013), Rolnick (2013) e Ferreira (2013).
A escolha por esta via teórica se deu por entender que os desafios (e potencialidades) na gestão das áreas protegidas
estão muitas vezes associados à interesses políticos em confluência com o modelo de desenvolvimento socioespacial instituído.

Caracterização do Mosaico Carioca


O Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, como foi formalmente nomeado, abrange cerca de 30% do território municipal
do Rio de Janeiro de importantes fragmentos florestais da Mata Atlântica: ecossistemas de restinga, mangue e floresta ombrófila
densa. A sua gestão é compartilhada entre as três esferas, sendo a federal pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), a estadual pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA/SEA), e a municipal pela Secretaria Municipal
de Meio Ambiente do Rio de Janeiro (SMAC). Conforme sua portaria de reconhecimento, o Mosaico Carioca é composto por 23
(vinte e três) UC, sendo 2 (duas) federais, 4 (quatro) estaduais e 17 (dezessete) municipais. Tal composição está representada
na Figura 1 e no Quadro 1.

Figura 1. Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, conforme portaria de reconhecimento, n° 245, de 11 de julho de 2011.
Fonte: Gerência de Gestão de Unidades de Conservação, SMAC, 2013.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
262
No decorrer de 2013, algumas UC foram recategorizadas e criadas para compatibilizar sua gestão com a real dimensão
e função da área. Os principais exemplos são: as APAs dos Morros do Leme e Urubu e Babilônia e São João e o Parque Estadual
da Chacrinha foram recategorizados para Parque Natural Municipal da Paisagem Carioca em junho de 2013 e em agosto de 2013
foi criado o Parque Estadual do Mendanha, que abrange grande parte da APA Gericinó/Mendanha.
Em junho de 2013 uma equipe do Ibase iniciou a execução do “Projeto Mosaicos da Mata Atlântica: Fortalecimento da
sociobiodiversidade da Mata Atlântica e apoio à gestão integrada de Mosaicos de Áreas Protegidas” (IBASE, 2013). Por intermé-
dio desta iniciativa, foi realizado o processo de constituição do conselho consultivo do Mosaico Carioca, incluindo a elaboração
de seu regimento interno e desenvolvimento dos planos de ação (2014 - 2016). Tais ações contemplaram a participação de
instituições e atores interessados, por meio de oficinas e outras dinâmicas. Neste contexto, foi formulada uma proposta de uma
nova composição do conselho consultivo, ampliada e paritária entre entes governamentais e organizações da sociedade civil,
envolvendo setores representativos da realidade na qual o Mosaico Carioca se insere. As representações foram legitimamente
eleitas e a proposta aprovada consensualmente pelos participantes (LOUREIRO et al., 2014). Assim, a formação do conselho
consultivo apresentada na portaria de 2011 passou a ser desconsiderada. Segundo Loureiro (2014, p. 2) , o conselho atualmente
“atende aos pressupostos democráticos definidos pelo Estado brasileiro de participação social e política, em espaços públicos,
do cidadão organizado coletivamente”.
Ainda segundo Loureiro et al. (2014), também era consenso entre os participantes que a portaria de 2011 não contem-
plava adequadamente o quadro atual de UC existentes, pois algumas foram reagrupadas ou recategorizadas – como exposto
anteriormente -, e outras não estão adequadamente implementadas e não atendem a critérios básicos para estarem em um mo-
saico (por exemplo, ausência de gestor responsável). Deste modo, foi elaborada uma proposta de uma nova portaria ministerial
para o Mosaico Carioca, contemplando as mudanças em relação à composição das UC (representado na Figura 2 e Quadro 2)
e do conselho consultivo. O documento foi enviado ao MMA no primeiro semestre de 2014, e até o momento em que o presente
trabalho foi concluído não houve resposta.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


263
Figura 2. Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, conforme proposta de portaria ministerial, elaborada em 2013.
Fonte: Elaborado Vivian Silva, outubro de 2014.

Atualmente a gestão do Mosaico Carioca está pautada na proposta de portaria, apesar desta não ter sido oficialmente
reconhecida pela MMA.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
264
O processo de criação
O Parque Nacional da Tijuca (PNT), inserido no Mosaico Carioca, é a UC mais visitada do Brasil, atingindo três milhões
de visitante em 2014 (PARQUE NACIONAL DA TIJUCA, 2015). Além disso, abarca um dos principais atrativos da cidade, e até
mesmo do país, o Corcovado. Nestas circunstâncias, para o cumprimento da adequação de infraestrutura turística e outras ativi-
dades de gestão da unidade, a gestão do parque vem realizando, desde 1999, Acordos de Cooperação de Gestão Compartilhada,
que consistem em instrumentos firmados entre esferas e órgãos governamentais para ações conjuntas no âmbito do Parque. Em
maio de 2009, o acordo supracitado, que já não havia sido renovado há quatro anos, foi assinado pelo então Ministro do Meio Am-
biente, Carlos Minc, e pelos representantes do Município do Rio de Janeiro, ICMBio, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Com-
panhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), Empresa Municipal de Vigilância S/A, com interveniência do MMA. Segun-
do G11, a revitalização do acordo se deu num momento favorável de alinhamento político entre o Prefeito Eduardo Paes, o então
Governador do estado, Sérgio Cabral e o então presidente da República, Luiz Ignácio Lula da Silva (informação verbal).
Ainda segundo G1, nesta ocasião, por iniciativa do então representante da SMAC na Gestão Compartilhada do PNT,
G2 , juntamente com Secretário Municipal de Meio Ambiente, Carlos Alberto Vieira Muniz (PMDB), foi incluída uma cláusula no
2

documento referente ao apoio à criação do Mosaico Carioca. Essa iniciativa mobilizou outros gestores de UC (das três esferas
governamentais) e outros funcionários dos órgãos ambientais. Assim, G1 e G2 consideram que um dos fatores essenciais para a
criação deste Mosaico está relacionado ao aprendizado no âmbito dos acordos de gestão compartilhada do PNT. G2 e G33 des-
tacam que a criação do Mosaico não foi uma demanda apenas política e institucional, pois a sua criação se deu muito em função
da vontade e disposição dos funcionários envolvidos na gestão das UC que compõem o mosaico (informação verbal).
Em 1° de março de 2010, durante as comemorações do aniversário do município do Rio de Janeiro, ocorreu na cidade o
lançamento do Mosaico Carioca, oficializado pelo então Ministro Carlos Minc. Entretanto, apesar da solenidade, a portaria do
Mosaico Carioca só foi reconhecida mais de um ano depois. Isto porque, a ideia inicial, manifestada na minuta de portaria, era in-
serir outras áreas protegidas urbanas4, e não apenas unidades de conservação. Assim, a primeira proposta elaborada pelo grupo
contemplava na composição do Mosaico o Jardim Botânico do Rio de Janeiro e a Reserva Florestal da Vista Chinesa. Contudo,
para G3, apesar do empenho do então Ministro do Meio Ambiente (informação verbal), a composição de áreas protegidas não
foi aceita pelo MMA.
G3 aponta que a restrição indicada pelo MMA se deu também em relação à composição do conselho consultivo, que foi
considerada inovadora por contemplar segmentos que a princípio não tinham uma ligação direta com as áreas protegidas do
Mosaico, mas com a gestão urbana como um todo.
Após alterações na portaria, esta foi oficialmente reconhecida em 11 de julho de 2011, contando exclusivamente com
unidades de conservação na sua composição. O conselho consultivo somente foi oficialmente instituído em janeiro de 2014 e tem
se reunido com frequência. Tem como forma de organização e estrutura quatro instâncias: a plenária, o colegiado coordenador,
as câmaras temáticas e o núcleo de apoio.
Com os recursos oriundos da emenda parlamentar, em 2014 o Mosaico Carioca adquiriu recursos humanos (um secre-
tário executivo e dois estagiários), um veículo e mobiliário para escritório e equipamentos. Não foi obtido, entretando, o mesmo
valor das emendas de 2014 em 2015, e, atualmente (julho de 2015), o Mosaico Carioca busca novas fontes para manter sua
estrutura organizacional.
É certo que o Mosaico Carioca está sujeito as mais diversas apropriações, sobretudo relacionadas à interesses políticos
e econômicos. É uma área de visibilidade inquestionável no âmbito das políticas ambientais no país, sobretudo quando o assunto
é parques urbanos e mata atlântica. Por outro lado, está inserido em uma metrópole que cresceu sem o devido planejamento,
pautada em interesses econômicos que comumente negligenciam questões como mobilidade urbana, habitação, acesso aos
espaços de lazer. No próximo item serão apresentados alguns marcos no processo de uso e ocupação do espaço de áreas
caracterizados por contradições e privilégios em relação à determinadas escolhas.
1
Representante do Núcleo de Apoio ao Mosaico Carioca (SMAC). Depoimento [dezembro, 2014]. Entrevistadora: Ingrid Pena. Rio de Janeiro, 2014. 1 arquivo.mp3
(1h26min).
2
Ex Secretário Executivo do Mosaico Carioca. Depoimento [setembro, 2014]. Entrevistadora: Ingrid Pena. Rio de Janeiro, 2014. 1 arquivo.mp3 (24min).
3
Servidora INEA que participou do processo de criação do Mosaico Carioca. Depoimento [outubro, 2014]. Entrevistadora: Ingrid Pena. Rio de Janeiro, 2014. 1 arquivo.
mp3 (17min).
4
Foram mencionados nas entrevistas: Parque de Madureira, Quinta da Boa Vista, Aterro do Flamengo, Jardim Botânico, Parque Tom Jobim e Reserva Florestal da
Vista Chinesa.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


265
A cidade do Rio de Janeiro na década de 2010
No Brasil, a questão urbana, mais especificamente a agenda da reforma urbana, foi pauta importante das lutas sociais no
âmbito das esferas municipais nos anos 1980 e início dos anos 1990. Contudo, esta agenda foi abandonada pelo poder público
dominante (ROLNICK, 2013), e um novo ideário de cidade, que facilita a ação do mercado e abre frentes de expansão do capital
financeirizado, foi adotado por formuladores de políticas urbanas, sendo a cidade do Rio de Janeiro um dos principais modelos
no país.
A principal característica desta nova concepção de cidade e de governo urbano é a inspiração neoliberal, em que as
cidades passam a ser entendidas como empresas, tendo o seu planejamento privatizado, a execução de obras e a transferência
de bairros inteiros para o controle privado, a terra urbana como refém dos interesses do capital imobiliário (mesmo que para isso
leis tenham que ser flexibilizadas ou modificadas), e a concorrência entre as cidades pela atração de capitais e eventos (SAN-
CHÉZ, 2012; VAINER, 2013). Neste contexto,

(...) o êxito do governo brasileiro, em especial, do Executivo municipal da cidade do Rio de Janeiro
em conquistar a condição de país-sede da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos Rio-
2016 pode ser tomado como exemplo da produção dessa política-espetáculo (SANCHÉZ, 2012).

Ferreira (2013) considera que estamos passando por um processo de banalização do espaço urbano, materializada em
uma urbanização banalizada (p. 29), centrada em modelos de sucesso internacional que abrangem propostas de revitalização5
de áreas centrais e portuárias, e a partir disto, investimentos em infraestrutura voltada para a atividade turística e para espaços
residenciais e de negócios para as classes alta e média. Para o autor, este formato se repete em várias cidades, inclusive no Rio
de Janeiro, e neste contexto indica ainda que as atuais decisões e investimentos governamentais, que geram grandes transforma-
ções socioespaciais, consolidam a segregação na cidade, pois são em sua maioria direcionadas ao favorecimento das classes
mais abastadas e aos turistas.
Vainer (2013) defende que este modelo de cidade

(...) aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de quarenta
anos de desenvolvimentismo excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou ine-
xistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento
e custos crescentes de um transporte público precário e espaços urbanos segregados (p. 39).

No âmbito do município do Rio, tendo em vista a sua visibilidade turística nesta década de megaeventos esportivos,
alguns dos problemas citados pelo autor foram mais acentuados e evidenciados, tendo como destaque as remoções forçadas,
que consistem basicamente na mudança de famílias pobres que vivem em áreas centrais para a periferia, com oferta precária
de serviços básicos, como transporte, baixo valor de indenizações e forte pressão da especulação imobiliária, numa tentativa de
“maquiar” a cidade, buscando “esconder” a pobreza e a criminalidade (VAINER, 2013; COSENTINO, 2013). Além desta questão,
Vainer (2013) indica também como problema latente os monopólios para a concessão de prestação de serviços que ferem os
direitos do consumidor.
Neste cenário de megaeventos e meganegócios, em 2013, sucederam-se também os megaprotestos (VAINER, 2013),
não só no Rio de Janeiro, mas também em outras cidades cujas populações arcam com os custos da adoção do modelo de cidade
neoliberal. Para Rolnick (2013), as grandes manifestações que despontaram foram resultado de uma nova geração de movimen-
tos urbanos descontentes com a mercantilização das cidades.
Segundo Ferreira (2013), alguns qualificaram as manifestações como uma festa, desprendida de consciência política,
enquanto outros chegaram a imaginar uma grande revolução. Entretanto, o autor aponta como indubitável a conexão das mani-
festações com a questão das relações de poder presentes nas cidades, isto é, o autoritarismo, a prepotência dos governantes e
o desrespeito à dignidade da população no que se refere a prestação de serviços (p.13). Vainer (2013) também associa os pro-
testos ao contexto propiciado pelos maciços investimentos urbanos em obras relacionadas à Copa do Mundo (2014), e no caso
do Rio de Janeiro, também aos jogos olímpicos (p. 37).

5
Para o autor, “Revitalização e renovação sao palavras – e políticas - que produzem às vezes inquietações, ja que significam, frequentemente, destruir e reconstruir”
(FERREIRA, 2013, p. 24).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
266
No que tange à temática ambiental, segundo o dossiê elaborado pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Ja-
neiro (2013), os principais casos de degradação ambiental são a implantação dos corredores viários Transcarioca, Transolímpica
e Transoeste, os processos de remoção de comunidades sob a justificativa ambiental e a construção de um Campo de Golfe em
uma área protegida. Este artigo se limitará na explanação sobre o caso da construção do Campo de Golfe Olímpico, pois envolve
a flexibilização da base legal que deveriam contribuir para a consolidação de áreas protegidas e ilustra o posicionamento dos
governantes em relação às questões referentes à conservação da biodiversidade na cidade do Rio.

A construção do Campo de Golfe Olímpico


Pacote Olímpico é o nome dado ao conjunto de leis que mudaram expressivamente as normas urbanísticas da cidade em
2010 e 2012, em especial para hotéis e para a Zona Portuária. Dentre as transformações socioespaciais decorrentes da alteração
de leis anunciada no âmbito do Pacote Olímpico, tidas como necessárias pelo poder público, está a construção de um Campo
de Golfe Olímpico no bairro Barra da Tijuca, que acolherá esta atividade esportiva recém-incluída nos Jogos Olímpicos, e deverá
ser operado por meio de parceria público privada.
O grande problema desta construção é que maior parte do campo de golfe se encontra na Área de Proteção Ambiental
(APA) Marapendi, que abarca o Parque Natural Municipal de Marapendi, e é dividida pelo zoneamento ambiental, com locais
de grande restrição para ocupação mais próximos à Lagoa de Marapendi, que serve de abrigo para diversas espécies nativas,
e de restrição menor, gradativamente diminuídos até à Avenida das Américas, onde está sendo construído o campo. Como parte
do Pacote Olímpico, recentemente divulgado, o Projeto de Lei Complementar 113/2012 permitiu o aumento da área destinada ao
campo, alterando o zoneamento ambiental para zona com menor restrição de uso (FILIPO, 2014), isto é, alterou o Zoneamento
Ambiental da Área de Proteção Ambiental de Marapendi e alterou os limites do Parque Natural Municipal de Marapendi. A Figura
3 mostra construção do campo de golfe.

Figura 3. Campo de Golfe Olímpico em no final de 2014. Fonte: Coimbra (2015).

Nestas circunstâncias, um grupo organizado da sociedade civil, denominado “Golfe para Quem?” tem promovido o
debate acerca da situação e denunciado as irregularidades, através de redes sociais. O caso também envolve protestos e ocu-
pações de ativistas que exigem o embargo das obras, respaldados pelo Ministério Público.
Além do descumprimento e de alterações de legislações ambientais, a implementação do campo de golfe envolveu
outras questões polêmicas, como a destinação dos recursos financeiros municipais6 e o fato de já haver um campo de golfe no
mesmo bairro, o Itanhangá Golg Club. Entretanto, não foi considerada na possibilidade deste ser o campo de golfe dos jogos
olímpicos, apesar de ser um dos dois campos de golfe com 18 buracos existentes no Rio, entre os 100 melhores campos de golfe
fora dos Estados Unidos, segundo a lista do Golf Digest (HODGES, 2014).
Os debates suscitados a respeito deste empreendimento também recaem sobre o fato de que o mesmo grupo - Prefeito
do Rio, o Secretário Municipal de Meio Ambiente e a bancada de vereadores – que apoiou a criação do campo, aprovou o Plano
6
R$60 milhões, investido pelo parceiro privado – Fiori Empreendimentos -, sendo que o custo médio de um campo de golfe com 18 buracos é menos que R$10 milhões

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


267
Diretor da Cidade em 2011, que condena quaisquer alterações de parâmetros urbanísticos nas UC da cidade. Assim, o Pacote
Olímpico e o Plano da Cidade são incompatíveis (REDONDO, 2014). Esta situação exemplifica a fragilidade da legislação urba-
na-ambiental. Nos últimos anos, a Barra da Tijuca tem experimentado um intenso crescimento populacional proporcionado por
investimentos para grandes empreendimentos imobiliários residenciais e comerciais, que não representam, em nada, o interesse
coletivo. Recentemente, alguns destes empreendimentos, em construção, têm como pano de fundo de marketing, o campo de
golfe. Um exemplo está ilustrado na propaganda abaixo (Figura 4):

Figura 4. Propaganda em um condomínio em construção próxima ao Campo de Golfe Olímpico Fonte: IMOVEISDELUXO (2015).

Assim, em vias de se tornar realidade, estando 60% da construção concluída (HODGES, 2014), o projeto tem, conveni-
entemente, superado todos os potenciais bloqueios, desde os regulamentos sobre o uso da terra até as leis de proteção am-
biental. Ferreira (2013) relembra que as transformações socioespaciais imprimidas na cidade justificadas pelos megaeventos
expressam e atualizam de forma intensa o ideário de cidade vigente.
Crê-se oportuno notar que este é apenas um dos casos, dentre muitos, que não contemplam a conservação das áreas
naturais da cidade, promovem a segregação socioespacial, afetam a dinâmica territorial e transformam a paisagem da cidade
em prol de interesses específicos do capital imobiliário.

Considerações finais
Este trabalho teve como finalidade apresentar o contexto socioespacial da área que compreende o Mosaico Carioca, com
destaque para a sua inserção na malha urbana. No atual contexto da cidade de alta atratividade de investimentos, coube analisar
sucintamente o caráter neoliberal de desenvolvimento presente nos projetos do Rio de Janeiro, na esfera de uma economia sim-
bólica que afirma visões padronizadas de uma cidade competitiva.
O contexto urbano no qual o MC está inserido exerce influência no desenvolvimento das relações sociais e político-
institucionais que o sustentam, e também nos impactos ambientais sofridos (naturais e antrópicos). Especificamente na década
de 2010, num cenário de “megaeventos, meganegócios, megaprotestos” (VAINER, 2013, p. 37), os interesses e intervenções
espaciais que envolvem a cidade estão ainda mais conflituosos e impactantes. Vainer (2013) destaca o autoritarismo presente nas
relações instituídas entre os governantes e os cidadãos, repercutida no desrespeito à dignidade da população no que se refere
a prestação de serviços e nos maciços investimentos urbanos em obras relacionadas à Copa do Mundo (2014), e no caso do Rio
de Janeiro, também aos jogos olímpicos (2016), que resultam da segregação socioespacial na cidade.
Entendendo que na reprodução socioespacial da cidade estão representados interesses emanados de distintas institui-
ções e organizações, expressos nas relações sociais em diferentes tempos históricos, infere-se que a reprodução espacial do
MC, inserido na cidade do Rio de Janeiro, em termos materiais e imateriais, perpassa por meandros da produção do espaço
urbano. Assim, sofre influência e controle socioespacial comuns a uma grande metrópole, que vão desde a pressão de grandes
empreiteiras até o avanço e pressão espacial de favelas.

Referências
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MMA, 2000.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
268
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HODGES, E. O Campo de Golfe Olímpico do Rio Esmagará uma Preciosa Área Ecológica Protegida. RIOONWATCH
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IMOVEISDELUXO. Riserva Golf. Disponível em < http://www.imoveisdeluxo.com.br/riserva-golf-vista-mare-residenziale.asp>


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ponível em < http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1174> Acesso em 18 agosto 2013.

VAINER, C.B. Quando a cidade vai às ruas. In: HARVEY, D. et al. (Orgs.) Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações
que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


269
DESAFIOS AMBIENTAIS AO DESENVOLVIMENTO: A EVOLUÇÃO DA GESTÃO
AMBIENTAL PÚBLICA NO AMAZONAS (2003-2015) E AS MUDANÇAS GLOBAIS

Pereira, Henrique dos Santos1 & Vasconcelos, Ademar Roberto Martins de2

1.Universidade Federal do Amazonas, henrique.pereira.ufam@gmail.com 2. Universidade Federal do


Amazonas, ademar.vasconcelos84@gmail.com

Resumo
Objetivou-se analisar a trajetória e a efetividade das políticas públicas estaduais de meio ambiente do Amazonas, a partir de 2003,
particularmente daquelas relacionadas aos setores de florestas e mudanças no uso do solo, de unidades de conservação e de
manejo de recursos pesqueiros. No período analisado, apesar do pouco investimento de recursos próprios, houve significativos
avanços nestes setores, com a criação de órgãos especializados e de marcos legais em âmbito estadual. No entanto, nos últimos
anos, a agenda ambiental foi perdendo o espaço político anteriormente conquistado, culminando com a reforma administrativa
em 2015. Atualmente, o aumento da frequência de eventos climáticos extremos vem desencadeando uma nova crise socioambi-
ental e que requer a inovação de políticas públicas capazes de favorecer, no plano local, a adaptação das comunidades rurais e
urbanas a essas mudanças ambientais globais.

Palavras-chave: Política Pública, Gestão Ambiental, Governo Estadual, Mudanças Globais.

Introdução
Avaliação da efetividade e eficiência das políticas públicas (PPs) se justifica como parte da prestação de contas e da res-
ponsabilização dos agentes estatais, ou seja, como elemento central da accountability (FARIA, 2005). Trata-se, portanto, de uma
ação política essencial para a boa governança com impactos sobre a questão do controle e da inclusão social. Reconhecendo
que o avanço dos processos de descentralização da gestão ambiental no Brasil vem conferindo maior importância para as ações
em nível estadual, este estudo teve como objetivo avaliar o desempenho do governo do Amazonas na formulação e implantação
de políticas públicas ambientais no período que compreende as últimas quatro gestões. Em outras palavras, se busca o entendi-
mento sobre “como e por que o governo faz ou deixa de fazer alguma ação que repercutirá na vida dos cidadãos” (SOUZA, 2006),
neste estudo, mais especificamente, as ações do governo estadual que visam promover a proteção e a qualidade ambiental no
Amazonas. Através de interpretações de estudos acadêmicos independentes e da análise de dados publicados pelos órgãos
governamentais, foram avaliadas a evolução das políticas e da estrutura de governo dedicada à área ambiental e a efetividade
das PPs dos setores de floresta e mudança do uso do solo, do manejo pesqueiro e de áreas protegidas. Discute-se ainda a par-
ticipação do governo estadual no financiamento da implantação dessas políticas. Por fim, se faz um alerta sobre a necessidade
da formulação e efetivação de novas políticas que enfrentem m âmbito local, a emergente crise ambiental desencadeada pelas
mudanças climáticas.

Evolução das Políticas e gestão públicas ambientais no Amazonas


Com 98,6% de cobertura nativa e 55% do território em Áreas Protegidas, o Amazonas representa hoje a maior contribuição
(87,6 milhões de ha) para as salvaguardas ambientais do desenvolvimento econômico do país. Dessas áreas, 21,4% estão dire-
tamente sob a gestão estadual. No entanto, foi somente a partir de 2003 que o Estado passou a formular suas políticas públicas
(PPs) para o setor ambiental. O governo eleito naquele ano passou a assumir um discurso público que claramente buscava
posicionar a questão ambiental associada à noção de desenvolvimento sustentável como tema principal das políticas públicas
de governo. Para expressar essa orientação política, o programa de governo foi denominado de “Zona Franca Verde” (ARAUJO;
PAULA, 2009; CEPAL; AMAZONAS, 2010). A nova política estadual de meio ambiente ganhou maior estatura com a criação da
Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SDS), criada pela lei delegada n° 66 de maio de 2007. O
novo órgão integrante da administração direta do poder executivo do Amazonas tinha como a finalidade de formular e coordenar
as políticas estaduais de meio ambiente e de recursos hídricos, visando à promoção do desenvolvimento sustentável.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


271
A SDS atuava em articulação com as suas autarquias vinculadas: Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM),
Agência de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (ADS), Companhia de Gás do Amazonas (CIGÁS) e com os conselhos:
Conselho Estadual de Meio Ambiente (CEMAAM), Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH) e Conselho Estadual de
Geodiversidade do Amazonas. No âmbito do Sistema foi criada ainda a Unidade Gestora do Centro Estadual de Mudanças
Climáticas (CECLIMA) e do Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC) (Lei nº 3244).
Objetivando desenvolver o setor florestal, o governo estadual buscou implantar uma política florestal baseada no desen-
volvimento sustentável de produtos florestais. A Lei Estadual No. 3.527 de 2010 definiu as regras para concessões florestais nas
Unidades de Conservação de Uso Sustentável denominada Florestas Estaduais, com o objetivo de regulamentar o uso múltiplo
sustentável dos recursos florestais e serviços ambientais, pesquisa científica e o desenvolvimento sustentável de comunidades
tradicionais que vivem dessas áreas (SILVA; PEREIRA, 2015). Encontram-se inseridas no Cadastro Nacional de Florestas Públi-
cas (CNFP) oito Florestas Estaduais, totalizando 2.881 milhões de hectares de Florestas Públicas Estaduais. Agência de Desen-
volvimento Sustentável do Amazonas – ADS , empresa pública criada em 18 de maio de 2007, através da Lei Delegada nº 118, era
vinculada a SDS, ficou sendo responsável pela parte de comercialização dos produtos florestais (madeireiros e não madeireiros).
No entanto, apesar do enorme potencial, até o presente, nenhuma iniciativa mais efetiva foi adotada pelo Estado no sentido de
implantar a política de concessões florestais.
Baseado nas peculiaridades locais, o governo estadual elaborou legislação própria para o uso dos recursos de suas flo-
restas nativas. A IN SDS nº 005, de 26 de fevereiro de 2008 e a IN SDS nº 002, de 11 de fevereiro de 2008, definem três categorias
de manejo florestal: Plano de Manejo Florestal Sustentável - PMFS de Maior Impacto de Colheita, PMFS de Menor Impacto de
Colheita e PMFS em Pequena Escala (AMAZONAS, 2008; SILVA, 2014). Em termos regionais, o incentivo ao manejo de pequena
escala alcançou, no Amazonas, a sua maior expressividade, como será visto mais adiante.
Todavia, o tema florestal no Amazonas está disperso numa complicada estrutura administrativa que lida com vários outros
temas e com uma coordenação incipiente. Além disso, os núcleos temáticos responsáveis internamente pelo tema (formulação
de política, licenciamento, assistência técnica e extensão, implementação e manejo das unidades de conservação, efeitos climáti-
cos etc.) constituem-se como órgãos fechados de um sistema que deveria atuar de forma aberta e interconectada. De acordo
com um estudo de proposições realizado pela própria Secretaria, constatou-se que existia escassa interação entre esses núcleos,
diluindo-se a visão sistêmica e impedindo-se uma atuação orgânica aberta, capaz de constituir a força e a identidade temática
no âmbito da instituição. Perdia-se, portanto, o foco no âmbito interno da Secretaria no processo de implementação e execução
da política de florestas, e, em consequência, não se alcançando a visibilidade que o extenso, volumoso e denso capital natural
florestal do Estado por só si representa (AMAZONAS, 2012).
Com a Lei Estadual 3.135 de 05 de junho de 2007 que criou a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas, Conservação
Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, o Estado do Amazonas se antecipa à Política Nacional de Mudanças
Climáticas. A referida lei criou ainda o Fundo Estadual de Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável e o Centro Estadual de Mudanças Climáticas (CECLIMA) no âmbito da Secretaria do Meio Ambiente e Desen-
volvimento Sustentável (SDS), considerado o primeiro centro governamental especializado em articular e implementar políticas
públicas sobre mudanças climáticas no país (AMAZONAS, 2009).
Nessa lei, foram definidas as bases legais do Programa Bolsa Floresta e o conceito de produtos e serviços ambientais.
Esse marco legal serviu também de base para a criação da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) através de um inovador
arranjo institucional, em dezembro de 2007. A FAS tem o objetivo de fazer a gestão dos produtos e serviços ambientais das
unidades de conservação estaduais e a gestão do programa Bolsa Floresta (VIANA, 2008). Estes marcos legais fornecem uma
estrutura legal promissora para a implementação de iniciativas de REDD+1 dentro de UC estaduais no Amazonas. Além disso,
o Amazonas estabeleceu o seu Plano Estadual de Prevenção e Combate ao Desmatamento no Amazonas - PPCD-AM que prevê
medidas efetivas para a redução dos índices de desmatamento, mediante a criação de áreas protegidas, o ordenamento territo-
rial, a fiscalização ambiental, a gestão de florestas públicas, entre outros. (CENAMO; CARRERO, 2011). No entanto, a política
estadual assim como política nacional ainda não dispõe de regulamentação quanto aos incentivos financeiros e tributários de
modo a ampliar e diversificar o alcance desses incentivos às práticas produtivas sustentáveis de modo a torná-las economica-

1
A sigla para Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD). O sinal + inclui “o papel da conservação, do manejo sustentável
e do aumento de estoques de carbono nas florestas”.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
272
mente mais vantajosas do que aquelas associadas ao desmatamento (SILVA, 2013).
A partir de 2011, com a mudança de governo, observou-se uma mudança significativa no discurso do Governo Estadual
quanto à temática do desenvolvimento sustentável e do enfrentamento das questões ambientais. O tema perdeu centralidade no
discurso oficial, tornando-se praticamente imperceptível, com repercussões na prática. Por exemplo, houve uma clara redução
no ritmo de ampliação das áreas protegidas estaduais, seguindo a mesma tendência obervada no âmbito do setor ambiental fe-
deral. Essa mudança se concretizou com a extinção da SDS, do CEUC e do CECLIMA pelo governo eleito em 2014, passando as
atribuições desses órgãos a serem exercidas diretamente pela nova Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA-AM), criada
em 09 de março de 2015.

Uso da Terra, Mudança no Uso da Terra e Florestas


O papel das atividades que envolvem mudanças no uso da terra na mitigação das mudanças climáticas tem sido am-
plamente reconhecido. A mitigação das mudanças climáticas pode ser conseguida através do incentivo de atividades neste setor
que aumentem as remoções de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera ou diminuam as emissões por fontes que conduzem
a um acúmulo de estoques de carbono. Uma característica importante dessas atividades, neste contexto, é a sua reversibilidade
potencial, portanto, não permanência dos estoques de carbono acumuladas. Os padrões de desmatamento (conversão do solo
florestal a outros usos que não mantenham a cobertura nativa) e do manejo florestal sustentável (que matem a floresta) no Estado
podem indicar as tendências de mudanças no uso do solo na região assim como a contribuição do setor agrícola e florestal para
as mudanças climáticas globais.
Desmatamento - O Amazonas é o quarto estado com a maior área desmatada. Ao analisarem-se os dados da estimativa
da taxa anual de desmatamento para o Amazonas e para total da região, entre o período de 2003 a 2014, período de vigência
do PPCDAM (BRASIL/MMA, 2015), observa-se que até 2009 o Amazonas acompanhava o ritmo contínuo de desaceleração do
desmatamento detectado para a região como um todo (Figura 1). Nos últimos seis anos, o desmatamento anual no Estado oscilou
entre 400 a 600 km2/ano, sem demonstrar sinais de que haveria uma retomada da tendência de desaceleração.
Segundo Fonseca et al. (2014), o desmatamento na Amazônia Legal acumulado no período de agosto de 2013 a maio de
2014, correspondendo aos dez primeiros meses do calendário atual de desmatamento, totalizou 846 quilômetros quadrados.
Houve redução do desmatamento acumulado de 49% em relação ao período anterior (agosto de 2012 a maio de 2013) quando o
desmatamento somou 1.654 quilômetros quadrados.

Figura 1. Evolução da taxa de desmatamento do Estado do Amazonas e da Amazônia Legal segundo dados do PRODES/INPE (2003-2014).

Esta mudança na dinâmica de queda do desmatamento no Estado está associada principalmente com o crescimento
do desmatamento nos municípios localizados na região sul, sob a influência das BR-230 (Transamazônica) e BR-319 (Figura 2).
Dentre estes municípios estão Lábrea e Boca do Acre, os únicos dois municípios amazonenses que consta da lista de municípios

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


273
prioritários do programa, ocupando a 51ª e 52ª posição no ranking de prioridades (BRASIL/MMA, 2015).

Figura 2. Evolução da área desmatada em Municípios do Amazonas com mais 1.000 km2 de desmatamento em área
de fronteira agropecuária em expansão.

De modo contrário, observa-se que dentre os municípios com mais 1.000 km2 de área desmatada, naqueles localizados
na região central do Estado (Itacoatiara, Maués, Autazes, Manaus e Careiro), há uma tendência de crescimento muito menos
acelerada da área desmatada acumulada. Essa região pode, então, ser considerada como uma região de fronteira agropecuária
consolidada.
Manejo Florestal (MF) - Os planos de manejo florestal sustentável de pequena escala (PMFSPE) diretamente incentiva-
dos pelo Governo do Amazonas começaram a ser implantados, em 2003, nos municípios da região do Alto Solimões e em Maués.
Até abril de 2007, mais de 50% dos municípios já haviam sido contemplados com PMFSPE. A política estadual de incentivo ao
manejo florestal de pequena escala no âmbito do Programa Zona Franca Verde, previa ações que iam desde a simplificação de
normas para o MF até o direcionamento de uma agência de assessoria técnica do estado ao apoio direto à elaboração de planos
de manejo florestal de pequena escala. Com esse enfoque, o estado do Amazonas elevou em 84% o número de iniciativas de MF,
passando de 422 planos de MF protocolados em 2007 a 775 planos de MF protocolados em 2009/2010. A grande maioria (80%)
desses planos de MF foi elaborada via órgão estadual de assessoria técnica – o Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e
Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM) (PINTO; AMARAL NETO, 2011).
No entanto, dos 692 pedidos de autorização de PMFSPE protocolados até 2007, apenas 263 (38%) foram licenciados e 97
(14%) foram explorados. Esta diferença entre os planos protocolados, licenciados e explorados se deve às várias dificuldades
que surgiram no processo de implantação do programa que se relacionavam principalmente ao fato do órgão de licenciamento
ambiental do Estado, o IPAAM, demorar a emitir as Licenças de Operação e as Autorizações para Transporte de Produtos Flo-
restais, à falta de recurso dos produtores, à informalidade histórica do setor madeireiro no Estado e à própria adaptação dos
produtores às novas formas de trabalho exigidas para se fazer o Manejo Floresta Sustentável (PIRANI, 2007).
Em estudo recente realizado na RDS do Rio Negro por Silva (2014), os dados de produção e rendimento apontam que,
por safra, cada família chega a auferir uma renda líquida de R$4.320,00. Problemas na condução das atividades florestais ainda
existem, como baixo preço da madeira no mercado local, falta de transporte terrestre para retirar a madeira de dentro da área
de manejo, sazonalidade do rio, demora no processo de licenciamento ambiental, entre outros, mas que aos poucos, vem sendo
superados.
Takeda (2015) analisou 2.459 planos de manejo florestais autorizados pelos Estados na Amazônia Ocidental durante os
anos de 2007 a 2013. No Amazonas, foram registrados 833 planos, correspondendo a um total de 3.9993,40 mil m3 de volume de
madeira autorizados. Quanto aos tamanhos das propriedades ou posses rurais com manejo florestal autorizado, observou-se a
absoluta maioria (90,3%) era conformada por imóveis com área menor que 500 ha, indicando a forte influência da política florestal
estadual que incentiva a exploração florestal segundo a modalidade de pequena escala.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
274
Manejo sustentável da pesca - No âmbito do setor da pesca extrativa de águas interiores, o Amazonas é pioneiro no
desenvolvimento de políticas públicas. A principal espécie manejada é o pirarucu (Arapaima spp.), maior espécie de peixe
de escamas de águas doce, podendo atingir mais de dois metros de comprimento e pesar mais de 150 Kg. Apresenta ampla
distribuição na Bacia Amazônica, havendo registros no Brasil, Peru, Colômbia, Equador e Guiana. Alvos de intenso esforço de
pesca, as populações do pirarucu estão em declínio na maior parte da Amazônia. No ano de 1999, o IBAMA autorizou a comer-
cialização de oriundo deste modelo de manejo. Em 2004 e 2005, o IBAMA publicou Instruções Normativas N°34/2004, ratificando
a proteção do período reprodutivo da espécie, e N°01/2005, que proibiu a pesca no estado do Amazonas e definiu os critérios
e procedimentos para o manejo dos pirarucus. Na esteira desta experiência de manejo inaugurada em Mamirauá, em outros
locais, foram criados sistemas de manejo nos mesmos moldes. Atualmente, existem 12 áreas de manejo de pirarucu no estado
do Amazonas. A produção de pirarucus neste sistema de manejo evoluiu de três toneladas em 1999, saltando para 727 toneladas
em 2009 (BESSA; LIMA, 2010).
Dentre os principais avanços alcançados estão: a regularização da pesca comercial de pirarucu, proibida no estado do
Amazonas a partir de 1996 (Portaria n° 8 de 2 de fevereiro de 1996); o aumento anual médio na população de pirarucu em 25%,
nas áreas de manejo; o aumento anual médio na renda gerada em 29%; e o reconhecimento conferido ao grupo de pescadores
pela prática de ações sustentáveis ecologicamente. Estudo recente aponta que a atividade gera uma receita média líquida de
R$ 1.402,30 por pescador para dois meses de trabalho. Esse retorno financeiro demonstra que o manejo de pirarucu tem trazido
uma contribuição significativa para a população diretamente envolvida nas atividades de pesca manejada. (FIGUEIREDO, 2013).
Áreas protegidas – Na Amazônia Legal, de acordo com os dados oficiais, até 2010, as áreas protegidas correspondiam
a 43,9% da região, sendo metade em Unidades de Conservação e metade em Terras Indígenas (VERÍSSIMO et al., 2011). Propor-
cionalmente, o Estado com mais áreas protegidas seria o Amapá e o com menor área seria o Estado do Mato Grosso. Em termos
absolutos, o Estado com maior área protegida é o Estado do Amazonas, seguido do Estado do Pará que juntos correspondem a
66,6% das áreas protegidas da região.
A Lei estadual Complementar N°. 53, de 05 de junho de 2007, regulamentou o inciso V do Artigo 230 e o §1. do Artigo
231 da Constituição Estadual, instituindo o Sistema Estadual de Unidades de Conservação (SEUC). Desde então os processos
de criação, implantação e gestão das Unidades de Conservação Estaduais passaram a ser executados pelo Centro Estadual
de Unidade de Conservação (CEUC) que fez parte do sistema da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável (SDS).
Por iniciativa do CEUC e suas instituições vinculadas, o Estado do Amazonas expandiu em aproximadamente 10 milhões
de hectares a área legalmente protegida na forma de unidades de conservação. Desde a criação da Secretaria em 2003, essa
modalidade de espaço territorial especialmente protegido no Amazonas aumentou de 7,4 para 18,8 milhões de hectares, quase
triplicando o número de UC, que aumentou de 12 para 41 em 2009, totalizando nove UC de proteção integral e 32 de uso sus-
tentável. A preferência por UC do grupo de uso sustentável, especialmente as reservas de desenvolvimento sustentável (RDS),
é uma característica marcante da política de áreas protegidas estudais. Foi no Amazonas que surgiu a categoria e primeira RDS
do país, criada em 1996. Mais tarde, a categoria foi recepcionada na lei federal 9.985/2000 que institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (SNUC).
Desde a criação da Secretaria em 2003, a área afetada por regimes especiais de proteção ambiental aumentou de 7,4
para 18,8 milhões de hectares. Este aumento triplicou o número de UC, que aumentou de 12 para 41 em 2009. Deste total, ape-
nas nove são UC de proteção integral e 32 de uso sustentável. Atualmente, o estado do Amazonas conta com 87,6 milhões de
hectares de áreas protegidas que correspondem a 56% do território do Estado e 10,3% do território Nacional. A maior parte delas
consiste em Terras Indígenas.
Apesar do significativo avanço no número e na cobertura territorial das UC no Estado do Amazonas, o nível de implemen-
tação dessas áreas protegidas é considerado baixo. Estudo realizado em 34 UC estaduais no Amazonas indicou que a média da
efetividade de gestão dessas UC é de 43% (WWF-BRASIL, 2011). De todas as UC avaliadas, sete apresentaram efetividade alta,
sete, efetividade média e treze apresentaram efetividade baixa.
Instrumentos fundamentais para a implementação de uma UC são o conselho gestor (CG) e o plano de gestão (PG).
O Conselho Gestor é um importante instrumento de gestão de democracia e participativa nas UC, podendo contribuir para o
acesso de tomada de decisões, uma vez que este espaço pode assumir competências deliberativas, consultivas, fiscais e mobi-

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


275
lizadoras. Do total de 41 UC estaduais do Amazonas, apenas 25 possuem CG criado e em funcionamento (Figura 3). Em estudo
realizado com a participação dos representantes das organizações que compõem os conselhos gestores de oito UC, dos 30
indicadores de efetividade analisados, 14 foram considerados regulares ou pior e apenas dois foram considerados excelentes,
em média (SOUZA; PEREIRA, 2015).

Orçamento público estadual para a gestão ambiental


O orçamento previsto para a Secretaria de Meio Ambiente para o ano de 2015, corresponde a 72,5 milhões, ou seja, 0,46%
do orçamento estadual para o ano. Nota-se uma clara tendência de crescimento dos valores nominais no orçamento da Secretaria
(Figura 4). No entanto, se analisado em termos de percentual que o orçamento da secretaria representa em relação ao orçamento
do Estado, nota-se uma maior variação entre os anos e apenas uma ligeira tendência de aumento. O valor orçado para 2015 re-
presenta que o Estado do Amazonas investe dos seus recursos próprios apenas R$3,86 por hectare de área protegida.

Figura 3. Evolução da criação de conselhos gestores de Unidades de Conservação Estaduais no Amazonas.

Em 2009, somente para a implantação das UC da área de influência da BR-319, a SDS recebeu diretamente do DNIT/MT
um montante de 9,9 milhões (http://www3.transparencia.gov.br/TransparenciaPublica/). Somente este convênio aportou um valor
que representava 36% do orçamento próprio da secretaria naquele ano (Tabela 1).
Dentre os principais doadores está o programa ARPA - Programa Áreas Protegidas da Amazônia. O ARPA é um programa
do Governo Federal, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), gerenciado financeiramente pelo FUNBIO (Fundo
Brasileiro para a Biodiversidade) e financiado com recursos do Global Environment Facility (GEF) – Banco Mundial, do Banco
de Desenvolvimento da Alemanha (KfW), do WWF-Brasil e do Fundo Amazônia (http://programaarpa.gov.br/). Foi lançado no ano
de 2002 para ser executado em três fases independentes e contínuas. É o maior programa de conservação de florestas tropicais
do planeta e o mais expressivo ligado à temática das unidades de conservação no Brasil. Um pouco mais da metade do total, ou
seja, 23 UC estaduais do Amazonas já foram contempladas com recursos do programa ARPA.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
276
Figura 4. Evolução do orçamento da Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Amazonas (2009-2015).
Fonte: SEFAZ/AM (http://www.sefaz.am.gov.br/). Valores não atualizados

Mudanças climáticas – Impactos ambientais e vulnerabilidade social


Segundo Marengo et al. (2012), inundações e secas no rio Amazonas não estão apenas relacionadas com anomalias de
precipitação positivas ou negativas, mas principalmente com o momento em que esses eventos extremos de chuva ocorrem.
Uma vez que o tempo de deslocamento da contribuição de afluentes norte e sul do rio Amazonas é fundamental para amor-
tecimento ondas de cheias na calha principal, a combinação de picos de descargas dos afluentes de ambas as margens num
mesmo período resulta em inundações extremas. A frequência e a intensidade dos eventos climáticos extremos na região são
perceptíveis quando se considera que houve secas extremas registradas nos anos de 1997, 2005 e 2010, bem como enchentes
severas nos anos de 2006, 2009 e 2015.
Não há consenso quanto à aceitação do fato de que os frequentes desastres naturais, tais como inundações e secas que
estão ocorrendo agora sejam produtos das mudanças climáticas. As secas severas em 2005 e 2010 se encaixavam nas projeções
futuras de alguns modelos climáticos, no sentido de que a floresta pode enfrentar maiores extremos climáticos neste século, com
secas mais intensas, tornando-se mais vulneráveis a incêndios, que por sua vez podem danificar a sua capacidade de recuperar.
No entanto, a ocorrência de episódios úmidos em 2009 e 2012 entre essas secas desafia este argumento. O que se pode concluir
é que os extremos na variabilidade climática podem tornar-se mais frequentes no futuro (MARENGO et al., 2013).
Eventos extremos de natureza hidrológica que resultam em enchentes ou vazantes anormais dos rios da região (OLIVEI-
RA et al., 2012) afetam diretamente as populações rurais e urbanas do Estado vez que a quase totalidade da população reside em
áreas ribeirinhas e dependem dos rios como fonte de recursos e via de transporte. De acordo com o Boletim de Alerta da Defesa
Civil do Estado do Amazonas, dados referentes à 1º. De Junho de 2015, 39 municípios estavam em situação de emergência e dois
(Boca do Acre, no rio Purus e Humaitá, no Rio Madeira) estavam em situação de calamidade. O número de pessoas atingidas
alcançava a ordem de mais de 317 mil e o de famílias superava os 63 mil (AMAZONAS/DEFESA CIVIL, 2015).
Os efeitos desses eventos extremos atingem mais intensa e diretamente as populações rurais que ocupam e exploram
tanto as áreas de várzea (planície de inundação) como de terra-firme (áreas não alagáveis) e também as populações urbanas
de baixa renda que ocupam áreas de risco, como vêm sendo obervado em outras regiões e países (MEARNS; NORTON, 2010).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


277
Conclusões
Analisaram-se os desempenhos das principais PPs ambientais do Estado do Amazonas no período recente, notadamente
aquelas ligadas aos setores de uso do solo e floresta, manejo pesqueiro e áreas protegidas. Quanto à dinâmica do uso do solo,
foi observado que houve uma mudança no ritmo de desaceleração do desmatamento no Estado. Desde 2009, o desmatamento no
Amazonas deixou de acompanhar a tendência regional de desaceleração, sendo essa dinâmica causada pelo avanço da fronteira
agropecuária em municípios do sul do estado. Quanto ao manejo florestal, apesar das dificuldades, a atividade possui um futuro
promissor. Com a isenção de impostos, desburocratização do licenciamento, incentivos governamentais e não governamentais, o
manejo florestal sustentável tende a consolidar-se como atividade promissora em UC de uso sustentável. Para o setor de manejo
pesqueiro, o destaque foi o desenvolvimento das políticas públicas que permitiram a consolidação de um sistema de manejo do
pirarucu, que vem sendo implantado principalmente nas Unidades de Conservação de uso sustentável.
Não houve incremento importante em áreas protegidas estaduais durante o período de 2009 a 2015, tendência esta
também observada no âmbito das UC criadas pelo governo federal. Essa tendência observada nos períodos dos últimos anos
parece indicar o fim de um ciclo de expansão das UC no Amazonas, em particular, e igualmente no restante da Amazônia. O
baixo investimento público na consolidação dessas áreas reflete-se nos seus igualmente reduzidos graus de implantação e efe-
tividade de instrumentos de gestão. No período analisado, a Secretaria teria recebido em média, a cada ano, 0,35% do orçamento
estadual. De fato, a maior parte os recursos efetivamente empregados nas ações de proteção ambiental, especialmente nas UC,
provem de doadores ou de alguma forma de compensação ligada a projetos de desenvolvimento.
Ainda que o desmatamento e a invasão e grilagem de terras públicas sejam considerados como as faces mais visíveis da
insustentabilidade dos processos de desenvolvimento em curso no Estado, mudanças ambientais de outra ordem começam a se
tornar cada vez mais evidentes assim como os seus efeitos negativos para o bem-estar das populações locais e seus elevados
custos sociais. Modelos de previsão têm sido elaborados para antecipar as medidas de proteção social e assistência a essas
populações. No entanto, políticas públicas e programas de adaptação que visem aumentar a resiliência e reduzir a vulnerabili-
dade das populações ainda não foram planejados nem muito menos postas em prática pelo Estado.

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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
280
PARTICIPAÇÃO DE JOVENS NA GESTÃO DE BENS COMUNS:
A RESEX MARINHA DE CAETÉ-TAPERAÇU- PA

Lamarão, Maria Luiza Nobre1 & Maneschy, Maria Cristina

1. Universidade Federal do Pará, marialuizza211@gmail.com

Resumo
As Reservas Extrativistas inauguram uma nova forma de gerir o território. Em que medida essa nova gestão tem, de fato, a par-
ticipação efetiva dos jovens que são e serão os atores sociais que responderão pela sustentabilidade do território? Os dados
que orientam esta reflexão provêm de pesquisa em curso na RESEX Marinha Caeté-Taperaçu, no Estado do Pará. Os primeiros
achados mostram baixa participação de jovens na cogestão em um processo que transformou habitantes de comunidades agro
pesqueiras em usuários/beneficiários de uma política pública sem a adequada formação para essa nova gestão. Há, portanto,
a necessidade de investimentos em processos socializadores de jovens para a participação nas instâncias formais da gestão
fortalecendo a cooperação, sobretudo, para preservação dos meios de vida e da cultura.

Palavras-chave: RESEX, Gestão Compartilhada, Juventude, Participação, Amazônia.

Introdução
A compreensão da relação homem e natureza, como problema científico, é recente. Seu marco pode ser a criação de
uma nova disciplina – a ecologia, em 1870, por Ernest Haeckel que desenvolveu uma ideia de totalidade e interação entre
homem e natureza. Essa disciplina abriu portas para o avanço de diversas perspectivas para entender essa complexa relação,
desde uma ótica mais biológica até as mais humanistas, passando pelo antropocentrismo que já, há muito, colocava o homem no
centro da imensa rede que compõe o mundo natural. De modo mais concreto, surge o conservacionismo, movimento que atuou
com grande projeção mundial na proteção da natureza, responsável pela demanda de criação de áreas protegidas, sobretudo,
parques. Defende a ideia de “natureza intocada”, isto é, sem a presença do homem. No lado oposto, a partir de uma vertente mais
econômica que social, com a ideia de que o crescimento econômico não pode ocorrer sem a utilização dos recursos naturais e,
consequentemente, algum “dano ambiental” é inevitável. E, entre ambos, os defensores da relação histórica do homem com a
natureza e, portanto, passível de sua utilização racional, sustentável, modelo no qual o homem é também parte da natureza e, por
conseguinte, mantém uma lógica de interação sem degradação inexorável (FERNANDEZ, 2014).
Essa última perspectiva é também ressaltada por Maneschy ao afirmar que há “a progressiva superação de uma visão
dualista entre sociedade e natureza que esteve presente por muito tempo entre as ciências [...] O meio natural é também produto
social e, portanto, modificado pelas práticas sociais coletivas em um sentido não necessariamente predatório. Muitas vezes, o que
parece ser uma paisagem intocada é resultado de manejos de populações passadas e presentes” (MANESCHY, 2003, p. 138).
Este artigo busca refletir sobre essa nova forma de gerir o território, examinando, especialmente a participação dos jo-
vens nas instâncias formais de gestão com suas contradições, acertos e desafios.

RESEX como instituição de gestão de recursos naturais comuns


Na complexa discussão sobre a relação do homem com os bens comuns da natureza como mares, oceanos, florestas,
campos naturais, lagos entre outros, tornaram-se referências teóricas três grandes estudiosos: Mancur Olson, Garret Hardin e
Elinor Ostrom. Diferentemente dos conservacionistas, esses três autores admitem o uso racional dos bens comuns da natureza,
na medida em que concebem que o homem é levado pelo interesse de satisfazer suas necessidades no modo como se relacio-
nam com o meio natural. Partem, portanto, da perspectiva econômica da relação homem e natureza. Contudo, diferem entre si
pelos argumentos propostos para o uso racional desses recursos.
Para Olson, cientista político, a utilização dos bens comuns passa pela lógica da ação coletiva, que resulta da atuação dos
indivíduos organizados em grupos com objetivos em comum na defesa de seus interesses. A notar que os indivíduos não agem

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


281
espontaneamente em uma ação coletiva, o grupo alcança os objetivos mediante coerção, incentivos ou sanções sobre seus
membros (OLSON, 1998). Um desafio importante a toda ação coletiva é o problema do “free rider”, isto é, da tendência de cada
um de buscar primeiramente seu interesse individual, podendo evadir-se dessa ação embora venha a colher seus frutos. Aden-
trando pela linha sociológica e antropológica, seria pertinente acrescentar a essa abordagem o elemento da constituição social
do grupo, seus valores, costumes e cultura que dão sustentabilidade ao grupo. Contudo, a teoria de Olson contribui para análise
de processos em curso sobre a relação do homem e natureza na sociedade atual, processos que dependem em grande medida
de ações coletivas por parte de usuários e beneficiários dos recursos naturais. Traz subsídios às teorizações sobre a instituciona-
lização de territórios protegidos com a formação compulsória de grupos para agirem coletivamente como é, no caso brasileiro,
a criação de Unidades de Conservação - UC, dentre elas as Reservas Extrativistas – RESEX.
Ainda nessa linha de raciocínio que parte da racionalidade individual contraposta à racionalidade do coletivo, o biólogo
Garret Hardin acrescentava que, diante do desafio de utilizar os recursos comuns, alvo de interesses conflitantes, são necessárias
medidas incisivas como a privatização desses bens e sua regulação pelo Estado, ou a gestão por uma autoridade central. Sem
isso, ocorreria uma tragédia, ou seja, os recursos seriam utilizados à exaustão.
Nessa ótica, como ressaltaram os seus críticos, notadamente a cientista política Elinor Ostrom, recursos comuns equi-
valeriam a recursos de livre acesso, desprovidos de instituições reguladoras. Esse teria sido o equívoco fundamental de Hardin,
daí o apelo que ele fez à intervenção de agentes coatores externos ou, então, ao estabelecimento de direitos de propriedade
privada, diante da impossibilidade de pessoas ou grupos utilizarem bens comuns livremente, regulando suas ações com vistas
à sustentabilidade a longo prazo. Ao contrário, em busca de ganhos individuais e na incerteza do comportamento de outros
usuários daquele bem que está aberto ao uso de muitos, eles tenderiam a sobreutilizá-los, até seu esgotamento.
Ostrom, seguindo a discussão de Olson e Garret, avança teorizando sobre uma terceira via - a gestão comunitária dos
bens comuns. Instituições locais de regulação, ou gestão, de lagos, de águas costeiras, de pastagens naturais, por exemplo,
muitas vezes foram confundidas com acesso livre pelo fato de serem próprias de comunidades sem poder ou visibilidade política
e, portanto, não eram reconhecidas por Estados ou elites locais. Nesses contextos, intervenções do tipo políticas de reforma
agrária, ocupações, programas de desenvolvimento e, sobretudo, políticas de conservação ambiental, puderam ser feitas sob o
pressuposto de que se tratava de recursos de livre acesso, sobre os quais não havia grupos que historicamente haviam instituído
direitos de uso e formas de gestão coletiva. E, portanto, sem consideração pelos direitos de comunidades tradicionais locais e
sem compreensão da lógica subjacente aos seus conhecimentos e práticas ambientais.
A perspectiva de Ostrom considera experiências bem sucedidas, de longa duração, com gestão comunitária baseadas na
institucionalização de regras que permitem que todos cooperem e se beneficiem dos bens comuns. Partidária do neoinstituciona-
lismo, Ostrom dedicou-se ao estudo de muitos casos de instituições locais de uso de recursos comuns, isto é, recursos cuja ca-
racterística inviabiliza sua divisão em parcelas e a exclusão a priori de usuários, como é possível fazer por exemplo, na agricultura
ou na pecuária. Tal como definido por ela “Instituição é um conjunto de regras de trabalho que determinam, entre outros, os par-
ticipantes, as ações permitidas ou proibidas, as informações necessárias e a distribuição de benefícios” (OSTROM, 1990, p. 51).
A autora mostrou que é possível criar novas instituições para gerir os bens comuns com a participação dos envolvidos.
Em seus estudos, analisa a gestão comunitária de pastos, florestas, terras não cultivadas, sistemas de irrigação e as trilhas e
estradas. A gestão comunitária exige regras definidas e conhecidas por todos e inclui também sanções para quem descumpre
essas regras e exige, acima de tudo, a discussão constante dos participantes para acompanhar, manter e aperfeiçoar o processo
da gestão. As instituições devem “fazer sentido” para os membros da coletividade, caso contrário os custos da adesão serão al-
tos, ou seja, o monitoramento, a fiscalização e o controle, diante do perigo sempre presente do “free rider”. Daí que no “desenho
institucional”, conforme a expressão da autora, a participação e as instâncias de resolução de conflitos tenham grande relevância.
A institucionalização de territórios em Unidades de Conservação, em particular as Reservas Extrativistas, segue um mo-
delo que pode ser identificado como híbrido ou conjugado dentre os três propostos pelos autores referidos. Contudo, estão mais
próximos da proposta de Ostrom pelos princípios de instituição de sistemas duradouros e da prevalência de uma compreensão
ampliada de direitos de propriedade, que dá relevo às formas comunais, ou comunitárias, de apropriação de recursos comuns.
No primeiro princípio considerado por Ostrom, que trata da “Definição clara do sistema de recursos e suas fronteiras,
assim como, dos participantes”, pode-se dizer que a RESEX se inclui, pois é juridicamente instituída, suas fronteiras são delimita-
das e o sistema de uso dos recursos definido entre os usuários e beneficiários. O segundo princípio “Adequação entre condições

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
282
locais, regras de apropriação e regras de provisão do sistema de recursos” ocorre também na RESEX, particularmente com o
Plano de Manejo. O terceiro princípio “A possibilidade de determinar as regras para a sua própria gestão de bens comuns e da
participação da maioria dos indivíduos afetados” também é pertinente, pois se institui nova gestão formada pelo Conselho Delib-
erativo, cujos integrantes tem direito a voz e a voto. É paritário, com representantes do governo federal, do estado, do município,
da iniciativa privada, dos cientistas, e dos usuários e beneficiários, organizados necessariamente em associação. O quarto
princípio “Monitoramento regular através de monitores que são os próprios apropriadores ou lhes prestam conta” se aplica à RE-
SEX e é executado principalmente pelo órgão gestor governamental, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade - ICMBio, as-
sim como pelos próprios moradores que encaminham denúncias de “desviantes” para as instâncias gestoras. O quinto princípio
“Sanções gradativas contra desviantes” está presente na RESEX na medida em que há sanções que são aplicadas aqueles que
violam as regras. O sexto princípio “Instâncias de fácil acesso e baixos custos para a resolução de conflitos”, o sétimo “Direito
de se organizar minimamente garantido e não contestado por autoridades governamentais externos” e o oitavo “Em caso de
sistemas maiores, organização dos participantes em vários níveis adequados, cada um com seus próprios arranjos institucionais
adequados” se efetivam na RESEX na organização política do território, constituído em Polos, que reúnem várias comunidades
representadas por comitês dos moradores/beneficiários/usuários no Conselho Deliberativo. Portanto, o acesso ao representante
comunitário no Comitê é fácil e com custo baixo. A participação na Associação é garantida e assegurada juridicamente. Esse
sistema, contudo, não garante a resolução fácil de conflitos, que podem envolver várias instâncias, dependendo de sua natureza.
Assim, consideramos que Reservas Extrativistas são instituições que representam respostas possíveis à “tragédia dos
bens comuns”, de Hardin. No caso das RESEX Marinhas, reconhecem às comunidades litorâneas, de pescadores artesanais,
seu papel no uso e na conservação dos recursos pesqueiros, que se encontram sob forte pressão de captura e, em muitos contex-
tos, em condições próximas à da Tragédia, haja vista a proporção de espécies sob ameaça, como por exemplo, o caranguejo-uçá
nos manguezais. As RESEX situam-se entre as possibilidades apontadas por Olson e Ostrom para a gestão de recursos naturais
de uso comum, desde que se garanta efetivamente a participação da comunidade. Como se destaca neste texto, a garantia de
participação dos jovens.

A institucionalização de comunidades extrativistas em RESEX


Segundo Luis Henrique Cunha (2002) o “manejo comunitário de recursos naturais” não significa necessariamente que
haverá sustentabilidade, tampouco seu oposto, pois se trata de uma questão que requer a gerência de, pelo menos, três fatores
– “interações complexas entre as características do recurso, o regime de propriedade e outros arranjos institucionais, de um
lado e o contexto socioeconômico, de outro” (CUNHA, 2002, p.54). Portanto, além das características do desenho institucional do
manejo dos recursos, parte fundamental da gestão, o autor chama a atenção para a sensibilidade do arranjo institucional às ca-
racterísticas do ambiente, natural e social. No primeiro aspecto, sensibilidade às características do recurso, Ostrom valoriza um
elemento importante da instituição, que é a flexibilidade para ajustar e, mesmo, mudar as regras, dada a complexidade inerente
ao ambiente e a seus recursos.
Assim, na confluência de vários movimentos, e na perspectiva de proteger os recursos comuns, ao mesmo tempo pro-
movendo a população que dele faz uso, criaram-se as Reservas Extrativistas, seguindo a linha do desenvolvimento sustentável
que se formou na perspectiva do uso sustentável conforme explica Diegues:

A grande aceitação desse enfoque reside na ideia de que se deve procurar o maior bem para
o benefício da maioria, incluindo as gerações futuras, mediante a redução dos dejetos e da ine-
ficiência na explotação e consumo dos recursos naturais não-renováveis, assegurando a produção
máxima sustentável (DIEGUES, 2008, p. 31).

As Reservas Extrativistas foram criadas no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, que define em seu Artigo 225
– Sobre o Meio Ambiente – o estabelecimento de condições para o meio ambiente ecologicamente equilibrado, exigindo por
parte do Estado sua defesa e preservação. A partir de então, inicia-se um longo processo para a instituição do Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC aprovado pela Lei 9.985/2000. O SNUC define duas categorias de Unidades
de Conservação- UC: a) as de Proteção Integral e; b) as de Uso Sustentável. As Reservas Extrativistas encontram-se no segundo
grupo, asseguradas no Artigo 4º do SNUC, inciso XIII com o objetivo de “proteger os recursos naturais necessários à subsistên-

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


283
cia de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economi-
camente”. Assim a Reserva Extrativista foi criada para promover “o desenvolvimento sustentável das populações tradicionais e a
conservação dos recursos naturais, isto é, desenvolvimento socioambiental” (MMA/SBF/GBA, 2010).
A criação de Reservas Extrativistas no Brasil é uma experiência recente que requer estudos, muito particularmente, para
a mudança de cultura política ao se pensar o território em bases sustentáveis. A produção de conhecimento nessa área tem sido
fértil em âmbito local, regional e nacional1. Almeida (2004, p.34) refere-se ao processo social da luta dos seringueiros que resultou
na criação das Reservas Extrativistas.
Esses estudos mostram que a RESEX é resultado de um processo de reivindicação da sociedade civil relacionada à pro-
teção ambiental, mas não somente isso. É também consequência de um movimento mais global de ambientalização, que coloca
em seu cerne de debate a proposta de um novo modo de vida – o desenvolvimento sustentável. “A ambientalização dos movi-
mentos sociais tem como efeito propor um novo esquema e análise da ação, preocupado com o impacto democrático desses
novos movimentos sobre as estruturas políticas” afirma Teisserenc (2010, p.159). A ambientalização permite não somente este
novo pensar, mas uma nova perspectiva de encarar o desenvolvimento a partir do território e dos atores sociais em processos
interdependentes de ambientalização e territorialização conforme discute Teisserenc (2010). A participação dos atores na ação
pública local é imprescindível para a formação dessa nova sociedade sustentável, em um processo de concertação que inclui
pluralidade, diversidade: Estado, Organizações Não-Governamentais, Organizações Sociais, Iniciativa Privada, Movimentos So-
ciais, Igrejas, entre outros.
Este processo foi se construindo na Amazônia brasileira na convergência de movimentos globais como as ações pela
preservação da natureza, lideradas principalmente por organizações internacionais como a WWF, Greenpeace, entre outros. E,
no âmbito interno, movimentos sociais dos seringueiros, agricultores, pescadores para a preservação de seu território em um
contexto de crescimento econômico sem o equivalente desenvolvimento social que caracterizou a fase do capitalismo industrial
tardio do Brasil, na primeira metade do século XX. Portanto, uma experiência forjada na luta de classes na tensão de um modelo
capitalista e o desejo emancipatório de classes subalternas (ALMEIDA, 2004).
Com efeito, a instituição das Reservas Extrativistas gera novos desafios para aliar a preservação ambiental e social res-
peitando os modos de vida, a cultura das comunidades envolvidas e a relação com as dinâmicas mais gerais da sociedade. Isso
implica em uma extraordinária mudança de paradigma de gestão do bem público, com a participação dos usuários e moradores
da RESEX nas várias instâncias da gestão do território e com o compartilhamento de poder entre os diversos atores sociais que
compõem o cenário político local. Instituem-se os instrumentos para a cogestão do território, que inclui o Plano de Manejo e as
demais regulamentações de uso sustentável.

A RESEX Marinha de Caeté-Taperaçu: de habitantes a “usuários/beneficiários”


Retomando a análise olsoniana, é possível compreender a complexidade da ação coletiva na preservação dos recur-
sos comuns na institucionalização de comunidades em RESEX. Ele aponta uma das estratégias em processos dessa natureza
quando afirma que “existe, contudo, outra estratégia que os grupos poderão adotar e que é a de convencerem o governo da ne-
cessidade que este legisle no sentido de tornar a filiação na organização obrigatória [...] A filiação compulsória é apenas uma das
formas através das quais os governos podem levar ao incentivo da ação coletiva (OLSON, 1998, p. xiii). As Reservas Extrativistas
podem se constituir uma forma estimulada de realizar a ação coletiva no sentido de preservação dos recursos em comum e os
modos de vida das populações, associando a coerção legal advinda do reconhecimento de sua autoridade na jurisdição, com a
participação dos moradores e usuários.
Assim, criou-se, em 2005, a Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, no município de Bragança, nordeste do Pará.
Abrange uma área de 42.489,17 hectares, com uma população de 8.000 (oito mil) famílias, das quais 3.000 (três mil) vivem do extra-
tivismo e 5.000 (cinco mil) de atividades agrícolas, envolvendo 52 (cinquenta e duas) comunidades, distribuídas em 8 (oito) polos,
que agregam 42 (quarenta e dois) comitês comunitários2. É classificada como bioma marinho, contudo é constituída por uma floresta
de mangue da qual se extrai principalmente o caranguejo. É formada por comunidades que mantêm relações diversificadas com
os recursos naturais, praticando uma “economia polivalente baseada na agricultura, pesca e coleta” (MANESCHY, 2003, p.134).
1
Mauro Almeida, Alfredo Wagner, Walter Porto Gonçalves, Edna Castro, Maria José Silva-Teisserenc, Pierre Teisserenc, F. Pinton; Maria Cristina Maneschy, Heribert
Schmitz, Tânia Ribeiro, dentre outros.
2
Anotações em trabalho de campo – Reunião do Conselho deliberativo da RESEX.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
284
As comunidades praticam tanto a pesca quanto a agricultura de subsistência. A pesca se realiza nos rios e furos, mas principal-
mente no mar. A coleta de caranguejo é feita no mangue, de forma rudimentar, com o uso do braço para retirada do caranguejo.
Mesmo antes da instituição do território em RESEX - diante da crescente escassez do caranguejo no mangue - instituíram-se
medidas de ordenamento, na linha proposta por Olson e Ostrom, conforme explica Maneschy:

Ao longo da última década, assiste-se a uma crescente preocupação quanto à sustentabilidade


dos estoques de caranguejos, que estariam sendo comprometidos pela acentuada pressão. No
Pará, em resposta ao problema, instituiu-se desde o ano de 2003 um período de paralisação da
captura de caranguejos, o defeso. A efetiva aplicação dessa medida de ordenamento requer, de
um lado, que as várias categorias sociais envolvidas participem das discussões e proposições,
ou seja, desde os técnicos, pesquisadores, organizações profissionais e comunitárias, até os que
trabalham nos manguezais e nas atividades pré - e pós captura (MANESCHY, 2003, p. 136).

Com a instituição do território em RESEX, um novo conjunto de medidas de ordenamento passou a definir regras de
gestão. A mola mestra desse novo ordenamento é a cogestão envolvendo atores sociais em âmbito local, municipal, estadual
e federal. Usuários e moradores, ou seja, os habitantes tradicionais passam a ser beneficiários da política pública. Esse novo
estatuto lhes confere uma identidade de atores sociais que podem influenciar nos destinos do seu território. Assim, é imprescin-
dível a participação nas instâncias de decisão da RESEX, tendo como referência o Plano de Manejo, que lhes garante o direito
de uso como pescadores artesanais, extrativistas, pequenos agricultores e criadores, processadores de produtos da pesca e
apicultores. Fazem parte também desse conjunto de atores da RESEX os cientistas, as ONGs, políticos e administradores gover-
namentais, todos com assento no Conselho Deliberativo de Gestão.
Esse ordenamento passou a vigorar e influenciar o modo de vida dos habitantes que podem ter motivado a adesão ao
projeto de RESEX por vislumbrarem um meio de ter mais segurança, trabalho e garantia de sobrevivência em um momento de
forte pressão da pesca industrial na região que dificulta o trabalho da pesca no mar (MANESCHY, 2012). Nesse sentido, as re-
flexões teóricas de Ostrom são pertinentes no estudo da RESEX com a ótica institucionalista – apropriação de recursos comuns,
não privados, em regime de cogestão com comunidades viáveis (MANESCHY, 2011).
Nessa linha de interpretação, a relação se dá com as comunidades e não com indivíduos, comunidade entendida como
grupo em relação ao qual há “noção de pertencimento e identidade comum. Portanto, tende a gerar confiança, expectativas
recíprocas de comportamento e redução de incertezas” (MANESCHY, 2011). Dá-se também em uso restrito a essas comuni-
dades devidamente identificadas em oposição ao acesso livre, acrescentando um elemento a mais para evitar a ocorrência da
“tragédia dos comuns”, de Hardin. A citação de Berkes (et al), a seguir, feita por Maneschy (2011) argumenta nesse sentido: “A
razão pela qual a literatura sobre recursos comuns se refere tanto a gestão baseada na comunidade é o fato de que, quando os
usuários se organizam como uma ‘comunidade’, há tendência a aumentar a probabilidade de sucesso na organização que visa à
ação coletiva” (BERKES et al., p. 250 apud MANESCHY, 2011).
Como recurso para evitar a “tragédia dos comuns” a institucionalização é uma alternativa viável e a transformação dos
habitantes em usuários e beneficiários da RESEX não significa, necessariamente, a mudança na sua identidade como habitante
da comunidade. Talvez essa identidade se torne até mais consciente, com a noção de apropriadores legítimos dos bens comuns,
com a responsabilidade por cuidar e utilizar racionalmente esses recursos comuns. Há, evidentemente, mudanças na forma de
se organizar para gerir o território, como um pescador que também se torna líder comunitário e representante da comunidade
no Conselho Deliberativo, por exemplo.

Atores sociais e ação coletiva na RESEX: relações de poder, conflito e cooperação


Olson compreende ação coletiva como “toda ação de um grupo para a produção ou obtenção de um bem público ou
coletivo”. Nesses termos a RESEX expressa uma ação coletiva.
Considerando que ação coletiva implica a existência de conflito, de relações de poder e de cooperação entre os atores,
esses elementos fazem parte do jogo na medida em que poder, na perspectiva de Crozier & Friedberg significa a possibilidade
disponível de indivíduos ou grupos de influenciar outros indivíduos ou grupos. O poder é uma relação mútua, mas não equili-
brada que, no entanto, pode existir apenas se há algo para trocar. Assim, é relacionado a um processo de negociação. Permite

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


285
a um dos atores tirar mais vantagem que o outro, mas nunca entrega totalmente um ao outro (CROZIER; FRIEDBERG, 1993).
Para que haja cooperação é necessário medidas de ordenamento ou um elevado altruísmo muito difícil de ocorrer na prática.
(SABOURIN, 2006).
Na RESEX esse processo não é diferente, conforme observado nas diversas instâncias de poder entre seus atores, que,
com a institucionalização da RESEX, passaram de habitantes a usuários ou beneficiários. Essa nova identidade reflete diferenças
entre si talvez não existentes antes da institucionalização, por exemplo, o Sr. D. S. que antes da institucionalização era pescador,
atualmente é líder comunitário e, imbuído dessa nova identidade, tem relações mais estreitas com o ICMBio e com os próprios
moradores. Isso resulta em agregação de conflitos e simpatia entre os moradores de sua comunidade. Outro exemplo é o Sr. A.
L. que também era pescador e tornou-se funcionário do ICMBio. Nessa nova identidade, é visto por uns como “inimigo” e por
outros como um canal de acesso ao Instituto.
Conseguir que indivíduos cooperem é extremamente difícil, a menos que a própria cultura institucional sustente um tipo
de socialização para a cooperação. Assim, frente a recursos escassos, a cooperação tende a ocorrer por meio de pressão, com
a instituição de normas para a gestão.

A sustentabilidade do território e as gerações atuais: jovens e participação


Os dados disponíveis para identificar os principais atores sociais no território da RESEX em estudo mostram que há am-
biguidades, conflitos, concorrências e orquestração nessa teia de relações. Isto porque, conforme Zhouri e Oliveira (2010, p. 444)
“Na sociedade, os sujeitos sociais apresentam-se como portadores de relações e interações diferenciadas com o meio ambiente,
considerado como uma construção ao mesmo tempo simbólica, social e material”. Esse processo envolve uma diversidade de
atores dentre os quais os jovens, destacados nos instrumentos legais3 no processo de assegurar a reprodução material e social
de seu território. Segundo o SNUC, a conservação da natureza implica em uma visão ampliada de preservação e proteção com:

o manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, a manutenção, a utilização


sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural, para que possa produzir o maior
benefício, em bases sustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as
necessidades e aspirações das gerações futuras, e garantindo a sobrevivência dos seres vivos em
geral (Lei 9.985, art. 2º).

Neste estudo identificamos na RESEX pelo menos três grupos de jovens participando de ações coletivas: a) jovens que
têm como objetivo principal a permanência e o avanço nos estudos formais, cujas estratégias são a frequência regular à escola;
b) Outro segmento de jovens se mantém na reprodução social do trabalho de seus pais, na pesca e na captura de caranguejo
notadamente; c) os jovens que participam de ações em projetos de sustentabilidades em curso na RESEX e de grupos ligados
às Igrejas, desenvolvendo ações de solidariedade e estudo religioso. Parte deste último grupo está mais envolvida em partici-
pação política, inscrita na Associação Comunitária em sua localidade, na Associação de Moradores e Usuários e no Conselho
Deliberativo.
Se por um lado o jovem é gregário, busca a contestação do estabelecido e a criação de novas práticas socioculturais,
por outro lado está mais vulnerável aos apelos de consumo, ao uso do dinheiro e a fluidez entre o que é mercantilizável ou não.
Segundo Ariès (2006), historicamente, os jovens destacavam-se por seu protagonismo nos processos sociais de seus ter-
ritórios. Participavam das guerras, defendendo suas cidades e conquistando novos domínios. Já na modernidade, Janine Ribeiro
(2004) discute a emergência desse jovem representando uma força de mudança do estabelecido que nem sempre é canalizada
para um objetivo social e coletivo.
Mais recentemente, a juventude vem sendo representada socialmente por um viés da nossa “civilização dos descar-
táveis”. De um lado, a expressão engloba aqueles dos quais a sociedade quer se desvencilhar. Mas, tais representações tam-
bém parecem contradizer a sobrevalorização do novo e, por conseguinte, do jovem, do ser aberto a mudanças, paralelamente
com a desvalorização do velho, do apegado ao passado etc. (MARTÍN-BARBERO, 2008). A partir do marco legal do Estatuto da
Juventude (2013), que garante aos jovens, entre outros, o direito a “valorização e promoção da participação social e política, de
forma direta e por meio de suas representações”, torna-se imprescindível teorizar sobre a participação desses jovens em seus

3
Constituição Federal (1988); SNUC (2000); Estatuto da Juventude (2013).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
286
territórios, e observar em que bases está fundamentada, se em relações horizontais ou, ao contrário, efetivadas em participações
meramente decorativas, enunciativas e manipuladoras conforme discute Giorgi Victor (2010).
Contudo, a partir de diversos estudos realizados na RESEX Marinha de Caeté-Taperaçu4, a baixa participação dos jovens
nas instâncias formais da cogestão não difere significativamente dos demais atores sociais, que dispendem maior parte de seu
tempo no trabalho – a pesca, a captura do caranguejo, a pequena agricultura. Isto significa que participação na cogestão é uma
construção social que deve ser estimulada de modo a garantir paritariamente o poder de influenciar nas decisões sobre a RESEX.
A questão de maior pertinência relacionada com a sustentabilidade e os jovens talvez seja na projeção que os pais e os
próprios jovens estão fazendo em relação as expectativas para o futuro no campo da formação educacional e profissional, con-
forme se expressa a mãe de um deles:

Eu tenho um filho com dezenove anos [...] O meu sonho é [...] que ele se formasse e vivesse uma
vida boa, sem tiver trabalhando no serviço pesado. Pra ele ter um futuro, um futuro, num é um
futuro do pai dele, como o pai dele teve” (M. J. M., Mulheres do Mangue)

É fato que as condições de trabalho dos pescadores e capturadores de caranguejo e mesmo a manutenção de um
pequeno roçado e o fabrico da farinha são atividades árduas que demandam um esforço físico grande. Para os mais velhos, essa
é uma atividade desafiadora a cada dia que se entra no mar, levando em conta, nos dias atuais, as dificuldades da pesca em alto
mar, demandando mais tempo para obter a mesma quantidade de pescado.
Contudo, para a geração atual, essa forma ainda rudimentar não se mostra atraente e o jovem busca novos caminhos de
sobrevivência seja por meio da escolarização para qualificação em uma profissão que possa lhes garantir sua manutenção, mais
precisamente, fora da RESEX, seja pela busca de emprego de nível médio que garanta um mínimo de sustentabilidade pessoal.
Para a Sra. T.L. dos seus dez filhos, apenas três encontram-se reproduzindo a atividade do pai – pescador. Os demais são
profissionais autônomos fora da RESEX: taxista, empregada doméstica e servente em Bragança e em Belém.
Portanto, é importante estudar a participação dos jovens na cogestão da RESEX de modo a clarificar o processo que
poderá garantir a sustentabilidade do modo de vida dos moradores e usuários na geração atual e nas futuras.

Considerações finais
A RESEX é uma experiência de governança em curso, de cooperação em atividades que reúnem baixos ganhos de
acumulação, mas que podem servir de rica experiência de economia solidária e de projetos autogeridos ou cogeridos. Pode ser
também analisada na perspectiva de projetos que aliam objetivos de rentabilidade com objetivos sociais que incluem a partici-
pação, a ajuda mútua, a identidade e o reconhecimento social.
A triangulação – participação, ação coletiva e agentes sociais-, é a essência desse tipo de experiência que inaugura um
novo pensar o território nas suas múltiplas formas de construir coletivamente a vida social frente aos atos de consumo, aos usos
do dinheiro, e as complexas relações da fronteira com o mundo mercantilizado da sociedade capitalista em seu estágio atual.
Nossa análise incide em pensar em um território instituído na sua relação com o exterior, com a forma mercantilizada de
todos os bens materiais. Como pensar uma estrutura de cogestão, de cooperação, de reciprocidade, de ajuda mútua em uma
sociedade que socializa suas crianças para o consumo, para um caminho cada vez mais curto entre o ser humano e a prateleira
dos shoppings? (BAUMAN, 2013). Como pensar a sustentabilidade da pequena agricultura diante do agronegócio em franca
expansão ?
É possível construir ações coletivas de sustentabilidade com a participação de jovens, mulheres, adultos, crianças desde
que se inicie um processo de socialização para a formação de hábitos de cooperação, com ações formativas.

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4
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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


289
A CIÊNCIA E AS POPULAÇÕES DA ÁREA DE PROTEÇÃO
AMBIENTAL ILHA DO COMBU, PARÁ

Barros, Benedita da Silva1 & Jardim, Mário Augusto G2

1. Museu Paraense Emílio Goeldi, bbarros@museu-goeldi.br 2. Museu Paraense Emílio Goeldi, jardim@museu-goeldi.br

Resumo
Este estudo teve como objetivos identificar as pesquisas acadêmicas e científicas realizadas por Instituições de Ensino Superior
(IES) e Instituições de Ciência e Tecnologia (ICT) na Área de Proteção Ambiental Ilha do Combu e avaliar suas contribuições
para as populações locais. A metodologia utilizada foi o levantamento da produção científica das IES e ICT registrada na Plata-
forma Lattes no período de janeiro/2004 a outubro/2014, analisando ainda a relação entre os pesquisadores e as comunidades
locais. Os resultados mostraram que as pesquisas atenderam aos interesses das IES e ICT que desenvolveram as pesquisas, e
favoreceram principalmente as famílias que vivem da produção e extração de açaí, pela introdução de novas técnicas de manejo
que contribuíram na melhoria da qualidade dos frutos, no aumento da produção na aceitação pelo mercado consumidor.

Palavras-chave: Pesquisa Científica, Ciência, População Local, Unidade de Conservação.

Introdução
De acordo com a lei no 9.985, de 18 de julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC) e as Unidades de Conservação (UC), principalmente nos aspectos relacionados às suas diretrizes e aos seus objetivos,
elas proporcionam uma relação interativa entre os cientistas e as populações residentes no interior ou no entorno dessas áreas
protegidas (BENSUSAN, 2006), que detêm os saberes que auxiliam o conhecimento dos ecossistemas (SANTANA et al., 2012).
Segundo Moreira (2007), “o conhecimento tradicional é a forma mais antiga de produção de teorias, experiências, regras e con-
ceitos, isto é, a mais ancestral forma de produzir ciência”.
Neste sentido, Diegues (2010) enfatiza a importância dos saberes das populações locais, no processo de conservação
ambiental, tendo em vista que a biodiversidade não é simplesmente um produto da natureza, mas, em muitos casos, é um
produto da ação das sociedades tradicionais.
É consenso entre os mais diversos segmentos (político, econômico, científico, dentre outros), em vários países do mundo,
inclusive no Brasil, quanto à importância estratégica das áreas protegidas como instrumentos de conservação da biodiversidade
(PEREIRA; DIEGUES, 2010). Também há concordância no entendimento de que as populações tradicionais locais têm um papel
importante na proteção dessas áreas naturais protegidas porque mantêm seus modos de vida particulares de convivência em
equilíbrio com a natureza (PEREIRA; DIEGUES, 2010).
A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) não só reconhece a relevância como recomenda a proteção dos
conhecimentos dessas populações para a conservação da diversidade biológica. Do mesmo modo, a Lei nº 9.985/2000, que
instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), constitui-se em um marco na valorização dos conhecimentos
das populações tradicionais e na conservação da biodiversidade, por duas razões: i) reconhece e admite a existência de popu-
lações tradicionais em várias UC, impondo o respeito aos seus direitos de cidadania e a percepção dessas comunidades como
possíveis e importantes aliadas para a conservação da natureza; ii) no processo de criação, planejamento e gestão das UC as-
seguram a efetiva participação das populações locais.
As UC constituem, portanto, um campo aberto para a ciência moderna, que ainda tem muito a desvendar sobre a bio-
diversidade, a partir da contribuição dos conhecimentos tradicionais e, por que não dizer, das ciências tradicionais1, tanto no
que diz respeito à conservação dos recursos naturais, quanto para o aproveitamento econômico desses recursos no campo da
biotecnologia (CUNHA, 2007; ZAMUDIO, 2007).

1
“Há pelo menos tantos regimes de conhecimento tradicional quanto existem povos. [...] Pois enquanto existe, por hipótese, um regime único para o conhecimento
científico, há uma legião de regimes de saberes tradicionais” (CUNHA, 2007).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


291
Bezerra (2007), Santos (2014) e Souza et al. (2014) afirmam que a ciência produzida com base nas pesquisas realizadas
em UC pelas Instituições de Ensino Superior (IES) e Instituições de Ciência e Tecnologia (ICT), em sua grande maioria têm no
conhecimento tradicional das populações locais sua principal fonte de informação. As pesquisas realizadas pelos pesquisadores,
professores e estudantes vinculados às IES e ICT favorecem o estreitamento da relação entre a ciência e as populações locais
em Unidades de Conservação, na medida em que reconhecem nos conhecimentos tradicionais maiores possibilidades de es-
clarecimento da realidade estudada (SAYAGO; BURSZTYN, 2006). Essas informações são relevantes para a formação acadêmi-
ca e reconhecimento profissional dos pesquisadores, docentes e discentes, assim como para as Universidades, Instituições de
Pesquisa e, consequentemente, para a evolução da ciência moderna. Porém, em relação aos provedores e as populações locais,
essa regra não se aplica, visto que “os conhecimentos tradicionais são habitualmente transformados em objetos de pesquisa,
como realidades a serem entendidas e saberes a serem apreendidos”, não sendo reconhecidos nem validados como conheci-
mento científico (SAYAGO; BURSZTYN, 2006; CUNHA, 2007). Por outro lado, a produção acadêmica e científica realizada nas UC
também pode contribuir para embasar os formuladores de políticas públicas para o meio ambiente, com reflexos na conservação
e gestão da biodiversidade in situ, ou seja, em Unidades de Conservação (ROSA; CARNEIRO, 2010; CARNEIRO et al., 2014).
Dados do Ministério de Educação e Cultura (MEC) informam que o Estado conta com 41 IES (cinco federais, uma es-
tadual e 35 privadas) e duas ICT federais (MEC, 2015). O estado do Pará sedia 78 Unidades de Conservação: 55 federais, 21
estaduais e suas municipais sem Plano de Manejo (MMA, 2015), o que configura um cenário bastante atrativo para a realização
de pesquisas científicas e acadêmicas pelas IES e ICT, principalmente as localizadas no estado do Pará.
Esta pesquisa teve como objetivo identificar as pesquisas acadêmicas e científicas produzidas pelas IES e ICT loca-
lizadas no estado do Pará, no período de 2004 a 2014, na Área de Proteção Ambiental Ilha do Combu, bem como avaliar as suas
contribuições para a população local, a partir da visão das próprias comunidades. A escolha desta APA, assim como o período
para a realização do estudo, deve-se à sua localização próxima às principais IES e ICT sediadas na cidade de Belém, capital do
estado do Pará, aspecto que favorece a realização de pesquisas acadêmicas e científicas por essas instituições. Muito embora
esta UC tenha sido criada em 1997, as pesquisas já eram realizadas nessa área, desde a década de 1980, especialmente pelo
Museu Paraense Emílio Goeldi. No entanto, a partir da instituição do Sistema de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000, os
critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação foram uniformizados, além de incentivar e
orientar a pesquisa acadêmica e científica nessas áreas protegidas (CASTRO, 2004).

Material e Métodos
Área de estudo
A pesquisa foi realizada na Área de Proteção Ambiental (APA) Ilha do Combu, localizada a 1,5 km ao sul da cidade de
Belém, no estado do Pará, circundada ao norte pelas margens do rio Guamá, ao sul pelo furo São Benedito, a leste pelo Furo
da Paciência e a oeste pela baía do Guajará. Criada pela Lei Estadual nº 6.083, de 13 de novembro de 1997, com uma área de
aproximadamente 3.100,34 ha, essa UC tem o objetivo de “proteger e restaurar a diversidade biológica, os recursos genéticos e
as espécies ameaçadas de extinção, bem como promover o desenvolvimento sustentável, através do ordenamento dos recursos
naturais e da melhoria da qualidade de vida da comunidade local”. A APA é gerenciada por um Conselho Gestor, criado pela
Portaria 2.916, de junho de 2006, e o seu Plano de Manejo foi aprovado pela Portaria 2100, de 29 de agosto de 2012. Atualmente
a gestão desta UC é compartilhada com o Conselho Deliberativo da APA, criado pela Portaria nº 1.945, de 14 de outubro de 2008.
A população residente é de aproximadamente 200 famílias ribeirinhas, distribuídas em quatro comunidades: Combu,
Piriquitaquara, Beira Rio e São Benedito. As principais atividades econômicas dessas famílias são a pesca artesanal e o extrati-
vismo dos recursos da floresta, como a pupunha (Bactris gasipaes Kunth), cacau (Theobroma cacao L.), cupuaçu (Theobroma
grandiflorum (Willd. ex Spreng.) K. Schum.), andiroba (Carapa guianensis Aubl.) e, principalmente, do açaizeiro (Euterpe
oleracea Mart.), além de algumas plantas medicinais. A predominância do açaizeiro é observada em toda a extensão da ilha
(JARDIM, 2009).
A APA é configurada por um “ecossistema típico de várzea de grande beleza cênica, com paisagem florestal exuberante,
formada por um mosaico peculiar de espécies florestais, além de seus cursos d’água, como os rios Bijogó, Guamá e Acará, o
furo da Paciência e os igarapés do Combu e do Piriquitaquara” e, devido a estas características, é propícia e procurada pela
população para atividades lazer nos finais de semana, incluindo a contemplação da natureza, geralmente realizada por meio de

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292
caminhadas e passeios de barco (SEMMA, 2015).
Pelas características das habitações dos ribeirinhos, além da beleza e da riqueza dos recursos naturais, a APA é incluída
em roteiros turísticos fluviais de curta duração, ofertados por algumas agências de turismo de Belém. Diversos moradores da
APA também utilizam suas próprias embarcações para fazer a travessia de turistas ou mesmo moradores de Belém que preten-
dem visitar a ilha. Nas margens do rio encontram-se diversos restaurantes que oferecem aos visitantes pratos típicos da culinária
regional e outros atrativos como trilhas e produtos artesanais.

Levantamento da Produção científica pelas IES e ICT


Neste artigo apresenta-se o levantamento da produção científica realizada pelas IES e ICT na APA Ilha do Combu re-
gistrada na Plataforma Lattes no período de janeiro de 2004 a outubro de 2014. A escolha desta fonte decorre da sua importância
estratégica pela integração das bases de dados de Currículos, de Grupos de pesquisa e de Instituições em um único Sistema de
Informações e pelo padrão nacional no registro da vida acadêmica (pregressa e atual) dos estudantes e pesquisadores do país.
A coleta dos dados na Base Lattes do MCTI/CNPq teve como parâmetros os seguintes indicadores: 1) Nome da Unidade
de Conservação; 2: Nome do Pesquisador/Docente/Discente; e 3) Nome das Instituições de Ensino Superior (IES) e Instituições
de Ciência e Tecnologia (ICT) do estado do Pará. Os procedimentos para a obtenção dos dados foram os seguintes: 1) Seleção
da opção “buscar currículo” na Plataforma Lattes; 2) Feita a busca pelo nome da Unidade de Conservação, selecionando os
elementos “Assunto”, “Doutores” e “Demais pesquisadores (Mestres, Graduados, Estudantes, Técnicos, etc.)”, “Brasileira e Es-
trangeira” de “todos os países”; 3) Obtenção da produção acadêmica científica realizada em cada uma das UC pesquisadas; 4)
Triagem pelo nome do pesquisador, docente e discente e a respectiva vinculação da produção às IES e ICT.
Foi considerada somente a produção acadêmica e científica publicada em livros, capítulos de livros, artigos científicos,
teses, dissertações, monografias de especialização e monografias de graduação no período de janeiro de 2004 a outubro de
2014, realizada pelas IES e ICT na Unidades de Conservação, objeto do estudo. Os dados foram tabulados em planilhas do
Programa Excel, considerando cada uma das Unidades de Conservação, a vinculação institucional do(s) autor(es), a área do co-
nhecimento (grande área, área e subárea), de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento para o Ensino Superior (CAPES),
para posteriormente proceder à elaboração de tabelas e gráficos.

A relação dos pesquisadores com a UC e a contribuição das pesquisas


na visão da população local
Primeiramente foi solicitada a autorização para acesso à Unidade de Conservação junto a Secretaria Estadual de Meio
Ambiente (SEMA). Em seguida foi realizado o levantamento das comunidades residentes na APA, bem como a forma de orga-
nização comunitária para a definição dos locais e do número de entrevistados. A pesquisa foi esclarecida por meio da leitura dos
objetivos, informações adicionais e assinaturas do Termo de Consentimento Prévio com cada um dos entrevistados.
Os dados foram coletados no período de outubro a novembro de 2014, por meio da aplicação de questionários aos líderes
comunitários, presidentes de associações comunitárias, conselheiros e interlocutores-chave de todas as quatro comunidades
localizadas na APA. O questionário constou das seguintes perguntas: 1) Você sabe se são realizados projetos de pesquisa nesta
UC, desde quando, e de onde vêm os pesquisadores?; 2) Alguém da comunidade participa ou colabora com o pesquisador na
realização da pesquisa?; 3) As pesquisas têm trazido benefícios para a população da comunidade? Quais?; 4) O que mudou na
vida da população depois que as pesquisas começaram a ser realizadas na APA?; 5) Que outros benefícios as pesquisas feitas
na APA podem trazer para a sua população?
As respostas obtidas foram gravadas com a autorização dos entrevistados, e posteriormente transcritas e tabuladas em
planilhas Excel, e submetidas à análise descritiva, usando frequência absoluta para as respostas obtidas em cada uma das
questões. Para contextualizar e explicar os resultados, foram incluídos/transcritos alguns depoimentos dos entrevistados identifi-
cados com a função que representam na comunidade (presidente de associação/líder comunitário/interlocutor-chave).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


293
Resultados
A Produção científica realizada pelas IES e ICT
Para esta pesquisa foram registradas, no estado do Pará, 41 Instituições de Ensino Superior e duas Instituições de Ciência
e Tecnologia. Porém, de acordo com o levantamento da produção acadêmica e científica encontrada no período de janeiro de
2004 a outubro de 2014, revela que somente sete realizaram pesquisas na Unidade de Conservação estudada. São elas: Museu
Paraense Emílio Goeldi (MPEG), Universidade Federal do Para (UFPA), Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), Centro
Universitário do Pará (CESUPA), Embrapa Amazônia Oriental, Universidade da Amazônia (UNAMA) e Instituto Federal do Pará
(IFPA).
No total, os pesquisadores, professores e alunos vinculados a essas 7 Instituições contabilizaram no período uma
produção acadêmica e científica composta por 41 registros divididos em: 1 livro, 13 capítulos de livros, 14 Artigos Científicos, 8
Dissertações de Mestrado, 5 Monografias (1 especialização e 4 trabalhos de conclusão de curso (Tabela 1).
A expressividade da produção acadêmica e científica contabilizada no ano de 2009 para a UC foi decorrente do lança-
mento do livro “Diversidade biológica das áreas de proteção ambiental ilhas do Combu e Algodoal-Maiandeua”, no mesmo ano,
com 13 (32%) trabalhos publicados em capítulos de livros, que correspondeu a 81% dos registros contabilizados no período (16).
Registre-se que os 13 trabalhos são de autoria de pesquisadores e estudantes do MPEG, CESUPA, UFRA e IFPA e estão relacio-
nados a área de botânica, liderada, neste caso, pelo MPEG. Embora os autores sejam de instituições diferentes, predominam
os autores vinculados ao MPEG, sejam pesquisadores do quadro, bolsistas ou outros colaboradores. Do total de 41 autores, 25
são provenientes do CESUPA (22 estudantes de graduação e 03 Professores); 13 do MPEG (10 bolsistas de Pós-Graduação, 02
pesquisadores e 01 colaborador); 01 Professor do IFPA, 01 doutorando da UFRA e 01 técnico da EMATER.
Em 2013, o destaque foi para os artigos científicos com um registro de 6 trabalhos publicados, que correspondem a 45 %
dos 14 (34%) dos registros encontrados no período. Esses artigos são de autoria de pesquisadores, professores e alunos vincula-
dos ao MPEG, UFRA, UFPA e EMBRAPA, e foram publicados em diversos periódicos científicos nacionais (12) e internacionais
(2), estando relacionados a linhas de pesquisa da área de botânica da Coordenação de Botânica do MPEG. Foram produzidas
oito (20%) Dissertações de Mestrado por discentes da UFPA (4) e da UFRA (4), com 50% cada; cinco (12%) monografias pela
UNAMA (1), UFRA (1), CESUPA (2) e (20%) pela UFPA (1).
A análise da produção científica e acadêmica realizada pelas IES e ICT, segundo a tabela de classificação por área do
conhecimento da CAPES, apresentou o seguinte resultado: A Grande Área Ciências da Vida, Área Ciências Biológicas e Subárea
Biodiversidade corresponderam, respectivamente, a 35 (85%) registros; Grande área Ciências Exatas, Tecnológicas e Multidisci-
plinares, Área Multidisciplinar e Ciências Ambientais corresponderam, respectivamente, a 5 (12%) registros; e, por fim, Grande
Área Humanidades, Área Ciências Sociais Aplicadas, Subárea Administração, Ciências Contábeis e Turismo, corresponderam,
respectivamente, a 1 (3%) (Tabela 2).

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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade
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Os moradores, os pesquisadores e as pesquisas
As quatro comunidades residentes na APA Ilha do Combu contam com lideranças comunitárias, mas somente três intera-
gem com os pesquisadores e com o órgão gestor da APA, porque fazem parte do Conselho Gestor. Os interlocutores-chave são
os moradores que mais se aproximam ou se relacionam com os pesquisadores, pelo fato de conhecerem com mais riqueza de
detalhes as características e peculiaridades da biodiversidade e da população local e, por essa razão, colaboram/acompanham
os pesquisadores fornecendo informações de interesse para as suas pesquisas.
Foram aplicados questionários para 2 conselheiros, 4 líderes comunitários e 3interlocutores-chave, perfazendo um total
de 9 entrevistados representantes das comunidades do Combu (4), Piriquitaquara (2), Beira Rio (1) e São Benedito (2). Embora a
maioria dos entrevistados (8) tenha conhecimento que as pesquisas são realizadas por profissionais de Instituições como o MPEG,
a UFPA, a UFRA, a EMBRAPA e o ICMBio, não há consenso sobre o período em que as pesquisas foram iniciadas nessa Unidade
de Conservação. Como não há uma regra estabelecida pelos moradores nem pelo Conselho Deliberativo da APA sobre a quem
os pesquisadores devem se dirigir antes de iniciar suas pesquisas, visto que esses contatos são feitos por intermédio de diversas
interlocutores, tais como: líderes comunitários, moradores que disponham de informações que possam contribuir na pesquisa,
agentes comunitários de saúde; ou não procuram ninguém, e “vão entrando e fazendo a pesquisa sem dar satisfação”. Por esta
razão, alguns entrevistados se mostram insatisfeitos com as pesquisas na APA, inclusive porque poucos pesquisadores apresen-
tam seus projetos para a comunidade antes de iniciar a pesquisa, como também são poucos os que retornam com os resultados,
deixando as comunidades desacreditadas. Em qualquer um dos casos, quando os pesquisadores retornam, procuram os seus
próprios interlocutores ou os líderes comunitários para entregar os livros, CDs com informações sobre o projeto de pesquisa
ou os seus resultados. No entanto, raramente são repassadas aos demais moradores, pela dificuldade de reunir a comunidade.

[...] muitas vezes o pesquisador até chega, ele quer fazer direito, quer procurar a comunidade,
quer esclarecer, mas muitas vezes a própria comunidade, ela se fecha a isso, [...] é a própria
dificuldade dela ir, ah não vai sair da casa dela por que vai perder tempo, então é um trabalho, é
uma coisa muito séria que a gente tem dentro da comunidade, infelizmente” (interlocutor chave
da comunidade do Combu).

Por outro lado, a maioria dos entrevistados (7) e alguns moradores são convidados a participar ou colaborar na pesquisa
prestando informações sobre a flora, fauna e outras de interesse do pesquisador. Segundo uma conselheira da APA Combu, os
moradores auxiliam o pesquisador

[...] mostrando o que tem, aquilo que ele tem vontade de conhecer ou desenvolver um trabalho
em cima daquilo que ele tá procurando. Como uma vez chegou umas pessoas pra procurar essas
mata fechada pra colher aquele limo, eles não sabiam o que significava aquele limo [...], então pra
ter esse limo tem que ter uma área fechada, onde fique meio a umidade, ne? Aí eles coletaram,
depois que fomos ver que daquele limo é que nasce o croto, aqueles crotozinho, não sei como
é que da o nome, que fica segurando na árvore” (Conselheira - comunidade de Piriquitaquara)

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As pesquisas realizadas na APA abordam questões sobre o extrativismo e manejo de açaí e do cacau; botânica, água,
solo. Algumas estão relacionadas às atividades econômicas desenvolvidas pelos moradores, principalmente as que envolvem
manejo de recursos de interesse dos moradores. Alguns entrevistados (6) afirmam que essas pesquisas trouxeram benefícios
para algumas famílias, principalmente aquelas que participaram da pesquisa, porque introduziu novas técnicas para o manejo
do açaizeiro e do cacaueiro, contribuindo para a melhoria da qualidade dos frutos, aumento da produção e, consequentemente,
melhor aceitação no mercado. Porém, outros entrevistados se mostram insatisfeitos, mesmo assim, contam com os benefícios
das pesquisas, inclusive para valorizar a comunidade.

[...] as pesquisas deveriam ser feitas, mas retornar pra comunidade os resultados, né? e não só
isso, tentar implantar os resultados dentro da comunidade, né? Pra comunidade se sentir valori-
zada, né? Porque assim a comunidade se sente muito explorada, muito laboratório e nada con-
creto fica pra comunidade, poucas coisa concreta ficam pra comunidade. Então, eu acho que
não só deveria fazer a pesquisa, mas ver os resultados e, se forem benéficos os resultados, que
sejam implantados dentro da própria comunidade (Interlocutor chave - comunidade do Combu).

[...] eu acho que se fizesse um projeto de plantio [...] como tem na Embrapa, que o açaí dá bai-
xinho [...] aí podia ser, que aqui o açaí é esse mesmo [...]. O resultado é esse aí, não tem, não
dá resultado nenhum por que é isso, só pesquisa pro trabalho deles mesmo. (Interlocutor chave
- comunidade do Combu)

A única pesquisa que teve efeito, que mudou da água pro vinho a questão dos ribeirinhos aqui,
pode até negarem, fazerem o que quiserem, mas foi a partir daí que começou a acontecer as situ-
ações, foi a pesquisa do Mário Jardim aqui, com a questão do manejo do açaí, só! Daí [...], não tem
mais nada que mudou, não muda mais nada. Só chegam, pesquisam lá, paga, entendeu? e pronto,
não tem resultado de nada, de nada não tem resultado (Conselheiro - comunidade de Beira Rio).

Mesmo diante dos conflitos e descrenças, esperam que as pesquisas sejam capazes de influenciar políticas públicas
que possibilite implantar projetos de melhoria da qualidade da água, extrativismo do açaí, cacau e outros que gerem emprego
e renda para a população, principalmente as mulheres, que encontram dificuldades para deixar suas residências e procurar
trabalho em Belém. Na APA ocorrem diversos problemas que comprometem a qualidade de vida da população. Dentre estes
se destacam os ambientais (assoreamento, poluição do solo e da água, ameaça de animais peçonhentos, lixo, dentre outros);
socioeconômicos (falta de oportunidade de emprego e de renda, transporte, uso de drogas, etc.); conflitos entre os moradores
por disputas de espaço e questões fundiárias; e ainda dificuldades de relacionamento com o órgão gestor da UC.
O levantamento da produção acadêmica e científica registrada na Base Lattes do CNPq revelou que na APA Ilha do
Combu foram realizados, dentre outros, estudos na área da etnobotânica, demonstrando a existência de uma grande variedade
de espécies de plantas utilizadas pelos moradores para fins alimentares, principalmente o açaí (Euterpe oleracea Mart.), o
cacau (Theobroma cacao L.), a bananeira (Musa paradisiaca L.); medicinais, tais como a arruda (Ruta graveolens L.), o elixir
paregórico (Piper calosum L.), dentre outras. Foram também publicados resultados de diversas pesquisas sobre a diversidade
biológica existente na APA, que permitem uma ampla avaliação sobre a riqueza florística disponível UC, inclusive sobre a varie-
dade de espécies de bromélias, especialmente da família das epífitas.

Discussão
A produção acadêmica e científica da APA Ilha do Combu no período estudado envolveu o esforço individual em parce-
rias de IES públicas (UFPA, UFRA e IFPA) e privadas (UNAMA, CESUPA) e ICTs (MPEG e EMBRABA), que registrou um volume
de conhecimento materializado por meio de livros, capítulos de livros, artigos, dissertações e monografias que estão armazena-
dos na base de dados Lattes do CNPq. Esse conhecimento pode ser acessado livremente por qualquer interessado, pessoas
físicas ou jurídicas de qualquer segmento público ou privado para objetivos variados, inclusive em favor da própria APA ou da
população nela residente. De acordo com Rosa & Carneiro (2010), “O acesso ao conhecimento científico é um meio importante
para informar e validar posições na formulação de políticas públicas”.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


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A implementação de uma UC requer, além da criação do Conselho Gestor2, a operacionalizado do seu Plano de Manejo3,
tendo em vista tratar-se de um documento técnico que objetiva o cumprimento do objetivo da Unidade, a elaboração desse instru-
mento implica em dispor de conhecimentos técnicos e científicos sobre a UC. Nessa direção, o SNUC incentiva a realização de
pesquisa científica, estudos e monitoramento ambiental, e para dar efetividade a este propósito prevê que haja articulação entre
os executores das UC e a comunidade acadêmica e científica (CASTRO; PISCIOTTA, 2012), tendo em conta que as Unidades de
Conservação são componentes essenciais para a conservação da biodiversidade e desempenham um importante papel para o
bem-estar da sociedade (BANZATO et al., 2012).
Corroborando com esses autores, Medeiros (2006) orienta que o plano de gestão das UC deve estar alinhado com os ob-
jetivos almejados na Convenção Sobre a Diversidade Biológica, de conservar, usar de forma sustentável e repartir com justiça e
equidade os benefícios derivados da utilização dos recursos da biodiversidade, que envolve três dimensões: científica (conhecer
a biodiversidade), política (gerir a biodiversidade) e social (repartir os benefícios).
Os pesquisadores e professores das instituições que desenvolveram pesquisas na APA o fizeram para atender aos seus
próprios interesses, principalmente os programas de pós-graduação dos quais fazem parte. Os resultados beneficiam o corpo
docente e discentes dessas Instituições seja para efeito de titulação acadêmica, seja para alcançar metas de publicação ou ori-
entação. As pesquisas ocorrem ao acaso, visto que as instituições não mantém qualquer relação de parceria com o órgão gestor
da APA que favoreça a realização de estudos com a intenção de desenvolver um plano de ação em favor da própria UC, que
não possui Plano de Manejo e, de acordo com Cirilo (2013), no seu interior ocorrem diversos problemas que comprometem a
qualidade de vida da população. Dentre estes, destacam-se os ambientais (assoreamento, poluição do solo e da água, ameaça
de animais peçonhentos, lixo, dentre outros); socioeconômicos (falta de oportunidade de emprego e de renda, transporte, uso
de drogas, etc.); os conflitos entre os moradores por disputas de espaço e questões fundiárias e ainda de dificuldade de relacio-
namento com o órgão gestor da UC (NASCIMENTO et al., 2010).
As pesquisas acadêmicas e científicas, principalmente sobre a temática da biodiversidade, são realizadas na área da APA
Ilha do Combu muito antes da sua criação, em 1997 (JARDIM et al., 2005). Estudos etnobotânicos revelam a existência de uma
enorme variedade de espécies de plantas bastante utilizadas pelos moradores para fins alimentares, medicinais, comerciais,
dentre outros (JARDIM et al., 2005). As pesquisas sobre a diversidade biológica da APA permitem uma ampla avaliação sobre a
riqueza florística existente nessa UC (JARDIM, 2009), inclusive sobre a variedade de espécies de bromélias, especialmente da
família das epífitas que, além de servirem de hábitat para outras espécies florísticas e faunísticas (QUARESMA; JARDIM, 2013),
têm grande aceitação no segmento do comércio ornamental. No entanto, afora os benefícios decorrentes do esforço direto dos
pesquisadores, como a introdução de novas técnicas de manejo do açaizeiro, que contribuíram para a melhoria da qualidade
dos frutos, aumento da produção e, consequentemente, melhor aceitação no mercado, beneficiando algumas famílias que vivem
da extração desse recurso, esse conhecimento não tem se voltado para o interesse das populações. Além da ausência do Plano
de Manejo, não há nenhum outro mecanismo de política pública que preveja o retorno do conhecimento produzido na APA em
benefício da população local, por meio de programas e projetos com reflexos diretos na gestão e conservação da biodiversidade.

Conclusão
A produção acadêmica e científica decorrente dos estudos e pesquisas realizadas pelas IES e ICT localizadas no estado
do Para na APA Ilha do Combu atendeu aos interesses das próprias instituições. Afora os benefícios decorrentes do esforço
direto dos pesquisadores que atingiu algumas famílias, principalmente as que vivem da produção e extração de açaí, como a in-
trodução de novas técnicas de manejo que contribuíram para a melhoria da qualidade dos frutos, aumento da produção e melhor
aceitação no mercado, esse conhecimento não tem se voltado para o interesse das populações.

2
As categorias de Unidade de Conservação poderão ter, conforme a Lei nº 9.985, de 2000, Conselho Consultivo ou Deliberativo, que serão presididos pelo chefe da
Unidade de Conservação, o qual designará os demais conselheiros indicados pelos setores a serem representados (Decreto no 4.340/2002, Art. 17).
3 Documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma Unidade de Conservação, estabelece o seu zoneamento e as normas que devem
presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade (Lei no. 9.985/2000, art. 2º,
Inciso XVII).

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298
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
300
SOBRE A SUSTENTABILIDADE DA QUALIDADE DE VIDA: O QUÊ UMA
COMUNIDADE TRADICIONAL AÇORIANA, INSTITUÍDA EM UMA
ILHA DO SUL DO BRASIL, TEM A NOS DIZER SOBRE ISSO?

Wermuth, Gilvana da Silva Machado1 & Kuhnen, Ariane2

1. Doutoranda no PPGP Universidade Federal de Santa Catarina, gilvanamachado@yahoo.com.br; 2. PPGP


Universidade Federal de Santa Catarina, ariane@cfh.ufsc.br

Resumo
A sustentabilidade da qualidade de vida envolve a sinergia entre as dimensões ambiental, social e econômica do desenvolvi-
mento. Nos países em desenvolvimento, o ecossistema natural tem sido conservado por populações tradicionais. Em uma co-
munidade tradicional açoriana, se investigou a sustentabilidade da qualidade de vida no local. Foram acessadas individualmente
12 pessoas autóctones, provenientes de 4 subfamílias de uma família extensa, representantes de três gerações consecutivas,
que foram questionados sobre recursos naturais, práticas sociais e estilo de vida local a partir de mapeamento de transectos
dos caminhos percorridos no cotidiano. Como resultado obteve-se uma análise prospectiva da qualidade de vida no local que
aponta para a insustentabilidade relacionada às intervenções ambientais ocorridas no passado, em área de uso comunal, com
forte impacto social até os dias atuais.

Palavras-chave: Qualidade de Vida, Sustentabilidade, Comunidade Tradicional Açoriana.

Introdução
A qualidade de vida coletiva envolve vários aspectos que agem de maneira interativa, constituindo verdadeira rede de de-
terminantes do tipo de vida que levam as pessoas. Estes aspectos envolvem diferentes domínios da vida, - como condição de mo-
radia, educação, emprego, equilíbrio entre lazer e trabalho, acesso e interação com instituições e serviços públicos (COSTANZA
et al., 2007). Coerente com este ponto de vista, a conceituação de Qualidade de Vida do Glossário Temático sobre Promoção de
Saúde do Ministério da Saúde brasileiro (BRASIL/MS, 2012), acentua, como nota complementar, a necessidade de ser levar em
conta os aspectos: 1) Histórico (o parâmetro de qualidade de vida pode ser diferente na mesma sociedade em outro momento
histórico); 2) Cultural (valores e necessidades são construídos hierarquicamente diferentemente pelos povos, revelando suas
tradições) e; 3) Relacionados às classes sociais (em sociedades em que as desigualdades são muito fortes, as concepções de
bem-estar e qualidade de vida estão relacionadas ao bem-estar das camadas superiores e à passagem de um limiar ao outro).
Com efeito, o conceito de qualidade de vida pode ser entendido como a condição de vida humana real (não apenas possível),
existente num determinado contexto ambiental e temporal, e em conformidade com os desejos, sonhos ou aspirações relaciona-
dos às condições de vida idealizadas existentes num determinado lugar em um determinado momento histórico (VLEK, 2003).
Considerada como um fenômeno multidimensional a sustentabilidade da qualidade de vida envolve a sinergia entre
as dimensões ambiental, social e econômica do desenvolvimento (PUGLISI, 2006; FORATTINI, 1991; MASSAN, 2002; KELES,
2012; VLEK, 2003, COSTANZA et al., 2007; SCHALOCK, 2004). Sob tais dimensões, modos particulares, históricos e culturais,
de relações com os vários ecossistemas, e dos seres humanos entre si, interagem permanentemente conforme Diegues (1992),
Shafer, Koo Lee & Turner (2000), Sachs (1980) e Vieira (2009), dentre outros, apontam. Para Moser (2009), a sustentabilidade da
qualidade de vida ocorre somente quando as pessoas interagem com seus ambientes de forma respeitosa, o que conduz e é
resultado de uma situação de congruência, onde ocorre um relacionamento positivo entre qualidades objetivas do ambiente e a
expressão de satisfação em relação a este ambiente.
Sob esta concepção, observa-se que tanto na costa brasileira, como em outras áreas costeiras espalhadas por vários
países de diferentes continentes como: Tailândia, Hong-Kong, Austrália, Reino Unido, dentre outros (ver GREEN, 2005; ROGAN;
O’CONNOR; HORWITZ, 2005; NG; KAM; PONG, 2005; RADFORD; JAMES 2013), sob efeito das coletividades, as transformações
dos lugares foram mais rápidas que a mudança do entendimento do lugar ocupado por seus residentes, o que sugere uma cres-
cente demanda de se avaliar a sustentabilidade da qualidade de vida ao longo de diferentes gerações nestas áreas. No Brasil,

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


301
sob o efeito do processo, denominado litoralização por Pereira (2007), entre 1970 e 2000 a população urbana se multiplicou em
2,64 vezes em média, sendo que apresentou os maiores índices de aumento demográfico na região sul. O estado de Santa Cata-
rina, por exemplo, apresentou um aumento demográfico médio de 3,7 vezes neste período, sendo que em alguns municípios do
litoral multiplicou 4,6 vezes. Atrelado a este processo, a expansão urbana ocorreu sem planejamento efetivo e com a ocupação
irregular das encostas, dos mangues e das restingas, apesar da enorme importância destas áreas para a sustentabilidade das
atividades humanas e a própria sobrevivência das populações costeiras (SARTOR; SANTOS, 2005). Com efeito, mudanças ambi-
entais, como degradação de componentes biofísicos, podem apresentar uma grande influência sobre o modo dos sujeitos estru-
turarem seus relacionamentos com seus entornos considerando que os lugares são muito mais que um mero pano de fundo para
experiências, pois podem representar a continuidade da família, servir de regulação emocional e ter significado espiritual, além
de servirem de veículos de aprendizagem e crescimento pessoal e favorecerem a manutenção de relações sociais. Para tanto
é fundamental que gestores públicos conheçam a consciência, a percepção e as expectativas das pessoas sobre as mudanças
na qualidade ambiental local visto a complexidade e amplitude das atitudes da comunidade em torno do ambiente (ROGAN;
O’CONNOR; HORWITZ, 2005).
Sendo assim, enquanto populações tradicionais1 tentam se adaptar ao recorrente surgimento de megaprojetos de alto
impacto ambiental, com investimento público, privado, nacional e internacional (LOPES; CARIONI; VAZ, 2014), nos países em
desenvolvimento, como o Brasil, são justamente estas populações, com fortes vínculos culturais com os ambientes, que tem
conservado os ecossistemas naturais (DIEGUES, 1992), sendo responsáveis pela manutenção da diversidade biológica da qual
dependem (e dependeram) a sobrevivência de diferentes gerações2(DIEGUES et al., 2000). As especificidades dos povos e
das comunidades tradicionais implicam em processos produtivos marcados pela economia de subsistência, onde a produção
é determinada por questões ligadas às necessidades versus possibilidades. Estas populações apresentam nas suas práticas
produtivas o respeito aos ciclos naturais e o conhecimento profundo do ecossistema no qual vivem devido ao uso que fazem dos
recursos renováveis e as práticas de uso comunitário dos mesmos. Utilizam tecnologias de baixo impacto ambiental e tem uma
organização social onde a família extensa tem um importante papel (SILVA, 2007).
A partir deste reconhecimento, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradi-
cionais, decretada em 2007, especifica, dentre seus princípios balizadores, o desenvolvimento sustentável como promoção da
melhoria da qualidade de vida dos povos e comunidades tradicionais nas gerações atuais, garantindo as mesmas possibilidades
para as gerações futuras e respeitando os seus modos de vida e as suas tradições. Além disso, estabelece como objetivo no art.
3º, a garantia a estes povos e comunidades a manutenção de seus territórios e o acesso aos recursos naturais que tradicional-
mente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica, assegurando seus direitos quando afetados direta ou indireta-
mente por projetos, obras e empreendimentos.
Conhecendo esta política pública e o processo de transformação antrópica que vem ocorrendo em áreas costeiras e im-
plicações envolvidas, foi estudada a comunidade tradicional açoriana do “Morro do Jacinto3”, localizada na região sul do Brasil,
na costa leste da porção central da ilha de Santa Catarina, às margens de um canal, que liga um corpo lagunar ao mar, povoada
na sua maioria por moradores nascidos no local (autóctones) e que já esteve envolvida em debates e conflitos em torno da liga-
ção da lagoa com o mar (por conta do assoreamento artificial e abertura definitiva do canal ocorrido na década de 80) e por pla-
nos de implantação de empreendimento de caráter náutico e habitacional que permanece sob impasse judicial4 por mais de 20
anos, conforme discutido em estudo de caso apresentado na tese de Villasbôas (2003). Com efeito, a dragagem e regularização
deste canal foi uma drástica mudança para esta região da ilha, que nos anos de 1954 e 1955 recebeu o seu primeiro processo de
dragagem e, em 1968 o segundo. Por ultimo, em 1982, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina
(CIDASC) modificou o leito e a vazão do canal com a abertura, drenagem e construção de um molhe na sua entrada, que inter-

1
De acordo com o Decreto nº 6.040, que estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, povos e comuni-
dades tradicionais são: “Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e
usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
2
Como exemplo, a singularidade das paisagens naturais incidentes na orla marítima decorrentes de sua ocupação esparsa por assentamentos de pescadores arte-
sanais, cujos modos de vida e práticas de manejo estão atrelados ao bom estado de conservação dos atributos naturais dessas paisagens.
3
Todos os nomes de sujeitos citados neste estudo são nomes fictícios para proteger privacidade e anonimato dos envolvidos.
4
Ação civil pública no. 970000001-0. Implantação do empreendimento Porto da Barra, Florianópolis, Santa Catarina. Ministério Público Federal e União Federal contra
FATMA e Portobello Ltda.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
302
feriu na ecologia de todo o sistema lagunar. Antes desta intervenção, a cada seis meses, a ligação da lagoa com o mar se fechava
e abria, sendo que a salinidade da lagoa era bem menor antes da abertura permanente deste canal (BITTENCOURT, 2005).
Segundo Barbosa (2003), após esta intervenção, em vários lugares na bacia da lagoa “onde se pegava o peixe com a
mão”, o declínio da pesca se intensificou. Esta alteração ambiental repercutiu num impacto socioeconômico negativo visto que a
pesca de peixes e crustáceos na lagoa, que sempre teve uma grande relevância para a região - tainhas e camarões eram a base
da pesca artesanal das comunidades que circundam a lagoa -, sofreu drástico declínio sendo que a média anual de pesca entre
1964-1984 que era de 168 toneladas, de 1985 à 1997 foi reduzida drasticamente para 40 toneladas. O impacto relacionado ao au-
mento da salinidade da água da lagoa pode ter extinguido espécies dulcícolas e marinhas que nem chegaram a ser classificadas
considerando-se que a desova de peixes, crustáceos e moluscos na zona costeira se dá principalmente em desembocaduras
de canais, rios e lagoas. Por outro lado, essa regularização do canal coincidiu temporalmente com o crescimento do local, pois
desde então, nas comunidades do entorno, a economia passou a se alternar entre a atividade pesqueira, o turismo e a presta-
ção de serviços, visto que no período entre as décadas de 70 e 80, com a diminuição dos estoques de pesca e a introdução do
turismo e das residencias secundárias, muitos dos pescadores transferiram-se para o setor de serviços para atender ao grande
contingente de turistas na temporada de verão (DIEGUES et al., 2000).
Todo o processo de transformação associado à abertura deste canal, no caso específico do local deste estudo, teve in-
terferência também na acessibilidade aos locais de moradia dos indivíduos autóctones, pois o mesmo também passou a limitar
o acesso da comunidade do Morro do Jacinto de forma permanente, separando-o de uma área plana aterrada (local visado
para loteamento Porto da Barra conhecido como “campo da portobello” pelos moradores locais) surgida após a construção dos
molhes e abertura do canal, sendo que o material dragado foi depositado neste local segundo relatos dos integrantes desta co-
munidade. Esta área plana que antes era, conforme descrita pelos moradores mais antigos deste morro, “um mangue com canais
cheio de peixe e camarão”, consistia também de área de uso comunal para criação de animais e uso de fontes de água utilizadas
para lavar roupas e até mesmo para consumo em épocas de seca, quando não vertia água do morro.
Admitindo como verdadeiro o pressuposto de Moser (2009) de que a sustentabilidade da qualidade de vida ocorre so-
mente quando as pessoas interagem com seus ambientes de forma respeitosa, o que conduz é resultado de uma situação de
congruência, buscou-se por uma descrição da interação de indivíduos autóctones desta comunidade tradicional açoriana com
seu entorno sócio-físico, envolvendo o uso de recursos naturais, práticas sociais e estilo de vida local, que possibilitasse uma
análise prospectiva da qualidade de vida desta comunidade localizada em área costeira. Para tanto, em um estudo de caráter
descritivo e exploratório, foram acessadas individualmente 12 pessoas, provenientes de 4 famílias, representantes de três ge-
rações consecutivas, que foram observados e questionados sobre a importância do entorno, próximo as suas residências, para
sua qualidade de vida a partir da elaboração de Mapeamento de Transectos (VIEIRA; BERKES; SEIXAS, 2005; THOMPSON;
ASPINALL; BELL, 2010) – quando informações foram coletadas durante uma caminhada de uma dada área selecionada pelo
voluntário como caminho utilizado com maior freqüência no cotidiano, foram observados recursos e atividades humanas ali
existentes. Por meio de conversa informal obteu-se nomes de lugares, plantas, animais, atividades humanas, problemas sociais
e ambientais (aspectos relacionados à mudança da paisagem e possíveis soluções, entre outros). Toda conversa durante esta
caminhada foi filmada e transcrita.
Os voluntários para esta pesquisa assinaram um termo de consentimento que explicava objetivos e procedimentos assim
como assegurou o anonimato. Eles foram escolhidos sob o critério de facilidade de acesso e aceitação em participar e com-
puseram o seguinte perfil sócio-econômico: seis homens (DescA, DescB, DescC, Desc2B, Desc2C, Desc2D) e seis mulheres
(DA, DB, DC, DD, DescD, Desc2A). Em relação à faixa etária, as voluntárias participantes, da geração mais idosa, tinham em
média 74 anos, sendo que a mais velha tinha 83 anos e a mais nova 67. O grupo dos filhos destas idosas teve uma média de idade
de 45 anos, tendo o mais novo 35 anos e o mais velho 53. Quanto aos netos voluntários, foi observada uma média de idade de 19
anos, tendo o mais jovem 16 e o mais velho 27 anos. Oito deles declararam ter ensino fundamental incompleto (D.A; D.B; D.C;
D.D; DescA; DescB; DescC; Desc. D), um deles possui ensino fundamental completo (Desc2A), dois declararam estar cursando
o ensino médio (Desc2B; Desc2C) e um deles cursa graduação em história em universidade pública estadual (Desc2D).
Em relação à profissão informada pelos dos voluntários, duas idosas informaram trabalhar como domésticas (DA e DD),
três informaram ser “Do lar” (DB, DC, DescD), dois voluntários informaram ser pescadores (DescA, DescB), um informou ser
auxiliar operacional da COMCAP (DescC) e uma informou ser auxiliar de cozinha no verão e “Do lar” no inverno (Desc2A).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


303
Os três indivíduos mais jovens da amostra declararam serem estudantes, dois de ensino médio e um da graduação. Quanto
à profissão de seus cônjuges, cinco informaram que o esposo (falecido ou vivo) é pescador (DA, DB, DC, DD, DescD), uma
delas informou que o esposo é vigilante terceirizado (Desc2B), um deles que a esposa é auxiliar de cozinha (DescB) e outro
que a esposa trabalha como doméstica (DescC), os demais são solteiros, dois deles informaram que seus pais tem a profissão
de pescador (Desc2B e Desc2D) e outro informou que o pai é motorista de ônibus (Desc2C) e suas mães: auxiliar de cozinha
(Desc2B), doméstica (Desc2C) e professora de ensino fundamental municipal (Desc2D). A renda familiar informada pelos vo-
luntários resultou numa média mensal de R$1335 por pessoa ao longo do ano, sendo a renda média mensal individual mais baixa
de R$850 (DescC) e a mais alta informada foi de R$2000 (DescD). De todos participantes, oito deles informaram obter fonte de
renda familiar (complementar ou principal) proveniente do aluguel de casa, por diária na temporada de verão e mensal ao longo
do ano (DB; DC; DD; DescB; DescD; Desc2B; Desc2C; Desc2D).
Sob este perfil socioeconômico, observou-se que apesar dos entrevistados terem, em geral, baixo grau de instrução, os
indivíduos da geração mais jovem apresentam um aumento do nível de instrução em relação aos indivíduos das gerações ante-
riores. Outro aspecto interessante é que apesar do grau de instrução ser baixo (a maioria com ensino fundamental completo no
máximo), e terem informado estarem empregados em profissões de baixa remuneração, a renda per capita média é superior ao
salário mínimo. Vale ressaltar que isto está atrelado ao fato de que a maioria dos voluntários (oito deles) informaram dispor de
casas para alugar seja no verão, ou mesmo durante o ano, aumentando e melhorando consideravelmente, a renda familiar, o que
interfere positivamente na qualidade de vida dos autóctones em geral, segundo seus relatos.
O produto do uso da técnica de mapeamento de transectos foi uma representação gráfica de linhas que cortam uma parte
da área de estudo conforme pode ser visualizado na Figura 1. Ao ser tracejado na imagem por satélite o caminho percorrido com
maior frequência no cotidiano, ficou claro que o “campo da portobello” apesar de não ser mais um local de onde se tira alimen-
tos e água para o consumo, ainda é um local de uso dos moradores para acessar elementos urbanos essenciais a vida no local
(escola, farmácia, ponto de ônibus, mercado) visto que todas as linhas tracejadas passa pela área plana na margem oposta do
canal (em relação as casas da comunidade) onde se propõe construção do empreendimento náutico-habitacional. A descrição
do caminho percorrido por parte dos voluntários também forneceu informações importantes sobre as práticas sociais habituais
do cotidiano da comunidade local. A partir desta descrição, as práticas mais comuns de cada geração são:
• Idosas – as idosas em sua rotina estão envolvidas basicamente com afazeres domésticos (lavar roupa, limpar a casa,
ir na padaria, no mercado) e na manutenção do quintal ou entorno da casa (limpando o porto, arrumando bateras), demonstram
estar sempre em frequente contato com plantas, com a terra e com animais, dos quais se beneficiam utilizando recursos do
entorno a partir da intervenção das mesmas sobre o local (plantas ornamentais e alimentícias selecionadas há varias gerações e
plantadas por elas– roseiras, banana, mandioca, abóbora, dentre outros). A interação e convivência com os filhos, ao longo dos
anos vividos neste local, também pode ser apontado como importante atributo da qualidade de vida destas mulheres a partir do
relato das mesmas. Somente uma delas atravessou o canal (DC) para me mostrar seu caminho rotineiro (a única que participa
de grupo de ginástica para idosos, promovido pela Prefeitura Municipal de Florianópolis), as demais permaneceram em torno
de suas casas, em seus quintais ou porto.
• Filhos – Os participantes voluntários da amostra, filhos destas idosas, em seus relatos sobre o que fazem nos caminhos
percorridos em seu cotidiano, em geral mencionaram nomes de plantas e falaram da sua relação com a terra e animais presentes
no local, principalmente quando relacionado à pesca. Neste grupo a maioria dos voluntários foram homens (3). A única mulher
participante mencionou seu hábito de plantar, mexer com a terra, interação com animais, cuidados com a filha adolescente,
atividades domésticas, semelhante ao que relataram as idosas. A mesma, em seu relato, evidencia a necessidade e os benefícios
de se plantar e colher no local com argumentos que envolvem segurança alimentar, benefícios da interação com a terra (“fuçar
na terra traz tranquilidade”), e aproveitamento de nutrientes para adubo (compostagem). Já os homens apresentaram um relato
mais focado nas atividades relacionadas ou envolvidas com a pesca (puxar rede, ir ao estaleiro, conversar com os pescadores).
Todos os filhos atravessaram o canal para me mostrar o caminho que percorrem em suas rotinas diárias.
• Netos – O relato dos netos das senhoras idosas apresentam como principal diferença, em relação ao relato dos indi-
víduos das gerações anteriores, a ausência de menção de práticas que envolvem o contato com plantas e/ou com a terra e ani-
mais, e com a pesca. Sendo três adolescentes do sexo masculino (16-18 anos) e uma mulher de 26 anos mãe três filhos, pode-se
dizer que apresentam uma rotina mais focada em práticas institucionalizadas (levar filho na creche, fazer compras, pegar ônibus,

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
304
ir para a escola ou faculdade) e menos localizadas nas proximidades do entorno de suas casas. Apesar de relatarem se sentirem
seguros no local, demonstram grande preocupação com o futuro do local, visto o aumento de construções irregulares e sem
saneamento básico. Assim como os indivíduos da geração anterior, todos os indivíduos participantes deste grupo atravessaram
o canal para apresentar seus caminhos cotidianos.

Figura 1. Caminhos percorridos pelos voluntários autóctones.

Apesar destas variações nos hábitos do cotidiano de acordo com a geração, todos voluntários afirmaram obter recursos
extraídos do seu entorno, principalmente para alimentação, sem a necessidade de utilizar o dinheiro em troca dos mesmos,
dentre eles foram citados espécimes vegetais (abóbora, acerola, aipim, alfavaca, bambu, banana, batata doce, cana, cebolinha
verde, chuchu, erva-cidreira, goiaba, hortelã, jaca, jiló, laranja, limão, madeira pra fazer trapiche (camboatá), mamão, man-
dioca, manjericão, maracujá, pimenta, pimentão, salsinha, tomate, tangerina) e animais (abrótea, anchova, arraia, badejo, cação,
camarão, carapeva, carapicú, cocoroca, corvina, espada, garopeta, garoupa, lagosta, linguado, lula, marisco, peixe, robalo,
sardinha, siri, tainha, tanhota). A partir destes dados verifica-se que o entorno tem importante papel nutricional para os indivíduos
desta comunidade tanto ao que se refere à obtenção de alimentos vegetais, assim como fonte de proteína animal, indicando ter
grande importância na manutenção da qualidade de vida no local.
Em relação às perspectivas de desenvolvimento futuro na região, todos os participantes, que atravessaram, ou não, o ca-
nal e o “campo da portobello”, disseram acreditar que o empreendimento será implementado e que já trouxe e trará ainda várias
consequências sobre o modo de vida no local relacionado à degradação ambiental, diminuição da quantidade e qualidade da
pesca e ao aumento do custo de vida no local semelhante ao que ocorre nos locais sob o processo denominado gentrificação5,
conforme relata DescA, exemplificando relatos dos autóctones referente a este assunto:

“Eu acho que não vai ser bom, porque eu não vou ter dinheiro pra comprar um iate, um apartamen-
to, que eles vão querer que o iate chegue tudo na porta deles, da casa deles, os iate vão chegar
na entrada que nem chega um carro na garagem, entendeu?(...)Então esse campo aqui não vai
5
Ações articuladas que interferem na materialidade do espaço, incentivam a criação de novos pólos de atração e potencializam o interesse das classes mais abas-
tadas provocando a exclusão da população devido, principalmente, à especulação imobiliária. Assim, formas de intervenções urbanas que elegem certos espaços
da cidade como centralidades e o transformam em áreas de investimento para consumo público e privado, tem como desdobramento a expulsão da população de
baixa renda, praticamente relegada dos programas de benfeitorias de reabilitação para elitização das áreas e apropriação dos imóveis para fins comerciais ou para
entretenimento das classes mais abastadas (SILVA; FERETTI; SETTE, 2008).

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


305
ter futuro pra mim, né? O futuro aqui é praquele que tem dinheiro e eu não vou poder mais passar
aqui, né? Eu não vou ter mais chance de passar aqui, aqui só vai ter apartamento, hotel, os barco
que são os iate, como é que a gente vai passar, se vai ter segurança, vai ter guia, aí não tem mais
como nós passar, né? Vai ser particular, não tem mais como, já tão planejando pra isso aí”.

Motivos não faltam para acreditarem nisto, pois o mapa ilustrativo do projeto está afixado em uma guarita/escritório na en-
trada principal do terreno (por onde passaram a maioria dos voluntários durante o percurso do transecto) à vista dos transeuntes
(Figura 2), enquanto ocorre o aumento sucessivo e progressivo de uma área destinada à garagem de embarcações (lanchas e
iates) no local conforme pode ser observado na Figura 3.

Figura 2. Vista interna de escritório localizado na entrada do “campo da portobello”.

Figura 3. Área destinada à garagem de embarcações (lanchas e iates) à beira do canal

Para Moser (2009) o olhar conduzido sobre o ambiente residencial serve como proposta de uma análise estruturada de
condições de congruência a partir da avaliação objetiva e subjetiva de estressores ambientais na relação entre o indivíduo e
ambiente e na expressão social de bem-estar. Sendo assim, a análise prospectiva da qualidade de vida desta comunidade tradi-
cional açoriana, constata, como um estressor ambiental, a possibilidade de implementação de empreendimento náutico habita-
cional, que, além do impacto ambiental, também vem implicando em impacto social. Uma incongruência ocorrida no passado
(leia-se assoreamento do canal e aterramento de mangue) incidiu e vem incidindo no rompimento do respeito aos ciclos ecos-
sistêmicos, de forma que, o aumento do número de casas para fins de obtenção de renda proveniente de aluguéis tanto anuais
como de temporada, construídas pelos próprios indivíduos autóctones de forma irregular, sem preocupações com o saneamento
ambiental e infringindo o código ambiental brasileiro, acaba também contribuindo como estressor ambiental, realimentando as-
sim a cadeia de degradação socioambiental que vem ocorrendo no local. Com efeito, atrelado a este processo, foi relatado que
muitos autóctones da comunidade estão deixando o local para morar em bairros próximos, como Rio Vermelho e Ingleses, onde
o custo de vida é mais baixo.
Sob este aspecto, cabe ressaltar que, num passado não muito distante, para as duas gerações mais velhas, ocorreu um
impacto ambiental de enorme proporção (que alterou o entorno que era fonte abundante de alimento - camarões, caranguejos,
siris e peixes) que resultou na migração para outras áreas de trabalho (que não as tradicionais, como a pesca e a lavagem de

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
306
roupas) integrando-os a um sistema de desenvolvimento econômico pautado na obtenção do lucro imediato que não se preo-
cupa com as externalidades negativas6 deste feito. Isto possibilita que iniciativas privadas usufruam dos recursos naturais e
deixem sobre a coletividade a carga dos custos sociais e ecológicos deste usufruto, sendo que uma parte destes custos se traduz
em desigualdades diacrônicas, ou seja, afeta a qualidade dos recursos e do meio que terão as gerações futuras e as condena
a enfrentar os custos da exploração insustentável dos recursos (SACHS, 1980). Atrelado a isto, é evidente que a apropriação do
local: dirigida aos outros na conquista do espaço, e a si mesmo quando procura adaptar o espaço às próprias necessidades
(KUHNEN, 2002), tem desrespeitado várias leis de preservação ambiental, visto que a maioria das casas se encontra em área de
preservação permanente (APP7) e não possuem tratamento de efluentes sanitários.
De fato, a partir do relato dos voluntários durante o mapeamento de transecto, pode-se considerar que os autóctones
ainda tem uma forte relação de dependência de recursos naturais do entorno, entretanto ao vivenciarem as intervenções ambi-
entais ocorridas no local no passado, que implicou em alteração no modo de vida, assumiram um tipo de apropriação, que não
respeita mais os ciclos naturais e só divide com o coletivo os custos ambientais, enquanto toma individualmente os benefícios
relacionados ao uso de recurso natural. Como exemplo, se divide os efeitos negativos da contaminação das águas do canal com
dejetos humanos, enquanto se lucra com os aluguéis de casas sem saneamento básico. Todavia, considera-se que neste caso
não há culpados e nem vítimas e sim uma população tradicional tentando se manter e se adaptar, apesar da grande interferência
no seu modo de vida, que permanecia em harmonia e respeitava o ecossistema do entorno, visto que dependia dele a sua so-
brevivência. Sendo assim, sob o histórico do contexto socioambiental desta população, pode-se dizer que ocorreu uma quebra
drástica do respeito aos ecossistemas, que até então tinha sido passado de geração a geração, e que o mesmo foi aterrado junto
com o mangue que os alimentava e fazia parte da sua paisagem cotidiana.
Consistente e pertinentemente, a qualidade ambiental tem sido considerada um dos mais importantes componentes de
qualidade de vida (KELES, 2012) sendo que as mudanças envolvidas nos entornos têm sido vistas como uma ameaça, como
uma evolução negativa devido à perda de diversidade, coerência, identidade e de características das paisagens construídas por
culturas tradicionais que estão sendo rapidamente varridas do mapa (CARTER; DYER; SHARMA, 2007). Deste modo, considera-
se que a urbanização acaba implicando em mudanças no cenário físico, nos tipos de uso e nas atividades ao ar livre que podem
apagar aquilo que é precioso e significativo para uma determinada comunidade, particularmente, para aqueles que têm apego
ao local desenvolvido a longo termo (ANTROP, 2005). Tão forte pode ser este impacto que Slemp et al. (2012) evidenciam a
importância do monitoramento de impactos socioculturais do uso do solo que permitam a identificação de consequências po-
tenciais do crescimento urbano.
Sobre este aspecto, as análises dos dados obtidos apontam que a possibilidade do empreendimento náutico-habitacional
ser levado a cabo, ameaça hoje o acesso, a mobilidade e o “ir e vir” de indivíduos de todas as gerações desta comunidade
tradicional, que vem sofrendo dos impactos cumulativos da intervenção ocorrida no passado, que sofrerá muito mais se tiver
seu acesso impedido, algo que foi mencionado por diversas vezes e por diferentes pessoas ao falarem de seu cotidiano neste en-
torno. Além disso, a implementação deste empreendimento poderá ter impacto ambiental ainda maior sobre o ecossistema local
e lagunar visto o consequente aumento da densidade demográfica e todas as demandas necessárias atreladas a este processo
(esgotamento sanitário, consumo de água, produção de resíduos). O aumento do custo de vida no local também poderá implicar
na expulsão de toda população tradicional que, além de não poder arcar com o aumento das despesas de subsistência no local,
também perderá os recursos ecossistêmicos apontados como essenciais elementos nutricionais fornecidos pelo entorno. Como
resultado, a análise prospectiva da qualidade de vida desta população tradicional aponta para a insustentabilidade atrelada às in-
tervenções ambientais ocorridas no passado, em área de uso comunal, com forte impacto social e econômico até os dias atuais.
Sob este aspecto, o Mapeamento de Transectos mostrou-se uma ferramenta eficiente para acessar informações espontâneas
sobre o modo de vida, práticas sociais, relação entre pessoas e seus ambientes de entorno, assim como as perspectivas destas
pessoas para o desenvolvimento no local favorecendo a prospecção e a análise da sustentabilidade da qualidade de vida em
diferentes locais.

6
Economistas usam o termo externalidade negativa para expressar o erro de alocação ou efeitos discordantes. Riscos, degradação e dilapidação são aceitos como
impacto de cada externalidade que pode ser retribuída somente pelo pagamento de um preço certo que deve ser negociado com aqueles que são prejudicados.
7
Área de Preservação Permanente – Segundo a lei no. 12651, de 25 de maio de 2012 do código ambiental brasileiro – Art,3o (II) – área protegida, coberta ou não por
vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico, de fauna
e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


307
Por fim, baseado neste contexto socioambiental e considerando a existência da Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, se observa inconsistência entre o que se prevê e prescreve as políticas
públicas e legislação ambiental envolvidas na manutenção da qualidade de vida de populações tradicionais costeiras e da popu-
lação em geral, sendo que o quê se observa, na prática, é a ocupação do solo sem planejamento, envolto por uma especulação
imobiliária e exploração de recursos naturais com diversos impactos como: contaminação hídrica, redução da balneabilidade,
perda de vegetação nativa, aumento de riscos costeiros devido às construções em áreas de risco, deterioração do patrimônio
histórico-cultural, dentre outros fatores que apontam para a insustentabilidade da qualidade de vida no local caso nada seja feito
para mudar este contexto controvertido.

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03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


309
PAISAGEM, LUGAR E PERCEPÇÃO AMBIENTAL: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA
A GESTÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE
MOCAPAJUBA-SÃO CAETANO DE ODIVELAS-PA

Barros, Diego Merces de1, Pimentel & Marcia Aparecida da Silva2

1. Acadêmico do PPG em Geografia- Universidade Federal do Pará, digbarr2@gmail.com 2. PPG em Geografia-


Universidade Federal do Pará, mapimentel@ufpa.br

Resumo
O presente trabalho objetivou compreender as diferentes categorias da geografia dentro do universo da geografia humanista,
em um trabalho exploratório que pretendeu discutir o lugar e a paisagem. Conceitos estes discutidos a partir dos fenômenos da
experiência, no intuito de compreender as diferentes percepções dos espaços. Objetivou-se, também, analisar preliminarmente
os elementos expressos da percepção ambiental de indivíduos ou grupos sociais no interior das Unidades de Conservação,
sobretudo na Reserva Extrativista Mocapajuba, no município de São Caetano de Odivelas, no estado do Pará.

Palavras-chave: Paisagem, Lugar, Percepção, Conservação, Experiência.

Introdução
Neste trabalho pretende-se revelar a ocorrência nas diversas ciências dos conceitos que concretizam a chamada percep-
ção ambiental. A percepção ambiental integra elementos da psicologia, da biologia, da antropologia e da geografia, entres outras
ciências. E, tem o objetivo primaz de analisar os fatores, os mecanismos e os processos que fazem com que haja diferenças nas
percepções e comportamentos diferenciados sobre o meio ambiente que rodeia o ser humano.
Deste modo, organizou-se o texto deste trabalho em quatro pontos, além desta Introdução. Na segunda seção, “Aproxima-
ções entre lugar e paisagem” procurou-se explanar os conceitos de lugar e de paisagem, elementos fundantes para interpretação
do meio ambiente para o homem, a partir do ponto de vista das vivencias dos seres humanos. O conceito de percepção ambien-
tal que agrega os valores e as atitudes que os seres humanos têm com seus espaços foi aqui tratado também.
Na terceira seção, “Atitudes e valores ambientais em unidades de conservação”, pretendeu-se aproximar as UC aos as-
pectos da vivência das populações que ai residem. A caracterização geral dos aspectos socioambientais que cercam as UC está
sendo tratado nesta seção. Em síntese, pretende-se identificar os elementos expressos na percepção ambiental de indivíduos ou
grupos sociais, ou seja, compreender as relações e as experiências que promovem valores e atitudes positivos perante o meio
ambiente, e que estejam contidos na percepção dos moradores destes espaços. Para isso analisamos de forma preliminar a
Reserva Extrativista Marinha de Mocapajuba, localizada no município de São Caetano de Odivelas, na região nordeste estado do
Pará. A perspectiva é trazer elementos teóricos e práticos que, de algum modo, contribuam para o direcionamento de estudos,
ações e/ou políticas a serem implementadas pelos órgãos ambientais nas UC, especialmente nas reservas extrativistas. E, que os
valores e as atitudes positivas percebidos, no contexto de suas vidas – interpretadas com e a partir da percepção da população
do espaço vivido, possam ser potencializados.

Aproximações entre Lugar, Paisagem e Percepção Ambiental


Os estudos das abordagens perceptivas na ciência geográfica vêm aumentando expressivamente. Assim, estudar o
espaço geográfico mediante uma visão perceptiva tem atraído as atenções e as investigações procurando acrescentar essa
dimensão humanista (OLIVEIRA; MACHADO, 2007). Há cada vez mais a valorização da paisagem e do lugar nos estudos da
geografia brasileira, principalmente com trabalhos que visam direcionar a percepção e a cognição do meio ambiente ao lugar e
à experiência, afirmando que

É oportuno porque está em moda pensar nos sujeitos das pesquisas como pessoas, quer como
indivíduos, quer como grupos. Nos últimos anos pulularam trabalhos e estudos sobre percepção

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


311
geográfica. Desde a década de 80, após a publicação da Topofilia e do Espaço e lugar, os geógra-
fos brasileiros se voltaram para a natureza, não mais dicotomicamente, separada da sociedade,
mas com uma visão holística, como um todo: natureza/sociedade. Daí ser necessário implementar-
se investigações com estas abordagens humanísticas (OLIVEIRA, 2004, p. 189).

O lugar, analisado sob o ponto de vista dos fundamentos orgânicos, cognitivos, afetivos e simbólicos, está sendo encarado
a partir de diversos olhares nas pesquisas atuais, e inúmeras contribuições fazem coro à interpretação da experiência humana e
sua complexidade, analisando o caráter geográfico dos espaços e das sociedades (OLIVEIRA, 2004).
Machado (1996) afirma que é a partir da experiência que o significado de espaço se articula com o de lugar. Um espaço
que aparentemente não apresenta diferença em relação aos outros, passa a ser um lugar a partir do momento que se conhece
melhor e o dota de valor. Portanto, os nossos lugares se apresentam de uma forma diferenciada daqueles lugares nos quais
passamos durante uma viagem, por exemplo. Existem diferenciações básicas na qualidade e no impacto daquelas impressões
que se tem de forma diária ou casual, das outras que se concebem por meio de livros, figuras, filmes, revistas, internet etc. Na
primeira, tem-se uma relação direta e íntima, na última, ela se torna indireta e conceitual. Portanto, o “[...] espaço transforma-se
em lugar à medida que adquiri definição e significado” (TUAN, 1983, p. 151).
O conceito de paisagem, também, retoma sua relevância por meio da geografia humanística. A construção da paisagem
se torna palpável por intermédio da dimensão da percepção e dos sentidos. Realmente a paisagem é tudo aquilo que a visão
abarca, sendo acrescentados por volumes, cores, movimentos, sons e odores. Ao mesmo tempo, significa o produto da materi-
alização das ações humanas no espaço, enquanto um conjunto complexo de formas naturais e artificiais em que se deve consi-
derar a heterogeneidade dos processos sociais e o decurso histórico dos modos de produção (BLEY, 1996).
A percepção ambiental, conforme destacado por Del Rio (1996), é o processo mental de interação do indivíduo com o am-
biente, em que atuam mecanismos perceptivos propriamente ditos e mecanismos cognitivos. O aspecto perceptivo está ligado
a um campo sensorial, e está intimamente ligado à presença do objeto e à sua sensação sobre ele.
Simultaneamente aos mecanismos perceptivos atuam também mecanismos cognitivos. Esses são entendidos enquanto
valores, conhecimentos precedentes, temperamentos, motivações, dentre outras ações. Isso acaba implicando na concepção de
que o significado e a importância atribuídos aos objetos espaciais percebidos sofrem certa variação de pessoa para pessoa ou
de um grupo social para outro, conforme cada experiência exercida no espaço do cotidiano, ou seja, relacionando-se de forma
intrínseca à vivência de um dado lugar (OLIVEIRA; MACHADO, 2003).
Dentro dessa proposição de estudo o termo “Percepção Ambiental” está sendo usado no sentido amplo de uma tomada
de consciência do ambiente pelo homem. Neste contexto, a caracterização perceptiva de grupos socioculturais atuantes no espa-
ço (pesquisadores, proprietários de terra, pescadores, gestores de Unidades de Conservação) vem se tornando parte integrante
da abordagem interdisciplinar para a avaliação dos valores ecológicos, socioeconômicos e culturais da área de conservação.
Neste ponto, cabe destacar que a perspectiva é de orientar propostas do planejamento global do uso dos seus recursos
naturais, incluindo estratégias de conservação da biodiversidade, manejo e ainda subsidiar a implementação de atividades em
educação ambiental. Portanto, a perspectiva de inclusão da percepção ambiental na gestão dos recursos naturais em UC contri-
buirá para a utilização racional dos mesmos. Certamente, possibilitando uma relação harmônica dos conhecimentos do interior
(como o ponto de vista de um indivíduo, de uma coletividade ou mesmo de uma população em seu conjunto) com os do exterior
(Governos, órgãos de planejamento, ONGs, etc.).

Atitudes e Valores Ambientais em Unidades de Conservação


Unidades de Conservação na Amazônia
As unidades de conservação vêm sendo encaradas como uma política de fundamental importância para se resguardar
a preservação dos elementos naturais do planeta, frente às práticas das atividades humanas. Cada país e entidades ambientais
adotaram seus próprios critérios e objetivos de conservação e preservação. Ao longo dos tempos, definiram áreas naturais a
serem protegidas, com o fim de atingir seus objetivos práticos para a preservação de seus ecossistemas, além de interesses
diversos, de acordo com pactos e interesses de seus governantes.
No âmbito da discussão atual sobre desenvolvimento sustentável, tão em voga na atualidade, a Amazônia apresenta um

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
312
cenário de interesses diversos, tanto no âmbito nacional como internacional. Nesse contexto, dois focos se destacam, a saber:
a conservação da natureza e o atendimento das necessidades das comunidades locais. A importância de combinar esses dois
interesses cresce a partir do início da década de 1990, com a urgência da importância do conceito de lugar na formulação das
políticas de desenvolvimento e sustentabilidade, contrapondo-se às políticas homogeneizantes, formuladas a partir de neces-
sidades gerais ou nacionais, que desconsideram as especificidades regionais e locais.
No âmbito da emergência ecológica atual e da importância da Amazônia em termos de biodiversidade, além do incre-
mento da ciência no contexto global das UC e das áreas protegidas, emergem como alternativa a gestão compartilhada de ter-
ritórios. Não obstante, as UC originar da ideia de proteção da natureza para que se possa preservar a “intocabilidade” de seus
atributos físicos e naturais, sem a presença do homem nestes espaços, idealizado a partir de contextos diferenciados, de países
desenvolvidos, elas surgem, no atual momento, como um desafio na Amazônia, região que apresentam um contexto diferenciado
de gestão e de parceria dos diversos atores que necessitam integrar-se para conservação e desenvolvimento regionais e locais
(DIEGUES, 1996).
Ademais, na Amazônia a questão ganha outra amplitude, pois na composição dos ecossistemas e na implantação feita
pelo Estado desses espaços de conservação, encontram-se comunidades que há tempos ocupam esses espaços, que na maio-
ria das vezes apresentam grande relevância na própria conservação da biodiversidade local. Por sua vez, Simonian (2000, p. 44)
afirma que

Numa perspectiva histórica, muitos indígenas e populações tradicionais não indígenas têm lo-
grado manejar positivamente os recursos naturais e assim garantir a sustentabilidade do ambiente
e de suas sociedades.

Então, essas populações destacam-se como positivas na conservação das áreas de reserva da região amazônica, desde
que o manejo empregado seja positivo e que as políticas públicas para a região se dêem de forma a equilibrar os recursos na-
turais e o bem- estar das populações da região.
Estas populações receberam grande valor a partir do conceito de “Populações Tradicionais”, que segundo Silva (2007)
está intimamente ligado ao processo da própria constituição das UC, sobretudo as reservas extrativistas. Portanto, o conceito
agrega também a ótica do movimento ambientalista como forma de explicitar o conjunto das populações tradicionais e seus mé-
todos específicos de sustentabilidade socioambiental. Ademais, nesses espaços encontram-se também vários agentes sociais,
com diferentes níveis de conflitualidade e objetivos de desenvolvimento, destacando-se o Estado, as populações tradicionais e
os agentes econômicos exógenos, este último, muitas vezes concebem a biodiversidade como recurso infinito.
Nas UC da região amazônica, esse engajamento e elucidação de percepções dos vários atores, principalmente das
populações locais, para as questões práticas e teóricas do desenvolvimento endógeno da região, perpassam pelo envolvimento
dos vários atores em busca do desenvolvimento que se queira sustentável. Porém, esse intento só dará pela efetiva qualidade
política dos agentes sociais, ora hegemonizados, com envolvimento que traga representatividade, legitimidade, participação da
base e autossustentação dos movimentos sociais organizados (DEMO, 2001). Isso, para uma verdadeira participação nos pro-
cessos sociais, econômicos e ecológicos da atualidade.

Reserva Extrativista de Mocapajuba


Dentro deste contexto, no de 2014 o Governo Federal consolida a criação de três novas Unidades de Conservação no
litoral nordeste paraense. Entre elas a Reserva Extrativista Marinha Mocapajuba, através do Decreto de 10 de outubro de 2014,
localizada no município de São Caetano de Odivelas, com aproximadamente 21.029ha de área. Os objetivos são de garantir a
conservação da biodiversidade dos ecossistemas de manguezais, restingas, dunas, várzeas, campos alagados, rios, estuários e
ilhas; e assegurar o uso sustentável dos recursos e proteger os meios de vida e a cultura das populações tradicionais extrativistas
desta região. As RESEX, assim como as demais UC brasileiras, necessita ter um Conselho gestor, presidido pelo órgão gestor e
constituído pelos diversos atores envolvidos na Reserva Extrativista, além da comunidade cientifica.
Em São Caetano de Odivelas, de forma geral, e na RESEX de forma especifica, a pesca artesanal é praticada por mui-
tos moradores, assim como a retirada de caranguejos, sendo esta última a atividade considerada de importância econômica e
turística para o município de São Caetano de Odivelas. Além disso a prática da aquicultura, principalmente de ostras, ocorre em

03: Desafios do desenvolvimento e respostas da sociedade


313
algumas comunidades próximas aos rios da região. Outra questão relevante é que o principal ecossistema da região, o
manguezal, presente em boa parte da área está ameaçado pela excessiva ação antrópica através da retirada e a comercialização
dos caranguejos.
Porém é necessário elencar que estes sujeitos sociais se caracterizam por ser uma população que vive da pesca e da re-
tirada dos mariscos; e que conhecem profundamente a área e o ambiente de onde retiram os recursos necessários à reprodução
social familiar. Portanto, sujeitos essenciais nas politicas de conservação dos recursos naturais, sobretudo em unidades de con-
servação.
Os moradores do interior da RESEX estabelecem relações, entre si e com a natureza, em um lugar onde a interação com
o meio está evidente em suas atividades diárias de trabalho, sobrevivência e lazer. Deste modo às populações locais fazem uso
do ambiente de forma menos opressiva, pois percebem o “seu” lugar como lócus do bom viver e de sua sobrevivência.
No que diz respeito à relação do homem-natureza nas unidades de conservação no Brasil, e principalmente na Amazônia,
tem uma característica muito particular e se apresenta como discussão central no intuito de conservação da natureza. Pois se
parte do pressuposto que as populações que ali viviam anos ou séculos, tratava a natureza como parte integrante de suas vidas,
portanto possuíam uma relação “harmoniosa” com a natureza. Quando tratamos de unidades de conservação de uso sustentável
isto fica mais claro e cada vez mais importante.
Essas populações receberam grande valor a partir do conceito de “Populações Tradicionais”, que segundo Silva (2007)
está intimamente ligado ao processo da própria constituição das UC, sobretudo as reservas extrativistas. Portanto, o conceito
agrega também a ótica do movimento ambientalista como forma de explicitar o conjunto das populações tradicionais e seus mé-
todos específicos de sustentabilidade socioambiental. Ademais, nesses espaços encontram-se também vários agentes sociais,
com diferentes níveis de conflitualidade e objetivos de desenvolvimento, destacando-se o Estado, as populações tradicionais e
os agentes econômicos exógenos, este último, muitas vezes concebem a biodiversidade como recurso infinito.
Estes aspectos são evidenciados pelos moradores da RESEX, pois, a partir de observações preliminares vimos que a
maioria destes atuam de forma mais equilibrada com o meio ambiente. Justifica-se neste contexto, uma nuance de bem estar
deste espaço-lugar. É evidente que problemas de relação em desarmonia com o meio existem. Porém, com a posse de estudos
que evidenciem as potencialidades e as problemáticas referentes à percepção e às atitudes perante o meio ambiente, podemos
contribuir em relação às políticas públicas no interior do processo de implementação da RESEX Marinha, com ações conjuntas
de atividades de educação ambiental, e iniciativas outras que visem à melhoria das relações humanas com o ambiente.
Neste ponto, cabe destacar que a perspectiva é de orientar propostas do planejamento global do uso dos seus recursos
naturais, incluindo estratégias de conservação da biodiversidade, manejo e ainda subsidiar a implementação de atividades em
educação ambiental. Portanto, a perspectiva de inclusão da percepção ambiental na gestão dos recursos naturais em UC contri-
buirá ainda mais para a utilização racional dos mesmos. Certamente, possibilitando uma relação harmônica dos conhecimentos
do interior (como o ponto de vista de um indivíduo, de uma coletividade ou mesmo de uma população em seu conjunto) com os
do exterior.

Considerações Finais
Este trabalho buscou no primeiro momento debater categorias da ciência geográfica, a partir do fenômeno da experiên-
cia. Porquanto os estudos das abordagens perceptivas na ciência geográfica vêm aumentando expressivamente. Desta forma,
estudar o espaço geográfico mediante uma visão perceptiva tem atraído atenções e as investigações procurando acrescentar
essa dimensão humanista. Além disso, também, o lugar, analisado sob o ponto de vista dos fundamentos orgânicos, cognitivos,
afetivos e simbólicos, está sendo mostrado a partir de diversos olhares nas pesquisas atuais, e inúmeras contribuições fazem
coro à interpretação da experiência humana e sua complexidade, analisando o caráter geográfico dos espaços e das sociedades.
Nos espaços de conservação, vários são os conceitos que se pode abordar e explorar cientificamente. Então, devemos
procurar analisar, as UC também sob o prisma destes três principais conceitos geográficos: espaço, paisagem e de lugar. Com
intuito de gerar conhecimento e trazer a contribuição da ciência geográfica humanista para os estudos e planejamentos destes
espaços.
Pois as relações vividas nas UC podem ser compreendidas como um lugar para seus moradores, pois as relações se
dão por intermédio da afeição e da familiaridade para com o espaço e sua paisagem. Espaço que se encontram intimamente

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
314
relacionado à consciência de seu passado e de sua cultura.
Assim, identificados os elementos expressos na percepção ambiental de indivíduos ou grupos sociais, pode-se empregar
nesses aspectos um estímulo a formação de atitudes e valores positivos dos moradores destes espaços. Deste modo, objetivando
a valorização da paisagem, como intermediário na conservação dos ecossistemas presentes.
O reconhecimento dessas atitudes positivas e negativas são de fundamental importância para a conservação dos elemen-
tos naturais, desde que transmutando os valores e atitudes negativas em formas positivas. E elas devem ser consideradas como
um importante referencial para programas de educação e orientação ambiental, com o intuito de um engajamento a preservação
e a permanência dos elementos paisagísticos. Portanto, configura-se um dos caminhos a ser trilhado nas diversas áreas de
conservação. Ainda mais, com a frequência que é debatida, por seus moradores, a efetividade dos órgãos governamentais coor-
denando as ações. Desse modo, tais questões podem contribuir para discussão e planejamentos realizados sobre este espaço,
além de vislumbrar as especificidades e as demandas de suas populações.
Ressalta-se que a proeminência das Unidades de Conservação é balizada pela relevância dos seus ecossistemas para
toda a sociedade, e a busca integrada por conservação e, ao mesmo tempo, a utilização dos recursos naturais, de maneira
moderada e não impactante, para as populações locais. Neste sentido, a ciência tem relevante papel nas mudanças, desde que
se mude, também, o enfoque cientifico tradicional, pois os fenômenos insurgentes derivam da atividade perceptiva dos seres
humanos em relação às condições ambientais do atual momento da história. Deste modo, devem-se adotar procedimentos que
levem em consideração a percepção e a atribuição de atitudes e de valores que os diferentes sujeitos adotam sobre os diversos
espaços e, com isso, mesclar a objetividade do cientista com a preocupação dos sujeitos presentes nos diversos espaços.
Neste sentido, é enorme o desafio que se tem pela frente, pois nesta crise de percepção generalizada, transformada em
uma crise de valores e de percepções ambientais, tanto no âmbito da sociedade como individualmente, é que se deve partir para
a tomada de decisões quanto à conservação de recursos naturais como parte integrante de vida, na perspectiva de garantir a
sobrevivência dos diversos ecossistemas para as atuais e futuras gerações. Assim sendo, é necessário pensar em uma sociedade
inserida ao meio ambiente, e não indiferente a ele, dissipando essa dicotomia indolente entre seres humanos e natureza.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
316
04
1. Diversidade cultural e
manejo da biodiversidade

Diferentes visões de mundo, línguas e


modos de vida constituem a linha mestra
deste eixo temático, incluindo também as
discussões sobre etnoconhecimento; ciência
e tecnologia; experiências de manejo de
áreas protegidas e conservadas, incluindo
as áreas marinhas; conflitos socioambientais
e relações de poder no manejo da
biodiversidade. Ampliando os debates, é
assunto de interesse também o
monitoramento participativo da
biodiversidade e as cadeias de valor e
agrobiodiversidade.
SOCIOBIODIVERSIDADE E AUTO-SUSTENTO NO COMPLEXO DE
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DE TERRA RONCA

Souza, Cláudia de1 & Trindade, Hiran de Gusmão2

1. Universidade de Brasília, sclaudias@gmail.com 2. Universidade de Brasília

Resumo
O bioma Cerrado detém 5% da biodiversidade do planeta. Entretanto, é um dos biomas mais ameaçados do planeta especifi-
camente pela maciça conversão de áreas nativas em pastagens e cultivos. O “Complexo de Unidades de Conservação Terra
Ronca”, localizado no nordeste de Goiás, está totalmente inserido nesse bioma. Apesar da vegetação e dos recursos naturais
conexos apresentarem bom estado de conservação, na região ocorre significativa ação antrópica nas formas de explorações
da pecuária e do calcário. No entanto, a região é reconhecida também como um dos loci de extrativismo da flora nativa pela
agricultura familiar, associado aos sistemas produtivos de autosustento. O objetivo deste trabalho é abordar a interface entre
conservação e uso sustentável desse complexo de UC, com enfoque no uso de produtos da sociobiodiversidade, extrativismo de
frutos e sistemas produtivos de autosustento.

Palavras-chave: Cerrado, Extrativismo, Unidades de Conservação, Uso Suatentável, Terra Ronca.

Introdução
A região do Vão do Paranã1, situada no nordeste goiano2, é conhecida por fazer parte dos seis fragmentos mais conserva-
dos de Goiás (CARVALHO; FELFILI, 2011; GANEM, 2007). Situa-se no Cerrado, o bioma brasileiro que mais alterações sofreu
com a ocupação humana, após a Mata Atlântica. A mineração, o garimpo, a expansão da agricultura, a irrigação, a aglomeração
urbana, a falta de tratamento do esgoto sanitário e a contaminação dos aquíferos subterrâneos estão entre as principais causas.
Nos últimos anos, a expansão da agricultura e da pecuária tem representado o maior fator de risco para o Cerrado e para os
recursos hídricos (HOGAN et al., 2002). Junto com a perda de ecossistemas, perde-se também a diversidade e a complexidade,
de uma forma ainda incalculável (DEAN, 1996).
Terra Ronca encontra-se na bacia do Alto Tocantins, onde há alta diversidade de fitofisionomias, porém uma flora pouco
conhecida (SILVA; SCARIOT, 2004). A região de Terra Ronca possui aproximadamente 17.000 Km2 e localiza-se nos municípios
de São Domingos e Guarani de Goiás.
Essa região goiana, localizada na microregião do Vão do Paranã e conhecida por conter um dos maiores complexos es-
peleológicos da América do Sul (CARVALHO, 2004), tem de tradição cultural de criação de gado e de culturas de autosustento e
extrativismo. Entretanto, tem recebido pressão cada vez maior sobre os ecossistemas nativos com a expansão da agropecuária
e da exploração do calcário. Para conservar a biodiversidade na região, uma das principais estratégias utilizadas foi o esta-
belecimento de áreas especialmente protegidas, ou unidades de conservação (UC). Para salvaguardar importante patrimônio
espeleológico, foi criada uma unidade de conservação (UC) de proteção integral, em 1989: o Parque Estadual de Terra Ronca
(PETeR). Além dela, outras três UC foram criadas: a Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra Geral, em 1996; a Floresta
Nacional (Flona) da Mata Grande, em 2003; e a primeira reserva extrativista (RESEX) do Cerrado brasileiro, a Resex Recanto
das Araras de Terra Ronca, em 2006. Essas quatro UC juntas formam o que aqui denominamos de “Complexo de Unidades de
Conservação Terra Ronca”, região a que se dedica o presente trabalho.
Até abril de 2014, o PETeR havia regularizado 57% de sua área e os maiores impactos, segundo o gestor do Parque, são as
queimadas, a criação de gado extensiva e a mineração. Até novembro de 2014, a RESEX ainda não tinha iniciado a regularização
fundiária e nem o Conselho Deliberativo havia sido criado. Tampouco se tem notícias sobre a criação do Conselho Consultivo
da Flona e do Conselho Gestor da APA.
1
Composta por 12 municípios: Alvorada do Norte, Buritinópolis, Damianópolis, Divinópolis de Goiás, Flores de Goiás, Guarani de Goiás, Iaciara, Mambaí, Posse, São
Domingos, Simolândia e Sítio D’Abadia (AGÊNCIA GOIANA DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL, 2013; MOREIRA, 1995).
2
O Nordeste goiano foi oficialmente definido com quatro microrregiões do Estado de Goiás – Entorno de Brasília, Vão do Paranã, Chapada dos Veadeiros e Porangatu
(GANEM; DRUMMOND; FRANCO, 2008).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


319
É nítido o contraste na região entre tipos de unidades de conservação diferentes quanto à possibilidade de uso e a
produção para o autosustento, a criação de gado com o uso do fogo para o manejo das pastagens, a existência ainda recorrente
de pastos de uso comum bem como a extração de produtos não madeireiros. Os dados aqui mostrados foram obtidos em pes-
quisa exploratória no âmbito de pesquisa de doutorado e mestrado dos autores.
Neste artigo pretende-se, então, abordar a interface entre conservação e uso sustentável desse complexo de UC’s, com
ênfase no uso de produtos da sociobiodiversidade, no extrativismo de frutos, e ns sistemas produtivos de autosustento das famí-
lias de agricultores familiares locais. O artigo se baseia em dados coletados em pesquisa exploratória em Terra Ronca, no âmbito
da pesquisa de doutoramento de Cláudia de Souza, primeira autora.

O Cerrado
O Cerrado ocorre no Brasil Central (KLINK; MACHADO, 2005) e ocupa 2.039.386 km2, 24% do território nacional. Esse
bioma detém 5% da biodiversidade do planeta, sendo considerado a savana mais rica do mundo, além de ser um dos hotspots
mundiais (MMA, 2011), por combinar uma elevada biodiversidade com uma alta pressão antrópica sobre os seus ecossistemas.
Conforme Salgado-Labouriau (2005), o Cerrado é comumente considerado como resultante de desmatamento e queima
de florestas, ou seja, não passa do resultado de 400 anos de exploração iniciados com a colonização europeia. No entanto, essa
autora, citando Luis G. Laboriau, defende que o cerrado deve ser muito antigo já que “havia muitos pares de espécies vicari-
antes3 entre a mata seca e o cerrado e, principalmente, porque existiam mais de mil espécies de Angiospermas exclusivas dos
cerrados”. Até 1990, os dois pontos de vista mais comuns sobre o cerrado eram: vegetação secundária versus vegetação natural
muito antiga.
Entende-se hoje que o cerrado é formado por um mosaico de vegetações: os cerrados (que ocupam a maior área),
campos, matas secas decíduas ou semi-decíduas, matas de galeria, veredas (buritizais) e formações brejosas. Os resultados
dos estudos de Salgado-Labouriau (2005) mostram que o ecossistema do cerrado está presente no Brasil Central há mais de
36.000 anos antes do presente (AP), mas as vegetações daquela época, devido ao clima mais frio e úmido, eram bem diferentes
das atuais. Somente após 5.000 AP o clima passa para semi-úmido e tem uma estação seca prolongada, de três a cinco meses.
Salgado-Labouriau (2005) afirma também que “o cerrado é uma vegetação resiliente que tem sido queimada frequentemente du-
rante mais de 40.000 anos. Entretanto, o aumento da frequência de fogo não natural (causado por ação antrópica) tem colocado
em risco o ecossistema”.
Ribeiro (2005) afirma que o Cerrado cobria área muito mais extensa do que atualmente é descrito. Quanto à presença
humana nesse bioma, o autor resgata as três principais evidências: 1. Estreito de Behring como porta de entrada; 2. a data de
entrada no Estreito; e 3. o número de ondas migratórias e a origem dessas populações. Essa polêmica no que se refere à América
do Sul tem algumas especificidades: origem diversificada da população; data de entrada no continente; diferentes vias utilizadas,
conforme Ribeiro (2005). Citando André Prous, o autor escreve que houve cinco diferentes vias de chegada na América do Sul.
Para Ribeiro (2005), a via de chegada nos Cerrados (RIBEIRO, 2005, cita Ab´Saber e Laboriau em nota pessoal) deve ter sido
pelo Planalto.
Além da importante abordagem das vias de entrada no Cerrado, Ribeiro (2005) cita o uso do Bioma. O uso, segundo esse
autor, se deu desde a Tradição Itaparica, com o uso da lenha, dos artefatos vegetais, de colares de frutos, trançados de fibras
vegetais e das palmeiras nessa etapa da pré-história. Sobre o Arcaico Médio abordará as variações regionais climáticas, o favore-
cimento do aumento da umidade da mata, que provoca a diminuição da caça e o favorecimento de moluscos terrestres, tudo isso
para falar do uso dos frutos do cerrado para a alimentação. Quanto ao Arcaico Recente, Ribeiro (2005) cita o “altitermal” ou “ótimo
climático” europeu que possui em sua principal característica, o ponto máximo da temperatura no Holoceno e o ambiente mais
úmido. Nesse período, as florestas se expandem e o Cerrado se desloca e se dilata, reduzindo a Caatinga próxima ao que é hoje.
É nesse período também que a agricultura ocorre de forma mais clara. Citando Barbosa e Shmitz, o autor trata das esta-
ções chuvosas com maior variedade de alimentos disponíveis, e da seca, ligada ao uso dos recursos da fauna. Nesse momento
da pré-história, segundo o autor, os seres humanos se fixaram e puderam vigiar seus plantios. É aqui também que ele aborda
3
As espécies vicariantes são muito próximas taxonomicamente, apresentam estreito grau de parentesco e os aspectos morfológicos que as distinguem podem ser
resultantes da diversidade do ambiente. In: MENDES, I.C. and PAVIANI, T.I. Morfo-anatomia comparada das folhas do par vicariante Plathymenia foliolosa Benth. e
Plathymenia reticulata Benth. (Leguminosae - Mimosoideae). Rev. bras. Bot. [online]. 1997, vol.20, n.2, pp. 185-195. ISSN 0100-8404. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-
84041997000200009.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
320
a agrobiodiversidade: milho, abóboras e amendoim. O período Cerâmico, Tradições Una, Aratu/Sapucaí e Uru aborda vários
aspectos que remetem à melhor compreensão das origens do uso da biodiversidade associado à agricultura.
Para Ribeiro (2005), a “ocupação do bioma Cerrado se traduziu em uma adaptação a ele e às possibilidades de sobre-
vivência oferecidas, diferente do que ocorreu em outros ambientes do continente” (p. 91). Para o autor, há um complexo cultural
próprio da savana, expressando o quanto ele teria se “constituído a partir de um longo processo histórico, que envolvia várias
tradições e fases desde o Holoceno” (p.104). Ribeiro (2005) cita Tom Miller, com relação ao complexo da agricultura indígena
que seria representada pelas plantas de propagação vegetal (mandioca, cará e outras) e as semeadas (abóbora, milho, algodão
e feijão). A caça e a coleta são complementares ao “conjunto de atividades e experiências com espécies semi-domesticadas (p.
105)”.
Ab’Sáber (2003) afirma que o Cerrado brasileiro é formado por um grande conjunto paisagístico com chapadões, planal-
tos e morros recobertos por cerrados, florestas de galeria, veredas, cerradões e formações campestres de diversos tipos. O autor
chama os cerrados de Fênix dos ecossistemas brasileiros, devido ao fato deles renascerem de suas próprias cinzas. Os cerrados
são um tipo de vegetação adaptado à secura do clima, assim como as caatingas (RIBEIRO, 1995).
Ab’ Sáber (2003) menciona também as mudanças provocadas no cerrado devido aos padrões modernos impostos pelo
ser humano que substituíram pelo menos parcialmente as velhas estruturas sociais e econômicas. Para esse autor os campos
cerrados são cerrados, mas chama também de cerrados, o domínio do ecossistema. Afirma que os cerradões, quando degrada-
dos por ações antrópicas, não se refazem facilmente, quiçá se recompõem. Para Ab’ Sáber (2003) seria necessária pelo menos
a preservação de 30% do espaço total da sua área nuclear, mas esse autor reconhece que, no fim dos anos 2000, a devastação
antrópica já havia atingido 70%, sem considerar a preservação relativa dos patrimônios naturais do “universo” de cerrados e
cerradões. É um dos biomas mais ameaçados com grandes áreas sendo sistematicamente convertidas em pastagens e cultivos
agrícolas (RIBEIRO et al., 2007).

Goiás e a Região de Terra Ronca


Até 2010, 48,54% da área da vegetação nativa do Cerrado brasileiro tinham sido suprimidos (GANEM; DRUMMOND;
FRANCO, 2013). No estado de Goiás, onde esse estudo será desenvolvido, a situação não é diferente. Nesse estado, completa-
mente inserido no Cerrado, restam apenas 11,39% de sua biodiversidade ainda conservados (GANEM, 2007).
Terra Ronca possui, dentre outras formações, florestas estacionais deciduais sobre afloramentos calcários (CARVALHO;
FELFILI, 2011). Esses afloramentos são variáveis fundamentais para o entendimento da preservação da biodiversidade remanes-
cente na região (SILVA; SCARIOT, 2004).
A região de Terra Ronca localiza-se nos municípios de São Domingos e Guarani de Goiás (Figura 1). Trata-se de uma
região que se insere nos domínios dos deslocamentos dos indígenas caçadores-coletores, conforme indicaram os sítios arque-
ológicos, apesar dos poucos estudos disponíveis a esse respeito (FERNANDES, 2009). A presença mais registrada na região é
a de índios da tradição Tupi e do Tronco Jê, com datação de 300-400 anos (BERTRAN, 1994). Mais recentemente, em meados
dos séculos XVIII e XIX, a região foi ocupada por colonizadores portugueses em busca de riquezas minerais. Mais tarde, no
final do século XIX, início do XX, com a redução da mineração, a área passou a ser utilizada para pastagens, algo que trouxe
transformações significativas à paisagem (RIBEIRO, 2006). Os ocupantes do Cerrado são denominados por Ribeiro (1995) como
sertanejos. O sertanejo, para Ribeiro (1995), é aquele com “uma subcultura própria marcada por sua especialização ao pastoreio,
por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida, na organização da família, na estrutura-
ção do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e de uma religiosidade
propensa ao messianismo” (p. 339). O sertanejo é aquele nascido na economia pobre e dependente do pastoreio numa parcela
ponderável da população nacional que cobriu e ocupou áreas territoriais mais extensas do que quaisquer outras, relacionado à
economia pastoril associada à produção açucareira, fornecedora de carne, de couros, de bois e serviços.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


321
Figura 1. Localização dos municípios de Guarani de Goiás e de São Domingos, na região de estudo, conforme mapa
político-administrativo. Fonte: IBGE (2010). Elaborado por Cristiane Gomes Monteiro, 2014.

Os colonizadores fizeram desse lugar “sertão” que, conforme Ribeiro (2006, p. 281), é um lugar de “pouca gente” e de
“muita natureza”. A região é formada por fazendeiros, agregados e posseiros desde as concessões das primeiras sesmarias.
Desde a chegada dos primeiros colonizadores, a autossubsistência é garantida pelo Cerrado, por meio da caça, pesca, coleta
de mel, extração de plantas, frutos, raízes e da criação de animais. A autossubsistência, a criação de gado e alguma extração
da flora permanecem na região de Terra Ronca. Essas atividades são conduzidas atualmente pelos netos e bisnetos dos antigos
posseiros e dos criadores de gado que viviam em comunidades isoladas e dispersas (FERNANDES, 2009). Segundo Fernandes
(2009), se há algo ainda presente entre os moradores de Terra Ronca, é a cultura da roça.
Essa região goiana, de tradição cultural de criação de gado e de culturas de subsistência e extrativismo, exerce pressão
cada vez maior sobre os ecossistemas nativos para a expansão da agropecuária e para a exploração do calcário. Para conservar a
biodiversidade na região, uma das principais ferramentas utilizadas foi o estabelecimento de áreas especialmente protegidas, ou
unidades de conservação (UC). Foram criados, mas ainda não implementados na região de Terra Ronca, o Parque Estadual de
Terra Ronca (PETeR), a Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra Geral, em 1996; a Floresta Nacional (Flona) da Mata Grande
e a RESEX Recanto das Araras de Terra Ronca, conforme Figura 2.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 2. Disposição das Unidades de Conservação do Complexo de Terra Ronca.
Fontes: IBGE (2010) e MMA (2014). Elaborado por Cristiane Gomes Monteiro, 2014.

A criação de uma RESEX implica necessariamente no reconhecimento da ocorrência do extrativismo pela população
daquela região. A população residente e usuária de RESEX poderia ser considerada “população tradicional”. Conforme Die-
gues (2001), a Diretiva Operacional 4.20 de 1991 do Manual de Operações do Banco Mundial dá características mais amplas ao
termo, conceituando as populações que nelas residem como aqueles povos que vivem em áreas geográficas particulares que
demonstram, em vários graus uma ligação intensa com os territórios ancestrais; a auto-identificação e identificação pelos outros
como grupos culturais distintos; uma linguagem própria, muitas vezes não a nacional; presença de instituições sociais e políticas
próprias e tradicionais; e sistemas de produção principalmente voltados para o autosustento.
Para Diegues (2001), culturas tradicionais estão associadas a modos de produção pré-capitalistas, próprios de socie-
dades em que o trabalho ainda não se tornou mercadoria, em que a dependência do mercado já existe, mas não é total.
Outro elemento importante na relação entre essas populações e a natureza é sua relação com seu território. Diegues
(2001) traz a definição de Godelier (1984) para esse tipo de território trabalhado pelas populações tradicionais como “uma porção
da natureza e espaço sobre o qual uma sociedade determinada reivindica e garante a todos, ou a uma parte de seus membros,
direitos estáveis de acesso, controle ou uso da totalidade ou de parte dos recursos naturais aí existentes que ele deseja ou é
capaz de utilizar”.
Para Godelier, citado por Diegues (2001), o território fornece, em primeiro lugar, a natureza do homem como espécie;
os meios de subsistência; os meios de trabalho e produção; os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais,
aquelas que compõem a estrutura determinada de uma sociedade (relações de parentesco, etc.).

Metodologia
Para começar a identificar as potencialidades e os desafios na região de Terra Ronca, foi dado início ao levantamento
documental e bibliográfico e algumas entrevistas, mesmo que ainda informais, com atores locais e com os gestores do PETeR e
da RESEX numa viagem pré-exploratória à região de Terra Ronca em abril de 2014.
Levantamentos pré-exploratórios de campo têm o objetivo de ajudar a constituir a problemática da pesquisa a ser rea-
lizada. A função principal das entrevistas exploratórias é de revelar determinados aspectos do fenômeno estudado que não
foram pensados espontaneamente e, assim, completar as pistas de trabalho sugeridas pelas leituras prévias (QUIVY; CAMPEN-
HOUDT, 2013).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


323
Uma das principais questões na região é onde se iniciam e terminam o Parque e a RESEX. Essa é uma dúvida bastante
pertinente quando se deseja avaliar práticas produtivas, produção de autosustento e utilização da flora local.
Sobre as formas organizativas, conversando com moradores da região durante a visita, a única organização social citada
é a Cooperativa Coopcerrado. Essa Cooperativa foi uma das organizações com líderes responsáveis pela criação da RESEX. A
Coopcerrado tem na região de Terra Ronca, um dos loci importantes quanto ao extrativismo da flora local4.
Os quatro povoados visitados da região foram São João Evangelista, Formiga, São Vicente e Piteira. Entretanto, abordare-
mos aqui apenas duas realidades: Formiga e São João Evangelista.

Formiga
A comunidade de Formiga situa-se a 1,5km do povoado de São João Evangelista, à direita na estrada que vai do povoado
São João Evangelista à base do PETeR. Essa comunidade tem quatro ou cinco casas apenascom água encanada, mas sem ener-
gia elétrica. A comunidade é formada por uma só família nascida no lugar. Segundo os funcionários do PETeR, essa comunidade
está dentro dos limites dessa UC, mas a única que vive do extrativismo.
Em Formiga, cultivam para o auto-consumo: arroz, feijão e mandioca. Cultivam também cana-de-açúcar para alimentar
o gado. Não consideram a diversificação de espécies em seu quintal. Mas, há bananeiras, pitangueiras, alguns cítricos, man-
gueiras, abacateiros, dentre outras. Quanto à origem das sementes, foi informado que é comum a troca de variedades com os
parentes e amigos, sempre que necessário. Possuem uma farinheira bem tradicional em um dos quintais e produzem farinha de
mandioca . Mas, ela possui um traço de modernidade: o ralador da mandioca com motor a óleo diesel.
Quanto aos frutos do cerrado, coletam, consomem e comercializam muito pouco em Formiga. Comercializam apenas
o óleo de babaçu. Para o autosustento, quando necessário utilizam o pequi (Caryocar brasiliensis), o cajuzinho (Anacardium
humile), o cascudo ou araticum (Annona crassiflora), o buriti (Mauritia flexuosa), o baru (Dipteryx alata) e o óleo do babaçu
(Attalea spp); e não usam o jatobá (Hymenaea stigonocarpa). É comum comercializarem fava d´anta (Dimorphandra sp).
Em Formiga, os moradores têm acessado o auxílio do Programa Bolsa Verde5. Esse Programa auxilia famílias que resi-
dem em unidades de conservação de uso sustentável, em boas condições de conservação ambiental. Além de a comunidade
estar situada dentro do PETeR, seus habitantes são considerados beneficiários da RESEX e, por isso, têm direito ao auxílio do
Bolsa Verde. Aparentemente não se utiliza insumos nas áreas produtivas na comunidade de Formiga.

São João Evangelista


O povoado de São João Evangelista está situado entre o PETeR e a RESEX. Para ilustrar o modo de produção e de coleta
de frutos do povoado, veja dois relatos de entrevistas à moradores do mesmo povoado.
Um deles diz que tudo para a alimentação é comprado em São Domingos. Segundo ele, somente mandioca e galinha
são produzidas ali. Ninguém mais dá valor ao arroz de pilão; todos preferem o arroz comprado em São Domingos. Quanto aos
frutos do cerrado há pouca coleta. Os frutos mais utilizados são o cajuzinho-do-cerrado (Anacardium humile), buriti (Mauritia
flexuosa) e pequi (Caryocar brasiliensis). É comum que tenham casas no povoado e em outras áreas, onde por vezes ainda se
produz mandioca, por exemplo.
O outro morador reside em uma propriedade na RESEX informou-nos que há 22 famílias beneficiárias dessa unidade de
conservação. Ele é uma dasreferências da região quando o assunto é a comercialização de frutos do cerrado e de produtos da
agricultura familiar.
Sua área de produção é distinta das outras que visitamos ou de que passamos próximo e pudemos observar. Seu siste-
ma tem inputs tecnológicos voltados aos sistemas orgânicos de produção, é altamente diversificado, com uma racionalidade
econômica distinta da de outros e intensa diversificação produtiva. Seu sistema produtivo foi apresentado com grande quanti-
dade de informações a respeito do número de mudas plantadas, produtividade, valor auferido na comercialização, período de
colheita, assim como formas de manejo utilizadas. Produz gergelim branco, gergelim roxo, pimenta malagueta, erva cidreira e

4
Essa afirmação pode ser observada na lista de extrativistas no site da Coopcerrado (Empório do Cerrado). Disponível em: http://www.emporiodocerrado.org.br/
pt-br/rede/extrativistas.asp. Acesso em 16/11/2014.
5
Programa de Apoio à Conservação Ambiental Bolsa Verde, instituído pela Lei federal nº 12.512, de 14 de outubro de 2011, e regulamentado pelo Decreto nº 7.572
, de 28 de setembro de 2011. Na RESEX sete famílias recebem o benefício do Programa Bolsa Verde (Geraldo Marques Ribeiro; Maria Carvalho Ramos; Marineide
Oliveira de Carvalho; Odesvaldo Ferreira Lima; Orcalino Domingos dos Santos; Regina Rodrigues Pimentel e; Vera Lucia Ferreira Lima).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
324
e, açafrão. Está plantando fava d´anta, uma das espécies de mais fácil comércio, além de baru.
Utilizam fava d´anta e barbatimão. A fava d´anta possui folhas menores, casca mais fina e mais clara. Da fava são com-
prados os frutos, do barbatimão, a casca da árvore.
Para o autosustento, ele produz milho; gado; maracujá; feijão; duas variedades de batata-doce plantadas, entremeando
as áreas de produção; café; romã e fruteiras de várias espécies no quintal. Há também várias espécies plantadas no quintal para
serem utilizadas como medicamentos.
Está introduzindo várias arbóreas, exóticas e nativas, no entorno da lavoura e da propriedade. Está plantando Nim (usado
para combater enfermidades nas lavouras), baru e fava d´anta ao longo de uma das cercas de sua propriedade.
Toda a propriedade tem manejo orgânico desde 2000 e ele já passou pelo processo de inspeção. Ele utiliza como insumos
apenas biofertilizante e urina de vaca, produzido na propriedade. Quanto à comercialização, sua resposta foi a de que só vale a
pena comercializar quando há carga suficiente para completar um caminhão de 4 toneladas. O preço dos produtos, às vezes, é
negociado anteriormente e pode até ser adiantado aos produtores. Para ele, as famílias deixaram de coletar porque desde que a
Resex foi criada e, enquanto não for regularizada, não podem coletar. Os proprietários que estão dentro da área não permitem.
Para o armazenamento da produção coletada ou pré-beneficiada, a comunidade possui um galpão no povoado de São
João. No momento da pesquisa, soubemos que o galpão estava com 27 toneladas de fava d´anta estocada.
Há dois casos contrastantes que poderiam ser melhor explorados analiticamente (Osmar e Dona Rosa). São duas reali-
dades que convivem na região e revelam potencialidades e limites para a produção extrativista e/ou agroecológica.

Considerações Finais
Com relação às unidades de conservação, o PETeR e a RESEX têm influência direta no modo de vida e nos sistemas
produtivos dos habitantes da região de Terra Ronca. São também as únicas UC mencionadas pelos habitantes. O PETeR ainda
não realizou toda sua regularização fundiária. Os grandes proprietários foram os únicos indenizados e por isso ainda há peque-
nas propriedades produzindo nessa UC. Já a RESEX está em processo de implantação, apesar de ter sido criada em 2006. Ainda
não foi criado o Conselho Deliberativo, não há plano de manejo e a regularização fundiária não ocorreu. Por fim, ainda não há
uma compreensão completa sobre os reais beneficiários dessa UC.
No tocante aos produtos do extrativismo, considerados produtos da sociobiodiversidade local, não há uma compreensão
e entendimento por parte da maioria dos entrevistados sobre o que é ou não permitido com relação à produção, à coleta e à
comercialização de frutos do cerrado. Também não há clareza quanto ao processo instituído de comercialização. Aparentemente,
há pouco aproveitamento dos frutos do cerrado para o autossustento, no mercado local, nas pousadas, bares e restaurantes, e
nem regionalmente.
A produção para o autossustento parece ser muito pequena e mantida por poucos. Os principais produtos são: feijão,
arroz, mandioca, cana-de-açúcar e o gado. É comum utilizarem sementes próprias e trocadas entre parentes. Alguns fatores
podem ter levado a essa baixa produção: famílias cada vez mais reduzidas, envelhecimento da população rural, criação das UC,
maior acesso às áreas urbanas próximas, facilidade para adquirir produtos que antes eram cultivados, pouco incentivo para a
produção, ou até maior acesso a fontes de renda (aposentadoria, bolsa família e bolsa verde).
Terra Ronca é uma das áreas mais bem preservadas no estado de Goiás, mesmo sendo uma antiga área de uso da bio-
diversidade nativa por parte dos habitantes locais. É uma região com potencial turístico em ascensão, mas ainda pouco explo-
rado, além de haver grande potencial no que diz respeito à conservação e preservação dos modos de vida que valorizem o uso
sustentável da biodiversidade.
Por fim, tratando-se de famílias que trabalham bastante para o seu autosustento em RESEX, e que apresentam dificul-
dades para produção e comercialização dos produtos extrativos, a iniciativa de compensar os serviços ambientais – prestados
gratuitamente pelas famílias produtoras rurais, em virtude da conservação e preservação da floresta – se justifica em termos
social e ambiental, melhorando a qualidade de vida (MACIEL et al., 2010).

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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


327
CONHECIMENTO TRADICIONAL E MANEJO DA BIODIVERSIDADE
NO ESTADO DO AMAZONAS

Lima, Vilma Terezinha de Araújo1 & Marchand, Guillaume2

1. Universidade do Estado do Amazonas, araujovilma@hotmail.com 2. Universidade Federal do Amazonas

Resumo
O presente artigo objetivou identificar como o ProBUC (Programa de Monitoramento da Biodiversidade e do Uso de Recursos
Naturais) influenciou no conhecimento dos moradores sobre a biodiversidade local e uso dos recursos naturais em três uni-
dades de conservação no Estado do Amazonas. Os resultados foram obtidos a partir de pesquisas documentais, entrevistas e
trabalhos de campo nas RDS Uatumã e Uacari e no PAREST Rio Negro Setor Norte-AM. Os pontos positivos mais citados foram
o aprimoramento do conhecimento sobre a biodiversidade, e dos recursos naturais disponíveis. Para vários moradores, antes do
Programa havia carência de informações sobre a situação social e ambiental das UC. Quais recursos podiam ser consumidos
ou comercializados pelos moradores. Como depende de recursos externos já ocorreram várias paralizações contribuindo para
perda de confiança na sua continuidade e eficácia.

Palavras-chave: Monitoramento, Conhecimento Tradicional, Unidades de Conservação.

Introdução
A Amazônia Brasileira em 2015 conta com uma área de 60.668.231,78ha (14,5% do Bioma Amazônico) distribuídas em 122
Unidades de Conservação federal (UC), sendo 80 de uso sustentável e 42 de proteção integral (BRASIL, 2015). O Estado do Ama-
zonas possui 42 UC estaduais sendo 34 de uso sustentável e 8 de proteção integral, ocupando uma área de 18.808.342,60ha do
seu território. Para gerenciar toda essa área o Estado conta com poucos profissionais, a maioria com contratos temporários sendo
comum a constante mudança de funcionários. Assim, alguns projetos buscam a participação de comunitários no monitoramento
da biodiversidade. Em documento recente o Ministério Público Federal destaca:

A importância de Unidades de Conservação como meio de garantir proteção a territórios que apre-
sentem características ecológicas e ambientais relevantes e devem ser mantidos sob um regime
especial de administração, bem como oportunidade de garantir a mesma proteção aos povos e
comunidades tradicionais (BRASIL, 2014,p. 12).

A ideia do monitoramento da gestão de unidades de conservação federais na Amazônia foi contemplada em 2003 dentro
do programa ARPA (Áreas Protegidas da Amazônia). O Sistema de Monitoramento da Biodiversidade (SIMBIO), foi testado em
seis unidades de conservação e teve sua metodologia inspirada em outras ferramentas internacionais como o Tracking Tool do
WWF (MARCHAND et al., 2015).
No estado do Amazonas o Programa de Monitoramento da Biodiversidade e do Uso de Recursos Naturais em Unidades
de Conservação Estaduais do Amazonas (ProBUC) foi desenvolvido pelo Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC)
desde 2006. O Programa elege como objetivos: “gerar, continuamente e de forma participativa, informações estratégicas para
a gestão de unidades de conservação” e “permitir a inserção das comunidades no processo decisório das ações de gestão da
UC onde estão localizadas.” (FONSECA JUNIOR et al., 2011, p. 15). O PROBUC foi desenvolvido com base em quatro princípios
norteadores: ser economicamente viável, ser contínuo, ser simples e ser aplicável à propostas de manejo de recursos naturais
e ao plano de gestão da UC. Destaca como finalidades: sensibilizar os residentes das UC sobre o uso dos recursos naturais e
problemas ambientais; capacitar os comunitários para o monitoramento ambiental e a tomada de decisão a partir dos dados
produzidos; monitorar espécies com potencial de uso; monitorar “espécies de interesse especial”, ou seja, espécies ameaçadas,
carismáticas ou conflituosas e monitorar o uso do solo e a modificação das paisagens (MARINELLI et al., 2007).
As atividades do Programa começaram em 2005 e, em 2006, ocorreram as primeiras monitorias na Reserva de Desen-
volvimento Sustentável do Uacari, em parceria com o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) e Universidade Federal

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


329
do Amazonas, em 2007. Iniciou no Parque Estadual do Rio Negro Setor Norte (com o apoio da Fundação Vitória Amazônica) e,
em 2009, a RDS Uatumã em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia. (MARCHAND et al., 2015).
O presente artigo buscou identificar como o referido Programa influenciou o conhecimento dos moradores sobre a biodi-
versidade local e uso dos recursos naturais nas três UC estudadas. Em todas as unidades o acesso é realizado via fluvial sendo a
RDS do Uatumã pelo Rio Uatumã, a RDS do Uacari pelo Rio Juruá e o PAREST do Rio Negro pelo Rio Negro (Figura 1). Não existe
controle do órgão ambiental gestor das UC sobre o acesso nessas áreas, assim qualquer barco pode entrar ou sair a qualquer
momento, muitas vezes não sabem se estão dentro de UC. As raras placas de identificação ficam nas árvores com pouca visibi-
lidade quando considerado a extensão dos rios e da floresta.

Figura 1. Mapa de localização das unidades de conservação com atuação do PROBUC. Fonte: Marchand et al. (2015, p.2).

Este artigo traz resultados do projeto Universal “Sustentabilidade Socioeconômica e Ambiental do Programa de Monito-
ramento da Biodiversidade e do Uso de Recursos Naturais em Unidades de Conservação Estaduais no Amazonas”, desenvolvido
por professores e colaboradores da Universidade Federal do Amazonas e patrocinada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do
Estado do Amazonas (FAPEAM).
Sete idas ao campo foram realizadas para aplicar questionários semiestruturados, no total, 82 pessoas foram entrevista-
das nas três UC sendo: 34 na RDS Uatumã, 37 na RDS Uacari e 11 no PAREST do Rio Negro Setor Norte.
A pesquisa foi planejada numa perspectiva qualitativa, assim a amostragem não foi determinada com uma preocupação
de representatividade. Objetivou entrevistar o máximo de monitores (presentes no momento da pesquisa de campo) e ter a
opinião de outros moradores sobre o funcionamento do Programa em proporções iguais. A amostragem foi dividida em dois
grupos, “os monitores” e ex-monitores e os “não monitores”, conjunto mais heterogêneo que agrupa pessoas que participaram
das diferentes atividades do ProBUC (reuniões, soltura/manejo de quelônios, entrevistas dos agentes recenseadores, gincanas,
abertura das trilhas). Foram entrevistadas 45 pessoas do primeiro grupo e 37 do segundo.

O funcionamento do PROBUC
O Quadro 1, coloca em relevo as atividades desenvolvidas pelo ProBUC na RDS do Uacari, PAREST do Rio Negro Setor
Norte e RDS do Uatumã. Vale ressaltar que os valores repassados aos monitores são mencionados nos documentos como re-
compensas, assim quando termina um projeto os monitores ficam sem receber, no entanto como é de interesse das comunidades
alguns fazem o trabalho por conta própria. Embora o acesso para realizar as atividades na maior parte depende de transporte
fluvial e o combustível em algumas áreas é o dobro das cidades, ficando caro, pois a maioria não tem fonte de renda fixa. Jor-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
330
gensen et al. (2005) enfatizam que a renumeração dos monitores é algo necessário, pois o serviço exigido é de natureza similar
a uma ocupação laboral.

Perfil socioeconômico dos entrevistados


Nas três unidades de conservação a maioria dos entrevistados foi do sexo masculino (78,8%), (Tabela 1), já que estes
ocupavam a maioria dos cargos de líder comunitário e monitores do ProBUC. Apesar das questões de gênero não serem o foco
principal da presente pesquisa, vale salientar que as mulheres são, de forma geral, pouco presentes nas atividades do Programa.
Nas monitorias, a fraca presença das mulheres se explica pelo caráter penoso e perigoso de algumas atividades, notadamente os
monitoramentos de fauna, quelônio e jacarés. Embora algumas mulheres tenham relatado ser comum acompanhar seus esposos
na realização das tarefas de monitoramento “Eu participo ajudando ele preenchendo os relatórios, tirando os quelônios, soltando,
ajudo fazer a gincana. Não recebo nada, eu gosto de ajudar nesse trabalho que é muito bom”. As raras mulheres que prestam
oficialmente serviço para o ProBUC são mais solicitadas para as atividades de recenseamento (6 casos, 5 na RDS Uacari e 1 na
RDS Uatumã) pois é um trabalho realizado nas residências.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


331
As três UC apresentam baixo grau de escolarização dos seus habitantes, mesmo os entrevistados que participam das
decisões comunitárias (Tabela 2). Nas RDS Uatumã e Uacari, algumas estruturas escolares foram implantadas para oferecer
cursos de ensino médio (à distância), o que explica uma proporção pouco maior de pessoas que estão cursando ou terminaram
esse nível (respectivamente 20,6% no Uatumã e 27,8% no Uacari). Os 18,2% com o ensino médio completo no PAREST são liga-
dos ao fato da amostragem conter funcionários da base do ICMBIO do Parna Jaú que atuam no monitoramento de quelônios, o
que veio aumentar significativamente o nível de estudo dos entrevistados nessa área. De forma geral, os monitores possuem um
grau de estudo levemente maior do que o restante da amostragem. A proporção de monitores que não alcançaram a sexta série
do ensino fundamental é menor do que a registrada pelos não monitores (respectivamente 20,4% contra 45,9%) e a quantidade
de pessoas tendo cursado ao menos um ano de ensino médio é um pouco maior (respectivamente 27,8% contra 18,9%). Como
a função requer certo nível intelectual para compreender a metodologia e os diversos documentos repassados aos monitores
(guias, formulários, boletins de apresentação dos resultados), o nível de escolaridade é geralmente um critério de indicação à
monitoria. (MARCHAND et al., 2015).

As escolas presentes nas UC são geralmente pequenas com uma ou duas salas de aula, com exceção dos “Núcleos de
Conservação e Sustentabilidade” que são melhores estruturados e oferecem cursos técnicos. Os alunos chagam as escolas
em lanchas das prefeituras ou rabetas individuais1. No entanto, o calendário escolar segue o ritmo das cheias e vazantes dos
rios, dessa forma nem sempre os duzentos dias letivo obrigatórios pelo calendário escolar são cumpridos, pois no período de
enchente as escolas ficam fechadas (Figura 2).

1
Pequenas embarcações com motor comum nos rios da Amazônia.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
332
Figura 2. Escola de Ensino Fundamental na RDS do Uacari-Carauari-AM. Fonte: Lima (2015)

Impactos do PROBUC sobre o conhecimento e os usos da biodiversidade:


o papel central dos monitores.
Sobre os pontos positivos do Programa de monitoramento, as respostas foram extremamente variadas, contudo, foi pos-
sível sintetizar a maioria das declarações em alguns temas “chave”. Entre os pontos positivos mais citados, o aprimoramento dos
conhecimentos sobre a biodiversidade, os recursos naturais e seus usos (19,50%). Para vários moradores, antes do ProBUC havia
carência de informações sobre a situação social e ambiental das UC como registra a fala:

Eu acho que a importância do ProBUC foi trazer informação. Antes se chegasse uma pessoa aqui
e perguntasse: você tem uma ideia de quanto entra de peixe na comunidade? A gente não tinha
nada pra dar a resposta, quando veio o povo ensinando, dando essa base toda aí a gente teve
mais essa ideia. (Líder comunitário, RDS Uacari, 2015).

Outro aspecto identificado pelos moradores é o fato de ter proporcionado um melhor controle sobre o uso dos recursos
naturais (12,20%). Mesmo se a equipe técnica imprimiu muitos esforços para diferenciar o ProBUC da fiscalização para facilitar
a adesão dos comunitários, a atuação dos monitores parece ter tido um efeito na exploração insustentável ou ilegal dos recursos
naturais. Por exemplo, alguns monitores sublinharam nas entrevistas que eles orientam os demais comunitários sobre as práticas
ilegais ou prejudiciais para o meio ambiente. Além disso, o fato de ter, em cada comunidade, várias pessoas envolvidas na pro-
teção dos tabuleiros (os monitores, seus familiares e seus amigos...) limita as tentativas de exploração predadora da parte dos
comunitários, como relatam:

O meu trabalho como monitor é fazendo coleta de dados sobre o que as pessoas fazem. Antes
a gente fazia de duas em duas semanas, agora a gente faz de quinze em quinze dias. O monitor
recenseador ele coleta dados sobre tudo, sobre informação de pesca, de caça, de sementes,
de extrativismo em geral e sobre agricultura, sobre as espécies ameaçadas de extinção, o que
é avistado, o que não é. A importância disso pra comunidade é que assim, quando a gente tem
o retorno de tudo isso, a comunidade sabe o que mais produziu o que mais fez o que tem o que
não tem, o que está aumentando, o que está diminuindo. Com essa coleta de dados, tanto é im-
portante para a comunidade quanto para a própria reserva se tiver interesse em fazer um manejo
em cima daquilo. Saber qual o potencial existente dentro da unidade de conservação. (Monitora,
RDS Uacari, 2015).

Meu relacionamento com as pessoas da comunidade sempre foi um bom relacionamento, nunca
tive problemas. Pelo motivo também de ser vice representante da comunidade, a gente tem um
bom relacionamento. Sempre a gente se reúne, a gente é ouvida, a gente leva em consideração
o que eles têm para falar. (Monitora, RDS Uacari, 2015).

O ProBUC foi um bom trabalho, ele mostrou pra gente o potencial de cada coisa da nossa região,
andiroba, açaí, madeira, caça, peixe, então o pessoal é informado, cada comunidade era infor-
mado do que tinha na sua região. (Ex-Monitor, RDS Uacari, 2015).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


333
É interessante ressaltar que ao perguntar aos monitores por que eles aceitaram participar do Programa, o aspecto finan-
ceiro é citado somente em 5,80% das declarações, enquanto a vontade de conhecer melhor a situação da reserva e dos recursos
naturais 21,80% das citações e a sensibilidade para as coisas naturais totaliza 14,5%. Outros apontaram ter sido escolhido ou ter
proposto suas candidaturas por causa de suas competências peculiares (10,90%): ter um amplo conhecimento da floresta e dos
animais ou simplesmente saber ler/escrever sem grande dificuldade. Por fim, alguns pensaram que esse trabalho poderia trazer
algum tipo de benefício para a comunidade ou auxiliar a proteção ambiental (ambos os motivos são mencionados em 8,7% dos
casos). De acordo com Wagley (1988) as comunidades tradicionais da Amazônia caracterizam-se pela sua relação com o meio
local, pois usam com frequência o conhecimento quanto ao uso do solo, da flora, da fauna, da cheia e vazante dos rios, das curas
para doenças endêmicas. A fala explica que alguns monitoramentos já eram realizados pelos moradores:

O ProBUC hoje eu vejo como um programa “sumido” aquele incentivo que a gente tinha logo
quando iniciou, acabou. Deu continuidade porque aqui há um nível de organização grande. Al-
gumas coisas já atuavam como, por exemplo, o monitoramento de quelônios, talvez atuasse do
nosso jeito é claro, mas já atuava há vinte quinze anos atrás, então isso ainda continua do mesmo
jeito. (Ex-motinor, RDS Uacari, 2015).

Chaves (2001) chama atenção que a organização comunitária na Amazônia não pode ser compreendida somente a partir
de sua atividade produtiva e econômica, pois no contexto da economia tradicional, as regras são estabelecidas de forma coletiva
em que se estabelecem o respeito e ajuda mútua, sempre buscando estratégias coletivas voltadas para a melhoria da qualidade
de vida dos envolvidos. No decorrer das entrevistas com os monitores ou com membros comunitários, o fato de uma pessoa
possuir um conhecimento ou uma aptidão peculiar foi apontado como a principal razão da indicação à monitoria. Os monitores
da fauna enfatizaram que foram selecionados por seu conhecimento sobre os animais terrestres, alguns caçadores. Para Moran
(2010, p. 342), “a caça requer um bom conhecimento dos sons emitidos pelos animais, de seus alimentos prediletos e comporta-
mentos migratórios”. Os monitores de recenseamentos ou de embarcação por ter facilidade para ler ou escrever, os monitores
de quelônios por serem bons observadores do comportamento desses animais e assim em diante.
Também foram mencionados casos que o conhecimento foi passando por gerações “Meu pai foi monitor de praia 18
anos. E a minha filha faz a coleta de dados, da praia, ela quem faz as fichas, os monitores só vigiam, ela é voluntária”. (Monitora,
RDS Uacari, 2015).
A condição de caboclo, geralmente descrita de forma negativa, até pelos próprios moradores, é revalorizada, pois a ex-
periência e o conhecimento dos elementos que ritmam a vida desses agroextrativistas são vistos como preciosos. Isso é peculiar-
mente visível no caso dos caçadores que foram escolhidos para serem monitores. Se tornando um monitor, o predador de antes é
visto de outra forma, ele adquire o status de uma pessoa que possui um conhecimento diferenciado e valioso para o levantamento
dos recursos naturais da UC. Por meio desse procedimento, ele é, de certa forma, reabilitado e de novo respeitável, pois, pode,
potencialmente, contribuir ao bem comum. (MARCHAND et al., 2015, p. 40).
Um impacto positivo é que o ProBUC contribuiu com a divulgação de dados quantitativos sobre os recursos naturais
locais. Os procedimentos do monitoramento dos quelônios (delimitação das praias, manuseio dos ovos) foram co-construídos
com as populações locais em função dos seus conhecimentos sobre o comportamento local das espécies.

Com o Programa e com a vigilância dos monitores de praia, começou a aumentar o número
de quelônios, aumentou muito. A gente vem tendo um grande sucesso com isso. Também com
o monitoramento de fauna, onde os monitores iam nas trilhas ver que animal estava andando.
Com as coletas de dados nas casas também, onde depois a gente tinha um retorno de tudo isso
e foi importante ter pesquisa, mas tem que ter o retorno pra comunidade e o ProBUC, dava esse
retorno em suas avaliações e seus boletins e coisas assim e trazia toda essa importância para a
comunidade da importância de se fazer as entrevistas e também de preservar mesmo. (Monitora,
RDS Uacari, 2015).

Assim, o conhecimento local é considerado tão valioso quanto o técnico-científico e o diálogo entre ambos foram faci-
litados pela metodologia participativa. Outro aspecto que chamou atenção é inerente ao fato de que o monitor tende a adquirir
um novo status na comunidade, ele se torna uma pessoa de referência sobre determinadas questões e pode ser solicitado por

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
334
diferentes ações. Vários depoimentos foram feitos a esse respeito no decorrer das entrevistas. Um monitor de jacaré da RDS
Uacari declarou: “eu não sabia o que era monitoramento, agora eu sei e posso explicar para outras pessoas e elas sabem o que
é o trabalho de monitor. Pessoas vêm fazendo perguntas sobre a quantidade de animais que saíram [dos ninhos]”. Outro disse:
“[com o ProBUC] eu cheguei a conhecer melhor o jacaré, eu tinha pouco conhecimento antes. [...] Pessoas que querem fazer
perguntas sobre o jacaré, é comigo! As pessoas querem saber quantos ovos têm, e se todos os ovos eclodem, eles querem testar
meu conhecimento”.
Em alguns casos, os monitores são chamados pelos professores para dar “palestras” nas escolas ou explicar seu trabalho
assim como apontou esse outro monitor de Uacari: “a professora chamou para eu explicar o trabalho, levei os alunos nos tabu-
leiros. Na soltura, deu muita alegria para as crianças. Eu senti que todo mundo estava vendo o resultado do meu trabalho. Mas
as pessoas não esquecem que sem nosso trabalho nossas crianças não saberiam o que é um quelônio”. São solicitados também
em reuniões comunitárias ou de forma individual para ter algumas orientações sobre o uso de determinados recursos, assumem
assim a função de “consultores” para os assuntos relativos à biodiversidade ou seu uso. Por fim, vários monitores se consideram
como agentes sensibilizadores nas comunidades onde eles atuam e estimam ser ouvidos por causa dessa função especial.

Conclusão
Com sua metodologia participativa, o ProBUC contribuiu com a divulgação dos dados quantitativos sobre os recursos
naturais locais. Os diferentes aspectos positivos no que diz respeito ao uso da biodiversidade e o entendimento das estratégias
de conservação. Além de favorecer a valorização dos saberes locais, o Programa fez dos monitores figuras emblemáticas nas
comunidades, pois podem potencialmente influenciar sobre o comportamento de seus congêneres ou sobre algumas decisões
relativas ao uso de recursos naturais. Os entrevistados estimam-se mais informadas sobre o estado da biodiversidade, e gosta-
ram de ter acesso a esse novo conhecimento. Com as ações dos monitores e a visitas frequentes da equipe técnica, o Programa
proporcionou uma forma de controle sobre as práticas locais assim como uma sensibilização dos comunitários a respeito das
estratégias de conservação, o que foi visto de maneira positiva pelos comunitários.
Atualmente essas conquistas são potencialmente ameaçadas com as dificuldades enfrentadas pelo Programa. No primei-
ro semestre de 2015, houve a dissolução da Secretaria do Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas (SDS) e conse-
quente extinção do Centro de Unidades de Conservação (CEUC), ocasionando também a redução dos recursos atribuídos pela
Fundação Moore, sua principal fonte de renda. Com a incerteza da continuação do Programa com várias fases de paralisação é
possível que os comunitários decepcionados e sem perspectiva de apoio nas atividades voltem a ter menos consideração para
a proteção da biodiversidade.
Ficou claro que a conservação da biodiversidade nas UC pesquisadas pode sim ocorrer com a participação dos mora-
dores locais, no entanto, carece de apoio continuo para que as atividades ocorram de forma eficaz. Existe a boa vontade dos
comunitários, mas além do tempo dedicado para realizar as atividades, o acesso às áreas na maior parte depende de transporte
fluvial e o valor do combustível em algumas áreas é o dobro das cidades, ficando inviável para os moradores, pois a maioria não
tem fonte de renda fixa. Dessa forma a continuação do Programa é importante, mas o órgão gestor necessita contribuir de forma
mais significativa, sendo necessária a realização de concurso público para resolver um problema comum a todas as unidades. A
constante mudança de gestores e técnicos contribui para a não continuidade das atividades nas áreas pesquisadas.

Referências
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proteção integral: alternativas para o asseguramento de direitos socioambientais. Brasília, 2014.

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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


335
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336
CONHECIMENTO LOCAL SOBRE PLANTAS NA ÁREA DE PROTEÇÃO
AMBIENTAL DO ANHATOMIRIM

Ludwinsky, Rafaela Helena¹ & Hanazaki, Natalia2

1. Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, Universidade Federal de Santa Catarina, rafaela.hbio@gmail.com 2. Laboratório de
Ecologia Humana e Etnobotânica, Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
A presença de moradores em áreas protegidas fortalece a necessidade de entendimento da relação entre pessoas e recursos
naturais, para garantir e monitorar a funcionalidade do uso sustentável destes recursos com a conservação da natureza. O pre-
sente trabalho explora o conhecimento de plantas na Área de Proteção Ambiental do Anhatomirim, em Santa Catarina, inves-
tigando as finalidades de uso dos recursos e seus locais de obtenção. Em 72 entrevistas foram citadas 326 plantas, das quais
as categorias mais citadas para finalidade de uso foram alimentícia (850 citações), medicinal (578 citações) e construção (237
citações). Quanto aos locais de obtenção dos recursos os mais citados foram quintal próprio (195 citações), quintais dos vizinhos
(165 citações) e mata (125 citações). Tais nuances de conhecimento sobre a vegetação refletem diferentes interações entre pes-
soas e plantas numa escala local e podem auxiliar na conservação destes recursos nesta área protegida.

Palavras-chave: Recursos vegetais, Etnobotânica, Mata Atlântica.

Introdução
A relação entre pessoas e plantas está estreitamente ligada à história da civilização humana (ALBUQUERQUE, 2005).
Desde os tempos mais remotos o ser humano representa um importante agente modificador da paisagem, modelando a ve-
getação e selecionando as plantas através de seu uso empírico ou simbólico (ALBUQUERQUE, 2005). O manejo dos recursos
vegetais é dependente da relação humano-ambiente e tal relação está intimamente ligada à cultura, de modo que a natureza não
pode ser dissociada desta (GUATTARI, 1990).
Diversas áreas do conhecimento têm contribuído para o estudo da relação humano-ambiente, dentre as quais situa-se
a etnobotânica. A etnobotânica é definida como um campo de cruzamento entre saberes, que busca melhor analisar as relações
entre a diversidade vegetal e cultural, bem como a percepção, uso e manejo dos recursos vegetais (BEGOSSI, 1993; MARQUES,
2001). Neste sentido, a etnobotânica tem um importante papel na conservação e manejo de áreas protegidas ao permitir o avanço
da compreensão do conhecimento, uso e acesso aos recursos vegetais (ALCORN, 1995; HANAZAKI, 2003).
Assim, os estudos voltados às questões do conhecimento local em áreas protegidas podem endereçar perspectivas de
manejo e conservação com o auxílio e participação das populações locais (FABRICIUS; BURGER, 1997; LYKKE, 2000; HANAZA-
KI, 2003; CARVALHO; FRAZÃO-MOREIRA, 2011; ZANK; HANAZAKI, 2012). Dentre as áreas protegidas, as Unidades de Conser-
vação (UC) de uso sustentável, como as Áreas de Proteção Ambiental (APA), são alternativas para garantir tanto a conservação
quanto o acesso ao uso dos recursos naturais (VIANNA, 2008).
O presente trabalho investiga o conhecimento local sobre plantas na APA do Anhatomirim, que é uma UC Federal. Esta
UC abrange regiões marinho-costeiras e terrestres, possui uma área de 4.436,56 hectares e localiza-se no município de Governa-
dor Celso Ramos – Santa Catarina, Brasil, conforme visto na Figura 01e 02 (ICMBIO, 2013a; IBGE, 2014). A APA do Anhatomirim
foi criada em 1992 e encontra-se implementada desde então. A mesma abrange seis comunidades, que estão integral ou par-
cialmente inseridas à ela: Areias de Baixo, Caieira do Norte, Praia do Antenor, Costeira da Armação (detalhada na Figura 02),
Fazenda da Armação e Armação da Piedade (ICMBIO, 2013b). Dentre estas, a comunidade da Costeira da Armação foi escolhida
por sua localização (situada no interior da APA) e pela existência de atividades tradicionais, como a pesca artesanal.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


337
Figura 1. Mapa da localização do município de Governador Celso Ramos. Elaboração: Rafaela Helena Ludwinsky.

Figura 2. Localização detalhada da área de estudo. Em branco os limites do município de Governador Celso Ramos e em amarelo os limites
da APA do Anhatomirim. O ponto em amarelo corresponde à comunidade da Costeira da Armação (adaptado de Google Earth, 2015).

Ao longo do trabalho são investigadas as categorias de uso das plantas conhecidas (ex.: alimentícia, construção) e seus
locais de obtenção. Reitera-se a contribuição do trabalho para a valorização do conhecimento local, bem como para fornecer
subsídios para futuras tomadas de decisão referentes à gestão dos recursos vegetais na APA.

Metodologia
O conhecimento local de cada morador da Costeira da Armação foi acessado através de entrevistas. Estas entrevistas
foram aplicadas com o auxílio de um questionário semiestruturado, abrangendo questões relativas a aspectos socioeconômicos,
ao conhecimento sobre plantas, seus respectivos usos e locais de obtenção. A relação conhecimento e uso, no que se refere a

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338
uso atual ou passado, está em processo de análise e será detalhado em trabalhos futuros. A técnica aplicada na entrevista foi a
listagem livre pois, de acordo com Albuquerque et al. (2008), permite resgatar informações específicas sobre o domínio cultural
das comunidades estudadas. Para guiá-la foram usadas as seguintes perguntas centrais:
1) O(a) senhor(a) pode nos contar nomes de plantas que conhece ou que usa, ou que usou no passado?1
2) Para que serve esta planta?
3) Onde o(a) senhor(a) encontra essa planta quando quer?

Os dados obtidos com as entrevistas foram analisados através de estatística descritiva. Sempre que possível a amostragem
foi sistemática de modo a cobrir o máximo possível da variação geográfica existente na comunidade. O número de entrevistas ne-
cessárias foi calculado conforme descrito por Barbetta (2002), a partir do número de habitantes da comunidade2(282), aceitando-
se um erro amostral de 10%. Assim, foram necessárias 72 entrevistas.
Para inclusão de um indivíduo na pesquisa foram adotados os seguintes critérios: ter 18 anos ou mais e ser residente
permanente ou temporário da Costeira da Armação há pelo menos cinco anos. As entrevistas só foram realizadas após obtenção
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) de cada informante.
Considerando que as entrevistas ocorreram durante a alta temporada (novembro/2014 e fevereiro/2015), 12 pessoas não
se enquadraram nos critérios da pesquisa pois estavam na comunidade pela primeira vez. Ainda, houve 29 recusas por parte dos
moradores da comunidade seguidas de justificativas como falta de tempo, receio por acreditar não saber responder “certo” e
receio de assinar o TCLE. Assim, foram realizadas 113 abordagens para concretização das 72 entrevistas, conforme apresentado
na Tabela 1.

A pesquisa foi registrada e autorizada pelo comitê de ética em pesquisa com seres humanos da Universidade Estadual
de Santa Catarina – CEPSH UDESC (Protocolo CAAE 35007214.4.0000.0118) e pelo Sistema de Autorização e Informação em
Biodiversidade – SISBIO (44802-1).

Resultados e discussão
Durante a pesquisa foram entrevistados 39 homens e 33 mulheres, com idades entre 18 e 75 anos. Dentre estes, 57% estão
vinculadas a atividades tradicionais (pesca artesanal ou agricultura). Foram citadas nas listagens livres 326 plantas encontradas
na região, das quais 34 plantas foram coletadas para identificação.
As plantas citadas foram classificadas quanto à categoria de uso e seu local de obtenção. Quanto aos usos, as plantas
citadas foram classificadas dentre as seguintes categorias: alimentícia, medicinal, construção, ornamental e outros (plantas cu-
jas finalidades de uso não foram muito citadas, como artesanato e ritualístico). Por sua vez, os locais de obtenção mencionados
foram: quintal próprio, quintal do vizinho, mata, mercado, rua, farmácia e outros. Doravante, os resultados em termos de uso e de
obtenção serão analisados separadamente.

Usos
A Tabela 2 apresenta o número de plantas citadas e o número de citações por categoria de uso. As categorias estão
ordenadas crescentemente conforme o número de citações. Pode ser observado que as categorias alimentar e medicinal apa-
recem em primeiro plano. Tal resultado é esperado, pois são necessidades básicas para a sobrevivência humana (BRUSCHI et
al., 2014).
1
Para auxiliar na identificação das plantas citadas na listagem livre, fotografou-se ou coletou-se material botânico. Este material foi identificado a partir da terceira
versão do sistema de classificação do Grupo de Filogenia de Angiospermas - Angiosperm Phylogeny Group (APGIII), através de bibliografias específicas (e.g.:
LINGNER et al., 2013; LORENZI et al., 2006; LORENZI; MATOS, 2008).
2
Disponibilizado pelo posto de saúde da comunidade.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


339
Tabela 2. Quantidade de plantas citadas por categoria de uso e número de citações que cada categoria
de uso recebeu (n=72 entrevistas com moradores da Costeira da Armação, APA de Anhatomirim).

O uso das plantas citadas na categoria alimentar ocorre principalmente in natura, apreciados como fruta ou em forma
de sucos. Conforme apresentadas na Tabela 3, nesta categoria as plantas mais citadas foram a banana (Musa paradisiaca L.),
a laranja (Citrus sinensis (L.) Osbeck), a jabuticaba (Myrciaria jaboticaba (Vell.) O. Berg) e a pitanga (Eugenia uniflora L.). A
predominância do uso de frutas também é apontada por Liporacci (2014); de acordo com autor, relata-se o uso de frutos em 66%
dos trabalhos etnobotânicos. Não houve desconforto por parte dos entrevistados ao falar das plantas alimentícias. Pelo contrário,
notou-se boa vontade em compartilhar os conhecimentos.

Tabela 3. Principais plantas citadas como alimentícias (n=72 entrevistas com moradores da Costeira
da Armação, APA de Anhatomirim). Nota-se que as duas últimas são espécies nativas da Mata Atlântica.

Na Tabela 4 são apresentadas as plantas mais citadas da categoria medicinal. Nota-se que as três primeiras espécies
são compartilhadas com a categoria alimentar. O maior uso destas espécies dentre as demais, além do compartilhamento entre
mais de uma categoria pode indicar um alto grau de importância destes recursos na comunidade (HEINRICH et al., 1998). A
banana foi indicada para manter o intestino saudável e tratar diarreias. Seu uso se dá sob forma de chá e o preparo ocorre através
do cozimento da casca da fruta, quando esta ainda não amadureceu. A laranja foi indicada para tratar da gripe (prevenção e sin-
tomas). A medicina local indica fazer infusões de sua casca e de suas folhas. A pitanga foi indicada para males de “zipra3”, com
seu uso feito através da infusão das folhas.
Assim como a laranja, a tangerina também foi citada para prevenção da gripe. Porém, o uso ocorre pela ingestão da
fruta in natura. Por último, o boldo foi citado para curar males do fígado e estômago. Em seu preparo é indicado extrair o sumo de
suas folhas e bebê-lo puro ou diluído em água. Não houve desconfortos ao conversar sobre as plantas medicinais. Inclusive, há
certa preocupação por parte dos moradores sobre o esquecimento de algumas plantas e sobre o desinteresse dos mais novos
em aprender. Um dos moradores menciona: “[...] uma vez veio um médico aqui e ele disse pra mim: não sabes a farmácia que
tens nesses barrancos, [...] eu sabia muito da nossa farmácia, mas já não sei mais tanto e minha filha menos ainda” (CA04).

3
Erisipela, popularmente conhecida como zipra - Inflamação da pele, causada por estreptococos.

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Tabela 4. Principais plantas citadas como medicinais (n=72 entrevistas com moradores da
Costeira da Armação, APA de Anhatomirim).

Ao longo das entrevistas as espécies mais citadas na categoria construção (Tabela 5) foram: o garapuvu (Schizolobium
parahyba (Vell.) Blake), o pinus (Pinus sp.) e o jacatirão (Miconia cinnamomifolia (DC.) Naudin). O garapuvu foi citado para
construção de canoas. O pinus e o jacatirão foram citados para construções de maneira geral. Porém, o pinus não é muito bem
visto pelos moradores, os quais chegaram a indicar a planta como um problema na comunidade: “Esse pinheiro, que o pessoal
chama de pinus, não é nativo não. Isso é uma praga, tá em tudo quanto é canto agora. Plantaram faz um tempo já, uns 20, 30
anos, e o que tu vês agora é tudo semente que se espalhou” (CA18). As demais plantas contidas nesta categoria foram citadas
para consertos de embarcações e utilização em construções de casas e afins.

Tabela 5. Principais plantas citadas para construções (n=72 entrevistas com moradores da
Costeira da Armação, APA de Anhatomirim).

Uma vez que todas as plantas citadas na categoria são árvores, suas menções eram sempre seguidas de expressões
como “madeira muito boa” ou “madeira não muito boa”. Essas informações dão indícios de que tais conhecimentos foram ad-
quiridos na prática com o uso do recurso. Também observou-se ao perguntar se o recurso era utilizado atualmente muitos diziam
que nunca o usaram. Observou-se que o relato dos recursos para construção era seguido de alguma desconfiança e de questio-
namentos. Os mais comuns, quando durante a entrevista falava-se sobre recursos para construção, eram os seguintes: “[...] que
que a universidade quer saber de árvore? ” (CA71) e “[...] não é do IBAMA? ” (CA57). Quando tais perguntas ocorriam explicava-
se novamente o TCLE e questionava-se ao participante se ele estava se sentindo mal com a entrevista e se gostaria de desistir4.
Este receio, apresentado ao falar sobre as plantas para construção, em grande parte nativas da Mata Atlântica, aponta
para limitações do uso destes recursos. Estas limitações podem estar relacionadas ao zoneamento da APA, o que precisa ser
analisado com maior detalhamento em trabalhos futuros. Se por um lado um grande número de plantas foram citadas como
pertencentes à categoria construção, por outro, cada espécime foi citado poucas vezes. As poucas citações por espécimes indi-
cam erosão no conhecimento e, segundo Zuchiwschi et al. (2010), estas mudanças podem estar relacionadas a atual legislação
ambiental.
As plantas categorizadas em outros e ornamental receberam poucas citações: no máximo duas citações para cada planta.
Na categoria outros estiveram presentes plantas usadas para artesanato, confecção de tamancos de madeira e de uso ritualístico
(e.g.: para “afastar mau olhado”).

Locais de obtenção
Como pode ser visto na Figura 3, os locais mais citados para obtenção das plantas foram: os quintais próprios (32%), os
quintais dos vizinhos (27%) e a mata (21%). Ou seja, embora muitos dos recursos citados sejam cultivados em casa, ainda há
conhecimento das plantas que estão na mata. Isso revela que, apesar da importância de ambientes diretamente manejados como

4
Nenhum participante desistiu da entrevista.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


341
os quintais, as áreas de mata desempenham um papel importante como provedoras de recursos vegetais.
Dentre os entrevistados, aqueles que mais citaram plantas da mata também comentaram sobre as mudanças que ocor-
reram na comunidade, como o desaparecimento da roça e a sucessão ecológica da vegetação. Tal percepção foi adquirida pois
costumam caminhar na mata pelas “trilhas de carro de boi”, como denominam os caminhos antigos da região. Estes mesmos
entrevistados são reconhecidos pela comunidade como especialistas locais do conhecimento das plantas da mata. Desta forma,
o conhecimento dos especialistas se distinguiu justamente por uma maior citação de plantas na categoria mata. Logo, são im-
portantes atores sociais de manutenção e propagação do conhecimento na comunidade. Constatou-se os esforços do grupo de
gestão da APA do Anhatomirim em aproximar os informantes chave nas ações de gestão como um primeiro passo para subsidiar
o envolvimento da comunidade.

Figura 3. Número de citações dos locais de obtenção das plantas (n=72 entrevistas com moradores da Costeira da Armação,
APA de Anhatomirim).

Por sua vez, as plantas adquiridas nos mercados (13%) servem como complemento daquilo que não é possível obter com
facilidade em determinada estação. Nas palavras de um dos moradores “[...] se eu tenho em casa pra que que vou comprar? ”
(CA37). Deve-se observar que na comunidade existem apenas dois mercados e uma feira de frutas e verduras que ocorre uma
vez por semana. Na categoria rua (5%) estão presentes plantas que crescem espontaneamente em terrenos baldios e nas calça-
das da rua, como a quebra-pedra (Euphorbia prostrata Aiton) e malva (Malva parviflora L.). A comunidade não possui farmácia,
apenas um posto de saúde, logo às plantas adquiridas na categoria farmácia (2%) são trazidas de outras comunidades e/ou
municípios e muitas vezes por meio dos filhos que moram/trabalham longe da família.

Conclusões
Os moradores da Costeira da Armação mostraram conhecimentos variados sobre as categorias de plantas investigadas
neste trabalho. Ressaltam-se as dificuldades no acesso ao conhecimento de plantas nas categorias de construção, ornamental
e outros. Essas dificuldades, principalmente para a categoria de construção, refletem o receio de fazer-se saber conhecedor,
pois o conhecimento pode estar relacionado ao uso de recursos da Mata Atlântica e envolver questões previstas na legislação
ambiental vigente.
A partir do levantamento dos saberes sobre as plantas, suas categorias de usos e seus locais de obtenção, nota-se a
importância destes recursos no cotidiano dos moradores da Costeira da Armação, ainda que esta seja uma comunidade reco-
nhecida por ser de pescadores e com muitas casas de veraneio. Essa importância é relatada através do compartilhamento de
categorias de uso por plantas citadas e pelo dinamismo dos locais de obtenção destas plantas, como os quintais próprios, os de
vizinhos e na mata. Os locais de obtenção mostram que as plantas de interesse são mantidas próximas. Desta forma, os quintais
exerceram um papel central na manutenção dos conhecimentos etnobotânicos.
A preocupação por parte dos moradores em esquecer as plantas que uma vez conheciam abrem perspectivas para o

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planejamento de ações que visem a conservação e manutenção de recursos e conhecimentos. O mesmo se aplica aos recursos
citados na categoria construção, na qual o receio em transmitir conhecimentos resulta na erosão do mesmo.
Cabe ressaltar que outras análises estão em andamento, uma delas envolve a questão da temporalidade dos usos das
plantas, sendo estes usos atuais ou passados A partir desta análise será possível expandir as discussões que podem corroborar,
ou não, com as conclusões parciais alcançadas neste trabalho. As questões a serem tratadas futuramente relacionarão o conhe-
cimento associado ao uso das plantas com o fator temporal do uso das mesmas. Além de relacionar, também, a ecologia das
plantas dando vistas às discussões sobre a sustentabilidade do uso das mesmas no contexto da área protegida.

Referências
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
344
CONHECIMENTO LAKLÃNÕ/XOKLENG SOBRE A NATUREZA E
CONSERVAÇÃO NA TERRA INDÍGENA IBIRAMA-LAKLÃNÕ,
ALTO VALE DO ITAJAÍ, SANTA CATARINA, BRASIL

Cruz, Takumã1; Heineberg, Marian2; Gomes, Thiago3; Hanazaki, Natalia4 & Peroni, Nivaldo5

1. Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, Universidade Federal de Santa Catarina,


natuma@gmail.com 2. Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, Universidade Federal de Santa Catarina,
marianheineberg@gmail.com 3. Doutorando do PPG Ecologia/UFSC, Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, Universidade
Federal de Santa Catarina, thiago.gomes@posgrad.ufsc.br 4. Departamento de Ecologia e Zoologia, Laboratório de Ecologia Humana
e Etnobotânica, Universidade Federal de Santa Catarina, natalia@ccb.ufsc.br 5. Departamento de Ecologia e Zoologia,
Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, Universidade Federal de Santa Catarina, nivaldo.peroni@ufsc.br

Resumo
Terras indígenas são áreas protegidas que podem promover a manutenção e conservação da diversidade biológica e cultural.
Com o objetivo de registrar o conhecimento ecológico local dos Laklãnõ/Xokleng na Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, este estudo
utilizou de entrevistas, observação participante, turnês-guiadas e oficinas participativas para obter informações sobre o uso e
conhecimento de espécies vegetais locais e da paisagem, além de formas manejar e compreender a natureza. Foram registradas
informações sobre 314 plantas e 61 unidades de paisagem, e locais culturalmente importantes na terra indígena. Com relação
à transmissão deste conhecimento, verificou-se que se dá principalmente durante a infância e é centrada na família. A riqueza
do conhecimento ecológico Laklãnõ/Xokleng revelada nesta pesquisa reflete a íntima relação com o ambiente em que vivem e é
fonte muito importante para práticas sustentáveis e para a manutenção da cultura e populações tradicionais em seus territórios.

Palavras-chave: Conhecimento Ecológico Local, Pesquisa Participativa, Etnoecologia, Jê, Conservação.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


345
ANÁLISE SOBRE O ORDENAMENTO TERRITORIAL, ORGANIZAÇÃO E ESTRATÉGIAS
DE MANEJO NO PARQUE ESTADUAL ILHA DO CARDOSO (PEIC) - SP

Silva, Jéssica de Lima1 & Oliveira, Regina Célia de2

1. Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, jssicalime@gmail.com 2. Instituto de Geociências,


Universidade Estadual de Campinas

Resumo
O presente artigo pretende apresentar considerações referentes ao processo de institucionalização do Parque Estadual Ilha do
Cardoso e sobre o ordenamento territorial nos diferentes Núcleos do Parque. O artigo em questão traz alguns apontamentos
que dizem respeito às relações que se estabelecem entre as populações tradicionais residentes, o Órgão Gestor e as perspec-
tivas territoriais desses atores que coexistem na Ilha do Cardoso e influenciam as dinâmicas socioambientais desta Unidade de
Conservação. Os principais resultados apresentados são referentes à organização territorial dos Núcleos, sistematizada pelos
moradores e quais perspectivas os mesmos apreendem dos desdobramentos da institucionalização do Parque e tais reflexos
atualmente. Significativas mudanças ocorreram no Parque nos últimos anos, dentre as quais se destacam as frequentes e novas
necessidades que surgiram no esforço de conciliar as estratégias de Manejo e Gestão Participativa com as demandas das popu-
lações tradicionais e as atividades que lá desenvolvem. Nesse sentido, no intuito de manterem a reprodução dos seus modos de
vida em consonância com o contexto de uma UC e dos objetivos a ela destinados.

Palavras-Chave: Unidades de Conservação, Parque Estadual Ilha do Cardoso, Diferentes Perspectivas Territoriais e Paisagísti-
cas, Conflitos e Territorialidades, Populações Tradicionais.

Introdução e Justificativa
Atualmente não há dúvidas, no cenário mundial, sobre a importância das Áreas Protegidas. No Brasil, as Unidades de
Conservação – UC são consideradas importantes pilares para a redução dos índices de desmatamento, degradação ambiental e
comprometimento da biodiversidade restante no País, visto que as áreas protegidas garantem serviços essenciais à humanidade
como um todo. Estas áreas abrigam também uma grande diversidade étnica inserida no território brasileiro, como populações
indígenas e populações tradicionais - Caiçaras, Quilombolas, Ribeirinhos, Seringueiros, entre outras. Há uma série de interesses
legítimos sobre as diferentes perspectivas de Usos da Terra destinados às UC, bem como uma grande variação de atores ex-
ternos e internos que influenciam as dinâmicas nelas existentes, principalmente no que diz respeito às que estão inseridas no
contexto das dinâmicas costeiras.
Um dos aspectos inerentes à discussão sobre ordenamento territorial e ambiental no Brasil é a criação e institucionaliza-
ção das UC, consideradas áreas naturais protegidas pelo poder público. A análise sobre as políticas ambientais governamentais,
que dispõem acerca das unidades de conservação contempla uma discussão acerca do território a partir de várias abordagens
(biológica, política, socioeconômica e cultural).
A criação dessas áreas ao redor do mundo configura uma importante estratégia de controle e monitoramento do território,
visto que estabelece limites e dinâmicas de uso e ocupação específicos de acordo com a área protegida. Este controle e os
critérios de uso que normalmente se aplicam às áreas protegidas são frequentemente atribuídos em virtude da valorização e da
necessidade de resguardar a biodiversidade existente.
Porém, conforme coloca Irving (2002), a implantação dos mesmos modelos provenientes de países como Estados Uni-
dos, ampliando a dicotomização sociedade-natureza, vem gerando um quadro de conflitos sociais, culturais e econômicos para
as populações que vivem em áreas de inserção dessas UC, principalmente quando estão no interior de Parques, na categoria de
UC de proteção integral, que representa um exemplo emblemático de cisão sociedade-natureza.
Para Diegues (2004), é fundamental enfatizar que a transposição do “modelo Yellowstone”, - originado em países indus-
trializados e de clima temperado - para países subdesenvolvidos, cujas florestas remanescentes foram e continuam sendo, em
grande parte, habitadas por populações tradicionais, está na base não só de conflitos, mas de uma visão equivocada de áreas

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


347
protegidas. Um exemplo desta questão ocorre ao longo de toda a extensão do Litoral do estado de São Paulo, onde é notório
não apenas problemáticas apontadas na direção de conflitos e impasses fundiários entre populações tradicionais e a Legislação
vigente acerca das áreas protegidas, como também severos agravantes. Entre eles, destacam-se as pressões por uso em razão
do histórico de longa data de conflitos relacionados ao Uso da Terra e pressões econômicas oriundas do desenvolvimento do
turismo, especulação imobiliária e aumento da densidade demográfica.
Outros conflitos de interesse fazem referência às destinações econômicas e processos produtivos diferenciados que
atuam fortemente nas Zonas Costeiras e que atentam para o surgimento de condicionantes que agravam a vulnerabilidade
ambiental e fragilidade dos ecossistemas presentes nas UC, chamando atenção para a necessidade de estudos e, sobretudo,
planejamento e gerenciamentos adequados destas áreas, por parte das instituições públicas e também da sociedade civil. Con-
forme coloca Vallejo (2009), a discussão sobre os atores que coexistem nas UC, e suas perspectivas territoriais e paisagísticas,
apontam um tema relevante para a reflexão e exercício sobre o ordenamento político e territorial dentro de uma perspectiva de
sustentabilidade socioambiental.
Nesse contexto, um dos princípios norteadores de análise das políticas ambientais que versam sobre as áreas protegidas
está relacionado à discussão que há tempos vem sendo desenvolvida no País e exterior por uma série de autores pertinentes à
temática de áreas naturais protegidas, e a gama de conflitos e novas configurações decorrentes que estão se impondo nos ter-
ritórios.
Deste modo, muito embora as áreas protegidas sejam definidas como últimos redutos (ou ilhas) dotados de biodiver-
sidade conservada por grupos sociais pré-modernos, existem em e são influenciadas por contextos e políticas ambientais
norteadoras, cuja ordem é pós-tradicional.
Nesse sentido, diante da complexidade do tema em questão, este artigo apresenta alguns resultados do estudo dirigido
ao Parque Estadual Ilha do Cardoso (PEIC) (área de recorte), localizado no extremo sul do litoral do estado de São Paulo. Os
principais resultados se apresentam em relação à aplicação das políticas ambientais que ditam sobre áreas protegidas e a or-
ganização territorial do Parque, as diferentes perspectivas entre Conselho Gestor do Parque e as populações tradicionais que o
habitam, assim como, as principais propostas e ações de manejo e conservação que são desenvolvidas nos diferentes Núcleos
do Parque.

Metodologia e Procedimentos
Para abordar a complexidade das relações existentes entre esses atores no PEIC, foi adotado como pressuposto de fun-
damentação teórica o sistema teórico metodológico GTP (Geossistema- Território – Paisagem) elaborado pelo geógrafo Georges
Bertrand, o qual propõe uma análise sistêmica e integrada sobre as dinâmicas socioambientais.
Bertrand (2009) atenta que o GTP tem como objetivo uma abordagem geográfica transversal e de travessias, significando,
uma análise diagonal, holística, dialética e articulada. O autor esclarece que o ponto de partida da análise, passa a ocorrer de
forma complexa, em três espaços e três tempos simultâneos, para que seja possível analisar o meio ambiente na sua globali-
dade, uma vez que o espaço se modifica e/ou se transfigura constantemente ao longo do tempo.
Esses três campos conceituais, semânticos e metodológicos, permitem uma varredura lógica, hierarquizada do conjunto
da interface. São eles (BERTRAND, 2009):
- O tempo do geossistema é aquele da natureza antropizada: é o tempo da fonte, das característi-
cas bio-físico-químicas de suas águas e seus ritmos hidrológicos;
- O tempo do território é aquele do social e do econômico, do mercado ao tempo do “desenvolvim-
ento durável”: é o tempo do recurso, da gestão, da redistribuição, da poluição-despoluição;
- O tempo da paisagem é aquele do cultural, do patrimônio, do identitário e das representações: é
o tempo do retorno às fontes, aquele do simbólico, do mito e do ritual.
É possível considerar, que enquanto um sistema teórico-metodológico, o GTP abre possibilidades de estudos geográ-
ficos capazes de transladar entre a complexidade dos fenômenos ambientais, posto que não se enquadra como um conceito
unívoco, a linearidade não comporta suas perspectivas, utilizando-se assim de conceitos e perspectivas polissêmicas, capazes
de correlacionar e integralizar a análise dos fenômenos sociais, econômicos, culturais, políticos, etc., e seus desdobramentos e
transformações no âmbito da questão ambiental.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
348
Sendo assim, o sistema teórico metodológico GTP nos permite realizar uma abordagem geográfica através de uma
análise integrada dos fenômenos que se constituem na interface sociedade-natureza e a tentativa neste estudo é conseguir di-
mensionar o mais próximo possível essa pesquisa dentro da integração proposta pela conceituação tripolar desta metodologia.
Os procedimentos se fizeram necessários, às vezes de forma separadas, às vezes concomitantemente quando se buscou
correlações entre os temas. Foi realizado aprofundamento em várias questões relacionadas ao processo de criação de áreas pro-
tegidas no Brasil seguindo parâmetros internacionais e outros temas envolvendo as áreas protegidas, a fim de se compreender
a conjuntura atual da legislação brasileira que discorre sobre as políticas ambientais (Código Florestal, Constituição de 1988,
Política Nacional de Meio Ambiente de 1981, SNUC, IUCN, CDB, PNAP e outras disposições). Sobre o referencial específico do
PEIC, alguns foram de fundamental importância para compreender as dinâmicas ali existentes, como o Plano de Manejo Fase 2
e os Laudos do Ministério Público disponibilizados.
Para sustentar o embasamento do modelo GTP às dinâmicas socioambientais do PEIC, realizou-se um planejamento
concreto para o desenvolvimento dos trabalhos de campo, para isso, foi necessário criar roteiros de trabalhos de campo e en-
trevistas bem definidos para que posteriormente fosse possível o tratamento e análise adequados dos levantamentos e dados
obtidos durante os trabalhos. É importante esclarecer que foi de suma importância à prévia elaboração desses roteiros definidos,
de forma que os roteiros foram compilados em questionários sistematizados, através das entrevistas semidirigidas definidas,
pelos núcleos do Parque, visaram abarcar o maior número de aspectos possíveis que se propôs trabalhar. Desse modo, foram
realizados quatro trabalhos de campo ao PEIC durante o desenvolvimento da pesquisa.

Localização e Breve Contextualização da Institucionalização do PEIC


O Parque Estadual Ilha do Cardoso (PEIC) tem uma área de 151 km2 e localiza-se no extremo sul do litoral paulista, na
divisa com o Estado do Paraná. Está situado entre as coordenadas 480 05’ 42’’ W, 250 03’ 05’’ S e 480 53’ 4811 W, 250 18’ 18’’ S,
separado do continente pelo canal de Trapandé. As vias de acesso para a Ilha saem pelo município de Cananéia e Ilha Com-
prida (Figura 1). O PEIC faz parte de um conjunto de Unidades de Conservação existentes na Região do Vale do Ribeira, Sul
do Estado de São Paulo. Presentes na bacia do Rio Ribeira de Iguape, essas unidades fazem parte de um sistema criado pela
SMA-SP (Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado de São Paulo), além da participação do governo federal, por meio
do MMA (Ministério do Meio Ambiente), IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e CONAMA (Conselho Nacional do Meio
Ambiente).

Figura 1. Localização do Parque Estadual Ilha do Cardoso (PEIC).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


349
A Ilha do Cardoso foi instituída como Parque Estadual através do Decreto Estadual N° 40.319/62. Há registros de popula-
ções desde 1502, quando a Ilha recebeu a expedição exploratória comandada pelos portugueses Gaspar de Lemos e Américo
Vespúcio, que tinham a missão de fixar o marco do Tratado de Tordesilhas na praia de Itacuruçá (hoje pertencente ao núcleo
Perequê) em frente à ilha do Bom Abrigo
Entre as décadas de 1960 e 1980, o turismo e a especulação imobiliária passaram a exercer uma violenta pressão sobre
as terras das comunidades caiçaras, principalmente em função do potencial turístico do local. A criação do parque proibiu a
venda de propriedades para turistas e veranistas. Em 1972, a Fazenda do Estado de São Paulo ajuizou a ação discriminatória na
área do PEIC, objetivando separar as terras devolutas das eventuais terras particulares existentes.
Muitos moradores acabaram cedendo a essa especulação, por se sentirem pressionados ou temendo represálias ven-
deram seus lotes, consequentemente perderam o direito de permanecerem no parque e tiveram suas casas demolidas ao longo
dos anos. Além da ameaça iminente pela especulação imobiliária na época, a ação intimidadora da Polícia Florestal, junto ao
Instituto Florestal responsável pela direção e gestão do PEIC, configurou um quadro de caos e desinformação das comunidades
caiçaras, acelerando o processo de migração das mesmas. Muitas famílias saíram do Parque e nunca foram indenizadas pelo
fato. Essa condição ocasionada no PEIC também se verificava em várias outras partes do Vale do Ribeira, segundo Diegues
(1996, p.11).
A população tradicional residente é composta de Caiçaras. Até a década de 2000, a população tradicional caiçara estava
distribuída entre os núcleos Itacuruçá e Perequê, Marujá, Enseada da Baleia, Cambriú, Vila Rápida e Pontal do Leste e ocupavam
cerca de 5% da extensão total da Ilha. Através da resistência das comunidades, uma parte delas continuou residindo no local, mas
o número de comunidades caiçaras diminuiu no Parque, principalmente nas décadas de 1970 e 1980.
Quando houve a criação do Parque, o número estimado era de 500 famílias no interior da Ilha, hoje, o número é cerca
de 120 famílias entre todos os núcleos. Há também um grupo indígena Guarani Mbya, com cerca de 20 integrantes atualmente,
que em 1990 foram morar no PEIC, considerados um grupo intermitente, que se locomove entre as áreas protegidas do Vale do
Ribeira.
Há ainda alguns casos de veranistas que residem sazonalmente no PEIC, sobretudo em meses de alta temporada. Porém,
principalmente a partir dos anos 2000, tramitam na esfera judicial várias Ações Discriminatórias reivindicando a demolição das
residências destes veranistas. Essas Ações Discriminatórias pelo Estado fazem parte dos projetos de regularização fundiária do
PEIC, previstas no Plano de Manejo do mesmo.
O Conselho Gestor da Fundação Florestal que administra o Parque considera que a ocupação no PEIC não possui um
caráter homogêneo, variando ao longo do Parque. A área que possui as comunidades mais densamente povoadas é o núcleo
Marujá, que contempla 56 famílias e o Perequê, que somados aos núcleos Itacuruçá e Cambriu, somam 30 famílias, a Enseada
da Baleia, com 5, Vila Rápida, com 4 famílias e Pontal do Leste com 6 famílias. Os núcleos Marujá, Itacuruçá – Perequê, respecti-
vamente, são os mais expressivos quanto ao oferecimento de atividades turísticas. O núcleo Enseada da Baleia também promove
atividades turísticas ainda que com menor intensidade. Os núcleos Cambriú, Vila Rápida e Pontal do Leste, vivem fundamental-
mente da atividade pesqueira (Figura 2).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 2. Zoneamento do PEIC onde observa-se os Núcleos Marujá e Perequê e os demais Núcleos (em azul), localizados ao Sul do PEIC,
nas Zonas de Uso Extensivo. Fonte: Oliva, A.R; Campolim, M.B (2001)

Segundo Milanelo (1992), até a criação do Parque, a maioria dos moradores sobrevivia da pesca artesanal (redes peque-
nas, gerival, cerco, redes de espera e lançamento). A agricultura era uma atividade igualmente importante, mas que do ponto de
vista de opção como atividade de subsistência dos moradores, deixou de ser viabilizada e autorizada no decorrer das décadas
de 1960 em diante.

Considerações sobre a Atual Organização Territorial e Estratégias de


Manejo Adotados pelas Comunidades Tradicionais nos Núcleos do PEIC
A atual organização territorial e estratégias de manejo do PEIC começou a ser desenvolvida durante a Fase 2 do Plano de
Manejo e passou por mudanças complexas até atualmente. O plano de manejo do PEIC foi viabilizado através da implementação
do Projeto de Preservação da Mata Atlântica (PPMA), resultado de uma cooperação financeira internacional entre o Brasil e a
Alemanha, pelo Governo do Estado de São Paulo e do Banco Kreditanstalt fur Wiederaufbau (KfW). O PPMA abrange uma região
de 22.000 Km2, que vai de norte a sul do litoral do estado, compreendendo as áreas no Vale do Paraíba e no Vale do Ribeira,
respectivamente.
As principais definições que ocorreram na Fase 2 do plano de manejo se referiram à administração, visitação pública/
educação ambiental, proteção, pesquisa, apoio à regularização fundiária e fronteiras. As ações voltadas para organização e
incentivos turístico estavam na pauta dessa Fase 2, e o estabelecimento de diretrizes e normas relacionados à presença de mo-
radores tradicionais no interior da UC também estavam no foco da elaboração dessa fase.
Foi realizada uma classificação em cinco grupos de residentes do PEIC, , desde os moradores até os turistas, divididos em:
Grupo I: moradores tradicionais residentes; grupo II: moradores tradicionais não residentes; grupo III: moradores ad-

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


351
ventícios antigos; grupo IV: caseiros e grupo V: turistas.
No grupo I enquadram-se a maior parte dos “sítios” dispostos na face estuarina, desde o Itacuruçá (que compreende
o núcleo Perequê) ao norte da Ilha, até os limites com o núcleo Marujá, ao sul da Ilha. Os moradores tradicionais do núcleo
Perequê ali vivem há pelo menos três gerações de famílias. No mapa de Zoneamento do PEIC (Figura 2), todos os Núcleos de
moradores enquadram-se nas Zonas de Uso intensivo e Extensivo do PEIC.
As atividades turísticas do PEIC foram reorganizadas a partir dos anos 2000, quando se propôs uma gestão participativa
no núcleo Marujá, na qual os moradores tiveram relativa autonomia para organizarem entre si as delegações de tarefas e ações
para promoverem o turismo nesse núcleo.
Durante a implantação da fase 2 do plano de manejo, a gestão participativa surtiu efeitos, principalmente no Núcleo
Marujá. Houve um esforço de se trabalhar em conjunto com a comunidade desse núcleo e muitos moradores se tornaram moni-
tores ambientais (também no núcleo Perequê), tendo se organizado para a recepção de turistas e grupos escolares que frequen-
tam o Parque nos períodos letivos do ano.
A atividade mais rentável no Marujá se deu com a organização do turismo, do ponto de vista de recepção e infraestrutura.
Em entrevista com morador do núcleo Marujá, o mesmo afirma que, com o incentivo do turismo crescente e desordenado na
década de 1980 e 1990 no Parque, foi necessário que os moradores se organizassem e promovessem uma autogestão local, cor-
roborada posteriormente com a Fase 2 do plano de manejo.
Foram então organizadas, por ele e a Associação de Moradores na época, várias reuniões, debates, para chegarem a
um consenso sobre os rumos que o Marujá tomaria, bem como outros Núcleos, mas cada um com seus interesses e particulari-
dades em questão. As opiniões e considerações dos moradores desse núcleo são muitas vezes divergentes - muitos moradores
caiçaras que vivem da pesca relataram não se reconhecer nos outros caiçaras e nos grupos tradicionais que exploram a ativi-
dade turística sem maiores questionamentos. Por outro lado, para outros as restrições das atividades agrícolas é algo essencial-
mente prejudicial, ao passo que para os adeptos do turismo não é algo determinante em suas vidas.
Essa é uma questão que exprime territorialidades múltiplas por parte das próprias populações que vivem nesses nú-
cleos. Neste sentido, o significado do que é “ser” caiçara de acordo com os moradores tem tomado novos rumos com o advento
das atividades turísticas e cerceamento das possibilidades de reprodução dos seus territórios após a proibição das atividades
agrícolas, pois a cultura caiçara está intimamente ligada ao seu modo de produção com a terra e o mar.
Atentando para outros Núcleos, no caso o Núcleo Perequê, os moradores viviam fundamentalmente da pesca realizada
na área estuarina, sendo que nas últimas décadas o turismo foi incorporado de forma expressiva no local. Porém, somente após
a década de 2000 que as atividades turísticas passaram a ser (de fato) basicamente organizadas. No entanto, ainda hoje, o Nú-
cleo Perequê sofre com problemas relacionados ao turismo de “orla” do estuário, em função de estar localizado muito próximo
a Cananéia, o acesso praticamente livre a ele por turistas que visam aproveitar o dia na “praia” e assim dirigem-se ao núcleo
Perequê, apenas nesse sentido.
A infraestrutura desse núcleo para o turismo é bem menor em relação ao Marujá - possui dois restaurantes e alguns
moradores possuem áreas de camping, principalmente porque a finalidade dos turistas que o visitam não é realmente dormir no
local ou passar dias (como no Marujá).
Nos finais de semana, feriados e alta temporada, porém, o núcleo Perequê tem sua orla estuarina praticamente toda ocu-
pada por turistas. Apenas duas famílias são donas dos restaurantes e, portanto, incorporaram essa atividade comercial. Outros
trabalham em Cananéia e devido à proximidade retornam ao Parque no fim do dia, além dos que são monitores ambientais e os
que vivem da pesca.
Esse Núcleo possui uma área destinada ao alojamento de pesquisadores e estudantes que realizam desde trabalhos
de campo e experiências no local, até pesquisas e estudos específicos sobre a Ilha do Cardoso. Em relação aos Núcleos da
Enseada da Baleia e Vila Rápida, lá vivem 9 famílias e 7 delas vivem essencialmente da pesca. As outras duas hospedam turistas
em suas casas e possuem um restaurante para atender aos turistas na Enseada da Baleia. Esse Núcleo recebe muitos turistas
num feriado específico do ano, quando se realiza a “Festa da Baleia” - também conhecida com a “Festa do Padroeiro São Sebas-
tião - e em outros feriados. O maior problema no local, atualmente, é que processos erosivos atuantes há muitos anos no local
estão avançando rapidamente em direção aos núcleos - há casas que já foram destruídas pelos processos erosivos e as outras
construções estão sujeitas a tal processo.

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Os moradores há anos pedem medidas mitigadoras de contenção parar retardar o avanço dos processos erosivos nesse
Núcleo. Contudo os próprios moradores se organizaram para colocar barreiras de contenção nas construções mais ameaçadas.
Quanto à possibilidade de realocação para outros Núcleos, visto que novas construções teriam que ser feita nesse caso, não é
algo em cogitação segundo o geólogo do Conselho Gestor do PEIC.
A cerca de 10 km da Enseada da Baleia, no pontal do Leste, ao extremo sul da ilha, as poucas famílias residentes vivem
fundamentalmente da pesca, com exceção nos períodos de dezembro a fevereiro, quando recebem turistas para as festas de fim
de ano e carnaval. Por estar localizado no extremo sul da Ilha, sendo o ponto mais distante da Ilha em relação à Cananéia, de onde
geralmente partem os turistas em direção ao PEIC, a procura de turistas é relativamente baixa se comparada ao Núcleo Maruja.
Está em processo de desenvolvimento pelos membros da Associação de Moradores do Marujá uma proposta de recate-
gorização do Núcleo Maruja, para passar de integrante de Parque Estadual para integrante de uma RDS (Reserva de Desenvolvi-
mento Sustentável). Porém, ainda é algo introdutório e sem a oficialização perante o Conselho Gestor do Parque. A opinião dos
moradores de outros núcleos é dividida, pois além de não estarem articulados em relação à proposta, caso ela viesse a ocorrer,
beneficiaria somente o Núcleo Marujá, a menos que outros, com o Perequê, também com potencial turístico, embora em menor
escala, fosse incorporado. Uma das maiores reivindicações para a criação da RDS, além de flexibilizar as atividades turísticas,
é que na mesma o Conselho Gestor é deliberativo e, assim, os membros do Conselho deste Núcleo teriam maior autonomia e
poder de decisão.
Visto a importância do papel do Conselho Gestor no PEIC, um fato notório e preocupante é a ocorrência de elevada rota-
tividade da equipe gestora nos últimos anos, reflexos das mudanças e direcionamentos da Fundação Florestal. O maior registro
de um só gestor no Parque é de quase sete anos quando houve a elaboração da Fase 2 do Plano de Manejo.
Em maio de 2014, foi aprovada a Portaria FF/DE N°093/2014 que dispõe sobre a Criação do Grupo de Trabalho para
elaboração da proposta de criação de Programa de Governo para o reassentamento das populações tradicionais em UC nas
quais sua permanência não seja permitida (Art.1). O Grupo de Trabalho se deu por representantes das seguintes áreas: dois
representantes do Núcleo de Regularização Fundiária, dois representantes da Diretoria Litoral Norte e Diretoria Litoral Sul, um
do Núcleo Metropolitana e Interior, um da Assessoria Jurídica e por cinco membros do ITESP.
A notícia repercutiu com preocupação entre os moradores do PEIC, visto que até junho deste ano, o Conselho Gestor
ainda não havia se manifestado nas reuniões com os moradores para esclarecer como o Grupo de Trabalho em questão está
trabalhando em relação às questões de um possível reassentamento no PEIC. Segundo Membros da Associação de Moradores
do Núcleo Perequê e Marujá, os residentes de UC do Vale do Ribeira estão cientes dos objetivos da nova Portaria em priorizar a
questão fundiária nas UC com vistas ao reassentamento, e as ações deste Grupo de Trabalho devem ser oficializadas nos próxi-
mos meses em relação ao que é estabelecido pela Portaria.
No caso do PEIC, o estabelecimento do território político de proteção da natureza, neste caso, vem causando novas
demandas e preocupante cerceamento da possibilidade de produção dessas territorialidades, provocando o enfraquecimento
dos seus modos de vida tradicionais. Em contrapartida, na ausência de muitas dessas UC, muitos destes remanescentes hoje
conservados, possivelmente, não existiriam mais. Uma das consequências disto foi que muitas populações tradicionais tiveram
proteção em função da existência destas áreas protegidas.
Diegues (2001) reconhece que em muitos casos a criação de unidades de conservação protegeu os moradores tradi-
cionais contra a especulação imobiliária galopante e a expropriação de suas terras. No entanto, foram severamente tolhidos de
exercer suas atividades no interior destas áreas e não podiam ter acesso a serviços básicos e nem exercer suas atividades de
plantio, muitas vezes, seus meios de sobrevivência.
No PEIC, a grande rotatividade no Conselho Gestor ao longo dos anos, é um fator que tem dificultado ações e estratégias
de gestão com resultados efetivos. Esse foi um dos pontos fundamentais abordados por dois antigos gestores. Ambos relataram
que a inconstância institucional da Fundação Florestal tem contribuído para a crise na Gestão das UC no estado, conforme já
apresentado neste estudo.
Os princípios de Gestão Participativa do Uso Público no PEIC, advindos do Plano de Manejo Fase 2, são considerados
avanços importantes no que tange à gestão participativa, tanto pela comunidade do Núcleo Marujá quanto pelo Conselho Ges-
tor da época. Embora a equipe gestora tenha sofrido mudanças nesses últimos anos, o turismo de base comunitária e gestão
participativa de uso público no Marujá fundamentalmente se mantêm. Contudo, nos outros Núcleos os princípios dessa gestão

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


353
participativa têm ocorrido com uma frequência menor nos últimos anos, segundo os moradores e os próprios representantes dos
Núcleos no Conselho.
A comunidade do Núcleo Maruja internalizou o processo participativo de ordenamento de visitação pública e de social-
ização dos recursos, consolidando o turismo de base comunitária, e vem desenvolvendo melhorias para a qualidade do receptivo
turístico. Mesmo o PEIC não dispondo de número adequado de funcionários direcionados a atividade de ordenamento de visita-
ção pública e fiscalização, vem conseguindo viabilizar o segmento da atividade e controle desta, por meio do processo de gestão
participativa do ordenamento turístico, principalmente no Núcleo Marujá.
Contudo nos outros Núcleos que aderem ao turismo, o nível de organização e infraestrutura para o desenvolvimento
deste segmento é bem menos expressivo e a preocupação em relação às questões referentes à regularização fundiárias e per-
manência são tidas como preocupação maior dos moradores. Nesse sentido, a criação de uma RDS no Núcleo Marujá, como
está em vias de proposta, poderia configurar uma boa alternativa para a população tradicional que ali vive.
É necessário porém, pensar também nas questões de reassentamento prevista nesta Portaria, em relação aos outros Nú-
cleos que não seriam contemplados pela RDS, caso esta viesse a se tornar realidade. O PEIC se destaca pela biodiversidade ali
existente e, portanto, por agregar espaços de relevante heterogeneidade. Suas características físicas e bióticas representam um
dos biomas mais importantes em nosso planeta, fazendo com que a tarefa de conserva-lo não só se justifique, mas seja necessária
por parte do poder público, pois os fragmentos de Mata Atlântica ainda restante se esvaem com rapidez da superfície terrestre.
Compreende-se, com isso, que o papel do Conselho Gestor é de elevada importância, visto que são incumbidos de efe-
tivar os objetivos de conservação da biodiversidade existente no PEIC. Os esforços por parte do Conselho Gestor em trabalhar
com fundamentos da Gestão Participativa tem demonstrado resultados importantes no que diz respeito ao trabalho em conjunto
entre as comunidades e a equipe de Gestão.
As comunidades tradicionais caiçaras expressam suas territorialidades através da sua própria persistência em continuar
residindo na Ilha, mantendo suas tradições e modos de vida. As expressões territoriais se fazem notar também nas percepções
paisagísticas das populações tradicionais e do Conselho Gestor, nas quais o simbólico fica exposto no material e os modos de
vida e de visão das realidades das populações tradicionais se evidenciam.

Considerações Sobre as Representações e Perspectivas Paisagísticas


das Populações Tradicionais do PEIC e a Aplicação do Sistema GTP
Sobre as diferentes representações paisagísticas, procurou-se compreender de que forma elas se fazem presentes para
as comunidades do PEIC. As perspectivas das populações que vivem principalmente da pesca e que possuem um relação
de dependência com os recursos naturais presente na Ilha e dessa forma, concebem o meio natural como condição para re-
produção dos seus modos de vida tradicionais. Assim como as representações das comunidades tradicionais que construíram
sua base econômica das atividades advindas do turismo.
As representações paisagísticas desses grupos consistem nas representações sociais dos mesmos, nas quais se faz
importante compreender os elos, as correspondências entre o mundo da produção material e o da esfera imaterial, das repre-
sentações simbólicas, entre as práticas e suas representações que se determinam de forma mútua. É importante se pensar nas
UC a partir das diferentes perspectivas dos atores presentes nelas em relação à conjuntura político-social na qual esses atores se
inserem. Se adotada alternativa da viabilidade de conservar a biodiversidade considerando as populações que habitam nesses
espaços, há de se pensar nessas populações enquanto agentes nessa caminhada.
É importante também compreender como se dá o contraponto entre prática e saberes originados em racionalidades dis-
tintas, que inevitavelmente se cruzam nesse processo, no caso do PEIC, quer seja como parceiros em condições de igualdade
das suas racionalidades , quer seja como parceiros assimétricos onde as políticas ambientais se sobrepõe aos seus métodos e
tradições. É fundamental que o saber científico e as políticas ambientais que estabelecem as legislações sobre as UC e o saber
das populações locais, dialoguem. A forma assimétrica em que muitas vezes se estabelece essa relação acaba por dificultar os
objetivos de conservação do Conselho Gestor e compromete os modos de vida tradicionais dessas populações.
Assim, podemos afirmar que, a despeito das inter-relações nesse processo de instituição do PEIC, comunidades tradi-
cionais assimilaram a discussão ambiental científica, “traduzida” a partir de suas vivências, mas isso não caracterizou a incorpo-
ração ou conformidade das políticas de conservação de forma integral nos seus valores, embora venham ocorrendo transforma-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
354
ções em seus modos de vida, sobretudo aos que migraram da Ilha e não conseguiram reproduzir seus modos de vida fora de lá.
As comunidades moldaram-se de forma a adequar suas atividades para manutenção da vida cotidiana, não alterando, contudo,
suas representações territoriais e paisagísticas.
Entender as representações paisagísticas no contexto das comunidades tradicionais é compreender as perspectivas,
olhares, que indicam como os caiçaras interpretam e organizam seus modos de vida ligados aos elementos naturais, constituindo
uma identidade, sustentada nos saberes tradicionais, acerca dos fenômenos da natureza, sem as quais suas principais ativi-
dades, como a pesca, não seria possível. Verifica-se que existe um conjunto de atores no PEIC pautado por interesses e visões
diversas. Contudo, percebe-se claramente que existe uma coesão dos grupos sociais existentes, de modo que verificou-se a
correlação entre a leitura que os membros das comunidades da Ilha fazem e os Núcleos aos quais eles pertencem.
Existem as perspectivas territoriais e representações paisagísticas dos moradores tradicionais que mantém sua visão
da Ilha do Cardoso como meio possível para continuar reproduzindo seus modos de vida tradicionais e que investem cotidiana-
mente no resgate cultural das tradições das comunidades caiçaras, que sofreram alterações ao longo do percurso e desdobra-
mentos de criação do Parque.
Nesse sentido, os modos de vida das populações tradicionais e representações da cultura caiçara talvez não sejam mais
o ponto de partida, mas sim os investimentos nos segmentos das atividades de ecoturismo desenvolvidas por essas comuni-
dades, seja a prioridade em relação à adaptação de seus modos de vida em um Parque Estadual de Proteção Integral.
Há ainda os moradores que trabalham na tentativa de manter as atividades tradicionais em consonância com as ativi-
dades turísticas adotadas nas últimas décadas, buscando manter representações tradicionais da cultura caiçara e investindo nos
segmentos do ecoturismo. Essas perspectivas e representações não se excluem, ou mesmo se desenvolvem uma em detrimento
da outra, mostram, contudo, perspectivas diferenciadas sobre suas representações sociais e sobre as novas demandas que sur-
giram na Ilha após a institucionalização do Parque.
Contudo, para a maior parte das comunidades presentes no Parque, não displicentes que as paisagens ali existentes são
patrimônio público – institucional – as quais lhes servem para conseguirem seu sustento, ou parte dele, reconhecem a importân-
cia da Ilha em seu conjunto. Porém, o que referencia o sentimento de pertencimento dos mesmos naquele lugar, e que pode
ser percebido nas suas perspectivas e referências paisagísticas, é a paisagem familiar e coletiva, a paisagem afetiva, os valores
culturais, a importância do patrimônio familiar, da união das famílias durante gerações na Ilha do Cardoso.
As interações destes diferentes atores resultam, portanto, em perspectivas e representações diferenciadas sobre o PEIC,
podendo apresentar desde níveis de conflitos que têm dificultado a permanência dos moradores tradicionais, os quais legitimam
o Parque enquanto inserido num contexto de políticas de conservação, porém que buscam alternativas para manter seus modos
de vida tradicionais. Assim como, tem ocorrido outros direcionamentos, por exemplo, ao Núcleo Marujá, que pelo nível de sua
organização de gestão participativa do uso do turismo, reivindica a permanência legitimada no interior do Parque, através da
proposta de recategorização do Núcleo como uma RDS.
Deste modo, a conservação do PEIC pode ter maior efetividade a partir do momento em que se relativizam as distâncias
entre os interesses e perspectivas dos atores das UC e o Conselho Gestor, no sentido de promover a efetiva conservação da bio-
diversidade presente nesta UC. Nesse sentido, considerar as estratégias de Manejo e Gestão Participativa, é um ponto de partida
para as populações tradicionais, que reivindicam o direito de permanência no interior do Parque sob o fundamento de garantia
da manutenção dos seus modos de vida tradicionais e garantia de preservação de sua diversidade cultural.
Concluindo, é de suma importância conceder o devido respaldo ao Sistema teórico- metodológico GTP, visto as contri-
buições que a aplicação desta metodologia , proporcionou ao estudo. O Parque Estadual Ilha do Cardoso não é estático, está in-
serido num contexto de dinâmicas complexas, de forma que trabalhou-se na tentativa de analisar e sistematizar tais dinâmicas de
acordo com seus contextos e compreender as possíveis leituras de realidade existentes na Ilha do Cardoso. De maneira que , o
sistema teórico metodológico GTP, possibilitou trabalhar na tentativa de uma realizar uma pesquisa que fosse capaz de abranger
e dimensionar, a partir de um modelo integrado, a diversidade dos contextos ali presentes e toda a sua complexidade incutida.

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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


357
A POTENCIALIDADE DA PAISAGEM CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE
PRESERVAÇÃO: O CASO DA ROÇA DE TOCO DE BIGUAÇU –
SANTA CATARINA – BRASIL

Vicente Filho, Ronaldo Guimarães1

1. Doutorando no PPG em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, ronaldovicentefilho@gmail.com

Resumo
O objetivo do artigo em questão é apresentar algumas reflexões da relação entre as técnicas e saberes tradicionais agrícolas
aplicadas pelos agricultores em Três Riachos, Biguaçu – SC, envolvidos no sistema denominado localmente como roça de toco e
o papel da paisagem cultural como instrumento de proteção e preservação de tais técnicas. Partimos da comunidade que utiliza
a técnica de roça de toco na área rural de Biguaçu – Santa Catarina, Brasil, para refletir sobre a instrumentalização da paisagem
cultural e suas potencialidades no manejo da biodiversidade e as práticas culturais envolvidos neste processo. Nesse sentido,
apresentamos as principais características da comunidade, bem como as técnicas e os saberes associadas ao modo de vida dos
membros das comunidades. Discutimos ainda a origem das técnicas e saberes tradicionais e como são aplicados, os instrumen-
tos de preservação do patrimônio no Brasil, ou seja, em que medida os instrumentos de preservação fornecem subsídios para
proteção das técnicas e saberes nas comunidades agrícolas tradicionais.

Palavras-chave: Diversidade Cultural, Técnicas Tradicionais, Biodiversidade, Paisagem Cultural, Manejo Florestal.

Introdução
As políticas associadas as práticas de preservação cultural encontram-se no epicentro de uma imensa gama de pes-
quisas, sejam elas acadêmicas ou institucionais, em uma grande quantidade de países. No bojo destes estudos encontram-se
desde análises da aplicabilidade de tais políticas, como reflexões sobre a própria categoria de patrimônio cultural e os discursos
e ideologias nela atreladas.
A presente pesquisa1 possui como foco as políticas de preservação cultural, com uma análise pautada na categoria de
paisagem cultural, utilizada, principalmente, nos países europeus, em planos de gestão que objetivam a preservação e a valoriza-
ção do patrimônio histórico cultural representados nas paisagens. Buscamos aqui analisar como ocorre a prática da preservação
da paisagens culturais associadas as técnicas e saberes agrícolas. Entendemos que a prática de preservação das paisagens
envolve a conservação de ações e seus agentes, nelas inseridas.
No Brasil, esta prática é recente, porém, muitos casos encontram-se em andamento com pedidos de ações efetivas dentro
dos órgãos de preservação, o que remete ao crescimento da utilização deste instrumento. Nesse contexto, torna-se importante
refletir sobre o papel da paisagem cultural como instrumento de preservação aplicada as técnicas tradicionais agrícolas, visto a
escassez de trabalhos nesta área e o importante papel que o instrumento apresenta. Estas práticas culturais, passadas de gera-
ção em geração, são entendidas no presente trabalho como elementos vivos e orgânicos de famílias que retiram grande parte de
suas rendas através da aplicação das mesmas. Portanto, como contemplar nos pactos de gestão, estes elementos socioculturais,
muitas vezes ignorados nos processos de preservação cultural?
A mola propulsora que impulsiona as discussões do trabalho em questão é a agricultura desenvolvida em Três Riachos,
Biguaçu – SC (principalmente as comunidades de São Marcos, São Mateus e Canudos, microbacias de São Marcos e Fazendas,
Figura 1), denominada como roça de toco, também conhecida como agricultura itinerante ou sistema de manejo2.

1
As reflexões que embasaram a elaboração do artigo derivam do produto de qualificação da tese de doutoramento, que ainda encontra-se em andamento.
2
O decreto nº 1.282 de 19/10/1995, responsável pela regulamentação da exploração das florestas da bacia amazônica define manejo florestal como a utilização racio-
nal e ambientalmente adequada dos recursos da floresta. Manejo é uma atividade econômica oposta ao desmatamento, pois não há remoção total da floresta e mesmo
após o uso o local manterá sua estrutura florestal. O manejo bem feito segue três princípios fundamentais: deve ser ecologicamente correto, economicamente viável
e socialmente justo. O princípio da técnica de exploração de impacto reduzido - principal ferramenta do manejo florestal - é extrair produtos da floresta de maneira
que os impactos gerados sejam mínimos, possibilitando a manutenção da estrutura florestal e sua recuperação, por meio do estoque de plantas remanescentes.
Diversificar a produção é um dos princípios mais importantes para o uso sustentável dos recursos florestais (Serviço Florestal Brasileiro - http://www.florestal.gov.br/).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


359
Figura 1. Microbacias de São Mateus e Fazendas localizadas no município de Biguaçu, Santa Catarina, Brasil. Fonte: Vicente, 2014.

O sistema apontado por pesquisadores da área (FANTINI, 2010; ARAUJO et al, 2013; VICENTE; FANTINI, 2014) como
elemento de grande importância para manutenção das florestas tropicais, encontra dificuldades de continuar. Um dos principais
motivos encontra-se nos embates com órgãos ambientais, visto que alguns dos elementos intrínsecos as práticas da população
local fere a legislação ambiental vigente.
A partir do reconhecimento das características e das relações que se estabelecem nas comunidades supracitadas, al-
gumas questões se fizeram presentes e incentivaram a formulação do objetivo em questão. Tomando como ponto de partida o
instrumento da paisagem cultural, da forma como foi elaborada nas diretrizes da UNESCO e como foi legalmente constituída no
Brasil, como pensar sua aplicação de maneira a auxiliar a preservação de práticas que envolvem técnicas e saberes tradicionais?
Até que ponto a aplicabilidade dos instrumentos de preservação no Brasil, em específico a paisagem cultural, possui potencial
para atuar em conjunto com outros instrumentos legais (principalmente ambientais), na preservação de técnicas e saberes agrí-
colas responsáveis pelo sustento de diversas famílias? Em que medida o instrumento de preservação da paisagem cultural, da
forma como vem sendo utilizado no Brasil, influencia na manutenção ou não de práticas agrícolas em vias de desaparecimento?
A metodologia utilizada para subsidiar o estudo pautou-se na pesquisa teórica centrada na literatura especializada, na
análise documental com estudo de textos legais e diretrizes internacionais no campo do patrimônio e nos estudos de campo, que
forneceram as primeiras impressões sobre a população e a área.
No texto que segue abordaremos algumas categorias analíticas que subsidiaram as ponderações realizadas no trabalho.
Dentre estas, podemos elencar como principais, as categorias de agricultura familiar, os saberes e técnicas tradicionais e de
paisagem cultural.

Desenvolvimento
A agricultura itinerante roça de toco e a categoria de paisagem cultural:
alguns apontamentos
A agricultura familiar corresponde a 87% dos estabelecimentos agropecuários em Santa Catarina, Brasil (IBGE, 2006).
Dados levantados pela EPAGRI/CEPA3 demonstram que em 2012 o Estado foi o segundo maior produtor nacional de arroz (1.097
mil ton), o maior produtor de maçã (659.732 ton) e contribuiu ainda significativamente para a produção interna de feijão (115.719
ton), cebola (379.262 ton), fumo (237.213 ton), banana (689,695 ton) e mandioca (530.098 ton). Estas cifras são alguns exemplos
que demonstram a importância que possui da atividade, que ocorre tanto nas áreas mais afastadas ou periféricas, como também
nas regiões metropolitanas, incluindo os municípios próximos a capital, em Santa Catarina.
Um exemplo é o município de Biguaçu, componente da Região Metropolitana da Grande Florianópolis, distante aproxi-

3
Dados retirados do ranking da produção estadual em relação a nacional das safras de 2011 e 2012. Disponível em http://www.epagri.sc.gov.br/?page_id=2870,
acessado em 10 de Dez. de 2014.

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madamente 18 km da capital, onde a agricultura familiar vem sendo praticada de modo consorciado com a floresta. A população
que habita a região de Três Riachos, nas comunidades de São Marcos, São Mateus, Canudos e Fazendas, localizada no mu-
nicípio, adquire grande parte da renda através da agricultura local ou atividades que dela derivam (FANTINI; SCHLINDWEIN,
2014; VICENTE, 2014; ARAUJO et al, 2013).
Uller-Gomes et al.(2013), identificaram um total de 402 (quatrocentos e duas) famílias na localidade de Três Riachos.
Dessas, 157 (cento e cinquenta e sete) famílias adquirem a maior parte da renda advinda da agricultura. Ou seja, considerando
a proximidade com a capital, elencada como um elemento de atração4 pela população destas comunidades, um total de 39%5
desta população ainda vivendo da atividade agrícola é uma quantidade significativa.
A agricultura praticada na região possui a especificidade de ser rotacional e é tratada como uma agricultura itinerante,
bem como o sistema de manejo denominado roça de toco, também conhecido como coivara em outras regiões, por possuir rela-
ção direta com a floresta tropical. O manejo realizado pela população local consiste na condução periódica e sucessiva de culti-
vos agrícolas e florestais, onde ocorre alternância entre os períodos de cultivo e pousio. As principais culturas agrícolas utilizadas
são a mandioca, a banana, o milho, o café e a cana-de-açúcar. Tradicionalmente as espécies florestais utilizadas no sistema eram
tanto da mata nativa, quanto a bracatinga (formações florestais formadas por alta densidade de indivíduos de Mimosa scabrella)
(VICENTE; FANTINI, 2014; FANTINI; SCHLINDWEIN, 2014; CARRIERI et al., 2014).
Este sistema de manejo é apontado como um dos mais antigos do mundo, aplicado em outras áreas, variando de local
para local. No Brasil o manejo foi praticado por comunidades indígenas por mais de mil anos, especialmente os que habitavam
o litoral brasileiro, no qual cultivavam principalmente a mandioca (DEAN, 1996).
É considerado por alguns pesquisadores de manejos florestais como um elemento fundamental para manutenção das
florestas tropicais, principalmente, pelo seu caráter autosustentável e por promover o processo de domesticação e adaptação
das comunidades vegetais tanto para cultivos anuais quanto para as florestas (ADAMS, 2000; OLIVEIRA, 2002; STEENBOCK et
al., 2011; SIMINSKI; FANTINI, 2007; ULLER-GÓMEZ E GARTNER, 2008; FANTINI et al., 2010, MARTINS, 2005).
O sistema consiste em um primeiro momento na roçada seletiva nas glebas de mata nativa, para retirada da vegetação
arbustiva de diâmetro menor e da vegetação herbácea (rasteira). Este processo auxilia o acúmulo de material orgânico sobre
o solo. A limpeza da área ocorre através da incineração da biomassa, que funciona como facilitador de locomoção no lote, e o
material restante proporciona fertilidade ao solo. Alguns agricultores utilizam o fogo antes da derrubada, outros o utilizam após.
(VICENTE; FANTINI, 2014; FANTINI et al., 2010; VICENTE, 2014).
A etapa seguinte corresponde na desidratação da madeira, que permanece sobre o solo pelo período de um a dois
meses. Esta técnica é importante para alcançar um fuste com teor calorífico aceitável para utilização da madeira como lenha
nos engenhos de açúcar e farinha ou nos fornos de carvão (VICENTE; FANTINI, 2014). Posteriormente a este processo ocorre
a separação e corte dos troncos restantes em toras de aproximadamente um metro. Uma síntese do manejo pode ser melhor
visualizado na sequência (Figura 2).

4
Segundo Casagrande (2006), 8.605 famílias abandonaram o meio rural nos últimos 50 anos, sendo 19,1% nos últimos 10 anos na região da Grande Florianópolis. A
taxa de urbanização está próxima dos 90%.
5
Na comunidade de São Mateus 41% das famílias apresentam renda proveniente de atividade do campo. E na comunidade Fazendas 42%. (ULLER-GOMES et al.,
2013).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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Figura 2. Etapas do sistema de manejo da roça de toco em Biguaçu - SC: 1.selecao de lote florestal; 2. Rocada seletiva; 3. Queimada;
4. Secagem; 5. Seccionamento; 6. Retirada da lenha do lote; 7. Empilhamento da lenha; 8. Início da regeneração florestal; 9. Plantio culturas
agrícolas e espécies florestais; 10. Rebrote de tocos, condução regeneração e do cultivo; 11. Colheita e pousio da área;
12. Período de pousio em diversos estágios. Fonte: VICENTE, 2014.

O manejo de regeneração ou introdução de espécies nativas, funciona como um recompositor florestal, auxiliando a ma-
nutenção da cobertura vegetal nas propriedades, assim favorece a produção de lenha (atividade que compõe a cadeia agrícola
da região), e na recuperação do solo (VICENTE; FANTINI, 2014).
Apesar destas considerações o sistema de manejo praticado nas comunidades de Biguaçu encontra dificuldades para
continuar, visto que uma série de restrições legais ao manejo da floresta nativa têm tornado cada vez mais difícil o exercício da
atividade, colocando-a na clandestinidade ou fazendo com que ocorra o abandono da prática pelos agricultores e agricultoras
tradicionais nas comunidades (ARAUJO et al, 2013; VICENTE; FANTINI, 2014; FANTINI et al., 2010)
O embate com os órgãos de legislação e fiscalização ambientais inicia-se no momento da retirada da vegetação rein-
troduzida. Quando a floresta nativa reinserida pelos responsáveis agrícolas nas propriedades rurais atingem o “ponto de corte”
necessário para nova lavoura ou produção de lenha, esta enquadra-se em momento considerado área em estágio médio ou
avançado de regeneração, tornando o/a autor/a pela supressão passível de autuação (FANTINI et al., 2010).
Como aponta Zuchiwschi et al (2010, p. 279), no estado de Santa Catarina a autorização para o corte seletivo de até 20
unidades (indivíduos) de árvores nativas ou até 15 m³ de galhada de árvores para lenha, permitida em unidades de produção
com até 30 ha, exige uma série de procedimentos legais (averbação de Reserva Legal na escritura do imóvel, apresentação de
projeto elaborado por um técnico, planta topográfica georreferenciada do imóvel, entre outros documentos).
A Lei Municipal Nº 3166/2011, promulgada em 14 de dezembro de 2011, dispõe sobre autorização para atividades consi-
deradas de baixo impacto ambiental no município de Biguaçu. Dentre as ações consideradas de baixo impacto e que necessitam
de autorização para serem praticadas encontram-se,

A coleta de produtos para fins de subsistência e produção de mudas, como sementes, castanhas
e frutos, exceto madeira, desde que eventual e respeitada à legislação específica a respeito do
acesso a recursos genéticos;

O plantio de espécies nativas produtoras de frutos, sementes, castanhas e outros produtos ve-
getais em áreas alteradas, plantados junto ou de modo misto;

A poda, corte ou extração de espécimes florestais nativas ou exóticas, em situação de risco de


queda, que possam ameaçar a vida, patrimônio ou meio ambiente.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
362
O art. 9º, parágrafo IV da Lei em questão esclarece ainda o que a prefeitura entende como recuperação ambiental, dis-
posto adiante,

constitui toda e qualquer ação que vise mitigar os danos ambientais causados e dependendo das
peculiaridades do dano e do bem atingido, as seguintes modalidades: recomposição ambiental,
recuperação in natura, ou restauração que consiste na restituição do bem lesado ao estado em
que se encontrava antes de sofrer a agressão, por meio de adoção de procedimentos e técnicas
de imitação da natureza;

Há indícios que a saída encontrada pela população que trabalha com sistema agroflorestal nas comunidades seja a
substituição da reintrodução das espécies nativas por espécies exóticas, principalmente eucalipto, devido não possuir a mesma
restrição legal que as matas nativas (ULLER-GÓMEZ et al, 2013; ULLER-GÓMEZ et al, 2014, CARRIERI et al, 2014; VICENTE,
2014), o que gera uma série de consequências negativas para os recursos hídricos, o solo, a flora e a fauna locais.
O panorama exposto representa algumas das principais características das atividades desenvolvidas pelos agricultores
e agricultoras localizadas nas comunidades de Três Riachos e que incentivaram a elaboração deste trabalho. Inserindo a reali-
dade local em um contexto político global, cabe destacar a importância de algumas convenções e tratados internacionais no que
tange ao reconhecimento das populações tradicionais. Nesse sentido, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente
e Desenvolvimento, Rio-92, possui um papel importante no reconhecimento das práticas dos povos tradicionais, visto que a partir
de uma demanda cada vez mais crescente de proteção ambiental, estes tornaram-se sinônimos de atores/as responsáveis pela
proteção do ambiente natural do qual subsistem, atrelados as possibilidades de preservação dos recursos in situ6.
Uma mudança paradigmática também proporcionou tal destaque, visto que ocorre um aumento de correntes ambien-
talistas cada vez mais distantes do pensamento preservacionista e mais próximos do conservacionismo. As duas perspectivas
primam pela preservação dos recursos naturais, contudo, a segunda, parte do princípio que as populações humanas são parte
inerente da natureza, uma vez que consideram os manejos a partir de técnicas e saberes tradicionais como sustentáveis e viáveis
na conservação dos recursos (DIEGUES, 2008, p. 25).
Por outro lado, o fato das comunidades suscitarem questões relacionadas à tradicionalidade nos remete a possíveis in-
terlocuções com a área da preservação do patrimônio cultural, uma vez que, através da gama de instrumentos de preservação
(tombamento, registro, salvaguarda, paisagem cultural), o campo do patrimônio possui papel importante para a construção
social. Destarte, abordaremos a seguir os elementos da paisagem cultural enquanto categoria de análise.

A paisagem cultural como categoria analítica


Cotidianamente (principalmente na grande mídia), a paisagem está associada a ideia de “natureza”, sobretudo atrelada
a “belezas naturais”. Não se faz presente, neste sentido de paisagem, a presença humana. Quando pesquisamos as palavras
“paisagem cultural” em sítios de buscas na internet, as imagens mais recorrentes estão atreladas a monumentos históricos, es-
pecialmente a imagem do Cristo Redentor, talvez devido a busca ser realizada no Brasil e a cidade do Rio de Janeiro ter recebido
o título da UNESCO de Patrimônio Mundial como Paisagem Cultural, em 1º de julho de 2012.
Porém, qual a diferença entre paisagem e paisagem cultural? Qual é a origem do termo paisagem cultural? Como esta
noção vem sendo utilizada?
A emergência do conceito de paisagem está intimamente ligada ao conceito de modernidade. Foi desenvolvido a partir
da arte e foi então adotado pela geografia a partir do século XIX, tornando-se uma parte importante do campo de estudo da
mesma (NAVARRO BELLO, 2003). Conforme aponta Maderuelo (2006, p. 16), a primeira cultura que parece dispor de um termo
específico para a paisagem, em que alguns poetas descrevem suas maravilhas, artistas que pintam e cultivam jardins para o
prazer, é a China, desde o século V, entretanto, no mundo ocidental o termo paisagem é uma palavra moderna e deve ser tratada
com certo cuidado quando encontrada em textos, transcrições ou traduções anteriores ao século XVII.
Se aceitarmos então que a palavra paisagem surge na cultural ocidental como um termo “pictórico”, originando um
género que ganha força a partir do século XVII, alcançando sua máxima expressão durante o século XIX, no período que vai do

6
A conservação in situ se refere a “conservação de ecossistemas e habitats naturais e a manutenção e recuperação de populações viáveis de espécies em seus meios
naturais e, no caso de espécies domesticadas” (MMA, 2000).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


363
romantismo até o impressionismo, entendemos que a paisagem, em sua origem, é uma construção cultural e não apenas um
elemento físico. Portanto, estamos diante de um conjunto de ideias, sensações e sentimentos que elaboramos a partir do lugar e
seus elementos constituintes (CAUQUELIN, 2007).
Com o aumento gradativo por parte dos Estados e dos gestores culturais do entendimento deste processo, ocorre tam-
bém uma inserção cada vez mais profunda da paisagem no campo do patrimônio. Para fins de uma análise voltada a aproxima-
ção entre as práticas de preservação do patrimônio cultural e a paisagem, cabe revisitar as cartas patrimoniais7.
A Carta de Atenas é considerada como primeira carta patrimonial, resultado da Conferência Internacional de Atenas
sobre o Restauro dos Monumentos que ocorreu em 1931. Teve o valor de ser a primeira reunião realizada sob a égide de uma or-
ganização supranacional, o Instituto de Cooperação Intelectual a Liga das Nações, representada principalmente pelo Escritório
Internacional de Museus (ICOM)8.
Mais de trinta anos depois, exatamente em 1964, foi realizado o II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos
Monumentos Históricos – ICOMOS, resultando no documento-base chamada de Carta de Veneza. O resultados destes primeiros
congressos estava pautado em um entendimento dicotomizado dos Bens patrimoniais.
Foi a partir da Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural e Natural9, que aconteceu em Paris, em 1972, a fusão entre
monumento, monumento histórico e monumento artístico. Acompanhando tais mudanças, a UNESCO inseriu neste contexto a
discussão sobre a noção de paisagem cultural.
A categoria de paisagem cultural nos moldes pensados pela UNESCO, a partir da Convenção de 1972, possui como
significado uma espécie de retorno aproximativo entre o homem e a natureza. Relação esta que perdeu seu caráter equilibrado
e dinâmico.
A separação entre cultural e natural se fazia presente no ideário da Convenção de 1972. Com o passar dos anos este
antagonismo se tornou cada vez mais anacrônico, e a UNESCO aprofunda a noção de paisagem cultural criando critérios para
operacionalização da categoria. A partir da década de noventa a visão dicotômica entre patrimônio natural e cultural é relati-
vizada. Uma nova transformação nos valores e conceitos estava ocorrendo, incentivada principalmente pelas discussões que
acarretavam nas recomendações e convenções da UNESCO até aquele momento.
Todo esse processo de valorização da paisagem cultural como instrumento de preservação reverbera no Brasil a partir
da primeira década do século XXI. Ela torna-se o mais recente instrumento de preservação do patrimônio nacional através da
instauração da Chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Instrumento este que se diferencia, tanto do tombamento, utilizado para
o bens culturais materiais ou tangíveis, como do registo, instrumento aplicado à salvaguarda dos bens imateriais ou intangíveis.
A principal diferença encontra-se na flexibilidade, visto que a chancela é um instrumento legal mais “frágil”, se comparado aos
demais. Contudo, um instrumento de proteção que tenha como foco a paisagem, deve considerar a característica do dinamismo
implícita nesta categoria, e integra-las em sua metodologia de análise.
Até o momento a única experiência de bens chancelados como paisagem cultural brasileira está relacionada ao projeto
Roteiro Nacional de Imigração em Santa Catarina, no qual foram inseridos, em duas etapas, sessenta e um bens culturais materi-
ais. O pioneirismo do projeto não o protege de críticas, principalmente pela forma como foi colocada em prática. De certo modo,
o Roteiro Nacional de Imigração trabalha numa perspectiva redentora, reconhecendo que estas etnias10 não tiveram seu devido
reconhecimento em um passado próximo, porém, foram de extrema importância para formação social brasileira. O ponto de
estruturação do Projeto está ancorado na apropriação das identidades étnicas pelo turismo (DOSSIÊ DE TOMBAMENTO DOS
ROTEIROS NACIONAIS DE IMIGRAÇÃO SANTA CATARINA, VOL. I, 2007).
Estas foram apenas algumas das reflexões e diálogos sobre a temática abordada. Adiante discutiremos brevemente qual

7
As cartas patrimoniais são documentos cujo caráter é indicativo ou, no máximo, prescritivo. Não possuem a função de legislar, mas de fornecer embasamento fi-
losófico para que os órgãos competentes possam legislar. Constituem base ontológica para as várias profissões envolvidas na preservação, mas não são receituário
de simples aplicação. Servem, dessa forma, de referência mundial para que os diversos países adotem métodos e ações convergentes para a preservação do pa-
trimônio. Para elaborar uma leitura fundamentada do documento, suas formulações devem ser entendidas em relação aos postulados teóricos da época em que foi
produzida e aos desdobramentos do campo (KÜHL, 2010, p. 285).
8
Como aponta Françoise Choay (2003, p. 185), esta comissão, presidida por Henri Bergson, e composta por membros como Marie Curie, Sigmund Freud, Albert
Einstein, Aldous Huxley, entre outros e outras, militavam a favor da proteção internacional do patrimônio, a partir de uma visão essencialmente representada por
valores europeus.
9
As recomendações discutidas e elaboradas nesta convenção foram aprovadas na Reunião de Paris em 16 de novembro de 1972.
10
Foi realizado um inventário dos bens culturais marcados por referências culturais relacionadas à imigração de italianos, alemães, poloneses e ucranianos em Santa
Catarina.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
364
o papel dos saberes e das técnicas tradicionais nas paisagens historicamente construídas.

Técnicas e Saberes Tradicionais e a Relação coma a Paisagem Cultural


Historicamente Construída
A relação entre as técnicas tradicionais e a paisagem cultural historicamente construída é praticamente a mesma que
possui a conservação de um patrimônio histórico/cultural e as técnicas tradicionais. São elas, por estarem vivas, que garantem a
manutenção e asseguram a permanência dos bens culturais tangíveis ou intangíveis.
A forma primeira para entender estas práticas perpassa pela compreensão do significado de tradição. Recorrendo ao
sentido léxico da palavra, o Houaiss (2009), nos remete a: ato ou efeito de transmitir ou entregar; transferência; comunicação
oral de fatos, lendas, ritos, usos, costumes etc. de geração para geração; herança cultural, legado de crenças, técnicas etc.
de uma geração para outra; tudo o que se pratica por hábito ou costume adquirido. Assim, no âmbito do patrimônio cultural,
as técnicas e os saberes tradicionais são os processos e procedimentos de utilização de ferramentas, de materiais, de formas,
transmitidos pelos costumes e práticas passados de geração em geração.
Percebemos a intrínseca relação que os saberes e técnicas tradicionais possuem com a noção de cultura. Na visão de
Claval (2007) a cultura pode ser entendida como,

[...] conjunto de gestos, práticas, comportamentos, técnicas, conhecimentos, regras, normas e va-
lores que são herdados dos pais e da vizinhança e adaptados através da experiência a realidades
sempre mutáveis [...] A cultura é herança e experiência (CLAVAL, 2007, p. 163).

Nesse sentido, o fator geracional atua como uma espécie de amálgama, fazendo com que os saberes e técnicas se con-
solidem no processo cultural. Ainda assim, qual papel possui a tradicionalidade envolto neste processo?
Refletindo em nosso foco de pesquisa e em como ocorrem as relações que se estabelecem nas comunidades agrícolas
localizadas em Três Riachos, levantamos alguns questionamentos. Qual o papel que os signos “novo”, “avançado” ou “evoluído”,
possuem na noção de técnicas e saberes? Em que medida o papel da técnica, que possui um caráter simbólico de “novo”, não
estaria dissimulando uma padronização espacial, fruto de uma racionalidade hegemônica? Podemos pensar que existe um
embate entres os saberes e as técnicas em contextos históricos diferenciados? Em que medida estes processos influenciam na
constituição das práticas espacialmente construída?
Torna-se importante neste momento buscar entender, mesmo que brevemente, como a técnica é trabalhada nas ciências
geográficas. Alguns geógrafos ressaltam a importância que a técnica possui como um componente importante para se com-
preender a sociedade. Como aponta Claval (2007):

O ambiente só tem existência social através da maneira como os grupos humanos o concebem,
analisam e percebem suas possibilidades, e através das técnicas que permitem explorá-lo: a me-
diação tecnológica é essencial nas relações dos grupos humanos com o mundo que os rodeia
(CLAVAL, 2007, p. 219).

Alguns geógrafos que apresentaram importantes contribuições para a ciência geográfica como Vidal de La Blache, Lu-
cien Febvre, Albert Demangeon, Pierre George, Philip Wagner, entre outros, reservaram parte de sua atenção para entender o
papel da técnica. Nos deteremos neste momento, ao papel que a categoria técnica possui no pensamento de Milton Santos,
devido a importância que o pesquisador imprime a estas, chegando a afirmar em entrevista, que entende a geografia como a
filosofia das técnicas (SANTOS, 1999, p. 5).
Santos entende técnica como “conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida,
produz e, ao mesmo tempo, cria espaço” (2002, p. 29). Neste sentido, a técnica se apresenta como um elemento funda-
mental para as pesquisas geográficas, pelo fato que é ela que materializa a(s) mudança(s). Considerar o espaço geográfico,
operacionalizá-lo e sistematizá-lo através da técnica como categoria espacial, requer uma abrangência na relação entre espaço
e fenômeno técnico, incluindo a própria ação, como técnica, ou em outras palavras, “considerar a própria técnica como meio”
(SANTOS, 2002, p. 38).
Na medida em que entendemos a técnica como elemento capaz de gerar espaços, estamos inserindo também, em

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


365
um contexto específico, o fator tempo, visto que estamos considerando a coexistência de técnicas com diferentes momentos
históricos. Logo, também ocorre uma coexistência de espaços, ou lugares, com tempos diferenciados em um mesmo contexto.
O reflexo deste processo vai se fazer presente, morfologicamente na paisagem, através das formas-objeto ou rugosidades do
espaço (SANTOS; 1978, 2004).
A paisagem, portanto, caracteriza-se como um acúmulo de tempos diferenciados da relação entre o meio e homem/
mulher e vice-versa. Deste processo derivam-se a produção material e imaterial da vida. Realizar um esforço metodológico de
aproximar os processos apresentados e o instrumento da paisagem cultural, traduz-se em considerar, a partir desta relação
(natureza-sociedade), as técnicas e saberes que forneceram/fornecem subsídios, em diferentes momentos históricos, para a
constituição social.
Por outro lado, é importante refletir sobre a carga simbólica que está atrelada a técnicas e saberes, uma vez que este
elemento também vai influenciar a dinâmica espacial. Se é possível afirmar a coexistência de técnicas em momentos historica-
mente diferentes, em um determinado espaço, também é possível pensar na pressão exercida de um conjunto de técnicas e
saberes sob outro. Contextos históricos diferenciados remetem a velocidades diferenciadas.
Ao pensar estes elementos associados ao contexto agrícola brasileiro (mas que se aplica a grande parte dos países do
mundo), torna-se importante atentar para a existência dos modelos duais, o modelo do agronegócio e o modelo da agricultura
familiar. Destarte, refletir sobre a base cultural envolvida nas técnicas e saberes tradicionais rurais, perpassa pelos modelos
agrícolas ao qual estão inseridas. Inclusive, associadas as pautas levantas pelos diferentes modelos estão atreladas também
modelos diferenciados de técnicas e conhecimentos. Ou seja, o sistema de manejo analisado neste trabalho está associado a
um modelo agrícola fundamentado em bases que se diferem do modelo agrícola agroexportador. A sobrevivência das práticas
culturais atrelados ao modelo de agricultura familiar depende, em grande parte, da própria manutenção do sistema agrofamiliar.
Por outro lado, não podemos esquecer que a questão agrícola atual está imersa em uma série de dificuldades e incerte-
zas como insegurança alimentar, industrialização e esvaziamento do campo, hereditariedade e sucessão, entre outros. Nesse
sentido, visualizar como estas questões se aplicam e como se relacionam nas populações agrícolas que utilizam o manejo itine-
rante roça de toco, nas comunidades de Três Riachos, se torna de grande importância para compreensão das permanências ou
não das práticas culturais construídas socialmente naquela região.

Considerações Finais
O objetivo deste artigo foi apresentar algumas discussões que surgiram a partir do doutorado em andamento cursado no
Programa de Pós-Graduação em Geografia na UFSC. Busquei aproximar as temáticas das técnicas e saberes utilizadas pelos
agricultores e agricultoras familiares, da conservação e do sistema manejo florestal, como no campo do patrimônio cultural,
através da categoria da paisagem cultural. Na prática, ainda há uma grande dificuldade de utilizar a noção de paisagem cultural
como elemento de proteção, como defendida pelos órgão internacionais, ou seja, considerando o conteúdo histórico da relação
homem\mulher e ambiente. O cerne desta dificuldade encontra-se, principalmente, em conjugar na conservação destas paisa-
gens a dimensão estética (priorizada), com a funcional e a etnoecológica, garantido a continuidade das práticas culturais que
fornecem o sustento de populações agrícolas.
Este contexto se complexifica quando articulada com a questão da conservação de paisagens culturais agrícolas, asso-
ciadas aos usos tradicionais da terra, visto a grande pressão sofrida por estes, derivado das transformações sociais e econômi-
cas. Dentre estes podemos destacar a industrialização dos produtos agrícolas, a especulação imobiliária, alterações demográfi-
cas, legislação ambiental e sanitária, alteração do preço da terra, entre outros. Consequentemente, torna-se importante pensar
em políticas de preservação que culminem em planos de preservação da paisagem cultural, nos moldes de inserção das comu-
nidades tradicionais que considerem tais elementos.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
368
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE AS COMUNIDADES
TRADICIONAIS NO CONTEXTO DA PAISAGEM

Santos, Cássio Rogério Graças dos1 & Senna, Cristina do Socorro Fernandes2

1. PPG em Geografia, Univeridade Federal do Pará, cassiogero93@gmail.com 2. Museu Paraense Emilio Goeld, csenna@museu-goeld.br

Resumo
Este trabalho é fruto de algumas reflexões traçadas no projeto de pesquisa “A Amazônia e a compreensão geográfica do espaço
brasileiro: diversidade territorial, políticas públicas e novas configurações espaciais”, promovendo, assim, o debate para o de-
senvolvimento da dissertação do autor. O objetivo desse ensaio é apresentar alguns conceitos da paisagem e comunidades
tradicionais, como subsidio, para estudos ambientais integrados. As ações humanas em seu ambiente são explicadas de forma
interdisciplinar, ou seja, nesse trabalho em especifico, as ações das comunidades tradicionais na paisagem, pois a paisagem é
um conceito integrador, pois analisa os aspectos físicos, biológicos e antrópicos. Artigo está divido em três partes, a primeira com
os conceitos de paisagem, segunda parte comunidades tradicionais litorâneas e por fim, as considerações finais.

Palavras-chaves: Paisagem, Comunidades Tradicionais, Estudos Ambientais.

Introdução
O conceito de paisagem origina-se da Geografia, é polissêmico, pois se confunde com o que é aparente, o visível, a
pintura, a fotografia, natureza, floresta, lugar bonito, etc., mas, além disso, a paisagem é um conceito científico, com uma carga
histórica, sofrendo influencia do pensamento dominante de cada período histórico. O conceito comunidade tradicional remete a
várias categorias sociais, geralmente, utilizado por pessoas de fora de tal contexto.
As reflexões apresentadas nesse artigo são oriundas de pesquisas realizadas dentro do projeto “A Amazônia e a com-
preensão geográfica do espaço brasileiro: diversidade territorial, políticas públicas e novas configurações espaciais” formados
por pesquisadores e alunos de doutorado, mestrado e iniciação científica dos Programas de Pós-Graduação em Geografia Hu-
mana da USP, Pós-Graduação em Geografia UFPA e Museu Paraense Emilio Goeld. Os temas investigados são relacionados à
Ecologia da Paisagem, memória, lugar, comunidades tradicionais e uso dos recursos naturais. A área de estudo é o município de
Quatipuru localizado no nordeste do estado Pará, banhado pelo oceano Atlântico.
O objetivo desse trabalho é apresentar alguns conceitos sobre paisagem, como um conceito integrador, pois unem em
suas análises os fatores bióticos, abióticos e sociais e os conceitos de comunidades tradicionais que são ancorados nas pesqui-
sas desenvolvidas por pesquisadores do Museu Paraense Emilio Goeldi, que desenvolvem seus estudos no litoral paraense há
mais de 70 anos, contribuindo com o conceito de comunidades tradicionais litorâneas, que vivem a partir dos recursos naturais
obtidos no mar, na restinga, manguezal, nas várzeas e nos demais ambientes litorâneos, constituindo um modo de vida tradicional
com forte apego ao território em que vive e com presença e com uma forte carga simbólica.
As raízes do conceito de paisagem remontam ao renascimento, meados do século XV, onde o belo deveria ser represen-
tado por meio de quadros, pinturas, poesias e nas artes em geral. Porém, a partir do século XIX, a geografia começa a ganhar
um corpo cientifico com as formulações do naturalista alemão Alexander Von Humbolt e na França com Paul Vida de La Blache,
Santos (2014) e Silveira (2009).
Para Humbolt a paisagem tem um caráter holístico, de totalidade com a vegetação, solo, relevo e as ações humanas, com
esses elementos são suficientes para uma descrição da terra. Ainda Humbolt diz “de acordo com a qual a noção de paisagem
será a síntese do transcendental, manifesta em princípios mecânicos e estéticos.” (VITTE, 2011, p. 75).
La Blache aponta que a paisagem seria apenas a aparência, ou seja, a representação da região. Assim, o gênero de vida,
conceito formulado pelo geógrafo francês e pai da geografia regional, Paul Vidal de La Blache, seria a paisagem construída e
modificada pelas sociedades (NETO, 2008). A região era considerada a categoria principal da geografia, caberia à geografia
estudar e classificar as regiões em critérios físicos e culturais. Mostrando também o caráter holístico próprio da geografia, pois,
enquanto ciência, busca a integração dos aspectos naturais e culturais.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


369
Reflexões sobre o conceito de paisagem na Geografia
A paisagem ganha um impulso no período final das décadas de 1940 com o desenvolvimento da teoria Geral dos Siste-
mas Dinâmicos, publicada em 1948 por Ludwig Von Bertanffy, com a teoria dos Sistemas onde todos os elementos que compõem
a natureza passando a trabalhar com trocas de matérias e energias. Para Nucci:

[...] a necessidade de uma visão sistêmica resultou do fato de que o esquema mecanicista mostra-
va-se insuficiente para tratar os problemas cada vez mais complexos, especialmente nas ciências
biológicas e sociais. No início dos anos 20, ele se preocupou com essa lacuna na pesquisa e teoria
biológicas e defendeu uma concepção organísmica na biologia cuja ênfase era dada na consid-
eração do organismo como um todo ou sistema. Pode-se dizer que, mesmo em seus primórdios,
a teoria dos sistemas conseguiu influenciar a Ecologia inspirando o surgimento do termo “ecos-
sistema” sugerido por Tansley (NUCCI, 2007, p. 83).

Na URSS, na década de 1960, pesquisadores criaram metodologias de pesquisas para monitoramento e identificação de
recursos naturais da paisagem. As unidades de paisagem receberam o nome, pelos ex-soviéticos, de geossistema (FERREIRA,
2010). Para Sotchava o geossistema é uma alternativa para estudos integrados, para a dinâmica do meio físico. Como ele diz:

É preciso estudar [...] não os componentes da natureza, mas as conexões entre eles; não se deve
restringir à morfologia da paisagem e suas subdivisões mas, de preferencia, projetar-se para o
estudo de sua dinâmica, estrutura funcional, conexões, etc (SOTCHAVA, 1977, p. 2).

Na década de 1970, com tomada de consciência que as bases energéticas estavam em crise, que as fontes de água e
recursos naturais era finitos e a poluição atmosférica e hídrica ameaçavam a vida na terra fez com que a ecologia redirecionasse
os seus estudos com fundamentos teóricos espaciais (geografia) e funcionais (ecológica) ao estudar a paisagem. A ecologia da
paisagem surge como uma ciência transdisciplinar, com a visão holística, onde o sistema natural e cultural, integrando a biosfera
e a geosfera. Carls Troll trazem elemento para o estudo mais sistematizado com a hierarquização da paisagem.

O termo Ecologia da Paisagem, como uma disciplina científica emergente, foi cunhado por Troll
em 1939, ao estudar questões relacionadas ao uso da terra por meio de fotografias aéreas e in-
terpretação das paisagens. Com a sugestão desse termo Troll, teve a intenção de incentivar uma
colaboração entre a Geografia e a Ecologia, combinando, assim, na prática, a aproximação “hori-
zontal” do geógrafo examinando a interação espacial dos fenômenos, com a aproximação “verti-
cal” dos ecólogos, no estudo das interações funcionais de um dado lugar, ou “ecótopo” (NUCCI,
2007, p. 88).

A Ecologia da Paisagem americana era pautada na razão mecanicista, não introduzia, de proposito, o homem em suas
análises, ocorrendo analises reduzidas, cabendo mensurar, e fazer predições as mais exatas possíveis como nas ciências exa-
tas e naturais. Ainda, é necessário incluir os aspectos humanos, sociais, culturais, econômicas e politicas como forma de criar
condições para a manutenção das paisagens de forma sustentável.
Nos anos 1960, Bertrand propõe o estudo da paisagem através da Geografia Física Global, assim estudá-la é uma questão
de método, o autor propõe delimitar em unidades homogêneas e hierarquizadas chegando com isso à classificação. Bertrand
estabelece seis níveis de dimensão escalar, que pode ser dividido pelos elementos estruturais e climáticos, conhecidos também
como unidades superiores (zona, domínio e região) e pelos elementos biogeográficos e antrópicos (geossistema, geofaceis e
geótopo). Segundo Bertrand a paisagem é dinâmica e integrada como aponta o fragmento abaixo:

[...] É, em uma determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto


instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os
outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução. A dialética
tipo-indivíduo é próprio fundamento do método de pesquisa.

É preciso frisar bem que não se trata somente da paisagem “natural” mas da paisagem total inte-
grando todas as implicações da ação antrópica (BERTRAND, 1971, p. 1).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
370
A grande diferença de Bertrand para os estudos da paisagem foi estabelecer uma escala para suas unidades de paisa-
gem, criando uma hierarquia. Sobre o geossistema sua análise é parecida com a de Sotchava, porém Bertrand utiliza a escala de
quilômetros quadrados até centenas de quilômetros quadrados, é a unidade elementar para a pesquisa geográfica, pois é nessa
escala onde os fenômenos naturais e antrópicos são observados, como afirma:

O geosistema situa-se entre a 4ª e a 5ª grandeza temporo espacial. Trata-se, portanto, de uma


unidade dimensional compreendida entre alguns quilômetros quadrados e algumas centenas de
quilômetros quadrados. É nesta escala que se situa a maior parte dos fenômenos de interferência
entre os elementos da paisagem e que evoluem as combinações dialéticas mais interessantes
para o geógrafo. Nos níveis superiores a ele só o relevo e o clima importam e, acessoriamente, as
grandes massas vegetais. Nos níveis inferiores, os elementos biogeográficos são capazes de mas-
carar as combinações de conjunto. Enfim, o geosistema constitui uma boa base para os estudos
de organização do espaço porque ele é compatível com a escala humana (BERTRAND, 1971, p. 5).

O geossitema deve ter uma homogeneidade em sua fisionomia, forte unidade ecológica e biológica, com a mesma
evolução. A evolução e dinâmica do geossistema é o resultado do “potencial ecológico”, a “exploração biológica”, e a “ação
antrópica”. O clímax do geossistema estaria no equilíbrio entre a exploração biológica e o potencial ecológico, sendo que a ação
antrópica poderia romper com esse equilíbrio, daí a necessidade de estudos integrados a paisagem assim como sua relevância
para os estudos ambientais (FERREIRA, 2008).
Tricart ainda propõe a divisão da paisagem através da classificação em três tipos de meio morfodinâmicos, como os meio
estáveis, intergrades ou de transição e os meios fortemente instáveis, essa divisão analisa a questão dos processos morfogêneses e
pedogênese, tal metodologia de análise se baseia também nos fluxos de matéria e energia, denominada de ecodinâmica Tricart (1977).
No âmbito cultural, a paisagem tem como conotação a representação social, sendo um conjunto de objetos de valores,
que é construído historicamente, cuja apreensão e representação estão condicionadas a percepção humana, logo varia de acordo
com o espaço e o tempo. Uma única paisagem pode ser percebida e representada de formas diferentes. Cada observador atri-
buirá à paisagem um conteúdo simbólico, resignificando aquela paisagem. Isso ocorre nos discursos hegemônicos para a valo-
rização estética da natureza aliada a necessidade de preservar e conservar determinados ambientes ou fragmentos da natureza.
Nessa concepção, a paisagem não existe como um dado da natureza, como um dado em sí, a paisagem só tem sentido
em relação com a sociedade, já que é ela que tem a capacidade de transformar o ambiente em que vive. Transformando a na-
tureza em objetos culturais, influenciados pelo imaginário social. As representações da paisagem são construídas a partir dos
objetos criados pelo homem, e partir das relações emotivas criadas à paisagem torna-se lugar.
A paisagem é uma construção social, não se esgotando. A sociedade, ao produzir seu espaço geográfico cria suas
paisagens e consequentemente atribui ali um conjunto de símbolos. A paisagem para existir, não necessita exclusivamente da
paisagem natural, já que é uma construção tanto material como simbólica pela sociedade.
A geografia contemporânea busca compreender as ações dos seres humanos na terra, pois o ato de viver, morar na terra
e dela produzir, inscrever ali uma marca é produção do espaço, logo as ações dos homens sobre a terra são ações culturais,
assim o homem cria as diversas paisagens (CLAVAL, 2001). Porém, não só o fato de construir paisagens, o homem também as
vivenciam, as experimentam, e dali tiram determinadas conclusões.
Todas as referências que nós, seres humanos, usamos para nos situarmos e orientarmos na paisagem. Tais referências
físicas, culturais ou psíquicas são usadas para melhor perceberemos e para sentirmos a paisagem como algo conhecido, afetivo,
gostoso e principalmente familiar. Nós necessitamos assimilar pontos de referência, tantos os geográficos (montanhas, lagos,
riachos, árvores) e os simbólicos (prédios, praças, pontes, barragens, rodovias) (CLAVAL, 2014).
Não podemos separar todas as nossas experiências das paisagens. O estudo da interação entre o homem, sociedade e
a natureza resultando a paisagem se destaca em abordar os diversos aspectos dessa interação (DARDEL, 2015).
A percepção é usada para entender a relação de pertencimento e entendimento que as pessoas têm com seu lugar de
origem, ou com a paisagem construída. A paisagem além de algo material, visível, ganha também uma conotação invisível, imate-
rial, simbólica, onde emana toda a carga de sentimentos. Essa relação entre o que matéria e imaterial, na paisagem, a geogra-
fiada percepção busca compreender.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


371
A cultura, agora, é vista além dos aspectos materiais, tendo por base a percepção ou na subjetividade, sendo um grande
avanço nas pesquisas dentro da ciência geográfica, pois, depois disso, a cultura passou a ter um caráter individual, sendo todos
os indivíduos portadores de cultura. Dentro desse contexto, tanto os indivíduos como os grupos internalizam a cultura de forma
diferenciada. (MELO, 2005, p.9149)
Esses conceitos sobre mostram o lado integrador e polissêmico da paisagem. Porém, são importantes para o entendi-
mento da importância para os estudos ambientais como culturais, pois adiciona a dimensão social e cultural. As ações antrópicas
causam impactos nas paisagens, e pensar de forma integrada com as comunidades tradicionais é relevante para desmistificar
que o homem é apenas um agente predador de recursos naturais.

Paisagem e comunidades tradicionais: elementos para pensar em estudos


ambientais integrados
Neste ensaio usaremos comunidades tradicionais, a partir dos estudos desenvolvidos por pesquisadores do Museu
Paraense Emilio Goeld. Tais estudos foram desenvolvidos em comunidades litorâneas, cuja principal atividade de subsistência e
econômica é a pesca, captura do caranguejo e outros mariscos e crustáceos. Furtado (2000) coloca que as comunidades tradi-
cionais podem se apropriar fisicamente e simbolicamente dos ecossistemas circundantes ao seu habitat, destacam-se os mitos
e as crenças, contribuindo, assim, para o manejo.

Tal utilização se faz na medida em que eles têm um conhecimento, uma prática, uma sensibilidade
sobre tal ecossistema e que o mesmo produz bens dos quais pode-se utilizar, consumir ou dar o
destino que bem entender, segundo suas necessidades materiais e sociais; que tal ecossistema
deve ser manejado segundo normas de modo a lhe permitir sua reprodução social e saber que tal
ecossistema envolve formas de apropriação física e simbólica que lhe permite sobreviver e fazer
sobreviver os recursos nele contidos devido, as crenças, os mitos que o povoam. Enfim, saber
manejá-lo segundo seus valores e métodos tradicionais (FURTADO, 2000, p. 75).

As populações tradicionais têm em suas atividades econômicas uma forte relação com o ecossistema envolvente, mos-
trando também uma forte relação de dependência com a natureza e os recursos naturais disponíveis. Para Diegues (1996) a
relação entre as populações tradicionais com a natureza é uma relação de simbiose e conhecimento da dinâmica natural, onde
há um profundo respeito com os processos naturais, não existindo apenas uma relação de predação e destruição, mas sim uma
relação cujo princípio é da conservação. Suas atividades são basicamente para a subsistência e o excedente é comercializado,
porém há um pequeno acumulo de capital por parte dos integrantes das comunidades e suas técnicas são simples sem alterar
profundamente o ambiente e seus processos.

As noções de território e de espaço, construídas por eles, traduzem-se no apego ao local em que
habitam. A ocupação de seus territórios se estende por várias gerações, muito embora possa ocor-
rer que alguns membros individuais desloquem-se para centros urbanos e, posteriormente, voltem
para o território de seus ancestrais. As relações dessas populações com o mercado externo ao
seu meio, embora existentes, são reduzidas, pois suas atividades econômicas visam, basicamente
à produção de formas de subsistência. Em função disso, os participantes dessas comunidades
tendem a apresentar, quando o fazem, processos limitados de acumulação de capital (PAIOLA;
TOMARIK, 2002, 176).

Para a professora Lourdes Furtado (1999):

Entende-se por comunidade um grupo de vizinhança ou povoado, um lugar, uma pequena vila, um
sítio, uma pequena cidade, onde os moradores guardam um certo grau de coesão entre sí, fun-
dado em um relacionamento face a face ou personalizado, no qual está presente o sentimento de
comunidade, de pertencer ao grupo e a um território, enfim um identidade entre sí. Esse conceito,
portanto, embora sentimento de pertencer a um determinado território, onde as relações sociais,
e os diferentes usos dos recursos ambientais ou dos ecossistemas envolventes, marcam seus lim-
ites, isto é, suas fronteiras com outras comunidades civis congêneres (FURTADO, 1999, p. 22).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
372
Para Cañete (2015) deve haver a identificação como comunidade tradicional e esse é termo construído socialmente. Em-
bora tenha várias características, não é necessário apresentar todas, porém, essas comunidades tem um modo de vida específico
em relação com a natureza. O autor ainda coloca que é interessante lutarem por seus direitos. Assim, comunidade tradicional é
também um termo político.

Populações tradicionais seriam aqueles que apresentam um modo de vida específico, marcado
pela intensa simbiose e relativa harmonia com o meio ambiente em que vivem, desenvolvendo
técnicas de baixo impacto ambiental, fraca articulação com o mercado interno, conhecimento da
biodiversidade que as cerca e modo de produção baseada na mão de obra familiar. Vale ainda
ressaltar que este é um termo socialmente construído, e atualmente caracteriza-se como politica-
identitária (CAÑETE, 2015, p. 90).

Nas atividades cotidianas, ganham também importância os mitos, os rituais e as simbologias. A memória é sempre evo-
cada e sempre reelaborada com o presente, adaptando assim o discurso às necessidades do presente. A memoria individual é
um ponto de vista sobre a memoria coletiva. Furtado (1994), compara as comunidades ribeirinhas e as litorâneas, mostrando que
as primeiras têm mais mitos que as ultimas.
Para Claval (2014) a cultura de um determinado povo pode ser perdida à medida que esse povo só usa a oralidade e não
utiliza a escrita para registrar seus costumes, normas, códigos e etc. Porém, isso não acontece com as populações tradicionais,
onde as mesmas utilizam a oralidade para expressar e ensinar os conhecimentos adquiridos de seus ancestrais. Mas como a
cultura não é algo acabado e sim dinâmico há uma forte pressão e influencias externas, mudando a visão de mundo dessas
comunidades gradativamente.
A divisão técnica e social do trabalho também é reduzida, destacando-se as práticas artesanais, nas quais o produtor e
sua família dominam todo o processo de trabalho. Em sua luta pela subsistência, essas populações tendem a combinar várias
atividades econômicas, como a criação de animais para consumo próprio, os pequenos cultivos e a pesca. Nas comunidades
litorâneas, é o mar e a terra que comandam o modo de vida dessas populações, onde a economia é orientada por tais ambientes,
integrada ao mercado pelas redes intermediação (FURTADO, 1999).
O tempo das comunidades tradicionais é diferenciado, Nascimento (1995), em seu estudo em comunidade do litoral
paraense, mostra as diferentes temporalidades que coexistem com o tempo da natureza que tradicionalmente tais comunidades
vivem, o tempo do passado, em que as pessoas se recordam com saudade, onde a fartura é o elemento mais evocado nas falas
e com a natureza regendo as atividades de produção. O tempo do trabalho é o tempo dos curralistas, são os usam os currais
de pesca, uma armadilha para a captura do pescado, e dos pescadores irem atrás do pescado, obedecendo a sazonalidade do
clima amazônico, pois, o mesmo influencia na salinidade da água e nas espécies a serem capturadas. O tempo da tomada de
decisão é o tempo que os pescadores decidem o que pescar e onde pescar, nesse tempo, tanto o natural, como o do relógio,
o tempo capitalista, estão sobrepostos, porém, a autora afirma que o tempo do relógio está gradativamente se sobrepondo ao
tempo natural. O tempo do veranista é aquele que o tempo do relógio se realiza plenamente, as praias são procuradas nas férias,
são vistas como um lugar intocado, passível de ser apropriado, o encontro dos veranistas com as comunidades causa uma mu-
dança nos modos vidas, pois os veranistas trazem a modernidade dos centros urbanos, transmitindo assim os valores e costumes
urbanocêntricos. Todos esses tempos ocorrem simultaneamente. Não existindo uma separação estreita entre si.
As mulheres tem papel fundamental na pesca. Enquanto as atividades masculinas são apenas para uma atividade, um
tempo unicentrado, a pesca, já as atividades femininas é divido em várias tarefas desde as domesticas como as da pesca (NAS-
CIMENTO, 1995) embora a mulher não vá pescar, não embarque junto com os homens, suas atividades na terra dão suporte
aos homens que estão no mar. Atividades que complementam a renda da família e ajudam os homens quando estes tem que
consertar algum equipamento danificado durante uma pescaria. E praticam a coleta de frutos do mar ou de pequenos peixes e
crustáceos para o consumo familiar (MANESCHY, 1995).
Estudos detalhados sobre as formas como essas comunidades se adaptam ao ambiente e dali fazem sua construção
indenitária, são úteis para o entendimento da paisagem. Assim, esses conhecimentos não estão presentes apenas nos discur-
sos, mas também nas práticas cotidianas dos participantes das comunidades tradicionais. Investigar a paisagem a partir dos
conhecimentos de grupo é investigar os conhecimentos desse grupo sobre seu ambiente. E uma proposta é usar a percepção

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


373
ambiental e geografia cultural.

Considerações finais
Essas reflexões ainda estão em processo de maturação, são frutos de pesquisas ainda em andamento sobre percepção
da paisagem por moradores de comunidades tradicionais em Quatipuru, um risco a ser corrido em trazer essa perspectiva no
âmbito da Ciência que a cada vez está mais fragmentada. A interdisciplinaridade é cada vez mais evocada em pesquisas ambi-
entais, pois não é suficiente tratar apenas dos assuntos ligados a ciências exatas e naturais e não incluir as ciências sociais, pois
os problemas ambientais afetam a sociedade, já a sociedade é integrante da natureza, não é algo fora, dicotômica como muitos
pensam.
Ao analisar a paisagem, devemos levar em conta à integração que remete em todas as suas concepções, levando em
consideração os componentes abióticos: clima, relevo, humidade; bióticos: solo, vegetação, fauna e os sócio-culturais: urbani-
zação, ocupação, atividades antrópicas, etc. E quando se pensa em comunidades tradicionais, vários autores, Diegues (1996),
Furtado (1999; 2000), Nascimento (1995) e entre outros, concordam que uma característica principal é a dependência dos ecos-
sistemas circundantes, onde há uma relação não de predação, mas uma relação simbólica, de respeito, e porque não falar de
cumplicidade?
As comunidades tradicionais, pesquisadas no nordeste do Pará, com a suas técnicas de obtenção dos recursos naturais
para a sua própria subsistência e na produção dos seus espaços de morada e de sociabilidade produzem seus espaços, criando
paisagens, onde as ações dos homens estão inscritas em cada artefato, em cada criação, manifestando as vontades, os valores
e os conhecimentos adquiridos desde gerações pretéritas e que são materializadas nas paisagens construídas. Criando uma
identidade própria. Existe a paisagem material, a paisagem física, a construída, onde se vive, mas há também a paisagem que
cada um cria em sua mente, onde os limites cartográficos não são os mesmo limites dentro da vivencia de cada um e esse é o
proposito da pesquisa em andamento, tentar entender essa paisagem.

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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


375
A DIMENSÃO CULTURAL NO TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA:
REFLEXÕES SOBRE DILEMAS E POTENCIALIDADES

Prado, Mariana Oliveira do1; Irving, Marta de Azevedo2; Oliveira, Maria Elizabeth de3 & Lima, Marcelo Augusto Gurgel de4

1. Mestranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Programa Eicos) Universidade Federal do Rio de Janeiro,
marianaprado89@gmail.com 2. PPG Eicos em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social e do PPG em Políticas Públicas,
Estratégias e Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio de Janeiro e INCT/ PPED/CNPq, marta.irving@mls.com.br 3. Doutoranda do PPG
em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio de Janeiro, elizabetholiverbr@yahoo.com.br 4. Doutorando
do PPG Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, maglturismo@gmail.com

Resumo
Em uma perspectiva de longo prazo, fortalecer a interface do turismo com a dimensão cultural, visando potencializar avanços
dessa atividade em bases mais sustentáveis, representa um desafio estratégico para as políticas públicas setoriais. Conside-
rando tais premissas, iniciativas de Turismo de Base Comunitária (TBC) sinalizam com um dos caminhos possíveis para salva-
guardar a cultura e proteger o patrimônio natural local. Partindo desse viés, este artigo buscou refletir sobre o tema proposto
por meio de pesquisa bibliográfica e documental, além de análise de publicações nos principais eventos científicos nacionais.
Os resultados indicam que as iniciativas de TBC que consideram realmente a dimensão cultural são ainda incipientes, perman-
ecendo, prioritariamente, no plano do discurso, embora já se perceba o potencial dessas ações.

Palavras-chave: Cultura, Turismo, Turismo de Base Comunitária, Políticas Públicas.

Contextualização de um tema complexo


O turismo é considerado um dos mais importantes setores econômicos em todo o mundo e o que mais vem sofrendo mu-
danças nos últimos anos. Na perspectiva contemporânea, as atividades turísticas vêm se desenvolvendo em sintonia com trans-
formações culturais, sociais, econômicas e ambientais que, por sua vez, influenciam motivações e expectativas tanto de viajantes
como de anfitriões. Analisar esse fenômeno, pelo olhar das Ciências Humanas e Sociais, permite refletir sobre potencialidades e
desafios associados a esse viés ainda pouco aprofundado, apesar da sua relevância.
Diante do incontestável crescimento turístico, globalmente, alguns autores questionam se o processo de internacionaliza-
ção da economia mundial, ao potencializar a expansão dessa atividade, também, provocaria consequências indesejáveis para as
populações receptoras de viajantes (BENI, 2010; PANOSSO NETTO, 2005; TOMAZZONI, 2009). As reflexões têm como pano de
fundo, o debate frequente acerca do turismo como fonte de desenvolvimento socioeconômico, embora aspectos sociais sejam
pouco aprofundados diante das abordagens, de caráter prioritariamente econômico.
Nessa perspectiva, o turismo pode ser percebido como um fenômeno social de origem relativamente recente e que, antes
de ser considerado uma atividade econômica, envolve pessoas “que se deslocam no tempo e no espaço em busca de prazer e
diversão que atendam não apenas as suas necessidades físicas imediatas, mas também os seus imaginários” o que vem a se
constituir uma experiência social (GASTAL, 2002, p. 08).
Sendo assim, essa temática só deveria ser interpretada a partir da complexidade que a envolve, o que leva a crer que
as dimensões exigidas para a sua análise transcendem aspectos políticos, econômicos e culturais, uma vez que o fenômeno
turístico também está associado à experiência vivida por cada indivíduo.
No campo das Ciências Humanas e Sociais, o debate sobre turismo é ainda incipiente. Diante dessa realidade, novas
abordagens acadêmicas que permitam um aprofundamento do conhecimento a seu respeito são consideradas essenciais. Muito
embora esse debate seja ainda recente e sujeito a inúmeras controvérsias, no caso brasileiro, nos últimos anos, diversos estudo vem
sendo desenvolvidos no sentido de mapear e avaliar as experiências em curso. Da mesma forma, algumas iniciativas de políticas
públicas parecem indicar ser esta uma possível alternativa não apenas para a inclusão das populações locais nos processos regio-
nais de desenvolvimento mas também em apoio às estratégias de conservação da biodiversidade associadas às áreas protegidas.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


377
Com base nessa reflexão, este artigo tem como objetivo discutir a importância da dimensão cultural em iniciativas de
Turismo de Base Comunitária (TBC) no Brasil, tendo como prerrogativa que o turismo se caracteriza, também, pelo intercâmbio
de culturas, processo potencializado por interações contínuas entre turistas e populações locais. Esse recorte é considerado fun-
damental quando se verifica que a interface entre cultura e turismo tem sido praticamente desconsiderada em políticas públicas
ou vem sendo analisada de forma periférica em projetos turísticos desenvolvidos no país.
Vale ressaltar que, conceitualmente, os projetos de Turismo de Base Comunitária partem de pressupostos como a valo-
rização local, o compromisso de salvaguardar o patrimônio cultural e natural, e, também, vinculam-se à noção de bem-estar das
populações locais. Além disto, é importante ressaltar que muitos dos projetos de TBC estão inseridos em áreas protegidas. E
muitas dessas áreas tipificam claramente as tensões entre as demandas de conservação da biodiversidade e as pressões de
desenvolvimento socioeconômico nas localidades onde os projetos estão inseridos.
Partindo dos pressupostos que norteiam esta pesquisa, a metodologia adotada envolveu a identificação de interação
entre as interfaces cultura e turismo no atual Plano Nacional de Turismo 2013-2016: O Turismo fazendo muito mais pelo Brasil.
O percurso metodológico contou, também, com pesquisa bibliográfica e documental relacionada aos temas cultura, turismo e
turismo de base comunitária. Foram consultados, além de referências bibliográficas disponíveis sobre essa temática, os docu-
mentos oficiais norteadores de políticas públicas de cultura e turismo no Brasil.
Para a investigação proposta, primeiramente, foram realizados levantamento e análise da produção acadêmica e docu-
mental sobre cultura e turismo no Brasil. Para tal, foi consultado o Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pesso-
al de Nivel Superior (Capes), órgão vinculado ao Ministério da Educação (MEC). Também foram considerados como importante
fonte de pesquisa os anais dos seguintes eventos brasileiros de referência sobre as temáticas cultura e turismo, entre os anos
de 2002 e 2013: Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social (SAPIS), Encontro Interdisciplinar de Ecoturismo
em Unidades de Conservação (ECOUC), Congresso Nacional de Ecoturismo (CONECOTUR), Encontro Nacional de Turismo
de Base Local (ENTBL), Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT), Encontro Nacional da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (ANPPAS) e Seminário Internacional de Políticas Culturais1.

Turismo na contemporaneidade
Os efeitos da atividade turística na cultura local exigem novas abordagens e reflexões acadêmicas. Nessa perspectiva,
um dos questionamentos lançados por esta pesquisa se refere a como o turismo pode ser desenvolvido resguardando, ao mesmo
tempo, a valorização cultural? Por outro lado, indaga de que forma as economias locais podem prosperar, em um sistema global-
izado, mantendo as suas características socioculturais, além da qualidade ambiental?
Como parte das reflexões propostas, vale ressaltar que, do ponto de vista econômico o turismo vem se consolidando
como atividade estratégica para vários países, em consequência do seu potencial gerador de renda e do elevado volume de
recursos financeiros que esse segmento de mercado movimenta, em cenários de aumento crescente de fluxo de viajantes. De
acordo com a Tourism Highlights, 2014 Edition, do OMT, a quantidade de chegadas de turistas cresceu 5%, mundialmente,
apenas nos primeiros quatro meses de 2012, consolidando uma tendência de expansão que começou em 2010. Já em 2012, foi
atingida a marca de um bilhão de chegadas internacionais2.
A expansão contínua e diversificada do turismo como atividade econômica se deu ao longo das últimas seis décadas. In-
dependentemente de alguns recuos, mundialmente, a chegada de turistas internacionais vem se fortalecendo como uma tendên-
cia de crescimento quase ininterrupto nos últimos anos. Vale ressaltar que, em 1980, o fluxo total era de 277 milhões de turistas,
volume que quase dobrou, passando para 528 milhões, em 1995; e para 983 milhões, em 2011.
De acordo com prognóstico da Organização Mundial do Turismo (OMT), a quantidade de chegadas internacionais
poderá crescer 3,3% ao ano, em média, nos próximos anos, alcançando 1,8 bilhão, em 2030 (UNWTO, 2014). Ainda segundo a

1
A análise destas bases foi realizada considerando as edições dos eventos com anais acessíveis em ambiente web. Desta maneira, as edições pesquisadas foram
as seguintes: ENTBL: 2010 e 2012; SAPIS: 2005, 2006, 2007, 2009, 2011 e 2013; ECOUC: 2005, 2007, 2009, 2011 e 2013; CONECOTUR: 2007, 2009, 2011 e 2013;
ENECULT: 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013; ANPPAS: 2002, 2004, 2006,2008, 2010 e 2012; SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS
PÚBLICAS: 2010, 2011, 2012 e 2013.
2
Segundo a Organização Mundial do Turismo (OMT) estima-se que em 13 de dezembro de 2012 o mundo atingiu, pela primeira vez, a marca de 1 bilhão de chegadas
internacionais de turistas. Para comemorar este número, a OMT criou uma campanha intitulada “Um bilhão de turistas: um bilhão de oportunidades”. A campanha
visa impulsionar o potencial que o turismo oferece para o desenvolvimento sustentável. A ideia é a de que cada turista, com pequenas mudanças de conduta, pode
fazer a diferença (BRASIL, 2009).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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mesma fonte, o fluxo de turistas estrangeiros em países de economias emergentes deve dobrar (+4,4% ao ano) em relação aos
destinos com economia avançada (2,2% ao ano).
Ainda que as estatísticas mencionadas ilustrem um elevado crescimento do setor não há perspectivas de que a distri-
buição da receita global do turismo passe por mudanças no futuro próximo3. Diante desse cenário, parece evidente que a ativi-
dade turística, ao mesmo tempo em que é reconhecida como prioridade global do ponto de vista econômico, deve também ser
planejada de forma a considerar as complexidades locais para que o processo seja mais inclusivo.
Assim, ainda que represente um fenômeno global, não se pode deixar de reconhecer que o turismo, se manifesta no
próprio local e, explicitamente, envolve a construção do lugar. Dessa forma, o desenvolvimento dessa atividade não somente
transforma o lugar, como pode gerar oportunidades e benefícios econômicos para as populações locais, desde que planejado
segundo valores éticos.

Turismo de Base Comunitária, características e novos enquadramentos


Com intuito de orientar a discussão do presente artigo é importante ressaltar algumas definições sobre Turismo de Base
Comunitária (TBC) reconhecidas na literatura especializada. Com base no enfoque do Ministério do Turismo (Mtur), o TBC foi
descrito, inicialmente, como uma proposta que parte da noção de solidariedade, de cultura e do protagonismo das populações
locais, conforme mencionado a seguir:

o turismo de base comunitária é compreendido como um modelo de desenvolvimento turístico,


orientado pelos princípios da economia solidária, associativismo, valorização da cultura local, e,
principalmente, protagonizada pelas comunidades locais, visando à apropriação por parte dessas
dos benefícios advindos da atividade turística (BRASIL, s/n, 2008).

Segundo Irving e Mendonça (2009, p. 108), em sua fase inicial, o TBC no Brasil “trazia em sua expressão um sentido mar-
ginal, periférico e até mesmo romântico, diante das perspectivas de um mercado globalizado e ávido por estatísticas e receitas”.
Mas, com a ampliação do debate e o surgimento de novas iniciativas desse modelo, foram sendo delineados alguns balizamentos
para aprimorar o seu enquadramento conceitual. Assim, em 2008, foi lançado um edital do Ministério do Turismo com o objetivo
de apoiar às iniciativas nas quais as populações locais fossem protagonistas no processo de planejamento e gestão do turismo.
Embora não se tenha uma definição amplamente aceita sobre o que é considerado como TBC no Brasil, algumas per-
spectivas teóricas orientam o debate sobre o tema e envolvem dimensões culturais, psicológicas, sociológicas e antropológicas,
bem como políticas, econômicas, históricas e ambientais. Pela perspectiva de Bursztyn (2005), as iniciativas de TBC se efetivam
de acordo com a realidade local. Para esse autor, isso se justifica em função da diversidade presente nas experiências locais e
culturais. Entretanto, alguns consensos incidem sobre o papel e a importância do protagonismo das populações locais na con-
cepção, no desenvolvimento e na gestão de projetos turísticos. Conforme define Bartholo (2011) a seguir:

a extensão geográfica e a diversidade de experiências encontradas no país também colaboram


para a amplitude conceitual do TBC uma vez que este é usado para tratar de contextos tão diversos
e diferentes quanto comunidades urbanas e rurais, podendo estar referido às populações tradicio-
nais ou a amálgamas sociais compostas pelos movimentos migratórios e processos de exclusão
socioeconômicos, entre outros (BARTHOLO, 2011, p. 07).

Para o Ministério do Turismo, as inúmeras vertentes conceituais sobre o TBC são resultantes, dentre outras razões, do
alto grau de heterogeneidade das experiências envolvidas, assim como também da perspectiva política e/ou ideológica da insti-
tuição não governamental responsável por organizar e viabilizar a experiência. Assim, “o desenho da política pública para TBC
foi norteado por alguns conceitos defendidos por instituições reconhecidas como pioneiras na organização da atividade turística
de base comunitária” (BRASIL, 2010).
Contudo, o Mtur ressalta, como fundamentos comuns às iniciativas de TBC, a valorização da cultura local; a autogestão;
o cooperativismo e o associativismo; a democratização dos benefícios e das oportunidades; a centralidade de colaboração, o
sentido de participação e parceria; e, principalmente, o protagonismo das populações locais na gestão da atividade e/ou na

3
(UNWTO, 2014).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


379
oferta de bens e serviços turísticos, “objetivando a apropriação por parte destas dos benefícios advindos do desenvolvimento da
atividade turística” (BRASIL, 2010).
Assim, segundo essa perspectiva, o TBC pode ser caracterizado como:

Aquele tipo de turismo que, em tese, favorece a coesão e o laço social e o sentido coletivo de vida
em sociedade, e que, por esta via, promove a qualidade de vida, o sentido de inclusão, a valoriza-
ção da cultura local e o sentimento de pertencimento. Este tipo de turismo representa, portanto, a
interpretação “local” do turismo, frente às projeções de demandas e de cenários do grupo social
do destino, tendo como pano de fundo a dinâmica do mundo globalizado, mas não as imposições
da globalização (IRVING, 2009, p.112).

Esses pressupostos de proteção dos recursos naturais e culturais em associação ao Turismo de Base Comunitária, con-
forme defendido por Irving (2002), podem também ser analisados segundo a perspectiva de muitas iniciativas de TBC, principal-
mente, no Brasil, sob forte pressão do desenvolvimento turístico, muitos dos quais sob riscos de exclusão social e marginalização.
Nesse caso, o Turismo de Base Comunitária é entendido como uma alternativa econômica complementar aos grupos
tradicionais, capaz de compatibilizar o compromisso de conservação da biodiversidade costeira, com as práticas tradicionais e
a valorização da cultura local.

Base Comunitária, dilemas e potencialidades


Diante das questões discutidas até aqui, percebe-se que o turismo se expressa como potencialidade para a consolida-
ção de desenvolvimento socioeconômico e cultural dos projetos de TBC no Brasil e no mundo. Para tal, é importante planejar e
executar ações que, possibilitem o fortalecimento de cada localidade, segundo as particularidades das suas dinâmicas sociais
e econômicas.
Nesse contexto, vale ressaltar outro aspecto primordial. Para que o turismo se desenvolva em bases mais sustentáveis é
fundamental que haja a valorização do papel dos profissionais especializados e que os principais atores sociais sejam ativamente
envolvidos em todas as fases do processo de planejamento turístico da localidade. A partir desse movimento, as oportunidades
para a conservação dos recursos naturais e para a valorização cultural tenderão a se fortalecer (LIMA, 2014).
Na perspectiva de se delinear ações para o setor que possam conciliar a conservação do patrimônio natural e cultural
com o desenvolvimento do turismo, muitas experiências vêm ocorrendo no mundo e, principalmente, no Brasil, dentre as quais,
iniciativas do denominado Turismo de Base Comunitária ou TBC. Essas experiências estão sendo implementadas, de maneira
mais evidente, em países em desenvolvimento da América Latina.
Entretanto, em muitos casos, os projetos não vêm atingindo a viabilidade financeira desejada, assim como, a valoriza-
ção da cultura local e a conservação dos recursos naturais, entre outros objetivos esperados pelos atores sociais envolvidos na
grande maioria das iniciativas de TBC. Como parte dos fatores, que tendem a impedir o êxito dessas iniciativas é possível desta-
car o limitado impacto sobre a redução da pobreza, em comparação com os efeitos do turismo convencional ou outras atividades
econômicas (MITCHELL e MUCKOSY, 2008); a desmobilização das ações propostas após o financiamento externo de doadores
(SEBELE, 2010); além da cooptação e da monopolização dos benefícios por elites e, até mesmo, a exclusão dos atores locais
nesse processo. Tais problemas podem, ainda, ser agravados pela localização de alguns projetos, muitas vezes, fora das rotas
convencionais de turismo ou em áreas remotas, em condições de infraestrutura precária.
Para que se fortaleçam as bases de sustentabilidade das atividades turísticas, Irving, (2009) sugere que a prática do Tu-
rismo de Base Comunitária seja desenvolvida segundo os seguintes critérios:

a conservação dos recursos naturais e culturais, o compromisso de desenvolvimento socio-


econômico das comunidades receptoras e a participação dos atores sociais em todas as etapas
do processo de planejamento e implementação de projetos, com a geração de benefícios para a
população local e sua autonomia no processo de decisão (IRVING, 2009, p. 110).

O debate sobre a proteção dos recursos naturais e culturais em associação ao turismo, conforme defendido por Irving
(2009), no âmbito internacional surgiu na década de 1970, como uma resposta aos impactos negativos do modelo de desenvolvi-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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mento do turismo de massa (HALL; LEW, 2009).
Mas, para que seja possível avançar neste debate, é importante resgatar, brevemente, uma discussão sobre os impactos
indesejáveis resultantes do desenvolvimento do turismo, principalmente, quando associado às dimensões ambiental e cultural
das populações receptoras.
Em resposta a alguns desses efeitos, durante a década de 1980, a noção de turismo sustentável passou a ser entendida
como o “turismo que leva à gestão de todos os recursos, de forma que as necessidades econômicas e sociais possam ser satis-
feitas mantendo a integridade cultural, os processos ecológicos essenciais, a diversidade biológica e sistemas de suporte de
vida,” assim como foi definida pela WORLD TOURISM ORGANIZATION (OMT) (1999). Da mesma maneira, o compromisso de
redução da pobreza e as preocupações ambientais marcaram a década de 1980, e estiveram no centro do debate sobre o desen-
volvimento do turismo, com ênfase ao direito das populações locais no planejamento do setor, desde então.
Embora as iniciativas de TBC tenham sido consequência desse movimento das décadas mais recentes, as propostas
com esse objetivo estiveram relacionadas, inicialmente, às pequenas localidades rurais e aos compromissos de conservação da
natureza, por meio de iniciativas de ecoturismo4. No entanto, tal noção foi sendo, gradativamente, ampliada de forma a abordar,
também, a cultura local, a partir de aspectos como a gastronomia, o folclore, o artesanato, entre outros elementos inspiradores.

Cultura e turismo, potenciais interfaces e desdobramentos


Para continuar o debate proposto, buscamos refletir em um aspecto fundamental relacionado à temática discutida: se
toda viagem é, em si, um ato cultural, a relação entre turismo e cultura tende a ser óbvia no plano da reflexão acadêmica. Há
viagens cuja motivação fundamental é a apreciação ou vivência dos aspectos culturais mais expressivos do local e, nesse caso,
a cultura é a razão do deslocamento.
Contudo não se podedeixar de observar, na contemporaneidade, a tendência à homogeneização dos lugares turísticos,
resultado do fenômeno da globalização que faz surgir, nas sociedades pós-modernas, o fascínio tanto pela diferença quanto pela
folclorização da cultura local.
Por outro lado, as relações sociais entre os turistas - os forasteiros5 - e os autóctones tendem a desencadear contradições,
além de gerar curiosidades e tensões que podem culminar tanto em um movimento rumo à aculturação como ao fortaleci-
mento da identidade local (GALLERO, 2004). Diante dessa realidade, a busca por destinos reconhecidos como “exóticos” pode,
também, potencializar a disseminação da comercialização da etnia, da venda do espaço e da cultura do “outro” para o “eu”,
conforme explica Hall (2000). Nesse caso, a diversidade do lugar visitado torna-se determinante para a sua atratividade e, prin-
cipalmente, pelo valor de mercado que este pode adquirir.
Tais refexões têm inspirado os debates sobre o fenômeno turístico, em suas interfaces com o tema da herança cultural,
foco de estudos da Antropologia do Turismo, que enfatiza os processos de construção ou de desconstrução da identidade cultur-
al, tanto daqueles que recebem, isto é, os moradores locais, como dos turistas. Para alguns desses viajantes, uma das principais
motivações à viagem é a procura do “outro” na sua diversidade cultural na sua autenticidade, em contraponto com a sociedade
moderna em que vivem (MACCANNELL, 1989).
Pela ótica de Sachs (1993), em algumas localidades, a realização de viagens turísticas possibilita o atendimento às neces-
sidades dos turistas pela busca por lugares e vivências, em contradição ao seu cotidiano, o que pode contribuir não só para o
desenvolvimento endógeno como também para práticas sustentáveis. Tais práticas irão depender de ações protagonizadas pelos
diferentes agentes intervenientes no processo turístico. Assim, em localidades onde a população vem redescobrindo as suas
potencialidades para a prática do turismo, a atratividade turística pode também ser impulsionada como resultado do processo.
No Brasil, a expansão da prática do turismo vem revelando inúmeras peculiaridades sociais e culturais dos destinos
turísticos do país. Isso sugere ações de planejamento integrado que estimulem o desenvolvimento turístico segundo os princípios
da sustentabilidade social, econômica, ecológica, espacial e cultural (SACHS, op. cit.)
No entanto, o processo de planejamento turístico, na maioria das vezes, contempla apenas a dimensão econômica,

4
De acordo com o documento “Diretrizes para uma Política Nacional de Ecoturismo”, a definição de ecoturismo é “um segmento da atividade turística que utiliza,
de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do
ambiente, promovendo o bem-estar das populações” (BRASIL, 1991, p.3).
5
Forma como novos moradores e/ou empresários, originários de outros estados brasileiros e de outros países, são conhecidos por algumas populações locais e/ou
tradicionais.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


381
desconsiderando os componentes sociais, culturais, ecológicos, tecnológicos, envolvendo elementos preponderantes para o
êxito e a manutenção da atividade, o que vem proporcionado o fracasso de muitos projetos turísticos.
Alguns desses problemas se relacionam à ausência de planejamento e de gerenciamento de riscos na esfera sociocul-
tural, o que envolve os fatores comportamentais dos turistas e da população receptora, bem como as inter-relações do turismo
com as variadas tradições e culturas das localidades visitadas. Como consequência, em alguns destinos, é possível observar
o aumento da violência, do uso de drogas, da prostituição, da descaracterização arquitetônica. Além disto, percebe-se, em al-
gumas cidades turísticas onde não houve o planejamento para o setor, a falta de controle local sobre a dinâmica da atividade, a
perda da autenticidade (“autenticidade encenada”), a fossilização das culturas, a descaracterização do artesanato, a vulgarização
das manifestações culturais, entre outros exemplos de problemas ocorrentes (SWARBROOKE, 2000).
No mais, é importante realçar que, de acordo com Lickorish e Jenkins (2000), consequências como as mencionadas por
Swarbrooke (2000) não podem ser generalizadas, visto a existência de outros fatores que podem influenciar algumas dessas
alterações provocadas pela atividade turística, como, por exemplo, a dimensão territorial - do país, estado, cidade, localidade -,
as crenças religiosas e culturais.
Além disso, como observa Oliveira (2006, p. 07), o turismo “pode vir a estimular e renovar alguns aspectos das mani-
festações culturais que, de uma forma ou de outra, estão sendo transfiguradas devido às forças de desenvolvimento do mundo
globalizado”.
No âmbito do debate e das reflexões propostas por este artigo, o argumento de Oliveira (2006) tende a vir ao encontro
do discurso institucional e legitimado no atual Plano Nacional de Turismo (PNT 2013-2016). De acordo com este documento, o
Ministério do Turismo planeja fomentar e apoiar projetos e/ou ações para o desenvolvimento local e sustentável do turismo, por
meio da organização e qualificação da produção, melhoria da qualidade dos serviços, incentivo ao associativismo, cooperati-
vismo, empreendedorismo e formação de redes.
Em relação ao PNT (2013-2016) é válido ressaltar ainda o quanto o plano é considerado ambicioso em relação às estraté-
gias e aos objetivos enumerados e justificados pelo cenário promissor do setor turístico para o país nos próximos anos. Por esta
via, o setor passa a ser compreendido como parte das soluções mais estáveis e eficazes para o crescimento sustentável do país,
segundo o discurso institucional, capaz ainda de reduzir as desigualdades regionais, promover a inclusão social e gerar emprego
e renda a milhares de brasileiros.
O setor turístico é mencionado, ainda, segundo o PNT 2013-2016, como estratégico para o desenvolvimento econômico
do país quando considerado o planejamento dos megaeventos internacionais previstos, principalmente, no estado do Rio de
Janeiro. Com isto, é esperado que o Brasil desempenhe um excelente papel, enquanto “anfitrião” desses eventos, o que possi-
bilitaria a materialização do alcance de uma das suas principais metas para o setor turístico, que é transformar o país no terceiro
maior PIB turístico do mundo até 2022.
Ainda sobre o discurso oficial do Ministério do Turismo sobre a importância da valorização cultural dos destinos turísticos,
do ponto de vista do poder público, parece haver ainda um descompasso entre esse discurso e a ação. Tal realidade é clara-
mente observada na leitura das metas do PNT 2013-2016 que tratam, justamente, do fomento de novas iniciativas de Turismo de
Base Comunitária para o país6.
Além disto, com relação, especificamente, aos projetos de TBC, apesar das intenções do discurso institucional, o atual
modelo burocrático de administração pública ainda é “engessado” quanto às ações previstas, o que limita a implantação de
políticas públicas e de redes adequadas às iniciativas de Turismo de Base Comunitária no Brasil. Isto porque, as instituições
públicas responsáveis pelo monitoramento e avaliação das iniciativas de Turismo de Base Comunitária partem de uma leitura
formatada de projetos, muitas vezes, desconsiderando as especificidades locais e a dificuldade de cumprimento dos prazos
estabelecidos, segundo os cronogramas oficiais.
Nesse sentido, torna- se imprescindível a busca de alternativas de gestão pública menos burocráticas que atendam efe-
tivamente às demandas dos atores locais, considerando os diversos contratempos existentes na dinâmica social das localidades

6
Fomentar o turismo de base comunitária: Fomento e apoio a projetos ou ações para o desenvolvimento local e sustentável do turismo, por meio da organização e qua-
lificação da produção, melhoria da qualidade dos serviços, incentivo ao associativismo, cooperativismo, empreendedorismo, formação de redes, estabelecimento de
padrões e normas de atendimento diferenciado e estratégias inovadoras, para inserção destes produtos na cadeia produtiva do turismo, particularmente, com relação
a produtos e serviços turísticos de base comunitária com representatividade da cultura local, valorização do modo de vida ou defesa do meio ambiente. Finalidade:
Promover a qualificação e a diversificação da oferta turística, com a geração de trabalho e renda e a valorização da cultura e do modo de vida local (BRASIL, 2013).

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envolvidas, como o acesso à informação, o limitado conhecimento técnico para a elaboração de projeto dessa natureza e, ainda,
a dificuldade de cumprimento dos prazos oficiais.
Vale também ressaltar que, apesar do discurso político de valorização da cultura local, defendido pelo Ministério do
Turismo, de acordo com o PNT 2013-2016, a dimensão cultural tende a ser ainda abordada como uma potencialidade para a
atratividade turística, pela lógica do mercado. Sendo assim, o que se percebe, claramente, é um hiato entre o discurso oficial e
a prática de muitas iniciativas de Turismo de Base Comunitária, principalmente, no Brasil, justamente porque, em estudos anteri-
ores7, ao se analisar a implementação de alguns projetos de TBC, é possível perceber o quanto a dimensão cultural vem sendo
praticamente desconsiderada nesses projetos.

Reflexões finais: e a interface entre turismo e cultura?


A necessidade de interface entre turismo e cultura, associada às noções de Turismo de Base Comunitária (TBC), nas
políticas públicas no Brasil, constituíram a inspiração deste artigo. Tal temática envolve uma rede de significados que, por sua
vez, expressam as dinâmicas sociais locais, conflitos e expectativas múltiplas, sobrepostas (e às vezes contraditórias) dos dife-
rentes atores envolvidos.
Sendo assim, como parte das reflexões propostas, este artigo teve como objetivo contribuir para lançar um olhar crítico
sobre a dimensão cultural em iniciativas de Turismo de Base Comunitária, tendo como principal aporte um levantamento bibli-
ográfico com ênfase na discussão teórica associada a essa temática.
Pela breve análise realizada, é possível afirmar que, apesar dos inúmeros problemas reconhecidos no processo de imple-
mentação dos projetos de TBC no Brasil, alguns avanços decorrentes dessas iniciativas tendem a gerar efeitos multiplicadores,
além de um movimento de empoderamento local.
Por outro lado, muitos projetos têm funcionado como “dinamizadores” para a ação coletiva, trazendo à evidência as poten-
cialidades locais e, assim, favorecendo um movimento de valorização das identidades locais, em alguns casos.
No que diz respeito à capacidade endógena de realizar ações coletivas e em rede, como descreve e privilegia o Mtur,
tal competência parece representar uma peça chave para o sucesso das iniciativas de TBC. Da mesma forma, o diálogo e a
participação dos demais atores envolvidos (externos) pode resultar na incorporação de novos conhecimentos, em função do
aprendizado de outras competências para as localidades envolvidas.
Entende-se, ainda, que, para atender, efetivamente, às necessidades locais, é necessário entender as especificidades
de cada localidade, em contextos muitas vezes distantes dos grandes centros urbanos e com inúmeras restrições de formação
técnica para gerir projetos com a atual exigência do Ministério do Turismo.
A partir das questões trazidas ao debate proposto por este artigo, fica clara a importância de se considerar a interface
entre cultura e turismo, no âmbito das políticas públicas no Brasil visando à potencialização do desenvolvimento turístico em
bases sustentáveis e à valorização de iniciativas de empreendedorismo local no plano do TBC.
Assim, tais oportunidades serão, cada vez mais ampliadas, à medida que haja uma maior sensibilização das localidades
receptoras, requisito essencial para a sustentabilidade turística desses locais.
Por outro lado, sem essa participação efetiva, a continuidade dos projetos e das ações propostas tende a não ocorrer, o
que certamente comprometeria os investimentos neles aplicados.
Refletindo ainda sobre a perspectiva de fortaleciemnto da dimensão cultural nos projetos futuros de TBC, como parte das
recomendações inspiradas pelo artigo, seria primordial o investimento em formação profissional dos atores locais, bem como a
sua participação efetiva, em conjunto com o poder público, na formulação e no acompanhamento destes projetos. Nesse sentido,
a valorização das tradições culturais locais precisa ser considerada como uma via possível de elevação da autoestima local.
Além das questões elencadas, vale ressaltar outro aspecto relevante para os avanços desejados em relação ao tema
discutido, que é a manutenção de apoio financeiro e técnico, a médio prazo, para a continuidade dos projetos de TBC. Esse
componente é considerado fundamental ao estímulo da continuidade das ações, independentemente de mudanças no âmbito da
gestão pública e/ou de políticas em curso.
Considerando ainda a questão política, parece claro que, para que políticas públicas dirigidas ao Turismo de Base Comu-
nitária sejam efetivas, é necessário que o “diálogo” seja ainda mais amplo entre os principais atores envolvidos e para expressão
7
LIMA, 2014).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


383
dos interesses em discussão. Todavia, quaisquer medidas com os objetivos de aprimoramento do processo tendem a ser funda-
mentais em esforço em planejamento turístico para que possam ser diagnosticados possíveis impactos (positivos e negativos)
nos projetos em curso e nas iniciativas futuras de TBC, bem como, as potenciais alterações do ambiente, como a acumulação de
esgoto e lixo, a compactação e erosão do solo, a coleta ilegal de espécies da flora e da fauna, além da poluição das águas, da
descaracterização da cultura local, entre outras consequências para as localidades visitadas.
A partir desta breve análise, outro tema significativo parece incidir sobre os conflitos socioambientais em áreas prote-
gidas. Isto porque em muitos projetos de TBC pesquisados8 estão inseridos no entorno ou dentro de unidades de conservação
intensificando as questões relativas ao uso e à gestão de bens naturais coletivos. As diferentes concepções de natureza, os dife-
rentes interesses dos atores sociais envolvidos, o modo de vida local e a “nova” especulação imobiliária são alguns dos fatores
multiplicadores desses conflitos.
Diante desse panorama, ainda com muitas contradições e lacunas a serem investigadas, no âmbito geral do debate sobre
os projetos de TBC no Brasil, é incontestável que quando moradores locais estão efetivamente inseridos e se identificam com as
questões socioculturais, ambientais, econômicas e políticas dos projetos, maior tende a ser a possibilidade de êxito dos projetos
e, por consequência, do desenvolvimento local.
Dessa forma, quanto mais se conhece e se valoriza a história de uma localidade, mais se fortalece o sentido de inclusão,
com ênfase em suas especificidades e em seu potencial para proporcionar ao turista uma experiência singular e, para os mora-
dores locais, o sentido de autoestima.

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8
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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


385
O “ESTADO DA ARTE” DOS PROJETOS DE TURISMO DE BASE
COMUNITÁRIA NA COSTA VERDE (RIO DE JANEIRO – BRASIL)

Lima, Marcelo Augusto Gurgel de1; Irving, Marta de Azevedo2 & Prado, Mariana Oliveira do3

1. Doutorando do PPG em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, maglturismo@gmail.
com 2. Professora e Pesquisadora do PPG em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social e do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia em Políticas Públicas e Estratégias de Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro, marta.irving@mls.com.br
3. Mestranda do PPG em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, marianaprado89@gmail.com

Resumo
O Turismo de Base Comunitária (TBC) vem sendo discutido, em planejamento turístico, como uma importante alternativa para a
inclusão social. Concomitantemente, iniciativas de políticas públicas parecem indicar ser esta uma possível alternativa também
em apoio às estratégias de conservação da biodiversidade associadas às áreas protegidas. A partir do exposto, o artigo buscou
analisar os projetos de TBC na Região Costa Verde, Estado do Rio de Janeiro, apoiados pelo Ministério do Turismo. Para tal,
utilizou-se pesquisa bibliográfica, documental e pesquisa de campo. Diante dos dados obtidos é possível interpretar que esses
projetos representam um potencial a ser consolidado, à medida que sejam garantidos o compromisso de valorização cultural, o
provento de benefícios locais, a conservação do ambiente natural e a garantia da participação das populações envolvidas.

Palavras-chave: Turismo de Base Comunitária, Planejamento Turístico, Políticas Públicas, Região Turística da Costa Verde.

Contextualização de um tema complexo


O turismo de base comunitária vem sendo discutido, nos últimos anos, em planejamento turístico como uma importante
alternativa para a inclusão social em países em desenvolvimento.
Embora esse debate seja ainda recente e sujeito a inúmeras controvérsias, no caso brasileiro, nos últimos anos, diversos
estudos vem sendo desenvolvidos no sentido de mapear e avaliar as experiências em curso. Da mesma forma, algumas iniciativas
de políticas públicas parecem indicar ser esta uma possível alternativa não apenas para a inclusão das populações locais nos
processos regionais de desenvolvimento mas também em apoio às estratégias de conservação da biodiversidade associadas às
áreas protegidas.
Essa reflexão tem um claro rebatimento no contexto de desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro, tendo em vista a sua
importância em termos da biodiversidade, esta traduzida pela relação intrínseca entre à floresta e o mar.
Com base neste contexto, o presente artigo objetiva trazer para a cena principal, a análise crítica sobre os projetos de Turis-
mo de Base Comunitária (TBC) da Região Costa Verde no Estado do Rio de Janeiro, apoiados pelo Ministério do Turismo através do
lançamento do Edital de Chamada Pública 01/2008, que se propôs a apoiar iniciativas de turismo em bases sustentáveis nas cinco
regiões brasileiras. Esse edital teve como objetivo de apoiar iniciativas que tivessem as populações locais como protagonistas no
processo de gestão, privilegiando o fomento ao desenvolvimento local. Os projetos selecionados para tal se caracterizaram pela
proposta de ações em cinco diferentes linhas temáticas: a produção associada ao turismo; a qualificação profissional; o planeja-
mento estratégico e a organização comunitária; a promoção e a comercialização; o fomento às práticas de economia solidária.
Alguns desses projetos abrangem áreas territoriais de elevada biodiversidade, como é o caso da Mata Atlântica e também
com uma rica diversidade cultural de grande relevância para o Estado do Rio de Janeiro e para o país.
É importante ressaltar com relação a este tema que, de acordo com Irving (2009), o TBC emerge como uma potencialidade
para integrar desenvolvimento socioeconômico, conservação da biodiversidade e valorização cultural. Neste sentido, o Estado
do Rio de Janeiro como anteriormente explicado representa um caso emblemático por abrigar uma importante extensão de Mata
Atlântica, reconhecida como ‘hostspot’ em biodiversidade no plano global, sendo um dos estados da federação com maior número
de áreas protegidas.
Partindo deste panorama e, sobretudo, dos debates sistematizados em Lima (2014), o presente artigo busca contribuir para

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


387
a reflexão sobre os projetos de TBC na região da Costa Verde, considerando a concepção de três projetos em particular que com-
puseram o Edital de Seleção de Projetos com este enfoque 01/2008, do Mtur. São eles: “Caiçaras, indígenas e quilombolas: constru-
indo juntos o turismo cultural da Região da Costa Verde”, “O Povo Aventureiro: Fortalecimento do Turismo de Base Comunitária”
e “Ecoturismo de Base Comunitária da Região da Trilha do Ouro”.
No plano metodológico, a investigação foi realizada no período de janeiro de 2013 a janeiro de 2014, com base em re-
visão bibliográfica e documental sobre o tema em foco, pesquisa de campo envolvendo a elaboração de roteiro e a realização
de entrevistas dirigidas aos interlocutores dos três projetos de TBC e a e sistematização e análise de dados obtidos por meio da
utilização do software Atlas.Ti1, abrangendo três eixos temáticos orientadores: a percepção sobre a noção de turismo, o “estado
da arte” dos projetos de TBC na Costa Verde e recomendações para a continuidade dos projetos de TBC.
O perfil dos coordenadores entrevistados está apresentado no Quadro 1, a seguir:

A base conceitual orientadora sobre o Turismo de Base Comunitária


O desenvolvimento de inúmeras iniciativas designadas como Turismo de Base Comunitária ou TBC vem ocorrendo no
mundo, no Brasil e, também, no Estado do Rio de Janeiro, inspirada em alguns pressupostos de planejamento como a par-
ticipação social, o empoderamento e, o compromisso de conservação da biodiversidade, na tentativa de se delinear uma ação
inovadora para o setor turístico que possa conciliar o compromisso de integrar a proteção do patrimônio natural e cultural com o
desenvolvimento do turismo, em bases sustentáveis.
Mas são inúmeras as controvérsias e polêmicas associadas ao que se denomina, atualmente, como Turismo de Base
Comunitária. Na perspectiva do Ministério do Turismo, o TBC foi descrito, inicialmente em 2009, como uma proposta que parte
da noção de solidariedade, de cultura e do protagonismo das populações locais. Mas de acordo com Irving e Mendonça (2009,
p. 108) em sua fase inicial: o TBC no Brasil “trazia em sua expressão um sentido marginal, periférico e até mesmo romântico,
diante das perspectivas de um mercado globalizado e ávido por estatísticas e receitas”. No entanto com a ampliação do debate
e o surgimento de novas iniciativas de TBC, foram sendo delineados alguns balizamentos para aprimorar o enquadramento
1
O software é uma das aplicações de computadores projetado principalmente para análise de dados qualitativos, que faz parte do grupo de programas Computer-
Assisted Qualitative Data Analysis Software – CAQDAS. Com ele, é possível gerenciar e analisar grandes volumes de documentos, imagens, áudio, vídeo e geo-
referenciamento registrando e acompanhando comentários, notas, análises preliminares, entre outras aplicações. Ele também fornece análise e visualização de
ferramentas projetadas para abrir novas perspectivas interpretativas.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
388
conceitual a ele dirigido.
Assim, muito embora não se tenha ainda uma definição amplamente aceita sobre o que é considerado como TBC no
Brasil, algumas perspectivas teóricas vem orientando o debate sobre o tema e envolvem dimensões psicológicas, sociológicas,
antropológicas, políticas, econômicas, históricas e ambientais.
Para o Mtur (2010), as inúmeras vertentes conceituais sobre o TBC são resultantes, entre outras razões, do alto grau de
heterogeneidade das experiências envolvidas, assim como também da perspectiva política e/ou ideológica da instituição não
governamental responsável por organizar e viabilizar a experiência.
Com base nas argumentações aqui expostas, além de outras encontradas na literatura especializada, pode-se afirmar
ser o TBC,

Aquele tipo de turismo que, em tese, favorece a coesão e o laço social e o sentido coletivo de vida
em sociedade, e que, por esta via, promove a qualidade de vida, o sentido de inclusão, a valoriza-
ção da cultura local e o sentimento de pertencimento. Este tipo de turismo representa, portanto, a
interpretação “local” do turismo, frente às projeções de demandas e de cenários do grupo social
do destino, tendo como pano de fundo a dinâmica do mundo globalizado, mas não as imposições
da globalização (IRVING, 2009, p.112).

Sendo também associado a algumas outras modalidades em desenvolvimento turístico como o ecoturismo, o turismo ét-
nico ou o turismo rural, é importante destacar que o TBC não pode ser entendido apenas como mais um segmento de mercado,
mas sim como possibilidade para a construção de um novo paradigma para o turismo (SANSOLO; BURSZTYN, 2009), baseado
nas relações de hospitalidade, no receber bem, no estar aberto ao outro, no encontro e no compartilhamento do que se possui
de mais importante, o sítio simbólico de pertencimento (ZAOUAL, 2008).
Perante o exposto, pode-se afirmar que a proposta de turismo de base comunitária se fundamenta na valorização dos aspec-
tos culturais, históricos, ambientais e sociais de um determinado lugar turístico, a partir da valorização dos modos de vida locais.
Assim, pretende-se analisar os projetos de Turismo de Base Comunitária na Região Turística da Costa Verde do Estado do
Rio de Janeiro, uma região de elevado potencial histórico e cultural, e importante patrimônio em biodiversidade de valor global,
sob forte pressão do desenvolvimento turístico e sujeita a evidentes riscos de exclusão social e marginalização das populações
locais do processo.

O cenário dos projetos de TBC na Região da Costa Verde


Conforme mencionado anteriormente, o Rio de Janeiro representa a vitrine do país para turistas nacionais e internacio-
nais (BRASIL, 2013). No entanto, assim como a capital fluminense, o interior do Estado oferece também uma rica diversidade de
recursos culturais e naturais. Com este reconhecimento e para orientar estratégias de políticas públicas para estruturação e co-
mercialização de destinos e roteiros turísticos, em 2005, o Ministério do Turismo realizou uma revisão da regionalização turística
em todo o país, redesenhando também o mapa turístico do Estado do Rio de Janeiro envolvendo onze regiões turísticas, entre
essas, a Região da Costa Verde localizada no litoral sul-fluminense, constituída pelos municípios de Angra dos Reis, Paraty (mi-
crorregião denominada Baía da Ilha Grande), Mangaratiba, Itaguaí (microrregião da Baía de Sepetiba) e Rio Claro (LIMA, 2014).
Essa região é reconhecida pelas suas belezas naturais e pelo seu patrimônio cultural associado à história do país, abrig-
ando ainda um importante remanescente preservado de Mata Atlântica. A diversidade da fauna e flora regional (de importância
nacional e também internacional) e a riqueza do patrimônio histórico-cultural favorecem o desenvolvimento do turismo na região
e a tornam uma das mais atrativas para o trade turístico, que gradativamente vem integrando o turismo cultural e, mais recente-
mente o turismo de base comunitária aos roteiros turísticos fluminenses.
Não se pode negligenciar na dinâmica socioeconômica regional que mais de 80% do território da cidade de Paraty estão
inseridos em unidades de conservação que compõem o Mosaico Bocaina. Este mosaico integra o Corredor de Biodiversidade
da Serra do Mar, na região de Angra dos Reis, Paraty (RJ) e Ubatuba (SP) e situa-se em uma área superior a 250 mil hectares,
englobando 18 unidades de conservação, além de cinco terras indígenas e quatro quilombos. E, muitas dessas áreas protegidas
tipificam claramente as tensões entre as demandas de conservação da biodiversidade e as pressões de desenvolvimento socio-
econômico do Estado do Rio de Janeiro (IRVING et al., 2013).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


389
Diante do exposto, esta região vem recebendo atenção especial no processo de formulação de políticas públicas de turis-
mo, principalmente, no que refere ao processo de priorização para a implantação de projetos de Turismo de Base Comunitária
(TBC) e para o estabelecimento de parcerias inovadoras entre o governo, as populações tradicionais e/ou locais e a iniciativa
privada.
Mas poucos são os estudos que avaliam os resultados obtidos nestas iniciativas pela perspectiva local. Sendo assim e, a
partir do contexto descrito, foram analisados, pela ótica do presente estudo, três projetos de TBC localizados na região turística
da Costa Verde apoiados pelo Edital 01/2008 do Mtur que estão inseridos em áreas protegidas, como pode ser observado no
Quadro 2 a seguir.

Estes projetos serão discutidos e analisados a seguir e representam um importante recorte para a análise no Estado do
Rio de Janeiro.

A interpretação do TBC na Região da Costa Verde


O turismo é interpretado localmente como uma atividade econômica complementar ou ainda como uma possibilidade
para a geração de renda e ascensão social. No entanto, muito embora o turismo possa ser interpretado como uma oportunidade
para o desenvolvimento socioeconômico local pode também segundo a perspectiva destes interlocutores impactar negativa-
mente as estruturas sociais, o ambiente natural e a herança histórico-cultural.
Os três projetos de TBC selecionados para esta investigação e analisados segundo os objetivos propostos neste artigo,
estão a seguir descritos:

Projeto Ecoturismo de Base Comunitária da Região da Trilha do Ouro


O referido projeto foi promovido e coordenado pela Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (SAPE) e desenvolvido
na área de influência do Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB), entre Angra dos Reis/RJ e São José do Barreiro/SP.
A Trilha do Ouro se localiza assim em uma região conhecida por suas belezas naturais e por ter sido o cenário de parte
da história do Brasil Colônia, iniciando no topo da Serra da Bocaina, a 1.540 metros de altitude e terminando próximo ao mar.
A proposta inicial do projeto era beneficiar 120 pessoas, por meio da formação dos moradores locais para que estes
pudessem atuar como monitores ambientais. Com isto, os monitores trabalhariam com o ecoturismo garantindo o ordenamento
territorial e ambiental e colaborando com as atividades turísticas já em operação. O ecoturismo seria assim desenvolvido em
rede envolvendo as localidades de Sertão de Mambucaba (Angra dos Reis, RJ), Lajeado e Sertão da Onça (São José do Barreiro,
SP). Esta rede se efetivaria por meio da estruturação de alguns roteiros turísticos e da capacitação da população local com este
projeto.
Pelas informações obtidas na pesquisa, o turismo é percebido ainda como uma possibilidade futura para o desenvolvi-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
390
mento socioeconômico local, segundo o interlocutor do projeto. Porém, não parece haver uma única percepção sobre o
turismo na visão dos locais. Isto porque a Trilha do Ouro atravessa três localidades com realidades semelhantes mas também
com suas peculiaridades.
Para o interlocutor do projeto, grande parte dos obstáculos enfrentados para o desenvolvimento do projeto de TBC na
localidade é decorrente da ausência do apoio governamental e dos constantes conflitos com a gestão do Parque Nacional da
Serra da Bocaina. Desta maneira, apenas os moradores envolvidos diretamente no projeto da Trilha do Ouro entendem o turismo
como uma possibilidade futura para a geração de renda.
O processo de formalização do projeto e a prestação de contas parece ser, atualmente, o principal obstáculo enfrentado,
conforme depoimento ilustrado a seguir:

a dificuldade dos recursos públicos serem geridos por organizações (que a SAPE e uma or-
ganização pequena, quase comunitária) a dificuldade de gestão que envolve aplicação dos
recursos, transferências etc., tanto por baixa estrutura e falta de capacitação técnica mesmo,
mas também porque esses projetos não estão moldados para trabalhar com grandes volumes,
porque você for comparar um recurso de 50 mil de comunidade com um de 5 milhões. Então, por
exemplo, para você ter o que o Ministério do Turismo queria, você gastaria todo o dinheiro com
a contratação de pessoal técnico ai o resultado e que se produz uma série de livros, mapas, mas
que os recursos não chegam onde deveriam chegar (Entrevistado A1).

A formulação dos contratos e prestação de contas (leia-se SICONV2) foram mencionadas como as principais dificuldades
para a execução do projeto de TBC. Mas, esta iniciativa serviu também como aprendizado, para futuros projetos, como ilustrado
pelo coordenador do projeto,

Eu aprendi muito. (...) As coisas são muito estruturadas, do jeito que... você é mais ou menos
obrigado a se comportar como um grande player, digamos assim. Tem que ter lá meia dúzia de
burocratas, aliás pode ter uma dúzia de técnicos, de burocratas só para alimentar o sistema, só
que isso...os projetos comunitários que a gente tocou, com muito envolvimento, muita parcimônia,
diante dos recursos escassos3. (Entrevistado A1).

Quanto ao principal resultado obtido, segundo o coordenador do projeto na Trilha do Ouro, o processo de capacitação
profissional parece ter sido o principal legado para as populações locais, conforme ilustrado a seguir:

estruturação dos roteiros que estruturamos alguns roteiros, e...formação de gente que e normal-
mente os principais resultados, as capacitações e o que fica que em nosso caso foi em capacita-
ção e organização não distinguimos as coisas. (Entrevistado A1).

Mas quando se buscou interpretar qual o legado efetivo que a experiência de TBC deixou para a melhoria na qualidade
de vida dos moradores locais, segundo o seu interlocutor, foi o “início de um laço entre as famílias que possibilitou mais investi-
mentos e infraestrutura, logicamente com toda a limitação que uma iniciativa como essa tem”.
Questionado sobre o que precisaria ser aperfeiçoado no atual projeto, o coordenador do Trilha do Ouro, mencionou a
necessidade do Ministério do Turismo considerar as especificidades locais na implementação do TBC,

O primeiro ensinamento é que para trabalhar com o ministério, com esse grau de legislação, de
burocracia, infelizmente, você tem que ter uma boa capacidade gerencial, o que não temos, por
este motivo estamos correndo o risco de eu ser processado. Mas o projeto foi muito além porque
na trajetória do trabalho e do lugar, a gente construiu um grande projeto que tentava responder
grandes questões, via a inviabilidade dele por causa dos conflitos, um triplo conflito: do agente

2
O SICONV é o Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse e, assim como o Portal de Convênios, foi instituído pelo Decreto número 6.170/2007, sendo
alterado pelo Decreto número 6.329/2007, que dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse.
Esse decreto determina que a celebração, liberação de recursos, acompanhamento da execução e a prestação de contas dos convênios sejam registrados no SI-
CONV. Para outras informações, acessar o endereço eletrônico: www.convenios.gov.br
3
Durante o período de entrevistas com os coordenadores dos projetos selecionados, o projeto Ecoturismo de Base Comunitária da Região da Trilha do Ouro ainda
estava em fase de avaliação pelo Ministério do Turismo.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


391
externo (proponente), do parque e dos moradores, não deixa de ser um processo de apren-
dizado. No entanto, acabou redundando em um projeto que foi menor, menos pretensioso, com
os seus objetivos e que de certa forma ele foi mais efetivo em seus resultados, ainda que eles
tenham sido muito pontuais... E acho mesmo que foi bem gratificante, apesar das dificuldades
(...) Mas de todos os percalços o mais gostoso do aprendizado foram os fortalecimentos, ainda
que não se tenha formado uma rede, esses projetos aproximaram os caiçaras do Fórum de Co-
munidades Tradicionais e de certa forma marcou estas pessoas e na verdade o que fica é isso
(Entrevistado A1).

Assim, na visão do coordenador, para se alcançar um futuro promissor em uma iniciativa de TBC, adequando-a a gestão
dos recursos culturais, naturais e sociais, seria preciso reunir alguns aspectos essências, como,

(...) o investimento de formação constante, estruturação dessas iniciativas, desses potenciais e


regionalmente, porque eu acho que já e um projeto que já estar mais maduro...você com uma
rede e formada por nós, se não tem o fortalecimento do nós, não tem rede, mas acho que já
começou a ter uma estruturação maior regional com o perfil comunitário. E temos outras inicia-
tivas que estão em curso e de uma forma ou de outra (...) é preciso fomentar as manifestações
culturais (Entre-vistado A1)

A partir da experiência relatada, é preciso considerar a complexidade, por essência e definição, do processo do desen-
volvimento turístico de base comunitária. Além disso, precisa ser, neste caso, considerada em planejamento, a recorrente dificul-
dade de diálogo entre os atores locais, as instituições públicas e não governamentais no processo de decisão na concepção e
também na implementação de tais projetos turísticos.

Projeto O Povo Aventureiro: Fortalecimento do Turismo de Base Comunitária


O projeto em questão foi proposto pela Fundação de Apoio à Pesquisa Científica e Tecnológica (FAPUR) da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em parceria com o Comitê de Defesa da Ilha Grande (CODIG), com anuência da As-
sociação dos Moradores da Vila do Aventureiro (AMAV), localizada na Ilha Grande, situada no município de Angra dos Reis (RJ).
Entre os objetivos do projeto estavam, na origem, promover a mobilização e a integração da população local no processo
de planejamento do turismo de base comunitária, por meio de qualificação e aperfeiçoamento dos empreendimentos turísticos
locais. E, desta forma, se buscou fortalecer o associativismo e/ou cooperativismo da Vila do Aventureiro, contribuindo, assim, em
tese, para a melhoria da qualidade de vida dos moradores locais.
Mas apesar das potencialidades identificadas no período de pesquisa, esta área, por muito tempo, foi considerada de in-
tenso conflito socioambiental do Estado do Rio de Janeiro, no que se refere às consequências da existência de áreas protegidas.
Uma vez que, a área terrestre era do tipo Reserva Biológica Praia do Sul (REBIO da Praia do Sul), o que, legalmente, impedia a
permanência dos moradores no local e a área marinha era do tipo Parque Estadual Marinho do Aventureiro (PEMA), que não
permitia o uso dos recursos pesqueiros. E, sendo assim, o turismo não seria permitido nessa área. No entanto, em 2014, após a
etapa de entrevista para esta pesquisa, os limites da área foram alterados, recategorizando parte da REBIO (porção terrestre) e
integralmente o PEMA (porção marinha) para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Aventureiro4. A criação da RDS do
Aventureiro permitiu aos moradores locais permanecerem na área e conciliarem a preservação dos ecossistemas locais com a
cultura caiçara, inclusive com a prática do turismo.
No caso do projeto O Povo do Aventureiro: fortalecimento do TBC, o turismo é compreendido como a principal opor-
tunidade para a geração de renda e emprego e para o fortalecimento cultural. Ao ser questionado sobre a sua percepção com
relação ao turismo na visão dos moradores locais, o coordenador do projeto de TBC o interpreta como a “única alternativa que
eles têm de renda e de fortalecimento cultural é o turismo”.
Em relação aos obstáculos encontrados para se trabalhar com o turismo, de acordo com o coordenador do projeto, é
possível identificar a carência de parceiros (leia-se poder público) e, a dificuldade para a capacitação da população local com
este objetivo.
4
Ver Lei Nº 6793 de 28 de maio de 2014 que dispõe sobre a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Aventureiro, na Ilha Grande, município de Angra
dos Reis, resultante da redução do limite da Reserva Biológica Estadual da Praia do Sul e da Recategorização do Parque Estadual Marinho do Aventureiro, e dá outras
providências.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
392
Assim, na visão do coordenador entrevistado, para se alcançar um futuro promissor em uma iniciativa de TBC, adequan-
do-a a gestão dos recursos culturais, naturais e sociais, seria preciso promover o investimento em formação continuada, a estru-
turação dessas iniciativas potenciais em forma de rede, o fomento às manifestações culturais e dos movimentos de resistência e
de atividades produtivas agro ecológicas.
Entretanto, mesmo diante das dificuldades surgidas ao longo da execução do projeto, alguns resultados positivos focam re-
conhecido em sua implementação. De acordo com o coordenador deste projeto, a capacitação profissional foi o principal resultado:

A capacitação em turismo de base comunitária foi o principal. O que o povo do Aventureiro pre-
cisa saber e conhecer melhor para servir bem o seu visitante (...) Fizemos um boletim, programa-
mos essa coisa toda e houve um trabalho de levantar a autoestima deles, nós tivemos algumas
atividades lúdicas, de festas, aproveitamos e casamos as atividades junto as datas comemora-
tivas deles, como a Festa de Santa Cruz. Então o projeto tinha como fundamento a questão da
capacitação do morador (Entrevistado A2).

Da mesma maneira, o projeto O Povo do Aventureiro foi avaliado pelo Mtur e, posteriormente, aprovado. Mesmo assim,
ainda segundo o coordenador do projeto, o processo de formalização e prestação de contas, assim como no projeto da Trilha do
Ouro, foi também um obstáculo enfrentado. Isto porque, segundo ele, o SICONV:

(...) é um sistema sofisticadamente grande de prestação de contas. O problema é que ele trata os
projetos de uma mesma forma, independente que seja entre uma prefeitura e com um projeto so-
cial, que tem os seus imponderáveis, o seu tempo, como você vai cobrar nota fiscal do barqueiro
que te leva até lá? Faltou também o apoio dos poderes públicos. A prefeitura e o Governo do
Estado não ajudaram em nada (Entrevistado A2).

Quanto aos principais resultados obtidos, a capacitação para o turismo foi mencionada como um resultado importante no
caso do Povo do Aventureiro, segundo o coordenador do projeto,

Não vou dimensionar, porque fica difícil, pelo menos eu não tenho essa capacidade, mas os resul-
tados foram altamente positivos. O balanço realista e que nós conseguimos avançar (...) O projeto
de TBC não foi a primeira tentativa de capacitação para os moradores locais, mas foi formal-
mente o primeiro projeto que logrou um avanço mas não a primeira tentativa (Entrevistado A2).

Além da participação efetiva dos atores locais em todas as etapas do projeto de TBC, para o coordenador do projeto O
Povo do Aventureiro, o legado efetivo foi garantir maior legitimidade as decisões e ações definidas pelas populações tradicio-
nais/locais, articuladas entre os diversos setores da sociedade.
Questionado sobre o que seria preciso reunir para que novas iniciativas de Turismo de Base Comunitária tenham um fu-
turo promissor em uma iniciativa de TBC, associando a gestão dos recursos culturais, naturais e sociais, seria preciso, segundo
o coordenador,

(...) teríamos que ter um projeto com começo, meio e fim e poderia abordar de uma maneira
importante todas aquelas atividades que deveriam ter naquele lugar. As particularidades não
poderiam ser ignoradas. Primeiro investir muito em um diagnóstico para ter uma base sobre
qual modalidade de turismo se possa investir para aquele lugar. O projeto deveria ser o mais
transparente e democrático possível, como pressuposto do TBC e não de cima para baixo. A
questão de capacitação seria continua e (...) voltada para o fortalecimento da renda, cultural, das
relações sociais do lugar. Esse seria o meu projeto “ideal” (...) sobretudo de olho lá na frente do
incremento, e sobretudo, na diminuição da grande diferença social (Entrevistado A2).

Ainda de acordo com a opinião do entrevistado, o apoio efetivo e a continuidade do poder público é fundamental para
as fases inicias de uma iniciativa de TBC e devem ser mantidos até que o projeto seja considerado realmente sustentável. E,
portanto, a limitação nesse tipo de apoio é percebida, atualmente, como o maior obstáculo para o êxito da grande maioria das
iniciativas de TBC analisada.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


393
Projeto Caiçaras, indígenas e quilombolas: construindo juntos o turismo
cultural da Região da Costa Verde
A proposta inicial do projeto previa o fortalecimento de um conjunto de populações tradicionais, coordenado pela As-
sociação dos Moradores do Campinho (AMOC), cuja missão seria fazer com que as populações tradicionais da região fossem
protagonistas do turismo cultural de suas localidades.
Através da Associação dos Moradores do Campinho5 (AMOC), que representa 24 populações tradicionais na região de
Paraty (RJ), norte de Ubatuba (SP) e o sul de Angra dos Reis (RJ), o projeto visou resgatar, através do desenvolvimento do turismo
de base comunitária, a valorização dos saberes e fazeres tradicionais daquelas populações. Para o desenvolvimento do projeto
foram previstas ações de resgate a cultura, culinária e dança, através de intercâmbio com outros quilombos.
O Quilombo Campinho da Independência representa o portão de entrada do projeto e simboliza grande parte da história
de luta e sobrevivência das populações tradicionais da região. Seu território está situado em uma região conhecida por sua di-
versidade cultural e natural, em sobreposição a Área de Proteção Ambiental do Cairuçu, uma unidade de conservação de uso
sustentável. Além disso, o Quilombo é influenciado pela proximidade de 13 km da cidade de Paraty, considerada o segundo polo
turístico do Estado do Rio de Janeiro e o 17° do país (IBGE, 2013) e reconhecida nacional e internacionalmente pelo seu patri-
mônio histórico e cultural, formado por casarios e igrejas em estilo colonial, além do calendário cultural diversificado e inúmeras
praias e ilhas de beleza cênica.
A atividade turística na região vem crescendo e, assim como em outros destinos turísticos, muitos são os impactos inde-
sejáveis observados no processo, como especulação imobiliária, o que demandaria, em tese, o aprimoramento do ordenamento
turístico e de fiscalização, além de medidas legais voltadas para a proteção do patrimônio histórico e, a conservação das áreas
naturais legalmente protegidas para beneficiarem também o turismo do Quilombo.
Desta forma, um dos desafios a ser enfrentado pelo interlocutor tende a ser justamente de que maneira o turismo pode
ser desenvolvido de maneira sustentável. É importante destacar que, na ótica local, o discurso da geração de renda por meio do
turismo se sobressai sobre outros aspectos envolvidos no turismo como a questão cultural, a preservação ambiental e, a relação
entre turistas e moradores locais. Para o coordenador do projeto Caiçaras, indígenas e quilombolas, a possibilidade de gerar
renda constitui a principal via para o desenvolvimento sustentável do turismo no Quilombo. Com isto, o turismo é interpretado
como uma importante atividade econômica. Por sua vez, os moradores mais antigos interpretam o turismo “com desconfiança e
como uma atividade que não pede licença”, segundo o interlocutor do projeto.
Neste projeto, a dificuldade para se trabalhar com o turismo é associada à atual situação de especulação imobiliária e à
falta de diálogo com o trade turístico dominante. Uma vez que, de acordo com o coordenador do projeto, o trade turístico “do-
mina toda a nossa região”. Ainda em relação aos obstáculos enfrentados, o coordenador menciona a especulação imobiliária, os
conflitos existentes por estarem localizados em uma unidade de conservação e a ausência do poder público como obstáculos
para o êxito do projeto, conforme ilustra o depoimento a seguir:

Eu não consigo separar os governos com o seu papel no turismo, que é o mesmo governo que
tem o papel na conservação ambiental, né? (...) e é o mesmo governo que tem o papel na política
pública da inclusão. O problema pra mim é que o governo é pautado pelo capital...pelo poder
econômico...e nesse lado... nessa situação, estamos do lado mais fraco. Bem, estamos do outro
lado da moeda, na contramão desse processo (...) nós queremos é promover o turismo que é o
segmento que nós estamos falando aqui agora... através do nosso modo de vida...nossa cultura...a
gente permanece no nosso território (Entrevistado A3).

Outro problema identificado se relaciona ao processo de formalização das propostas e prestação de contas com a União.
Neste caso, as causas do problema podem estar relacionadas a dois fatores já relatados. O primeiro, a falta de capacitação
técnica para operar o SICONV (tanto por parte dos proponentes, quanto pelos técnicos do Mtur) e, o segundo, as diferentes
percepções sobre o sentido de tempo dos dois atores envolvidos. Esses fatores estão ilustrados no depoimento a seguir:

5
A AMOC é uma entidade que representa doze populações tradicionais: cinco quilombolas, duas indígenas e sete caiçaras, organizando a oferta de produtos e
serviços turísticos, denominados turismo social e cultural – Paraty (RJ), Angra dos Reis (RJ) e Ubatuba (SP).

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394
(...) imagine os desafios pra gente! (...) Eu pensei, na verdade, em entregar o financiamento por
conta dessa dificuldade e foi interessante que eu estive no Ministério do Turismo, em Brasília.
(...) Eles responderam o quanto foi complicado porque o tempo e a linguagem que eles estavam
falando era diferente da fala dos povos tradicionais, das associações, dos moradores. Eu ainda
fiz um curso de uma semana pra tentar entender o que as pessoas me falavam... é horrível (Entre-
vistado A3).

Ainda assim, apesar dos problemas relatados, segundo o entrevistado, o projeto foi avaliado positivamente pela equipe
técnica do Ministério do Turismo. E, ainda segundo o interlocutor, a capacitação local para o turismo foi avaliada como principal
resultado durante o tempo em que o projeto recebeu apoio financeiro do Mtur.
Desta maneira, o fomento às iniciativas de TBC ainda não é o suficiente quando considerada a complexidade envolvida
no processo de gestão do projeto e as especificidades de cada caso. Isto porque, as dificuldades de uma iniciativa de TBC não
se resumem, por exemplo, à carência de capacitação profissional, mas também aos baixos índices locais de desenvolvimento
socioeconômico, à carência de infraestrutura, à dificuldade de acesso, entre outros impedimentos comuns nos casos analisados.

Projetando possibilidades futuras


Os projetos de Turismo de Base Comunitária na Região da Costa Verde do Estado do Rio de Janeiro constituíram o foco
e a inspiração deste artigo. No entanto, para além de projetos financiados com o apoio do Governo Federal, estes envolveram
uma rede de significados que expressam as dinâmicas sociais locais, conflitos e expectativas múltiplas, sobrepostas (e às vezes
contraditórias) dos diferentes atores envolvidos.
Os resultados da pesquisa indicam que, apesar dos inúmeros problemas reconhecidos no processo de implementação
dos projetos de TBC, alguns avanços decorrentes destas iniciativas tendem a gerar efeitos multiplicadores e um movimento de
empoderamento local. Além disso, muito dos projetos tem funcionado como “dinamizadores” para a ação coletiva, colocado em
evidência as potencialidades locais e favorecendo um movimento de valorização das identidades locais.
No entanto, são inúmeros os obstáculos a serem transpostos em iniciativas futuras. Por exemplo, estes projetos são deli-
neados sem que as lideranças locais estejam preparadas para o seu desenvolvimento e toda a complexidade envolvida na gestão
deste tipo de projeto.
Além disto, as instituições públicas responsáveis pelo seu monitoramento (no caso, o Ministério do Turismo) partem de
uma leitura formatada de projetos, muitas vezes, desconsiderando as especificidades locais. Assim, torna-se imprescindível pen-
sar em alternativas de gestão menos burocráticas que atendam realmente a esses grupos sociais locais. Além disso, há pontos
complexos a própria dificuldade de acesso à informação, o desconhecimento das leis, por determinados grupos sociais, a falta
de conhecimento técnico para elaborar projeto, além dos prazos oficiais, aparentemente desconexos com a dinâmica social das
localidades.
Com base nas análises realizadas, outro tema significativo no debate proposto incidiu sobre os conflitos socioambientais
em áreas protegidas. Isto porque nos três casos pesquisados os projetos de TBC estão inseridos no entorno ou dentro de uni-
dades de conservação intensificando as questões relativas ao uso e à gestão de bens naturais coletivos. As diferentes concep-
ções de natureza, os diferentes interesses dos atores sociais envolvidos, o modo de vida local e a “nova” especulação imobiliária
são alguns dos fatores multiplicadores desses conflitos.
No plano das recomendações, foi possível verificar que a principal recomendação nesta direção se refere à necessidade
do Ministério do Turismo entender as especificidades envolvidas na implementação do TBC em cada caso. Ainda se baseando
nas análises, parece claro também que o processo adotado pelo Mtur para formalizar os convênios e para a prestação de con-
tas foi (o SICONV) a grande dificuldade encontrada pelos coordenadores dos projetos de TBC. Desta forma, o gerenciamento
dessas iniciativas é considerado como extremamente complexo, em decorrência de convênios excessivamente normativos, ho-
mogêneos, rígidos e burocráticos.
Pela necessidade de se pensar o desenvolvimento e a “construção” dessas novas iniciativas seria preciso considerar con-
quistas, erros e desafios com relação aos atuais projetos, extraindo lições destas experiências. Além disto, seria fundamental que
fosse dada continuidade aos projetos já em execução. Dessa forma, aproveitar-se-ia os resultados positivos já obtidos para que
fossem estruturadas novas ações, para também influenciar a cadeia produtiva de prestação de serviços ao turista. Isto porque os

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


395
projetos de TBC, aqui analisados, não passaram ainda por uma avaliação criteriosa, muito menos, um olhar mais apurado, por
parte do Mtur, sobre de que forma estes se associam à noção e aos compromissos do Turismo de Base Comunitária. Além disso,
o fato destes não terem sido avaliados, impossibilita uma interpretação realista sobre o “estado da arte” dos projetos de TBC no
Brasil, limitando-se assim as análises às projeções futuras e potenciais para esta modalidade de turismo de forma genérica no
país.
Mas mesmo com a deficiência na divulgação dos projetos e, a limitação técnica descrita, a tendência é que, cada vez
mais, novas iniciativas de TBC despontem no Brasil e no mundo. No Brasil, essa expectativa é maior em virtude da dimensão
territorial do país e de suas riquezas naturais e culturais.

Referências
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SÍTIOS NATURAIS SAGRADOS NO BRASIL: O GIGANTE DESCONHECIDO

Fernandes-Pinto, Érika1 & Irving, Marta de Azevedo2

1. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Governança, Biodiversidade, Áreas Protegidas e Inclusão Social (GAPIS), doutoranda no PPG EICOS
Psicossociologia e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Analista Ambiental do ICMBio, snsbrasil@gmail.com
2. Coordenadora do grupo de pesquisa GAPIS e professora dos PPG EICOS e Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, marta.irving@mls.com.br

Gigante pela própria natureza,


És belo, és forte, impávido colosso,
E o teu futuro espelha essa grandeza.
Terra adorada,
Entre outras mil,
És tu, Brasil, Ó Pátria amada!
(Hino Nacional Brasileiro)

Resumo
Nas últimas décadas, um novo tema vem adquirindo uma visibilidade crescente em diversos eventos internacionais e nos de-
bates sobre políticas públicas - os sítios naturais sagrados. Essas áreas de importância cultural e espiritual são consagradas por
povos nativos e grupos religiosos desde a antiguidade na história humana e, na atualidade, são ainda encontradas em uma am-
pla gama de contextos, em diversas partes do planeta. Considerando a expressiva diversidade biológica e cultural do território
brasileiro, este artigo tem por objetivo mapear e descrever os sítios naturais sagrados no Brasil e delinear os caminhos que vêm
sendo trilhados para o reconhecimento e a proteção dessas áreas em políticas públicas nacionais, a partir de pesquisa bibliográ-
fica sobre o tema. Os resultados ilustram 60 lugares sagrados no país, situados em 14 estados brasileiros.

Palavras-chave: Sítios Naturais Sagrados, Valores Culturais e Espirituais, Políticas Públicas, Proteção da Natureza.

Introdução
Em todo o mundo, existem milhares de lugares onde elementos da natureza - como montanhas, vulcões, rios, lagos, matas,
árvores, pedras e cavernas, entre outros - são considerados por diversos grupos humanos como templos naturais ou lugares sa-
grados. A eles são atribuídas características especiais e valores simbólicos que os distinguem como “extraordinários”, comumente
envoltos em uma aura de mistério e magia. O termo “sítios naturais sagrados” (SNS) tem sido frequentemente utilizado na literatura
internacional para se referir a esses locais e eles podem ser entendidos como “áreas de terra ou de água com um significado es-
piritual especial para povos e comunidades” (WILD; MCLEOD, 2008, p. 20).
Os SNS são relatados desde a antiguidade na história humana. E, na atualidade, são ainda encontrados em uma ampla
gama de contextos geográficos e culturais, reconhecidos por povos indígenas, populações tradicionais, religiões institucionaliza-
das e outras filosofias espiritualistas. Em geral, os sítios sagrados são interpretados como espaços de inspiração, revelação, cura,
reverência e comunhão com a natureza, e são visitados e utilizados em ocasiões especiais, para a realização de cerimônias ou
rituais. Alguns sítios são consagrados globalmente, atraindo visitantes e peregrinos de várias partes do mundo. Outros são conhe-
cidos apenas por determinados grupos sociais. E há ainda aqueles envoltos pelo segredo, cuja localização e/ou função religiosa é
de domínio apenas de um número limitado de indivíduos (THORLEY; GUNN, 2007).
Nas últimas décadas, a temática dos sítios naturais sagrados vem adquirindo uma visibilidade crescente em diversos even-
tos internacionais promovidos por instituições globais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO) e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e com a publicação de diversas obras de refer-
ência. Além disso, a importância em se promover ações para o mapeamento e a salvaguarda de SNS também vem sendo um tema
de destaque nos fóruns internacionais sobre políticas públicas, notadamente nas estratégias de proteção da natureza, refletindo
o reconhecimento internacional dos direitos dos povos indígenas e da importância dos seus conhecimentos tradicionais para a

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conservação da biodiversidade. Entretanto, em grande parte dos países do mundo o conhecimento sobre o tema ainda é limitado
e as iniciativas de proteção dessas áreas em políticas públicas nacionais são escassas (THORLEY; GUNN, 2007; VERSCHUUREN
et al., 2010; WILD; MCLEOD, 2008).
O Brasil, com sua dimensão territorial continental e variedade de ambientes, é um dos países com maior riqueza biológica
no mundo. E aliada à exuberância natural, o país também abriga uma expressiva pluralidade social, representada por 235 etnias
indígenas e centenas de grupos tradicionais não-indígenas, que revelam uma riqueza cultural tão importante quanto a biológica
(ISA, 2011; LEWINSOHN; PRADO, 2005).
Considerando que os sítios naturais sagrados são uma expressão da conjugação entre natureza e cultura (VERSCHUUREN
et al., 2010), é possível inferir que a ocorrência de SNS também seja significativa no Brasil. Assim, para aprofundar essa reflexão
busca-se, neste artigo, mapear e descrever os sítios naturais sagrados no território nacional e delinear os caminhos que vêm sendo
trilhados para o reconhecimento e a proteção dessas áreas em políticas públicas nacionais.
As informações apresentadas baseiam-se em pesquisa bibliográfica realizada em diversas bases de dados, bibliotecas
de universidades, bancos de teses e dissertações e portais eletrônicos de pesquisa1. Complementarmente, buscou-se também
averiguar como os sítios naturais sagrados do Brasil vêm sendo retratados no debate internacional, a partir de consulta aos anais de
eventos sobre a temática promovidos pela UICN e UNESCO nas últimas décadas e a bases de dados virtuais de iniciativas sobre
sítios sagrados de várias partes do mundo2.

Resultados e Discussão
A partir do levantamento bibliográfico realizado, foram identificados 60 lugares no território nacional em que elementos natu-
rais são imbuídos de sacralidade por determinados grupos sociais e que, considerando a definição proposta por Wild e McLeod
(2008), correspondem aos denominados sítios naturais sagrados (SNS) no Brasil3. Esses sítios - representados por cavernas,
montanhas, cachoeiras, matas, formações rochosas, cursos de água, lagoas, dunas e árvores - estão distribuídos em 14 estados
brasileiros, destacando-se os do Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. Dentre os SNS identificados, há um predomínio de lugares
sagrados para o catolicismo e as religiões de matriz africana, mas também são registrados sítios associados a povos indígenas,
populações quilombolas e de agricultores e pescadores artesanais (Quadro 1).

1
Banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Capes; Portal de Periódicos da CAPES; Scientific Eletronic Library
Online; Google Acadêmico, entre outros.
2
Foram analisados os sítios eletrônicos do Sacred Natural Sites Initiative, Places of Peace and Power, Sacred Land Film Project e SANASI.
3
Essa compilação é resultado da análise de 53 publicações identificadas na pesquisa bibliográfica.

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400
Dentre a diversidade de sítios naturais sagrados identificados no Brasil, algumas cavernas-santuários no sertão nordes-
tino se destacam por serem centros de grandes romarias e peregrinações no país e têm sido estudadas por diversos autores. A
consagração desses espaços pode envolver desde a oferta periódica de alimentos, bebidas, flores, louças, velas, mensagens
escritas e adereços para as divindades, até a fixação de estátuas de santos ou cruzes nos locais, a construção de altares ou edi-
ficação de capelas, templos e outras estruturas para a celebração de ritos religiosos (BARBOSA, 2013).
O processo de sacralização desses locais pode ser antigo, como na Gruta de Bom Jesus da Lapa, no Estado da Bahia/
BA, que remonta ao período colonial (1691), ou recente, a exemplo da Gruta do Bom Pastor, em Paripiranga/BA, para onde as
romarias tiveram início na década de 1990. A Gruta da Milagrosa, no Município de Pau Brasil/BA, é identificada como um sítio sa-
grado ancestral para os povos indígenas da região, mas os rituais celebrados nesse local foram retomados somente nos últimos
anos, a partir da demarcação do território indígena (BARBOSA, 2013).
A partir do levantamento realizado, foram mapeadas 24 cavernas de uso religioso no Brasil. Mas, considerando que
existem aproximadamente 5 mil cavidades naturais registradas no território nacional, esse número provavelmente seja subesti-
mado. Corroborando essa afirmação, Travassos, Magalhães e Barbosa (2011) - no livro intitulado Cavernas, rituais e religião, uma
importante obra de referência sobre o assunto - consideram que a importância cultural das cavidades naturais no país é um tema
ainda recente e pouco estudado nas pesquisas científicas e que muitos aspectos dessa interação são desconhecidos.
Além de cavernas, algumas montanhas no território nacional também possuem importância religiosa e se constituem
em centros de peregrinações sazonais, como o Monte do Galo/RN (BRANDÃO; ARAÚJO, 2009; AGUIAR; NUNES, 2009), a Serra
da Piedade/MG (AZEVEDO et al., 2009), o Morro do Urucum/CE (COSTA, 2010) e o Morro da Capelinha/DF. O Morro do Corco-
vado, situado no Parque Nacional da Floresta da Tijuca, no Estado do Rio de Janeiro, se destaca no campo da religiosidade pela
emblemática Estátua do Cristo Redentor, um dos principais símbolos nacionais e um dos maiores atrativos turísticos do país
(MOUTINHO-DA-COSTA, 2008). O Dedo do Moleque, uma elevação rochosa no Estado de Goiás, representa um sítio associado
à população quilombola do território Kalunga (MARINHO, 2008) e os montes Roraima e Caburaí, na fronteira entre o Brasil, a Ven-
ezuela e a Guiana, são montanhas sagradas para os povos indígenas que vivem na região (LAURIOLA, 2004; MLYNARZ, 2008;
NOGUEIRA; FALCÃO, 2011).
A Lagoa Encantada dos Negros, situada na Serra da Barriga (AL), também representa um local sagrado para uma
população quilombola, no caso, descendente do Quilombo dos Palmares, o maior e mais importante quilombo formado na
história das Américas. Em 2007, foi implantado um memorial nesse local, em uma iniciativa da Fundação Palmares e Ministério da
Cultura, e criado o Parque Memorial Quilombo dos Palmares - o único parque temático da cultura negra no Brasil. Neste local há
também uma gameleira sagrada (Ficus insipida Willd.), uma árvore considerada como a morada do orixá Irocô, uma divindade
do Candomblé (CORREIA, 2013).
No Estado do Maranhão, diversos locais são retratados pela população como moradas de princesas, reis, sereias e outros
seres encantados. Na Ilha dos Lençóis, no Município de Cururupu, por exemplo, há uma lenda entre as famílias de pescadores
artesanais que vivem nessa região, de que o Rei Dom Sebastião aparece nas dunas nas noites de lua cheia na forma de um
touro encantado. E para a população quilombola da ilha de Alcântara, os denominados “lugares de encantaria” incluem algumas
formações rochosas situadas no alto mar (FERRETTI, M. 2004 e 2008; FERRETTI, S. 2013 e SOUZA-FILHO; ANDRADE, 2012).
As fontes ou nascentes de águas sagradas também são muito significativas no território nacional. Lazzerini e Bonotto
(2014), em uma ampla revisão sobre esse tema, mapearam 102 localidades no Brasil onde existem fontes de águas relacionadas
a crenças, rituais, poderes míticos ou propriedades curativas para povos indígenas, populações tradicionais, religiões de matriz
africana, catolicismo e sincretismos.
São descritas, ainda, no Brasil, várias rotas de peregrinação, como os caminhos da Luz (no Estado de Minas Gerais),
do Sol e da Fé (em São Paulo), das Missões (no Rio Grande do Sul) e dos Passos de Anchieta (no Espírito Santo). De acordo
com Steil e Carneiro (2008), essas rotas têm como origem antigos caminhos religiosos e foram ressignificadas como destinos
turísticos a partir do ano 2000, em uma clara inspiração do mundialmente famoso Caminho de Santiago de Compostela, na divisa
da França com a Espanha, incorporando elementos do que os autores denominaram de “espiritualidade Nova Era”.
Com base no levantamento realizado, pode-se afirmar que os lugares sagrados no Brasil têm sido interpretados na li-
teratura acadêmica principalmente a partir da perspectiva das ciências humanas e sociais, por meio de áreas do conhecimento
como a Geografia, a História, a Antropologia, a Sociologia, a Teologia e a Psicologia Social. A descrição e interpretação dos pro-

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cessos histórico-culturais por meio dos quais os espaços vêm sendo sacralizados e transformados em lugares de manifestações
espirituais constitui a principal dimensão que vem sendo privilegiada nas pesquisas científicas, com um predomínio de aborda-
gens qualitativas. A relação entre lugares sagrados e a atividade turística, a preservação do patrimônio cultural e a proteção da
natureza também são temas que se destacam na interpretação dos SNS no Brasil, notadamente no campo da Geografia Cultural,
especialmente pelo enfoque na relação entre espaço e religião (ROSENDAHL, 1996; CORRÊA; ROSENDAHL, 2004).
A exemplo do Morro do Corcovado e do Monte Roraima, situados em parques nacionais, vários outros sítios naturais
sagrados identificados na bibliografia também estão associados a áreas protegidas legalmente instituídas pelo poder público -
como a Gruta Pedra da Santa, no Parque Estadual Pedra da Boca (PB); o santuário Nossa Senhora da Piedade, no Monumento
Natural Estadual da Serra da Piedade (MG); o Morro do Anhangava, no Parque Estadual da Serra da Baitaca (PR); as cavernas
Terra Ronca I e II, no Parque Estadual do Terra Ronca (GO); as grutas da Macumba e do Feitiço, na Área de Proteção Ambiental
(APA) do Carste da Lagoa Santa (MG) e a Lagoa Encantada, na APA Estadual da Lagoa Encantada e Rio Almada (BA)4.
Esses exemplos reafirmam as informações da literatura internacional sobre sítios naturais sagrados, que indicam haver
uma tendência mundial de que muitos SNS tenham sido incorporados, nas últimas décadas, a áreas oficialmente designadas
pelos governos nacionais para a proteção da natureza (DUDLEY et al., 2005; WILD; MCLEOD, 2008). E, semelhante ao que se
tem debatido no contexto internacional, a relação entre os grupos sociais associados aos SNS e a gestão das áreas protegidas no
Brasil também tem sido permeada por conflitos relacionados ao direito de acesso e uso dos sítios sagrados.
Nesse sentido, problemas decorrentes da realização de romarias religiosas vêm sendo registrados no Parque Estadual
da Serra da Baitaca (PR), no Monumento Natural da Serra da Piedade (MG), no Parque Estadual da Pedra da Boca (PB) e no
Parque Nacional da Floresta da Tijuca. Nessas áreas protegidas, o afluxo de um elevado número de visitantes em um mesmo
período de tempo tem resultado em impactos negativos para a conservação da natureza, sendo mencionados problemas como
a depredação de alguns locais, a propagação de queimadas, a coleta ilegal de espécimes da flora e da fauna e a deposição de
resíduos sólidos.
São relatados também conflitos envolvendo os interesses de diferentes perfis de usuários das áreas protegidas, a exem-
plo de indivíduos que fazem uso do espaço para práticas religiosas - rituais, oferendas, coleta de folhas sagradas - com aqueles
que buscam essas áreas para lazer (FARIA; SANTOS, 2008; SERPA, 1996) ou, ainda, entre grupos de praticantes de distintas
religiões (CORRÊA et al., 2013; MOUTINHO-DA-COSTA, 2008; VIEIRA et al., 1997).
Apesar da literatura sobre os SNS situados em áreas protegidas no Brasil enfocar, prioritariamente, os conflitos socioambi-
entais que permeiam essas situações, algumas vantagens potenciais para a proteção da natureza também são reconhecidas por
alguns autores, que enfatizam a importância de que nas estratégias de conservação da natureza sejam integrados e valorizados
os atributos históricos e culturais (IRVING, 2010). Essa perspectiva pode ser exemplificada pela manifestação de líderes religio-
sos de tradições de matriz africana no caso do Parque Municipal de São Bartolomeu, em Salvador, na Bahia, para quem essa área
é, concomitantemente, “um espaço fundamental para a preservação ambiental” e “um lugar sagrado para o candomblé, área
da prática de rituais e de colheita das plantas necessárias ao culto nos terreiros” (SERPA, 1996, p. 188). É interessante observar,
neste caso, que os problemas para a conservação da natureza (desmatamento, poluição e invasões de terras) são também
retratados pelos atores sociais locais como uma ameaça aos valores sagrados nela representados. E, para o enfrentamento dessa
situação, a parceria entre os usuários religiosos do parque e a gestão pública é reconhecida como fundamental para garantir a
integridade dos seus atributos naturais e culturais (SERPA, 1996).
Considerando a interação entre agências governamentais e os denominados guardiões de sítios sagrados, outra iniciativa
que merece destaque como um caso emblemático na literatura nacional vem sendo implementada no Parque Nacional da Tijuca/
RJ. Essa área protegida, além de estar situada em meio a uma grande metrópole, abrange uma região de extrema relevância
turística, histórica, arqueológica, artística e cultural - o que resulta em uma notável complexidade para a sua gestão. Nessa área,
as evidências de atividades religiosas de origem africana remontam ao século XVIII e os conflitos envolvendo os seus praticantes
e a administração do parque são relatados desde a sua criação (VIEIRA et al., 1997; MOUTINHO-DA-COSTA, 2008).
Para alterar esse quadro e “enfrentar um conflito antigo envolvendo o uso público religioso de áreas naturais protegidas
por lei”, teve início, em 2011, o projeto intitulado Elos da Diversidade, uma parceria entre a Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e a Secretaria de Ambiente, criado com o objetivo de favorecer “o diálogo entre os saberes religiosos e o conhecimento
4
Uma análise mais detalhada da localização dos sítios pode revelar outros SNS situados em áreas protegidas no Brasil.

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402
científico que, por caminhos e olhares diferentes, cuidam e protegem a natureza” (CORRÊA et al., 2013, p. 4).
Assim, pautada em processos educativos dialógicos com o “povo de santo”, essa iniciativa buscou delinear iniciativas da
gestão pública que respeitem e garantam a diversidade das expressões culturais nas áreas protegidas, com foco na instituição
legal de espaços sagrados planejados e geridos coletivamente para atender as demandas de seu público religioso em observân-
cia às necessidades de conservação da natureza (CORRÊA et al., 2013). Entre outros desdobramentos, esse projeto resultou na
constituição do Conselho de guardiões do sagrado e da natureza - formado por lideranças religiosas de matriz africana - e na
implantação de espaços destinados a assegurar aos praticantes áreas adequadas para a promoção de seus rituais e oferendas5.
Assim, os exemplos dos parques de São Bartolomeu e da Floresta da Tijuca ilustram alguns dos desafios e possibili-
dades para a gestão de sítios naturais sagrados em áreas protegidas aliando os interesses dos usuários religiosos aos objetivos
de conservação da natureza. Entretanto, chama a atenção o fato de que a literatura sobre sítios naturais sagrados em áreas
protegidas no Brasil praticamente não menciona as recomendações que vêm sendo debatidas nas últimas décadas em fóruns
e eventos mundiais internacionais sobre essa temática, a exemplo das Diretrizes para administradores de áreas protegidas
sobre sítios naturais sagrados da IUCN (WILD; MCLEOD, 2008). Nesse sentido, é relevante avaliar os possíveis rebatimentos
das resoluções e recomendações internacionais sobre o tema no arcabouço legal nacional.
No âmbito de políticas públicas nacionais, algumas iniciativas para o reconhecimento e salvaguarda de SNS também
têm sido promovidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Brasil/IPHAN, em parceria com organizações
não governamentais, notadamente na região amazônica. As Cachoeiras do Iauaretê (ou das Onças), por exemplo, um lugar
sagrado associado aos mitos de origem de vários povos indígenas dos rios Uapés e Papuri, no Alto Rio Negro, município de
São Gabriel da Cachoeira/AM, foram reconhecidas como patrimônio cultural imaterial brasileiro em 2006. Esse foi o primeiro
processo de salvaguarda de um bem imaterial ligado a um sítio natural no país. E também foi o caso pioneiro de registro de bens
relacionados a povos indígenas - grupo social que não fazia parte do escopo de atuação do IPHAN anteriormente (JAENISCH,
2011; IPHAN, 2008).
Além das Cachoeiras do Iaruaretê, dois outros lugares sagrados para povos indígenas do Alto Xingu, no Mato Grosso
- denominados Sagihengu e Kamukuwaká -, foram tombados como patrimônio cultural do Brasil em 2010. Esses locais estão
associados ao Kwarup, uma cerimônia ritualística compartilhada por nove etnias. Essas iniciativas reafirmam a possibilidade de
aplicação da legislação voltada para a preservação do patrimônio cultural aos sítios naturais sagrados no Brasil, uma tendência
que também tem sido observada no cenário internacional (VERSCHUUREN et al., 2010).
Outra iniciativa de mapeamento e salvaguarda de sítios naturais sagrados que vem se destacando no noroeste amazôni-
co é o Projeto Mapeo de cartografia cultural. Desenvolvido por meio de uma parceria binacional entre o IPHAN, no Brasil, e a
Direção de Patrimônio do Ministério da Cultura da Colômbia, esse levantamento, iniciado em 2009, identificou vários componen-
tes da paisagem que constituem elementos centrais dos sistemas cosmológicos dos povos indígenas da região, associados a um
alto valor cultural e espiritual.
Na região inventariada, foram identificadas várias ameaças aos sítios naturais sagrados advindas principalmente do
desenvolvimento de atividades de mineração e a importância em se respeitar os direitos indígenas e de “considerar suas concep-
ções e modos de vida no desenvolvimento de projetos e na implantação de políticas públicas que incidam sobre seus territórios”
vem também sendo reiterada na literatura (SCOLFARO et al., 2014, p. 66). Essa iniciativa também tem ilustrado que as experiên-
cias de salvaguarda dos sítios sagrados por meio de políticas públicas contribuem para a valorização cultural e a manutenção
dos conhecimentos tradicionais dos grupos sociais a eles associados, respaldando também os processos de garantia de seus
direitos territoriais.
Considerando o debate internacional sobre sítios naturais sagrados, uma série de iniciativas e eventos internacionais vem
promovendo o registro de estudos de caso e a compilação de informações sobre SNS em diversos países do mundo, o que tem
permitido traçar um panorama geral sobre a situação dos sítios sagrados no mundo e embasar a formulação de estratégias para
o seu reconhecimento e proteção6. Chama a atenção o fato de que, em meio a um substancial conjunto de publicações sobre
milhares de SNS em todos os continentes, são raras as referências ao contexto brasileiro.
5
Nesse sentido, o Espaço Sagrado da Curva do S foi concluído no início de 2012. Posteriormente, em 2014, dois outros locais foram inaugurados: a Cachoeira Sagrada
do Rio da Prata, em Campo Grande/RJ - também destinada aos rituais de religiões de matriz africana - e o Espaço Pretos Forros e Covanca, em Jacarepaguá/RJ, para
a prática religiosa evangélica.
6
Unesco, 1998; Lee; Schaff, 2003; Schaff; Lee, 2006; Mallarach; Pappayannis, 2007; Papayannis; Mallarach, 2009 e Mallarach; Papayannis; Väisãnen, 2012.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


403
Os únicos sítios sagrados brasileiros identificados nesse levantamento foram a igreja de Bom Jesus da Lapa, no Estado da
Bahia, no site Places of Peace and Power, e o sistema do Rio Xingu, na Amazônia brasileira, no site do Sacred Land Film Project
- onde a implantação do complexo hidrelétrico de Belo Monte vem afetando vários locais sagrados para os povos indígenas da
região, associados com os seus mitos de origem e de criação do mundo. Há ainda dois estudos registrados nos anais do semi-
nário Sacred Natural Sites: biological and cultural diversity, realizado em 1998 pela UNESCO em Paris/França, que se referem à
religiosidade de alguns grupos sociais, sem associar as suas práticas a sítios sagrados específicos (UNESCO, 1998).
Assim, esse contexto ilustra que, apesar do potencial do território brasileiro para a ocorrência de sítios naturais sagrados,
a inserção nacional no debate mundial sobre a temática é ainda incipiente. Esse quadro reafirma não só a necessidade de diver-
sificar a pesquisa acadêmica sobre o tema no país, como também de divulgar as experiências nacionais nos fóruns mundiais.

Considerações Finais
Buscou-se, nesse artigo, mapear e ilustrar os sítios naturais sagrados do território nacional a partir de um levantamento
exploratório sobre o tema na literatura nacional e internacional. Entretanto, é importante mencionar que as informações sobre
os SNS no Brasil parecem estar dispersas e difusas em estudos de várias áreas de conhecimento e que a busca de informações
sobre o tema por meio dos instrumentos e métodos mais usuais para a pesquisa bibliográfica é dificultada pela ausência de uma
padronização de descritores e palavras-chave. Dessa maneira, um inventário baseado em estratégias diversificadas e uma mul-
tiplicidade de fontes de pesquisa - como sítios eletrônicos da rede mundial de computadores, publicações não científicas, estu-
dos etnográficos e documentos técnicos sobre terras indígenas e áreas protegidas, entre outras - tende a revelar muitos outros
sítios naturais sagrados no Brasil, para além da compilação aqui apresentada. Isso é particularmente pertinente com relação ao
potencial de reconhecimento de SNS vinculados a povos indígenas e outros grupos de populações tradicionais, um enfoque que
parece ser uma lacuna na pesquisa acadêmica nacional sobre o tema.
No Brasil, as iniciativas de salvaguarda de SNS em políticas públicas são ainda pontuais e têm sido delineadas quase
exclusivamente a partir de instrumentos da legislação sobre direitos culturais. Limitada atenção tem sido atribuída ao reconhe-
cimento dos sítios naturais sagrados no âmbito das políticas de proteção da natureza e as informações sobre esse tema no país
ainda são escassas, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Dessa forma, também parece necessário se refletir
sobre as implicações e os desafios que o reconhecimento e a salvaguarda de sítios naturais sagrados podem agregar à gestão
das áreas protegidas no território nacional.
Há de se destacar, também, o papel fundamental da academia no debate crítico e na reflexão sobre essa questão, bem
como para a investigação de casos concretos de SNS em áreas protegidas a partir de uma perspectiva de integração de distintos
campos do conhecimento. A complexidade envolvida nesse debate marca uma série de desafios que devem ser superados para
a implementação de políticas públicas e pode inspirar novas formas de entender a relação entre sociedade e natureza.

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408
SOBREVIVÊNCIA E IDENTIDADE: REALIDADES SOCIOAMBIENTAIS DOS
QUILOMBOLAS DO RIO EREPECURU/CUMINÃ EM ORIXIMINÁ/PA

Rodrigues, Wagner de Oliveira1; Madeira Filho, Wilson2; Thibes, Carolina Weiler3 & Nobre, Bárbara Moreira4

1. Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e doutorando do PPGSD, Universidade
Federal Fluminense, worodrigues@uesc.br 2. Professor da Faculdade de Direito e do PPG em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense, wilsonmadeirafilho@hotmail.com 3. Doutoranda do PPGSD, Universidade Federal Fluminense, Bolsista
Capes, carolinathibes@yahoo.com.br 4 Estudante de Medicina da Universidade Federal Fluminense, barbaramoreiranobre@gmail.com

Resumo
O trabalho é um relato de experiência e, ao mesmo tempo, uma abordagem ampla sobre a realidade socioambiental dos quilom-
bolas de Oriximiná, no Estado do Pará, em específico na região dos Rios Erepecuru/Cuminã, em visita feita em dezembro de
2014. Através de observação participante, relatos de moradores e literatura correlata, a equipe enumera uma série de elementos
que desafiam a presença e a realização de direitos básicos de cidadania aos quilombolas locais, que culminam no testemunho
da festa do Círio da comunidade quilombola Pancada – suscitando novas questões de acordo com a presença/ausência de
agentes externos à população local. As conclusões levam a crer a ausência do Estado como uma forma de isolamento dos
quilombolas que funciona, ao mesmo tempo, como um escudo cultural em que é preservada sua identidade ao um enorme preço
socioambiental que ameaça a sobrevivência e o cotidiano de seus moradores.

Palavras-chave: Amazônia, Territórios Quilombolas, Cidadania, Cultura e Políticas Públicas.

Por que ao longo de um rio? – os Quilombolas de Oriximiná


Na Amazônia brasileira, região de vasta dimensão territorial e etnocultural, logramos estudar uma área sensível de sua
região caracterizada pela predominância de territórios quilombolas que ocupam uma extensão considerável de terras, sua rela-
ção socioambiental com o espaço de sua identidade e o seu quadro de sobrevivência enquanto povo tradicional – resultado de
atividades de extensão desenvolvidas no final de 2014 naquelas terras junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito da Universidade Federal Fluminense, sob a coordenação direta do Prof. Dr. Wilson Madeira Filho. As experiências relata-
das abaixo são apenas uma das tantas que foram objetos de trabalhos acadêmicos, temas de teses e dissertações em curso que
seguem no Laboratório ECOSSOCIAL, localizada dentro da mencionada universidade.1
Em Oriximiná, unidade federativa local situada na região da Calha Norte do Estado do Pará, estão as primeiras áreas
quilombolas tituladas do Brasil – muitas delas ainda em situação de pleito de titulação. Algumas destas terras tituladas estão ao
longo do curso de dois grandes rios que se entrecruzam ao longo de seu leito: o Rio Erepecuru e o Rio Cuminã, afluentes diretos
do Rio Trombetas – este, por sua vez, um dos grandes afluentes do Rio Amazonas.
A visita da equipe não seria completa sem a realização de visitas in loco às comunidades quilombolas objetos do presen-
tes estudo – e de outros espaços com diversos atores sociais envolvidos, como o ICMBio (na unidade de Trombetas), o INCRA
– Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (no escritório regional de Santarém) e na Prefeitura de Oriximiná – já que
a atenção em observar todos os fenômenos ligados à existência, sobrevivência e atividades deflagrariam latentes conflitos socio-
ambientais, muitos deles ainda em estudo pelo nosso laboratório.
As distâncias realmente surpreendem não só por se considerar uma unidade federativa imensa em território (não apenas
por ser considerado o terceiro maior do planeta e o segundo maior do país em dimensão, mas também diante de uma plurali-
dade de vida e interação de diversos povos e territórios tradicionais, considerado por muitos um verdadeiro “município-nação”).
Destarte a presença do Estado no particionamento de territórios, através das áreas de conservação da natureza, terras indígenas
e áreas destinadas à reforma agrária, a presença dos quilombolas na região é reconhecida nacionalmente não só por ser uma

1
As atividades que deram origem a uma série de trabalhos – a qual inclui este – são oriundas do projeto CAJUFF – Centro de Assistência Jurídica da Universidade
Federal Fluminense, com fomento do Programa de Extensão das Universidades Federais (PROEXT/2014) e sob a coordenação do Prof. Dr. Wilson Madeira Filho
(Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


409
das mais antigas mas, também, das mais abrangentes em número de comunidades e agrupamentos espalhados em todo o
município.2
Oriximiná abriga o maior mosaico de áreas protegidas do planeta e é onde se localiza uma das maiores mineradoras
de bauxita existentes (atualmente sob arregimentação da MRN – Mineradora Rio do Norte S/A). Embora seja um município em
franca ascensão no desenvolvimento humano na região ainda convive com um mosaico de diferenças sociais que se esbarram
frontalmente na dinâmica dos diferentes modos de vida de ribeirinhos indígenas, quilombolas e caboclos – todos vivendo de
forma relativamente isolada e com algumas privações em bens essenciais à sobrevivência – como será descrito a seguir.3

Figura 1. Quilombolas em áreas tituladas e não tituladas no Município de Oriximiná. Fonte: Comissão Pró-Índio,
Disponível em: <http://www.quilombo.org.br/#!QuilombosOriximiná/zoom/c1jji/i013rp> acesso em 15.06.2015

O recorte territorial do presente trabalho está lançado no estudo da realidade das comunidades quilombolas à esquerda
da figura acima (Figura 1). Na oportunidade foram visitadas as comunidades de Serrinha, Varre Vento, Boa Vista Cuminã, Jauari,
Araçá, Espírito Santo, São Joaquim e, por fim, Cachoeira Pancada, na parte ainda navegável dos Rios Erepecuru/Cuminã. Todos
fazem parte de um território unido que foi titulado enquanto terras quilombolas em 1998 pelo INCRA e em 2000 pelo ITERPA –
Instituto de Terras do Pará – compreendendo um território de exatos 218.044,2577 hectares.4
2
Há que se considerar, da mesma forma, as unidades de conservação estaduais (Flota do Trombetas – 3.172.978 ha, compreendendo Oriximiná, Óbidos e Alenquer;
Flota do Faro – 613.867 ha., compreendendo Faro e Oriximiná – ambas enquadradas no grupo de uso sustentável; e Grão Pará – 4.243.819 ha., compreendendo os mu-
nicípios de Oriximiná, Óbidos, Alenquer e Monte Alegre, esta em proteção integral e considerada a maior unidade de conservação em florestas tropicais do mundo)
(IMAZON, site) e as áreas indígenas (Nhamundá-Mapuera, abrangendo os Municípios de Oriximiná e Faro, com 8.452 km²; Trombetas-Mapuera, contígua à área
anterior, com 39.704 km² e um perímetro de 1.562 km, abrangendo os municípios de Urucará e Nhamundá – Estado do Amazonas -, Oriximiná e Faro – Estado do Pará
-, e Caroebe e São João da Baliza, no Estado de Roraima; e o Parque Nacional Indígena de Tumucumaque, com 27.000 km², abrangendo os municípios paraenses de
Oriximiná, Almerim, Monte Alegre e Óbidos, sem olvidar as áreas quilombolas e as glebas rurais do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(autarquia federal) situadas a leste nas localidades do BEC e Planalto ALCÁNTARA, 2015).
3
Neste sentido, destaca-se a tese de doutorado efetivada dentro do Programa do PPGSD/UFF de autoria de Leonardo Alejandro Gomide Alcántara (“Território Mi-
nado: Desenvolvimento e Conservação no Vale do Rio Trombetas) que trata diretamente da questão envolvendo outras duas Unidades de Conservação da natureza
lindeiros ao empreendimento acima mencionado (Reserva Biológica do Rio Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera), e que dá um recorte epistêmico maior
ao caso frente a outros quilombos, notadamente do Moura e do Boa Vista, situados no Médio-Rio Trombetas.
4
De acordo com a Comissão Pró-Indio, sete terras quilombolas já têm titulação, onde vivem trinta e duas comunidades quilombolas (localizadas nos municipios de
Oriximiná, Alenquer e Óbidos). Outras trinta e seis comunidades quilombolas (localizadas em Oriximiná, Óbidos, Santarém, Alenquer e Monte Alegre) ainda aguar-
dam pela regularização de suas terras (http://www.quilombo.org.br/#!territorios/c1jji)

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A equipe na oportunidade anotou, através de observação participante e da interação com moradores da região, a rotina
e a realidade de alguns dos conflitos socioambientais existentes, com realce na questão das políticas públicas à oferta nas
comunidades e a presença de atividades socioeconômicas praticadas entre os quilombolas e agentes externos. Foi possível,
ao final da jornada, testemunhar um momento de exercício da fé comunitária dos quilombolas nos eventos ligados ao Círio de
Nossa Senhora da Conceição, ocorridos na comunidade quilombola de Cachoeira Pancada no dia 06 de dezembro de 2014. Em
verdade os quilombolas nestes dois rios atravessam muitas gerações e coincidem, em parte, com a histórica presença de seus
antepassados em todas as áreas tituladas e não-tituladas não só de Oriximiná mas de toda a Amazônia Oriental.5

Iniciando a Jornada: Rumo ao Erepecuru/Cuminã


No dia 05 de dezembro de 2014, pela manhã, a equipe partiu do distrito-sede de Oriximiná em direção ao norte do
município até a comunidade quilombola de Cachoeira Pancada, situada na parte ainda navegável dos Rios Erepecuru/Cuminã
(afluente do Rio Trombetas), último quilombo de toda esta região já titulada pelos órgãos competentes.

Figura 2. Embarcação da equipe ancorada às margens do Rio Erepecuru, na comunidade quilombola de Jauari. Fonte: arquivo pessoal.

Logo no início do encontro entre os Rios Trombetas e Erepecuru/Cuminã está a Comunidade do Serrinha, a primeira
visitada pela equipe. Embora haja uma escola de ensino fundamental e a presença de uma comunidade organizada os seus
moradores relataram à equipe uma série de problemas que acusam a ausência do Estado em necessidades básicas de sobre-
vivência. A primeira delas está associada com o precário acesso ao saneamento básico do local – já que a água é coletada de
poços artesianos com nível de turbidez elevada em alguns meses do ano (tornando-a quase imprópria pra consumo humano) e
não há rede de esgoto e destinação útil do lixo da comunidade, sendo esse incinerado. Esta realidade é praticamente semelhante
em todas as comunidades quilombolas visitadas pela equipe.
Da mesma forma, em nenhuma das comunidades visitadas existe unidade básica de saúde em atividade. Segundo os
moradores, qualquer demanda neste sentido exige o deslocamento fluvial imediato até o distrito-sede – tornando-se ainda mais
5
Os negros quilombolas que vivem nas margens do rio Trombetas e distribuídos no interior de seus lagos, lagoas, canais e igarapés estão neste território há mais
de dois séculos. Sua presença demográfica e econômica data de fins do século XVIII. Nessa época, o Baixo Amazonas integrava-se a zonas produtoras de cacau do
mundo colonial, que teve sua exportação incrementada em função da queda de produção das colônias espanholas. Com a ascensão do cacau na pauta de exportação
colonial do Grão-Pará, geram-se fundos para aquisição de escravos e incorporação de terras para o empreendimento de cultivo desse gênero. Através da fuga, os
escravos buscavam a liberdade e nos quilombos, encontravam acolhida e construíam uma nova vida. Desde essa época, a floresta tem sido o suporte da vida e da
liberdade desse povo. Atualmente, os negros quilombolas de Oriximiná estão organizados em trinta e cinco comunidades cujos moradores estão ligados por uma
extensa rede de parentesco que conecta todos os núcleos de moradia (AZEVEDO et al., 1998, pp.42-47; ANDRADE, 2011, pp.07).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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desgastante a realidade, já que não há transporte público de qualquer nível entre toda a região e as unidades de saúde em ativi-
dade – todas elas situadas em Oriximiná, com exceção das existentes em Porto Trombetas (oferecida apenas aos trabalhadores
da MRN). Na comunidade quilombola de Jauari (Figura 2), local em que a equipe notou uma unidade do Programa Saúde da
Família (PSF), os moradores relataram que nunca houve a presença de um profissional de saúde desde a sua inauguração.
Diante da difícil situação na área de saúde, fica a questão sobre como os moradores da região reagem diante do surgi-
mento de eventuais enfermidades. A equipe constatou que, apesar da negligência do poder público em oferecer serviço básico
de saúde, as comunidades buscam, através do conhecimento tradicional de fitoterápicos, as respostas das doenças que atingem
os seus moradores. Na comunidade quilombola do Espírito Santo, por exemplo, uma das suas moradoras – dona “Bereca” (Ber-
nardina Lima de Souza), a mais idosa do local (com cento e cinco anos de idade), foi a responsável pela transmissão de todo esse
conhecimento para os seus descendentes (Figura 3).

Figura 3. Dona Bereca, matriarca da comunidade quilombola “Espírito Santo”. Fonte: arquivo pessoal.

Os quilombolas, em sua grande maioria, têm a sua atividade econômica associada à coleta da castanha-do-Pará – ativi-
dade sazonal que ocorre nos meses chuvosos – entre dezembro e maio, período chamado de “inverno amazônico”. Nos demais
meses do ano, predomina a cultura da subsistência advinda do uso coletivo da terra e da pesca (O’DWYER, 2002) e, em particu-
lar à região visitada pela equipe, aos recursos pagos por uma empresa que faz a exploração da madeira próximo da área visitada.
A exploração da madeira requer a legalização da área a ser desmatada. Como ainda são escassos os territórios quilombolas já
titulados na região Amazônica (destacando-se Oriximiná como o município com o maior número de áreas tituladas), as territo-
rialidades reconhecidas para povos e comunidades tradicionais são as mais visadas pelos empreendedores. De acordo com a
Comissão Pró-Índio:

Os territórios quilombolas já titulados nessa região apresentam-se como opção bastante atraente
para as empresas madeireiras, uma vez que são constituídos por extensas áreas de floresta e têm
sua situação fundiária regularizada. A comprovação da regularidade fundiária é uma das exigên-
cias da legislação ambiental brasileira para aprovar planos de manejo florestal. Tendo em vista a
grande indefinição de direitos de propriedade na Amazônia tal exigência tem representado um
entrave para a exploração florestal. Diante dessa situação, o setor madeireiro tem buscado áreas
florestais com definição fundiária, como os territórios quilombolas titulados, terras indígenas e as-
sentamentos de reforma agrária (2011, p.269).

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É importante ressaltar as consequências socioambientais existentes para as comunidades quilombolas com este tipo de
prática. Ainda de acordo com a Comissão Pró-Índio, os acordos para a exploração madeireira na região representam sério risco
para a integridade de seus territórios, visto que as entidades representativas dos quilombolas não dispõem de meios jurídicos,
técnicos e ambientais adequados para monitorar os empreendimentos madeireiros (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 2015, site).
Um dos maiores desafios, no aspecto do manejo da biodiversidade situada em terras quilombolas tituladas, é com-
preender essa relação existente entre os quilombolas e os “não-quilombolas” (agentes externos) que se utilizam de áreas titula-
das a eles para a exploração da atividade de extração madeireira. A titulação das terras quilombolas tem uma grande importância
para a entrada do Estado no cotidiano dos seus moradores, mas, ao revés disto, o primeiro a surgir são atividades de exploração
direta da natureza – e a exploração madeireira vem neste viés como uma das primeiras a se inserirem na região.
Em observação feita entre a equipe com moradores locais a exploração madeireira (Figura 4) apresenta um duplo as-
pecto associado à sobrevivência dos quilombolas daquela região: a) a exploração direta não é feita pelo quilombola, mas por
um agente que entra em comum a ele e repassa, em regimes econômicos diferenciados, os lucros da atividade (meio-a-meio,
porcentagem etc); b) o papel da liderança comunitária – neste ponto figurado pelos presidentes das associações remanescentes
de quilombolas da região (são diversos neste sentido em toda a Oriximiná) – é crucial para a celebração de contratos e o primeiro
contato entre o agente externo e a população tradicional que ocupa os quilombos.
E, embora haja organização interna entre os quilombolas, não foi possível no momento verificar, de forma mais precisa,
se: a) a atividade corresponde com planos de manejos ou outros instrumentos legais que permitem, de modo sustentável, a
extração da madeira daquelas terras; e b) a distribuição dos lucros com a extração de madeira é feita de modo justo a todos os
membros da comunidade, evidenciando possíveis racismos ambientais.
Balizando estas duas hipóteses – que vão muito além do campo empírico vivido pela equipe tendo em vista que se trata
de delicadíssima questão de viabilidade da sua sobrevivência – a Comissão Pró-Índio também fez um relato da dinâmica destas
relações econômicas no ecossistema local que pode, inclusive, pôr sérios e diversos riscos às lideranças e moradores quilom-
bolas daquela região, sem prejuízo da ação dos órgãos ambientais responsáveis nesta questão.

Até 2011, os quilombolas em Oriximiná vinham recusando as ofertas apresentadas pelas diversas
empresas madeireiras. No entanto, em fevereiro de 2011, as associações proprietárias dos ter-
ritórios Trombetas (ACORQAT) e Erepecuru (ACORQE)6 firmaram acordos para exploração de
madeira em seu território com a Construtora Medeiros Ambiental Ltda. Conforme depoimentos
dos quilombolas, a empresa apresentou como estimativa de renda mensal para cada família du-
rante a vigência do contrato em torno R$ 1.800,00 na TQ [território quilombola] Trombetas e de R$
3.000,00 para as famílias da TQ Erepecuru.
Em agosto de 2012, a Secretaria do Meio Ambiente do Pará concedeu a licença ambiental para a explora-
ção florestal. A área autorizada pela SEMA para manejo florestal até 2017 corresponde 83% da dimensão
total da TQ Erepecuru e 75% da dimensão total da TQ Trombetas (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 2015, site).

Ainda segundo a Comissão Pró-Índio, os contratos foram assinados por três integrantes das coordenações de cada
associação quilombola (sem menção a se houve assembléia anterior entre os quilombolas a respeito do tratado) com a Constru-
tora Medeiros Ambiental Ltda. Estes contratos são de duas naturezas: a) uma do tipo “parceria para elaboração, exploração e
execução de projeto de manejo florestal sustentável com aproveitamento de resíduos; b) e outra do tipo “de compra e venda”,
ambos muito semelhantes no seu teor e com prazo de cinco anos (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 2011, p.28).7

6
(ACORQAT — Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo Bacabal, Arancuan de Cima, Arancuan do Meio, Arancuan de Baixo, Serrinha, Terra
Preta II e Jarauacá) e Erepecuru (ACORQE — Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo Pancada, Araçá, Espírito Santo, Jauari, Varre Vento,
Jarauacá e Acapu).
7
“Os contratos especificam que ‘após a conclusão do Inventário 100% (cem por cento), as partes definirão as espécies madeireiras que não serão manejadas’. Os
contratos de ‘parceria’ prevêem que na TQ Trombetas o projeto de manejo será implantado em talhões anuais de 3.733 hectares e na TQ Erepecuru em talhões
anuais de 7.410 hectares. Isso significa que em cinco anos a área de extração de madeira atingirá 23% da TQ Trombetas e 17% da TQ Erepecuru. Segundo o acordo,
a empresa arcará com os custos da operação: as despesas para obtenção da documentação necessária junto aos órgãos governamentais para aprovação do projeto
de manejo florestal; as relativas à contratação de técnicos e encargos; e outras inerentes a elaboração, exploração, execução do projeto de manejo florestal — com
‘exceção dos gastos com aproveitamento e transporte dos resíduos’. Com relação ao pagamento, os contratos ‘de parceria’ determinam que ‘50% (cinquenta por
cento) do volume, das espécies madeireiras autorizadas pela SEMA/PA, extraído no PMFS será repassado’ para as associações e os outros 50% para a empresa como
‘remuneração pelos serviços realizados’. No caso do aproveitamento dos resíduos florestais, o acordo prevê que a meação será feita após as deduções das despesas
para obtenção dos produtos, exceto as despesas com instalação dos fornos de carvoarias que serão por conta da empresa.” (COMISSÃO PRÓ-INDIO, 2011, p. 28).

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Figura 4. Área de desemboque da madeira explorada na terra quilombola (TQ) Erepecuru, pela Construtora “Medeiros Ambiental LTDA”.
Fonte: arquivo pessoal.

O estudo merece maiores detalhes sobre a questão e um trato desta dimensão merece uma pesquisa mais aprofundada
do quadro. Porém, se concentradas nas duas hipóteses acima, a possibilidade de abrangência do quadro da exploração ma-
deireira naquela região pode – de lado a lado – propor tanto formas sustentáveis de manejo desta atividade quanto a proposição
de formas de exercício da sociobiodiversidade que contemplem atividades econômicas preservando a floresta em pé e a so-
brevivência real dos quilombolas residentes naquela região. O mais importante, neste sentido, é concentrar a perspectiva de
cada ator social ali presente – quilombola ou não-quilombola – e o exercício das suas atividades de identidade, sobrevivência e
exercício econômico da floresta sem desconhecer as responsabilidades do Estado e, sobretudo, de todos os que (junto deste)
tem o compromisso de preservar as riquezas daquela floresta.

“Gênese Quilombola” através das Águas e o Círio de Pancada


As comunidades quilombolas da região por onde a equipe passou são cercadas de profunda religiosidade e histórias que
remetem a lendas próprias do lugar. Na trajetória entre as comunidades do Espírito Santo e a comunidade de Cachoeira Pancada
foi-nos mostrada uma grande loca de pedra situada à margem direita do rio, para quem sobe à última comunidade quilombola.
Um dos tripulantes do barco – Sr. Edinaldo (conhecido como Didi) – contou que a ocupação dos quilombolas na região aconte-
ceu após a vazante do rio em seguida à fuga de uma cobra grande que habitava as profundezas das águas. Segundo seu relato:

“(...) nessa área aqui havia uma cobra grande; aí ela foi embora e a água [antes] ficava lá em
cima, nunca vazava; quando [a cobra] foi embora daqui, aí vazou e o rio ficou assim seco, aí os
antepassados vinham pra cá fazer pescaria, moravam aqui embaixo” (Relato de Didi à equipe).

A respeito desta lenda há um profundo significado cultural ligando a ocupação das áreas do Baixo Amazonas com histórias
de cobras e animais que impediriam a chegada dos negros fugidos de Santarém para mais além do interior. Segundo Eliane
Cantarino O’Dwyer histórias assim são contadas para retratar os relatos de fuga que mesclam eventos fragmentados com lendas
e narrativas a respeito da ocupação dos primeiros habitantes da região do Erepecuru/Cuminã, já acusadas por antropólogos
franceses que desbravaram a região no início do Século XX (2002, p.267).
Em essência pode-se notar uma verdadeira gênese – não no aspecto da mitologia cristã, embora fossem todos católicos

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– mas no nascimento de uma identidade tradicional que acompanhará, até os dias de hoje, a realização do sentimento de ser um
quilombola. Ainda hoje, nas viagens feitas com lideranças comunitárias rios Erepecuru/Cuminã acima, o sentimento de perten-
cimento ao local faz com que a emoção venha à tona e se espalhe entre todos como um amor próprio ao local – conquistado e
afirmado diariamente por sua cultura quilombola e sua relação socioambiental com a terra que nasceram e cresceram.
Assim, associando a lenda do surgimento dos primeiros quilombos da região com a fé católica, um sentimento de per-
tencimento acompanha outro – o de relativo isolamento das comunidades locais. Tal isolamento não pode ser entendido pura
e unicamente como uma forma de segregação socioespacial patrocinada pelo Estado, mas deve ser compreendida de forma
holística na forma de relação dos quilombolas com um sentimento de autonomia político-cultural sobre seu território. A forma de
exercício da sua religiosidade faz com que a nota de identidade tradicional seja ainda mais forte quando os próprios moradores
são os patrocinadores da fé em todas as comunidades – não há padre ou diácono ou, sequer, liderança católica externa na região.
E, diante de um evento tradicional em todo o Norte do Brasil – como é o caso dos Círios – fica ainda mais expressiva a sua forma
independente e própria de afirmar (por meio da fé) a sua identidade quilombola dentro da própria casa.
Na oportunidade a equipe pôde testemunhar os preparativos de um dos círios que ocorrem entre as comunidades
quilombolas de Oriximiná – coincidentemente na região dos rios Erepecuru/Cuminã. A Comunidade de Cachoeira Pancada,
última onde fica uma longa corredeira d’água de igual nome, e os preparativos da festa do Círio de Nossa Senhora da Conceição
que ocorreria já no entardecer do sábado e que seguiria com diversos festejos ao longo deste final de semana, foi o último estágio
de nossa presença naquelas terras (Figura 5).
As festas religiosas – em especial, as paraenses – consistentes nos chamados “círios” envolvem um sincretismo poderoso
entre os eventos religiosos e “profanos” ao mesmo tempo em que congrega a comunidade nos laços entre as águas e os que
delas vivem e se sustentam, se locomovem e se comunicam. Em Oriximiná a existência de um grande Círio – o de Santo Antônio,
que geralmente ocorre durante as duas primeiras semanas do mês de agosto – não anula a realização de outros círios em que,
independente do elemento de fé (geralmente associada a santos ou padroeiros da Igreja Católica), unem e reúnem membros
distantes e vizinhos das comunidades ribeirinhas em momentos de louvação e interação étnico-cultural sobre elementos dentro
e fora da religiosidade local.
O que ocorre em Cachoeira Pancada tem a mesma ligação religiosa com o evento do Círio de Santarém, em que a pa-
droeira é a mesma – Nossa Senha da Conceição – e a festa ocorre sob o mesmo significado. Se tal coincidência religiosa está
afeta aos escravos fugidos de Santarém, é uma dúvida ainda sem resposta. Não à toa – como em todo o Pará – o Círio é sinônimo
“(...) de mesa farta, de família reunida ao redor do altar e na cidade há uma atmosfera de congraçamento”, destacando ainda
que “(...) o povo participante das procissões é, simbolicamente, uma grande família, reunida em torno da mãe, da padroeira”
(SANTOS, 2013, p. 268).
Sem prejuízo de uma (dura) realidade esquecida no momento dos festejos, “(...) os problemas e as dificuldades do
cotidiano são, por hora, mascarados ou esquecidos, pois a população da cidade aparentemente não teme um colapso, embora
a população se multiplique em ruas estreitas, esburacadas em meio ao calor nos dias de procissão” (288). Embora sem um
representante oficial da Igreja Católica em Cachoeira Pancada isto não anula a singular importância e impacto cultural na vida e
na rotina de seus moradores que, como nos grandes Círios, se preparam, como uma grande família, para preparar a procissão,
receber a imagem da santa e cotejar, ritualmente, todos os eventos sacros e profanos envolvidos neste ensejo.
As festividades tiveram início justamente no momento em que a Santa saiu de uma casa a meio quilômetro da margem
direita do rio, em procissão feita por alguns moradores. Ao chegar na beira do rio, a imagem foi carregada numa rabeta condu-
zida por outro morador e, enquanto ela passava, os saquinhos com velas acesas eram soltos no curso das águas, produzindo um
efeito único de cores e luzes na travessia da imagem da santa.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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Figura 5. Preparação dos saquinhos coloridos que, mais à noite, iluminariam as águas na passagem da imagem da santa no Rio Erepecuru.
Fonte: arquivo pessoal.

Logo após cruzar o rio, a imagem da Santa foi recebida por uma liderança local que a acomodou num altar ornamentado
especialmente para o evento religioso no galpão da comunidade, onde foi feita uma celebração litúrgica por uma liderança
quilombola (Figura 6); a seguir, o altar foi substituído por caixas potentes de som que reproduziram músicas regionais e danças
por toda a noite culminando o evento, no dia seguinte, com um churrasco comunitário envolvendo a todos os presentes. A comu-
nidade teve o apoio de uma ONG paulista (o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola - IMAFLORA) que auxiliou
em alguns custos dos festejos e teve, entre a celebração e o momento profano, um momento de divulgar seus trabalhos desen-
volvidos entre os quilombolas daquela região em breves minutos.

Figura 6. Altar católico preparado para a chegada da santa e a realização da celebração litúrgica. Fonte: arquivo pessoal.

Dentre tais trabalhos foi mencionado, na presença de todos, o projeto “Florestas de Valor” – desenvolvida na região há
três anos – que incluem, segundo o seu relatório anual, atividades que fomentam novos mercados para o extrativismo regional,

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relações comerciais éticas com as comunidades locais e o fortalecimento de lideranças locais em arenas de representação
política. Segundo a ONG paulista trata-se de uma alternativa de resgate da cidadania e da identidade cultural, através de ações
que representem uma sustentabilidade visível e uma perspectiva de empoderamento social inserida na vida dos quilombolas ali
residentes, retratados em seu relatório anual como uma das atividades desenvolvidas país afora com este enfoque (IMAFLORA,
2014).

Algumas Percepções destes Quilombolas para Além das Águas...


O que esperar das práticas socioeconômicas e culturais dos quilombolas do Rio Erepecuru/Cuminã com a titulação das
terras e, mais recentemente, com as relações com o setor privado e o terceiro setor? E o que dizer sobre a dialética entre o Estado
e os quilombolas no tocante à sua presença institucional? Em que nível o relativo isolamento dos quilombolas não estaria mais
para uma preservação de seus interesses enquanto comunidade tradicional do que das dificuldades de sobrevivência de sua
população? Todas estas respostas – e novas questões a respeito daquela belíssima região – vai além da questão sobre a gênese
daquela comunidade tradicional e sua afirmação identitária naquele território.
A equipe percebe que é necessário um aprofundamento da ciência sobre as relações políticas que estão por trás da
conservação daquela sociobiodiversidade por meio de terras tradicionais. O isolamento e, ao mesmo tempo, as proximidades
estratégicas entre quilombolas e não-quilombolas (principalmente de natureza econômica) não são consequências, mas podem
ser propositais. Claro que soluções socioambientais visando a preservação da natureza e o manejo sustentável das riquezas ali
encontradas é fundamental – e, neste aspecto, o empoderamento destas comunidades (para além de suas lideranças) é funda-
mental para escolhas mais concretas sobre que modos de sobrevivência todos desejam em suas terras.
Pode-se dizer que as atividades desenvolvidas pelo IMAFLORA são um início de uma série de ações econômicas e soci-
ais sustentáveis que devem se estender ao próprio Estado, através de uma intersetorialidade necessária capitaneada pelo INCRA
como a entidade que titula as terras – mas, até que ponto isto é suficiente?
De qualquer modo um conceito de preservação da identidade e da sobrevivência quilombola (ou de qualquer povo e
comunidade tradicional) deve perpassar, segundo art. 7º da Convenção da Organização Internacional do Trabalho – ratificado
no Brasil pelo Decreto n. 5.051, de 19.04.2004 – o direito às comunidades tradicionais de escolher suas prioridades de desen-
volvimento e de controlar o seu próprio desenvolvimento econômico social e cultural. Na esteira da realidade do Erepecuru/
Cuminã pode significar, dentre outras medidas, o empoderamento social de seus moradores e a autoanálise das atividades de
sobrevivência para além das vozes de suas lideranças locais – sendo daí o ponto de partida para a evidenciação absoluta de
seus conflitos socioambientais existentes.

Referências
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COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. Terras Quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São
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DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1996.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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O’DWYER, E. C. Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá. In: O’DWYER, E. C. (org.). Quilombos: identidade ét-
nica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 255-280.

HERCULANO, S.; PACHECO, T. Introdução: “Racismo Ambiental”, o que é isso?. In: HERCULANO, S.; PACHECO, T. (orgs.).
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INSTITUTO DE MANEJO E CERTIFICAÇÃO FLORESTAL E AGRÍCOLA. Relatório Anual 2014. Disponível em: <http://www.
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MELLO-THÉRY, N. A. Território e Gestão Ambiental na Amazônia terras públicas e os dilemas do Estado. São Paulo,
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SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos – proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Saulo: Peirópo-
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SANTOS, I. S. Festa de Nossa Senhora da Conceição através da Revista “Programa da Festa”. Revista História e Cultura,
Franca/SP, v.2, n.2, p. 266-288, 2013.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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APONTAMENTOS PARA A ELABORACAO DE UMA POLÍTICA SOCIOAMBIENTAL
PARA AS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO NO
ALTO RIO TROMBETAS E EM SEU ENTORNO

Madeira Filho, Wilson1; Ribeiro, Ana Maria Motta; Simon, Alba2; Alcântara, Leonardo; Rodrigues, Wagner de Oliveira3;
Thibes, Carolina Weiler4; Costa, Rodoldo Bezerra de Menezes Lobato da5; Rocco, Rogério & Souza, Marcelino Conti

1. PPG em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, wilsonmadeirafilho@hotmail.com


2. Universidade Federal Fluminense 3. PPG em Sociologia e Direito - Universidade Federal Fluminense,
worodrigues@uesc.br 4. Universidade Federal Fluminense 3. PPG em Sociologia e Direito - Universidade Federal Fluminense,
carolinathibes@yahoo.com.br 5. Universidade Federal Fluminense, rodolfolobato@hotmail.com

Resumo
Os quilombos do Rio Trombetas, dentre as quais se situa Boa Vista, a primeira comunidade de remanescente de quilombos
reconhecida no Brasil, apresentam novas configurações e desafios. A partir dos trabalhos para criar condições e estabelecer um
Laboratório de Justiça Ambiental junto ao campus avançado da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Oriximiná (PA), os
pesquisadores/autores, apontam elementos na etnografia realizada entre outubro e dezembro de 2014 para colaborar nesse de-
bate. Formas de associação, conflitos internos e configurações culturais se conjugam às intervenções institucionais do poder pú-
blico municipal (com avanços na estrutura educacional, baixo impacto no atendimento à saúde e iniciativas na área do turismo),
estadual (com duas unidades de conservação) e federais (com outras duas unidades de conservação no território). Podemos
identificar, também, a atuação de ONGs, do Ministério Púbico e das universidades em resposta à pressão causada por iniciativas
empresariais privadas (Mineradora Rio do Norte) e públicas (a proposta de construção da Hidrelétrica de Cachoeira Porteira). A
atuação na defesa de direitos de populações tradicionais e vulnerabilizadas, assim como a consecução de conquistas coletivas
implica em atuações sistemáticas, onde a pesquisa e a extensão universitárias possuem papel crucial, ampliando a tecnologia
democrática aplicada nos casos concretos.

Palavras-chave: Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais, Unidades de Conservação, Justiça Ambiental, Conflitos Socio-
ambientais.

Introdução
Com o desafio de estruturar o Centro de Assistência Jurídica e o Laboratório de Justiça Ambiental na Unidade Avançada
José Veríssimo da Universidade Federal Fluminense em Oriximiná, uma equipe composta por professores, estudantes e pesqui-
sadores visitou nos meses de outubro a dezembro de 2014 algumas comunidades do Rio Trombetas (Serrinha, Boa Vista, Moura,
Último Quilombo, Nova Esperança, Jamari, Curuça, Mãe Cué, Tapagem, Abuí e Cacheira Porteira) numa expedição de barco a
partir de projeto PROEXT do Ministério da Educação, executado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense
(UFF) em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Tínhamos como objetivo prestar uma asses-
soria jurídica às demandas coletivas e fazer um mapeamento dos conflitos socioambientais. A equipe, multidisciplinar, contava
com as mais diversas formações (direito, biologia, letras, ciências sociais) e, mais importante, com um enfoque que não vislum-
brava uma perspectiva unicamente científica, mas com o desafio de estabelecer vínculos e espaços de construção coletiva das
mais diversas perspectivas dos conflitos socioambientais identificados no Rio Trombetas.1
Para tal atendíamos, também, como fruto de conversas prévias, a uma demanda da Defensoria Pública do Estado do Pará
que coincidia com expectativas do Ministério Público Federal nesta unidade da federação sobre uma possível consulta futura

1
Essa operação contou, além dos autores, com a seguinte equipe: Juliana Limongi Vita Santos (Graduanda Faculdade de Direito UFF), Camila Aguiar Lins do Nas-
cimento (Funcionária técnico-administrativo da UFF e Graduanda em Direito na UFF), Rodrigo Vilhena Herdy Afonso (Funcionário técnico-administrativo da UFF,
então graduando em Direito na UFF e atualmente Mestrando do PPGSD-UFF), Isabel Regina da Cruz Caetano da Silva (então concluindo Ciências Sociais na UFF
e atualmente Mestranda do PPGSD, bolsista Capes), Maria Morena Pinto Marques Farias (à época concluindo a graduação em Ciências Sociais na UFF, atualmente
Mestranda do CPDA-UFRRJ, bolsista Capes), Thayla Regina Frazão de Assumpção (Graduanda em Ciências Sociais na UFF), Sherazade Tammela Madeira (Grad-
uanda em Letras na UFF) e Jeisse Alvarez (Graduanda em Ciências Sociais na UFF).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


419
às comunidades quilombolas no Rio Trombetas diante do aumento da área de exploração mineral da bauxita pela MRN (Minera-
ção Rio do Norte), conforme estudos também realizados por Alcântara & Madeira (2011). Um aumento da área de mineração tra-
zia, consigo, uma série de reconfigurações num cenário de conflitos socioambientais e, por conseguinte, tínhamos o desafio de,
enquanto Universidade, dar visibilidade às populações humanas - e não humanas - que passariam a estar expostas pelo grande
empreendimento. Formas de associação, conflitos internos e configurações culturais se conjugam às intervenções institucionais
do poder público municipal (com avanços na estrutura educacional, baixo impacto no atendimento à saúde e iniciativas na área
do turismo), estadual (com duas unidades de conservação) e federal (com outras duas unidades de conservação no território).

A questão quilombola
A garantia do direito à regularização de domínio das terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos foi contem-
plada pela Constituição da República de 1988, em seu Ato das Disposições Constituições Transitórias2. Tal preceito representou
a juridicização de um ambicioso projeto de reforma social. A Constituição lançou mão de mecanismo do estado de bem-estar
que se multiplicou na segunda metade do século XX: o amplo reconhecimento de direitos, somando às liberdades individuais os
direitos sociais e coletivos3.
Todo este panorama exige o grande desafio de sua concretização, o de realizar materialmente o que foi reconhecido de
maneira formal. Há que se perceber o grau de resistência e dificuldade que este programa constitucional se põe a enfrentar.
O texto constitucional não detalha e esmiúça a maneira como de dará a titulação das terras quilombolas. Por conseguinte, esta
empreitada vem sendo enfrentada por disciplina infraconstitucional.
Foram elaborados decretos federais para disciplinar os procedimentos de aplicação da matéria constitucional relativa aos
direitos étnicos dos remanescentes de quilombos, sendo os principais deles o Decreto 4.887/034, que regulamenta o procedi-
mento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas, e o Decreto 6.040/07, que
institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais5.
O foco temático que permeia o presente trabalho, alicerçado no referido artigo 68 do ADCT na Constituição da República
de 1988, debruça-se sobre o direito à terra das comunidades quilombolas localizadas no município de Oriximiná/PA, às margens
do Rio Trombetas, um dos mais importantes afluentes do Amazonas. Pretende-se, com tal foco, identificar os impasses/entraves
da propriedade da terra (ou a concessão de direito de uso) das comunidades quilombolas, do Rio Trombetas, localizadas no
município de Oriximiná/PA, seus contornos e especificidades, modos de vivência peculiares desse intenso “campo de estudo”.
Oriximiná, importante polo mineral, é o segundo maior município do Estado do Pará, possui uma área de 107.604,4 km²,
só superado pelo município de Altamira (161.445,91 km²) em extensão territorial6. O principal rio do Oriximiná é o Trombetas7,
que nasce no norte do município, percorre todo ele de norte para o sul. O município está situado na Calha Norte do Pará, região
que abriga o maior mosaico de áreas protegidas do mundo, que incluem 12,8 milhões de hectares de unidades de conservação
estaduais, 1,3 milhão de hectares de unidades de conservação federais, 7,2 milhões de Terras Indígenas (BANDEIRA et al., 2010,
p. 2) (Figura 1).

2
Art. 68 - Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-
lhes os títulos respectivos.
3
O constituinte rejeitou a constituição sintética, apenas da liberdade negativa, conferindo função de garantia à Constituição. Trata-se de constituição dirigente que se
contrapôs a nossa cultura jurídica positivista e privatista.
4
Este diploma normativo é objeto de ação declaratória de inconstitucionalidade (Adin) no STF, suspenso em face de pedido de vista.
5
Em termos normativos, podemos identificar que os Estados do Espírito Santo, Pará, Piauí, Rio Grande do Sul e São Paulo confeccionaram leis próprias para disci-
plinar a maneira como se dará a titulação. Especificamente para a pesquisa em tela, nos importa o quadro paraense.
6
Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/areaterritorial, Acesso em 22 junho de 2010.
7
São afluentes do Trombetas: os rios Turuna, Inambu ou Cachorro e o extenso Mapuera, pela margem direita; pela margem esquerda, o rio Cuminá ou Paru do
Oeste ou Erepecuru, que é o afluente mais significativo e que serve de limite natural leste, entre os municípios de Oriximiná e Óbidos, pertencendo a Oriximiná seus
afluentes pela margem direita.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
420
Figura 1. Município de Oriximiná e fronteiras municipais, estaduais e nacionais.
Fonte: <http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1533189>

Oriximiná é abundante em recursos naturais, com grande número de lagos, tabuleiros e cachoeiras. E contêm, junta-
mente com o município de Faro, a área indígena Nhamundá-Mapuera, com 845.400 ha. (8.454 Km2). Aliás, o município é um
mosaico de comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas, lá ocorreu a primeira titulação de terra quilombola do país, na
comunidade Boa Vista, em 1995. Somado ao fato de possuir em seu domínio unidades de conservação, como a FLONA (Floresta
Nacional) Saracá Taquera e a REBIO (Reserva Biológica) Trombetas, temos neste quadro um imenso emaranhado na territoriali-
dade no município. Esse cenário ainda é complementado pela atuação da empresa MRN (Mineração Rio do Norte).
Pautada na atuação como representante das comunidades quilombolas, temos a Associação dos Remanescentes Quilom-
bolas do Município de Oriximiná (ARQMO), que desde 1989 articula os quilombolas, constando atualmente com aproximada-
mente oito mil membros. Há ainda, diversas outras associações e cooperativas, destacadamente: a Associação dos Moradores
da Comunidade Quilombos de Cachoeira Porteira (AMOCREC), a Associação Mãe Domingas, a Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombolas (ACRQ), a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo da Área Trombetas
(ACORQAT), a Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade Água Fria (ACRQAF) e a Cooperativa Agro-
pecuária dos Produtores do Lago Sapucuá (COOPERPLASA). Do rio Erepecuru, tem-se a Associação das Comunidades Rema-
nescentes de Quilombo do Erepecuru (ACORQE) e a Cooperativa do Quilombo (CEQMO). Já do rio Nhamundá, tem-se a As-
sociação das Comunidades das Glebas Trombetas e Sapucuá (ACOMTAGS).
Para compreensão desse cenário, tem-se que a noção de território para essas populações possui singularidades que de-
vem ser percebidas8. Trata-se de um complexo processo de territorialização, em que a própria noção de identidade está de certa
forma associada ao rompimento de sua noção estanque, pois, “o sentido coletivo destas autodefinições emergentes impôs uma
noção de identidade à qual correspondem territorialidades específicas, cujas fronteiras estão sendo socialmente construídas e
nem sempre coincidem com as áreas oficialmente definidas como reservadas” (ALMEIDA, 2004, p. 45).
Percebe-se um ordenamento espacial diferenciado. Na dinâmica de organização tradicional, os recursos explorados por
uma unidade familiar não ficam restritos espacialmente a esta área, podendo sobrepor-se, por vezes, às vizinhas. Isso deve ser
traduzido na fórmula de que os rígidos limites de uso e propriedade, individuais, não correspondem a esta realidade (CUNHA,
2011, p. 14). Os limites das áreas de uso familiar, como dito, não obedecem a um critério rígido de demarcação. Na maior parte
das vezes, quando os têm, os comunitários seguem limites naturais, como o tronco de uma árvore, uma estaca, um curso d´água,
entre outros (Figura 2).

8
Ver também O`Dwyer (1999); e Trecanni (2006).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


421
Figura 2. Mapa desenhado a partir de informações de lideranças locais na Unidade Avançada José Veríssimo sobre as comunidades
quilombolas no médio e alto Rio Trombetas e Rio Erepucuru-Cuminã. Fonte: Mapa desenhado com caneta pilot em quadro em sala de
aula em outubro de 2014 por Wilson Madeira Filho e Wagner Oliveira, em seguida fotografado.

As várias configurações sociais concebidas por populações específicas que não se amoldam nesta configuração legal
prevalente devem comportar um olhar mais cuidadoso e peculiar, permitindo o surgimento de novas nuances e contornos para
a própria noção do direito real de propriedade. O Decreto nº 4.887/2003 determina que o título de propriedade das terras de
quilombo será coletivo e outorgado em nome da associação da comunidade. Tal título será pró-indiviso, com cláusulas de ina-
lienabilidade, de imprescritibilidade e de impenhorabilidade. Isto quer dizer, em “bom português”, que a terra não poderá ser
dividida, vendida, loteada, arrendada ou penhorada. Isso aponta, de certa maneira, para “uma forma de conceber o espaço e
interagir com os recursos naturais de modo completamente distinto daquele utilizado pelas sociedades estruturadas na lógica
da propriedade” (ALLEGRETTI, 1994, p.17).

Diário de bordo
Nas diversas reuniões que antecederam o trabalho de campo com as comunidades tradicionais no Rio Trombetas, nossa
equipe esteve, dentre outros, com representantes da Defensoria Pública do Estado do Pará, em Belém PA, com funcionários do
INCRA em Santarém PA, com membros do Ministério Público Federal, em Santarém PA, e com equipe da fundação Pró-Índio em
Seminário realizado em Oriximiná PA. Como elemento comum a todos esses encontros e reuniões, pode-se destacar a intenção
de auxiliar a fortalecer o discurso identitário e os modelos representativos dos povos e comunidades tradicionais, considerando-
os ameaçados diante de um modelo desenvolvimentista externalizado por um consórcio de ações públicas e privadas, destaca-
damente, na área específica, no rio Trombetas em Oriximiná, a forte presença da mineração, com a ampliação dos platôs de
bauxita da Mineradora Rio Norte (MRN), e a retomada do projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Cachoeira Porteira, em
território de interseção de comunidades quilombolas e indígenas. Outros temas presentes, e não menos graves, seriam o avanço
da fronteira agrícola do agronegócio e a paulatina instalação de um turismo predatório, tendo como base a pesca esportiva.
Entrementes, ocorrera, no final de 2013, oficina no quilombo Mãe Cué, reunindo representantes do Ministério Público
Federal (MPF) e lideranças quilombolas, justamente para tratar de possível acordo a ser estabelecido entre aquelas lideranças
e setores administrativos da MRN no intuito de garantir a ampliação dos platôs de bauxita, adentrando terras quilombolas titu-
ladas inclusive. A orientação do MPF teria se dado no sentido de não realizar acordo sem antes de realizar ampla consulta às
demais comunidades quilombolas daquele território, preferencialmente encaminhando a elaboração de um documento base,
nos moldes do Protocolo de Consulta e Consentimento Wajãpi, elaborado pelo Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina – e pela
Associação Wajãpi Terra, Ambiente e Cultura. As comunidades indígenas Wajãpi, que vivem em territórios no Amapá, teriam sido
as primeiras a elaborar seu próprio protocolo, no marco da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que
estabelece a obrigação do Estado em consultar previamente os povos e comunidades tradicionais sobre decisões que possam
afetar seus modos de vida (RCA, 2014).
Conforme conversa da equipe da UFF com os procuradores do MPF, havia sido tirada a decisão de que a Fundação Pal-
mares procederia à consulta junto a todas as comunidades quilombolas em Oriximiná. Não obstante uma lista com cerca de 20

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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assinaturas fora levada ao MPF, com representações apenas das comunidades quilombolas diretamente afetadas pelas amplia-
ções dos platôs, desejando pactuar com a MRN, em condições mínimas, que representariam a contratação de oito indivíduos de
cada uma daquelas comunidades durante o período da obra de ampliação. O MPF não acatou a lista, em razão dessa contrariar
as decisões da oficina realizada em Mãe Cué, por não constar nenhum tipo de consulta direta à população e por contemplar de
maneira satisfatória a OIT 169.
Durante nossas visitas a ARQMO e à comunidade Mãe Cué foi possível aferir a veracidade dessa situação. Também du-
rante o Seminário com quilombolas e indígenas promovido pela Fundação Pró-Índio, em Oriximiná, em novembro de 2014, onde
participamos, também o tema do assédio da MRN, assim como a presença de estudos para a retomada do projeto de construção
da Usina Hidrelétrica de Cachoeira Porteira, foram pontos ressaltados pelos representantes das comunidades, que apresenta-
ram visões diferenciadas sobre ambas as obras de forte impacto social e ambiental, com posições claramente contrárias, que
clamavam pela titulação das terras ainda não tituladas e pela ponderada regulamentação dos usos dos recursos naturais, assim
como com outras posições favoráveis aos empreendimentos, por ver neles oportunidades de emprego e renda.
Nesse sentido, imbuída dessas informações, durante duas semanas, na embarcação Comandante Max II, a equipe da
UFF visitou diversas comunidades de quilombo no Rio Trombetas. Seguem-se alguns registros centrais.

Dia 30 de novembro de 2014 - Quilombo da Serrinha


A visita ao quilombo da serrinha havia sido solicitada por lideranças locais e por intermediação de juiz de direito em
Oriximiná, que solicitara a UFF auxiliar a aclarar a questão relativa à consulta que seria realizada em 2015. Encontramos Fran-
cinaldo, vice-coordenador do quilombo, e que preparara reunião na escola local, que estava cheia. Os maiores problemas res-
saltados foram a futura barragem para instalação da hidrelétrica, e o temor de que afetasse a pesca, o turismo pesqueiro que já
demonstrava aspectos predatórios, e o Linhão de energia – torres de energia que abasteciam a MRN – mas não beneficiavam as
comunidades. “Dizem que aqui é o local mais rico do Brasil”, rematou um dos presentes “e esta situação dos quilombolas, sem
poço, nem luz, nem estrutura alguma...”.

Dia 02 de novembro de 2014 - Quilombo Boa Vista


No dia de finados o Com. Max II atracou próximo ao centro da comunidade, ouvimos cantos e batuques que vinham
de uma pequena capela. Diante de um forte calor, sentamos nas cadeiras da capela enquanto uma mulher coordenava os ritos
cristãos misturado a cantos de inspiração evangélicos, além dos ritmos e instrumentos africanos – em grande sincretismo. No
primeiro quilombo titulado no Brasil ouvimos da condutora da cerimônia: “É para a liberdade que Cristo nos libertou”. No alto da
porta da capela estava escrito: “Comunidade São José”, uma homenagem ao seu santo padroeiro (Figura 4).

Figura 3. Projeto Quelônio, Quilombo Nova Esperança Figura 4. Capela do Quilombo Boa Vista.
Fotos de Rodolfo Lobato

Em conversa posterior, com um o líder comunitário, chamado Sílvio, ouvimos sobre os atuais conflitos e ameaças à co-
munidade. E, assim, ficamos sabendo que, para consultar os quilombolas, houvera uma divisão entre as comunidades, em Trom-
betas 1 e 2. Em que as comunidades do Trombetas 1 seriam diretamente afetadas, e as comunidades do Trombetas 2 seriam
indiretamente afetadas (Boa Vista estaria no Trombetas 2).
Sobre o paradoxo da existência de uma atividade mineradora em uma Floresta Nacional em território contíguo a uma

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


423
reserva biológica, o Sr. Sílvio mostra uma outra perspectiva quando diz que “as reservas são feitas pra isso, quando as empresas
precisar tá limpo de gente”, reforçando a suspeita de que, para além da preservação ambiental, o principal interesse na consti-
tuição das áreas de proteção ambiental no rio Trombetas estaria na preservação da riqueza mineral.

Dia 04 de novembro de 2014 - Último Quilombo – Lago Erepecu


A grande maioria dos moradores do quilombo estava em Oriximiná recebendo pagamentos. Os professores são as-
salariados do governo e diversos outros chefes de família recebem Bolsa Família ou mesmo Bolsa Verde. Essa dinâmica tornou
natural o deslocamento no final do mês de parte das comunidades, pois às vezes seguem juntas as famílias, de maneira a realizar
compras na sede do Município, visitar parentes ou mesmo tentar outras atividades e comércios.
Conversamos com Lino e Lucinete (moradores do Lago). Segundo eles, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiver-
sidade) reconheceu também os coletores de castanha que não moram nas comunidades quilombolas, mas em Oriximiná, como
usuários legítimos dos recursos naturais da região, por praticarem a atividade historicamente. Com o Termo de Compromisso, a
coleta da castanha ficou, na opinião deles, mais organizada. Primeiramente entra o pessoal de fora, depois o pessoal de dentro.
Outra alternativa é o Projeto Quelônio, desenvolvido pela MRN, que oferece uma cesta básica e 40 litros de óleo para os comuni-
tários marcarem as praias. São duas famílias por praia. Esse pagamento é irrisório frente ao trabalho das comunidades.

Quilombo Nova Esperança


Neste Quilombo, conversamos com o Sr. Valdeci. Há na comunidade doze famílias espalhadas, a maioria está envolvida
no Projeto Quelônio - cuidam das tartarugas por quatro meses até crescerem (Figura 3). A área recebe muitos pescadores “inva-
sores” vindos de Oriximiná para caçar e vender tracajá e ovo de tracajá. E também há coletores “de fora” que vão tirar castanha
sem constarem do Termo de Compromisso. E o ICMBio não consegue segurar o contrabando, pois o invasor divide a castanha
com vários “regatões” e fica difícil controlar.
Tantos os que assinaram o Termo de Compromisso e os que não assinaram entram antes no castanhal. O que, segundo
Valdeci, é prejudicial para quem é do local, como ele, visto que na prática o prazo dos “de fora” estava sendo estendido. Além
disso, a presença do ICMBio auxilia diretamente na preservação da área, apesar de não conseguirem solucionar todos os as-
pectos envolvidos na degradação ambiental. O mesmo relata que houve reunião na comunidade para tratar do tema da consulta
pública sobre a expansão dos platôs da MRN.

Quilombo Curuçá
O Coordenador da comunidade é o Marquinhos. Encontramos Ednei na casa de farinha junto com outros jovens. O
restante da comunidade estava em Oriximiná. São 40 pessoas na comunidade. A farinha é feita para toda a comunidade e dura
cerca de um mês. Eles e outros comunitários estão participando do Projeto de Mapeamento das Copaíbas, do IMAFLORA. O
IMAFLORA compra o óleo deles e vende para uma empresa alemã chamada “Verminiche”.
A comunidade está pedindo mais recompensa financeira pelas copaíbas, devido ao aumento da supressão de vegetação.
O litro da copaíba custa hoje R$ 27,00 (vinte e sete reais). A área está em processo de titulação. Os comunitários recebem Bolsa
Família e a Bolsa Verde.

Dia 06 de novembro de 2014 - Quilombo Mãe Cué


Fomos recebidos na comunidade por Ronildo, Ziraldo e Tinga – maior liderança local. O Ronildo é o Coordenador da
comunidade. O Tinga é o coordenador financeiro das cinco comunidades. São cerca de 40 famílias vivendo na área. Os jovens
da comunidade se apresentaram muito timidamente no início da reunião como “participantes da comunidade”. Mas depois que
as meninas da equipe da UFF disseram que queriam se banhar no riacho para espantar o calor ficaram bem alvoroçados.
As lideranças informaram que no dia 08/11/2013 houvera reunião no Mãe Cué, dia 09/11/2013 na Tapagem e dia 11/11/2013
no Abuí, com ata assinada pelo representante da ARQMO e que, na ocasião, decidiram “autorizar” só os estudos para ampliação
dos platôs de exploração da MRN. Muitos comunitários seriam contrários. E precisariam de apoio para compreender e avaliar as
relações de custo/benefício, pois, são quatro os platôs pretendidos, áreas estas repletas de recursos naturais. E caso o empreen-
dimento fosse autorizado, seria preciso dimensionar as compensações para as comunidades atingidas.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Perguntados pelo encontro recente com o MPF, em Santarém, e da lista para aprovação de acordo com 8 empregados
por comunidade, tergiversaram, a princípio surpresos por sabermos desses fatos, em seguida encaminharam a conversa para
solicitar apoio para melhor entender e deslindar a questão.
Uma cozinha comunitária estava em construção no local, financiada pela MRN.

Dia 07 de novembro de 2014 - Quilombo Tapagem


O Coordenador da comunidade é o Júnior e o Coordenador de Programas Comunitários de Mãe Domingas é o Florêncio.
São 400 pessoas, divididas em cerca de 60 famílias. A maioria explora castanha, na REBIO, e no Jacaré, respaldados pelo Termo
de Compromisso, o que antes não ocorria e a coleta era considerada clandestina. Uma minoria tem Bolsa Verde.
Houve recusa pela comunidade de projeto de carbono proposto por uma empresa colombiana, por que eles explorariam
uma área de floresta em troca de uma porcentagem para a ARQMO, mas não permitiriam que comunitários utilizassem a área
nem com caça e nem sequer para entrar no local. Há comunitários que estão a favor da expansão da atividade minerária, com
base na crença da geração de emprego. A área da expansão não tem castanha, mas tem muita copaíba.

Quilombo Abuí
O Coordenador da comunidade é o Sr. Francisco. Mas na comunidade estava também o Ivanildo, filho do Tinga, que é
uma liderança importante. Vivem na comunidade cerca de 70 famílias, elas tiram o sustento da castanha e da copaíba. Após 20
anos de luta, conseguiram, há doze anos, a titulação da terra.
Assinam também o Termo de Compromisso com o ICMBio. Estão brigando pela titulação da terra do platô Cruz Alta, mas
o processo está parado no INCRA. A maior área de copaíba fica na REBIO, segundo os comunitários.

Dia 08 de novembro de 2014 - Quilombo de Cachoeira Porteira


O Coordenador da comunidade é o Ivanildo e o Presidente é o Claucivaldo (biólogo). O turismo de pesca esportiva é
o novo grande atrativo ad região e haviam vários barcos no local com turistas. Ivanildo e Claucivaldo teriam se tornado sócios
proprietários de hotéis voltados a esse turismo, com o fim de se converterem em empreendedores.
Na comunidade tem coleta de castanha, agricultura e turismo. Também houve a assinatura do Termo de Compromisso
com o ICMBio. A comunidade não conseguiu acessar o dinheiro do IDEFLOR, do Serviço Florestal, para barco, escoamento da
castanha e depois usina de beneficiamento.
A região de Cachoeira Porteira está metade na Floresta Estadual - FLOTA Trombetas, metade na REBio Trombetas e do
outro lado do rio é a FLONA Saracá-Taquera e a FLOTA FARO. Há reivindicação de toda área ao Instituto Estadual de Terras.
Com relação à hidrelétrica, apesar de estar ainda no Ministério das Minas e Energia, já houve reunião em Cachoeira
Porteira com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE/MME) e o Instituto de Gestão e Planejamento de Estado –(IGPLAN) para
falar dos estudos.
Após esta atividade, parte do grupo partiu de volta para embarcar para o Rio de Janeiro e outra parte seguiu para subir o
Rio Mapuera, ao encontro das comunidades indígenas Wai wai.

Perspectivas da gestão territorial


Enquanto trafegava pelo Rio Trombetas, ao atracar no distrito de Porto Trombetas, a equipe da UFF se reuniu com re-
presentantes do jurídico da MRN, que nos atenderam de forma polida, porém rápida, mas sem fornecer qualquer informação
substantiva. Após serem instados sobre o tema, apenas declararam que a MRN não tem problemas ou conflitos com as comuni-
dades, a mineração estaria a conviver a 60 anos com os quilombolas... “quem inventou o conflito foi a OIT 169”.
Reunimo-nos também com funcionários do ICMBio junto à sede da Reserva Biológica do Trombetas e da FLONA Sacará–
Taquera, que nos receberam com toda atenção, realizando debates por dois dias inteiros e depois mais outros dois dias na
subsede do Tabuleiro.
O tema central do primeiro encontro envolveu os conflitos socioambientais entre as políticas de conservação ambiental -
expressas na gestão das duas unidades de conservação federais; as políticas de desenvolvimento regional – materializadas com
a exploração mineral da bauxita pela Mineração Rio do Norte – MRN e com o projeto de implantação de uma hidrelétrica nas

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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confluências dos rios Trombetas, Cachorro e Mapuera; e os projetos de desenvolvimento sustentável, voltados para a fixação e a
afirmação das populações tradicionais de Quilombolas e Indígenas da região.
Segundo os funcionários do ICMBio, um dos cenários possíveis para a minimização do conflito entre Quilombolas e Re-
bio é a titulação das terras e desafetação da Reserva Biológica na área abrangida pelo Termo de Compromisso para Coleta de
castanhas, criando, no lugar, uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, tipo de unidade de conservação que admite aquele
uso sustentável. Cenário improvável, todavia, haja vista que o posicionamento oficial do ICMbio, em Brasília, não é favorável,
sobretudo o posicionamento particular da Diretoria de Manejo que seria radical, no sentido de retirar todas as famílias da REBIO
e levar para FLONA.
As famílias do Lago Erepecu, por exemplo, querem o ICMBio na área, portanto são mais favoráveis à criação da RDS. O
assunto teria sido tratado na Câmara de Conciliação Permanente Interinstitucional, formada pela Fundação Palmares, Ministério
Público Federal, SEPIR, INCRA e ICMBio. A Câmara de Conciliação é uma ferramenta implementada pela Advocacia Geral da
União – AGU com o objetivo de gerir conflitos entre órgãos e políticas de governo, haja vistas que são conflitos que não podem
ser levados ao Judiciário. Neste caso específico, envolvendo os órgãos supracitados, a conciliação não teria avançado. Atual-
mente, a Câmara sequer estaria se reunindo mais e será extinta.
Há questões que avançaram substancialmente. Uma delas envolve a formalização de Termo de Compromisso entre o
ICMBio e comunidades quilombolas com o objetivo de regularizar algumas atividades extrativistas no interior da REBio. Há a
expectativa de elaborar um novo Termo de Compromisso abordando não só o manejo da castanha, como se dá atualmente, mas
também aspectos sobre modos de vida (os quilombolas exploram a palha de ubim, por exemplo, que só tem na REBio), questões
culturais etc. Esse novo Termo de Compromisso está ainda em discussão interna na Coordenação de Gestão de Conflitos Terri-
toriais da Diretoria de Ações Socioambientais e Consolidação Territorial do ICMBio. Enquanto isso, há expectativa de renovação
do Termo da Castanha ainda em dezembro de 2014, uma vez que expirou o prazo do termo anterior.

Considerações finais
As unidades de conservação estudadas enfrentam cenários de complexos conflitos, seja no caso da localização de
quilombos no interior da REBio, seja na existência de jazidas minerais em exploração no interior da FLONA.
Com relação aos conflitos entre quilombolas e a MRN trata-se de uma questão bastante complexa. O decreto de criação
da FLONA assegura que as áreas de reservas técnicas já existentes quando da publicação do mesmo não sofreriam solução
de continuidade, nesse sentido possibilitando a expansão da exploração da bauxita para essas novas áreas. Além disso, o seu
Plano de Manejo, publicado em 2001, tem no zoneamento uma Zona de Mineração, onde está previsto o aumento da área de
exploração de bauxita no interior da unidade de conservação conforme reservas técnicas já estabelecidas. Ou seja, o cenário
institucional é favorável à mineração e desfavorável à manutenção dos modos de vida dos quilombolas ali localizados. Cabe res-
saltar que na revisão do Plano de Manejo houve o pleito por parte da MRN para expansão da mineração para áreas não previstas
na época do decreto enquanto reservas técnicas.
Segundo os funcionários da ICMBio, houve um pedido da MRN para pesquisa mineral na Zona Primitiva da FLONA, mas
foi negado com fundamento em parecer elaborado por procurador do IBAMA. A MRN, ainda, estaria a rever a Zona de Mineração
do Plano de Manejo para expandir a área de exploração da bauxita. Há a previsão para 2015 de realização de consulta pública às
comunidades afetadas para fins de análise do pedido de autorização da MRN ao ICMBio para a exploração nas áreas central e
oeste. São quatro platôs que estão na Zona de Mineração pelo Plano de Manejo e pelo Plano Diretor da Mineração.
A MRN precisa obter a Licença Prévia até 2017 e a Licença de Operação até 2020, para poder iniciar a exploração em
2021. As comunidades aparentemente estariam favoráveis, sobretudo em função da promessa de levar ensino médio para as
áreas. O Ministério Público Federal - MPF recomendou que o IBAMA não se desse qualquer licença para estudos e pesquisa
mineral na área até que se discuta a questão na consulta pública.
O problema estaria no fato de que os objetivos estabelecidos para as FLONAs pelo Sistema Nacional de Unidades de
Conservação, instituído pela Lei nº 9.985/00, não seriam compatíveis com atividades de mineração. Outra questão importante é
que, para expansão dos platôs, a empresa tem obrigação de fazer o Inventário Florístico da área. Todavia, segundo dados apre-
sentados pela MRN, serão eliminados para a expansão dos platôs de exploração 267 hectares de produtos madeireiros.
Mas e os muitos hectares de produtos não madeireiros, não serão computados? Além disso, no inventário realizado pela

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426
MRN no âmbito do EIA/RIMA, não aparecem as copaíbas no platô a ser explorado!

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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


427
AS INFLUÊNCIAS DE ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS, AMBIENTAIS E CULTURAIS
DA LOCALIDADE DO PARATI – GUARATUBA/PR NA DINÂMICA DE CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS ENTRE POPULAÇÃO E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Santos, Péricles Augusto dos1 & Quadros, Juliana2

1. Mestrando em Desenvolvimento Territorial Sustentável,Universidade Federal do Paraná, guto.pericles@gmail.com


2. Professora do PPG em Desenvolvimento Territorial Sustentável, Universidade Federal do Paraná, quadros.juliana@gmail.com.

Resumo
O presente trabalho se constituiu a partir do objetivo de caracterizar a população da localidade do Parati a fim de estabelecer uma
base para análises inicias sobre os conflitos socioambientais na região. Os dados para o diagnóstico da população da localidade
do Parati foram coletados a partir de dois instrumentos: entrevistas semiestruturadas e diários de campo. O primeiro seguiu um
roteiro constituído por perguntas organizadas em três eixos de análise: econômico; social e ambiental. O segundo realizado em
duas etapas de campo compostas por vivências na comunidade totalizou 15 dias de campo. Consideramos que o conjunto de
desacordos no Parati como o embargo da estrada, restrição de áreas para plantio, ausência de serviços e estruturas de atendi-
mento básico a população são fatores que associados em uma rede de atores levam à inviabilização da continuidade do modo
de ocupação que se estabelecia.

Palavras-chave: Conflitos socioambientais, Invisibilidades, Conservação.

Introdução
Quando nos propomos a pensar em aspectos socioambientais, culturais e econômicos e suas influências sobre dinâmi-
cas de conflitos entre populações e unidades de conservação (UC), precisamos fazê-lo a partir de uma perspectiva do território
e das territorialidades que ali se estabelecem. Ao contrário do que sugere o senso comum, o ambiente não é composto de puros
objetos materiais ameaçados de esgotamento. Ele é atravessado por sentidos socioculturais e interesses diferenciados (ACSEL-
RAD, 2014).
Estes sentidos e interesses distintos podem ser então fatores importantes para compreensão das dinâmicas dos conflitos
socioambientais entre populações e UC, assim como os aspectos a que nos referimos inicialmente (socioambientais, culturais
e econômicos) são elementos fundamentais destas dinâmicas, apresentando-se de formas distintas dependendo dos grupos ou
atores envolvidos nos conflitos socioambientais. Estamos pensando aqui, então, nas territorialidades. Para Little (2002, p.3), a
territorialidade é definida como esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela
específica de seu ambiente biofísico, convertendo-o assim em seu território.
Chegamos então no território entendido como:

[...] espaço delimitado, apropriado, isto é, dotado de uma humanização que o diferencia e define.
[...]. Permite a concretização e materialização das relações sociais que, mediante ele, são cobertas
de especificidades. Se a espacialidade é o processo genérico de produção do espaço, a territori-
alidade é sua concreção em lugares específicos (VARGAS, 2004, p.2).

A noção de território é trabalhada em diversas áreas da ciência como na Geografia, na Antropologia e na Ciência Política.
Estas noções são levantadas e agrupadas por Haesbaert (2007) dentro de referenciais teóricos que levam em consideração: o
binômio materialismo e idealismo, com visões mais parciais ou holísticas em relação à sociedade-natureza e as dimensões so-
ciais privilegiadas (economia, política e/ou cultural); e a historicidade do conceito, em dois sentidos, sua abrangência histórica e
seu caráter mais absoluto ou relacional.
Este levantamento acaba evidenciando o quão amplo o conceito é, e como pode ser trabalhado e constituído a partir de
diversos enfoques, relações de poder, ou de dimensões mais simbólicas, das relações sociais e até mesmo sobre a construção

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


429
da subjetividade ou da identidade pessoal. Nesta perspectiva, a noção de território trabalhada por Santos (2007, p.8) se apresenta
aberta a abordagens de múltiplos enfoques:

O Território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas; o
território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si. O território usado
é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O
território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do
exercício da vida.

Neste sentido, trata-se de um conceito amplo, em que território está relacionado de forma indissociável à reprodução
dos grupos sociais, sendo a territorialidade inerente à condição humana. Torna-se evidente a necessidade de uma abordagem
híbrida entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e idealidade (Haesbaert, 2007).
Para Acselrad (2014), temos espaços comuns de recursos, expostos a distintos projetos, interesses, formas de apropria-
ção e uso material e simbólico. A causa ambiental, portanto, não é necessariamente una, universal, comum a todos, o que faria
do ambiente necessariamente um objeto de cooperação entre os distintos atores sociais.
No contexto das UC e em outros contextos e conjunturas, como Acselrad observou, o meio ambiente acaba sendo per-
meado por conflitos sociais.

Os conflitos ambientais ocorrem, assim, quando há um desacordo no interior do arranjo espacial


de atividades de uma localidade, região ou país: a continuidade de um tipo de ocupação do ter-
ritório vê-se ameaçada pela maneira como outras atividades, especialmente conexas, são desen-
volvidas (ACSELRAD, 2014, p.8).

Para Nascimento (2001), a natureza dos conflitos que arquitetam nossa evolução recente é condicionada por uma dupla
tensão: nacional x mundial e igualdade x desigualdade. Assim, os conflitos encontram-se, simultaneamente, nas origens e na
evolução de nossa sociedade contemporânea.
Esta relação de inerência entre conflitos e sociedade leva à construção de diferentes noções e conceitos. Vargas (2007)
reconhece uma vasta gama de visões, abordagens e conceituações sobre os conflitos. Esta situação acaba por gerar enormes
desafios, mediante um ou vários princípios teóricos. Isto se deve em certa medida ao fato de que os conflitos formam uma parte
integral e inevitável da nossa vida cotidiana, podendo ser observados em todas as esferas da vida humana: psicológica; política;
cultural; econômica; religiosa; social. Além das relações humanas: interpessoais; conjugais; trabalhistas; étnicas; internacionais,
(LITTLE, 2001).
O conflito socioambiental está relacionado a estas esferas e relações e é definido por Little (2006) como um conjunto
complexo de embates entre grupos sociais em função de seus distintos modos de inter-relacionamento ecológico, que nada mais
seria do que as disputas entre grupos sociais derivados dos distintos tipos de relação que eles mantêm com seu meio natural,
estendendo o foco restrito a embates políticos e econômicos, incorporando elementos cosmológicos, rituais, indentitários e mo-
rais, nem sempre claramente visíveis, elementos estes, inerentes das relações sociedade natureza.
Partimos então da aproximação à noção de conflitos socioambientais apresentada por Zhouri & Laschefski (2010), que
descrevem três diferentes categorias de conflitos ambientais: os distributivos, que manifestadamente indicam graves desigual-
dades sociais em torno do acesso e da utilização dos recursos naturais; os espaciais causados por efeitos ou impactos ambien-
tais que ultrapassam os limites entre os territórios de diversos agentes ou grupos sociais; e os territoriais, que marcam situações
em que existe a sobreposição de reivindicações de diversos segmentos sociais sobre o mesmo recorte espacial, acreditando
que esta sistematização e classificação se aproxima de outros autores como Vargas, (2007) e Little (2001/2006).
É importante ainda ressaltar outro aspecto dos conflitos relacionado à visibilidade que estes possuem ou não. Para
Acselrad (2013):

Uma série de indícios concorre para que vejamos a desigualdade ambiental como parte constitu-
tiva do modo de regulação próprio ao capitalismo liberalizado. Neste contexto, a preferência pela
manutenção e reprodução dessa desigualdade explicaria o conjunto de ações visando a naturali-
zar e obscurecer os conflitos sociais, silenciando e despolitizando o debate.

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Neste contexto de desigualdades e invisibilidades as UC se inserem. Para Medeiros (2006), as UC são espaços territorial-
mente demarcados cuja principal função é a conservação e/ou a preservação de recursos, naturais e/ou culturais a elas associados.
A criação do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos da América, pode ser considerada um marco para o
surgimento destas áreas como conhecemos hoje.
No Brasil o marco legal relacionado à criação e gestão de Unidades de Conservação (UC), termo introduzido por Maria
Tereza Jorge Pádua, utilizado no Brasil para cada área de um sistema destinado a conservação (MILANO, 2002), está assentado
na Lei Nº 9.985, que em julho de 2000 instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC); no Plano
Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP); e, no âmbito da gestão federal, na criação do Instituto Chico Mendes de Con-
servação da Biodiversidade (MMA, 2007).
Para Dourojeanni & Pádua (2007, p. 56):

Como o próprio nome indica, uma UC é uma área dedicada a conservar a natureza. A expressão
equivalente, área protegida reflete com a mesma força e clareza que seu objetivo é a proteção da
natureza. Nem mais, nem menos. Mas com o decorrer do tempo, com a aparição dos conceitos
de ecodesenvolvimento, e sobretudo, o de desenvolvimento sustentável, as definições do termo
mudaram muito e foram ampliadas para incluir áreas onde a exploração dos recursos naturais é
cada vez mais intensa e a presença humana é a razão de sua existência.

Alguns autores estabelecem críticas a estas noções e mais especificamente às UC. Diegues (2004, p. 9) em oposição
às noções trabalhadas por Dourojeanni & Pádua faz críticas às áreas protegidas brasileiras, em particular as de uso indireto,
apontando para uma possível crise uma vez que estas sofrem com processos de invasão e degradação. Esta crise estaria ainda
associada à falta de dinheiro para desapropriação, à falta de investimento público, de fiscalização, de informação ao público, etc.

O fato das legislações considerarem ilegal a existência de moradores no interior de UC de pro-


teção integral, por si só, é fator de conflitos entre outras populações e as áreas protegidas. [...]
Existem ainda habitantes que residem em áreas contíguas às UC, as chamadas áreas de entorno,
e que se utilizam de seus recursos naturais, de maneira regular ou não. Há ainda o caso das popu-
lações que vêm das cidades próximas, ou mesmo afastadas, mas que fazem uso da UC (espaço,
recursos naturais, turismo), que também provocam impacto nas Unidades, gerando conflitos.

Neste sentido, o objetivo deste trabalho é caracterizar, a partir de aspectos socioambientais, econômicos e culturais, a
população da localidade do Parati, município de Guaratuba litoral sul do estado do Paraná, possibilitando assim a criação de
uma base de informações e dados para análises futuras das estruturas de relações sociais nas redes de atores envolvidos nos
conflitos socioambientais entre a população da localidade do Parati e UC (Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange e Área de
Proteção Ambiental de Guaratuba).
Sendo assim, o presente trabalho se constitui como um recorte do Projeto de Pesquisa de Mestrado do Programa e Pós-
Graduação em Desenvolvimento Territorial Sustentável, da Universidade Federal do Paraná.

Área de estudo
Localizada na área rural do município de Guaratuba, no litoral do estado do Paraná, a localidade do Parati se constitui
como um núcleo de poucas famílias, visto que o acesso à região é limitado e pode ser feito de três formas: de barco, saindo do
centro do município de Guaratuba; ou a pé, de bicicleta e motocicleta pelo traçado da antiga estrada que liga a comunidade a
PR – 508 na região do município de Matinhos, ou ainda, por uma antiga trilha de ligação entre as regiões do Cabaraquara, Porto
Barreiro e Parati, todas no município de Guaratuba/PR.
Ponto estratégico de ligação entre as regiões de Paranaguá e Guaratuba entre os anos de 1916 e 1926, a localidade do
Parati deixou de ter esta importância a partir da inauguração da Estrada Mar em 1926, que resultou na redução do nível de dificul-
dade e do tempo de deslocamento entre os municípios (FERNANDES, 1947).
Atualmente a comunidade está localizada no entorno imediato do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange (PNSHL), UC
de proteção integral criada no ano de 2001, e dentro dos limites de uma UC de uso sustentável, a Área de Proteção Ambiental de
Guaratuba (APA), UC de uso sustentável criada no ano de 1992 (Figura 1), e apresenta uma das belezas cênicas mais atrativas

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da região do litoral do Paraná, o Salto Parati.

Figura 1. Contextualização de acessos à localidade do Parati – Guaratuba/PR, e Unidades de Conservação.


Elaboração: Péricles Augusto dos Santos.

Materiais e métodos
Os dados para o diagnóstico da população da localidade do Parati foram coletados a partir de dois instrumentos: entre-
vistas semiestruturadas e diários de campo. O primeiro seguiu um roteiro constituído por perguntas organizadas em três eixos de
análise: econômico; social e ambiental. Este roteiro foi aplicado a moradores permanentes da localidade, ou seja, que residem
a maior parte do ano no Parati. Em cada família um representante, podendo ser qualquer adulto maior de 18 anos, respondeu ao
questionário. Foram pré-selecionadas 10 famílias para realização das entrevistas, indicadas pelos próprios moradores. Deste total
oito foram entrevistadas, das quais descartamos nas análises uma das entrevistas pela impossibilidade de gravação a pedido do
entrevistado. Uma das famílias não pode ser entrevistada pela dificuldade de acesso - só seria possível chegar até ela de barco.
Uma segunda não foi entrevistada pela dificuldade que a família teve de encontrar tempo para realização da entrevista, estando
quase sempre no mar pescando, ou se alimentando ou descansando.
O segundo procedimento foi realizado em duas etapas de campo compostas por vivências na comunidade. A primeira
etapa foi de dez dias, realizada entre 20 de janeiro de 2015 a 30 de janeiro de 2015. A segunda etapa, realizada entre os dias 30
de junho de 2015 ao dia 03 de julho de 2015, contou ainda com um dia de mapeamento da trilha de acesso à localidade do Parati
pelo Cabaraquara, bairro de Guaratuba/PR, que ocorreu no dia 05 de julho de 2015. Totalizamos assim 15 dias de campo.
Para acessar a localidade pela primeira vez, o contato foi estabelecido com o representante dos moradores do Parati no
Conselho Consultivo do Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange e presidente da associação de moradores do Parati. A partir dele
houve a articulação sobre a estadia em camping com outro morador do local, onde se estabeleceu o alojamento na localidade
durante o período de campo. Na primeira etapa, o acesso ao Parati foi realizado de barco, pagando-se para que um dos mora-
dores fizesse o transporte. Na segunda etapa a região foi acessada através do trajeto da PR – 508/Parati de bicicleta, e também
via Cabaraquara/Parati a pé. Estes acessos foram mapeados e foram representados na figura 01.
Além do levantamento de dados primários em campo, foi realizada uma primeira pesquisa em acervos digitais sobre
possíveis produções realizadas na localidade e/ou sobre a população do Parati.
Para análise dos dados foram tabuladas as questões objetivas do roteiro de entrevistas, sendo que os resultados foram

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analisados levando em consideração os eixos estabelecidos no roteiro de entrevistas e o referencial teórico apresentado.

Resultados e Discussões
Guaratuba, restaurado município e desmembrado de Paranaguá/PR no ano de 1947, compõe a região do litoral do es-
tado do Paraná juntamente com outros seis municípios, a saber, Matinhos, Pontal do Paraná, Paranaguá, Morretes, Antonina e
Guaraqueçaba. Com área territorial de 1.326,791 Km² e população residente de 32.095 pessoas (IBGE, 2015), o município está
inserido no bioma Mata Atlântica.
O domínio biogeográfico Mata Atlântica, segundo mapeamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2004), compreende um complexo ambiental composto por cadeias de montanhas, platôs, vales e planícies de toda faixa
continental atlântica brasileira. Apresenta assim uma variedade de formações florestais que vão de florestas ombrófilas (densa, mis-
ta, aberta), floresta estacional semidecidual e estacional decidual, a manguezais, restingas, e campos de altitude associados, além
da ocorrência de brejos interioranos no Nordeste e florestas de Araucária (ombrófila mista) nos planaltos da região sul (SNIF, 2015).
É importante pontuar que o bioma Mata Atlântica é uma das grandes prioridades para a conservação da biodiversidade
em todo o continente americano. Regiões ou biomas como no caso da Mata Atlântica que abrigam parcela significativa da diver-
sidade biológica do Brasil e do mundo (MMA, 2002) acabam sendo mapeadas e classificadas como Hotspots de biodiversidade.
Estes denominados pontos quentes além de reunirem grande número de diversidade biológica e altas taxas de endemismos se
configuram como as regiões mais devastadas do planeta (MITTERMEIER, 1999).
A partir desta condição de bioma estratégico para conservação, a região conta com um conjunto de UC que compõem
o mosaico Lagamar1. Compreendendo regiões dos estados de São Paulo e Paraná, o mosaico é formado por UC Federais, Esta-
duais e Municipais (ICMBIO, 2015).
Deste conjunto de UC que formam o mosaico destacamos duas. O PNSHL e a APA de Guaratuba, criadas respectiva-
mente nos anos de 1992. O PNSHL é responsável pela proteção de aproximadamente 25.118,90 hectares de Mata Atlântica em
suas diversas formações. Foi à primeira UC do Brasil a ser criada por Lei (Lei Nº 10.227, de 23 de maio de 2001. UC de proteção
integral tem como objetivos a conservação dos ecossistemas de Mata Atlântica e a manutenção da estabilidade ambiental dos
balneários sob sua influência, garantindo a qualidade de vida das populações litorâneas e a manutenção e preservação dos
mananciais de abastecimento da região. Sua área se distribui em quatro dos sete municípios do litoral do estado do Paraná:
Paranaguá; Morretes; Guaratuba e Matinhos.
A APA de Guaratuba, criada pelo Decreto Estadual Nº 1.234, possui área aproximada de 200 mil hectares que abrangem
os municípios de Guaratuba, Matinhos, Tijucas do Sul, São José dos Pinhais, Morretes e Paranaguá. A compatibilização do uso
racional dos recursos ambientais da região e a ocupação ordenada do solo, contribuindo com a qualidade de vida das comuni-
dades caiçaras e das populações locais, são objetivos de criação desta UC (APA, 2015).
Estas são UC que compreendem o território da localidade do Parati – Guaratuba/PR. A APA de Guaratuba com a sua zona
de conservação C11 que engloba a totalidade do território da Localidade do Parati, delimitada a partir da elaboração do zonea-
mento do seu plano de manejo, e o PNSHL com limites de entorno imediato muito próximos as áreas de residência e sobrepostos
a áreas de uso da população do Parati.
Mellinger (2013) identificou 38 casas na região das localidades do Parati, Fincão e Rio das Ostras, das quais apenas 11 es-
tavam com moradores fixos. Outro aspecto observado pela autora foi à existência de sítios na região de moradores de áreas próxi-
mas como Prainha e Cabaraquara. Este último aspecto pode ter relação com o que foi observado por Sonda (2002) - comunidades
da porção norte da baía de Guaratuba, da qual o Parati faz parte, sofreram um intenso processo de migração de suas famílias, o
que levou ao esvaziamento das comunidades, possibilitando assim a aquisição de terras por “pessoal de fora”, dando inicio ao
processo de transformação do espaço rural do trabalho para o espaço rural de lazer, enfraquecendo assim as práticas de mutirões.
Nosso levantamento, feito a partir dos dados obtidos com as entrevistas refletem basicamente os mesmos pontos. Foram
identificadas 22 casas, este número (menor de casas que o de Mellinger) se deve ao fato de termos trabalhado com uma região
menor, sem incluir áreas do Rio das Ostras e Fincão.
Deste total de casas apenas 10 estavam com moradores efetivos, o restante ou estava abandonada ou sendo utilizada aos

1
Tabela com as UC que compõem o mosaico Lagamar disponível em: http://www.icmbio.gov.br/portal/o-que-fazemos/mosaicos-e-corredores-ecologicos/moscaicos-
reconhecidos-oficialmente/49-menu-o-que-fazemos/1877-unidades-de-conservacao-mosaico-do-litoral-sul-de-sao-paulo-e-do-litoral-do-parana-lagamar.html

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


433
finais de semana e feriados como sítio de lazer ou descanso.
Sonda (2002) ressalta a utilização da mão de obra familiar nas práticas produtivas, à utilização de instrumentos rudimen-
tares como enxadas e foices, e a posse de barcos próprios ou canoas. Destacam-se como atividades de subsistência a roça/
farinha, a pesca, o caranguejo pegado, e o quintal de frutíferas e horta. Já as atividades de geração de renda são o caranguejo
pegado, a pesca, o marisco e ostra, e a atividade de caseiro (MELLINGER, 2013).
As entrevistas que realizamos revelaram que as atividades destacadas por Mellinger não se diferenciam muito do que
constatamos, tendo apenas o incremento de mais algumas atividades econômicas conforme a Tabela 1.

Tabela 1. Atividades econômicas desenvolvidas pelos sete entrevistados. Fonte: Péricles Augusto dos Santos

A partir dos diários de campo e das vivências foi possível também identificar que existem relações de troca, compra,
venda e favores entre os moradores fixos. Isto já havia sido relatado por Mellinger (2013) em seu trabalho, porém observamos algo
não evidenciado antes, relacionado à compra e venda de pescados, caranguejos, ostras e mariscos para um dos moradores, que
os revende posteriormente no mercado municipal de Guaratuba. Entretanto não se trata de uma situação em que temos a figura
de um atravessador, ocorrendo apenas à compra de excedentes que não poderiam ser armazenados e que, portanto, estragariam.
Outro dado importante a que não tínhamos tido acesso a partir dos trabalhos revisados anteriormente se refere à média
de idades dos moradores permanentes do Parati, de 62 anos, sendo que, o mais jovem dos entrevistados respondeu ter 29 anos
e o de idade mais avançada 77 anos de idade.
Estes dados chamam a atenção pela alta média de idade das pessoas. Isto pode estar vinculado a um processo de en-
velhecimento da população, que pode ser resultado dos processos de esvaziamento e transformação da localidade, relatados
por Sonda (2002).
Neste sentido, precisamos ressaltar outros dados importantes, relacionados às dificuldades enfrentadas pela população
do Parati e que podem nos ajudar a compreender melhor as origens deste processo de esvaziamento. Os dados da Tabela 2
mostram que a maior dificuldade enfrentada pela comunidade é o fato da escola estar fechada há doze anos. Ao falarem sobre
a escola, os seis entrevistados que citaram isto como dificuldade relataram a saída de várias famílias do Parati para poder ma-
tricular seus filhos em outras cidades. Além de se reduzirem a quantidade de moradores permanentes, as crianças da população
foram forçadas a sair, o que por sua vez elevou a média de idade da população.

Tabela 2. Dificuldades enfrentadas pela comunidade. Fonte: Péricles Augusto dos Santos.

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Existe no momento, na população do Parati, certa ansiedade com relação à possibilidade de reabertura da escola em
função de recente articulação entre a população e representantes de um dos novos cursos da Universidade Federal do Paraná
– Setor Litoral. Porém, podemos também justificar esta ansiedade a partir de análise sobre os dados de escolaridade da popu-
lação. Do total de sete entrevistados apenas dois chegaram ao quarto ano do ensino fundamental séries iniciais, um cursou o
primeiro ano do fundamental séries iniciais e três não frequentaram a escola.
Temos então uma demanda por ensino não só para crianças, mas também a possibilidade de educação para jovens e
adultos.
Destacamos, por fim, que os filhos dos entrevistados têm migrado, a partir deste processo gerado pelo fechamento da
escola, para regiões de vulnerabilidade socioambiental de municípios próximos como regiões periféricas de Guaratuba, Ma-
tinhos, Pontal do Paraná, Colombo. Existem ainda poucos casos de pessoas que migraram para regiões mais distantes como
Pato Branco/PR, Primavera do Oeste/MT e Marabá/PA. Sendo este processo responsável por intensificar e gerar novos conflitos
socioambientais em áreas de entorno ou no interior das UC aqui apresentadas.

Considerações Finais
A localidade do Parati é uma região fragilizada que sofre historicamente com a dificuldade de acesso à região, mesmo
estando geograficamente próxima a centros urbanos e importantes vias de ligação no Estado do Paraná, como a PR-508. Isto fica
evidente quando vemos que cinco dos sete entrevistados citam o embargo à reabertura do traçado da antiga estrada do Parati
como uma das principais dificuldades enfrentadas pela população.
A invisibilidade dos conflitos existentes na localidade acaba por intensificar os problemas enfrentados pelos moradores
locais. O surgimento de legislações ambientais restritivas e regulatórias como o código florestal e a lei da Mata Atlântica, as-
sociadas à criação e delimitação de UC sobre territórios antes usados, e concretizados a partir de lógicas de uso distintas
baseadas em territorialidades diversas, nos saltam aos olhos como principais fatores geradores de conflitos e pressões sobre
estas populações, na medida em que estabelecem novas lógicas de territorialidade, a partir da efetivação de normativas para
uso e ocupação dos recursos naturais existentes nestes espaços. Porém o que fica evidente aqui é que podemos estar associ-
ando os conflitos às legislações ambientais e UC com um olhar desatento a outros aspectos importantes. Isto fica claro quando
vemos que o fechamento da escola rural do Parati foi inegavelmente responsável por um intenso processo de esvaziamento da
localidade, e fazendo isto de forma a atingir principalmente a população mais jovem da região, o que por sua vez resultou em
um envelhecimento da população.
Neste sentido questionamos o argumento de que as UC e legislações ambientais, neste caso, são as principais respon-
sáveis pelos processos de pressão sobre a população da Localidade do Parati, Guaratuba/PR.
Não queremos aqui negar a relação entre os conflitos e as UC. É evidente que a implementação destas inviabiliza ou
dificulta algumas das práticas produtivas e de subsistência antes executadas pelas populações. Retomando Diegues (2004) o
simples fato de se criarem as UC já basta para que se intensifiquem ou criem-se conflitos. A própria presença de representantes
de órgãos públicos ambientais como o ICMBio, embora precarizada em virtude da falta de investimentos, recursos e até mesmo
da não priorização de questões ambientais, tem como consequência a aplicação de legislações antes não efetivas nestes ter-
ritórios somando-se assim ao processo de intensificação e geração de conflitos.
O conjunto de desacordos na localidade do Parati como o embargo da estrada, (resultado do processo judicial sobre a
abertura de tanques para piscicultura em propriedades particulares com a utilização de maquinários públicos da prefeitura do
município de Matinhos), restrição de áreas para plantio, ausência de serviços e estruturas de atendimento básico a população
são fatores que associados em uma rede de atores levam à inviabilização da continuidade do modo de ocupação que se esta-
belecia no Parati. Ou seja, temos um processo em que o meio ambiente acaba sendo permeado por conflitos sociais assim como
relata Acselrad (2014).

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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


437
CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE ITAIPU:
UMA REFLEXÃO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO

Simon, Alba1

1. PPGSD, Universidade Federal Fluminense, albasimon7@gmail.com

Resumo
Nas praias de Itaipu e de Piratininga, na Região Oceânica de Niterói – RJ existe uma comunidade de pescadores artesanais que
sobrevive da pesca há várias gerações, resistindo às mudanças sociais que ocorrem em Niterói. A primeira tentativa de criação
da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu ocorreu no período de 1998 a 2004, sem chegar a termo em razão de inúmeros con-
flitos. Em outubro de 2012, um grupo de pescadores artesanais de Itaipu, reapresentou a demanda à Secretaria de Estado do
Ambiente (SEA) que, em conjunto com o Instituto Estadual do ambiente e em parceria com a Universidade Federal Fluminense,
decidiu retomar o processo de criação da Reserva. Nesse sentido, em um curto espaço de tempo, após nove meses de trabalho
(de novembro de 2012 a julho de 2013), em 31 de setembro de 2013 foi criada a Reserva Extrativista de Itaipu. O objetivo do pre-
sente artigo é relatar a retomada do processo de criação da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu em Niterói – RJ pelo governo
do Estado do Rio refletindo sobre os conflitos, tensões e contradições que se repetiram durante o processo de criação em 2012.

Palavras-chave: Reserva Extrativista de Itaipu, Conflitos Socioambientais, Pescadores Tradicionais Artesanais

Introdução
Nas praias de Itaipu e de Piratininga, na Região Oceânica de Niterói – RJ existe uma comunidade de pescadores artesa-
nais que sobrevive da pesca há várias gerações. São pescadores artesanais tradicionais que têm a pesca como sua fonte de re-
produção social e cultural, resistindo às mudanças sociais que ocorrem em Niterói e em todo o litoral do Estado do Rio de Janeiro.
A atividade pesqueira artesanal na região segue uma tradição que remonta a séculos, sendo verificada desde a época de
sua ocupação pelos indígenas. Diversos estudos antropológicos (KANT DE LIMA; PEREIRA, 1997; PESSANHA, 2002; MIBIELLI,
2004; LATINI, 2006) registram as características diferenciadas e historicamente localizadas das atividades pesqueiras no local
diante de diversos projetos de desenvolvimento urbano e industrial tais como portos e dragagens, especulação imobiliária nas
áreas litorâneas, projetos de construção de marinas para uso turístico e, sobretudo, a pesca industrial caracterizada por barcos,
apetrechos e ritual pesqueiro incompatível com a prática tradicional e impactante à biodiversidade marinha.
A primeira tentativa de criação da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu ocorreu no período de 1998 a 2004. O pro-
cesso, iniciado pelo então Conselho Nacional de Populações Tradicionais/Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Na-
turais Renováveis (NPT/IBAMA), não chegou a termo em função dos inúmeros conflitos evidenciados durante o processo, tanto
com setores da pesca industrial quanto em razão de conflitos internos por disputas de poder entre dirigentes da Colônia Z-7 e a
Associação Livre de Pescadores e Amigos da Praia de Itaipu (ALPALPI), entidade criada por pescadores artesanais tradicionais
de Itaipu que deu início ao processo de criação da Reserva Extrativista (RESEX).
Em outubro de 2012, um grupo de pescadores artesanais de Itaipu, com fortes ligações com a ALPAPI (embora desati-
vada) reapresentou a demanda à Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) que, em conjunto com o INEA e em parceria com a
Universidade Federal Fluminense, que desde 1998 vinha apoiando a criação da RESEX em Itaipu, decidiu retomar o processo.
Nesse sentido, em um curto espaço de tempo, após nove meses de trabalho (de novembro de 2012 a julho de 2013), em
31 de setembro de 2013 foi criada a Reserva Extrativista de Itaipu.
O objetivo do artigo é fazer uma reflexão sobre os principais conflitos, embates, reações e resistências que permearam o
processo de criação durante esses 20 anos de tentativa de criação da RESEX Itaipu e que se repetiram no processo de criação
em 2012/2013.
No cumprimento da tarefa de coordenadora geral do processo de criação, fui testemunha e tive que lidar, em cada re-
união, oficina e na audiência pública final, com as dúvidas, manifestações de resistência, estranhamentos, e mesmo com versões

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


439
conspiratórias sobre eventuais proibições e punições do “governo” após criação da RESEX. Os embates durante o processo de
criação e na consulta pública para a criação da RESEX se materializaram em Ação Civil Pública impetrada pelas Colônias de
Pescadores Z-7 e Z-8 e mais doze Colônias do Estado signatárias em face do estado do Rio de Janeiro.
Apesar do tratamento dado ao processo como uma política de governo, com metodologias participativas, transparência
e pleno acesso à informação, os conflitos evidenciados durante o segundo processo de criação em 2012 foram semelhantes aos
de 2004, todavia, dessa vez, resultando na criação da RESEX. Tal quadro pode significar tanto o recrudescimento dos conflitos,
como, contrariamente, o fortalecimento destes, inviabilizando a gestão. Certamente o maior desafio ainda está por vir, e caberá
ao órgão gestor da RESEX, o INEA, uma gestão pública voltada aos conflitos.

A região de Itaipu
A enseada de Itaipu está inserida em um ambiente costeiro protegido por ilhas e enriquecido pela presença de um com-
plexo lagunar (Itaipu-Piratininga). Esses ambientes, muito ameaçados pela poluição e pressões de diversas ordens, funcionam
como criadouros de uma grande variedade de peixes e crustáceos onde as formas larvais e juvenis encontram as condições
mínimas necessárias para se desenvolverem.
De acordo com estudos realizados pelo Laboratório de Ecologia Pesqueira – ECOPESCA (BIOMAR/UFF) na região de
Itaipu, a diversidade de espécies marinhas é comparável à encontrada no Monumento Natural das Ilhas Cagarras, Unidade de
Conservação próxima à região de Itaipu. Esse papel de “repouso” e criadouro de algumas espécies marinhas, assim como a
pesca artesanal, também fica comprometido com a escala de pesca dos barcos e artes de “fora”, o que sugere igualmente a
necessidade de aplicação de medidas urgentes de proteção dos recursos e dos pescadores locais.
Segundo estudos do Núcleo de Pesquisas sobre Práticas e Instituições Jurídicas (NUPIJ) da UFF, no Estado do Rio de
Janeiro, em praias como Itaipu e Piratininga, em Arraial do Cabo, bem como em diversas outras praias do Brasil, encontramos
um tipo especial de pescador artesanal. São pescadores que exercem suas artes à beira da praia, “esperando o peixe chegar”,
como eles mesmos dizem. A prática do arrasto de praia é secular, e consiste no cerco de cardumes que se aproximam da beira
da praia buscando alimento. Neste cerco, os pescadores utilizam canoas a remo, e se organizam em ‘companhas’, equipes
formadas por ‘companheiros’ que se distribuem em tarefas hierarquizadas em graus diversos de complexidade. Suas redes
chegam a medir quase 300 metros, dependendo da modalidade de pesca empregada, e se é diurna ou noturna. Assim, estes
pescadores desenvolveram um sofisticado sistema de ‘direito à vez’, que varia de acordo com as condições de cada praia, mas
que, basicamente, consiste em um acordo que diz qual companha pode pescar em cada momento, ou cada dia.
O sistema de registro deste saber local está associado a um prognóstico que os pescadores usam desde muito tempo.
O saber naturalístico é caracterizado pelo conhecimento natural da reprodução das espécies, das mudanças de lua, da direção
dos ventos, da temperatura da água, bem como de outros indicadores visuais. Tal conhecimento é fundamental para fazer prog-
nósticos e a realizar a captura das espécies com respeito à diversidade e épocas de reprodução (PESSANHA, 2002).
Segundo o Estudo Técnico para a criação da RESEX Itaipu (SEA – INEA, 2013) estima-se entre 100 e 150 o número de
pescadores que exercem a atividade pesqueira em Itaipu ao longo de todo ano. Destes, uma parte reside na própria localidade
de Itaipu e outra reside em outros bairros de Niterói de onde se deslocam diariamente para o exercício da atividade. Conforme
o Estudo: “segundo informações obtidas junto à secretaria da Colônia de Pescadores Z-07 em abril de 2013 (...) os pescadores
do bairro de Itaipu somam 281 cadastrados e, em menor quantidade, estão os 144 pescadores oriundos de Piratininga” (2013, p.
230). Deduz-se, portanto, que os pescadores cadastrados na Colônia Z-07 incluem não apenas os pescadores artesanais tradi-
cionais da região, mas também os pescadores classificados como “eventuais”.
De acordo com depoimentos colhidos no âmbito do processo de criação da RESEX, os pescadores que não mais resi-
dem em Itaipu são aqueles que foram expulsos na década de 1970 (ou seus descendentes), devido ao processo de instalação
dos condomínios voltados à segunda residência (casas de veraneio), no bairro que é hoje denominado de Camboinhas (KANT
DE LIMA; PEREIRA, 1997).
A área de abrangência da RESEX Itaipu compreende um rico patrimônio cultural e ambiental que se encontra desde
a década de 1940 sob pressão pela expansão urbana e imobiliária na região oceânica de Niterói, a qual tem deslocado os pes-
cadores para longe de seus lugares tradicionais de moradia e de trabalho à beira-mar. Por isso, a questão da inclusão da área
costeira nos limites da RESEX ganhou eco durante o processo de criação em 2004 e retornou em 2012. Uma RESEX Marinha sem

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pescador era inconcebível para algumas famílias de Itaipu.
As lagoas de Piratininga e Itaipu, foram as primeiras a dar sinais de esgotamento, devido ao aterramento de suas mar-
gens, fruto de investidas do setor imobiliário que buscava aumentar a extensão de terras loteáveis. O Próprio Departamento
Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) promoveu uma obra que influenciaria decisivamente na especulação imobiliária:
a abertura do Canal de Camboatá, que interliga as lagoas de Piratininga e Itaipu. A interligação das duas lagunas aumentou a
extensão de terras loteáveis e foi vantajoso para os proprietários de terras.
Dois episódios traumáticos vinculados à tentativa de retirada das famílias de pescadores do Morro das Andorinhas e do
Canto de Itaipu vão marcar definitivamente o processo.
Uma Ação Civil Pública (ACP) do Ministério Público Estadual (MPE)em meados da década de 1990 para a desocupação
e demolição das 22 casas do local, metade delas pertencente a famílias tradicionais, foi a primeira tentativa concreta de expul-
são da comunidade do Morro das Andorinhas. A denúncia ao MPE tinha como base denúncias de favelização do Morro, que é
tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em meio a uma série de invasões em áreas de Mata
Atlântica na Região Oceânica. A ação não prosperou, mas não evitou a derrubada de uma das casas mais antigas do Morro das
Andorinhas.
O segundo episódio diz respeito ao Canto de Itaipu e teve início em 2000. A vila de pescadores é uma área cedida pelo
Serviço de Patrimônio da União (SPU) à Colônia Z-7 no canto de Itaipu. Em 2000 a administração da Colônia Z-7, que se mantém
no poder até a atualidade, denunciou ao MPE (inquérito 015/2000) a descaracterização da Vila de pescadores ocupada por
bares, restaurantes e o aumento e reforma das casas de pescadores. Essa denúncia, se prosperar, culminará na derrubada de
casas, bares e restaurantes de pescadores e não pescadores. A maioria dos pescadores residentes na Vila é alinhada a ALPAPI,
contrária politicamente à administração da Colônia Z-7. Esse episódio é considerado um dos fatores que evidenciaram conflitos
entre a direção da Colônia Z-7, contrária a RESEX, e a ALPAPI, demandante da RESEX, migrando para o processo de criação da
RESEX em 2004 e 2013.
Nesse sentido, a criação de uma RESEX era vista também como forma de assegurar a permanência dos pescadores
tradicionais na região da praia de Itaipu, uma vez que a área da comunidade, por uma lado, era cobiçada pela especulação imo-
biliária que vinha fracionando e loteando terras década de 1970 para a implantação de condomínios, marinas para embarcações
com fins turísticos e Resorts, por outro, era alvo de ACP para derrubada de casas em área considerada patrimônio histórico e
cultural, embora a pesca tradicional também seja.
De acordo com depoimento de uma liderança da pesca em Itaipu, o desenvolvimento urbano e a expansão imobiliária
na região oceânica de Niterói são alguns dos principais problemas enfrentados pelos pescadores artesanais de Itaipu. Em uma
dimensão temporal de 40 anos, a praia de Itaipu foi recortada por um canal artificial apelidado pelos pescadores mais antigos
como o ‘Canal da Vergonha’. Este canal foi aberto de forma permanente pela Veplan, companhia imobiliária responsável pelo
loteamento na região. Os pescadores que antes habitavam a beira da praia em toda a sua extensão e às margens da lagoa foram
‘indenizados’ e retirados desses lugares.

De uns dez anos pra cá a demanda começou a piorar porque a gente viu sendo criados con-
domínios de alto luxo no entorno das praias, nos lugares mais protegidos, nos lugares mais bo-
nitos por aí. Pessoas saíram do centro da cidade, do Rio de Janeiro, de Icaraí, e vieram pras
praias. Não só aqui em Itaipu, mas isto aconteceu no Brasil inteiro. Qualquer lugar que você vá
aí na parte litorânea, as pessoas estão com vontade de fazer condomínio, fazer resort, hotéis de
grande porte, marinas etc. E com isso, expulsam os pescadores - que nós somos a parte mais
fraca - inclusive somos ‘posseiros’. A maioria dos pescadores não se considera como o dono
da terra – eu me considero dono de onde eu moro - mas a maioria dos pescadores tem medo,
porque ele sempre sofreu essas invasões. O Estado, o Governo Federal dizem: ‘Não, isto não
é de vocês, vão pra aqui, vão pra ali...” . “Então isto me dá medo de eu ser expulso da praia de
Itaipu.” (Seu Chico, presidente da ALPAPI)

A especulação imobiliária é um problema comum em diversas comunidades pesqueiras no litoral brasileiro. Como acon-
tece em Itaipu, a tendência é a valorização da orla e a elitização das praias, o que contribui para o afastamento dos pescadores
dos espaços tradicionalmente ocupados na beira do mar. Na região de Itaipu os únicos lugares que se mantiveram a parte desse

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


441
processo foram a Prainha de Piratininga (no bairro de mesmo nome), e, proporcionalmente o Canto de Itaipu (na praia de Itaipu)
onde ainda resiste um modo de vida que integra o uso e o acesso de espaços da costa a grupos que vêm sendo afastados de
forma abrupta desses lugares.

Reservas Extrativistas Marinhas como protagonismo tradicional e


explicitação de conflitos.
A Reserva Extrativista (RESEX) é uma categoria de Unidade de Conservação prevista no Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (SNUC). São áreas públicas, nas quais é concedida a exclusividade de acesso aos recursos naturais renováveis
mediante o compromisso de garantir a sustentabilidade destes e a conservação ambiental da unidade. De acordo com a Lei
Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000 (art. 18), a Reserva Extrativista é “uma área utilizada por populações extrativistas tradicio-
nais (...) e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável
dos recursos naturais da unidade”. As Reservas Extrativistas surgiram como conceito em meados da década de 1980, a partir
da liderança de Chico Mendes e dos empates aos desmatamentos no Acre. Em 1990 foi criada a primeira Reserva Extrativista,
a RESEX Alto Juruá (AC); em 1992 foi criada a primeira Reserva Extrativista Marinha, a RESEX Marinha do Pirajubaé (SC). De
acordo com dados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, atualmente, existem 87 Reservas Extrativistas federais e
estaduais, sendo que 17 delas são Reservas Extrativistas Marinhas.
A criação de Reservas Extrativistas (RESEX) e de Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS)– que são categorias
de unidades de conservação brasileiras –, devem ser motivadas por demanda de populações tradicionais. Seus objetivos vão
além da conservação da biodiversidade e do uso sustentável dos recursos naturais; envolvem igualmente o reconhecimento das
comunidades tradicionais, de seus territórios e da importância do conhecimento e das práticas locais para a conservação am-
biental. Elas representam também a busca por um modelo diferenciado de desenvolvimento, de economia, de inclusão social e
melhoria de qualidade de vida das populações locais, além da valorização do patrimônio cultural desses grupos.
Segundo Santilli, a proposta de criação da RESEX surgiu no contexto da luta pela reforma agrária: “O objetivo geral das
RESEX era conciliar a solução dos conflitos pela posse de terra com a gestão sustentável de recursos naturais, fazendo convergir
políticas públicas que tendem a atuar de forma divergente: reforma agrária e meio ambiente” (SANTILLI, 2005, p.142). Segundo
Lobão, o histórico de criação das primeiras RESEX no Brasil demonstra que o conflito está associado às Reservas Extrativistas de
forma indefectível, não só os conflitos entre atores diretamente interessados na questão da terra e/ou na apropriação econômica
dos recursos naturais, como também os conflitos entre os protagonistas, quando se busca entender os processos ideológicos
que fundam ações concretas, seja por parte de atores sociais organizados ou não, seja por parte de representantes dos poderes
estatais, municipais, estaduais ou federais (LOBÃO, 2000, p. 3).
Nesse sentido, para a compreensão da complexidade que envolve o processo de criação da RESEX Itaipu, tarefa legal-
mente atribuída ao poder público, é necessário compreender os discursos e práticas materializadas em conceitos e concepções
pré-estabelecidas que se confrontam e ou interagem com relações de poder, práticas econômicas, sistemas classificatórios e
representações previamente existentes, produzindo novas significações sobre o território, que é também espaço social de lazer,
de disputas políticas pela pesca, de pressões imobiliárias, de lucro, de pesquisas científicas, de projetos turísticos, e, sobretudo,
de populações que reivindicam direitos de acesso, posse ou uso e controle de certos recursos naturais.
A criação da RESEX Itaipu é também resultante de determinações complexas entre o local e configurações mais amplas,
como as concepções ambientais internacionais e nacionais, as políticas públicas, conjunturas políticas e econômicas, o conjunto
de representações sociais exógenas atribuídas a um território, dentre outras.
Nesse sentido, as circunstâncias que favoreceram a criação da RESEX Itaipu passam necessariamente pela criação da
ALPAPI, que passou a ter a RESEX como bandeira de luta, e pela constituição de laços afetivos e pela habilidade política de al-
gumas lideranças da pesca de Itaipu, membros ou não da ALPAPI, com diversos setores da sociedade civil e do poder público e,
ainda, com pesquisadores da Universidade Federal Fluminense. Essas lideranças cumpriram um importante papel na interação
e negociação com diversos setores da sociedade - donos de bar e restaurante, atravessadores, banhistas e frequentadores, estu-
dantes - e, em especial, com os demais pescadores de outras localidades ajudando a vencer as resistências. Essa capacidade
de articulação contribuiu de forma direta e indireta para reunir apoio a partir de abaixo-assinado solicitando a criação da RESEX.
Nesse sentido, importa registrar que em ambos processos de criação da RESEX (em 2004 e em 2013) foram realizados abaixo-

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assinados tanto de pescadores quanto de “apoiadores” da criação da RESEX, sendo o primeiro, em 2004, com 141 assinaturas
de pescadores das regiões de Itaipu e Piratininga e outro com 275 de “apoiadores”. Em 2013 foram colhidas assinaturas de 120
pescadores e 619 apoiadores, um aumento expressivo no número de “apoiadores” revelando a ampliação da força política dos
pescadores e da RESEX.

Retomada do processo de criação da RESEX Marinha de Itaipu


A demanda dos pescadores artesanais da região de Itaipu por uma Reserva Extrativista (RESEX) Marinha que protegesse
seus lugares tradicionais de pesca e garantisse sua reprodução cultural e suas artes de pesca teve início em 1996. Isto aconteceu
em paralelo ao processo de criação da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo (decretada em janeiro de 1997), cujo
universo da pesca artesanal apresentava várias semelhanças com o de Itaipu.
Na época, por se tratar inicialmente de um projeto de Reserva Extrativista Federal, o processo foi apoiado, orientado e
acompanhado pelo CNPT/IBAMA. O levantamento socioeconômico da população local foi feito por filhos de pescadores que co-
letaram dados de 119 pescadores de um universo estimado pela ALPAPI em 400 pescadores artesanais em atividade na região.
Também naquele período, um grupo de pescadores de Arraial do Cabo veio a Itaipu para conversar com os pescadores locais
sobre o processo, as vantagens e desvantagens das Reservas Extrativistas Marinhas, enquanto os pescadores de Itaipu também
foram a Arraial do Cabo ver como a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo funcionava na prática.
No início de 1999, entretanto, houve uma mudança na direção da Colônia de Pescadores Z-7, sediada em Itaipu, que até
então estava sob a responsabilidade do também presidente da ALPAPI, a nova gestão, vinculada à Federação Estadual dos Pes-
cadores do Rio de Janeiro (FEPERJ), se alinhava a outras direções de Colônias, não só contra as RESEX Marinhas, mas também
contra o fortalecimento de uma estrutura representativa alternativa dos pescadores, as associações livres e outras entidades.
A nova gestão da Colônia Z-7 iniciou então uma ofensiva contra a criação da RESEX, questionando junto ao CNPT a vali-
dade do abaixo-assinado que abrira o processo. Alegava-se que o abaixo-assinado continha assinaturas de não pescadores, uma
vez que este havia circulado na Festa de São Pedro, em Itaipu. O efeito deste questionamento foi alertar o CNPT para conflitos
internos entre os pescadores, já que a Colônia seria um de seus representantes. A Colônia, em sua nova gestão, passou, então,
a agregar adeptos contra a Reserva e a minar os apoios institucionais que já haviam sido obtidos.
Ainda segundo Lobão, neste cenário, o CNPT, que havia dado início ao processo de criação da RESEX por entender
que esta poderia vir a ser uma solução para os conflitos de ordem externa em relação à pesca tradicional local (a exemplo do
que acontecera com relação às RESEX na Amazônia), resolveu suspender o processo de criação, uma vez que havia conflito de
interesses entre os atores.
De 1999 a 2004, a proposta de criação da RESEX manteve-se em curso, enquanto ocorriam mudanças na conjuntura
política nacional, com um novo governo em Brasília, uma nova direção no Ministério do Meio Ambiente e no CNPT. Em 2004,
o processo de criação da RESEX ressurge. Por solicitação da ALPAPI, com apoio da União Estadual de Pescadores Artesanais
(UEPA), o processo de criação da RESEX foi oficialmente reaberto no CNPT, com a Superintendência Regional do IBAMA assu-
mindo a condução das reuniões. A Colônia Z-7 e entidades aliadas voltaram a questionar o processo e o método que vinha sendo
desenvolvido pelo IBAMA, caracterizando-o como impositivo.
Antecipando-se ao processo de consultas e esclarecimentos que se desenrolaria, em fevereiro de 2004, a partir de uma
nota do jornal O Globo informando a criação da RESEX de Itaipu, a Colônia Z-7 encaminhou ao MPE um pedido de ação civil
pública contra o processo de criação da RESEX de Itaipu. Consta na documentação do Inquérito Civil um abaixo assinado com
cerca de 300 assinaturas de pescadores e moradores locais contrários à criação da RESEX “imposta pelo IBAMA”. Vale regis-
trar que a legitimidade do referido abaixo-assinado é contestada pela ALPAPI. Por outro lado, o IBAMA sugeria a ampliação da
RESEX, o que tornava ainda mais difícil a conclusão do processo, uma vez que foi constatada a necessidade de reunir os pesca-
dores de todas as localidades, tornando o processo moroso e inexequível, aumentando os prazos entre as reuniões até não mais
serem convocadas.
O argumento formal para a paralisação do processo foi o de que uma Organização Não Governamental faria os estudos
necessários e que era preciso aguardar a liberação dos recursos para tal. Os recursos nunca vieram e, mais uma vez, a criação
da RESEX Marinha de Itaipu não se concretizou.
Em 2007, com o desmembramento do IBAMA, o processo de criação da RESEX Itaipu foi transferido para o Instituto Chi-

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


443
co Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Em 2010, o órgão sinalizou interesse em dar continuidade ao processo
e o NUFEP/UFF começou, então, a refazer o levantamento de pescadores artesanais tradicionais de Itaipu. Entretanto, desta vez,
o processo não ganhou força. Se por um lado o ICMBio esperava os recursos para a finalização dos estudos, por outro lado, as
lideranças locais queriam o seu apoio institucional para potencializar sua atuação. O ICMBio via com problemas o tamanho da
UC que seria de fato pequeno em comparação com as demais unidades criadas pelo governo federal.
Por outro lado, na esfera estadual, a partir de 2007, começou a se formar um ambiente favorável à criação da RESEX.
Com a entrada do Secretário Carlos Minc na Secretaria Estadual do Ambiente (SEA) e o fortalecimento da gestão participativa
nas UC, o Termo de Compromisso assinado entre o INEA e os pescadores para permanência no Parque Estadual da Serra da
Tiririca (PESET), administrado pelo INEA, ganhara espaço e reconhecimento junto aos pescadores locais. Por outro lado, parte
do PESET já se projetava no mar (enseada do Bananal) e, à época, se discutia a inclusão das ilhas do Pai, da Mãe e da Menina
no Parque. Além disso, a gestão da RESEX seria facilitada em função da infraestrutura do PESET, que poderia ser aproveitada de
forma sinérgica para a gestão da RESEX.
Nesse contexto, no final de 2010, o ICMBio transferiu formalmente a missão e a documentação referente ao processo de
criação da RESEX Itaipu ao INEA.
Em 2012, um grupo de pescadores artesanais tradicionais de Itaipu ligado a ALPAPI procurou a SEA e reapresentou a
demanda pelo apoio à criação da RESEX Marinha de Itaipu, sendo esta acatada pelo Secretário Carlos Minc. Em março de 2013,
começou a circular um novo abaixo-assinado de pescadores artesanais tradicionais de Itaipu, solicitando ao INEA a criação da
RESEX. Posteriormente, outro abaixo-assinado, de amigos apoiadores da causa, também começou a circular. Com isto, a SEA e
INEA deram início a uma série de reuniões de mobilização e planejamento com o grupo de pescadores demandante da RESEX .
Com o registro do processo de criação da RESEX em 2004 em mãos e com as lições aprendidas na memória, o grupo da
SEA coordenou o processo de criação da RESEX, tratou a criação da RESEX Itaipu como política de governo, desvinculando a
ideia da criação como demanda exclusiva da ALPAPI, apesar de reconhecer o protagonismo da entidade. A ideia era não deixar
os conflitos internos entre Z-7 e ALPAPI migrarem para o processo de criação como ocorrera em 2004. Um estratégia de ação fun-
damental foi atuar intensamente na “contra-informação”, combatendo toda e qualquer iniciativa de disseminação de informações
equivocadas e investindo fortemente em informações qualificadas, com esclarecimentos e diálogo permanente sobretudo com
o grupo demandante da RESEX. Houve também alto investimento na articulação com outros órgãos do poder público estadual
e federal, para discutir competências e parceria durante o processo e na gestão da futura RESEX, o que foi estratégico para
fortalecer a proposta, construindo um ambiente de diálogo e o estabelecimento de parcerias com a Marinha, o SPU, a SEDRAP
(Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional Abastecimento e Pesca), a FIPERJ (Fundação Instituto de Pesca do Estado
do Rio), órgão vinculado a SEDRAP e responsável pela articulação e consolidação das política públicas de pesca no estado, o
que foi vital para se evitar os conflitos de competência, haja visto que as atribuições legais distintas no espaço marítimo e as
especificamente relativas à pesca.
As articulações com a SEDRAP e SPU foram essenciais também, em virtude da existência do Projeto Orla (Ministério do
Meio Ambiente e Ministério das Cidades) e do Projeto Canto de Itaipu (SEDRAP e FIPERJ), um projeto urbanístico e socioam-
biental que objetiva estimular o desenvolvimento econômico e social da comunidade pesqueira local. Na fase de diagnóstico
desses projetos, foi registrada a demanda da criação da RESEX na região de Itaipu, bem como a necessidade de regularização
fundiária do Canto de Itaipu, em função da complexidade fundiária local que influencia diretamente a vida das famílias de pesca-
dores de Itaipu. Nesse sentido, no processo de articulação com as entidades citadas acima, houve um entendimento entre essas
instituições (SEA, SEDRAP, SPU) quanto à necessidade de enfrentamento dessa questão em um segundo momento, logo após a
criação da RESEX, evitando-se levar esse conflito fundiário para os limites da RESEX que poderia acabar por inviabiliza-la. Afinal,
não faria sentido existir uma Reserva Extrativista sem os extrativistas.
A permanência do grupo coordenador da SEA na área durante todo o processo, organizando reuniões, conversas infor-
mais sobre a temática, visitas as localidades deu outra dimensão ao processo, uma vez que, com a presença permanente na área
e com a aproximação com os pescadores, evitava-se o fortalecimento da contra-informação, na medida em as dúvidas e incerte-
zas era debatidas e ou esclarecidas com maior rapidez. A parceria com a Universidade Federal Fluminense, em especial com
professores e alunos do NUPIJ e BIOMAR, foi fundamental para subsidiar o processo, uma vez que ambas os grupos vinham
desenvolvendo pesquisas socioculturais e de biodiversidade marinha há 20 anos, contribuindo para assegurar que os pescado-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
444
res de Itaipu se configuravam como um grupo cultural distinto e merecedor do estatuto jurídico de população tradicional e, por
outro lado, que a diversidade de espécies marinhas pescadas por estes credenciava a área como Unidade de Conservação.
Entre novembro de 2012 e julho de 2013, foram realizadas 15 reuniões públicas de mobilização, planejamento e articu-
lação com o grupo de pescadores demandante, suas organizações representativas, entidades governamentais e da sociedade
civil, para apresentar e rediscutir a proposta de criação da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu. Era visível o aumento do
numero de pescadores a cada reunião e ou oficina organizada. Ainda que sem o apoio formal da direção da Colônia Z-7, a
maioria dos pescadores presentes nas oficinas se autodeclararam como representantes da Colônia Z-7. Nas duas oficinas de
esclarecimento, voltadas exclusivamente para os pescadores, temas como a pesca industrial, a expansão imobiliária, os grandes
empreendimentos como portos e a poluição das águas, sobretudo pelo “Bota Fora” da dragagem de áreas na Baía de Guanabara,
eram recorrentes. Neste contexto, a RESEX era sempre apontada como uma solução possível e urgente e de apoio popular.
Os limites da RESEX que incidiram em área exclusivamente marinha foram elaborados através de mapa falado e
discutidos com os demais pescadores em uma reunião pública. O mapa falado é uma técnica muito utilizada em processos de
diagnóstico participativo e no caso da RESEX Itaipu foi utilizado para identificar junto aos pescadores, os limites da RESEX. Por
fim, no dia 30 de julho de 2013 foi realizada a Consulta Pública para a consolidação deste processo.

Consulta Pública como explicitação de conflitos


A consulta pública é parte do processo de criação de Unidades de Conservação, previsto pela Lei 9985/2000 que institui o
Sistema Nacional de Unidade de Conservação. O artigo 22 instituiu a obrigatoriedade da consulta com o propósito de dar ciência
ou publicizar a localização, a dimensão e os limites da Unidade de Conservação.

§ 2o A criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de con-
sulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para
a unidade, conforme se dispuser em regulamento.

§ 3o No processo de consulta de que trata o § 2o, o Poder Público é obrigado a fornecer informa-
ções adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes interessadas.

A consulta pública para a criação da RESEX Itaipu ocorrida em 30 de julho se constituiu no clímax de todo o processo,
decisiva para a explicitação de conflitos e visualização dos que estavam favoráveis ou contra. O evento aconteceu sob um clima
de tensão e estranhamento. Participaram cerca de 270 pessoas entre pescadores de diversas localidades, representantes do
poder público federal, estadual e municipal, representantes de ONGs ambientalistas, vereadores, presidentes de Colônias de
pescadores, moradores, estudantes, representantes de entidades da pesca, professores universitários, policiais, dentre outros.
A consulta durou cerca de seis horas e se transformou num palco de manifestações contrárias e a favor da RESEX; acusa-
ções, ameaças e enfrentamento constantes entre os dirigentes da Z-7 e Z-8 (Jurujuba) e os pescadores de Itaipu, numa espécie
de acertos de conta do passado. No intuito de desacreditar a proposta da RESEX estórias surpreendentes e fantasiosas sobre
proibições de pescar, expulsões, multas e embargos por parte do ICMBio, atos de vandalismo com rede de pesca, retaliações,
taxas de cobrança ilegal ocorridas em outras RESEX marinhas no Brasil eram destacadas por pessoas que se apresentavam
como pescadores artesanais de diversas localidades do Estado.
Cada referencia a uma dada situação contrária, ocasionava aplausos e vaias no salão. O representante da Z-8 fez interfe-
rências ostensivas, com duras críticas à criação da RESEX. Para ele, a reunião não tinha legitimidade por não reunir pescadores e
sim moradores, alegando falta de informação, alegando ser contrário ao método de criação da RESEX, que não trazia benefícios
para os pescadores de uma forma geral e que a área não era só de pescadores de Itaipu e sim também dos 12 mil associados
da Colônia Z-8. Trouxe para o debate o assunto mais recorrente durante a reunião: o direito de todo e qualquer pescador pescar
onde desejar. Essa foi uma das maiores polêmicas suscitadas durante a consulta pública que encontrou forte ressonância por
parte daqueles que se opuseram a RESEX.
Antes do fim da consulta pública os dirigentes de ambas as Colônias se retiraram prometendo retaliações caso a RESEX
fosse criada. Em 30 de setembro do mesmo ano foi publicado o Decreto de criação da RESEX Itaipu (Decreto 44.417/2013) no
dia 7 de outubro de 2013, capitaneadas pelas Colônias Z-7 e Z-8, onze Colônias do Estado do Rio deram entrada numa Ação Civil
Pública junto a Justiça Estadual, em face do Estado do Rio de Janeiro, solicitando a anulação do Decreto 44.417/2013, com liminar

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


445
para suspensão da reunião organizada para o dia 18/11/2013 pela SEA/INEA, que trataria do Conselho Deliberativo da RESEX,
bem como suspensão de quaisquer atos de gestão da referida UC até o julgamento definitivo da ação.
A liminar para suspenção da reunião de formação do Conselho Deliberativo foi indeferida pelo juízo da 1ª Vara de Fa-
zenda Pública por entender que “os elementos existentes no processo não eram suficientes para indicar conduta abusiva ou
desproporcional da Administração Pública”.

Considerações Finais
Ao estipular regras de exploração de recursos naturais em áreas sobre os quais repousam há anos as estratégias de so-
brevivência de uma comunidade tradicional que “espera o peixe chegar” a RESEX Marinha de Itaipu representou uma barreira
institucional aos interesses dos demais pescadores de outras localidades praticantes de outras modalidades de pesca (industrial,
a pesca de traineiras com sonares, a caça submarina etc.).
A estipulação da RESEX atingiu ainda o cerne da ordem econômica da pesca uma vez que o mar é também espaço
de lucro dos demais pescadores que o vislumbram recurso de todos e não um espaço de determinados coletivos. A criação
da RESEX possibilita uma inversão da ordem econômica liberal ao criar uma “reserva de mercado para a tradicionalidade”.
Nesse sentido, as informações conspiratórias sobre os impedimentos, constrangimentos, expulsões, multas e outros relativos a
categoria RESEX, consideradas nesse artigo como “contra-informação”, foram largamente utilizadas durante todo o processo
pelo grupo contrário a RESEX como uma tentativa de “denunciar” o “privilégio” dado a determinado grupo de pescadores em
um espaço público, onde valeriam os ditames da livre iniciativa.
A criação da RESEX representou também a possibilidade de fortalecimento da perspectiva associativista e, consequen-
temente, a alteração de poder e espaço político das Colônias junto às políticas de pesca e aos órgãos públicos.

Referências
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Janeiro. Niterói: EdUFF, 1997.

LATINI, J. L. Memória, Identidade Social e Conflito entre os Pescadores de Itaipu. Trabalho apresentado na RAM, 2007.

LOBÃO, R. J. S. Reservas extrativistas marinhas; uma reforma agrária no mar? uma discussão sobre o processo de con-
solidação da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo RJ. Dissertação de mestrado. Niterói: Programa de Pós-Graduação
em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, 2000.

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Bacharel em Ciências Sociais. Niterói: UFF, 2004.

PESSANHA, E. G. F. 2002. Os Companheiros: trabalho na pesca de Itaipu. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF.1977.

SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos – proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Saulo: Petrópo-
lis, 2005.

SECRETARIA ESTADUAL DO AMBIENTE/ INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE. Estudo técnico para a criação da Reserva
Extrativista Marinha de Itaipu, Niterói RJ. Rio de Janeiro: SEA/INEA, 2013.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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ESTRADA DO COLONO: ANÁLISE DOS ARGUMENTOS
QUE SUBSIDIAM O CONFLITO

Kropf, Marcela Stüker1 & Eleutério, Ana Alice2

1. Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Instituto Latino-Americano de Ciências da Vida e da Natureza,


marcela.kropf@unila.edu.br 2. Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Instituto Latino-Americano de Economia,
Sociedade e Política, ana.eleuterio@unila.edu.br

Resumo
Este artigo analisa os argumentos subjacentes ao conflito ambiental instituído pela proposição de reabertura da Estrada do
Colono, no Parque Nacional do Iguaçu. A Estrada do Colono se tornou alvo de uma disputa pelo território entre grupos com
posicionamentos bem definidos e apresentados em duas cartilhas, uma Pró e outra Contra à sua reabertura. Os argumentos são
analisados quanto à consistência, e classificados como falaciosos, com lógica comprometida/simplistas ou verdadeiros/com-
plexos. Verifica-se que a relevância ecológica, os aspectos legais e atributos imateriais, como o sentimento de pertencimento,
constituem aspectos-chave para discussão do tema. A partir dessa análise crítica, espera-se contribuir para a mediação do con-
flito e para a gestão da unidade de conservação, indo além de discursos apaixonados ou meramente políticos.

Palavras-chave: Parque Nacional do Iguaçu, Estrada-parque, Unidade de Conservação, Gestão Ambiental.

Introdução
As áreas protegidas constituem o principal instrumento para a materialização das políticas públicas de gestão da bio-
diversidade em todo o planeta. No Brasil, ganham força com as Unidades de Conservação da Natureza (UC), legitimadas pelo
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC; BRASIL 2000). Dentre as 12 categorias definidas pelo
SNUC, o Parque Nacional é uma das mais emblemáticas pois, apesar de ser uma unidade de proteção integral, em seu interior
é permitida a execução de atividades econômicas, como o turismo.
Essa hibridização de uso representada nos parques nacionais, proteção/conservação da biodiversidade, educação,
pesquisa, turismo e outras atividades, expõe uma apropriação diversa dos recursos naturais, podendo acarretar problemas e
conflitos ambientais (QUINTAS, 2005). O Parque Nacional do Iguaçu, localizado na fronteira entre Brasil e Argentina, evidencia a
complexidade da categoria de manejo que se propõe, e também os desafios e conflitos inerentes.
Apesar da área de uso público, na qual se encontram as Cataratas do Iguaçu, ser considerada por diversos atores, entre
eles gestores, pesquisadores, e o próprio governo, um modelo a ser seguido por outras UC, a visitação se centra quase que ex-
clusivamente nesse atrativo turístico. O Parque é detentor, no entanto, de outros valores ecológicos, além de uma rica história que
contempla os demais 13 municípios de seu entorno e o vizinho Iguazu. Neste contexto encontra-se a Estrada do Colono, trecho
de cerca de 17 km de extensão que conectou Capanema e Serranópolis do Iguaçu, abrindo a floresta em uma das áreas mais
sensíveis e dividindo opiniões quanto à sua abertura.
Devido à durabilidade e extensão desse conflito, este trabalho se propôs a realizar uma análise da argumentação dos
principais grupos de atores envolvidos na disputa, representada por duas publicações: a cartilha a favor da abertura da estrada,
denominada “Estrada-parque o caminho do Colono: entenda o Projeto de Lei 7123/2010” e; cartilha resposta, contrária à abertura,
intitulada “10 fatos sobre a Estrada do Colono e o Parque Nacional do Iguaçu: Estrada do Colono - crime contra a Natureza”.
A discussão apresentada é fruto da reflexão resultante da experiência das autoras no campo ambiental de Foz do Iguaçu,
participantes das esferas políticas que tratam dessa questão, bem como das pesquisas que realizam nos parques brasileiro e
argentino, o que inclui entrevistas e visitas à campo à diferentes localidades destas áreas, incluso à região da Estrada do colono.
Espera-se contribuir para a gestão do conflito através de análise racional de suas causas, tensões e contrastes.

Área de Estudo
A análise efetuada neste trabalho tem como foco o Parque Nacional do Iguaçu (PNI), que é parte do bioma Mata Atlân-

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


447
tica. Localiza-se no sudoeste brasileiro, e ocupa cerca de 185.000 ha em 14 Municípios do Estado do Paraná (BR), sendo Foz do
Iguaçu o mais relevante em termos turísticos (IBAMA, 2000). O PNI é limitado ao sul pelo rio Iguaçu, e a oeste pelo rio Paraná, e
pela fronteira argentina. Forma, com o Parque Nacional do Iguazú, localizado na província de Misiones, Argentina, o maior rema-
nescente contínuo de Floresta Estacional Semidecidual do interior do continente.
Juntos, os parques atendem aos critérios VII e X da Convenção do Patrimônio da UNESCO, que significam, respectiva-
mente, possuir beleza natural excepcional e caracterizar hábitat de espécies ameaçadas e raras. Compartilham do mais extenso
conjunto de quedas d’água (2.700 m) do mundo, a presença de espécies consideradas como ameaçadas (de acordo com a Lista
Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza - UICN), dentre elas, lontra (Lutra longicaudis), onça pintada
(Panthera onca), águia harpia (Harpia harpyja).
Embora o conjunto das Cataratas seja considerado a característica mais proeminente, detendo o título de uma das Sete
Maravilhas da Natureza, a paisagem conservada pelos parques é diversa e contém mosaicos de habitats igualmente relevantes.
As condições específicas da Floresta Estacional Semidecidual (FES) resultaram em grande biodiversidade além de endemismos
característicos da região. Estima-se que existam mais de 2000 espécies de plantas superiores (LACLAU, 1994), 50 de mamíferos,
348 de aves, 69 de peixes, 41 de répteis, dentre outros seres vivos (IBAMA, 2000). Representa a maior diversidade de fauna e
endemismos na Argentina, sendo 39% de mamíferos com esse status (APN, 1989).
Por sua extensa ocorrência e consequente variabilidade altitudinal, longitudinal, e proximidade a cursos fluviais, a FES
que conforma o PNI pode ser dividida em quatro subformações: Terras Baixas, Aluvial, Sub-Montana e Montana. Em resposta
ao clima estacional com estações secas e chuvosas marcadas, a vegetação apresenta árvores com folhas esclerófilas decíduas
com perda entre 20% e 50% (VELOSO, 1991; IBGE, 1992). Esta singularidade da FES proporcionou a sua comunidade vegetal
importante beneficio relacionado à incidência luminosa. A abertura do dossel devido à perda foliar origina um regime de luz
singular em seu sub-bosque com diversas clareiras. É constituída por elementos arbóreos que atingem 30 a 40 metros de altura,
sem formar cobertura superior contínua.

Dinâmica Socioecológica da Estrada do Colono


A paisagem representada pelo Parque Nacional do Iguaçu, incluindo a Estrada do Colono, é produto de sucessivas
interações dos homens com a floresta. É uma herança dessas relações (SANTOS, 2006), possuindo marcas materiais e imate-
riais. Neste contexto, é possível destacar duas dinâmicas: a social e a ecológica. No contexto social, percebem-se motivações,
sentimentos e ideais diferenciados para a abertura ou fechamento da estrada. No âmbito florestal, ocorrem alterações na sua
estrutura e dinâmica, principalmente, devido à abertura direta e indireta de clareiras, ao efeito de borda, à regeneração natural,
com entrada e saída de espécies (RIBEIRO et al., 2009; CRAWSHAW et al., 2004).
Entender a existência das diferentes respostas do ambiente, quando pensado como espaço de interação entre sociedade
e natureza, é importante para realização de análises complexas dos conflitos que se manifestam na apropriação do espaço.
Desse modo, os conflitos que tratam da abertura, consolidação, e reabertura da Estrada do Colono devem ser considerados
e analisados desde uma perspectiva integrada, que permita a compreensão de fatores sociais, econômicos, e ecológicos que
interfiram nas tomadas de decisões sobre esses processos.
A história da Estrada do Colono1 é melhor conhecida a partir de 1953, quando da sua abertura, ocorrida após a instituição
do Parque Nacional do Iguaçu enquanto área protegida federal, em 1939. É possível que neste primeiro momento a ela fosse
conferido um valor instrumental em relação ao espaço, devido à diminuição do percurso entre Capanema e Serranópolis do
Iguaçu. Esses núcleos populacionais abrigavam famílias relacionadas entre si, sendo a abertura de uma estrada um movimento
natural para as pessoas que habitavam essas regiões.
A política de áreas protegidas era algo novo e distante da população e não haviam instrumentos de fiscalização eficazes
para manter a floresta intacta, como previa o modelo de conservação adotado (MEDEIROS et al., 2004). Na mesma época, forma-
ram-se núcleos habitacionais irregulares em diferentes pontos do parque. No entanto, até 1980, terminaram as desapropriações e
uma ordem judicial determinou o fechamento da Estrada do Colono em 1986, apontando para uma nova forma de gestão da área.
Do ponto de vista ecológico, ambos fatores – presença de vilas no interior do Parque e a Estrada do Colono – ocasionaram
alterações na estrutura e dinâmica florestais, apesar de não haverem estudos de monitoramento que possam comprovar as mu-
1
Garcia e Baptiston (2014) oferecem uma retrospectiva histórica abrangente.

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danças ocorridas. A compreensão sobre as alterações ecológicas de aberturas de estradas em florestas não era bem conhecida
nem pelos cientistas, quanto mais para os órgãos governamentais e a população em geral. Atualmente, existem estudos que
evidenciam essa alteração na dinâmica florestal (ex: CAMPANELLO et al., 2007), como também a importância desse fragmento
florestal no conjunto de remanescentes de Mata Atlântica (RIBEIRO et al., 2009).
É possível que o uso do caminho resultou em uma apropriação do espaço pelos usuários, estabelecendo vínculos e
sentimentos variados, além dos valores instrumentais e econômicos. Por outro lado, o fechamento da estrada pode ter gerado
sentimentos topofóbicos à existência do Parque, que agora se mostrava uma barreira e impunha uma mudança de modo de vida
e do relacionamento com aquele espaço, acirrando a disputa pelo mesmo.
Em 1997 iniciou-se uma nova invasão do local, que ocasionou a reabertura do leito da estrada, e se manteve até 2001. Uma
última tentativa de ocupação aconteceu em 2003, mas foi contida pela Polícia Federal e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Entende-se que durante estes 12 anos (ano-base 2015) a floresta seguiu processos
de regeneração, sendo possível observar a reocupação do antigo leito por flora e fauna nativos. O presença desses elementos no
local, e o valor intrínseco da biodiversidade associada a eles, são muitas vezes abordados como argumentos contrários à estrada,
expressos geralmente por grupos ambientalistas.
Os diferentes valores sobre o Parque evidenciam os diversos usos e visões sobre como deve ser realizado seu manejo.
No entorno do Parque, desde sua criação, ocorreram muitas mudanças, causando diferentes pressões sobre a área protegida.
A atividade agrícola e agropecuária são a principal atividade econômica dos municípios do entorno. A urbanização é crescente,
ampliando a demanda por mobilidade e energia, haja visto a expansão da rede viária, e a instalação de usinas hidrelétricas na
região. O turismo está concentrado em Foz do Iguaçu devido à beleza cênica das Cataratas. Alguns conflitos no interior da área
protegida são frequentes, como a caça, pesca e extrativismo de palmito ilegais.
O caso da Estrada do Colono emerge como um problema ambiental e evolui para um conflito, na medida que há uma
disputa de poder claramente exposta sobre o objeto, e envolve tanto o entorno quanto o interior do parque. O ápice desse con-
flito se dá com o Projeto de Lei 7.123/2010, que além de propor a reabertura da Estrada, busca abrir uma nova categoria dentro
do SNUC, denominada Estrada-parque. Esta proposta evidencia as motivações associadas a este contexto atual, com forte viés
político-econômico e, em contraposição, o posicionamento preservacionista dos grupos contrários. No entanto, existem nuances
entre esses dois extremos.
Os aspectos imateriais da paisagem são difíceis de notar, mas estão presentes no imaginário sobre o Parque. Talvez o
grupo diretamente relacionado com o espaço, uma minoria de famílias pioneiras na região, exemplifique melhor esse aspecto
através da memória dos habitantes atuais. Neste sentido, as estratégias de manejo, além dos valores ecológicos, políticos ou
econômicos, deveriam contemplar essa dimensão simbólica, entendendo que a floresta é permeada por uma história de es-
quecimentos e desigualdades entre as pessoas que nela viveram e que dela se utilizaram (KROPF, 2014).
A relação entre sociedade e natureza é dinâmica e cria situações que podem ser propícias ou adversas aos seres vivos,
sejam eles humanos ou não. Portanto, entender o que conservar, da biodiversidade à cultura, para que conservar, em termos da
ética ambiental, e para quem conservar, sejam para os diferentes atores e os outros seres que habitam o espaço, são aspectos
que devem ser contemplados, considerando a sua complexidade.

Análise dos Argumentos à Favor e Contra a Reabertura da Estrada


A proposta de analisar os argumentos pró e contra à reabertura da Estrada do Colono surge de uma intenção de iden-
tificar raciocínios falaciosos ou com a lógica comprometida, pois entende-se que argumentos sob essas bases não auxiliam, e
podem prejudicar, a mediação do conflito. Por outro lado, o distanciamento dos problemas geradores do conflito, e a análise dos
argumentos escritos permite que a verificação dos mesmos seja baseada na demonstração de fatos, com maior tendência para
a razão, evitando assim motivações e interpretações provenientes da experiência pessoal.
A análise do texto expresso nas cartilhas permite verificar a diversidade de atores envolvidos na argumentação, e al-
gumas características contrastantes. A primeira cartilha, daqui em diante denominada “Pró”, defende a reabertura da Estrada
do Colono, e é assinada pela associação de municípios do oeste do Paraná, Câmaras de vereadores, vereadores do oeste e
sudoeste do Paraná, além da Universidade Federal da Fronteira Sul, localizada em Santa Catarina. Possui um desenho amigável,
contém elementos como desenhos, caracteres, e textos voltados a um público leigo.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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A segunda cartilha, por nós denominada “Contra”, é contrária à reabertura da estrada, e é assinada por mais de 50
entidades, em sua grande parte, Organizações Não Governamentais (ONGs) ambientalistas, tanto locais como internacionais.
Possui desenho e diagramação mais sucintos, porém com fotos de símbolos locais, além de texto mais técnico com opiniões de
profissionais de diferentes áreas, alguns reconhecidos no âmbito da conservação da natureza.
Essas características podem indicar uma série de intenções subjacentes, tendo em vista as possíveis diferenças de visão
de mundo entre os grupos propositores de cada cartilha. Em geral, ambientalistas tendem a utilizar argumentos técnicos, enfati-
zando aspectos ecológicos para subsidiá-los. Em contraste, as associações propositoras da cartilha Pró tenderiam a apresentar
fatos e argumentos apoiados na importância da reabertura da estrada para a promoção do desenvolvimento local e regional.
Além disso, esses grupos geralmente divergem em seus entendimentos sobre a relevância da conservação ambiental frente ao
modelo de desenvolvimento regional seguido.
Os argumentos analisados em ambos instrumentos variaram entre aqueles falaciosos, outros com alguma lógica compro-
metida, alguns simplistas, que pouco acrescentam à discussão, e os mais verdadeiros, com forte proposição ou que permitem
uma discussão mais complexa. A apresentação a seguir tenta contemplar esses blocos.

Argumentos falaciosos
Dos dez argumentos propostos na cartilha Pró, cinco podem ser considerados falaciosos, são eles: 1) A estrada está aqui,
a estrada sempre existiu; 2) A Estrada ainda existe; 3) O caminho do Colono foi fechado por um erro no plano de manejo do
Parque; 4) Decisões seguiram o plano de manejo; e 5) Existem Estradas-parque em todo Brasil.
Os dois primeiros argumentos apresentam proposições e conclusões falsas. Isso porque, atualmente, o antigo leito
da estrada está ocupado por vegetação secundária, em distintos estágios de sucessão, apresentando trechos com regeneração
avançada, com a presença de árvores adultas, e vestígios de utilização da área por fauna. Ainda, a área na qual se localiza o
Parque era, ao menos até o início do século passado, ocupada por florestas e habitada por grupos indígenas. Tais grupos podem
ter habitado regiões limítrofes à estrada, e inclusive usado a área, mas definitivamente não no contexto e trajeto da estrada (FREI-
TAS, 2015). A estrada é, portanto, uma invenção moderna.
O argumento apresentado em resposta na cartilha Contra cita que: “O Parque Nacional do Iguaçu foi criado em 1939. A
chamada Estrada do Colono foi aberta em 1954, como uma picada no meio da mata, mas já de forma ilegal”. Tal argumento é
baseado na lógica de mérito pela antecedência, ou discurso do fundador, o que não necessariamente sustentaria sua relevância.
Entretanto, ao evocar a legalidade da estrada, independentemente de sua origem ou finalidade, o texto levanta uma importante
discussão, pois a lei constitui uma das bases democráticas que regem a sociedade, e será retomada adiante.
O seguinte ponto apresentado na cartilha Contra também contrapõe os argumentos fundamentados na existência da
estrada, expostos na cartilha Pró, ao estabelecer que “Os 18 quilômetros da antiga estrada desapareceram com a recuperação
da vegetação nativa. Abrí-los levaria ao desmatamento de 17 mil metros quadrados de Mata Atlântica, cortando ao meio um dos
últimos grandes remanescentes íntegros do bioma na Região Sul”. De fato, como aponta Ribeiro et al. (2009), o Parque Nacional
do Iguaçu é um dos únicos remanescentes no Brasil que abrigam áreas core, justamente pelo seu tamanho e integridade es-
trutural. Os impactos das estradas são reconhecidos justamente por alterar drasticamente a estrutura da vegetação causando o
efeito de borda (PÜTZ et al., 2011).
A estrada não existe legalmente e nem fisicamente, indicando a falsidade da afirmação “Nenhuma árvore será derrubada
para a instalação da Estrada-parque”, presente na cartilha Pró, e repetida pelo relator do projeto, Deputado Assis do Couto, em
reunião de apresentação da proposta no COMTUR2, em 2013. Na ocasião, ficou claro que o deputado nunca visitou a área e
desconhece os aspectos biológicos e ecológicos mencionados acima (Autor 1, obs. pess.).
Os argumentos 3 e 4 da Cartilha Pró, que indicam um erro do Plano de Manejo do Parque, podem ser considerados
falaciosos. O Plano de Manejo é um documento de gestão que pretende indicar as normas de uso do espaço. O fechamento da
estrada correspondeu a uma medida de gestão, e uma decisão tomada com base nos conhecimento da época, o que invalida os
argumentos expostos. Desse modo, se existe o desejo por mudar a decisão em relação à estrada, cabe questionar a revisão do
Plano de Manejo a partir dos fóruns legais. Essa mudança é plausível, mas deve ser fundamentada num processo democrático,
por e para a sociedade em geral, e não para atender interesses de grupos específicos ou como imposição política.
2
Conselho Municipal de Turismo de Foz do Iguaçu.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
450
Como resposta, a cartilha Contra apresenta: “A Estrada foi fechada definitivamente em 2001 sob ordem da justiça
federal quando a via já era reconhecida como a maior ameaça à integridade daquele Sítio do Patrimônio Mundial. Na época, o
Governo Federal se comprometeu junto às Nações Unidas a não permitir sua reabertura”. Ao evocar novamente a legislação e
clarear que o processo decisório partiu de um embasamento e planejamento, mostra consistência e adequação aos fatos.
O item 5, “Existem Estradas parque em todo Brasil”, não condiz com a realidade, pois essa categoria de UC não consta
da legislação brasileira (BRASIL, 2000). Consiste ainda em uma generalização, ou seja, mesmo se existisse essa categoria de
manejo, isso não significaria que a mesma deva ser implantada em qualquer local ou situação, na ausência de estudos prévios
sobre o impacto local de sua implementação. Neste caso o argumento contrário se faz apropriado dado o embasamento legal: “A
lei que regula o Sistema Nacional de Unidades de Conservação foi debatida por 20 anos no Congresso Nacional, foi lançada em
2000 e não reconhece estradas parque. Essa figura não carrega nenhum significado ambiental”.

Argumentos com a lógica comprometida ou simplistas


Três dos demais argumentos apresentados pela cartilha Pró sugerem ou descrevem cenários futuros desejados. São eles: 6)
A Estrada-parque incentivará o turismo no Brasil; 7) O fluxo de pessoas na estrada facilitará o controle de crimes ambientais; 8) A Es-
trada-parque reforçará a segurança na fronteira. Os argumentos são embasados em hipotéticas relações de causa e efeito que não
são necessariamente reais. O sexto item propõe, por exemplo, que a estrada beneficiaria o turismo em Foz do Iguaçu, por encurtar
distâncias, principalmente para os turistas provenientes do sul do país. Porém, ao contrapor esse argumento às regras de funciona-
mento da Estrada propostas pela própria cartilha (ex: horário das 6-18h; velocidade reduzida em todo o trajeto), e à necessidade do
uso de balsas para cruzar o rio Iguaçu no início do trajeto, percebe-se que o argumento não se sustenta, ao menos temporalmente.
A importância da estrada para o turismo cultural é enfatizada pela cartilha Pró: “o projeto de criação da Estrada-Parque
contempla a criação de um centro de observação da biodiversidade, pontos de comercialização da agricultura familiar (...), e
memoriais sobre coluna prestes, caminhos indígenas e marcação da fronteira”. Tal argumento evidencia uma necessidade de
estabelecer entre o Parque e a comunidade local uma sensação de pertencimento. No entanto, essas iniciativas poderiam ser cri-
adas independente da estrada e, portanto, a mesma não é condição para a materialização de um turismo cultural ou comunitário.
O pertencimento é discurso utilizado frequentemente pelos atores locais e será retomado adiante pela relevância na discussão.
Como resposta, a cartilha Contra indica que “a Estrada do Colono não promoverá conservação e nem incentivará o
turismo regional, pois não liga atrativos significativos ao principal fluxo turístico rumo ao Parque Nacional do Iguaçu”. Esses
argumentos são igualmente rebatíveis, pois desqualificam a floresta e a UC como atrativos turísticos dignos de serem visitados e
apreciados. O fato é que as Cataratas ofuscam em muito a importância da UC (KROPF, 2014), que possui outros ambientes com
potencial turístico ainda pouco explorado, como as corredeiras do Faraday e o rio Floriano.
A viabilidade logística da estrada (ex: presença de pedágios, monitoramento contínuo, manutenção do trajeto) pode ser
contestada com base no manejo executado nas áreas de visitação do PNI. Atualmente, apenas doze pessoas formam o corpo
de funcionários vinculado ao Instituto Chico Mendes de Proteção da Biodiversidade (ICMBio) na UC, a maioria em funções de
gestão, pesquisa, proteção e monitoramento, e educação ambiental (Mariele Mucciatto, ICMBio, com. pess.). A gestão das ativi-
dades turísticas é feita por diversas empresas, e funcionários terceirizados. Assim, o aumento da demanda de funcionários caso
se efetive a reabertura da estrada-parque apenas poderia ser suprido por: i) contratação de um maior número de funcionários
pelo ICMBio; ii) terceirização do atendimento e monitoramento da estrada. Haveria, nesse caso, uma contradição entre o objetivo
proposto para a estrada e o turismo que proporcionaria, que muitas vezes é caracterizado como “elitizado”.
Com base em entrevistas e dados da Polícia Federal, a cartilha Contra expõe que a “Polícia Federal reconhece que es-
trada aumenta criminalidade na região da fronteira”. Esse argumento, no entanto, remete ao período no qual a estrada perman-
eceu aberta, e não necessariamente ao novo contexto para o qual se propõe a reabertura. Na mesma linha, para corroborar a
afirmação exposta no item 7, o texto da cartilha indica que “O próprio fluxo de pessoas vai coibir crimes”. Doravante, a Ruta 101,
no parque argentino, é caminho alternativo para outras atividades ilegais, como caça furtiva e extrativismo, além de passagem
de produtos contrabandeados provenientes do Paraguai e palco para atropelamentos de animais. Essas ocorrências poderiam
indicar que padrão semelhante possa vir a ocorrer no parque brasileiro. Desse modo, tanto os argumentos Pró e Contra apre-
sentam falhas de contexto, e sugerem cenários futuros pouco embasados na realidade local, ou na situação na qual se insere
atualmente o conflito.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


451
Ambas as cartilhas oferecem argumentos que justificam a manutenção ou perda do título de Patrimônio Mundial Natural
conferido ao PNI pela Unesco. A cartilha Pró cita que outros parques nacionais, como o argentino, são detentores do título ape-
sar de possuírem estradas que os permeiam e, portanto, não há risco de perda. Cabe ressaltar, no entanto, que a Ruta 12 não é
uma estrada-parque, e sim uma estrada federal, planejada como rota de acesso entre diversas províncias argentinas. Distinto do
que ocorre no caso da estrada-parque proposta para o PNI, não há alternativas viárias à Ruta 12 argentina. Os parques também
possuem diferentes concepções, formatos e decisões quanto ao manejo e podem ser pensados como um único remanescente
florestal a ser gerido. Ou seja, numa perspectiva de gestão transfronteiriça, cabe verificar a complementaridade da experiência
turística, respeitando as características de cada país.
Em contraste, a cartilha Contra menciona que o Parque Nacional do Iguaçu foi listado pelas Nações Unidas como sítio
ameaçado do Patrimônio Mundial Natural entre 1999 e 2001, justamente pela tentativa de abertura da Estrada do Colono. De acor-
do com o texto, o Parque e o Brasil ficariam internacionalmente “desmoralizados”, de fato, há um comprometimento do governo
brasileiro em atender aos requisitos da UNESCO e o título proporciona um destaque internacional. No entanto, os argumentos
apresentados em ambas as cartilhas são essencialmente especulativos, desviando do cerne da discussão.

Argumentos complexos
Entrevistas citadas ainda enfatizam o prejuízo ao turismo local, e a perda do Imposto de Circulação de Mercadorias e
Bens (ICMS) Ecológico. No caso do turismo, no entanto, não são citadas fontes ou pesquisas que corroborem essa perda de
atratividade vinculada à possível perda do título. Já no caso do ICMS Ecológico3, sabe-se que o Parque Nacional do Iguaçu re-
passa anualmente R$ 9 milhões a municípios em seu entorno, e arrecada R$ 17 milhões anuais com ingressos pagos pelos mais
de 1,5 milhões de visitantes. Os argumentos demonstram que a reabertura da estrada pode afetar negativamente a receita dos
municípios envolvidos, ao menos no que tange à perda de arrecadação com o ICMS Ecológico. Vale ressaltar que apenas dois
municípios dos quatorze localizados no entorno do PNI seriam afetados diretamente. A perda de arrecadação com turismo em
Foz do Iguaçu é, no entanto, contestável.
Talvez um dos pontos mais controversos acerca da reabertura da Estrada do Colono é a proposta de denominação
“estrada-parque”. Como já mencionado anteriormente, de acordo com a cartilha Pró, existem “estradas-parque em todo o Brasil”.
Para apoiar esse argumento, cita o caso de duas estradas localizadas em UC. A primeira, como o próprio texto explicita, não cons-
titui uma estrada-parque, e não deveria ser usada para reforçar o argumento. A segunda é a Estrada Real, que cruza o Parque
Nacional da Bocaina, até a cidade de Paraty/ RJ, caminho construído entre os séculos XVII e XIX para transporte de ouro. O trecho
da estrada localizado dentro da UC é, em grande parte, inacessível a carros. Nenhum dos casos apresentados se assemelha à
situação local e regional na qual se insere a Estrada do Colono.
A cartilha Contra aborda o tema desde sua perspectiva legal, e menciona as estradas-parque existentes em países como
Estados Unidos para evidenciar que o caso aqui apresentado não deveria ser caracterizado como tal. Isso porque nesses países
essa nomenclatura é usada fundamentalmente para estradas cênicas, o que difere a situação local. Cita ainda a abertura de
precedentes na legislação federal que rege o SNUC, permitindo a interferência estatal em assuntos federais:

Aprovar o projeto de lei é também ser conivente com a alteração indevida da legislação brasileira,
já que a proposta pretende alterar a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC)
e abrir um precedente com graves consequências para a conservação da biodiversidade. A inter-
ferência estadual em unidades de conservação federais, prevista no projeto, também será faci-
litada e deve enfraquecer gravemente o SNUC.

Esses precedentes, ao formar brechas na legislação federal, tornam-se aplicáveis a outras UC, em distintas regiões e
contextos. Nesse sentido, a reabertura da Estrada do Colono, e a mudança de nomenclatura da mesma para estrada-parque
afetaria negativamente não apenas a integridade do Parque Nacional do Iguaçu, mas também a integridade de outras UC na-
cionais, quer passem ou não por conflitos semelhantes. Nesse ponto, a cartilha cita que a estrada prejudicaria a imagem do
Brasil junto à comunidade internacional, com a qual o país mantém uma série de compromissos ambientais. Ademais Garcia e

3
O Paraná foi o primeiro estado a utilizar o ICMS Ecológico como forma de compensar municípios que possuíssem qualquer tipo de restrição para expansão de
atividades econômicas, em virtude da presença de UC ou áreas de mananciais em seus territórios (modificado de ICMS Ecológico, 2015).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
452
Baptiston (2014) citam o Projeto de Lei 7.123/2010 como um retrocesso ambiental por ignorar o bem comum e desprezar o núcleo
essencial do direito ambiental.
Esse argumento é relevante, visto que a reabertura da estrada-parque fere o inciso III do Art. 225 da Constituição Federal,
que versa sobre a alteração ou supressão de espaços territoriais protegidos apenas através de leis que as justifiquem, vedando
quaisquer formas de uso que comprometam suas integridades. Sendo assim, os efeitos de borda ocasionados pela reabertura da
estrada inviabilizariam sua reabertura, por afetar negativamente a integridade da UC, ocasionando a fragmentação de hábitats, e
afetando diretamente áreas de uso de espécies em risco de extinção.
Por fim, é importante retomar a questão sobre o sentimento de pertencimento, argumento forte, pois é resultado de cren-
ças, valores e experiências muito particulares, como também parte de um imaginário coletivo, difícil de ser desconstruído ou
modificado. Por este motivo, é utilizado como argumento para manipulação daqueles que são mais afetados pela questão. Neste
sentido, é importante destacar que o pertencimento pode ser compreendido de diferentes formas, uma delas como se as pes-
soas deveriam sentir que o parque pertence a elas, sendo uma maneira egocêntrica e utilitária de se relacionar com o espaço,
entendendo a floresta como mera provedora. A segunda forma de entender o pertencimento, é de que como seres naturais, as
pessoas pertencem ao ecossistema representado pelo parque, denotando uma ética ecocêntrica.
Sob essa ótica, e a partir da dinâmica socioecológica anteriormente apresentada, é relevante pensar a gestão ambiental
como um processo decisório que os homens, enquanto seres naturais e sociais, transformam e são transformados pelas decisões
que tomam. Portanto, saber onde se quer chegar enquanto sociedade é fundamental nesse caminho.

Considerações Finais
A análise dos argumentos aqui apresentada revela a existência de diversas motivações e interesses voltados à apropria-
ção do espaço representado pelo Parque Nacional do Iguaçu. Demonstrando uma posição favorável, ou contrária à reabertura
da Estrada do Colono, as proposições são fruto de um longo diálogo – ou a falta dele – entre as partes envolvidas. Evidenciam,
desse modo, um conflito internalizado que vem progredindo em argumentos ao longo dos anos, no qual se percebe que o setor
a favor da reabertura da Estrada transita a uma argumentação idealizada de uma estrada “ecologicamente correta” e inserida na
lógica econômica e interesses locais. O setor contrário, por sua vez, se posiciona salientando os riscos ambientais e políticos da
reabertura, porém, supervalorizando estes aspectos a partir um cenário catastrófico mediante a reabertura.
Dos argumentos propostos, três parecem ser fortes, configurando o cerne da discussão: i) A relevância ecológica deste
remanescente é um fato incontestável, com pesquisas suficientes que mostram esse valor e que comprovam as possíveis alte-
rações estruturais da floresta e suas consequências numa possível reabertura da estrada; ii) Existem fatores legais sérios a serem
considerados, como o retrocesso ambiental que caracterizaria a aprovação do projeto de lei; iii) O pertencimento é uma questão
fundamental em geral desconsiderada em ambos os argumentos. O Parque Nacional realmente não faz parte da “vida” dos mora-
dores do entorno, e a presença da estrada, desde essa perspectiva história, faz parte da luta da população local por acesso, por
um “resgate” de seus direitos históricos. O Parque, por outro lado, não faz, ou não conseguiu fazer parte dessa história.
Dados os distintos interesses, torna-se natural o surgimento de conflitos, fruto de decisões humanas imbuídas de distintos
valores, relacionados à utilização desses recursos. Percebe-se, no entanto, que a argumentação utilizada em prol do interesse
dos grupos estudados é centrada na discussão, e não na construção de conhecimentos integrados sobre o conflito gerado pela
Estrada do Colono e sem um objetivo comum. Segundo Penteado (1980, p. 233), “argumentar é discutir, mas principalmente, é
raciocinar, é deduzir e concluir. A argumentação deve ser construtiva na finalidade, cooperativa em espírito e socialmente útil”.
Esse raciocínio claramente não pode ser identificado nas exposições em prol ou contra a reabertura da Estrada do Colono.
Com base nessas considerações, propomos como forma de contribuir para a mediação do conflito: 1) Melhor divulgação
de ações de Educação Ambiental já existentes por parte dos gestores, como o programa de formação de professores da Educa-
ção Básica dos municípios do entorno; 2) Fortalecimento do Conselho do Parque Nacional do Iguaçu como fórum de discussão,
e fomento à participação da comunidade, e formação qualificada de seus componentes, em prol de discussões críticas; 3) Fo-
mento à pesquisa em educação ambiental e percepção do patrimônio, considerando a Estrada do Colono como estudo de caso,
para subsidiar ações aplicáveis à realidade local. Essas propostas possibilitariam uma melhor compreensão sobre importância
social, econômica e ecológica do Parque para os municípios do entorno, bem como uma aproximação entre os atores envolvidos,
gerando processos participativos e cooperativos de gestão.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


453
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454
A GESTÃO PARTICIPATIVA NA REDELIMITAÇÃO DO
PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO PAPAGAIO, SUL DE MINAS

Junqueira, Mariana Gravina Prates1

1. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, marianagravina@yahoo.com.br

Resumo
O foco do artigo é o conflito socioambiental gerado com a instalação da Unidade de Conservação, Parque Estadual da Serra do
Papagaio, na Serra da Mantiqueira e o projeto de redefinição de seus limites. A região possui uma população tradicional, a cai-
pira, que apesar de ter conquistado o direito à permanência em seus territórios, na prática, isso raramente acontece, uma vez que
possui pequena articulação política para fazer valer seus direitos. As unidades de conservação que não permitem moradores tem
sido alvo de grandes problemas para as populações rurais no Brasil e no mundo; são criadas autoritariamente, as populações
são deslocadas e vistas como grandes inimigas da preservação ambiental. Contudo, apesar dos inúmeros conflitos relacionados
à manutenção da atividade econômica anterior, a permanência em seus territórios e ao processo ineficiente de desapropriação,
uma ação participativa foi implementada. Partiram de um mapa do Instituto Estadual de Floresta de Minas Gerais (IEF) e pro-
puseram um processo de redefinição dos limites do Parque. Essa gestão participativa, apesar de ser um passo democrático, não
conseguiu solucionar os conflitos que permanecem na região. A nova demarcação não foi aprovada na Assembleia Legislativa
de Minas Gerais e os conflitos persistem.

Palavras-chave: Parque Estadual da Serra do Papagaio, Conflito Socioambiental, Comunidade Tradicional Caipira, Gestão Participativa.

Introdução
O Parque Estadual da Serra do Papagaio, PESP, foi criado em 5 agosto de 1998, de acordo com o Decreto Estadual
nº39.793, com uma área de 22.917 hectares, abrangendo áreas dos municípios de Baependi, Aiuruoca, Alagoa, Itamonte e Pouso
Alto (MINAS GERAIS, 1998). A instalação se fez em um território em que coexistem modos de vida distintos: o que pode ser con-
siderado tradicional, centrado em uma cultura rural; e outro, vinculado à sociedade urbano industrial, mas que apresenta alguns
rearranjos da contemporaneidade.
A região possui grande diversidade social e cultural, pois além da população tradicional caipira1 existente houve intensos
fluxos migratórios de centros urbanos do sudeste, com a ocorrência de transformações sociais, econômicas e também ambien-
tais. Além do PESP, houve a criação da Área de Preservação Ambiental da Mantiqueira (APA- Mantiqueira) originando grandes
conflitos socioambientais em decorrência dessa nova legislação ambiental implementada, tais como a proibição do uso da terra
pelas populações rurais tradicionais e desapropriações.
As comunidades tradicionais tem conquistado o direito legal de permanência em seu território2; contudo, com pequena
articulação política, a comunidade tradicional caipira não tem conseguido assegurar esse direito. No embate com a instalação
de unidades de conservação de proteção integral, as populações rurais têm sido consideradas grandes inimigas do ecossistema
e forçadas a abandonar seus territórios.
Os conflitos da região acontecem em decorrência da restrição do uso do território para atividades econômicas tradicio-
nais, como a pecuária leiteira, a proibição do uso do fogo para a manutenção dos pastos, a proibição de usar pastos que estão
dentro da área da unidade, mas que não foram devidamente desapropriadas e atravessar o parque com rebanhos para chegar

1
A população tradicional caipira foi definida por Darcy Ribeiro (2006) e Antônio Cândido (2001), como uma população rural com modalidades étnicas e culturais
específicas em regiões de São Paulo e Minas Gerais. A vida social caipira reproduz uma estrutura peculiar e descolada dos moldes capitalistas difundidos no mundo
todo. Valoriza o equilíbrio entre o trabalho e o lazer enfatizando sua independência inserida em seu sistema tradicional de produção. A região do entorno do parque
Estadual da Serra do Papagaio insere-se nessa definição, portanto denomina-se área cultural caipira.(CÂNDIDO, 2001)
2
De acordo com o Decreto 6040 de 07 de fevereiro de 2007, no Artigo 3 (BRASIL, 2007)
I-Garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural
e econômica.
II- Solucionar e/ou minimizar os conflitos gerados pela implantação de Unidades de Conservação de Proteção Integral em território tradicionais e estimular a criação
de Unidades de Conservação de Uso Sustentável.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


455
a pastos próximos. Além disso, registra-se a presença de comunidades religiosas que pretendem manter suas áreas para o uso
cultural religioso, comunidades inteiras que estão no interior do traçado e homens rurais que tem grande ligação simbólica com
o território e são contra a desapropriação. Na tentativa de lidar com esses conflitos socioambientais no entorno da unidade de
conservação, houve uma proposta de redefinição dos limites do Parque, tendo sido utilizado um modelo participativo, através do
qual se procurou abrir o diálogo com os segmentos interessados. Contudo, os conflitos não foram solucionados.
Esse artigo é parte da pesquisa de doutorado que procura recuperar a trajetória histórica da criação da Unidade de Con-
servação, suas motivações sociais e ambientais, o processo governamental e burocrático e também analisar os conflitos socio-
ambientais e políticos que envolvem sua criação. Além disso, dar destaque à diversidade cultural dessa região que se enquadra
em uma área da comunidade tradicional caipira e compreender as transformações a que todos os atores estão sujeitos. Contudo,
o foco do presente artigo é a análise do debate sobre a criação de unidades de conservação de uso integral e consequentes
conflitos socioambientais gerados na região rural do entorno do PESP e o seu processo de redelimitação que teve início em 2012
e continua até hoje e também sua metodologia participativa.
A metodologia que vem sendo utilizada é a pesquisa participante associada a entrevistas qualitativas semiestruturadas
com duração aproximada de duas horas. Essas entrevistas foram feiras durante os anos de 2013, 2014 e 2015 com diferentes su-
jeitos sociais que participaram tanto do processo de criação como de redelimitação das fronteiras do PESP, foram selecionados
sujeitos dos cinco os municípios que trabalham ou trabalharam para o Estado, gestores da Unidade e do IEF e da população
rural e urbana envolvidas no processo. A pesquisa participante teve início com a pesquisa de mestrado em 2007 e se estendendo
para a participação do Conselho Consultivo do PESP, a partir de 2014.

Os conflitos socioambientais na área cultural caipira


A região do PESP (Figura 1) é de grande relevância ecológica, pois concentra as nascentes de alguns dos principais
afluentes do rio Grande e importantes conjuntos montanhosos, integrado ao Parque Nacional do Itatiaia e a APA Mantiqueira. A
relevância cultural também merece destaque, pois toda a área do entorno do PESP integra a área cultural caipira, áreas de São
Paulo, Minas Gerais e Goiás onde vivem populações tradicionais com essa variação cultural específica3. Tem recebido um fluxo
migratório de moradores vindo de áreas urbanas que buscam um contato mais estreito com a natureza em ambientes de grande
beleza cênica.

Figura 1. Mapa de localização do Parque Estadual da Serra do Papagaio. Fonte: Instituto Estadual de Floresta – IEF (Plano de manejo)

3
Para definir o modo de vida da comunidade tradicional caipira do entorno do PESP foi utilizada a pesquisa de campo e em um diálogo com Antônio Candido, Darcy
Ribeiro, Antônio Carlos Diegues e Rinaldo Arruda, defini-los como tal, inserida em uma área cultural caipira. A observação participante foi fundamental para essa
analogia, partindo da definição de algumas regiões na pesquisa de mestrado e expandido para todo o PESP..

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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O processo de implantação do Parque, assim como diversas outras unidades de conservação pelo mundo, traz à tona o
conflito entre a ocupação do espaço e a utilização dos recursos naturais pelas populações que vivem nas áreas e a preservação
do meio natural. Assim, a iniciativa do Estado em garantir a preservação por meio de desapropriação de terras particulares entra
em conflito com as diferentes culturas e o uso econômico que as sociedades sempre fizeram da terra.
Esse modelo de conservação e de instalação de unidades de conservação nos países pobres do sul se limita à conser-
vação do ambiente natural, desconsiderando as necessidades das populações locais e imaginando que a preservação só pode
acontecer na medida em que for totalmente separada das sociedades humanas (DIEGUES, 2000).
Embora as questões ambientais constituam um dos temas mais relevantes para a humanidade nesse início de milênio,
pois afetam os grupos sociais e as sociedades, as soluções propostas acompanham o modelo neoliberal e são pensadas sob
a ótica de técnicas modernas e do mercado, deixando de lado uma concepção humanista da natureza, onde os grupos sociais
também estão inseridos (DIEGUES, 2000).
As ideias de conservação da natureza, segundo Vianna (2008) insere-se justamente na necessidade de perpetuação mate-
rial e de valores da sociedade dominante, que se depara com a possibilidade de esgotamento dos recursos naturais e busca a
própria sobrevivência, mas paradoxalmente acaba produzindo uma crítica ao próprio modelo.
O conceito de conservação, relativamente recente, é também definido sob os aspectos técnicos e científicos e possui tan-
tas definições como as correntes de pensamento sobre esse tema. A definição do Sistema Nacional de Unidade de Conservação
(SNUC) define conservação como:

Manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, manutenção, a utilização


sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural, para que possa produzir o maior
benéfico, em bases sustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as ne-
cessidades e aspirações das gerações futuras, e garantindo a sobrevivência dos seres vivos em
geral (BRASIL, 2000).

Nesse sentido a conservação se aproxima do conceito de desenvolvimento sustentável.4 Entretanto, o modelo das uni-
dades de conservação adotado hoje para a criação das mesmas nos países pobres do Sul não corresponde ao projeto de lei
citado acima. O modelo norte-americano de proteção à vida selvagem, sem moradores, foi que se expandiu mundo afora, o que
causou e continua causando inúmeros conflitos no Brasil e principalmente nos países do Sul (DIEGUES, 2000).
A ideia de injustiça e racismo ambiental permeia esse debate, uma vez que os territórios onde habitam populações ne-
gras, indígenas, caiçaras, caipiras, ribeirinhas, pescadores, marisqueiros, jangadeiros, extrativistas entre outros, são cobiçados
por ações do governo que pretendem reterritorializá-las por empresas capitalistas. Estas visam ao atendimento do mercado e ao
desenvolvimento nacional, além da criação de unidades de conservação para a preservação da biodiversidade. Esses grupos
étnicos permanecem em um estado de vulnerabilidade e exclusão política e social, o que possibilita a sua expulsão de seus ter-
ritórios de origem, ainda que tenham direito à terra.
Os cientistas delimitam os espaços a serem preservados, os povos a serem excluídos ou esquecidos e legitimam seu
discurso por meio de um poder simbólico como aponta Bourdieu (2004). A construção do dito também faz parte da elaboração
do discurso e do ato narrativo das sociedades e consequentemente permite a construção do pensamento e do conhecimento,
imprimindo um sentido para a vida. “O conhecimento é a capacidade que tem a espécie em reproduzir os eventos vividos e não
vividos, mas aprendidos por meio da produção da experiência” (PEREZ-TAYLOR, 2006, p.130).
As ideias, as crenças, os modelos, ou os discursos existem porque são ditos e uma sociedade os ouve e os legitima, possi-
bilitando até que seja imposto para outra sociedade. Assim, quando os estadunidenses dizem que todos os homens e sociedades
destroem o ambiente natural, eles selecionam realidades vividas e abandonam outras das quais muitas comunidades convivem
com o ambiente e produzem um conhecimento por meio da compreensão da realidade, que passa ser a verdade.
Uma verdade da sobremodernidade ou da alta modernidade que cria espaços fortificados e isolados, “não lugares”, isto
é, transformam os lugares das comunidades tradicionais em espaços, onde a experiência vivida e o passado não são partilhados,

4
Segundo Diegues (1992) o desenvolvimento sustentável é aquele que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer as gerações futuras. Partindo de dois
conceitos principais, enumerados pelo documento Nosso Futuro da Comissão Brudtland de 1987, de que haveria prioridade na satisfação da necessidade das cama-
das mais pobres e às limitações que o estado impõe ao meio ambiente além de introduzir noções de ética e política nas transformações das relações econômicas e
sociais.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


457
tendo sido transformados em espaços apenas de comunicação, circulação e consumo. Um “não lugar turístico” (AUGÉ, 2010).
Atrelados à mobilidade do turismo, pessoas circulam com suas máquinas e filmadoras pelo Parque Estadual por um dia, apre-
ciam as paisagens desprovidas de habitantes e voltam para suas casas para assistir os filmes em suas televisões e observar as
fotografias. Sem refletirem que ali havia uma população que foi deslocada para que ele pudesse desfrutar desse seu tempo livre,
poderíamos também aproximar esse comportamento com a atitude blasé de Simmel (2006), que destaca a indiferença desse
homem na metrópole.
Presenciamos, portanto, a substituição de lugares antropológicos por não lugares em diversas esferas do mundo con-
temporâneo, motivada pela mobilidade, pela tecnologia das comunicações, da globalização e do transporte e uma delas em um
ambiente diferente do urbano, mais rural: a dos Parques nacionais e estaduais no Brasil. Conforme a definição do autor esses
lugares antropológicos são espaços relacionais, identitários e históricos, com suas identidades e coletividades específicas, con-
ferem sentido para aqueles que o habitam e inteligibilidade para aqueles que observam (AUGÉ, 1994).

Reservamos o termo “lugar antropológico” àquela construção concreta e simbólica do espaço


que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas
à qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que
seja. É porque toda antropologia é antropologia da antropologia dos outros, além disso, que o
lugar, o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e
princípio de inteligibilidade para quem o observa (AUGÉ, 1994, p. 51).

Em contrapartida se o lugar é definido como um lugar relacional, identitário e histórico, se essas características não
existem, o lugar passa a ser um não-lugar. Produto dessas transformações que diversos autores chamam de modernidade, pós-
modernidade, alta modernidade ou sobremodernidade, os não-lugares se definem como despossuídos de memória, relação
social ou história.

Os não-lugares, contudo, são a medida da época; medida quantificável e que se poderia tomar
somando, mediante algumas conversões entre superfície, volume e distância, as vias aéreas, fer-
roviárias, rodoviárias e os domicílios móveis considerados “meios de transporte” (aviões, trens,
ônibus), os aeroportos, as estações e as estações aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, os
parques de lazer, e as grandes superfícies da distribuição, a meada complexa, enfim, redes a cabo
ou sem fio, que mobilizam o espaço extraterrestre para uma comunicação tão estranha que muitas
vezes só põe o indivíduo em contato com uma outra imagem de si mesmo (AUGÉ, 1994, p. 73).

Temos, portanto um rompimento com a relação afetiva e as memórias do lugar das comunidades tradicionais, restando a
elas uma procura ansiosa por uma saída. E isso pode gerar alianças e negociações ou ainda um conflito aberto (LITLLE, 2002).
Espaços que eram usados para sua reprodução sociocultural, de grande importância para as representações mentais, funda-
mentais para o sentido da vida e ao imaginário das sociedades, para sua economia baseada em métodos tradicionais de manejo,
(DIEGUES; ARRUDA, 2001) não mais podem ser utilizados como tais.
Portanto, as populações que são expulsas de seus territórios são impedidas de reproduzir seus modos tradicionais de
vida e esses territórios se transformam em áreas públicas. Entretanto, muitas ações estatais, ao invés de contemplar todas as
camadas da população, direcionam as ações em benefício de grupos específicos, acarretando, portanto a reprodução do racis-
mo ambiental e de inúmeros conflitos socioambientais (COSTA, 2011) Apesar de os território terem grande importância para as
comunidades, não são culturas estáticas no tempo e espaço, ao contrário, se transformam e sofrem influencias externas.
Dessa forma, a implantação desse Parque a que nos propomos estudar tem sido problemática, na medida em que as co-
munidades não são previamente consultadas e nem envolvidas nas discussões que definem as áreas a serem abrangidas pelas
unidades de conservação. Apesar de existir um conselho consultivo, sua criação ocorreu apenas em abril de 2006, contudo não
significou uma diminuição de conflitos, ou maior esclarecimento para a comunidade. Há falta de informação sobre os objetivos,
propósitos e possíveis vantagens o que torna o processo traumático para as populações locais, já que a manutenção de suas antigas
atividades econômicas torna-se inviável, sem uma contrapartida que lhes garanta o acesso a uma alternativa de geração de renda.
Os órgãos públicos ambientais IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e IEF
(Instituto Estadual de Floresta), então gestores da APA Mantiqueira e do PESP, respectivamente, começaram atuar na região na

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458
última década, quando entraram em contato com as populações do entorno por meio de fiscalizações, embargos e multas, pro-
vocando uma onda de aversão ao invés de promoverem uma conscientização ambiental fundamentada na participação social.
As dificuldades institucionais do IBAMA levaram à reformulação da gestão, na qual o Instituto Chico Mendes de Conservação e
Biodiversidade (ICMBio) passou a ser o gestor da APA Mantiqueira.
Nesse contexto de conflitos socioambientais, há grande incerteza sobre os limites do Parque Estadual, uma vez que
sua demarcação definitiva ainda não ocorreu, pois pelo Decreto foram incluídas algumas áreas produtivas, bairros rurais foram
incorretamente incorporados no desenho, acarretando inúmeros conflitos. Assim a correção dos limites foi sugerida pelo plano
de manejo e depois proposta no projeto de lei; contudo, o processo é lento causando descontentamento e insatisfação com a
Unidade, que não consegue propor alternativas de geração de renda para as comunidades e nem concluir as desapropriações.
Apesar de a ecologia social considerar o ambiente determinante ao desenvolvimento sociocultural das sociedades tradi-
cionais e discorrer sobre usos culturais que mantém a biodiversidade com grande utilização de recursos; muitas outras correntes
reconhecem a dificuldade de integrar o homem na teoria de conservação, havendo a difusão de atividades conservacionistas
consideradas autoritárias, como a implantação de parques nacionais e estaduais. Essas, muitas vezes, desconsideram direitos e
o conhecimento das populações tradicionais (DIEGUES, 2000).

Práticas conservacionistas muitas vezes desrespeitam os direitos civis das populações locais, pro-
movendo o seu deslocamento forçado das áreas transformadas em parques e ignorando seu vasto
conhecimento e práticas de manejo de florestas, rios, lagos e ambientes costeiros. Muitos dos
funcionários administradores de parques se comportam como verdadeiros senhores feudais, de-
cidindo arbitrariamente a vida de centenas ou mesmo milhares de pessoas que viviam na floresta
por várias gerações (DIEGUES, 2000, p.16).

A ecologia social é denominada por Alier (2012) como culto do silvestre ou à vida selvagem; estão preocupados com a
preservação da natureza silvestre, mas não levam em consideração a indústria ou a urbanização em suas análises; consideram o
crescimento econômico prejudicial. Outra corrente importante, o credo na ecoeficiência, preocupa-se com o manejo sustentável
dos recursos naturais e os problemas vinculados à contaminação nos contextos industriais, de pesca, da agricultura e de silvicul-
tura. Além das duas dominantes, o autor discorre sobre uma terceira e menos difundida corrente: o ecologismo dos pobres ou
popular, ou ainda justiça ambiental. Esse é um movimento pela justiça ambiental que nasceu dos conflitos ambientais em níveis
locais, regional, nacional e global causado pelo crescimento econômico e pela desigualdade social. Ele ressalta que muitas
vezes os grupos indígenas e camponeses tem convivido sustentavelmente com a natureza e tem assegurado a biodiversidade e
enfatiza a necessidade de justiça social entre os homens (ALIER, 2012).
Nesse contexto, as comunidades tradicionais rurais que vivem no entorno do PESP tem sofrido a ação destas transforma-
ções. Enquanto alguns têm investido fortemente no turismo como alternativa de renda, muitas vezes abandonando as atividades
agropecuárias pré-existentes, outros mantêm sua característica agrária. Em decorrência do isolamento das comunidades, as re-
alidades podem ser bem distintas. A intensificação do turismo acontece em alguns municípios, como Aiuruoca e Itamonte, onde
existem diversas pousadas, vivem muitos habitantes que vieram das cidades e o fluxo turístico é intenso. No vale do Matutu em
Aiuruoca, as atividades agrícolas foram praticamente abandonadas, uma vez que a maioria da população caipira já não dispõe
de terra para o plantio em decorrência das subdivisões das heranças, da venda das propriedades e do fim do sistema de par-
cerias. As restrições ambientais foram também lá apontadas pelos moradores locais como uma das causas do fim do “tempo de
roçado” e início do “tempo atual”, quando os moradores têm que comprar todos os seus alimentos na cidade5.
Nas comunidades rurais de Baependi, as relações históricas e sociais são distintas e as atividades agrárias importantes.
O município tem a mais extensa área dentro do PESP, 40%, e as áreas já têm seu aproveitamento econômico limitado. Em
decorrência disto, as áreas de encostas e próximas aos cursos d’água deixaram de ser alternativas viáveis e produtos que an-
teriormente eram cultivados nesses brejos, como o arroz, tornaram-se inviáveis na região. Assim como a retirada de madeira
para a construção de casas e para a obtenção de fogo. Segundo o atual prefeito de Baependi, Marcelo Faria Pereira: “O projeto
ainda encontra resistência dos produtores (http://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivo/2013/06/25 _audiencia_publi-
ca_comissao_meio_ambiente_serra_papagaio.html)
5
Fundação Matutu/ Sebrae/ Projetho. Programa de desenvolvimento da Serra do papagaio. Relatório de diagnóstico socioeconômico da microbacia do riberão da
Água Preta, 2005.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


459
Proposta de gestão participativa
Com intuito de minimizar conflitos e atender essa população, no ano de 2012 teve início uma ação de redefinição das
fronteiras do Parque Estadual da Serra do Papagaio sob a gerência do IEF – Instituto Estadual de Floresta- em um Consórcio de
Eco Desenvolvimento regional da Serra do Papagaio em direção a uma Gestão para sustentabilidade com a Fundação Matutu.
Essa ação foi concomitante à mudança da gestão do IEF, depois da instituição passar por cinco diretores interinos, sob
grande onda de escândalos e corrupção, inclusive com a prisão de um de seus diretores, Humberto Candeias. O cargo foi ocu-
pado por um sociólogo, Marcos Ortiz, que nomeou como Diretor de Áreas Protegidas (DIAP), um administrador de empresas,
especialista em questões socioambientais, Leonardo Ivo. No início da gestão, percebendo os inúmeros conflitos em unidades
de conservação no Estado entre outros problemas internos da instituição, empreenderam uma mudança de diretrizes de gestão.
Entre elas, a necessidade de se elaborar um planejamento participativo a partir de um diagnóstico, também participativo, das
ações prioritárias do instituto.
O diagnóstico elaborado com os gestores das unidades do Estado detectaram 25 problemas relevantes e a partir daí
foram definidas prioridades, como necessidade de recategorização, redelimitação, regularização fundiária, plano de manejo,
infraestrutura e serviços, em blocos de população indígena, quilombola e agricultura familiar. A partir daí definiu-se quais seriam
as unidades de conservação contempladas. Foram escolhidas dez unidades de conservação6 com grande incidência de conflito
e enviadas as propostas para a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG); contudo apenas o Parque Estadual da Serra do
Papagaio foi contemplado com um projeto de lei.7
Os conflitos no PESP eram marcantes, expressos principalmente por grandes incêndios e descontentamento da popula-
ção do entorno. Alguns projetos já vinham sendo executados na região pela Fundação Matutu, como o zoneamento da bacia da
Água Preta e um de cartografia social, somados aos contatos políticos dos dirigentes da Fundação com órgãos governamentais,
constituindo um campo fértil para a execução do projeto de redelimitação. E ainda a criação do Consórcio de Ecodesenvolvim-
ento que deveria promover a integração entre as prefeituras do entorno, promover o ecodesenvolvimento e facilitar o processo,
implantado pela mesma entidade.
Cartógrafos sociais foram recrutados para auxiliar no mapeamento das linhas do PESP, já que existia, e ainda existe
grande desinformação da população local em relação aos limites e foram realizadas cinco oficinas, uma em cada município. A
mobilização ficou a cargo do Consórcio por meio de rádio, faixa e autofalante. Uma das grandes reclamações é a de que muitas
comunidades ficaram sem aviso, o que é previsível com as formas de comunicação utilizadas, uma vez que as comunidades
rurais afastadas não tem acesso a essas fontes de informação.
A metodologia cartográfica realizada, segundo o coordenador do projeto Manno França, partiu de uma classificação de
imagens de satélites Rapideye e classificação orientada de objetos, com o software Ecognition, da Trimble. A escala utilizada
para o trabalho foi de 1:25.000 que revelou as áreas com vegetação mais conservadas (florestas, campos, áreas em recupera-
ção). Esse mapa foi combinado com outros, contendo mapa fundiário, RPPNs, atrações turísticas, comunidades rurais e estradas
a fim de gerar uma carta comparativa da região com áreas prioritárias para a conservação, também na escala 1:25.000, mas
desta vez em ArcGIS8, programa da ESRI. A partir daí houve uma comparação com o polígono do PESP, para ver áreas de baixa
relevância que estavam fora e também áreas onde existiam conflitos antigos. Em seguida foi elaborado um novo mapa e para
confirmação dos dados, foi realizado um sobrevoo detalhado9. Os dados do mapa foram passados para o programa Google
Earth com intuito de facilitar a compreensão dos proprietários nas reuniões municipais, já que possui boa resolução e visão 3D.
Os princípios que orientaram o projeto foram: a retirada dos limites do PESP de propriedades com casas, com atividades
agrárias(pastos e lavouras da comunidade tradicional) ou sem relevância ambiental e em contrapartida a inclusão de áreas de
grande relevância ambiental que estavam fora do traçado e em consequência, sem qualquer proteção ambiental legal. Outro

6
O ArcGIS usa modelos de dados de SIG para representar a geografia e provê todas as ferramentas necessárias para criar e trabalhar com o dados geográfi-
cos. Isto inclui ferramentas para todas as tarefas de SIG: editando e automatizando dados, mapeando cartograficamente tarefas, administrando dados, realizando
análise geográfica, administrando dados avançados e desenvolvendo dados e aplicações na Internet. ( http://www.ctec.ufal.br/professor/rsr/apostila-arcgis/Capi-
tulo1_OQueEOArcGis.pdf
7
Todos os mapas foram elaborados pela Gerência de Monitoramento e Geoprocessamento da Diretoria de Pesquisa e Proteção à Biodiversidade do Instituto Estadual
de Floresta -DPBio/IEF e pelo Núcleo de Geoprocessamento e Inteligência Espacial da Secretaria de Estado e Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável – SE-
MAD de Minas Gerais em conjunto a gerência do Parque, sob coordenação de Manno França, conforme entrevista concedida pelo mesmo.
8
Informações concedidas pelo coordenador do projeto.
9
Manno França é filho do presidente da Fundação Matutu, situada em Aiuruoca e com extensas áreas no entorno do PESP e inclusive já foi seu presidente.

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Os princípios que orientaram o projeto foram: a retirada dos limites do PESP de propriedades com casas, com atividades
agrárias(pastos e lavouras da comunidade tradicional) ou sem relevância ambiental e em contrapartida a inclusão de áreas de
grande relevância ambiental que estavam fora do traçado e em consequência, sem qualquer proteção ambiental legal. Outro
aspecto relevante considerado foi a tentativa de minimização de conflitos com as comunidades do entorno e a otimização dos
recursos de implantação da UC, ao priorizar a inclusão de terras sem benfeitorias.
O trabalho de campo foi realizado nos cinco municípios que integram o PESP de acordo com a metodologia de cartogra-
fia social, desenvolvida pela Fundação Matutu e já utilizada previamente no projeto Comunidades da Serra do Papagaio dentre
outros projetos. Essa metodologia busca utilizar recursos simples de cartografia para facilitar o entendimento de imagens de
satélites e mapas.
Reuniões foram agendadas com a população do entorno, em todos os municípios separadamente e à medida que cada
proprietário foi entendendo o polígono de sua propriedade, foram sendo desenhadas pela equipe técnica, novas linhas de pro-
postas para os limites do PESP. Essas linhas buscaram atingir um consenso com cada proprietário, portanto podemos considerar,
segundo os coordenadores do projeto, que o trabalho foi absolutamente participativo e também um modelo inédito no processo
de revisão de limites de unidades de conservação, já que a ideia geradora do processo era conseguir construir um limite de
consenso para o Parque, a partir da visão das comunidades rurais e dos proprietários de terras do entorno.10
Após realização desse mapa (Figura 2) houve a apresentação do Projeto de Lei de nº3.697/13, com intuito de alterar os
limites para, segundo o relator do projeto, deputado Dalmo Ribeiro Silva, corrigir erros do projeto original com base em novas
pesquisas técnicas do IEF. A proposta seria acrescentar 4.993,62 hectares e por outro lado retirar 2.837,47 hectares o que acarre-
taria em uma área total de 26.116,86 hectares. (MINAS GERAIS, 2013). Segundo o Coordenador do projeto, essas áreas retiradas
seriam áreas que foram indevidamente inseridas no traçado anterior e deveriam ser corrigidos para minimizar os conflitos. Isso
havia acontecido por falta de tecnologia disponível no momento de demarcação “Queremos melhorar esse desenho a partir da
tecnologia atual. Consideramos, para o projeto, o que está lá dentro que tem relevância ambiental, mas que gera conflitos, e o
que está do lado de fora e que pode ser acrescentado. Pretendemos diminuir esses conflitos.”

Figura 2. Proposta de novo desenho do Parque Estadual da Serra do Papagaio


(Proposta de redefinição de limites do Parque Estadual da Serra do Papagaio, 2012, IEF).
10
Informações concedidas pelo coordenador do projeto.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


461
Essa gestão participativa é um grande passo democrático nas delimitações de unidades de conservação no Brasil e pode
servir exemplo para futuras demarcações em todo o país. Entretanto não se pode considerar que a coordenação do projeto tenha
realmente alcançado um consenso entre os municípios e atores envolvidos. Com as mudanças administrativas municipais em
2013, houve início grande impasse em relação ao desenho proposto apesar das discussões terem sido encerradas em julho de
2013 na Assembleia legislativa de Minas Gerais e do desenho ter sido aprovado na primeira fase plenária. Contudo, na segunda
fase plenária em decorrência de interesses políticos e mineradores obscuros, houve a inclusão de um substitutivo número 1,
com a proposta de alteração dos limites da Estação Ecológica de Aredes, na região de Itabirito, região central do Estado, que foi
aprovado em dezembro de 2014, tirando da pauta o parque Estadual da Serra do Papagaio, que não foi votado.
Alguns grupos políticos do município de Baependi, durante a tramitação do projeto de Lei reivindicaram a realização de
Audiências Públicas que aconteceram em 2013, onde pediam esclarecimento sobre alguns temas, dentre eles sobre o processo
de mobilização social e execução do projeto de redelimitação.
Alegaram que o projeto seria muito necessário, já que era um dos direcionamentos do Plano de Manejo do PESP, contudo
não aprovaram a participação da Fundação Matutu no processo de mobilização, pois consideraram inapropriada a participação
de partes interessadas da região para a execução do projeto.11 Apontam erros burocráticos, como a não publicação de um edital
no Diário oficial da União nomeando a Instituição que realizaria a mobilização e divulgação, tampouco receberam um mapa do
Instituto estadual de Floresta com a nova definição de limites. Houve a desinformação de muitas pessoas da comunidade rural
de Baependi, uma vez que a divulgação em áreas mais longínquas não aconteceu.
Há também discordância em relação aos critérios técnicos adotados no projeto; foi alegado que o plano diretor das ba-
cias hidrográficas, o Plano de Manejo da unidade e a ecologia de paisagem não foram levados em consideração nessa proposta
de redelimitação. Também apontam ausência de consulta às unidades vizinhas, APA- Mantiqueira e Parque Nacional do Itatiaia,
conforme exigência do SNUC. Reivindicam também maior transparência do processo como acesso a relatórios técnicos, que
contenham o zoneamento ambiental e econômico, a regularização fundiária da unidade, tal como a discriminação das áreas
que estão entrando e as que sairiam, seus proprietários, suas vocações ambientais e estratégias de preservação no caso de
RPPNs e também, documentação comprobatória de consultas públicas. A ausências do acesso aos documentos reivindicados
começaram associar muitas incertezas ao projeto.
Na redefinição dos limites, portanto afloraram muitos conflitos regionais, de grupos políticos, comunidades rurais e tradi-
cionais. Enquanto o município de Baependi procura frear o projeto buscando a revisão e adequação às suas expectativas ambi-
entais para a região, a comunidade rural de Itamonte se mostrou extremamente irritada com a demanda de Baependi, uma vez
que o município tem grande parte das propriedades que estão sendo retiradas e alvo de grande crítica de Baependi, visto que,
segundo eles, são áreas de trutários, que não deveriam ser aprovadas em rios de classe especial. Contudo, há de fato erros do
projeto original da elaboração da Unidade de Conservação na comunidade rural de Itamonte que segundo eles deveriam ter sido
corrigidos há muitas décadas.12
O Projeto de Lei original foi de autoria do governador em exercício na época, Antônio Anastasia, com amplo apoio do
então secretario do Meio Ambiente do Estado, que naquele momento era de Aiuruoca. Portanto havia, aparentemente, um mo-
mento político favorável para elaborar esse projeto de redelimitação e solução dos conflitos socioambientais em questão. Não
aprovado, contudo foi reapresentado em julho de 2014 com o número 5.364 e posteriormente arquivado, com o fim da legislatura.
Apesar da reivindicação de Baependi13 junto ao IEF de que o projeto fosse revisto e reapresentado pelo próprio Instituto, isso
não aconteceu. Dia 20 de maio de 2015 houve o desarquivamento do projeto sob o nº 1658, apresentado pelo deputado Carlos
Arantes, em tramitação nas comissões em 1º turno da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Enfim, o esforço de participação social tem se mostrado presente, com grande dificuldade de coordenação dos direitos
democráticos dos cidadãos, instituições governamentais, grupos políticos e comunidades rurais. O conflito entre todos esses gru-
pos se polariza entre regiões e elites políticas que conseguem fazer valer suas verdades e influências. Não podemos definir o cur-
so do processo, mas uma certeza é clara: são as comunidades rurais do entorno as mais afetadas pelo jogo de forças em questão.

11
Manno França é filho do presidente da Fundação Matutu, situada em Aiuruoca e com extensas áreas no entorno do PESP e inclusive já foi seu presidente e foi
cordenador do projeto.
12
Entrevistas realizadas com Filipe Condé, secretário de turismo e meio ambiente de Baependi e Paulo Maciel, ex- president da SEMADI e proponente da Estação
Ecológica do Papagaio, primeira unidade criada que depois foi substituída pelo Parque e Notas taquigráficas de Audiências públicas.
13
Reivindicação apresentada por Filipe Condé na 34 reunião ordinária do Conselho Consultivo do Parque Estadual da Serra do Papagaio.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
452
Considerações Finais
Como conclusões preliminares desse estudo de caso nesses 17 anos de conflitos socioambientais em decorrência da
criação da Unidade de Conservação de uso integrá-lo Parque Estadual da Serra do Papagaio podemos dizer que:
Diferentes atores e grupos sociais estiveram envolvidos: a população rural tradicional, grupos religiosos, grupos políticos,
ambientalistas e órgãos gestores do Estado. E nesse jogo de forças políticas, a busca por soluções do conflito tem se polarizado
em torno de interesses locais e particulares e oscilado de acordo com o apoio político conseguido junto à administração pública
Estatal e aos órgãos gestores da Unidade. Ou seja, quando um grupo político articulou apoio político suficiente, conseguiu efeti-
var grande mobilização junto aos órgãos públicos e à população local para realizar o projeto de redefinição dos limites do Parque.
Mesmo sem uma articulação política enquanto comunidade tradicional caipira, as populações rurais conseguiriam alcançar
algumas demandas pretendidas há décadas.
Contudo, os grupos da região possuem interesses distintos e diversas visões sobre o processo ambiental e territorial e
inclusive sobre a manutenção de atividades econômicas tradicionais da comunidade caipira; assim o processo foi barrado pelas
influências políticas e de interesses no âmbito da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, gerando uma atmosfera de grande
insegurança para os moradores do entorno que estão dentro do traçado antigo, mas fora do traçado novo e não podem manter
suas atividades econômicas. Além disso, é grande a insatisfação da população o que acarretou o maior incêndio ocorrido na
região no ano de 2014, como 6.000 ha queimados ou 30% do PESP. A comunidade tradicional, criadora de gado, não pode manter
o pasto ou fazer uso das suas terras e que não foram desapropriadas, gerando revolta.
Com isso, partindo da definição de conflitos tratáveis e intratáveis de Little (2004), que define que certos conflitos são in-
tratáveis, portanto não são passíveis de resolução a não ser com a introdução de mecanismos que possam geri-los para diminuir
o grau de polarização entre os grupos, proponho como possível recurso para minimizá-los a introdução de mediadores capa-
citados. Que procurem clarear para os órgão gestores os elementos causadores de descontentamento para buscar uma solução
comum e não polarizada em interesses ou vista autoritariamente como tradicionalmente é a posição desses órgãos.
Mesmo tendo um espaço de diálogo no Conselho Consultivo, as reuniões são sempre belicosas e polarizadas e parecem
não conseguir o propósito de apaziguar a tensão e permitir que o projeto avance. A posição do órgão gestor também pode ser
considerada autoritária, pois quando levantam-se críticas ao processo, sempre alerta aos conselheiros de que o conselho é con-
sultivo e não deliberativo ao invés de procurar alternativas para minimizar os conflitos.
Enfim, a abertura para um diálogo, no processo de redefinição das unidades de conservação, entre elas o Parque Es-
tadual da Serra do Papagaio, apesar de não significar a solução do problema anunciado, é um passo importante no processo
de democratização no Brasil. Apesar de não haver uma discussão ao modelo de desenvolvimento e se ele é apropriado nesse
território, a possibilidade de criação de um novo desenho dos limites do Parque, em um contexto de participação popular é um
passo importante e pode apontar novos rumos para a compreensão das dinâmicas socioambientais e indicar formas mais ade-
quadas de gestão do território.

Referências
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04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


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CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL DA SERRA DO GANDARELA:
PARA QUÊ E PARA QUEM?

Evangelista, Ana Carolina de Andrade1

1. Graduanda em Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais, anacarolinaevangelista@yahoo.com.br

Resumo
A Serra do Gandarela é um dos últimos locais do Quadrilátero Ferrífero a ser explorado. Neste ambiente, comunidades rurais
buscam o seu desenvolvimento frente à luta por ambientalistas na conservação da área e de mineradoras na extração mineral.
André do Mato Dentro, uma comunidade rural, se encontra em uma situação delicada, após a conquista da criação do Parque
Nacional do Gandarela, a comunidade próxima aos limites do parque pode ser um destino interessante para as mineradoras.
Desse modo, diferentes interesses e perspectivas relacionam-se com o modo de apropriação e sobreposição dos recursos e do
território nesta região. Diante do exposto, este estudo tem como objetivo averiguar a situação das mineradoras frente ao desen-
volvimento rural local além de analisar a potencial vulnerabilidade das populações do entorno após a criação do Parque Nacional
do Gandarela; as consequências, perspectivas, conflitos e entraves que envolvem o caso.

Palavras-chave: Desenvolvimento Rural, André do Mato Dentro, Mineração, PARNA Serra do Gandarela.

Serra do Gandarela: Diversidade de Recursos, Múltiplos Interesses


A Serra do Gandarela, situada entre os municípios de Rio Acima, Santa Bárbara, Caeté, Nova Lima, Barão de Cocais,
Itabirito e Raposos, apresenta dois tipos de vegetação predominante, Campos Rupestres e Mata Atlântica. Ela abriga um dos
últimos remanescentes intactos desses biomas no Quadrilátero Ferrífero e também uma importante reserva de água.
Sua capacidade de absorção de água se dá porque no alto de sua Serra há uma peculiar formação rochosa, as cangas, que

apresentam porosidade e estruturas que facilitam a penetração profunda da água das chuvas.
Durante esse processo, a água é infiltrada naturalmente e armazenada abaixo da superfície, nas
camadas onde está o minério, formando uma imensa caixa d’água do aquífero (MOVSAM, 2010).

Essa água abastece mais de mil nascentes, dezenas de cachoeiras e diversos cursos d’água, tais como as Bacias do rio
das Velhas e São Francisco e do rio Piracicaba e Doce, abastecendo também à população de Belo Horizonte e de várias outras
cidades da região metropolitana (MOVSAM, 2010).
As cavernas são outros atrativos dessa região. Segundo o Instituto Águas do Gandarela, já foram registradas mais de 100
cavernas raras e que abrigam espécies únicas, além de vestígios arqueológicos de grande importância que “contam a história
das mudanças climáticas que ocorreram ao longo do tempo nesta região” (PROJETO MANUELZÃO, s.d.).
Essa região tem grande importância do ponto de vista econômico, uma vez que nela se concentram peculiares depósitos
de ferro (RUCHKYS, 2007; LAMOUNIER, 2009; NETTO, 2010.) como, também, depósitos de ouro, ocre, limonita, bauxita, brita,
calcário e urânio (LAMOUNIER, 2009; NETTO, 2010).
Como em todo o Quadrilátero Ferrífero, a Serra do Gandarela, também está inserida num contexto de mineração e, por
isso, a região vem sofrendo nos últimos anos com as pressões, resultantes da acentuada atividade mineral. Um dos projetos de
grande relevância pelo porte do empreendimento é o projeto da mina Apolo da Vale S.A. O projeto deverá ocupar uma área total
de 1.758 hectares e prevê como atividades principais a lavra, beneficiamento e carreamento de minério de ferro. Estima-se que a
mina deverá produzir 24 milhões de toneladas de minério de ferro por ano (Mtpa) de altíssimo teor durante os próximos 17 anos
(AMPLO, 2009).
Em 2009, cidadãos e entidades, unidos em prol da conservação da Serra do Gandarela desde 2007, solicitaram ao Insti-
tuto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a criação de um Parque Nacional nessa região. Essa iniciativa
demonstra como a sociedade vem se preocupando com a conservação do “natural”, e insere esse tema na discussão da agenda
pública internacional (DIEGUES, 2001).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


465
Após anos de lutas e expectativas, no dia 14 de outubro de 2014, foi decretada a criação do Parque Nacional (PARNA) da
Serra do Gandarela, abrangendo uma área de 31 mil hectares, conforme publicação no Diário Oficial da União (DOU).
Contudo, a criação do Parque Nacional da Serra do Gandarela não é comemorada por todos. A fala da ambientalista e in-
tegrante do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela, Maria Teresa Corujo, que acompanha todo o processo, retrata
bem a decepção e os entraves que ainda margeiam esse processo.

O Parque Nacional criado possui limites que deixaram de fora as áreas com maior número de
atributos que justificam a Unidade de Conservação federal, inclusive aquelas que garantem a
quantidade e a qualidade das águas, reserva estratégica para Belo Horizonte. Além disso, não
respeitaram o pedido da Reserva de Desenvolvimento Sustentável, RDS, feito pelas comunidades.
Só respeitaram os interesses da mineração e da Vale. Assim, esta Unidade de Conservação não é
uma conquista de quem tanto lutou para preservar a Serra do Gandarela (MOVSAM, s.d).

Fruto dessa complexidade de atores, interesses e estratégias, há o surgimento e intensificação de conflitos (a serem
analisados a seguir) que podem ser caracterizados como territoriais e espaciais (ZHOURI;LASCHEFSKI, 2010). Segundo Zhouri
e Laschefksi,

(...) os conflitos ambientais territoriais marcam situações em que existe sobreposição de reivindi-
cações de diversos grupos sociais, portadores de identidades e lógicas culturais diferenciadas,
sobre o mesmo recorte espacial (Ibid, p.7).
O caráter espacial dos conflitos ambientais evidencia os conflitos causados por efeitos ou im-
pactos ambientais que ultrapassam os limites entre os territórios de diversos agentes ou grupos
sociais (...). Ressaltam-se por serem decorrentes de situações em que as práticas sociais de um
grupo provocam efeitos ambientais negativos que afetam outros grupos através dos fluxos espa-
ciais (Ibid, p.9).

Diferentes sujeitos e projetos estão envolvidos no uso e apropriação do território e dos recursos minerais. Como conse-
quência, identificamos diferentes tensões na região, envolvendo entidades da sociedade civil (ONGs ambientais), empresas de
mineração, órgãos ambientais (responsáveis pela criação do Parque Nacional da Serra do Gandarela) e as comunidades locais.
Uma dessas comunidades é André do Mato Dentro, que dista 36 km da sede do município de Santa Barbara. Segundo o
site da Prefeitura de Santa Barbara, o nome de André, está relacionado a meados do século XIX, quando a região era conhecida
como fazenda de André, que mais tarde daria nome ao vilarejo de André do Mato Dentro.
Estima-se que a população possua 38 famílias, sendo chamada de comunidade de André. Dentre as diversas atividades
econômicas locais, as que possuem mais adeptos são Apicultura, influenciada pela proximidade de Santa Barbara, grande
produtora e embaladora do mel. A colheita de musgo para enfeites e arranjos artesanais e a silvicultura, como complemento de
renda com a produção de eucalipto. Essas e outras atividades são executadas predominantemente pelos homens, enquanto as
mulheres são responsáveis pelo cultivo e manutenção dos quintais.
Existem algumas peculiaridades da comunidade que só podem ser observadas por aqueles que se propõem a viajar
até lá, isso porque a ausência de informações sobre ela dificulta o conhecimento prévio de suas práticas, como por exemplo, a
importância dada aos quintais, que representam muito mais do que a extensão da casa e sim um mundo de significâncias assim,
quintais cultivados dizem muito sobre aqueles que residem em tal região.
Os moradores têm uma relação de proximidade, uma vez que são formados por pequenos grupos familiares, além disso,
a comunidade possui uma escola, uma quadra de futebol e uma igreja, o que torna o grupo mais coeso e cria um ambiente de
socialização.
Percebemos que apenas em um elevado grau de abstração da realidade os conflitos envolvendo os diferentes interesses
de uso para o território serão superados e os entendimentos tornarão passiveis de ocorrência (CARNEIRO, 2005), o que contraria
a afirmação dos técnicos do ICMBio que, durante encontro para a elaboração da proposta de consenso entre o ICMBio e a SE-
MAD em prol da conservação da Serra do Gandarela, ocorrido em agosto de 2011, alegaram que “há possibilidade técnica de
compatibilização de atividades conflitantes que estavam em processo de licenciamento” (SEMAD/MG; ICMBio, 2011).
Nesse sentido, é possível inferir que a criação do Parque Nacional da Serra do Gandarela pode ser considerada uma

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466
medida mitigatória (sem referir-se ao contexto do licenciamento ambiental), que servirá não só para acalmar os ânimos dos am-
bientalistas que lutam pela criação dessa unidade de conservação na região, mas também para repassar a ideia de um processo
sério e responsável com a “defesa” do meio ambiente (ROJAS, 2014, p.129). Trata-se, portanto, do jogo político de mitigação, ca-
racterístico da lógica desenvolvimentista de “adequação ambiental”, em que sociedade e ambiente devem se inserir nos projetos
que visam o desenvolvimento econômico (ZHOURI, 2008).
Conforme aponta Carneiro (2005):

os agentes do campo da política ambiental terminam por promover o consenso de que a dinâmica
do jogo que nele se joga deve estar limitada, por um lado, pelo cuidado em não obstaculizar os in-
teresses da acumulação e, de outro lado, pela necessidade, para a própria sobrevivência do campo
e dos proveitos que ele oferece a seus agentes, de obter “mitigações ambientais”. É precisamente
nesses termos que os agentes podem se legitimar apresentando, à sociedade e a si mesmos, uma
imagem de campo da “política ambiental” como um jogo sério e responsável, no qual os cuidados
com a “defesa do meio ambiente” como um “bem público” não se curvam mecanicamente aos “in-
teresses econômicos, mas também não os obstaculizam “irresponsavelmente.”(CARNEIRO, 2005
apud ZHOURI, 2008, p.100).

Diante do exposto, esse estudo tem como objetivo averiguar a situação do desenvolvimento rural local frente às mine-
radoras além de analisar a potencial vulnerabilidade das populações do entorno em relação à criação do Parque Nacional da
Serra do Gandarela, às consequências, perspectivas, conflitos e entraves que envolvem o caso. A metodologia consiste em uma
discussão teórica sobre a temática envolvendo populações locais e áreas protegidas, bem como seus conflitos. Para a discussão
do tema proposto foram realizadas visitas à comunidade de André do Mato Dentro, onde foi possível realizar rodas de conversas
com os moradores locais, abordando suas perspectivas para após a criação do PARNA Gandarela.

Análise e Contextualização dos Conflitos na Serra do Gandarela:


Realidades (in)evitáveis?
Como já mencionado, diferentes interesses e perspectivas relacionam-se com o modo de apropriação dos recursos e
sobreposição do território na Serra do Gandarela. A seguir, iremos discutir as principais disputas na região.
A eclosão do conflito envolvendo o PARNA Gandarela ocorre a partir da tentativa de conciliação entre os empreendimen-
tos minerários e a criação do Parque. A fala do Presidente do ICMBio, durante uma Consulta Pública, retrata bem este consenso:

(...) não há concorrência entre parque e mineração... A criação (do parque) pode ser um “pas-
saporte verde” para o setor minerário caso este apoiasse a criação da unidade de conservação.
(Presidente ICMbio, SEMAD/MG, 2012).

Na proposta inicial, apresentada pelo ICMBio em 2010, o Parque abrangeria uma área total de 38.210 hectares, cujos
limites incluíam seis municípios: Rio Acima, Raposos, Caeté, Santa Bárbara, Nova Lima e Ouro Preto e protegeria integralmente
os remanescentes de canga, campos rupestres sobre quartzitos, cavernas e algumas das mais importantes cachoeiras da região.
Entretanto, a área realmente demarcada para a criação do PARNA foi reduzida significativamente para 35 mil hectares, compro-
metendo grande parte das nascentes, além de não considerar a proposta das comunidades locais, para criação de uma Reserva
de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que permitiria que os moradores continuassem a exercer suas atividades.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


467
Figura 1. Mapa Comparativo entre a proposta do ICMbio e o atual PARNA Gandarela. Fonte: Movimento Águas do Gandarela, 2014.

Assim, a criação do PARNA nesses moldes (área de proteção integral), torna a comunidade local vulnerável, uma vez que
estabelece um uso territorial incompatível ao desenvolvimento de atividades tradicionais, como a apicultura e o extrativismo ve-
getal. Também, priva essas comunidades do uso dos recursos naturais, extremamente importantes, para garantir a sobrevivência
de seus grupos familiares. Sendo assim, é possível perceber que há uma “distribuição ecológica” dos custos e benefícios de pro-
teção da natureza (MARTÍNEZ-ALLIER, 1999). Insatisfações a esse respeito foram apresentadas por Rojas (2014), que, através
de relatos colhidos durante uma Audiência Publica do projeto da mina do Apolo, demonstram como os moradores sentem-se
insatisfeitos com a falta de incentivo, oportunidade e planejamento do estado, em alternativas de trabalho, que contemplem os
trabalhadores rurais e dê oportunidades para que eles possam continuar trabalhando, vivendo e preservando o meio ambiente e
suas terras. Além disso, tais relatos revelam que os conflitos envolvendo as empresas mineradoras e a população local são anti-
gos e recorrentes. Especificamente com a empresa Vale, já foram abertos vários processos juntos ao Ministério Publico, desde
1998, durante uma obra para criação de uma estrada, situadas em cima de algumas nascentes de água.
De modo geral, esse descontentamento é causado pelos impactos negativos, diretos e indiretos, causados por essas em-
presas, durante todo o processo de mineração, tais como, aumento do trânsito local, poluição dos rios e nascentes, mortandade
de peixes, impedimento aos moradores de exercerem atividades agrícolas e extrativistas, dentre outros.
Diante dos relatos, vemos ainda a tentativa de burlar e fragmentar o empreendimento, a fim de facilitar o processo lici-
tatório. Assim, “leis e normas são reinterpretadas ou “adequadas” de forma a não impossibilitar projetos econômicos particulares
que, via de regra, são anunciados como de interesse público” (ZHOURI et al., 2005, p.99). Percebemos que as comunidades
atingidas são negligenciadas e passam a ser apenas legitimadoras de um processo previamente definido (ZHOURI et al., 2005).
Por outro lado, o PARNA Gandarela conforme foi criado atende à demanda de outros grupos sociais, formados por
movimentos e entidades ambientalistas, moradores de condomínios na região e cientistas inspirados na corrente de pensamento
preservacionista. Entretanto, a adoção desse modelo preservacionista, advindo dos países do Norte, e as políticas ambientais de
proteção da natureza, oriundos da dicotomia entre ser humano e natureza, foram, e continuam sendo responsáveis por inúmeros
e crescentes conflitos ambientais que dizem respeito a uma visão inadequada, autoritária e excludente de se proteger e conser-
var o mundo natural (DIEGUES, 2001; ROJAS 2014).

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468
Ainda nesse contexto há outros entraves, causados pela exploração mineral na região. Exemplo disso deve-se à instalação
de empresas nacionais e transnacionais que ocupam um espaço ambiental maior do que o próprio território, resultando a uma
dívida ecológica (MARTÍNEZ-ALIER, 1999) e, trazem uma ameaça à descontinuidade dos modos de vida da população, além de
interferir diretamente sobre as atividades econômicas locais, como a coleta de musgo e a apicultura, já que há uma justaposição
do território. Vemos ainda que essas atividades minerárias consistem em um modelo de desenvolvimento diferente daquele que é
praticado pela população local do Gandarela; e essa sobreposição de modos de vida de dois grupos sociais distintos, caracteriza
também a incidência de conflito espacial (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010), fruto da poluição sonora, visual e aquática, causados
pelas atividades minerárias e que afetam drasticamente a qualidade de vida da população. De acordo com Leff (2001).

no fundo, os “conflitos de distribuição ecológica” aparecem como consequência da negociação da


ecologia dentro da racionalidade econômica e da apropriação desigual dos recursos ecológicos,
dos serviços ambientais e do espaço atmosférico; isto é, resultam de um processo de apropriação
destrutiva, gerada por uma racionalidade produtiva antinatura. (Ibid, p.69)

Portanto, é fácil de perceber a influencia das empresas de mineração nas tomadas de decisões e ações públicas gover-
namentais, que privilegiam apenas um determinado grupo social e impõem uma única forma de uso e apropriação do território,
inviabilizando outras formas de se relacionar com o espaço e o meio ambiente. Logo, projetos industriais homogeneizadores do
espaço, tal como a mineração, são geradores de injustiças ambientais, pois ao serem implementados, causam danos às cama-
das mais susceptíveis da sociedade (ZHOURI, 2008).

Considerações Finais
Os arranjos na distribuição do poder sobre o território e os recursos naturais privilegiaram limpida-
mente o crescimento econômico e o grande capital, em prejuízo dos modos de vida e reprodução
das comunidades locais (ROJAS, 2014).

A vida rural é cercada de símbolos e significados para os moradores do Gandarela, em especial o povoado de André
do Mato Dentro. A ligação dos indivíduos com a paisagem, com os valores tradicionais, com o cheiro e a textura presentes no
campo pela manhã e o café do fim da tarde é imensurável a eles. A Serra do Gandarela, com todas as suas características físicas
e biológicas exige muito da rotina de quem nela habita, promove a adaptação de técnicas de plantio, inspira a religiosidade,
provoca a questão de gênero, faz com que a rotina seja repensada a fim de suprir questões impostas pela própria serra. As vidas
dos andreenses-do-mato-dentro foram moldadas e os elementos da paisagem estão diretamente relacionados à identidade de
cada um dos moradores do povoado.
Um lugar tão rico, múltiplo propicia a coexistência de interesses. Os moradores da Serra do Gandarela, com destaque
a comunidade de André do Mato Dentro, associados a pesquisadores e ONGs buscaram proteger este santuário natural e a
solução encontrada foi a militância por um parque nacional, o PARNA Gandarela.
Entretanto, a região também é interessante às mineradoras, que têm nesta área um espaço com grande potencial e ainda
pouco explorado de minério. As demandas de produções globais exigem a extração de grandes volumes de matérias-primas.
Assim, resta aos países periféricos, a intensificação das explorações naturais, a fim de manter-se economicamente através dos
valores de mercado, o que leva à destruição dos modos de vida de grupos sociais tradicionais e trás consigo a padronização da
sociedade nos moldes ocidentais, isto é, promove uma monocultura cultural e uma enorme perda de biodiversidade.
Identificamos aí um paradoxo evidente, uma vez que, em prol do crescimento econômico e da superação das desigual-
dades, tem se impulsionado a acentuada polarização social. Em sua obra, Dupuy (1981) retrata (eximiamente) essa incoerência:

O crescimento econômico só é praticamente legitimado hoje em dia porque tenderia a reduzir as


desigualdades. Ora, como seria isso possível, visto que o crescimento é as desigualdades? (Ibid, p.30).

Portanto, enquanto houver o deslocamento da esfera política e social para a esfera econômica, e enquanto direitos e
sujeitos coletivos forem invisibilizados, teremos a permanência desse jogo de mitigações e adequações e a marginalização das
comunidades. Conforme já discutido por outros autores citados nesse estudo, faz-se necessário a discussão da finalidade dos
empreendimentos e das ações de conservação.

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


469
Finalmente, constatamos que a solução adotada para a resolução dos conflitos na Serra do Gandarela, implicou na junção
de distintos sujeitos sociais, com interesses no uso do território igualmente distintos. Assim, é nítido que as comunidades locais
foram desprivilegiadas do ponto de vista político e econômica, em detrimento de indivíduos elitizados.

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470
USO E CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS PELOS POVOS
INDÍGENAS DE RONDÔNIA E NOROESTE DO MATO GROSSO

Gomide, Maria Lucia Cereda1

1. Universidade Federal de Rondônia, malugomide@yahoo.com.br

Resumo
Este trabalho apresenta uma discussão sobre o conceito de natureza e o manejo e uso e conservação dos recursos naturais pelos
povos indígenas. A metodologia contemplou levantamento bibliográfico e pesquisa participante, esta propiciada pela participa-
ção no curso em licenciatura em educação básica intercultural, no qual participam 15 povos indígenas de Rondônia e noroeste
do Mato Grosso. Registraram-se os conhecimentos indígenas em relação ao uso e conservação dos recursos naturais, os quais
relacionam se com sua cosmologia.

Palavras chave: Natureza, Povos Indígenas, Recursos Naturais, Rondônia

Introdução
Este trabalho apresenta uma discussão sobre o conceito de natureza, o manejo e uso e conservação dos recursos naturais
pelos povos indígenas que vivem entre os Estados de Rondônia e noroeste do Mato Grosso. Os povos indígenas citados neste
trabalho são: Arara-Karo, Cinta Larga, Ikoleng- Gavião, Djereomitxi, Paiter-Surui, Sabane, Wari, Zoró (Figura 1).
Sabe-se que os povos indígenas de Rondônia, assim como os demais povos que vivem no Brasil têm seus territórios
ameaçados por diversas invasões (como por exemplo, de garimpeiros, madeireiros, fazendeiros, posseiros), e pela ocupação
do entorno de suas terras, pela expansão da fronteira agrícola e aumento das áreas urbanas. Neste contexto propostas de dis-
cussões sobre o uso e a conservação dos recursos naturais são fundamentais para a manutenção e a valorização dos conheci-
mentos indígenas e dos recursos que guardam em suas terras.
Embora ainda exista rica sociodiversidade, em Rondônia ocorreram grandes massacres contra os indígenas extermi-
nando vários povos e dizimando a população dos que sobreviveram.
De acordo com estudos etno-históricos feitos por Denise Maldi (1983), é notável o numero de povos indígenas extintos
na região de Rondônia, que desde o século XVIII começaram a ser dizimados. Pela visão etnocêntrica colonialista, a ocupação
da Amazônia deu-se, sobretudo, em “espaços vazios”. No entanto a área do atual estado de Rondônia foi o território de inúmeros
povos indígenas “a chegada do colonizador iria desencadear uma série de movimentos migratórios dos povos que fugiam ao seu
domínio.” (MALDI, op. cit., p.7-9) A penetração durante o século XVIII ocorreu principalmente através dos rios: Madeira, Mamoré
e Guaporé. “No século seguinte, os interesses que articularam a economia da província do Mato Grosso (pecuária, açúcar, erva-
mate), iriam deixar fora por um bom tempo a área hoje delimitada por Rondônia” (MALDI, op.cit., p.7-9).
Rondônia foi mais recentemente, a partir dos anos 1970, conhecida como o ‘novo eldorado’ ou seja, é uma região consi-
derada como o maior pólo de atração de migrantes do país (MALDI, op. cit., p.16).

no final de 1981, todas as áreas indígenas de Rondônia estavam em processo regular de delimi-
tação ou de interdição. A disparidade do processo de desenvolvimento de Rondônia redundou
também na ocupação desordenada, violenta e acelerada de algumas regiões – o eixo da BR 364-,
e numa ocupação menor, sobretudo, no vale do Guaporé (MALDI, op. cit., p.97).

Assim, a partir do asfaltamento da BR 364 na década de 1980, a ocupação da região pelos colonos se intensificou, o que
deflagrou intensos impactos nos recursos naturais, com grandes áreas de desmatadas, queimadas, invasões nas terras indíge-
nas e em unidades de conservação (FEARNSIDE , 2009).
Neste contexto, entende-se que diferentes visões de mundo estão em confronto, pois, de um lado, os povos indígenas; e
de outro, o mundo “ocidental” firmaram diferentes conceituações sobre a natureza. Para os ocidentais a natureza pode ser con-
trolada e/ou dominada, enquanto para os povos indígenas a relação com a natureza é uma relação social, na qual todos os seres

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


471
possuem como referencial comum a condição de humanidade (DESCOLA, 1999).
Assim, neste trabalho registra-se a concepção dos povos indígenas em relação ao uso e conservação dos recursos na-
turais de suas terras.

Área de estudo
Situação territorial, população, de cada um dos povos indígenas citados
Os povos Arara Karo e Ikoleng Gavião vivem na Terra Indígena Igarapé Lourdes, município de Ji-Paraná /RO; suas popu-
lações são respectivamente em torno de 300 e 800 pessoas. O povo Cinta Larga vive na terra indígena Roosevelt; contava em
2012 (SESAI), com cerca de 1750 pessoas, domiciliados em Espigão do Oeste. Os Paiter-Surui têm suas aldeias localizadas na
terra indígena Sete de Setembro, que fica, em parte, no estado de Rondônia; e em parte, em Mato Grosso. A população Paiter é
de cerca de 1500 pessoas. O povo Zoró vive na terra indígena Zoró, que está situada no estado do Mato Grosso; sua população,
em 2010, era de 650 pessoas de acordo com a Associação Pangyej. Os Sabane estão divididos entre as terras indígenas Parque
do Aripuanã entre Rondônia e Mato Grosso, e terra indígena Pirineus de Souza, no Mato Grosso. Segundo o censo realizado pela
Fundação Nacional de Saúde, no primeiro semestre de 2010, sua população era estimada em 293 indígenas. O povo Djereomitxi
também conhecido como Jabuti, conta com uma pequena população em torno de 200 pessoas (SESAI, 2012) distribuída em
várias aldeias, nas terras indígenas Rio Branco/RO e Rio Guaporé/ RO.
O subgrupo Oro waram Xijein pertence ao povo Wari, povo com maior população do estado de Rondônia, contando com
aproximadamente 4000 pessoas. Vivem em suas terras demarcadas que situam se nos municípios de Costa Marques Guajará
Mirim e Nova Mamoré, nos limites Brasil-Bolívia. As terras indígenas Wari são: Lage, Rio Negro Ocaia, Pacaás Novos, Rio Gua-
poré, Sagarana, Ribeirão.
Importante salientar que as Terras indígenas Igarapé Lourdes, Sete de Setembro, Roosevelt, Zoró, Parque do Aripuanã
formam o Corredor Tupi Mondé, sendo esta uma área significativa para a conservação da sociodiversidade, assim como da bio-
diversidade. As terras indígenas Karitiana, Karipuna, igarapé Ribeirão, igarapé Lage, Uru eu wau wau, Rio Negro Ocaia, Pacaas
Novos, Sagarana, Rio Guaporé e Massaco pertencem ao Corredor Ecológico Guaporé-Itenez-Mamoré, criado em 2001. Estas
duas áreas que formam os corredores deveriam ter a área circunvizinha protegida, como um importante espaço contínuo de
floresta; no entanto observa-se que não há nenhuma proteção efetiva neste entorno das terras indígenas, e estas têm se tornando,
assim como as demais terras indígenas, ilhas de biodiversidade.
Os povos Cinta Larga, Ikoleng-Gavião, Paiter-Surui, Zoró são falantes da língua Mondé do tronco linguístico Tupi. O povo
Arara-Karo é o único representante da família Ramarama, tronco linguístico Tupi. O povo Djereomitxi tem sua língua classificada
como do tronco Macro-Jê. Oro waram Xijein são falantes da língua Txapacura. E, por fim, os Sabane, grupo Nambiquara, falam
uma língua considerada isolada.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
472
Figura 1. Mapa da localização das terras indígenas de Rondônia. Fonte Labget/UNIR, 2014.

Metodologia
A metodologia adotada contemplou levantamento bibliográfico e pesquisa participante, esta propiciada pela minha par-
ticipação como professora no Deinter- Departamento de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, no qual
participam 15 povos indígenas de Rondônia e noroeste do Mato Grosso. No curso para formação de professores indígenas foram
realizadas pesquisas interculturais com textos e coleta de depoimentos, estes com consentimento dos indígenas. Neste trabalho
buscou-se contemplar uma pequena parte da rica sociodiversidade do estado de Rondônia.

Uma breve discussão em torno do conceito de natureza


Ao retomar a teoria animista, Descola (1998, 1999, 2006) analisa o conceito de natureza entre os povos indígenas da
Amazônia, afirmando que, entre eles, existe outra lógica, onde os atributos humanos são também dados à plantas e animais,
ou seja, a natureza é um sujeito de uma relação social, onde os seres fazem parte de um grande continuum social, exibindo
uma escala de seres em que as diferenças entre os homens, as plantas e os animais são de grau; não, de natureza. O animismo
pode ser visto como um ‘sistema de categorização’ dos tipos de relação que os humanos mantém com os não-humanos. Os
sistemas anímicos constituem, portanto, um simétrico inverso das classificações totêmicas; nos sistemas totêmicos, as plantas
e os animais funcionam como operadores privilegiados do pensamento taxionômico; nos sistemas anímicos, plantas e animais
aparecem como pessoas, são singularidades irredutíveis, e não classes. Nos sistemas totêmicos, em suma, os não–humanos,
são tratados como signos; nos sistemas anímicos, são tratados como o termo de uma relação (DESCOLA, 1999).
Outra teoria antropológica que explica as cosmologias indígenas amazônicas foi elaborada por Eduardo Viveiros de Castro
(1996,2002), denominada “perspectivismo”. Viveiros de Castro (2002: 347) explica que sua reflexão teve como princípio as pesqui-
sas etnográficas dos povos indígenas da Amazônia. Discute que os referenciais sobre como os humanos vêem os demais sujeitos do
universo incluindo “deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes
geográficos, objetos e artefatos; é profundamente diferente do modo como esses seres vêem os humanos e se vêem a si mesmos. [...]

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


473
vendo-nos como não – humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos vêem como humanos” (VIVEIROS DE CASTRO,
op.cit.). Ou seja, “os animais são gente” e vivem como gente quando estão em suas aldeias (alimentação, hábitos e organização
social igual à das sociedades humanas) - (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.350); é como se os animais tivessem um ‘envoltório’ e
sob este, uma “forma humana”, que é visível àqueles que pertencem a mesma espécie, ou ainda, por seres que vão além, como
os xamãs que podem se comunicar com eles. “Essa forma interna é o espírito do animal: uma intencionalidade ou subjetividade
formalmente idêntica à consciência humana, materializável, digamos assim, em um esquema corporal humano oculto sob a
máscara animal” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.350-351).
Em nossa cosmologia evolucionista o homem diferencia-se do animal, enquanto nas cosmologias ameríndias ocorre justamente
o oposto, pois a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. Os humanos são aqueles
que continuaram iguais a si mesmos; os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.355).
Enfim para os ameríndios “o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a
humanidade enquanto condição” (DESCOLA, 1999, p.120).

Uso e conservação dos recursos naturais


O uso dos recursos naturais e sua conservação são de grande importância para os povos indígenas. Suas terras ainda
guardam expressivas coberturas florestais com rica biodiversidade, as quais vêm sofrendo os impactos negativos da ocupação
de seu entorno pela sociedade envolvente (GOMIDE, 2009).
Dentro de suas concepções sobre o uso e conservação encontra-se a preocupação com o futuro, e o fato de utilizarem os
recursos naturais conscientes do limite; ou seja, da finitude destes. Os registros a seguir são trechos de textos escritos pelos profes-
sores indígenas que participam do curso de educação intercultural, nos quais registram sua visão sobre o uso dos recursos naturais.
Para o povo Arara-Karo, como comentado é importante o uso apenas para o sustento pensando que tudo tem limite; em
suas palavras:

“Os recursos naturais que nós necessitamos na nossa terra indígena são recursos da floresta e
da roça. Alguns animais que servem como alimento como o porcão, o veado, a anta, a paca, o
tatu, o catete e outros. Esses são os recursos naturais que cuidamos para não acabar. Os animais
que podemos caçar, mas só a quantidade certa, não caçar muito, caçar só para o seu sustento, o
peixe mesma coisa pescar só quantidade certa também. Tudo tem que ter limite.”

Igualmente para o povo Cinta Larga, é observada a restrição na quantidade de caça: “Na época
da mutuca – kijalaweej as famílias saem da aldeia para acampar na mata e assim caçam a anta.
Apenas caçam para seu próprio consumo não vendemos o animal do mato.” (Jaco Cinta larga)

Outro exemplo relacionado com a caça da anta, importante alimento para os povos indígenas, é salientado por Alina
Jabuti , do povo Djereomitxi:

“A carne de anta é muito importante para a nossa alimentação, faz bem a nossa saúde gostamos
de comer a carne de anta. Do couro da anta fazemos o tacacá que é uma comida tradicional do
povo Djereomitxi. Com o aumento da nossa população é preciso caçar duas antas para alimentar
a todos. A carne e anta é dividida pelas famílias. A anta é caçada no ano todo no inverno; e no
verão, uma vez por mês. Na minha análise, a anta não está correndo o risco de extinção pelo povo
jaboti, porque os homens caçam conscientes, não matam muito.”

Da mesma forma para o povo Sabane, deve-se caçar a anta apenas quando a necessidade de realização de um impor-
tante ritual de sua cultura:

“A anta é um animal que vive na floresta; é grande, a cor dela é preta. A carne da anta é igual à de
boi; a sua comida preferida é o buriti, mas também come outras frutas como jambo da mata, caju
do mato e pequi do mato. O povo Sabanê, mata a anta para comer; eles matam no pé de frutífera;
ou também, na trilha onde ela anda para ir comer as frutas. Mas só caçamos quando tem festa da
menina moça, porque nessa festa vai ter muito visitante da outra aldeia. Porque o povo Sabanê
não pode matar para estragar, pois assim que nós usamos a carne de anta” (Ivonete Sabane).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
474
Assim, também é relatado por Arão Wao Hara Ororam Xijein, sobre o uso da caça entre o povo Wari:

O manejo tradicional dos recursos naturais dos povos Oro da região de Guajará Mirim, ocorria
quando os mais velhos caçavam, encontravam bichos como a cutia, o veado, a queixada e outros
animais, eles matavam; exceto os animais com filhote.

As cosmologias indígenas possuem um aspecto fundamental que é o “fato de não fazerem distinções ontológicas ab-
solutas entre os humanos, de um lado; e um grande número de espécies animais e vegetais, de outro”. Desta forma, todos os
seres estão ligados e são governados por um mesmo regime de sociabilidade (DESCOLA, 1999, p.249). Dentro da cosmologia
do povo Zoró, alguns animais podem ser controlados pelos pajés; assim é explicado que existem dois tipos de porco do mato,
sendo os Taluderej os que somente aparecem na terra indígena por meio dos pajés e seus espíritos. Com as mudanças culturais
e desaparecimento dos pajés também os porcos Taluderej desapareceram.

Taluderej são os porcos que apareciam nas aldeias através do pajé e seus espíritos; segundo
o pajé os porcos seriam do outro lado do mar. Esses porcos são do tamanho de um anta e são
mais gostosos. Não existe na terra indígena Zoró, mas já apareceram, e depois, desapareceram.

Bebekurej tem muito na nossa terra; em todas as aldeias a comunidade caça os porcos. Às vezes,
esses porcos se alimentam da roça da comunidade. Na aldeia, desde muito tempo, as comuni-
dades vêm criando os porcos e o dono realiza a festa para matar.

Atualmente, qualquer pessoa que vai caçar os porcos, mata o necessário, só não pode exagerar. Os
caçadores atuais lembram muito bem o surgimento da estória dos porcos; devido a isso, os caçadores
não matam muitos. Quando o caçador mata uma mãe de um porquinho, o leva para sua aldeia e o cria.

Outras reflexões igualmente importantes dizem respeito ao futuro das terras indígenas e sua sustentabilidade, pois mes-
mo que a cultura indígena conserve os recursos naturais e a floresta de pé, a limitação territorial e as pressões advindas do
entorno das terras indígenas condiciona o seu futuro.

Ao pensar no futuro, muito refletimos sobre nossas terras, nossas matas, nossos animais, nossos
rios, nossos peixes; para nós indígenas esse conjunto de seres é a nossa riqueza incomparável.
Porque é da natureza que nós tiramos os nossos alimentos, remédios e ao mesmo tempo é o
local de lazer, por isso temos que cuidar da natureza onde moramos. Sem a terra, a floresta, os
animais, os rios e peixes, se tornará muito difícil a luta dos indígenas para a sua sobrevivência
física e cultural (Armando Jabuti).
Antigamente onde havia muita caça e pesca, ali era o local de preferência para viver. Conforme a caça
e a pesca diminuíam mudava-se de lugar. Os antigos já tinham a visão de sustentabilidade, faziam a
gestão do seu território. Com a vida que os povos indígenas levaram, a vida de nômades, a floresta
sempre se recuperava: a preferência dos indígenas de sempre fazerem as suas rocinhas em lugares
novos, não no mesmo lugar. O que acaba com a floresta é esse costume do homem branco, trabalhar
em um só lugar. Não dá o tempo da floresta se recuperar. Muitas coisas que usamos, ficaram fora
das demarcações das nossas terras, prejudicando algumas práticas culturais. As áreas que para
nós eram sagradas os fazendeiros destruíram, matando os espíritos das florestas (Josias C. Gavião).

Na minha terra tem um pouco de todos de recursos naturais. Antigamente, quando era criança,
acompanhava muito meu pai no mato; tinha muitas arvores frutíferas e também tinha muitos ani-
mais. E agora com aumento da população da aldeia fica mais difícil, a caça e pesca e também
árvores frutíferas, pois nosso território está demarcado. O que diminui mais com a caça e pesca
e frutas foi a entrada de madeireiro e caçadores, pescadores que entram clandestino na nossa
área. A comunidade Suruí deve cuidar para não prejudicar o meio ambiente da sua terra. Para
conservar a natureza para futuras gerações do Suruí, como criar os animais no cativeiro para a
alimentação e fazer o tanque para peixe. E plantar arvores frutíferas: patoá, açaí, pãma, perto da
aldeia. Fazermos a roça pequena para plantio e evitar desmatamento da floresta para que não
vire capoeira. Evitar fazer derrubada perto das nascentes em rios e igarapés porque são muito
importantes para os nossos filhos e netos (Ibebear Surui).

04: Diversidade cultural e manejo da biodiversidade


475
Para o povo wari, segundo Wan’e Oro waram Xijein:

nosso povo sempre manteve sua cultura tradicional, não sabiam o que era manejo, mas faziam a
coisa certa no uso da natureza. Antes os povos indígenas buscavam alimento principalmente das
frutas e de sementes. Quando encontravam a fruta o homem subia e tirava a fruta com o galho. A
castanha era juntado do chão, quebravam e colocavam na balaio para se alimentar mais tarde, ou
comia ali mesmo, sabendo onde encontrariam outro à frente, às vezes nem levavam. No tempo
da castanha nova quando começa a ter carne na semente nós gostamos muito de comer assim, o
homem subia e a mulher ajuntava e fazia o fogo em quanto o homem tirava, lá, encima. Depois a
mulher descascava a para assar no fogo, depois de assado tirava a castanha do ouriço queimado
e deixava esfriar e depois ficava pronto para comer. Existe muito mais, tinha fruta que coletavam
su-bindo no pé e tinha fruta que juntavam no chão. Assim era o manejo tradicional do meu povo.
Não acabava com todos os animais da floresta. Fazia roça para o sustento da família, não des-
matavam muito, por isso que as florestas não eram desmatadas antes do contato.

Compreende-se que o controle dos recursos naturais – como no caso da caça –não está ligado a uma harmonia ecológica
ao meio, nem à pura necessidade de alimento, mas sim como uma relação social, a “sintonia dos índios com a natureza”, não é
natural, nem tampouco sobrenatural, mas é social, pois é “mediada por formas específicas de organização sociopolítica; a na-
tureza é natureza para uma sociedade determinada, fora da qual se reduz a uma abstração vazia” (VIVEIROS DE CASTRO, 2007).

Referências
DESCOLA, P. A selvageria culta. In: NOVAES, A. (Org.). A outra margem do Ocidente. Companhia das Letras, 1999.

DESCOLA, P. Estrutura ou Sentimento: A Relação com o Animal na Amazônia. Mana, v. 4, n.1, p. 23-45, 1998.

DESCOLA, P. As lanças do crepúsculo: relações Jivaro na Alta Amazônia. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

FEARNSIDE, P. Br-319: a rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia
central. Novos Cadernos NAEA. v. 12, n. 1, p. 19-50, jun. 2009.

GOMIDE, M. L. C. Maranã Bödödi: a territorilidade Xavante nos caminhos do Ró. Tese (Doutorado em Geografia), Universi-
dade de São Paulo, 2009.

MALDI, D. De Confederados a Bárbaros: a representação da territorialidade e da Fronteira Indígenas nos séculos XVIII E XIX.
Revista De Antropologia, São Paulo, USP, 1997, v. 40, n.2, 1983.

VIVEIROS DE CASTRO, E. B. Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio. Mana, v.2, n.2, p.115-144, 1996.

VIVEIROS DE CASTRO, E. B. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ed. Cosac
& Naify, 2002.

VIVEIROS DE CASTRO, E. B. A Natureza em Pessoa: sobre outras práticas de conhecimento. Encontro “Visões do Rio
Babel. Conversas sobre o futuro da bacia do Rio Negro”. Instituto Socioambiental e a Fundação Vitória Amazônica. Manaus, 22 a
25 de maio de 2007.

SESAI. Censo da População Indígena. Disponível em: <www.funasa.gov.br>. Acesso em 13 abril 2012.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
476
05
1. Sistemas de Gestão e
Governança

A proposta deste eixo temático é abrir


espaços para a discussão sobre a
diversidade de formas de tomada de
decisão e de controle social sobre a
ocupação/destinação dos espaços e os usos
dos recursos naturais comuns nas unidades
de conservação e demais áreas protegidas
e conservadas; arranjos institucionais,
equidade na participação em diferentes
níveis e eficiência no seu funcionamento.
IMPACTOS DA GESTÃO EM ÁREAS PROTEGIDAS: UMA ANÁLISE DA PERCEPÇÃO
DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA APA CHAPADA DO ARARIPE

Nascimento, Paulo Sérgio Silvino do1 & Sabiá, Rodolfo José2

1. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, paulosergio.ifce@gmail.com 2. Universidade Regional do Cariri,
rodolfo.sabia@urca.br

Resumo
O eixo central deste trabalho se apoia na hipótese de que as estratégias de gestão, ora vigentes, não seriam capazes de atender
às demandas econômicas, sociais e ambientais das comunidades tradicionais inseridas nas áreas protegidas. Diante disso, o
objetivo deste estudo é analisar as distintas percepções dos impactos da gestão da Área de Proteção Ambiental (APA) nas comu-
nidades tradicionais rurais, tendo a Área de Proteção Ambiental da Chapada do Araripe, CE, Brasil e as suas comunidades tradi-
cionais de agricultores como sujeitos desta pesquisa. Para a realização da investigação foi adotado uma ferramenta metodológica
denominada Matriz de Comparação de Impactos da Gestão (MCCIG) para avaliação de impactos da gestão em áreas protegi-
das proposta por Nascimento (2013). A ferramenta confrontou e confirmou as distintas percepções dos impactos por parte dos
moradores das comunidades de agricultores tradicionais e dos gestores da APA Chapada do Araripe e FLONA Araripe.

Palavras-chave: Gestão de Áreas Protegidas, Percepção de Impactos, Comunidades Tradicionais, APA Chapada do Araripe,
Ceará - Brasil.

Introdução
Dentre os diversos tipos de Unidades de Conservação (UC) existentes no Brasil, as Áreas de Proteção Ambiental (APA)
se destacam por contemplar um baixo nível de restrições de uso e manejo ao permitirem um amplo espectro de atividades
econômicas, e também por serem unidades de gestão integradas, que buscam traduzir na prática o desafio da sustentabilidade,
procurando harmonizar a conservação e a recuperação ambiental com as necessidades humanas.
Dada a permissibilidade no uso, no manejo e na posse desses espaços, estabelecida por lei, no território das APA coexis-
tem áreas urbanas e rurais, com suas atividades socioeconômicas e culturais, e as terras permanecem sob o domínio privado,
não exigindo desapropriação pelo poder público.
Muito em voga atualmente, a gestão ecológica se preocupa com o trato de forma eficiente de temas relacionados à eco-
logia e ao meio ambiente, especialmente aplicada à gestão de unidades de conservação da natureza, a consequência disso é a
importante contribuição para a melhoria da consciência ecológica e para a sustentabilidade.
Cada vez mais destacadas e implementadas como áreas protegidas de uso sustentável, pela comunidade internacional
especializada, em termos de crescimento, reconhecimento e relevância, as unidades de conservação ambiental têm tido papel
fundamental na proteção da natureza, preservação e conservação da fauna, flora e das comunidades tradicionais. Assim, tais mo-
dalidades de proteção proliferam em todo o mundo, o que pode possibilitar, entre outros efeitos, a construção de uma realidade
com melhores níveis de consciência ambiental das populações.
Diante disso, questionamos o seguinte: será possível atingir o equilíbrio, tão propalado nos diversos discursos atuais
sobre a sustentabilidade, nas chamadas unidades de proteção ambiental de uso sustentável, especialmente as APA?
O objetivo central deste trabalho foi procurar entender como se dá a percepção dos impactos da gestão da Área de Pro-
teção Ambiental da Chapada do Araripe e da zona de amortecimento da Floresta Nacional do Araripe (FLONA Araripe), especifi-
camente as comunidades tradicionais de agricultores e os sujeitos gestores destas UC. A APA Chapada do Araripe1 e A FLONA
Araripe localizam-se nos limites territoriais dos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, No semiárido do Nordeste brasileiro. Para
essa investigação foram selecionadas três comunidades tradicionais de agricultores assentados há mais de um século nas terras
do topo da Chapada pertencentes ao município de Crato no extremo sul do Ceará, Brasil.

1
A APA Chapada do Araripe com uma área de 972.590,45 hectares, foi criada em 04 de agosto de 1997. A FLONA Araripe-Apodi com uma área de 38.919,47 hectares
foi criada em 02 de maio 1946. (ICMBIO, 2015)

05: Sistemas de Gestão e Governança


479
Avaliar os efeitos socioeconômicos, socioculturais e socioambientais resultantes do estabelecimento e da gestão de áreas
protegidas, particularmente sobre as comunidades tradicionais locais, não é uma tarefa das mais simples, pois se faz necessário
conhecê-las em sua essência, ou seja, é fundamental a compreensão do processo de sua formação histórica e espacial, de suas
inter-relações com o meio, das suas dimensões culturais, das suas percepções geoambientais, das demandas econômicas, além
de outras dimensões intrínsecas ao modo de viver dessas comunidades. Para este estudo, o termo comunidade foi aplicado com
base no conceito de Baumann (2003), portanto remete ao sentido tradicional que conhecemos. Assim, uma comunidade está
baseada nos relacionamentos que envolvem laços por proximidade local, parentesco e solidariedade de vizinhança.
As hipóteses levantadas nesse estudo foram: a) os integrantes das comunidades tradicionais rurais seriam capazes de
identificar e mensurar os impactos (positivos e/ou negativos), sofridos a partir da implantação e da gestão das Áreas de Proteção
Ambiental; b) seriam distintas as percepções e imagens formadas entre os membros das comunidades e os gestores das UC;
c) as estratégias de gestão, ora vigentes, não seriam capazes de atender às demandas dessas áreas, portanto, fazendo-se ne-
cessário uma nova política de gestão ambiental visando responder favoravelmente às demandas das comunidades tradicionais
inseridas nas unidades de APA; d) os métodos quantitativos de avaliação, ora utilizados, não seriam capazes de comprovar o grau
de eficiência das estratégias adotadas, ou a serem adotadas, em comunidades rurais de Áreas protegidas.
Scherl et al. (2004) destacam a importância da compreensão do impacto potencial das Áreas Protegidas nas vidas das
pessoas e chamam atenção para o insuficiente número de estudos sobre estes impactos nas comunidades.
Para a realização do estudo optou-se pelo uso da metodologia proposta por Nascimento (2013) na qual a discussão é
pautada na confrontação direta, a partir de dois ângulos: a visão dos moradores das comunidades e a visão dos executores da
gestão das UC, onde para a operacionalização foram estabelecidas as seguintes estratégias metodológicas: (i) identificação e
hierarquização dos impactos junto aos moradores das comunidades selecionadas; (ii) valoração hierárquica dos impactos pelos
gestores das UC envolvidas na pesquisa (APA-Chapada do Araripe e FLONA Araripe); (iii) Construção das matrizes cromáticas
de comparação dos impactos dos sujeitos envolvidos (comunidades e UC); (iv) análise dos resultados.
As análises exploratórias se dão com base no método fenomenológico hermenêutico. Segundo Bello (2006), fenome-
nologia é uma palavra constituída por duas outras, ambas de origem grega - “Fenômeno significa aquilo que se mostra; não
somente aquilo que se aparece ou parece. Logia deriva da palavra logos, que para os gregos tinha muitos significados: palavra,
pensamento”. Assim, a fenomenologia se constitui numa reflexão sobre um fenômeno ou sobre aquilo que se mostra (BELLO,
2006, p. 17-18).
Para Martins (1992), o que se objetiva na pesquisa fenomenológica são os significados que os sujeitos atribuem à sua
experiência vivida, significados esses que se revelam a partir das descrições realizadas por esses mesmos sujeitos. A descrição
da experiência dos moradores das comunidades constitui o caminho para a compreensão efetiva dos efeitos das normas e res-
trições estabelecidas após a criação da UC, e a linguagem é uma das formas que se abre para essa compreensão.
O discurso dos participantes consistiu na fonte primeira desta investigação. Para compreender esse fenômeno, é ne-
cessário recorrer ao discurso, à descrição mais ampla do sujeito, com o intuito de conseguir uma maior aproximação com a
densidade semântica do fenômeno. Apenas um vocábulo, uma expressão, um conceito, uma definição não poderão expressar
tudo o que há para ser falado em relação ao que se pretende investigar (MARTINS, 1992). Por isso, optou-se pela aplicação da
técnica do Grupo Focal (GF), como instrumento para o levantamento dos dados.
Um fator que contribuiu a favor do uso desta técnica foi a constatação do baixo nível de escolaridade dos moradores. O
GF passa a ser uma técnica especialmente útil quando o pesquisador lida com um universo de pessoas inabilitadas ou incapazes
de responder questionários escritos. Esta técnica de GF vem se destacando no campo metodológico e seu prestígio e utilização
têm crescido bastante e conquistado um locus privilegiado nas mais diversas áreas de estudo (CRUZ NETO et al., 2002; GON-
DIM, 2003).
A principal característica da técnica de GF reside no fato de ela trabalhar com a reflexão expressa através da fala dos
participantes, das suas vivências pessoais, permitindo que eles apresentem, simultaneamente, seus conceitos, impressões e
concepções sobre determinado tema. Em decorrência disto, as informações produzidas ou aprofundadas são de cunho essen-
cialmente qualitativo. Nessa perspectiva, ganha sentido o pressuposto de que o GF tem, como uma de suas maiores riquezas,
o fato de basear-se na tendência humana de formar opiniões e atitudes na interação com outros sujeitos. Esta técnica contrasta,
nesse sentido, com dados colhidos em questionários ou entrevistas, em que o participante é convocado a emitir opiniões a res-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
480
peito de assuntos sobre os quais talvez nunca tenha refletido anteriormente (BACKES et al., 2011).
Por fim, foram elaboradas as Matrizes Cromáticas para realizar a confrontação dos dados levantados e valorados pelas
comunidades e pelos gestores das UC. Os gráficos comparam os valores atribuídos permitindo uma visualização clara das dis-
tintas percepções dos impactos da gestão. Neste sentido este estudo se reveste de caráter quantitativo.
Sinteticamente, o processo de elaboração da matriz comparativa segue duas etapas. Na primeira, efetua-se a codi-
ficação de cada impacto para todos serem lançados na planilha eletrônica configurada para tal finalidade. Na segunda etapa
deve ser feito o preenchimento com os valores de cada impacto, obtidos pelos sujeitos investigados. A planilha realiza a relação
comparativa entre os impactos por meio da média aritmética simples previamente configurada na matriz.
A matriz cromática comparativa foi elaborada numa planilha eletrônica do Microsoft Excel, com fórmulas que calculam
aos pares a relação de importância entre os impactos e seus valores, os quais foram estabelecidos pelos sujeitos da pesquisa.
Cada tom de cor na matriz é resultante do processo comparativo entre os valores dos impactos apontados no processo da pes-
quisa. A Figura 1 ilustra em detalhes os elementos constituintes da planilha eletrônica na elaboração da matriz.

Figura 1. Construção da Matriz Cromática de Comparação de Impacto. Fonte: Nascimento (2013)

Assim, além de realizar as comparações entre os distintos impactos, esta ferramenta permite, ao final de seu preenchi-
mento, visualizar a intensidade destes através da intensidade dos tons cromáticos.
A utilização de cores no processo de análise possibilita dar maior rapidez e capacidade exploratória, permitindo, inclu-
sive, novas inferências e descobertas quando os resultados exibidos se estabelecem usando técnicas de visualização, baseadas
em regras perceptivas, principalmente as que exploram o poder do sistema visual humano (NASCIMENTO, 2013). Deste modo,
a visualização contribui de maneira mais significativa no processo de análise de dados do que na simples observação dos mes-
mos (ALEXANDRE; TAVARES, 2007).
A decisão de usar o vermelho, classificado como uma cor quente, para indicar os impactos negativos, se deu a partir dos
diversos significados e sensações que esta cor provoca e transmite. São sensações cromáticas da cor vermelha: ação e violência,
guerra, sangue, sol, perigo, fogo, calor, irritabilidade e intranquilidade. O verde, uma cor fria, que neste estudo indica os impactos
positivos, é normalmente associada às sensações de paz, bem-estar, tranquilidade, serenidade e frescor. (FREITAS, 2007). Na
matriz, o branco indica a condição de neutralidade do avaliador e significa a ausência de impacto.

Resultados
A avaliação dos impactos da gestão da APA Chapada do Araripe nas comunidades tradicionais locais foi realizada me-
diante um processo composto de cinco etapas: (i) Identificação das comunidades locais; (ii) Aplicação da técnica de Grupos
Focais nas três comunidades selecionadas; (iii) Identificação e valoração dos indicadores de impactos a partir da visão dos

05: Sistemas de Gestão e Governança


481
moradores das comunidades; (iv) Avaliação dos indicadores pelos gestores das UC envolvidas; (v) Construção dos cenários de
impactos a partir da visão do governo e das comunidades tradicionais, e, (vi) a análise da avaliação propriamente dita do pro-
cesso de gestão da APA nas comunidades locais.
Após a realização da primeira e segunda etapas deste trabalho, chegou-se a uma identificação de vinte e cinco impactos
(ver Quadro 1), considerados pelos moradores como alterações influenciadas a partir da criação da APA e, consequentemente,
pela forma de gestão implementada. Estes aspectos apontados foram posteriormente valorados como positivos ou negativos por
todos os moradores consultados. Os impactos, além de contemplarem uma dimensão social, abarcam outras dimensões como
as econômicas, culturais e ambientais das comunidades. Desta forma, são assim entendidos como impactos sociais porque “se
referem a consequências, antecipadas ou não, de eventos ou ações anteriores que alteraram a habilidade de uma unidade social
(individual ou coletiva) funcionar como no passado” (BRECHIN et al., apud MARINELLI, 2011, p. 22).
No caso específico das UC, os impactos são qualquer efeito ou consequência, de tipo positivo ou negativo, gerado pela
gestão que modifique o bem-estar e as condições econômica, social, cultural e/ou ambiental dos grupos sociais afetados. Tais
transformações nas estruturas sociais das comunidades têm reflexo expressivo e imediato na sua configuração espacial.

2
O código objetiva a identificação dos impactos na matriz de comparação utilizada na pesquisa.

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482
Os impactos identificados como tais pelas comunidades durante as reuniões que mantivemos com seus integrantes, nas
quais se aplicou o método de averiguação da dinâmica de Grupos Focais, foram acompanhados de uma avaliação da intensi-
dade apresentada pelo impacto (seja positivo ou negativo), conforme a percepção dos participantes. A valoração de cada im-
pacto foi realizada com base em uma escala de valores (Quadro 2), que varia entre o positivo e o negativo. Os resultados dessas
ponderações foram introduzidos em uma matriz de comparação para permitir os procedimentos da análise.

As percepções dos sujeitos


Na percepção dos moradores das comunidades tradicionais da Chapada do Araripe, os impactos desfavoráveis do pro-
cesso de gestão da APA superaram levemente os favoráveis. Dos vinte e cinco pontos indicados pelas três comunidades, treze
deles (52%) foram considerados negativos para as comunidades locais.
Os aspectos que obtiveram o maior indicador negativo, ou frequência, (valor -9 na escala), ou seja, avaliados como sendo
impactos negativos extremamente fortes, se registram os seguintes: redução da atividade agrícola local (EC-1) e não participa-
ção efetiva das comunidades na gestão da APA (Sa19).
Conforme já mencionado, a base da reprodução econômica das comunidades da Chapada foi, historicamente, a
agricultura de subsistência, com características itinerantes, o que se chocou frontalmente com as normas restritivas da UC. O
discurso dos moradores denuncia também a falta de um canal de diálogo entre eles, os órgãos ambientais e gestores da APA,
o que vem demonstrar o interesse em participar efetivamente do processo de gestão, como podemos verificar interpretando o
fragmento da fala de um participante de um dos grupos focais:

O pessoal do IBAMA devia conversar mais com a gente pra saber sobre a nossa vida aqui. Acho
que nós podemos participar para entender mais sobre a APA, para poder também participar das
decisões, nós temos vontade, mas, eles não convida a gente (sic). Aí, depois é só punição. Aqui
nós se reúne (sic) na nossa associação, mas eles nem aparece aqui para ouvir nós todos. Nós
precisamos entender melhor o que é a APA (GRUPO FOCAL Nº 3, 2013).

Um segundo grupo de impactos, composto por cinco categorias, obteve também uma avaliação negativa elevada (valor
-7 na escala), isto é, impacto negativo muito forte. Destes, quatro se encaixam como impactos de natureza essencialmente
econômica, um de natureza cultural e o outro de ordem ambiental: redução da atividade carvoeira (EC-2); limitação do uso da
terra (SE-6);redução das alternativas de renda (SE-7); limitação ao uso dos recursos naturais da chapada pelas comunidades
(SE-8); alterações dos hábitos culturais locais (S-15) e poluição sonora (A-25).
Segundo os moradores, os efeitos negativos não impactaram apenas no âmbito das atividades econômicas, mas tam-
bém tiveram interferência no modo de vida das populações, a exemplo das mudanças nos comportamentos, sobretudo dos
mais jovens. A poluição sonora é um incomodo relativamente recente nos ambientes das comunidades e se dá por meio do uso
excessivo de equipamentos de som, o que acontece geralmente nos finais de semana, período em que a população não nativa
frequenta a localidade. Esta forma de poluição, segundo os moradores, se intensificou na medida em que cresceu o número de
residências de pessoas não nativas – ou segunda residência de população urbana (GRUPO FOCAL nº 2, 2013).
No terceiro nível de interferência, os impactos que foram considerados negativos de forma moderada ou fraca foram:
crescimento do fracionamento das propriedades – EC-5 (valor -3 na escala); êxodo rural – S-10 (valor -3 na escala); redução das
atividades extrativistas – EC-3 (valor -1 na escala); aumento da oferta da educação básica – SE-9 (valor -1 na escala) e atração de
não nativos para a área das comunidades – S-13 (valor -1 na escala).

05: Sistemas de Gestão e Governança


483
Segundo os grupos participantes, as alterações provocadas pelas restrições impostas pelos órgãos gestores na área
das comunidades, especialmente nas atividades tradicionais dos moradores, provocaram a migração definitiva de algumas pes-
soas ou mesmo famílias inteiras. Em alguns casos, a busca de oportunidade de renda fora das comunidades, principalmente
nas áreas urbanas próximas, gerou um processo de mobilidade pendular, com moradores indo trabalhar em cidades vizinhas,
voltando a pernoitar nas comunidades de origem.
Conforme os moradores, a ausência, na prática, de um disciplinamento do processo de fracionamento das propriedades,
além de contribuir para alterar o cotidiano das comunidades com a atração de população urbana, reduziu as tradicionais práticas
extrativistas de produtos naturais da área em função da dificuldade de acesso às árvores dentro das novas propriedades. É co-
mum, em época de coleta de frutos, a população nativa adentrar as propriedades dos nativos sem autorização dos donos para a
realização da coleta, o que, não raras vezes, gera conflitos entre moradores locais e moradores urbanos.
É de esperar que a implantação de uma unidade de conservação de uso sustentável, a exemplo das Áreas de Proteção
Ambiental, possibilite a manutenção dos ambientes naturais e a melhoria da qualidade de vida daqueles que ocupam estas
áreas. No caso da APA Chapada do Araripe, a percepção dos moradores das comunidades tradicionais indica que o processo de
gestão gerou poucas consequências favoráveis. Os impactos positivos de melhor avaliação foram: aumento do valor das terras
(EC-4) e redução do desmatamento (A-23).
Para estes últimos impactos, os moradores atribuíram valor 5 na escala (impacto positivo forte). Assim, para muitos mora-
dores, o aumento do valor do metro quadrado da terra na área representou uma importante fonte extra de renda. A redução dos
níveis de desflorestamento, grande parte em razão da fiscalização dos órgãos ambientais, promoveu a valorização do espaço.
Se de um lado houve a redução das atividades agrícolas tradicionais que, na visão de muitos, provocou prejuízos, por outro, a
atração pelas belezas cênicas e outros atributos naturais fez crescer a demanda para a aquisição de parcelas de terras na área
das comunidades por moradores urbanos, com o objetivo de construir suas casas de veraneio. Esta transformação promoveu
certa especulação imobiliária e a consequente valorização das terras, o que se tornou uma importante fonte de renda para muitos
moradores.
Para os impactos positivos moderados (valor 3 na escala), os moradores indicaram três impactos notórios: melhoria no
abastecimento de água para uso humano (Sa16); melhoria na eletrificação da área das comunidades (Sa17) e recuperação da
cobertura vegetal nativa (A-24).
Parte dos moradores que participaram das discussões dos grupos focais acredita que a transformação da área em uma
UC teria influenciado, de alguma maneira, as primeiras formas de abastecimento de água para as comunidades locais, como
também a incorporação à rede pública de abastecimento de energia elétrica. A recuperação da vegetação nativa teria se dado
através do abandono das práticas agrícolas tradicionais, sobretudo a do cultivo da mandioca, e não pelo replantio de árvores
nativas.
Os impactos positivos fracos (valor 1 na escala), indicados pelos participantes, representam uma série de ocorrências
que, segundo os moradores, tiveram pequena relação direta com a criação da APA. São eles: realização de parcerias entre enti-
dades do terceiro setor e as comunidades (S-11); organização política das comunidades através de associações (S-12); melhoria
da qualidade de vida dos moradores das comunidades (Sa18); valorização da cultura local (S-14); implantação de projetos de
educação ambiental (Sa20); aumento da consciência ambiental dos moradores das comunidades (Sa21) e parceria entre os
órgãos ambientais e as comunidades para a conservação do meio ambiente (Sa22).
Nos relatos dos moradores, os pontos supracitados, quando realizados, foram resultados dos esforços empreendidos
pelos próprios moradores, embora alguns acreditem que o fato de ser uma área protegida tenha contribuído para tal realização.
A partir dos resultados apresentados, verificamos que os moradores das comunidades da Chapada do Araripe perce-
beram, claramente, com intensidades distintas, os efeitos da criação da APA e, por conseguinte, a forma como se realiza a gestão,
que interferiu, de forma positiva ou negativa, notadamente nos seus modos de vida.
Seguidamente foram submetidos aos gestores das duas UC, separadamente, os pontos impactantes indicados pelas
comunidades, para que os mesmos, agora, expressassem sua percepção por meio da mesma escala de valores.
Sob outro ponto de vista, no geral, a percepção agora dos gestores das duas UC (FLONA e APA Araripe) foi, por umlado,
muito semelhante e, por outro, bastante diferente da percepção dos moradores das comunidades. Assim, observa-se que, dos
vinte e cinco pontos submetidos à valoração por parte dos gestores, quatorze tiveram o mesmo valor (EC-1, EC-4, EC-5, S-09,

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S-10, S-13, S-14, Sa16, Sa18, Sa20, Sa21, Sa22, A-24 e A-25), e estes, todos com valores zero ou próximo de zero, ou seja, de baixo
impacto. Mesmo nos demais pontos em que não houve coincidência de atribuição de valores, a pontuação ficou também próxima
de zero. Apenas cinco pontos foram considerados como impactos negativos, mesmo assim de natureza fraca (-1), destes apenas
um ponto (S-15) pelo gestor da APA e quatro pontos (EC-2, EC-3, SE-6 e SE-8) pelo gestor da FLONA.
Na opinião do gestor da APA, nenhum ponto foi valorado acima do +1 ou do -1. Doze pontos foram considerados “não
impactos” (valor 0). O gestor da FLONA considerou três pontos como impactos positivos acima de +1 (S-11, S-12 e Sa-17) e
foram considerados “não impactos” (valor 0) nove pontos.
Na figura 2 observa-se a MCCIG elaborada com os resultados da avaliação realizada pelos moradores das comunidades
da Chapada do Araripe. A imagem resultante das comparações entre os impactos mostra a intensidade dos tons avermelhados,
o que permite afirmar que a gestão da APA foi percebida pelas comunidades como um processo infelizmente, fortemente impac-
tante negativamente, fato que deveria ocorrer. Visualiza-se também, de maneira extremamente fácil, os pontos onde se concentra
o conjunto de aspectos de maior e de menor impactos. Os pontos de maior intensidade negativa estão relacionados aos aspectos
econômicos e socioeconômicos, como percebemos no detalhe (triângulo tracejado). A exceção fica por conta do ponto que trata
do aumento do processo de fracionamento das propriedades (EC-5), o qual os moradores avaliaram como impacto positivo (+5).

Figura 2. Matriz cromática comparativa com os resultados da avaliação das comunidades da Chapada do Araripe - 2013.
Fonte: Elaborado pelo autor (2013)

Deste modo, visualizando a figura anterior, por terem sido massivamente avaliados de forma negativa, os resultados da
comparação destes com os demais pontos (socioambientais e ambientais) produziram na matriz tons predominantemente menos
intensos da escala vermelha (detalhe do retângulo de cor azul).
Por sua vez, os pontos de maior concentração de impactos positivos corresponderam aos aspectos de natureza social,
socioambiental e ambiental (detalhes do retângulo e triângulo de cor laranja, na Figura 2) e, logicamente, a comparação entre
eles também resultou em tons mais claros da escala verde. Neste conjunto de pontos, somente cinco foram apontados como
impactos negativos. Destes, três tiveram avaliação fortemente negativa e outros dois moderadamente negativa.

05: Sistemas de Gestão e Governança


485
As MCCIG, das Figuras 3 e 4, representam, respectivamente, os resultados das percepções dos órgãos gestores da APA
e da FLONA. Visualmente, as figuras se diferenciam muito pouco. Nelas observamos os tons mais claros na escala verde e o
branco, o que indica que os pontos analisados não foram considerados impactos fortemente negativos, e uma grande parte deles
nem sequer foi considerada impacto. A boa distribuição dos tons claros da escala verde demonstra que, na visão dos gestores, o
processo de gestão da APA não afetou a vida dos moradores das comunidades de forma acentuada. No geral, os impactos foram
predominantemente de natureza positiva e moderados.

Figura 3. Matriz cromática comparativa com os resultados da avaliação da gestão da APA Chapada do Araripe - 2013.
Fonte: Elaborado pelo autor (2013)

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Figura 4. Matriz cromática comparativa com os resultados da avaliação da gestão da FLONA Araripe 2013.
Fonte: Elaborado pelo autor (2013)

A cor branca que ocupa, praticamente, a metade da imagem da matriz anterior, cor que representa, na visão do gestor da
APA, que a maioria dos pontos apontados pelos moradores não podem ser entendidos como sendo impactos provocados pela
criação da UC e nem mesmo como consequência do modo como a gestão é aplicada. Consideram que a gestão realizada por
eles como positiva. Só há uma exceção. Na percepção do gestor da APA, o único elemento que se mostrou negativo, porém mo-
deradamente, para as comunidades da Chapada do Araripe, está relacionado às alterações nos hábitos culturais das populações
(S-13), como podemos visualizar no detalhe (retângulo de cor laranja) na matriz da Figura 3.
Como já visto, pode-se afirmar que a matriz cromática que traduz a visão do gestor da APA não se apresenta muito dis-
tinta da matriz aplicada ao gestor da FLONA. Porém, esta última, a do funcionário da FLONA indica um maior número de pontos
considerados negativos, mesmo que de maneira moderada, como se observa no detalhe (triângulo de cor laranja) da Figura 4.
Os pontos negativos verificados pelo gestor da FLONA estão relacionados a aspectos de natureza econômica e socioeconômica
dos moradores.
A pesquisa indicou que as visões dos atores envolvidos no estudo se mostraram contraditórias, ou seja, o que pensam
as comunidades não é compartilhado pelos responsáveis pela gestão, mesmo porque os interesses específicos de ambos os
grupos são diferentes. O uso das MCCIG proporcionou enxergar, de maneira bastante didática, as diferentes visões acerca
do processo de gestão da APA Chapada do Araripe, neste caso, as comunidades tradicionais e o responsável pela gestão da
UC. Estimamos que a confrontação dos resultados apresentados por meio deste instrumento gráfico se mostrou eficiente por
poder proporcionar a visualização dos resultados através da imagem e dispensando a frieza e as dificuldades para interpretar
os números

Considerações finais
Os resultados obtidos nas avaliações dos impactos, tanto nos grupos focais aplicados às comunidades quanto nas ava-

05: Sistemas de Gestão e Governança


487
liações feitas pelos gestores das unidades de conservação sobre os impactos apontados, demonstraram que são distintas as
formas de percepção dos efeitos da gestão. Estes resultados confirmam a segunda hipótese apontada na pesquisa. As diferen-
ças de tonalidades visualizadas nas Matrizes Cromáticas elaboradas neste trabalho indicam o quanto os moradores nativos das
comunidades da Chapada do Araripe e os gestores se diferenciam quanto às consequências da criação da APA na vida destas
comunidades.
A MCCIG, uma ferramenta proposta e utilizada para realizar a comparação dos impactos valorados entre si e pelos
sujeitos da pesquisa, por meio da visualização, se mostrou bastante eficiente. Assim, as configurações das matrizes resultantes
do processo de comparação demonstrou claramente o quanto os gestores e comunidades possuem visões distintas quanto aos
efeitos do estabelecimento da APA e sua gestão.
A ferramenta, além de realizar a operação dos pares comparativos dos impactos, permitiu, através da visualização dos
resultados por meio das diferentes tonalidades cromáticas, o acesso fácil à informação científica, inclusive como forma didática
de apresentação dos resultados para as próprias comunidades tradicionais locais.
Neste sentido, pode-se recomendar aos gestores da APA a aplicação deste procedimento metodológico para levan-
tamento de demandas no interior da UC, em qualquer segmento que se queira analisar, pelas vantagens que apresenta. Além
disso, com adaptações, este pode ser um importante instrumento a ser aplicado no próprio âmbito do conselho consultivo da
APA, com o objetivo de melhor compreender a percepção que os membros têm da própria atuação, bem como para o levanta-
mento de demandas.
A descentralização da gestão, como proposto por Scardua (2003), é fundamental para atingir os objetivos e expectativas
das comunidades tradicionais e, como exposto neste trabalho, a gestão integrada da APA Chapada do Araripe incorporou o con-
selho consultivo para tornar este elemento viável na descentralização da gestão local. Entretanto, os resultados obtidos a partir
dos GF nas comunidades tradicionais como essa, revelaram valores que permitem afirmar que o objetivo de descentralização
não foi alcançado, não sendo atendidos os interesses das comunidades tradicionais.
A tomada de decisão, que deve partir, especialmente, das populações das comunidades organizadas politicamente,
representa uma oportunidade para revalorizar o papel dos espaços e das comunidades rurais. Enfim, construir uma relação de
confiança entre as comunidades locais e os gestores aprimora a conduta conservacionista no presente e possibilita trabalhar
de modo bem diferente no futuro (BROSIUS, 2004). Acreditamos, assim, que possamos atingir a tão propalada sustentabilidade:
economicamente viável, ecologicamente correta e socialmente justa.

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Áudio
GRUPO FOCAL Nº 2. Gestão de Área Protegida: proposição metodológica para avaliação de impactos da gestão
nas comunidades tradicionais da APA Chapada do Araripe. [mai. 2013]. Mediador/pesquisador – Paulo Sérgio Silvino do
Nascimento. Sede da Associação dos moradores da comunidade Baixa do Maracujá. Crato – CE, 18 mai. 2013. Gravação digital
– (105 min.).

GRUPO FOCAL Nº 3. Gestão de Área Protegida: proposição metodológica para avaliação de impactos da gestão nas
comunidades tradicionais da APA Chapada do Araripe. [jun. 2013]. Mediador/pesquisador – Paulo Sérgio Silvino do Nasci-
mento. Sede da Associação dos moradores da comunidade Santo Antônio. Crato – CE, 09 jun. 2013. Gravação digital – (85 min.).

05: Sistemas de Gestão e Governança


489
INSTRUMENTOS DE GESTÃO DE RESERVAS EXTRATIVISTAS FEDERAIS:
DIFICULDADES E DESAFIOS NOS ÚLTIMOS 25 ANOS

Brusnello, Leidiane Diniz¹ & Marinelli, Carlos Eduardo²

1. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, leidiane.brusnello@icmbio.gov.br; 2. Grupo Natureza, Sociedade e


Conservação, Universidade de Brasília e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, caenscgrupo@gmail.com

Resumo
Os principais instrumentos de gestão das Reservas Extrativistas (RESEX) são o plano de manejo (PM) e o acordo de gestão (AG).
Apesar da importância da existência destes instrumentos para o alcance dos objetivos de criação das RESEX, muitas delas ainda
não possuem tais documentos e os motivos pelos quais isto acontece são pouco conhecidos. Haja vista este cenário, objetivamos
com este estudo gerar informação sobre o processo histórico da publicação dos PM e AG. Para tanto, realizamos entrevistas,
consultas a bases documentais e aplicamos um questionário. Verificamos que o reduzido número de publicações de AG e PM
se deve a instabilidade política dos órgãos ambientais, a ausência de diretrizes para sua elaboração, a priorização de esforços
em UC de proteção integral, a burocracia incorporada aos trâmites processuais e a ausência de posicionamento institucional
concreto acerca de temas polêmicos.

Palavras-chave: RESEX, Plano de Manejo, Acordo de Gestão.

Introdução
O governo brasileiro, seguindo uma tendência mundial para inclusão das populações tradicionais nas estratégias de
conservação da biodiversidade, criou por meio do Decreto nº 98.897/1990, as Reservas Extrativistas (RESEX) no qual as definiu
como: “espaços territoriais destinados à exploração autossustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por
população extrativista” (BRASIL, 1990).
Este decreto previu também o primeiro instrumento de gestão da categoria, o plano de utilização (PU), que regularia o
uso da terra e seria elaborado pela comunidade para posterior aprovação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recur-
sos Naturais Renováveis (IBAMA) (BRASIL, 1990).
De acordo com Almeida & Pantoja (2004), o principal objetivo do PU era a consolidação de um conjunto de regras de
manejo sobre o uso dos recursos naturais com o estabelecimento de direitos, obrigações e penalidades para a população tradi-
cional residente.
Em 2000, com a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC - (Lei n° 9.985/2000) é consolidada a
obrigatoriedade das Unidades de Conservação (UC) disporem de um plano de manejo (PM) para regular as atividades a serem
desenvolvidas em seu território (BRASIL, 2000). Segundo o SNUC o PM:

É o documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de con-
servação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos
recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade. (art. 2°,
inciso XVII)

Ainda que o SNUC não tenha considerado o PU em seu conteúdo, o mesmo permaneceu existindo, de maneira que estes
dois instrumentos de gestão vigoram até hoje.
Tendo em vista que a principal finalidade das RESEX é proteger os meios de vida e a cultura das populações tradicionais
residentes e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais (BRASIL, 2000), e que os PM e acordos de gestão (AG)1, antigos
PU, devem contribuir para a sustentabilidade do uso destas áreas a longo prazo, sua elaboração e implementação é de extrema
importância para que essas UC tenham sucesso no alcance de seus objetivos de criação. No entanto, apesar da relevância e
necessidade desses instrumentos de gestão, a maioria das RESEX não possui PM ou AG publicados.

1
Em 2012, o plano de utilização foi substituído pelo acordo de gestão, por meio da Instrução Normativa n° 29/2012 do ICMBio.

05: Sistemas de Gestão e Governança


491
Considerando que há uma lacuna de informação sobre estes instrumentos, objetivamos com este trabalho analisar o
processo histórico relacionado à sua elaboração/publicação com vistas a identificar dificuldades e desafios.

Material e Métodos
Um questionário foi enviado aos gestores das 59 RESEX2 federais e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável3 exis-
tentes à época (Julho de 2014) por meio de uma plataforma virtual. O principal intuito do questionário foi levantar informações
sobre o processo de elaboração dos PU/AG. O questionário utilizado foi do tipo misto, com respostas abertas e fechadas. As
respostas obtidas foram convertidas em gráficos de distribuição de valores.
A busca por informações relacionadas ao processo histórico de publicação dos PU/AG e dos PM foi realizada através de
entrevistas com servidores do ICMBio que tiveram relação com esta agenda nos últimos anos. Tais entrevistas foram orientadas
por um roteiro semiestruturado e foram realizadas de diferentes formas (presencial, skype, telefone e e-mail).
Os relatos das entrevistas foram cruzados com marcos históricos relacionados à publicação de documentos relacionados
aos PU/AG e PM de forma que pudéssemos ter uma perspectiva dos principais eventos que contribuíram para o aumento ou
redução da publicação destes documentos ao longo do tempo.

Resultados e Discussão
Plano de Utilização ou Plano de Manejo? Os tortuosos caminhos da definição dos
instrumentos de gestão de RESEX
A proposta do PU surgiu a partir de discussões do grupo de trabalho interministerial que precedeu a criação das RESEX.
Nesta ocasião, colocou-se em dúvida a possibilidade de que seringueiros elaborassem e administrassem um PM, com base
em argumentos técnicos sobre a complexidade e o tempo envolvido no processo. Em contraponto, argumentou-se que bastaria
elaborar um documento mais simples, contendo o registro das formas já adotadas de manejo dos recursos naturais que se ha-
viam mostrado eficazes para manter a floresta e conservar as os recursos naturais utilizados, especialmente a seringueira e a
caça (ALMEIDA; PANTOJA, 2004).
O PU foi considerado, desde a criação das RESEX, o instrumento mais importante para a gestão dessas UC, uma vez
que por meio dele os próprios moradores estabeleceriam uma forma de uso dos recursos naturais segundo as bases locais e
tradicionais de manejo (CUNHA, 2010).
No entanto, apesar de sete PU terem sido publicados na década de 90, nenhuma menção a este documento é feita no
SNUC (Lei n° 9.985/2000) que passa a considerar o PM como principal instrumento de gestão das RESEX.
A desconsideração do PU pelo SNUC, apesar das suas contribuições à governança das populações tradicionais, de-
monstra que havia pouca confiança neste instrumento.

O PM sempre foi considerado (tanto pelo Ibama como pelo ICMBio) como o principal instru-
mento de gestão de UC. Questão importante, é que os PU eram vistos como instrumentos “de
menor” qualidade técnica, elaborados pelas comunidades extrativistas (também considerado um
“saber menor”) e com enfoque nas relações sociais. Até hoje, essas características são vistas
como pontos “menores” do que aquelas relacionados à conservação ambiental. No fundo, esses
fatores ainda denotam preconceitos com as características dos PU. (Leonardo Messias Tortoriello
– Coordenador – COPCT - ICMBio).

Apesar disso, o PU não foi completamente descartado, pois subentendia-se que os documentos já existentes deveriam
ser incorporados ao PM.

Em 2000, com a criação do SNUC a RESEX passa a ser considerada UC, mas tem que ter PM. O
SNUC não diz nada sobre PU, mas fica comumente entendido que os PU já vigentes seriam incor-
porados aos PM, que por sua vez, devem seguir o SNUC, e ter regras, zoneamento e programas
de manejo. (Mônica Furtado – Analista Ambiental da Coordenação de Políticas e Comunidades
Tradicionais – COPCT - ICMBio).
2
O Posteriormente, em outubro de 2014 foram criadas três novas RESEX.
3
O questionário foi aplicado na RDS Itatupã-Baquiá por ser a única da categoria e apresentar semelhanças com as RESEX.

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492
Neste sentido, em 2004, o Ibama publica um Roteiro Metodológico para elaboração de Plano de Manejo de Uso Múltiplo
das RESEX que prevê em seu volume I um conteúdo similar ao do PU (IBAMA, 2004).
No entanto, o investimento do Ibama no Roteiro de 2004 teve pouco aproveitamento, pois nenhum PM foi publicado utilizan-
do-o oficialmente e, pouco tempo depois, foi publicada a Instrução Normativa (IN) ICMBio n° 01/07 que disciplinou as diretrizes,
normas e procedimentos para a elaboração de Plano de Manejo Participativo (PMP) de RESEX (ICMBIO, 2007). Esta IN voltou a
considerar que o PU poderia ser publicado antes do PM, porém, o mesmo deveria ser incluído quando da elaboração do PM.
Somente com a publicação da IN ICMBio n° 29/12, que substituiu o termo plano de utilização por acordo de gestão, é que
ocorreram as primeiras publicações deste documento de forma independente (antes) do plano de manejo.
Atualmente a elaboração de ambos os instrumentos (PM e AG) é estimulada, seja de forma independente ou simultânea,
o que tem contribuído para o aumento no número de publicações de ambos.

Criados na teoria, pouco incentivados na prática, instrumentos de gestão


de RESEX são negligenciados por mais de vinte anos
Passados 24 anos da criação da primeira RESEX (Alto Juruá), mais da metade delas (55%) ainda não possuem PU ou AG
publicados e um número ainda menor (25%) possui PM (Figura 1).

Figura 1. Distribuição do número de Reservas Extrativistas com acordos de gestão/planos de


utilização e planos de manejo publicados.

A distribuição das publicações de ambos os instrumentos ao longo do tempo é ainda mais preocupante. Dezessete anos
se passaram entre o Decreto nº 98.897/1990 que criou as RESEX e a publicação do primeiro plano de manejo.
Coincidentemente, a criação do SNUC marca o início de um período de sete anos (2000 – 2007) em que nem PU, nem
PM foram publicados para as RESEX (figura 2 e quadro 1).

Figura 2. Número de plano de manejo e acordo de gestão/plano de utilização publicados ao ano (cumulativamente).

05: Sistemas de Gestão e Governança


493
Até o ano 2000 não havia nenhuma diretriz que determinasse a elaboração de PM. Os esforços neste sentido estavam
centrados nos PU, o que explica a inexistência de publicações de PM na década de 90. No entanto, com a criação do SNUC
esperava-se que esforços antes investidos nos PU passassem a ser concentrados nos PM. Ainda assim, como dito anteriormente,
sete anos se passaram até que surgissem as primeiras publicações.
Um bloqueio inicial na elaboração dos PM resultou da falta de afinidade e experiência dos técnicos e dos movimentos
sociais com a proposta do documento, uma vez que o mesmo ainda não existia.

A gestão do CNPT, à época da publicação do SNUC, entendia que os movimentos sociais deveriam
estar à frente da gestão das RESEX, pois havia um respeito pelo que era produzido e construído
pelas populações locais. Então, houve um choque do que os técnicos do CNPT entendiam que era
necessário para a gestão das RESEX e o que o SNUC passou a impor via PM. Dessa forma, não houve
um movimento para se construir PM de RESEX, pois não se acreditava que fosse um documento ade-
quado para este tipo de UC. (Cláudia Cunha - Analista Ambiental - Coordenação Regional 6 - ICMBio).

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494
Assim como, a inexistência de procedimentos institucionalizados que direcionassem a elaboração do plano.

Não se sabia exatamente como o PM devia ser construído e como o PU deveria fazer parte dele.
Além disso, até 2006 não existiam procedimentos para nada. O processo de criação das RESEX,
por exemplo, acontecia de formas diferentes em cada estado da federação, com o mesmo ocor-
rendo com outros instrumentos e modos de gestão de UC. (Leonardo Pacheco – Analista Ambi-
ental - COPCT - ICMBio).

Outro fator que contribuiu para o reduzido número de publicações de PM de Resex após o ano 2000 foi a centralização
da elaboração destes documentos em Brasília, onde não havia um corpo técnico apto e dedicado em construir instrumentos
que atendessem as necessidades dessas UC. Um dos motivos era a priorização dada aos PM das UC de proteção integral, em
detrimento daquelas de uso sustentável.
Ao avaliarmos a publicação de PM de PARNA e RESEX nos últimos anos verificamos que, de fato, foram publicados sig-
nificativamente mais PM no primeiro caso (33) do que do segundo (16) (Figura 3). Tal diferença permanece quando avaliamos
estes valores diante do número total de unidades, de ambas as categorias, criadas em cada período (Figura 4).

Figura 3. Número de planos de manejo publicados em Reservas Extrativistas e Parques Nacionais no período de 1990 até 2014.

Figura 4. Porcentagem de planos de manejo publicados em Reservas Extrativistas e Parques Nacionais no período
de 1990 até 2014 com base no número total de UC criadas em cada período.

05: Sistemas de Gestão e Governança


495
Este mesmo padrão foi seguido também quanto aos grupos de manejo. De maneira geral, houve mais publicações de
PM de UC de proteção integral (45) do que de uso sustentável (33) até 2009 (figura 5), quando este padrão se inverte. Contudo,
o percentual de PM publicados em relação ao número total de UC criadas foi maior para as UC de proteção integral do que para
as de uso sustentável no período de 2010 até 2014. Somente no período de 1990 a 1999 houve maior percentual de PM publica-
dos para as UC de uso sustentável em relação às de proteção integral (figura 6), mas isso se deve as publicações das Florestas
Nacionais (FLONA) (sete) e Área de Proteção Ambiental (APA) (seis), categorias mais consolidadas e com relevante interesse
econômico, seja pela produção madeireira na primeira, ou pelo licenciamento de atividades na segunda.

Figura 5. Número de planos de manejo publicados em UC de uso sustentável e de proteção integral no período de 1990 até 2014.

Figura 6. Porcentagem de planos de manejo publicados de UC de uso sustentável e proteção integral no período de 1990 até 2014
com base no número total de UC criadas em cada período.

Ainda que, ambas as categorias de manejo de UC (uso sustentável e proteção integral) sofram com a delonga na elabo-
ração de seus PM, além de outros problemas como a extensão do conteúdo, o custo elevado e a pouca aderência ao dia-a-dia da
gestão das Unidades (ICMBIO, 2012a), os números (Figura 6 e 7) demonstram que até 2010 houve maior investimento nas UC
de proteção integral.
Um dos motivos para a priorização das UC de proteção integral, em detrimento das de usos sustentável, se deve a
descrença em projetos de conservação que coadunem a preservação da biodiversidade com a presença humana, visão esta

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
496
também conhecida como preservacionismo.
O preservacionismo e o conservacionismo - vertente de pensamento que acredita que a dimensão humana deve ser in-
corporada ao equacionamento dos ecossistemas (NEDER, 1994 apud NOGUEIRA; SIQUEIRA, 2004, p. 4), são duas importantes
e conflituosas perspectivas que tem pautado as decisões no âmbito da gestão ambiental brasileira.
Durante a construção do SNUC o embate destas duas visões (conservacionista e preservacionista) contribuiu para a
consolidação da ideia da preservação ao estabelecer as UC da categoria proteção integral, ao mesmo tempo em que trouxe
importantes ganhos para a conservação ao garantir as UC de uso sustentável (MEDEIROS, 2006; PECATIELLO, 2011).
Contudo, nem sempre há equilíbrio nos resultados de tais embates e, ao que tudo indica, a prevalência de uma perspec-
tiva preservacionista acarretou em maiores investimentos nas UC de proteção integral em detrimento das de uso sustentável,
com significativo impacto à publicação dos instrumentos de gestão de RESEX.

Caos institucional influencia na publicação dos instrumentos de gestão de RESEX


A RESEX Chico Mendes e a RESEX Cazumbá-Iracema foram as primeiras a elaborar e publicar, em 2007, PM que já
contemplavam em seu conteúdo o PU. Já haviam se passado sete anos da criação do SNUC (2000) e oito da última publicação
de PU (RESEX Tapajós-Arapiuns e RESEX Arraial do Cabo, ambos em 1999).
A publicação de novos planos reacendeu a esperança no investimento e fortalecimento dos instrumentos de gestão das
RESEX. Esperança esta frustrada pela divisão do Ibama e a criação do ICMBio.
O Ibama foi desmembrado a partir da publicação da Medida Provisória (MP) nº 366/07 (posteriormente a MP foi sancio-
nada pela Lei nº 11.516/07) que criou o ICMBio, delegando ao mesmo a responsabilidade sobre as UC federais (BRASIL, 2007).
Por sua vez, a criação do ICMBio interrompeu temporariamente o processo de fortalecimento da agenda socioambiental
dentro do Ibama, que recentemente havia conquistado uma diretoria para o tema, a Diretoria de Desenvolvimento Socioambiental
(DISAM).
No ICMBio, a DISAM foi substituída pela Diretoria de Unidades de Conservação de Uso Sustentável e Populações Tradi-
cionais (DIUSP), responsável pelas ações relacionadas às RESEX. Contudo, nos primeiros dois anos o ICMBio estava se orga-
nizando, de maneira que o processo de fortalecimento da gestão socioambiental que ocorria no Ibama teve que ser reiniciado,
fazendo com que a publicação dos PM de RESEX fosse interrompida por mais dois anos (2008 a 2009).
Além disso, em 2007 foi publicada a IN n° 01/07, que passou a considerar a perspectiva do PU ser publicado antes do PM.
Porém, ainda não estava claro de quem era a responsabilidade pela elaboração seja do PU, seja do PM.
Somente em novembro de 2011 a Coordenação Geral de Populações Tradicionais (CGPT) passou a assumir a atribuição
de elaborar os PU (ICMBIO, 2012b).
Já o PM, que em 2009 estava sob a responsabilidade da Coordenação Geral de Gestão de Reservas Extrativistas (CGREX),
foi transferido para a Coordenação de Plano de Manejo (CPLAM4), mas devido a disputas internas, somente em 2011 os planos
passaram de fato para a CPLAM.
A CPLAM, ao receber a responsabilidade pelos planos de manejo de RESEX realizou um processo seletivo em busca de
servidores, pois não havia técnicos capacitados e experientes para atender a demanda.
O histórico apresentado demonstra que foram necessários quatro anos, após o desmembramento do Ibama e a criação
do ICMBio, para que a Instituição se organizasse para receber e atender a demanda de PM e PU das RESEX.

Um passo a frente, outro atrás: Apesar dos avanços, as RESEX ainda enfrentam desafios à
publicação de seus instrumentos de gestão
A consolidação da estrutura organizacional do ICMBio, com a definição clara de competências e a seleção de servidores
para trabalhar com os PM das RESEX, teve um reflexo positivo sobre o número de publicações a partir de 2012 (Figura 2).
O mesmo pode ser dito sobre os AG que ainda tiveram a seu favor a publicação da IN n° 29/12, que trouxe mais orienta-
ções para elaboração do documento, e a vinculação da existência de AG com a disponibilização do Bolsa Verde5 .

4
Atual Coordenação de Elaboração e Revisão de Plano de Manejo (COMAN).
5
O Programa de Apoio à Conservação Ambiental Bolsa Verde, concede a cada trimestre, um benefício de

05: Sistemas de Gestão e Governança


497
Figura 7. Síntese cronológica dos principais eventos institucionais relacionados aos planos de manejo,
planos de utilização e acordos de gestão.

Além das questões internas ao órgão gestor, ao longo dos últimos anos a agenda socioambiental passou a receber maior
respaldo da sociedade, o que também contribuiu para o aumento da publicação de documentos importantes para sua gestão.
Entre os instrumentos legais que contribuíram para ampliar a participação das populações tradicionais na gestão das UC
e para o reconhecimento de seus direitos estão o Plano Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), publicado em 2006 por meio do
Decreto n° 5.758, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, publicada através
do Decreto nº 6.040/2007 e as Instruções Normativas do ICMBio nº 01/2007, nº 02/2007, nº 03/2007 e nº 04/2008, que tratam sobre
a participação das populações locais nas ações pertinentes à gestão das RESEX.
Ademais, em 2007 foi criada a Comissão Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), que aumentou a
pressão do movimento social sob o Estado e aproximou lideranças, especialmente CNS, Comissão Nacional das Reservas Ex-
trativistas Costeiras e Marinhas (CONFREM) e a Rede Cerrado, do governo federal.
Todas estas conquistas reforçaram a importância das populações tradicionais para a conservação e potencializaram seu
poder de articulação, o que contribui para o aumento da publicação dos PM e AG, seus principais instrumentos de gestão, nos
últimos quatro anos.
No entanto, apesar das conquistas recentes, com já vimos, somente 25% das RESEX possuem PM e 45% contam com
PU/AG publicados, o que mostra que ainda existem fragilidades importantes na elaboração/publicação de ambos instrumentos.
Com relação ao AG, numa primeira fase do processo existem dificuldades intrínsecas à construção participativa do
documento, de acordo com os gestores de RESEX, as principais delas são: a logística para executar reuniões; o interesse dos
beneficiários em participar das reuniões e o estabelecimento de consensos para temas conflituosos (Figura 8).

Figura 8. Distribuição de frequência das principais dificuldades encontradas para a construção


participativa do PU/AG, segundo opinião de gestores de UC. Número de respondentes = 30.

R$ 300 às famílias em situação de extrema pobreza que vivem em áreas consideradas prioritárias para conservação ambiental.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
498
Já num segundo momento, o problema reside nos entraves burocráticos, pois depois de aprovado em Assembleia Geral
Comunitária o AG deve ser novamente analisado e aprovado pelo setor técnico do ICMBio, pelo conselho gestor da UC e pela
Procuradoria Federal Especializada (PFE) (análise jurídica) do ICMBio.
Sempre que o PU/AG não é aprovado em uma das instâncias o mesmo necessita de nova aprovação pela comunidade
e/ou pelo conselho gestor, o que pode prolongar a publicação do documento. Esta situação é agravada quando é solicitada a
alteração em regras que eram importantes para os comunitários em sua proposta original, a exemplo da caça, da criação de
gado e do manejo do fogo.
A ausência de um posicionamento institucional claro sobre temas polêmicos como os citados anteriormente é um pro-
blema recorrente. As diferentes interpretações da legislação, assim como dos conceitos de conservação, implicam constante-
mente em imbróglios que retardam a publicação dos AG e em alguns casos dos PM.
Com relação aos PM, ainda que o número de publicações a partir de 2010 tenha se equiparado com as UC de proteção
integral, persistem dificuldades crônicas atribuídas à complexidade do processo de planejamento, ao grande número de infor-
mações exigidas, a dificuldades de acesso às unidades de conservação, ao elevado custo associado aos levantamentos, ao tem-
po necessário para coleta de dados e a dificuldade dos técnicos locais em atender com exclusividade essa tarefa (CASES, 2012).

Conclusão
•Ainda que tenha sido desconsiderado pelo SNUC e negligenciado durante anos, o plano de utilização/acordo de gestão
permaneceu sendo um instrumento de grande importância para a gestão das RESEX, seja incorporado ao plano de manejo, seja
publicado de forma independente deste;
•Os principais fatores responsáveis pela reduzida publicação dos planos de manejo e planos de utilização até 2010
foram: a instabilidade política dos órgãos ambientais responsáveis pela gestão das RESEX; a ausência de diretrizes e procedi-
mentos para elaboração destes documentos e a priorização de esforços sobre instrumentos de gestão das unidades de conser-
vação de proteção integral;
•Dificuldades mais recentes para a publicação dos acordos de gestão se devem a obstáculos para a sua construção
participativa, a burocracia incorporada aos trâmites processuais para a aprovação do documento e a ausência de posiciona-
mento institucional concreto acerca de temas polêmicos. Este último também fator também influencia a publicação de planos de
manejo, que ainda enfrentam dificuldades crônicas para sua elaboração, como à complexidade do processo de planejamento e
o grande número de informações exigidas.

Referências
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05: Sistemas de Gestão e Governança


499
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500
INTERAÇÕES E PODER ENTRE STAKEHOLDERS DA PESCA ARTESANAL
DE PARATY, ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Araujo, Luciana Gomes de1 & Seixas, Cristiana Simão2

1. Universidade Estadual de Campinas, lgaraujo21@hotmail.com; 2. Universidade Estadual de Campinas, cristiana.seixas@gmail.com

Resumo
A gestão da pesca artesanal de Paraty baseia-se em políticas e leis federais que influenciam a pesca no nível das comunidades
de pescadores, onde diversos stakeholders do governo e da sociedade civil interagem em arenas de gestão da pesca e de
Unidades de Conservação. O objetivo deste estudo é analisar as interações entre os principais stakeholders da pesca artesanal
de Paraty, entre 2009 e 2013, com vistas a processos de gestão colaborativa da pesca. As interações entre os stakeholders estão
marcadas por assimetrias de poder, no entanto há interações favoráveis à cogestão. Pescadores têm a seu favor o conhecimento
local sobre os recursos pesqueiros e a coesão social. O desenvolvimento de relações mais colaborativas entre os stakeholders
desafia o governo a compartilhar poder, mas também desafia pescadores a se fortalecerem para o diálogo com o governo.

Palavras-chave: Cogestão, Comunidade, Pesca artesanal, Poder, Unidades de Conservação.

Introdução
A gestão da pesca artesanal de Paraty é principalmente baseada em políticas e leis federais. No nível municipal e das
comunidades de pescadores esse modelo de gestão repercute muitas vezes de forma negativa entre os pescadores, gerando
situações de divergência entre governo e pescadores (TRIMBLE, 2013), nas arenas sociais de gestão da pesca. Nessas arenas,
pescadores, governo e outros grupos que também interagem em torno do tema da pesca são designados como stakeholders da
pesca artesanal de Paraty. Os stakeholders são todos os interessados, envolvidos ou afetados, positivamente ou negativamente,
pelo acesso, uso e gestão dos recursos pesqueiros de Paraty, incluindo não somente organizações e grupos formais, como
também indivíduos, comunidades, redes de trabalho e grupos informais (BORRINI-FEYERABEND et al. 2004; RENARD, 2004;
POMEROY; RIVERA-GUIED, 2006).
As relações que se estabelecem entre os stakeholders são influenciadas por diversos fatores, incluindo as instituições
relativas à gestão da pesca e de Unidades de Conservação. A incongruência que se estabelece entre políticas e leis criadas
pelo Estado e a realidade local onde as regras são implementadas constitui um dos fatores que marcam as interações entre
stakeholders, com a produção de conflitos (YOUNG 2006; CALVIMONTES, 2013). No Brasil, o caso da criação de Unidades de
Conservação de proteção integral em áreas onde populações tradicionais residem há séculos e dependem do uso de recursos
naturais ilustra essa situação. Outro fator que influencia essas interações está ligado ao tipo de conhecimento e visões de mundo
que fundamentam a elaboração de políticas, como decisões de manejo baseadas em conhecimento científico que não levam em
consideração o conhecimento local do usuário de um determinado recurso. Esse dilema é comum na pesca artesanal, quando
pescadores reclamam espaço e direitos para participarem da formulação de políticas e normas que afetam sua atividade, como
no caso do período de defeso do camarão (MEDEIROS, 2009; TRIMBLE et al., 2014).
A gestão da pesca pode também ser analisada como o resultado do jogo de poder entre os stakeholders (JENTOFT,
2007). A autoridade institucionalizada e o conhecimento ou acesso à informação são dois recursos de peso que dão constituição
ao poder (ADGER et al., 2005, JENTOFT, 2007), sendo ele uma propriedade institucional e não do indivíduo (JENTOFT, 2007).
Um caminho para gerenciar conflitos e buscar diminuir as assimetrias de poder se dá com o desenvolvimento de siste-
mas de gestão que garantam instrumentos e arenas para lidar com as relações entre os diversos stakeholders como as abor-
dagens mais colaborativas e participativas de gestão (BERKES, 2002; 2006; KRISHNARAYAN, 2005, JENTOFT, 2007). Essas
abordagens estão, como no caso da cogestão, baseadas na relação entre as pessoas (BORRINI-FEYERABEND et al. 2004), o
que favorece a construção de parcerias para colaboração (BERKES 2006; 2007a; 2009; OROZCO-QUINTERO; BERKES, 2010;
SEIXAS; BERKES, 2010).
Embora a gestão da pesca artesanal de Paraty não constitua um sistema de cogestão, a discussão que faço sobre as rela-

05: Sistemas de Gestão e Governança


501
ções entre os stakeholders da pesca de Paraty está em concordância com modelos de gestão mais participativos e colaborativos,
já que eles propiciam melhores condições para lidar com a complexidade do recurso pesqueiro no nível local. É importante sa-
lientar que as abordagens mais participativas não garantem a resolução pronta e certa de problemas oriundos da interação entre
stakeholders. Pelo contrário, quando há maior participação de stakeholders na gestão da pesca, quer seja apenas pela consulta,
essa participação se configura em arranjos institucionais e arenas que revelam mais sobre conflitos e tensões latentes (Krishna-
rayan 2005). Além disso, processos de gestão mais participativos também estão sujeitos ao risco de se tornarem burocráticos e
ficarem a serviço do interesse de stakeholders mais poderosos (BERKES, 2009a).
O objetivo deste estudo é analisar as interações e relações de poder entre os principais stakeholders da pesca artesanal
de Paraty entre 2009 e 2013. Pretende-se discutir como essas relações de poder influenciam as arenas de gestão da pesca arte-
sanal, incluindo aquelas relacionadas às Unidades de Conservação onde a atividade de pesca está presente. Esta análise busca
apontar barreiras e oportunidades para o fortalecimento de relações que possam favorecer a construção de processos de gestão
colaborativa da pesca artesanal em Paraty.

Métodos
O método da Análise de Stakeholder (AS) foi usado como orientador para a coleta e análise de dados conforme Schmeer
(1999) e Renard (2004). A AS é um processo de coleta e análise sistemática de dados qualitativos que tem por finalidade gerar in-
formações sobre os indivíduos e organizações envolvidos em decisões relativas à elaboração e implementação de políticas, pro-
gramas, projetos ou planos de ações (GRIMBLE; CHAN, 1995; SCHMEER, 1999). Ela inclui a caracterização dos stakeholders
a partir de fatores como conhecimento, interesse, posicionamento, capacidade de influência, poder e recursos disponíveis (SCH-
MEER, 1999; POMEROY; RIVERA-GUIEB, 2006).
Os dados deste estudo foram obtidos por meio de entrevistas abertas e semiestruturadas com nove informantes-chaves e
pela observação direta de 21 reuniões públicas entre 2009 e 2013. Foram entrevistadas lideranças de pescadores e de organiza-
ções de base comunitária, gestores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e representantes
do governo municipal de Paraty. Os dados de observação direta incluem reuniões e assembleias dos Acordos de Pesca da Baía
da Ilha Grande, Conselhos Gestores de Unidades de Conservação com jurisdição em Paraty, Plano Diretor Municipal de Paraty
e Agenda 21 Municipal de Paraty.

Resultados
Principais stakeholders da pesca artesanal
As organizações, grupos e indivíduos que influenciam a pesca artesanal nas arenas de gestão da pesca e de Unidades
de Conservação em Paraty incluem representantes do governo, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiver-
sidade (ICMBio), da sociedade civil, como organizações não-governamentais (ONGs), organizações comunitárias e o Fórum das
Comunidades Tradicionais do litoral norte de São Paulo e sul do Rio de Janeiro (citado apenas como Fórum das Comunidades
Tradicionais doravante) além das Universidades.
Considero que a conservação dos recursos pesqueiros e de seus ecossistemas seja o tema de interesse comum a todos
os stakeholders desta análise, portanto um tema com o potencial de agregá-los em torno de um propósito comum. A Tabela 1
sintetiza diversos aspectos que auxiliam o entendimento da influência dos stakeholders nas arenas de pesca, como interesses,
nível de jurisdição a que estão vinculados, os recursos ou capacidades disponibilizadas pelos stakeholders e os benefícios que
cada um tem sobre a pesca artesanal, seja ele direto ou indireto.
Destacam-se entre os stakeholders do governo, o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o ICMBio. Essas são as organizações que têm autoridade para de-
cidir sobre a gestão da pesca em Paraty. Qualquer ação ou instituição oriunda dos níveis estadual e municipal deve estar em
consonância com políticas, leis, normas e outras instituições do nível federal. Essas três organizações possuem autoridade para
implementar ações no nível local, em parceria ou não com organizações estaduais e municipais. Portanto, a realidade institucio-
nal da pesca artesanal em Paraty está representada pela dominância da autoridade federal que repercute sobre a atividade de
pesca no nível das comunidades e no dia a dia do pescador.
O IBAMA e ICMBio trabalham em cooperação e compartilham interesses e valores de conservação ambiental. Esta é

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502
uma ligação marcada pelo diálogo, confiança entre os gestores das duas organizações e troca de informações. O IBAMA tem um
papel importante de fiscalização na região de Paraty, o que é feito em consonância com os interesses de conservação do ICMBio.
São poucas as organizações não governamentais (ONGs) que atuam em Paraty e exercem alguma influência sobre o
tema da pesca artesanal. São ONGs de pequeno porte, com pouca estrutura física e poucos recursos humanos, materiais e
financeiros. O Instituto BioAtlântico (IBIO) está envolvido com temas de conservação ambiental e desenvolveu o diagnóstico da
pesca artesanal da Baía da Ilha Grande (em parceria com a Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, ver Begossi et al.
2009). A Associação Cunhambebe exerce um importante papel de representação dos interesses de conservação e desenvolvi-
mento social e econômico das comunidades caiçaras e quilombolas da região e se destacou em 2010 com a realização de estudo
sobre a sustentabilidade da pesca realizada na comunidade de Trindade. A ONG Verde Cidadania atua no “corpo a corpo” com
as comunidades caiçaras e quilombolas de Paraty prestando assessoria jurídica a elas ao lado do Fórum das Comunidades
Tradicionais do litoral norte de São Paulo e sul do Rio de Janeiro (citado apenas como Fórum das Comunidades Tradicionais
doravante). Ela mantém um diálogo permanente com profissionais da área socioambiental e do governo, a fim de defender os
interesses das comunidades.
Na categoria de organizações comunitárias, o Fórum das Comunidades Tradicionais, criado em 2007, tem um papel im-
portante na representação dos direitos das populações tradicionais caiçaras, quilombolas e indígenas no nível local e regional.
Coordenado por lideranças comunitárias do Quilombo do Campinho, em Paraty, participam também lideranças caiçaras de
Paraty que fazem parte dos fóruns nacionais de representação das populações tradicionais do Brasil. Suas ações estão relacio-
nadas à mobilização de lideranças comunitárias, fortalecimento de organizações de base comunitária, realização de projetos
socioambientais, capacitação de jovens, reivindicação dos direitos das comunidades tradicionais, discussão da sobreposição
entre territórios tradicionais e Unidades de Conservação e assessoria às comunidades que buscam o Ministério Público para
questões que necessitam de intervenção judicial. Uma das organizações comunitárias estreitamente ligada ao Fórum das Comu-
nidades Tradicionais é a Associação de Barqueiros e Pescadores de Trindade (ABAT) que representa os interesses de pescado-
res e barqueiros condutores de turistas da comunidade de Trindade e é atualmente a principal interlocutora com os gestores do
Parque Nacional da Serra da Bocaina, para questões de interesse do Parque e da comunidade de Trindade, como no caso de uso
de áreas para turismo e pesca que estão no interior desta Unidade de Conservação.
As Universidades têm exercido um papel na interlocução entre comunidades e governo nas questões sobre a pesca em
Paraty, além da realização de pesquisas e atividades de extensão, incluindo a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
através do Núcleo SOLTEC, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual de Campinas (UNI-
CAMP), representada pelo Grupo de pesquisa Conservação e Gestão Participativa de Recursos de Uso Comum (CGCommons).

05: Sistemas de Gestão e Governança


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Pescadores artesanais e stakeholders do governo
Os pescadores artesanais de Paraty formam um grupo heterogêneo de trabalhadores que usam diferentes tipos de em-
barcações, técnicas e petrechos, mas que foram reunidos em um só grupo nesta análise porque todos têm um interesse em co-
mum que é a garantia da continuidade de sua atividade. Apesar disso, não se pode perder de vista que neste grupo há diferenças
de status econômico e social e de dependência sobre a pesca. Em Paraty, os pescadores artesanais estão representados pela
Colônia de Pescadores Z-18 de Paraty e nas comunidades, por organizações locais, como a ABAT, na comunidade de Trindade,
no extremo sul do município de Paraty. Entre as diversas demandas dos pescadores está o questionamento do direito de pesca-
rem em áreas que estão no interior de Unidades de Conservação de proteção integram, gerenciadas pelo ICMBio.
Os gestores do ICMBio, lotados nas Unidades de Conservação com áreas em Paraty, estão em diálogo permanente com
pescadores, tanto nas reuniões de seus Conselhos Gestores como fora delas, em campanhas educativas, na execução de ações
nas comunidades e em reuniões nas comunidades e no escritório do ICMBIo em Paraty.
O MPA tem autoridade sobre a pesca, porém com a ausência de técnicos em Paraty e de diretrizes de ação para a região,
este Ministério deixa um vazio institucional em sua relação com os pescadores, com exceção do período de proposição dos
Acordos de Pesca da Baía da Ilha Grande, entre os anos de 2009 e 2012 (ver Araujo 2014).
As interações do MPA com o IBAMA e ICMBio em Paraty são de pouco diálogo e com atuações divergentes em relação à
pesca, mantendo-se fechados em seus mandatos e missões institucionais. A ausência de cooperação entre MPA e MMA (IBAMA
e ICMBio) gera como resultado uma relação marcada por resistências onde cada organização defende o seu ponto de vista e
seus direitos de jurisdição sobre a gestão de determinado recurso ou área.
O chefe de uma das Unidades de Conservação federais em Paraty considera que o MPA tem um papel normativo e
fomentador de projetos na região, mas para que seja tratado como um órgão executivo deveria alocar técnicos e estrutura na
região. Segundo ele:

O MPA não é muito executivo, aqui [em Paraty e Angra dos Reis], ele está meio distante. Dos
órgãos é o mais distante, algumas pessoas tentam participar, mas no dia a dia não está muito
aqui. (...) então acho que eles precisavam estar mais presentes, até para não desalinhar.

A Fundação Instituto de Pesca e Aquicultura do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ), de jurisdição estadual, tem o papel de
assessorar e dar assistência técnica ao pescador, estando em contato regular com pescadores em suas comunidades e em outras
arenas onde o tema da pesca é tratado, como no caso do Conselho Consultivo da Estação Ecológica (ESEC) de Tamoios e Câmara
Temática de Pesca e Aquicultura da ESEC Tamoios. As ações desenvolvidas pela FIPERJ incluem o cadastro das embarcações de
pescadores artesanais de Paraty, a comunicação sobre os Acordos de Pesca da Baía da Ilha Grande e a colabo-ração na construção
de Termos de Compromisso entre a ESEC Tamoios e pescadores artesanais da comunidade de Tarituba, no extremo norte de Paraty.
Um vereador de Paraty que trabalha a favor dos interesses dos pescadores artesanais (doravante Vereador da Pesca
Artesanal) também exerce um trabalho direto com pescadores nas comunidades, em reuniões e em seu gabinete, levantando as
demandas desse grupo e encaminhando essas demandas em projetos de leis ou negociações com outros stakeholders. Ele atua
também com o apoio a iniciativas que visam a gestão da pesca artesanal, como no caso dos Acordos de Pesca da Baía da Ilha
Grande e a construção dos termos de compromisso entre a ESEC Tamoios e pescadores da comunidade de Tarituba.

O poder nas relações entre os stakeholders


As interações entre os stakeholders da pesca artesanal de Paraty estão marcadas por assimetrias de poder. O poder de
um indivíduo, grupo ou organização pode ser dimensionado por atributos ou recursos que ele detém ou acessa e que definem
muito sobre sua influência nas interações com outros atores (KRISHNARAYAN, 2005; ADGER et al. 2005; POMEROY; RIVERA-
GUIEB, 2006; JENTOFT, 2007; SCHMEER, 1999). Borrini-Feyerabend e colaboradores (2004) classificam três tipos de poder:
de posição ou autoridade, de conhecimento e de grupo. A autoridade para tomar decisões é um atributo estrutural que dá aos
indivíduos do governo federal uma posição diferenciada de poder nas arenas de pesca de Paraty.
O conhecimento sobre os recursos pesqueiros, legislação da pesca e gestão também é um recurso que confere poder a
um indivíduo, grupo ou organização (BORRINI-FEYERABEND et al. 2004; JENTOFT, 2007; ADGER et al. 2005). O acesso direto e
rápido a recursos humanos, financeiros ou informação constitui outro fator de poder, assim como a boa ou má representação dos

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506
No caso da FIPERJ, o seu poder não está pautado na autoridade, mas no conhecimento, na capacidade de fazer parcerias
e em sua representatividade nas arenas da pesca. O mesmo acontece com a UFRJ que tem como fonte de poder o conhecimento,
a habilidade para acessar recursos financeiros e humanos e a capacidade de gerenciar informações e relações para influenciar
os processos de gestão.
Dentre os stakeholders do governo, o ICMBio além de possuir a autoridade para tomar decisões sobre a pesca dentro
das Unidades de Conservação, tem agregado ao seu poder, a influência direta no nível local, resultante do trabalho regular e
permanente nas comunidades e nos Conselhos Consultivos, realizado pelos técnicos que estão lotados em Paraty.
O poder do Fórum das Comunidades Tradicionais, Associação Cunhambebe e Verde Cidadania está relacionado à sua
força de representação, conhecimento e capacidade de estabelecer parcerias, porém enfraquecido pela escassez de recursos
grupos e a capacidade de fazer parcerias ou alianças (SCHMEER, 1999; JENTOFT, 2007). O capital cultural e político constitui

1
Essas medidas são subjetivas e estão baseadas em observação direta dos stakeholders, conteúdo das entrevistas realizadas e jurisdição de cada um dos
stakeholders analisados.

05: Sistemas de Gestão e Governança


507
outro fator de poder, dando destaque a grupos que defendem direitos sociais e culturais e representantes de governo e elites
que têm ligações com grupos de forte influência (BORRINI-FEYERABEND et al., 2004). Esses fatores não são independentes. Por
exemplo, quando organizações que detêm o poder da autoridade manipulam o acesso à informação, conhecimento e recursos
financeiros, a conjunção desses fatores reforça e potencializa o poder dessas organizações.
A Tabela 2 mostra uma medida de poder dos principais stakeholders com quem os pescadores da comunidade de Trin-
dade se relacionam nas arenas de pesca. Esta medida está baseada em critérios citados na literatura, como autoridade, acesso
a recursos e conhecimento, apresentados no parágrafo anterior. O resultado dessa medida mostra a concentração de poder no
governo, baseado na autoridade para tomar decisões, capacidade de representação e acesso a recursos.
financeiros e humanos. A baixa medida de poder dos pescadores está ligada à representação nas arenas de pesca, capacidade
de acessar recursos materiais e conhecimento sobre legislação.
O presidente da Associação dos Moradores de Trindade (AMOT) argumenta que para que os pescadores ganhem mais
espaço e poder para contribuir na tomada de decisões sobre a pesca artesanal de Paraty é preciso que eles tenham sua categoria
reconhecida. Segundo ele:

O Governo tem que saber que esse cidadão depende daquilo ali, depende daquela atividade,
ele tem que ser reconhecido no caso de Trindade, a primeira coisa é sermos reconhecidos aqui,
que esse nativo daqui é caiçara. Ele usa isso aí [se referindo aos recursos pesqueiros] há séculos,
então tem que ser respeitado isso.

A Colônia de Pescadores se encontra numa posição de pouco poder, devido à escassez de recursos, mas também pela
fraca representação dos interesses dos pescadores nas arenas de pesca e pela atuação inexpressiva na construção de parcerias,
quer seja com organizações do governo ou não governamentais, na época referente a este estudo.

Considerações Finais
Os stakeholders da pesca artesanal de Paraty são filiados a organizações de diferentes jurisdições, desde organizações
federais do governo até municipais e comunitárias (nível local). O ICMBio e IBAMA dispõem de autoridade, conhecimento téc-
nico e recursos humanos, materiais e financeiros que permitem que muitas ações sejam executadas na área. Pescadores têm
a seu favor o conhecimento local sobre os recursos pesqueiros e seu ecossistema, relações estreitas com outros pescadores,
responsabilidade direta sobre as condições de conservação dos recursos pesqueiros, confiança em sua comunidade e coesão
social. Os principais recursos de que dispõem as organizações que representam a sociedade civil no nível municipal e local
são o conhecimento técnico e jurídico, a forte ligação de confiança com as comunidades, a capacidade de mobilizar pessoas
para ações e a habilidade de criar espaços de diálogo com o governo. Além desses recursos, algumas dessas organizações
juntamente com as Universidades, têm acesso a recursos para realizar pesquisas, gerar e disseminar informação, aconselhar de
forma independente, realizar cursos de capacitação, executar ações de desenvolvimento social, assessorar as comunidades em
suas demandas e facilitar processos de gestão e de conflitos.
A pesca artesanal de Paraty é regida por um sistema de gestão centralizado no governo federal. Em Paraty, o ICMBio
é o protagonista entre os stakeholders do governo, já que parte da pesca artesanal é praticada no interior de Unidades de Con-
servação que estão sob a jurisdição do ICMBio e porque é esta a organização que tem desenvolvido ações locais e incentivado
o diálogo com pescadores nos Conselhos Consultivos das Unidades de Conservação e e em outras arenas de gestão. Um dos
entraves desse sistema centralizado na esfera federal é a falta de comunicação e integração de ações entre o Ministério da Pesca
e o ICMBio, sendo que não há atualmente no nível local o desenvolvimento de processos ou ações promovidos pelo Ministério
da Pesca.
O passo a ser dado na direção de relações mais cooperativas entre os stakeholders da pesca de Paraty desafia o
governo no sentido de compartilhar autoridade, poder e responsabilidade, mas também desafia pescadores a se fortalecerem e
se empoderarem para o diálogo e negociação com o governo. Jentoft (2007) argumenta que está no poder do pescador e suas
organizações a escolha entre a posição de resistir ou colaborar nas arenas de gestão e que o poder ou a falta dele pode ser
usado para o bem ou para mal nas relações ligadas a decisões que restringem o acesso e uso de recursos naturais. Por parte dos
pescadores, aceitar determinadas restrições e buscar negociar alternativas é uma oportunidade que representa um caminho de

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aprendizado e empoderamento. Por parte do governo, há a necessidade de abertura para negociar, levando em consideração os
direitos históricos das comunidades caiçaras de pescadores.
Para destravar essa situação, o governo precisa colocar as demandas dos pescadores em sua agenda. Ambos, governo e
pescadores, necessitam conhecer, respeitar e aceitar os diferentes papéis, interesses, tipos de conhecimento, visões de mundo
e valores que moldam seus comportamentos e atitudes quando interagem nas arenas de pesca.

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510
METODOLOGÍAS PARTICIPATIVAS EN LA GESTIÓN ADAPTATIVA DE ÁREAS
NATURALES PROTEGIDAS MARINO-COSTERAS: UNA PROPUESTA DE
APLICACIÓN EN LA RESERVA NACIONAL SISTEMA DE ISLAS, ISLOTES Y
PUNTAS GUANERAS - RNSIIPG, PERÚ

Cardoso, Luciano Régis1 & Lopes Ferreira, José Cândido2

1. Voluntario de la Reserva Nacional Sistema de Islas, Islotes y Puntas Guaneras,


luciano.rcardoso@gmail.com; 2. Mestre en Antropología, Universidade Federal de Minas Gerais, osecandido02@gmail.com

Resumo
La Reserva Nacional Sistema de Islas, Islotes y Puntas Guaneras creada en Perú, está compuesta por 22 islas y 11 puntas produc-
toras de guano distribuidas a largo de la costa peruana. Su contexto con 97,5% de superficie marina, en un ecosistema dinámico
y frágil con gran importancia económica, mantiene usos ancestrales de pescadores y marisqueros que traen con ellos saberes
e derechos territoriales. Debido a la innovación de esta Área Natural Protegida, es necesario el continuo aprendizaje para el
ajuste de las estrategias a implementarse conforme la evaluación de sus resultados, en un ciclo de gestión adaptativa. Para ello,
proponemos el uso del Diagnostico Rural Participativo para la sistematización de saberes y perspectivas socios ambientales de
manera complementaria a los Estándares Abiertos para la Práctica de la Conservación, para la visión sistémica, triangulación de
informaciones y planeamiento democrático.

Palavras-clave: RNSIIPG, Áreas Naturales Protegidas Marino-Costeras, Diagnóstico Rural Participativo, Estándares Abiertos para
la Práctica de la Conservación.

Introdução
Las Áreas Naturales Protegidas – ANP son parte de una de las principales estrategias del esfuerzo por parte del Estado
para el arbitraje de los usos e intereses coexistentes en el territorio, con el reto de perpetuación de la biodiversidad y de sus cono-
cimientos e identidades locales relacionadas. Las ANP son paradójicamente la institucionalización de una nueva territorialidad en
la forma de políticas públicas con fines de ordenar el territorio en sus potencialidades naturales, económicas, sociales, culturales
y políticas, siendo por lo tanto, simultáneamente actor y espacio de negociación. Es más una fuerza que ejerce presión en el ter-
ritorio al arbitrar las relaciones convergentes o conflictivas construidas históricamente con base en diferentes visiones subjetivas
de la naturaleza y del acceso al espacio geográfico.
Se la actuación de las ANP en las sobre posiciones de usos e intereses en los territorios protegidos demandan la com-
prensión de los escenarios construidos históricamente por las relaciones socio ambientales, las creadas en los contextos marino-
costeros demandan aún más por haber que considerar los grupos formales e informales que mantienen relaciones de uso,
trabajo, institucionalidad e identidad en un ecosistema tan dinámico como el mar.
Tiendo como base este desafío, la Reserva Nacional Sistema de Islas, Islotes y Puntas Guaneras - RNSIIPG, administrada
por el Servicio Nacional de Áreas Naturales Protegidas por el Estado – SERNANP, fue creada por el decreto N° 024/2009 en 31 de
diciembre de 2009 y es integrada por 22 islas y 11 puntas históricamente productoras de abono natural conocido como Guano de
islas. Las islas y puntas que la compone están distribuidas por toda la costa peruana, desde la Región Piura hacia la Región Mo-
quegua, presenta una área de 140,833.47 ha de los cuales 97.5% corresponde a la superficie marina (PERÚ, 2009). Su creación
es una iniciativa innovadora en gestión de espacios naturales, por englobar en una misma ANP, diferentes contextos, demandas,
usos tradicionales e intereses específicos a cada isla o punta guanera de manera sistémica.
Por proponer el arbitraje y regulación de las sobre posiciones de intereses de usos en contextos complejos de distintas
demandas de ordenanza e intervención en espacios cercanos con la biodiversidad, las ANP marino-costeras deben ser políticas
públicas inherentemente intersectoriales e inclusivas. La necesidad de intersectorialidad es solamente percibida cuando se co-
noce bien la dinámica de los usos e intereses en el territorio a través de la participación social. Es en la fase de diagnóstico que
la comprensión de la realidad ocurre y las oportunidades y necesidades de nuevas alianzas surgen, demandando metodologías

05: Sistemas de Gestão e Governança


511
participativas y mediadoras donde las percepciones situacionales y prospecciones de escenarios y estrategias sean trazados
colectivamente. El diagnostico debe ser el primero esfuerzo de inclusión social, momento de conocer los actores, involucrarlos,
escucharlos, sistematizar sus aportes y proyecciones de un escenario ideal.
La metodología Diagnostico Rural Participativo - DRP, generalmente utilizada en la percepción y sistematización de infor-
maciones con base en acoplamiento de conocimientos sobre la realidad, tiene como finalidad trazar participativamente mapeos
consensuales y producción de contenido para sustentar estrategias de auto-gestión e intervención consensuada (FARIA; FER-
REIRA NETO, 2006). En el DRP, más importante que sus productos finales, es el proceso donde los actores que se relacionan
con el espacio tienen la oportunidad de recopilar informaciones y conocimientos y reflexionar sobre la realidad y el territorio.
Así, es una metodología que aplicada al ambiente marino-costero, puede sanar la necesidad de contextualización de las
iniciativas de gestión y manejo de las ANP creadas sobre usos territoriales de pescadores artesanales, industriales y deportistas,
buzos colectores de mariscos, promotores de turismo, Marina de Guerra, deportistas entre otros. Sin embargo, más que una
metodología de levantamiento y sistematización de conocimientos también debe ser utilizado, simultáneamente, para reflexionar
sobre las proyecciones y los caminos necesarios para lograrlos.
El DRP también puede ser la herramienta ideal para empezar la elaboración de procesos de gestión adaptativa de ANP,
asociando e incidiendo las informaciones, estrategias y proyecciones obtenidas con esta metodología a los Estándares Abiertos
para Practica de la Conservación - EAPC, compilados por The Conservation Measures Partnership - CMP. Los EAPC tienen
como objetivo estandarizar terminologías y conceptos con propósito de proveer los pasos y la orientación general necesaria para
la implementación exitosa de los proyectos de conservación (CMP, 2007). Es resultado del trabajo de los miembros de CNP con
las informaciones compiladas por la iniciativa para la Medición de los Impactos de la Conservación - MIC, un estudio que analizó
la experiencia en siete campos - conservación, salud pública, planificación familiar, desarrollo internacional, servicios sociales,
educación y comercio - para determinar los conceptos y enfoques comunes para el buen diseño, manejo y monitoreo de proyec-
tos (CMP, 2007). Los EAPC subsidian el software Miradi, que informatiza los pasos de formación de conceptos y planificación
del ciclo de gestión adaptativa.
Los objetos de conservación, sus amenazas directas e indirectas y oportunidades de estrategias y alianzas para la gestión
y manejo de las ANP poden ser levantadas con la metodología DRP, agregados con los conocimientos biologicos formales e
insertadas en un ciclo de gestión adaptativa con los EAPC para el diseño de Planes Maestros. La complementación de las dos
metodologías permite la triangulación de informaciones de orígenes científicas y empíricas, biológicas y sociales, cuantitativas
y cualitativas, estadísticas y subjetivas, posibilitando que las acciones de manejo e gestión derivadas de las planificaciones sean
trazadas por distintas fuentes de informaciones y de manera participativa y consecuentemente con más posibilidades de logros.
Este trabajo tiene como propósito proponer una praxis de diagnóstico participativo para la gestión adaptativa, utilizando
el DRP de manera complementaria a los EAPC en la planificación de la gestión y manejo de ANP institucionalizas en espacios
marítimos, específicamente la RNSIIPG.

Contextualización
La costa occidental de Sudamérica se encuentra en una de las áreas de mayor productividad biológica, que influencia
todos los niveles tróficos del ecosistema marino. El área marítima frente a la costa del Perú representa 1% del área oceánica del
planeta y produce más del 10% del total de capturas de peces a nivel mundial (CHÁVEZ et al., 2008; FLORES et al., 2013). Esta
alta productividad biológica se debe principalmente a los vientos dominantes hacia el ecuador y los vientos ciclónicos que dan
lugar a intensas celdas de afloramiento caracterizadas por una franja de aguas frías existentes en el Sistema de la Corriente del
Perú también conocido como “Corriente de Humboldt” (GRACO et al., 2007; FLORES et al., 2013; SERPA; QUIROZ, 2005).
El Sistema de la Corriente del Perú, por su conocida productividad y la costa peruana por su variedad en campos vitales,
son medios propicios para la abundancia y variedad de aves marinas, tanto endémicas como migratorias. Entre las especies de
aves con más abundancia e importancia comercial están las Aves Guaneras, responsables de la producción del Guano, constitui-
das principalmente por la especies: Guanay (Phalacrocorax bougainvillii), Piquero peruano (Sula variegata) y Pelícano Peruano
(Pelecanus thagus) (SERPA; QUIROZ, 2005).
El fertilizante conocido como “Guano de Islas” es producto de la acumulación de deyecciones o estiércol de las Aves
Guaneras en las islas y puntas del litoral peruano, conocidas como “islas y puntas guaneras”. La acumulación de guano en las

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islas y puntas guaneras es posible porque las precipitaciones en el litoral peruano son muy escasas, principalmente a causa del
Sistema de la Corriente del Perú. El Guano es utilizado desde civilizaciones pre-incas como abono para agricultura, pero con
declive en su uso durante la colonización española debido a priorización en la explotación de las minas de oro. Fue nuevamente
explotado en la época de la Independencia del Perú en 1844 para pagar la deuda externa con Inglaterra durante la guerra con
Chile, sin atenciones a la protección de las Aves Guaneras (SERPA; QUIROZ, 2005).
Con la creación de la Compañía Administradora del Guano, en 1909, y con las recomendaciones de diversos ornitólogos,
se impulsó una nueva administración técnico- científica, con el empleo del método de censo demográfico a partir de la década
de 60. También se tomaron otras medidas como la contratación de guardianes para evitar la extracción clandestina de guano y
las visitas no autorizadas que pudieron perturbar a las aves durante la reproducción o ahuyentarlas del nido. Los guardianes,
además debían defender a las colonias de los depredadores de huevos e pichones y vigilar para el cumplimento de la pro-
hibición del pase cercano de barcos y el vuelo de aviones a alturas menores de 300 metros en los alrededores de las islas. Desde
el año 2000 la administración del recurso es de responsabilidad del Ministerio de Agricultura, con el Programa de Desarrollo
Productivo Agrario Rural – AGRORURAL (SERPA; QUIROZ, 2005).
La explotación del guano es una actividad que se lleva a cabo en forma intermitente, extrayendo de las zonas cada 4 a 10
años contando con hasta 500 trabajadores, pero manteniéndose la protección a las aves guaneras en forma permanente durante
los periodos intermedios (PERÚ, 2009a).
El Sistema de la Corriente del Perú también propicia históricamente la alta productividad de las actividades artesanales
de pesca y colecta de mariscos, que sustentan con los ingredientes una de las gastronomías más reconocidas del mundo. La
pesca fue siempre un componente decisivo en el área y siendo auto subsistente de la economía regional, haciendo posible la or-
ganización de comunidades exclusivamente pesqueras por la riqueza y variedad del mar (FLORES-GALINDO, 1981). Arqueólo-
gos, lingüistas e historiadores denotan la importancia que tuvo la pesca para el desarrollo de la cultura en los valles de la costa,
desde el pre cerámico (FLORES-GALINDO, 1981). Esto hizo que la vida indígena marchara en estrecha asociación con el mar,
del cual no sólo se obtenía alimento, sino que podía ser empleado como medio de comunicación rompiendo con el aislamiento
en que el desierto pretendía sumir a los valles. Sin embargo, no siempre la pesca colonial fue la prolongación de una actividad
prehispánica. En algunos parajes resultó en cierta manera una elección posterior a la que recurrieron comunidades escasas
de tierras, presionadas por la expansión de las haciendas e interesadas en vivir separadas de los españoles, siendo la pesca un
mecanismo de protesta silenciosa frente al despojo agrario (FLORES-GALINDO, 1981).
Esto significa que el poblador peruano desarrolló una tecnología de extracción, conservación y utilización de recursos
pesqueros, que gradualmente se fue mezclando con el conocimiento occidental traído por los españoles. La mayor parte de
los puertos y caletas de la actualidad, son rezagos de aquellos existentes y correspondientes a culturas tales como la Mochica
(Huanchaco), Virus (caleta de Sechura), Chancay (Huacho), Chilca (Chorrillos y Pucusana) y Nazca (Pisco) (BUSE, 1981; ES-
PINO; WOSNITZA-MENDO; VELIZ, 1988). Estas raíces históricas contribuyeron para que el pescador artesanal tenga un cono-
cimiento sobre el comportamiento y disponibilidad de los recursos (ESPINO; WOSNITZA-MENDO; VELIZ, 1988), además de
ser un profundo conocedor de la dinámica marina por su cercana convivencia con la biodiversidad y los factores influentes en
tiempos estables o atípicos como los provocados por el fenómeno El Niño.
El “Censo Nacional de la Pesca Artesanal del Ámbito Marítimo” registro en su última edición en 2012 una población de
44.161 pescadores artesanales en toda costa del Perú, siendo constituido en su grande mayoría por hombres (96,9%) nacidos en
departamentos costeros (89,6%). Casi la mitad estudió hasta la secundaria (57,9%) y una parte importante hasta primaria (31,9%).
Muchos trabajan más de 10 años en esta actividad (65,1%), siendo que casi la totalidad participan de las faenas de pesca (95,2%)
y utilizan la actividad de la pesca como una fuente de ingreso principal (99,7%). Las embarcaciones son utilizadas mayormente
por los pescadores (78,5%) y del total de los pecadores, casi la mitad manifiesta tener documentos de acreditación en la activi-
dad pesquera (51,5%). Entre los colectores y pescadores que hacen buceo, pocos poseen certificación de buceo (2,2%) (PERÚ,
2012).
La entrada del fenómeno El Niño, en la costa peruana puede producir marcados cambios oceanográficos que posibilitan
las inmigraciones anómalas de las especies de peces, moluscos y crustáceos. Cuando el fenómeno no es muy intenso, la fauna
costera no sufre mayores alteraciones. Pero cuando es muy intenso, los efectos en los recursos costeros son manifiestos, tradu-
ciéndose en un cambio en la composición de especies con el incremento de algunas propias de aguas calientes y/o diminución de

05: Sistemas de Gestão e Governança


513
otras que buscan aguas más frías, cambiando la disposición en la pesca y colecta de mariscos y crustáceos en las diferentes
zonas del litoral (VALDIVIA; ARNTZ, 1985).
Sobre el complejo contexto de ancestrales y/o institucionales usos e intereses en el dinámico ecosistema marino-costero,
fue creado de manera innovadora la Reserva Nacional Sistema de Islas, Islotes y Puntas Guaneras - RNSIIPG, como demanda
identificada en 1993 durante el proceso de formulación del Plan Director del Sistema Nacional de Áreas Naturales Protegidas por
el Estado – SINANPE (PERÚ, 2009). La RNSIIPG tiene como finalidad, segundo su decreto de creación:

(…)conservar una muestra representativa de la diversidad biológica de los ecosistemas marino


costeros del mar frío de la corriente de Humboldt, asegurando la continuidad del ciclo biológico de
las especies que ella habitan, así como su aprovechamiento sostenible con la participación justa y
equitativa de los beneficios que se deriven de la utilización de los recursos (PERÚ, 2009).

La RNSIIPG protege las mayores poblaciones de las especies amenazadas o vulnerables como: Los lobos marinos finos
(Arctocephalus australis), lobos marinos chuscos (Otaria flavescens) y Pingüinos de Humboldt (Spheniscus humboldti) (PERÚ,
2009a). Estas especies son extremamente frágiles en las alteraciones ambientales como los promovidos por El fenómeno del
Niño. El aumento de la temperatura superficial del mar consecuente de este fenómeno promueve la migración de especies de
peces hacia aguas más profundas y frías, alejando fuentes energéticas vitales, ocasionando tajas representativas de mortandad
de las especies de Lobos marinos por desnutrición (SERPA; CABRERA; DEL PINO, 1985) la mortandad y deserción de nidos por
los Pingüinos de Humboldt (PAZ-SOLDÁN; JAHNCKE, 1998) y mortandad por migración de las aves guaneras (JAHNCKE, 1998).
La ejecución de las acciones para el cumplimiento de los objetivos de creación de la RNSIIPG demanda la articulación ins-
titucional, la promoción de alianzas y la distribución de responsabilidades. El propio decreto que establece esta ANP determina
la conformación del Grupo Técnico de Coordinación de la RNSIIPG con la finalidad de promover una adecuada coordinación
interinstitucional, por lo cual es conformado por las siguientes entidades: el Servicio Nacional de Áreas Naturales Protegidas por
el Estado – SERNANP, quien lo preside, el Ministerio del Ambiente - MINAM, Vice-Ministerio de Pesquería del Ministerio de la
Producción; Vice-Ministerio de Turismo del Ministerio de Comercio Exterior y Turismo; Ministerio de Agricultura a través de la Di-
rección General Forestal y de Fauna Silvestre; Programa de Desarrollo Productivo Agrario Rural – AGRORURAL; Instituto del Mar
del Perú – IMARPE y la Dirección General de Capitanías de Puertos de la Marina de Guerra del Perú – DICAPI (PERÚ, 2009).
El gran territorio con 1,700 km de franja marina, y la trama de instituciones que se relaciona con cada territorio hice la
necesidad de conformar en 2013, veinte subcomités integrados por instituciones públicas, privadas y de la sociedad civil orga-
nizada. Representantes de los subcomités constituyen la asamblea de miembros del Comité de Gestión Nacional que tiene la
elección de su comisión ejecutiva a cada dos años (PERÚ, 2014).
Más allá de la necesidad de interinstitucionalidad, el contexto en lo cual la RNSIIPG fue creada, donde los usos locales,
los intereses institucionales y los frágiles y dinámicos ecosistemas marino-costeros se interrelacionan, la gestión demanda la
comprensión de la realidad y la innovación de herramientas y ejecución de estrategias democráticas y efectivas. Exigen una
visión sistémica apropiada para las variaciones y distribuciones de la biodiversidad en el espacio, una visión holística para la
compresión de las relaciones socio ambientales, la abertura institucional para la distribución de responsabilidades y beneficios,
la innovación de mecanismos que permiten la cooperación para el logro de objetivos comunes entre la sociedad y las institucio-
nes, la adecuación de las iniciativas para los diversos contextos y la mediación de intereses comunes para el desarrollo de una
sociedad sostenible y la perpetuación de la biodiversidad.

Las Políticas Públicas y el Diagnostico Rural Participativo en contextos


marino-costeros
La participación social en el ejercicio del Estado es garantizado en la Constitución Política del Perú, así como el recono-
cimiento del carácter pluricultural de la nación y, en ese marco, el derecho a la identidad cultural, así como el derecho consue-
tudinario y la jurisdicción especial (justicia indígena y campesina), junto a otros derechos de las comunidades campesinas y
nativas.
Tanto la Ley de Áreas Naturales Protegidas (Ley Nº. 26834) cuanto su reglamento (Decreto Supremo Nº 038-2001-AG)
garantizan la participación social e institucional en la gestión de las ANP. Específicamente direccionado a poblaciones con usos

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
514
ancestrales del área, el artículo 31° de la Ley de Áreas Naturales Protegidas instituí que:

La administración del área protegida dará una atención prioritaria a asegurar los usos tradicionales
y los sistemas de vida de las comunidades nativas y campesinas ancestrales que habitan las Áreas
Naturales Protegidas y su entorno, respetando su libre determinación, en la medida que dichos
usos resulten compatibles con los fines de las mismas. El Estado promueve la participación de
dichas comunidades en el establecimiento y la consecución de los fines y objetivos de la Áreas
Naturales Protegidas (PERÚ, 1997).

La inclusión de la perspectiva socio ambiental en la gestión de ANP, más que una demanda legal es también una cuestión
ética y democrática. La presencia y materialización de la perspectiva social en la gestión de ANP demanda el fin de antiguos
paradigmas que influencian en la estructura concepto-práctica (praxis) del ordenamiento y reglamentación del territorio por
parte del Estado. El fin de tales paradigmas solo es posible a través de la valorización de las demandas y contribuciones socio
ambientales para la autogestión de los territorios, la abertura institucional de espacios para intercambio de perspectivas, saberes
y prácticas y la integración de tales contenidos en los mecanismos formales del Estado.
En este sentido, el Diagnostico Rural Participativo – DRP tiene el grande potencial de ser el puente entre los conocimien-
tos y perspectivas subjetivas y las Políticas Públicas. Es un modelo semiestructurado de investigación, fundamentado en la
construcción participativa de diagramas que se constituyen representaciones simbólicas de la realidad vivida, con conceptos
organizativos y procedimientos de trabajo relativamente formales que proponen captar la complexidad de los sistemas socio am-
bientales (FARIA; FERREIRA NETO, 2006). Aplicado a las políticas públicas, es una oportunidad de sistematización de perspec-
tivas socio ambientales subjetivas, involucración de actores sociales y abertura pública al proceso de elaboración de estrategias
democráticas de gestión del territorio.
En contextos marino-costeros es importante que el diagnostico contemple básicamente aspectos, que segundo el
PNUMA (2013) son: a) la caracterización ambiental, social, económica, institucional del área a los sitios de interés; b) el análisis
de los problemas ambientales y los impactos que este generan; c) las relaciones entre el sistema manglar con los pastos y el
arrecife por un lado, y con la cuenca por el otro; d) la situación sobre los humedales y su estacionalidad; e) el mapeo de los prin-
cipales actores y sus intereses, y de las actividades y los proyectos que se han llevado a cabo en la región; f) la identificación de
los factores que posibilitan la implementación y el desarrollo de la gestión marino-costera y g) la priorización de las áreas críticas
con una problemática ambiental significativa para focalizar acciones de gestión (PNUMA, 2013).
Para la efectividad del planeamiento de ANP marino-costeras, es necesario el anterior diagnóstico de la historicidad y
situación de especies e ambientes claves y sus usos e intereses, utilizando para eso informaciones formales aseveradas científi-
camente y/o por medios institucionales y también el rescate de conocimientos empíricos. El DRP es una herramienta que puede
contribuir para sacar a luz tales conocimientos subjetivos en relación a las dimensiones espaciales, temporales, relacionales y
materiales del territorio marítimo. Para ello, el involucramiento de actores claves es tan necesaria cuanto la inclusión de la hetero-
geneidad de la configuración social en el análisis, incluyendo consecuentemente los distintos grupos sociales y las percepciones
de género en el diagnóstico.

Complementación das metodologías DRP y EAPC para la planificación de


ANP marino-costeras
El DRP puede ser una de las metodologías que conducen a la participación social en la elaboración de políticas públicas,
sistematizando, validando y valorizando los conocimientos e impresiones de los actores que coexisten en el territorio. Especí-
ficamente en el ANP marino-costeras, los conocimientos y proyecciones locales deben ser valorizados e institucionalizados,
promoviendo alternativas para conservación de las zonas semilleras y productivas, contribuyendo para la sostenibilidad de las
actividades económicas a través del establecimiento de límites y reglamentos, generando conocimientos, difundiendo técnicas,
implementando alternativas económicas, reduciendo de los residuos entre otras estrategias.
La gestión de áreas marina-costeras donde la complejidad de territorios crea puntos de presión de carácter natural, social
e institucional, exige que los actores locales y sus conocimientos sean más que simples fuentes de información. Es necesaria la
involucración de las instituciones y comunidades directamente o potencialmente afectadas en el diseño de estrategias donde la

05: Sistemas de Gestão e Governança


515
integración de conocimientos y esfuerzos se convierta en soluciones democráticas de conservación de la biodiversidad y genera-
ción de alternativas sostenibles.
Los conocimientos empíricos locales poden subsidiar informaciones sobre: a) donde los peces e otros organismos son
encontrados en grandes cantidades (clasificación de hábitats); b) sistema tradicional de clasificación de especies (etnotaxono-
mia); c) cuando son encontrados en determinado local (época, periodo lunar, fase de la marea, hora del día); d) detalles com-
portamentales y movimientos (HVIDING, 2000; DIEGUES, 2004; GERHARDINGER et al., 2007) y e) los efectos de los cambios
climáticos como los provocados por el fenómeno El Niño. Este conocimiento se traduce, en los aspectos normalmente utilizados
en el análisis de ecología, biogeografía y etología, en informaciones sobre abundancia y comportamiento de las especies y sus
adaptaciones a los aspectos abióticos e estacionales y las relaciones de usos humanos construidos con base en esta dinámica
(GERHARDINGER et al., 2007).
Los Estándares Abiertos para la Práctica de la Conservación - EAPC, pueden ser los hilos conductores de programas de
conservación de medio y largo plazo, promoviendo la visión sistémica y relacional de los aspectos socios ambientales del ter-
ritorio y culminando en la prioridad de demandas y soluciones. Pero, se está tratando incorporar en las políticas públicas como
el caso de las ANP marino-costeros, algunas reflexiones sobre la percepción de las relaciones humanas con la biodiversidad
deben ser llevadas en consideración en su utilización para que el resultado final llegue más cerca de una propuesta democrática
y realista. Además, terminologías y conceptos deben se adaptada a los distintos lenguajes y contextos para la fluidez y claridad
en los entendimientos e informaciones durante todo el proceso de diagnóstico, planeamiento, ejecución y evaluación de/para las
estrategias de autogestión territorial.
Los EAPC empiezan su análisis para el planeamiento a través de la delimitación del alcance del proyecto con enfoque
geográfico (área) o temático general (especie o comunidades biológicas) (CMP, 2007). En la delimitación del alcance geográfico
en el planeamiento de ANP marino-costeras, el primero impulso es que este sea la propia ANP. Pero el fuerte dinamismo de la
biodiversidad marina que consecuentemente interfiere en el uso del territorio por los pescadores amplia el área de atención en
torno de la ANP, demandando consideraciones de estas dimensiones en el planeamiento y evidenciando las influencias externas
que pueden estar o no contenidas en su Zona de Amortiguamiento.
Después de la identificación del alcance del proyecto, los objetos de conservación, elementos de la biodiversidad o sus
recursos vitales, son seleccionados como puntos de enfoque (CMP, 2007). Como la propia definición de los objetos de conserva-
ción propone, ellos son indicados a partir de atributos biológicos en determinadas relaciones y conocimientos socio ambiéntales
construidos históricamente, relevantes en la formación de la identidad de las poblaciones locales y muchas veces responsables
por el mantenimiento de la comunidad biológica. Por lo tanto, estas relaciones y conocimientos deben ser considerados como
objetos de conservación juntamente con los atributos biológicos que los sustentan, debiendo ser rescatados, reforzados e insti-
tucionalizados como prioridad de las políticas públicas y no como simplemente medio para la perpetuación de la biodiversidad.
Las amenazas directas son trazadas a partir de los objetos de conservación siendo definidas como la “Acción humana
que de forma inmediata degrada uno o más objetos de conservación” (CMP, 2007). El desconocimiento cuanto a la realidad local
puede producir una errónea impresión de delincuencia a partir de algunas modalidades de usos humanos no sostenibles de los
territorios. Desconsiderar los históricos de exclusión y de presión para sobrevivencia en un contexto de dura competitividad mer-
cantil, es el camino para propuestas de gestión autoritaria y que refuerzan las prácticas históricas de exclusión. De esa manera
al considerar amenazas directas, es importante se desvestirse de discriminaciones y relativizar las orígenes de las amenazas y
sus motivaciones, cambiando el foco en las poblaciones para el histórico de aspectos políticos y económicos que amenazan no
solamente las comunidades biológicas, pero también las prácticas sociales y económicas implicadas.
Los objetivos del proyecto, considerados como “declaratorias formales detallando un impacto deseado” (CMP, 2007)
también deben ser adecuados a el contexto socioambiental. Los objetivos deben ser acordados con la comunidad para que
las responsabilidades y beneficios de la ANP sean divididos entre la sociedad e instituciones, los tornando más democráticos y
factibles.
La priorioridad de puntos de intervención y el delineamiento de estrategias a través de la jerarquización de amenazas
directas, indirectas y potencialidades (CMP, 2007) debe ser construida con la participación de la sociedad, creando pactos, alian-
zas, aproximaciones de consensos, distribución de responsabilidades y diversificación de opciones de interferencias positivas.
Este el momento crucial donde las políticas públicas se diferencian entre las que tienen discurso participativo y las que efecti-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
516
vamente incluyen la repartición de poderes y atribuciones entre la sociedad e instituciones. En la formulación de las estrategias
el aspecto político debe primar sobre el económico, el largo y medio plazo deben ser considerados sobre el corto plazo y la
racionalidad substantiva debe ser valorizada (MILANI, 2008).
Por fin, la declaratoria de metas, sus indicadores de efectividad y los métodos de evaluación (CMP, 2007) deben ser di-
reccionados a la sociedad, para la transparencia de los servicios públicos. Además de la importante rendición de cuentas a la
población, la participación social en la previsión de metas, puede diversificar los factores evaluados así como los métodos de
obtención de información.
El DRP, debe ser utilizado como técnica integrante de un proceso orientado al autoconocimiento, siendo normalmente
un esfuerzo de comprensión de la realidad como parte de la construcción de un ciclo de análisis-acción-monitoreo. En las ANP,
siendo fundamentalmente políticas públicas con efectos directos en escalas locales y regionales, el DRP es una oportunidad de
encuadramiento de las propuestas de gestión y manejo al contexto, involucrando ciudadanos y sociedad civil organizada en el
proceso decisivo y creando una red que informe, elabore, implemente y evalúe las intervenciones.
Es importante dentro de un enfoque de gestión adaptativa que el análisis de la situación marino-costera sea una acción
permanente, como medio de profundizar y documentar las respuestas y el comportamiento del contexto con relación a las estrate-
gias y acciones ejecutadas y adaptar las intervenciones siempre que sea necesario para lograr los retos acordados. Por lo tanto,
la replicación del DRP puede ocurrir como técnica para identificar los cambios consecuentes de las intervenciones propuestas y
junto con el monitoreo de la reacción de la biodiversidad, retroalimentar el ciclo de gestión adaptativa propuesto por los EAPC.

Aportes Finales
La participación, más que una obligación legal, debe ser vista como una oportunidad de entender el territorio, prever
conflictos, crear estrategias conjuntas y formar alianzas, que al final auxiliaran la gestión por medio de la división de respon-
sabilidades y beneficios oriundos de la ANP con la sociedad y otras instituciones. Para ello, el proceso de participación debe
seguir algunos principios como: a) Creación de espacios mediados de dialogo, donde a través de herramientas gráficas, los
conocimientos puedan ser reflexionados y acordados para ser utilizados como información para la gestión; b) visión integral
del territorio, embarcando su dinamismo biológico y económico-social, para después sacar los usos e influencias en la ANP; c)
valorización de las informaciones socio ambientales proporcionadas por los actores que hacen uso del territorio en mismo nivel
de las informaciones científicas; d) validación de los conocimientos por medio de la triangulación de informaciones relatadas:
e) desvestirse de discriminaciones referentes a grupos sociales que puedan impedir una comprensión de su realidad y sus mo-
tivaciones y f) garantizar la participación en todas las fases de la política pública, desde el diagnostico, planeamiento, ejecución
y monitoreo de los resultados.
El contexto de alta dinámica biológica y económica-social del ecosistema marino peruano demanda un proceso de par-
ticipación por medio de espacios mediados de diálogo y sistematización de informaciones que pueden ser ejecutados por el
DRP. Ya la necesidad de visión sistémica, de cruce de informaciones de fuentes sociales, biológicas e estadísticas, de prioridad
de acciones y el planeamiento en medio y largo plazos pueden ser ejecutados por los EAPC. Las metodologías se complementan
al materializar informaciones de usos, intereses, conflictos e oportunidades en un proceso de planeamiento adaptativo, donde las
necesidades territoriales sociales y biológicas son pensadas de manera holística y proyectadas a un futuro común.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
518
PROCESSO DE CRIAÇÃO E GESTÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE
ITAIPU – NITERÓI/RJ: O PAPEL DOS ATORES SOCIAIS

Pinto, Maycon Correia1; Moraes, Edilaine Albertino de & Irving, Marta de Azevedo

1 - Universidade Federal do Rio de Janeiro, mayconcorreia2@gmail.com

Resumo
Reservas Extrativistas Marinhas tem a finalidade de assegurar uma forma de proteção socioambiental de uma área de biodi-
versidade relevante e dos modos de vida dos povos tradicionais para garantir os seus direitos históricos de acesso ao mar e de
uso dos recursos pesqueiros. Com o intuito de refletir sobre o processo de engajamento dos pescadores artesanais na criação
e gestão desta categoria de Unidade de Conservação, o objetivo deste trabalho é interpretar o processo de criação da Reserva
Extrativista Marinha de Itaipu (RJ). Para tanto, o trabalho se desenvolveu com base em um levantamento bibliográfico e documen-
tal acerca do tema, complementado com trabalho de campo exploratório. As informações obtidas neste levantamento indicam
a necessidade de uma maior coesão entre as entidades representativas dos atores locais para a consolidação e o cumprimento
dos objetivos de criação da UC.

Palavras-chave: RNSIIPG, Reserva Extrativista Marinha, Pescadores Artesanais, Movimento Social, Gestão. Itaipu.

Introdução
A Zona Costeira do Estado do Rio de Janeiro, de elevado valor em biodiversidade envolve uma extensão de aproxima-
damente 1.160 km de linha de costa, abrangendo 33 municípios e 40% do território fluminense, no qual vivem cerca de 83% da
população fluminense (INEA, 2015). Nesta faixa, ocorrem diversas formações físicas e bióticas, nas quais se concentram os
principais vetores de pressão sobre o uso dos recursos naturais para exploração econômica, sobretudo por meio de atividades
de petróleo e gás e turismo.
O desenvolvimento dessas atividades produtivas na costa fluminense tem ocasionado grandes mudanças nos espaços
onde ainda vivem populações pesqueiras que têm na pesca artesanal a sua principal fonte de alimento e renda. Os pescadores
artesanais tem sido um dos grupos mais vulneráveis e afetados por impactos derivados de atividades econômicas em larga
escala sobre o uso e ocupação do espaço costeiro e marinho. Estes grupos sociais têm sido afetados de forma sistemática pelo
processo, em função da precarização da sua condição social, da escolha da atual política nacional pesqueira pelo crescimento
produtivo e dos inúmeros conflitos derivados do uso múltiplo da água sobreposto no mesmo território (SOARES, 2012; AZE-
VEDO; PIERRI, 2013). Isso ocorre apesar da importância da pesca artesanal ser reconhecida, mundialmente, pelas questões
de trabalho, segurança alimentar, produção em escala de pescado e pela manutenção da grande diversidade cultural que está
vinculada a essa prática social (DIEGUES, 1995).
Por contextos conflituosos como anteriormente descrito, a atual fase da luta política dos pescadores artesanais no Brasil
vem se fundamentando na reivindicação da demanda por regularização dos territórios das comunidades tradicionais pesquei-
ras por meio da campanha nacional ensejada pelo Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP. Este movimento
encontra ressonância no momento histórico, a partir da constituição de 1988, no qual se verifica um processo de afirmação de
populações entendidas como tradicionais como sujeitos de direito (AZEVEDO, 2014).
Neste contexto, uma alternativa destes grupos para a proteção e gestão do território e dos recursos pesqueiros e costei-
ros tem sido a criação de Reservas Extrativistas Marinhas (RESEX Marinha), as quais são consideradas como uma categoria de
manejo de unidades de conservação da natureza genuinamente brasileira, inspirada em uma relação dinâmica entre povos e
mares. No entanto, o processo de criação de Reservas Extrativistas Marinhas tem sido permeado por conflitos e problemas oriun-
dos de outros interesses, pela exploração desordenada dos recursos naturais, considerando que, muitas vezes, a participação de
beneficiários e usuários diretos dos recursos vivos marinhos é negligenciada no processo de tomada de decisão (MENDONÇA;
MORAES; COSTA, 2013).
Com o intuito de refletir, criticamente, sobre como são efetivados os processos de participação social de pescadores e

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519
pescadoras na criação e gestão desta categoria de UC, o objetivo deste trabalho é interpretar como foi criada a Reserva Extra-
tivista Marinha de Itaipu (no município de Niterói/RJ, pelo Decreto Estadual 44.417/2013) e o papel dos pescadores artesanais
locais na dinâmica estabelecida localmente. A escolha desta RESEX Marinha como objeto de estudo se justifica por ter sido
esta resultante de uma iniciativa que esteve sujeita a paralisações marcadas pelo discurso divergente entre as organizações de
pescadores locais acerca dos benefícios decorrentes de sua implementação. Além disso, este é um processo recente e ilustra a
dinâmica de criação da primeira RESEX Marinha sob a gestão do governo estadual do Rio de Janeiro, o que permite, em tese, a
interpretação de alguns dos desafios a serem superados pela gestão pública nessa esfera.
Nesta direção, a presente pesquisa se desenvolveu com base em análise bibliográfica e documental acerca do tema e em
dados de observação sistemática de campo, de abril a junho de 2015, com ênfase na interpretação qualitativa do fenômeno em
investigação. Sob esta abordagem, o artigo está estruturado em três seções. A primeira seção descreve as principais questões
da origem das Reservas Extrativistas no Brasil, em termos de definição jurídica do termo e da evolução do conceito de RESEX
Marinha, bem como as políticas públicas no Brasil que orientam o processo. Na segunda parte, busca-se a caracterização da
Reserva Extrativista Marinha de Itaipu, considerando o seu contexto histórico, social, político e de gestão. Por fim, discutem-se os
resultados alcançados sobre os desafios para a efetiva participação das populações tradicionais nos processos decisórios e seu
protagonismo na consolidação e gestão da RESEX Marinha de Itaipu.

Reserva Extrativista da floresta ao mar: origem, definição e evolução conceitual


A criação de Reservas Extrativistas nos espaços costeiros e marinhos se inspirou na proposta de RESEX elaborada no
âmbito do Movimento Seringueiro, na década 1980, no Estado do Acre (Amazônia brasileira), em decorrência de um panorama
histórico de degradação de um modo de vida tradicional e do desmatamento da floresta tropical.
Em sua origem, as RESEX foram pensadas como espaços territoriais que buscam conciliar interesses de conservação
dos recursos florestais e interesses sociais de melhoria da qualidade de vida das populações amazônicas. Portanto, a criação
do modelo RESEX foi motivada a partir de demandas de populações tradicionais, buscando articular questões ecológicas e de
preservação ambiental com as técnicas e saberes das populações tradicionais. Com estes pressupostos, na década 1990, o
movimento social e a Aliança dos Povos da Floresta influenciaram o processo de estabelecimento das RESEX como Unidade de
Conservação de Uso Sustentável, em contraposição ao modelo de Unidade de Conservação de Proteção Integral importado do
primeiro mundo, que busca a proteção da vida selvagem (wilderness). Sendo assim, em 1990, foram criadas quatro RESEX na
Amazônia com objetivos de conservação da biodiversidade e proteção dos modos de vida tradicionais e limites definidos, sob
regime da agenda ambiental da administração pública (MORAES, 2009).
Tal proposta de proteção da biodiversidade logo passou a se constituir em pauta do Movimento Social dos Pescadores
Artesanais do Brasil (Conselho Pastoral dos Pescadores - CPP, Igreja Católica e Movimento Nacional dos Pescadores - MONAPE)
como uma possível solução para o fim de pressões e ameaças ao modo de vida e a cultura do pescador, e ainda à própria integri-
dade da biodiversidade marinha, decorrentes dos processos crescentes de urbanização, de especulação imobiliária, de turismo
e da pesca industrial. Este contexto impulsionou a proposta de Reserva Extrativista Marinha definida como espaço costeiro
marinho criado para proteger o ecossistema e assegurar os direitos históricos dos pescadores artesanais de acesso ao mar e aos
recursos pesqueiros, em uma relação de equilíbrio entre povos e mares (CUNHA, 1992). Neste movimento, em 1992, foi criada a
primeira RESEX Marinha do Pirajubaé, que se localiza no estado de Santa Catarina.
À época, a condição para a criação de uma RESEX é que os moradores da área protegida se organizassem em grupo de forma
associativista. Assim, se não existir uma associação de moradores, o grupo deve se organizar para a sua criação e buscar o fortaleci-
mento da entidade e do trabalho colaborativo. Para assegurar este procedimento, o IBAMA indica um funcionário para assumir a gestão
da RESEX e, em conjunto com a associação, é responsável pela co-gestão da área protegida (LOBÃO; LOTO, 2012).
Mas em 2000, o processo de criação, implantação e gestão de RESEX passou a se basear em critérios e normas esta-
belecidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - SNUC, regulamentado pela Lei nº 9.985/2000 e
Decreto nº 4.340/2002. Sob esse marco legal, a categoria RESEX passou a ser definida como uma área protegida utilizada por
populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura e na
criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações,
e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais (BRASIL, 2000; 2002). Além do SNUC, o processo de criação e gestão das

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520
RESEX é orientado e fundamentado pelo Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP (Decreto 5.758/2006) e pela
Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT (Decreto 6040/2007), instrumentos legais norteadores de
políticas públicas com este objetivo.
A análise da evolução do número de RESEX a partir de 1990 aponta que até 2015, foram criadas 62 UC dessa categoria de
manejo, sendo que dentre essas, 24 são Reservas Extrativistas Marinhas (ICMBIO, 2015), conforme pode ser visualizado na Figura 1.

Figura 1. Evolução do número de RESEX em comparação ao número de RESEX


Marinha (1990-2015). Fonte: Os autores, 2015.

Os dados sistematizados na figura 1 acima permitem interpretar que a categoria de manejo RESEX vem adquirindo ex-
pressividade nacional, a partir da instituição do SNUC em 2000. No entanto, segundo Mendonça, Moraes & Costa (2013) muitos
conflitos e problemas têm sido ainda gerados durante o processo de criação dessas áreas, uma vez que, a participação de be-
neficiários e usuários diretos dos recursos vivos marinhos tem sido negligenciada no processo de tomada de decisão, em função
de outros interesses envolvidos na exploração dos recursos naturais. Essa realidade parece contradizer a Instrução Normativa
ICMBio Nº 03/2007, que determina que a solicitação de criação de uma RESEX seja encaminhada, formalmente, pela população
tradicional ou sua representação ao órgão competente e que estes atores sejam protagonistas em todo o processo.
Importante mencionar também que, atualmente, a gestão de uma RESEX se orienta, principalmente, pelo Plano de Mane-
jo, no qual se estabelece o zoneamento e as normas que devem orientar o uso da área e o manejo dos recursos naturais, além
da implantação das estruturas físicas necessárias a gestão da UC, conforme rege a Instrução Normativa ICMBio Nº 01/2007. O
Plano de Manejo deve ser aprovado pelo conselho deliberativo, que representa a instância participativa da gestão da RESEX,
composta por representantes de instituições governamentais e da sociedade civil, inclusive com maioria das populações extra-
tivistas, segundo a Instrução Normativa ICMBio Nº 02/2007 (MENDONÇA; MORAES; COSTA, 2013).
Mas o contexto atual das condições da gestão das 24 RESEX Marinhas criadas pelo governo federal constitui um real de-
safio para a gestão pública. Segundo o ICMBIO (2015), apenas 01 RESEX Marinha dispõe de Plano de Manejo - RESEX Marinha
de Caeté-Taperaçu/Pará. Por outro lado, apenas 03 RESEX Marinhas não dispõem de conselho gestor - Reserva Extrativista
Marinha Mestre Lucindo/Pará, Reserva Extrativista Marinha Mocapajuba/Pará e Reserva Extrativista Marinha Cuinarana/Pará.
Mesmo assim, a existência do conselho gestor não é garantia de participação efetiva das populações tradicionais envolvidas no
processo de gestão. Em muitos casos, a organização de associações comunitárias é incipiente e tem refletido o enfraquecimento
da atuação dessas populações nos processos de tomada de decisão na gestão da UC (MENDONÇA; MORAES; COSTA, 2013).
Além disso, a situação atual da gestão das RESEX Marinha têm sido de enfrentamento a problemas como carência de recursos
humanos e financeiros, infraestrutura física e tecnológica inadequada, sistema de fiscalização e monitoramento ineficientes para

05: Sistemas de Gestão e Governança


521
a complexidade dos problemas enfrentados e fontes de renda limitadas para as populações extrativistas (COSTA, 2013).
Sendo assim, são diversas críticas de que ICMBio continua criando RESEX Marinhas sem que haja uma efetivação do
processo de implementação e gestão da UC. Por outro lado, se o ICMBio não atender às demandas das populações tradicionais
litorâneas, provavelmente, tenderão a se agravar as ameaças delas serem expulsas do seu território de origem. Por todo o con-
texto apresentado, a luta pelo reconhecimento das dimensões social, cultural, ambiental e econômica relativas aos direitos dos
territórios extrativistas tradicionais costeiros e marinhos impulsionou, em 2009, o surgimento da Comissão Nacional de Fortaleci-
mento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos – CONFREM. Devido ao empodera-
mento dos povos extrativistas costeiros e sua articulação social por meio da CONFREM, a criação de novas RESEX Marinhas
vem sendo demandada e várias áreas estão em estudo com este objetivo, o que ilustra o potencial de ampliação dessa categoria
de manejo de UC e, a visibilidade da problemática social envolvida. Com esta tendência observada, atualmente, as RESEX
Marinha envolvem Povos e Populações Tradicionais extrativistas de 18 Estados Brasileiros, e mais de 100.000 famílias que vivem
da pesca artesanal e outras formas de extrativismo (CONFREM, 2015).

Reserva Extrativista Marinha de Itaipu: o processo de criação e gestão


A Reserva Extrativista Marinha de Itaipu está localizada nas proximidades da entrada da Baía de Guanabara, abrangendo
o espelho d’água da Lagoa de Itaipu e a área exclusivamente marinha adjacente às praias de Piratininga, Camboinhas, Itaipu e
Itacoatiara, somando cerca de 3.950 hectares, sendo que a maior parte da área corresponde à enseada de Itaipu, que ocupa uma
área de cerca de 42 km², conforme delimitação geográfica apresentada na figura 2. A RESEX Marinha de Itaipu tem interface
com os limites do Parque Estadual da Serra da Tiririca. Na área abrangente da UC, estima-se a presença de um universo de
cerca de 120 pescadores artesanais tradicionais da região de Itaipu, que exercem suas artes à beira da praia, “esperando o peixe
chegar”, cuja prática representa grande riqueza em termos de sociobiodiversidade (INEA, 2013).
O histórico de criação da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu foi iniciado em 1996 com o movimento de reivindicação dos
pescadores artesanais da região de Itaipu por uma Reserva Extrativista Federal1 como uma possível solução para os problemas do
crescimento urbano, da expansão imobiliária na Região Oceânica de Niterói, da pesca industrial e da poluição das águas marinhas.
Na época, foi elaborada uma documentação baseada em um levantamento socioeconômico da comunidade local, reali-
zado pelos filhos dos pescadores, no qual foram coletados dados de 119 pescadores de um universo estimado pela Associação
Livre de Pescadores e Amigos da Praia de Itaipu (ALPAPI) em 400 pescadores artesanais que estavam em atividade na região.
O levantamento socioeconômico mostrou que 85% dos pescadores dedicavam-se à pesca artesanal há mais de 20 anos e que
60 % residiam na região. Posteriormente, dois abaixo-assinados em apoio à criação da RESEX Marinha circularam entre os pes-
cadores e um outro entre os considerados “amigos” da região. O primeiro obteve a assinatura de 141 pescadores e o segundo,
datado de julho de 1998, foi assinado por 275 pessoas. Esses dados contribuíram para um cenário de aprovação do Projeto de
Criação da RESEX Marinha Reserva Extrativista Marinha de Pesca Artesanal em Itaipu, Itacoatiara e Piratininga, uma vez que o
órgão reconheceu a relação intrínseca do “pescador com o meio ambiente e com a ocupação do espaço – seja o mar ou a praia”
(CNPT/IBAMA, 1999, p.16 apud INEA, 2013).
A demanda pela criação da RESEX Marinha de Itaipu foi protagonizada pela ALPAPI, que tinha o apoio formalizado de
diversos atores da esfera pública federal, estadual, municipal e comunitária . Porém, o cenário favorável à criação da RESEX mu-
dou em 1999, quando a Colônia de Pescadores Z-7 vinculada à Federação Estadual dos Pescadores do Rio de Janeiro (FEPERJ)
mostrou interesses adversos ao da ALPAPI. Desde então, a Colônia de Pescadores Z-7 iniciou uma ofensiva contra a criação da
RESEX, questionando junto ao CNPT/IBAMA a validade dos abaixo-assinados que abrira o processo, alegando que o documento
continha assinaturas de não pescadores. Sendo assim, em função de o conflito de interesses entre os atores envolvidos, o CNPT
suspendeu o processo de criação da RESEX Marinha de Itaipu (INEA, 2013).

1
Por se tratar de um projeto de RESEX Federal a causa foi apoiada e orientada pelo Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais -
CNPT/IBAMA por meio do processo administrativo número 02001.002808/2004-89 aberto em 08 de fevereiro de 1999.
2
IBAMA (órgão responsável, na época, pelos processos de criação das Reservas Extrativistas Federais) UFF, Colônia de Pescadores Z-7(sediada na praia de Itaipu),
CCRON, Prefeitura municipal de Niterói, Câmara Municipal de Niterói, Agência Municipal de Desenvolvimento, Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Secretaria
Municipal de Ciência e Tecnologia, Secretaria Regional das Praias Oceânicas (INEA, 2013).
3
Colônias de Pesca foram criadas em 1912, colocando os pescadores sob a tutela do Estado, constituindo espaços comumente ocupados por atores que não tem
relação com a pesca artesanal, sendo contra o fortalecimento de uma estrutura representativa alternativa dos pescadores, como as associações de pescadores livres,
que objetivam desatrelar das amarras das Colônias e reivindicar a proteção do território costeiro.

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Figura 2. Localização da RESEX Marinha de Itaipu (RJ)
Fonte: INEA, 2013.

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523
No entanto, a ALPAPI continuou articulando apoios de instituições de diversas esferas de poder para a criação da RESEX
Marinha, conseguindo que o processo fosse oficialmente reaberto no CNPT em 19 de abril de 2004, por outra Superintendência
Regional do IBAMA, assumindo a condução das reuniões com os pescadores, sociedade civil e órgãos públicos. Um Grupo de
Trabalho foi então formado, inicialmente com 35 componentes, representantes de diversas entidades governamentais e civis.
Mas a Colônia Z-7 e entidades aliadas novamente questionaram o processo e o método “impositivo” utilizado pelo IBAMA, requi-
sitando ao Ministério Público Federal um pedido de ação civil pública contra o processo de criação da RESEX Marinha de Itaipu.
Esta medida comprometeu o andamento do processo, e também motivou o IBAMA a sugerir a ampliação da área da RESEX, o
que demandou a realização de novas reuniões com os pescadores de todas as localidades e a execução necessária de estudos
técnicos para apoiar tal proposta. E, novamente, a criação da RESEX Marinha não se concretizou (INEA, 2013).
Em 2007, o processo de criação da RESEX Marinha de Itaipu foi transferido para o ICMBio, que entendeu como pro-
blemática os limites reduzidos da UC. Sendo assim, o processo não avançou. Porém, na esfera da gestão estadual, começou a se
formar um ambiente favorável à criação da RESEX Marinha de Itaipu, no âmbito das ações do Secretário Carlos Minc, na Secre-
taria Estadual do Ambiente (SEA), em associação aos debates e as ações para a consolidação da gestão do Parque Estadual da
Serra da Tiririca (PESET), uma UC gerenciada pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA). Os pescadores reconheceram, as-
sim, uma nova oportunidade para o andamento da proposta da RESEX Marinha, principalmente, em função da negociação com
o órgão estadual para a permanência dos pescadores residentes do Morro das Andorinhas, no PESET. Além disso, parte da área
do PESET já se projetava no mar (enseada do Bananal) e, à época, se discutia a inclusão das ilhas do Pai, da Mãe e da Menina
no Parque. Por esta razão, a gestão da RESEX Marinha seria, em tese, facilitada em função do aproveitamento da infra-estrutura
já existente no PESET (INEA, 2013).
Com base nesses argumentos, o ICMBio transferiu, formalmente, a missão e a documentação referente ao processo de
criação da RESEX Marinha de Itaipu ao INEA, em 2010, para que o órgão estadual desse continuidade aos estudos anteriores. No
ano de 2012, os pescadores artesanais tradicionais de Itaipu procuraram a Secretaria Estadual do Ambiente (SEA) e reapresen-
taram a demanda para a criação da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu, que foi então acolhida pelo Secretário Carlos Minc.
Em março de 2013, um novo abaixo-assinado circulou entre os pescadores artesanais tradicionais de Itaipu e um outro entre os
amigos apoiadores da causa, reivindicando a criação da UC ao INEA.
Posteriormente, a SEA passou a dirigir o processo através da Superintendência de Biodiversidade e Florestas, que iniciou
uma série de reuniões públicas e oficinas participativas com as instituições parceiras e o grupo de pescadores demandante para
diagnosticar os conflitos e traçar estratégias para a participação social, para a difusão de informação e para a definição dos limi-
tes da área da UC. Paralelamente, a ALPAPI passou a desenvolver várias frentes de luta pela criação da RESEX Marinha, tendo
inclusive o apoio da CONFREM.
Neste período, tendo em vista o histórico de conflitos entre a direção da Colônia Z-7 e os pescadores alinhados com a
ALPAPI, houve uma tentativa de aproximação da Superintendência de Biodiversidade e Florestas com a direção da Colônia Z-7
para convidá-la, oficialmente, a participar do processo. Porém, a Colônia Z-7 continuou afirmando ser contrária à criação da
RESEX Marinha. Mesmo assim, o órgão ambiental deu continuidade ao processo, com a realização de mais duas oficinas para
discutir a situação atual da pesca artesanal na região; os benefícios e desafios de uma RESEX; o funcionamento da gestão da
RESEX; e a construção das regras de uso e convivência nos limites geográficos de uma RESEX. Estas oficinas contaram com
um público amplo não apenas dos pescadores e suas organizações representativas, mas também envolvendo diversas institui-
ções governamentais e não governamentais, professores/pesquisadores e alunos parceiros da UFF e UFRJ, o que acarretou
em desdobramentos positivos para o processo e a reafirmação da necessidade de se estar constantemente informando sobre o
funcionamento, a gestão e os impactos da RESEX na região (INEA, 2013).
Em continuidade a este movimento, em meados de 2013, ocorreu mais uma reunião de um grupo de dez pescadores na
praia de Itaipu para a elaboração de um “mapa falado” (que foi a base de dados para criar a figura 2, apresentada anteriormente)
para expressar o universo da pesca artesanal de Itaipu, além de certificar se os limites geográficos da UC aprovados durante a
oficina estavam de acordo com o real território da pesca artesanal de Itaipu (INEA, 2013).
Finalmente, a Reserva Extrativista Marinha de Itaipu foi criada pelo Decreto Estadual 44.417 de 30 de setembro de 2013,
com o objetivo de proteger os meios de vida da população de pescadores artesanais tradicionais da região de Itaipu e garantir a
exploração sustentável e a conservação dos recursos naturais renováveis em sua área de abrangência. Este Decreto prevê a pos-

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sibilidade de que pescadores artesanais de outras regiões (que não sejam de Itaipu) e pescadores amadores possam também
praticar a pesca desde que atendendo os regulamentos específicos da RESEX.
Desde então, a administração da UC é realizada pelo INEA e a gestão por um Conselho Deliberativo, cuja cerimônia de
posse ocorreu em 12 de abril de 2014. A composição do Conselho considerou o papel e a atuação das entidades na região, como
organizações governamentais e não-governamentais, associações e colônias de pesca de Niterói e adjacências, Secretaria de
Estado de Desenvolvimento Regional, Abastecimento e Pesca, e Universidade Federal Fluminense (UFF). Quanto ao instrumento
de manejo, a UC ainda não dispõe de Plano de Manejo.
Assim sendo, compreende-se que na luta política pelo território, os atores sociais desenvolvem diferentes estratégias
para atendimento aos seus interesses e demandas. No processo, a ALPAPI atendeu às normas exigidas pela Instrução Normativa
ICMBio 02/2007, a qual institui que a solicitação formal para a criação da RESEX deve ser advinda da população tradicional, e
pode vir acompanhada de manifestações de apoio de instituições governamentais, não-governamentais, da comunidade cientí-
fica e da sociedade civil organizada. Apesar disso, o posicionamento da Colônia Z-7, de modo desfavorável à criação da RESEX,
teve efeitos sobre o julgamento do órgão competente, gerando dúvida sobre a estabilidade do processo e sua consequente para-
lisação. Portanto, a experiência do processo de criação da RESEX Marinha de Itaipu sinaliza para a importância de os órgãos
competentes compreenderem as dinâmicas relacionais entre Associações de Pescadores Livres e Colônias de pescadores que
se posicionam contrariamente e, ao modo como são engendradas as ações dos órgãos pareceristas nestes processos. Além
disso, parece necessário que a equipe técnica do órgão ambiental tenha conhecimento da complexidade sócio-histórico e con-
flituoso da realidade destas entidades localmente, desde a fase inicial do processo.

Considerações finais
Os resultados alcançados pela presente pesquisa exploratória parecem assim ilustrar, com clareza, a relação antagônica
entre a ALPAPI e a Colônia de Pescadores Z-7, duas organizações sociopolíticas que influenciaram o processo de criação da
RESEX Marinha de Itaipu. E este embate está na origem de inúmeros conflitos de interesses que caracterizaram a criação da
RESEX Marinha desde a época da abertura do processo administrativo em 1999.
Pelos dados da pesquisa, parece também evidente que a posição do CNPT/IBAMA em não ter dado continuidade à tra-
mitação das ações para a criação da RESEX Marinha, mesmo tendo reconhecido a relação intrínseca dos pescadores da região
de Itaipu com o mar e a terra, parece refletir o despreparo do órgão para lidar com os dissensos e disputas entre a ALPAPI e a
Colônia de Pescadores durante o processo e com a própria dinâmica de engajamento dos pescadores artesanais. Além disso,
as paralisações do processo de criação da RESEX pelo órgão federal (ICMBio) intensificaram as pressões e ameaças sobre o
território, como exemplificado pela especulação imobiliária, o desenvolvimento de atividades turísticas e a busca pelo petróleo.
Mas o processo histórico de lutas dos pescadores por uma constituinte da pesca e por formas próprias de organização
coletiva como sindicatos (através das associações de pescadores livres) vem permitindo o atendimento das demandas dessa
classe para a criação da RESEX Marinha de Itaipu. Desta forma, o processo de criação da RESEX se construiu em proces-
sos participativos que estão no cerne da proposta para a criação desta categoria de UC, segundo as referências de políticas
públicas. Essas organizações sociopolíticas constituem o suporte principal para a organização dos pescadores e pescadoras
artesanais em associações, sendo estes mecanismos que potencializam o capital social que se materializa na vida associativa.
Pela presente pesquisa, poderia se esperar também que o Conselho Deliberativo venha a se materializar um espaço para
que os conflitos do passado sejam superados entre ALPAPI e Colônia para a governança local, indicando a necessidade de uma
maior coesão entre as entidades representativas dos atores locais para a consolidação e o cumprimento dos objetivos de criação
da UC.
A partir deste trabalho exploratório, é também importante que se considere no futuro para a pesquisa em curso, a realiza-
ção de entrevistas sistemáticas com os pescadores artesanais para interpretar o papel da RESEX Marinha de Itaipu para a gestão
da biodiversidade costeira e marinha, bem como com os interlocutores institucionais para que seja possível analisar os conflitos
e desafios para a gestão da área protegida, por meio da decodificação dos desafios das políticas públicas para a proteção da
natureza nas zonas costeira e marinha brasileiras.

05: Sistemas de Gestão e Governança


525
Referências
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA ROBUSTEZ INSTITUCIONAL DA PESCA
ARTESANAL COSTEIRA EM UMA ÁREA MARINHA
PROTEGIDA DO SUDESTE BRASILEIRO

Freitas, Rodrigo Rodrigues de1 & Seixas, Cristiana Simão2

1. Universidade do Sul de Santa Catarina, rodrigo.manejo@gmail.com; 2. Universidade Estadual de Campinas, cristiana.seixas@gmail.com

Resumo
O Brasil tem se comprometido com metas internacionais de ampliação das Áreas Marinhas Protegidas (AMPs) como estratégia
integrada de conservação da biodiversidade e recuperação dos estoques pesqueiros. Nosso objetivo foi entender que tipos de
mudanças nos arranjos institucionais de uma AMP restritiva são capazes de promover o aumento da robustez institucional na
pesca artesanal. Os princípios para o design de instituições robustas foram confrontados com a situação da pesca artesanal nas
duas comunidades mais afetadas pela AMP e com um cenário de reivindicações dos pescadores artesanais por mudanças nos
arranjos institucionais. Nenhum dos princípios se ajusta à situação com que a AMP vem lidando com a pesca; por outro lado,
as reivindicações dos pescadores artesanais estavam alinhadas com tais princípios. Discutimos os desafios e oportunidades
envolvidos em criar novos arranjos institucionais para a AMP analisada.

Palavras-chave: Instituições Robustas, Pesca Artesanal, Estação Ecológica, Baía da Ilha Grande.

Introdução
Áreas Marinhas Protegidas (AMP) podem aumentar a produtividade da pesca e, por intermédio de soluções colabora-
tivas, diminuir o custo transacional relacionado com o cumprimento das regras vigentes (POLLNAC et al; 2010). Porém, se os
componentes biológicos e culturais das AMPs não forem efetivamente integrados, ao invés de apoio comunitário, pode ocorrer
oposição social e conflitos (DIEGUES, 2008). Apesar do amplo interesse nos impactos sociais das AMPs, existem poucos estu-
dos sobre o tema (ver FOX et al., 2012). No Brasil, existem muitos conflitos documentados entre áreas protegidas e comunidades
tradicionais (CASTRO et al., 2006; FERREIRA, 2004), incluindo AMPs e pescadores artesanais (DIEGUES, 2008).
Durante a 10ª Conferência das Partes (Nagoya, Japão) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), o Brasil se
comprometeu internacionalmente com a ampliação dos atuais 1,5%1 de cobertura das zonas costeiras e marinhas por AMPs para
10% (MMA, 2010) até 2020 (meta No 11). Caso esta ampliação ocorra sem alterar o status quo das políticas de conservação da
biodiversidade, marcadas pela fragmentação e setorialismo, os conflitos em curso tendem a ser potencializados.
Baseado no conceito de instituições de North (1990), Ostrom (1990) realizou uma análise empírica de regras de reciprocidade
que favorecem a ação coletiva. Os princípios para instituições robustas (design principles) explicam sob quais condições de confiança
e reciprocidade a ação coletiva pode ser possível, evitando, dessa forma, a deterioração do recurso de uso comum (OSTROM, 2005).
Este artigo foi orientado pela seguinte pergunta: Quais são os desafios e as oportunidades para uma AMP restritiva
promover o aumento da robustez institucional na pesca artesanal costeira? A pesquisa ocorreu nas comunidades de Tarituba e
Mambucaba, nos municípios de Paraty e Angra dos Reis, respectivamente, litoral sul do Estado do Rio de Janeiro. Nestas comu-
nidades ocorrem os principais conflitos entre a pesca artesanal e a Estação Ecológica (ESEC) Tamoios, uma Unidade de Con-
servação (UC) de proteção integral (SNUC, 2000). A pesquisa foi realizada em quatro etapas, que incluíram: (i) análise de fontes
documentais, diplomas legais e políticas públicas pesqueiras e ambientais; (ii) trabalho de campo: observação direta em arenas
de tomada de decisão, entrevistas semiestruturadas (39) e abertas (110) durante 154 dias entre fevereiro de 2011 a setembro de
2013 e (iii) organização e análise dos dados.
Os princípios para instituições robustas, proposto por Ostrom (1990) e revisados por Cox, Arnold & Tomás (2010), foram
confrontados com o arranjo institucional para gestão dos recursos pesqueiros nas comunidades e com o cenário reivindicado
pelos pescadores. A partir desta análise, foram sugeridos desafios e oportunidades para o aumento da robustez institucional na
pesca artesanal costeira.

1
Informações do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, atualizado em 12/02/2012 e consultado em 02/06/2013.

05: Sistemas de Gestão e Governança


527
Área de estudo
Com uma área de 65.258 ha e cerca de 350 km de perímetro na linha d’água, a Baía da Ilha Grande, está localizada no
sul do Estado do Rio de Janeiro (22°50´- 23°20´S, 44°00´ - 44°45´W), litoral costeiro dos municípios de Angra dos Reis e Paraty
(Figura 1). A Baía da Ilha Grande é considerada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), como uma área de importância bio-
lógica e com prioridade de ação de conservação extremamente alta (MMA, 2002; Portaria MMA no 09 de 2007). Devido a essas
características peculiares, a Baía da Ilha Grande abriga atualmente o maior número de áreas protegidas do Estado do Rio de
Janeiro (CREED; PIRES; FIGUEIREDO, 2007) e é uma das suas principais áreas pesqueiras (ANDREATA et al., 2002).

Figura 1. As comunidades de Tarituba (Paraty) e Mambucaba (Angra dos Reis) em relação à Estação Ecológica (ESEC)
de Tamoios (áreas em verde escuro) e à Baía da Ilha Grande.

A ESEC Tamoios ocupa 13% do total da Baía da Ilha Grande, sendo formada por doze blocos de 29 ilhas, rochedos e seu
entorno de 1 km (IBAMA, 2000). Esta AMP foi criada em 1990 (decreto n° 98.864) com a missão de monitorar a qualidade do meio
biofísico da Baía da Ilha Grande devido à existência de usinas nucleares na região, e é atualmente gerida pelo Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) do MMA. As ações da ESEC Tamoios são comunicadas para a sociedade
civil no âmbito do Conselho Consultivo, que foi formalizado em 2006. As Estações Ecológicas são de domínio público; nelas é
proibida a visitação (exceto com objetivo educacional) e a pesquisa científica depende de autorização.
A comunidade de Tarituba possui 430 moradores2 (cerca de 1,5% da população de Paraty; IBGE, 2012) e está situada no
extremo nordeste do município de Paraty. Mambucaba corresponde a uma área localizada no sudoeste do município de Angra
dos Reis que engloba o Perequê (36.000 moradores) e as comunidades da Vila Histórica ou Mambucabinha (900 moradores) e
Praia Vermelha (350 moradores). Mambucaba e Tarituba estão localizadas no entorno da ESEC Tamoios, estando distantes 5 km
e 14 km da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto (CNAAA), respectivamente.
Os pescadores artesanais profissionais de Tarituba (cerca de 40) são filiados à Colônia de Pescadores de Paraty e uti-
lizam, principalmente, a rede de espera para pesca do camarão e de peixes diversos e o arrasto motorizado de portas para
camarão (BEGOSSI et al., 2012). Apesar da baixa expressividade da pesca profissional no contingente populacional de Mambu-
caba, essa atividade representa uma importante fonte de subsistência e movimenta a economia associada com a pesca amadora
ou esportiva, incluindo os equipamentos e utensílios envolvidos. Parte dos pescadores de Mambucaba está vinculada à Associa-
ção de Pescadores Profissionais e Amadores do 4ª Distrito de Angra dos Reis (APEPAD) e utilizam principalmente linha de fundo
e rede de espera, em geral de fundo, cujo principal alvo é a corvina (BEGOSSI et al., 2009).
A partir de 2006, a ESEC Tamoios começou a ser implementada, gerando conflitos com o setor pesqueiro, mas também
reivindicações para mudanças no seu arranjo institucional. Os problemas que mais afetavam a pesca artesanal de Tarituba e
Mambucaba eram: (i) restrição de acesso aos 1.000 m do entorno das ilhas; (ii) abordagem intimidadora dos fiscais; (iii) dificul-
dade para retirar a carteira de pesca e (iv) operação de grandes embarcações pesqueiras dentro da Baía da Ilha Grande.

2
Incluindo o Sítio Toc-Toc no Costão Norte e a Vila São Vicente, localizada no lado oposto da BR 101.

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Análise dos princípios para instituições robustas
Nós utilizamos uma análise comparativa entre os princípios para instituições robustas e o arranjo institucional da ESEC
Tamoios para lidar com a pesca artesanal nas comunidades após o início da sua implementação ocorrida em 2006. Essa situação
foi contrastada com as reivindicações dos pescadores artesanais por mudanças no sistema de gestão da pesca na Baía da Ilha
Grande e na ESEC de Tamoios (Tabela 1). A seguir analisaremos cada um dos princípios:

Limites dos usuários (1A): Segundo Johannes (2002), há pouco incentivo para as comunidades de pescadores conserva-
rem os recursos caso não haja um reconhecimento legal dos direitos de prevenir a extração por usuários externos. Em Paraty, há
uma migração sazonal do pescador artesanal para atividades turísticas durante o verão, períodos de interrupção da pesca (de-
feso do camarão) e presença de pescadores amadores nas safras de certas espécies, como camarão, tainha e pescada branca.
Uma das principais reivindicações dos pescadores artesanais se refere ao banimento de grandes embarcações pesqueiras
dentro da Baía da Ilha Grande. A legislação brasileira considera os recursos pesqueiros como de uso comum (res communis)
sob tutela do Estado, sendo sua exploração sujeita a emissão de licenças. A distinção entre usuário e não usuário de recursos
pesqueiros é realizado por documentos de pesca, tais como carteira de pesca e licença para artes de pesca e espécie-alvo. As-
sim, o governo limita a entrada de novos usuários pela emissão de licenças de pesca de acordo com o motor e as dimensões do
barco. No início de 2013, as licenças para a pesca artesanal, que eram generalistas, passaram a especificar as artes de pesca
e espécie-alvo. Esta medida passou a impedir a diversificação de artes de pesca artesanais, tradicionalmente realizada para
adaptar a técnica às características do recurso pesqueiro disponível. Não é funcional transpor para a pesca artesanal um modelo
de licenciamento que funciona para a pesca industrial, pois há diversas características que as distinguem (BERKES et al., 2001;

05: Sistemas de Gestão e Governança


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MCCONNEY; CHARLES, 2010). Essa diversificação de recursos e oportunidades é talvez a melhor alternativa aos riscos do
colapso de uma pescaria (HILBORN et al., 2001).

Limites dos recursos (1B): A Baía da Ilha Grande é um ecossistema marinho autocontido bem definido, onde os usuários
exploram recursos sésseis, estacionários e migratórios. As negociações da ESEC Tamoios com o setor pesqueiro é parte de
dinâmicas mais complexas e de um território mais amplo, uma vez que toda a Baía da Ilha Grande está incluída na sua zona de
amortecimento. A falta de delimitação ou sinalização da ESEC Tamoios contribui para o desconhecimento das regras de apro-
priação e pode gerar abordagens equivocadas da fiscalização decorrente da passagem das embarcações pelo seu território.

Congruência com as condições locais (2A): O arrasto motorizado com o sistema de portas é praticado para captura do
camarão-branco e do camarão sete-barbas, que ocorrem em locais da Baía da Ilha Grande onde o substrato é formado por lama.
Por envolver a maioria dos pescadores de Paraty, a proibição do arrasto de portas de todos os tamanhos dentro da Baía da Ilha
Grande é um assunto delicado. Em Tarituba, a maioria dos pescadores artesanais concorda com a restrição da pesca de arrasto
de portas e picaré3 nos criadores naturais de pescado, que são os manguezais localizados ao sul de Tarituba (Iriri, Humaitá,
Taquari e Barra Grande). Os pescadores entendem que essa medida de proteção deve estar associada com o defeso do camarão
no período que a fêmea está desovando e se desloca para os criadores naturais. Os pescadores de Mambucaba, mais interessa-
dos na conservação dos peixes recifais, reivindicam o banimento do arrasto de portas entre as ilhas de Sandri e Algodão e o con-
tinente. Essas restrições legais já existem para embarcações maiores de 10 Tonelagens de Arqueação Bruta (Portaria IBAMA no
43, de 1994), sendo esta uma reivindicação pelo cumprimento da regra. Os efeitos esperados da proibição efetiva de embarca-
ções de arrasto de portas nos criadores é o aumento na produção de pescado pela exportação de larvas e na captura do camarão
com rede de espera (camaroeira). Como a maioria dos pescadores captura camarão com rede de espera, a proibição do arrasto
de portas nos criadores naturais atenderia a critérios mais distributivos e, com a captura de indivíduos maiores, diminuiriam os
custos envolvidos com óleo, gelo e desgaste das embarcações. Em relação a este princípio, os pescadores também consideram
que os programas de maricultura desenvolvidos na região, como o cultivo de algas exóticas (Kappaphycus alvarezii), podem
diminuir a qualidade ambiental onde vive o recurso e a área disponível para o arrasto de portas (ver AZEVEDO, 2013).

Apropriação e provisão (2B): Em virtude da escassez de recurso, da proibição da pesca nos principais pesqueiros e das
penalidades atribuídas aos infratores, os custos envolvidos na pescaria passaram a exceder seus benefícios, gerando abandono
da pesca profissional, realizada por pescadores artesanais, principalmente em Mambucaba. A disposição para abandonar a
pesca artesanal é afetada por fatores que operam em diferentes escalas (Daw et al. 2012). Fatores como mudanças ambientais
(assoreamento e poluição do Rio Mambucaba) e socioeconômicas (elevado valor dos insumos e competição com pescado de
cativeiro) também podem estar associados ao abandono da pesca. Além de regulações na atividade pesqueira, os pescadores
artesanais reivindicam ações sistêmicas do Estado, tais como: (i) medidas corretivas no ambiente biofísico (e.g. dragagem e a
contenção da barra do Rio Mambucaba); (ii) fortalecimento da cadeia produtiva de pescados (e.g. menor preço do gelo e incen-
tivo ao consumo do pescado de origem local); (iii) controle de espécies exóticas (coral sol e algas cultivadas) e (iv) alternativas
econômicas à proibição da pesca (e.g. maricultura e recifes artificiais). Em Mambucaba, os pescadores reivindicam que recifes
artificiais sejam instalados entre o continente e as ilhas do Sandri e Algodão para restringir a operação de arrastos de portas e fa-
vorecer a aglomeração de peixes recifais. Nas comunidades analisadas há demandas específicas para regulação do extrativismo
de um caranguejo (goiá) e de uma espécie de marisco (sururu) que são muito apreciados na culinária local.

Arranjos de escolha coletiva (3): Apesar das normas informais de reciprocidade, como a troca de informação entre os
pescadores, e da existência de associações e entidades representativas, os arranjos existentes não permitem que as principais
reivindicações do setor em relação à diminuição do esforço de pesca próximo à costa sejam atendidas. As relações entre os
pescadores e sua ação coletiva foi historicamente afetada pelas diferenças entre os pescadores no grau de investimento em
barcos e artes de pesca (TRIMBLE, 2013), pela crise na pesca, crescimento do turismo e adoção das artes de pesca modernas.

3
Rede de forma retangular que é arrastada paralelamente próximo à praia por dois ou quatro homens que seguram um calão de madeira preso às suas extremidades.

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Na ESEC Tamoios, a participação dos usuários na modificação das regras operacionais4 é limitada ao nível de consulta. As lide-
ranças comunitárias questionam o caráter consultivo dos Conselhos de UC da Baía da Ilha Grande, como um novo arranjo para
legitimar a continuidade das relações de poder hegemônicas nos municípios e agências governamentais estaduais e federais.
A reivindicação por conselhos deliberativos é recorrente em Áreas de Proteção Ambiental (APA) Marinhas, conforme detalhado
por Macedo et al. (2013) para o caso da APA da Baleia Franca.

Monitoramento dos usuários (4A): Os pescadores artesanais consideram que a fraca fiscalização existente durante o
período noturno, paralização da pesca (defeso) e feriados faz com que os benefícios percebidos em infringir as regras superem
seus custos. Não há mecanismos de prestação de contas por parte do Estado ou participação dos pescadores na fiscalização ao
cumprimento das regras de uso e acesso aos recursos pesqueiros.

Monitoramento do recurso (4B): O monitoramento ambiental vem sendo gradativamente realizado pela ESEC Tamoios
por meio do estímulo a pesquisas, gestão de informações ambientais e debate público. As prefeituras e o governo do estado
do Rio de Janeiro vêm investindo na estatística pesqueira, por meio do monitoramento dos desembarques. Há, no entanto, um
crescente espaço para pesquisas na Baía da Ilha Grande sobre monitoramento sistemático de capturas apoiado na perspectiva
do manejo experimental de Walters & Hilborn (1976). Apesar de a estatística pesqueira dar o tom de políticas como o defeso e o
permissionamento de frota, ela não atinge a maior parte da pesca artesanal, carece de padronização metodológica e não é cons-
tante, representando um instrumento de barganha do setor pesqueiro por licenças de pesca. Além disso, muitas embarcações
pesqueiras que operam dentro, ou próximo da Baía da Ilha Grande, realizam seus desembarques em outros Estados e não são
contabilizados na estatística local.

Sanções graduadas (5): A aplicação de sanções graduadas nas penalidades, aumentando a punição no caso de rein-
cidência, está prevista na Lei de Crimes Ambientais. No entanto, os pescadores artesanais que foram fiscalizados violando as
regras de apropriação consideram que esse mecanismo não foi devidamente aplicado. Os pescadores receberam penalidades
como: responder processos na justiça por crime ambiental, multa e apreensão do pescado, embarcação e apetrechos. Além de
reivindicar sanções graduadas nas penalidades de facto, os pescadores artesanais consideram que a abordagem dos fiscais
deveria ser respeitosa e educativa. Uma vez que as regras formais de pesca são pouco conhecidas entre os usuários (e.g. ta-
manho de captura das espécies), os pescadores consideram que os fiscais deveriam atuar também na sua informação. Outra
reivindicação entre os pescadores artesanais se refere à possibilidade de reaver os equipamentos apreendidos.

Mecanismos de resolução de conflitos (6): No Brasil, a ausência de mecanismos de baixo custo para a resolução de
conflitos cria um abismo entre as agências de governo e os pescadores (SILVA et al; 2013). Na Baía da Ilha Grande, quando
autuados, os pescadores recorrem aos vereadores, às associações e colônias de pescadores, ou diretamente à Justiça Federal
por meio de advogados. A Câmara Temática de Aquicultura e Pesca do Conselho Consultivo da ESEC Tamoios conta com o
suporte da Coordenação de Gestão de Conflitos Territoriais do ICMBio. Esta tem sido a principal arena para gestão de conflitos
com os pescadores de Tarituba e Mambucaba. Não existe, porém, conforme reivindicam os pescadores, uma arena pública no
nível da Baía da Ilha Grande que seja reconhecida pelos atores do setor pesqueiro como instância responsável pela mediação
de conflitos entre usuários.

Reconhecimento mínimo dos direitos à organização (7): Apesar de a organização formal envolver a obediência a uma
série de instrumentos legais descriminados pelo Código Civil, atualmente o Estado brasileiro permite o livre associativismo.

Empreendimentos imbricados (8): O uso e acesso aos recursos pesqueiros são regulados pelo governo federal, cabendo
aos estados e municípios legislar em caráter complementar. Essa prerrogativa não restringe os entes federativos em criar le-
gislações próprias. Na Baía da Ilha Grande, há uma dominância do nível federal na gestão dos recursos pesqueiros, realizada
através do ICMBio, IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e MPA (ARAÚJO, 2014).
4
As regras operacionais definem como os recursos podem ser usados (Ostrom, 1990).

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A criação de AMP estaduais e municipais pode ser entendida como uma estratégia para balancear a relação de forças
visando construir uma governança em múltiplas camadas. Os pescadores artesanais reivindicam por uma unidade de planeja-
mento e ação no nível da Baía da Ilha Grande.

Desafios e oportunidades para a mudança institucional da pesca artesanal


Nenhum dos princípios para instituições robustas analisados corresponde à situação com que a ESEC Tamoios vem
lidando com a pesca artesanal desde que começou a ser implementada. Por outro lado, as reivindicações dos pescadores de
Tarituba e Mambucaba por mudanças institucionais são muito similares aos princípios descritos por Ostrom (1990) e revisados
por Cox et al. (2010) para gestão de recursos de uso comum. Essas descobertas corroboram nossa hipótese de que as políticas
de conservação da biodiversidade, pesqueiras e de desenvolvimento vêm contribuindo para reduzir a capacidade dos atores
locais de responder às mudanças no sistema socioecológico. Além disso, emerge dessas análises a relevância de incorporar
as sugestões (sensu LOPES et al., 2013) ou reivindicações dos pescadores sobre gestão pesqueira nas políticas produtivas e
ambientais.
Os conflitos gerados pela fiscalização das regras da ESEC Tamoios suscitaram oportunidades para mudanças no seu
arranjo institucional. Em estudo realizado com 127 reservas marinhas, Pollnac et al. (2010) mostraram que, em vez do simples
aumento na fiscalização, elevados níveis de obediência às regras das reservas estavam relacionados com complexas interações
sociais.
O aumento nos níveis de obediência às instituições de recursos comuns está relacionado a questões como clareza na
definição das fronteiras, percepção da legitimidade do processo e monitoramento efetivo do recurso (OSTROM, 1990; PO-
TEETE; JANSSEN; OSTROM, 2010). Estas questões estão no cerne das reivindicações dos pescadores artesanais por mudan-
ças na ESEC Tamoios e foram associadas com a discussão dos Princípios 1A e B, 2A e B e 4A e B.
A partir da discussão realizada sobre os princípios, nossa análise se concentra sobre os desafios e as oportunidades para
a ESEC Tamoios promover novos arranjos voltados ao aumento da robustez institucional na pesca artesanal costeira. Esta análise
está inserida no quadro das instituições de pesca da Baía da Ilha Grande. Os desafios para a pesca artesanal estão relacionados
com a armadilha socioecológica denominada por Cinner (2011) de “instituições fracas ou inexistentes”.

Instituições fracas ou inexistentes: O quadro das políticas para a pesca artesanal na Baía da Ilha Grande pode ser
comparado a uma das tragédias do domínio público descritas por Young (2011) como artrite institucional. Ela se resume ao fato
do Estado não ter habilidade para responder aos problemas emergentes de forma ágil para se engajar no manejo adaptativo
e encaminhar questões de longo prazo em um tempo adequado. O atual panorama das instituições de gestão dos recursos
pesqueiros gera as seguintes consequências para a pesca artesanal: (i) baixo nível de comunicação entre os níveis de gover-
nança (Referente ao Princípio 8); (ii) iniciativas associadas mais com os indivíduos do que com as organizações (Referente ao
Princípio 3); (iii) baixa funcionalidade das regras (Referente ao Princípio 2A) e (iv) informalidade dos pescadores artesanais e
inoperância de suas organizações de representação (Referente aos Princípios 6 e 7).
A gestão pesqueira necessita, inter alia, de normas que sejam também fundamentadas na experiência dos usuários (BER-
KES et al., 2001). A legislação pesqueira está desajustada à realidade da Baía da Ilha Grande, havendo ausência de regulamenta-
ção sobre certos temas e normas sobrepostas ou ultrapassadas. A complexidade da legislação pesqueira e ambiental tornam as
regras pouco conhecidas entre os usuários e, portanto, pouco funcionais. Por outro lado, faltam regras formais regulamentando
as artes de pesca artesanais de uso significativo na Baía da Ilha Grande, como por exemplo, o cerco de robalo e o cerco flutuante.
Sem as artes regulamentadas, os pescadores não podem retirar os documentos de pesca, ficando vulneráveis à fiscalização e
impossibilitados de acessar benefícios trabalhistas.
A necessidade de revisão e simplificação das políticas também está associada com o fortalecimento das organizações
dos pescadores artesanais. Com a lei nº 11.699 de 2008 e o Novo Código Civil, as colônias de pescadores se tornaram sindica-
tos, deixando de ser entidades de classe e sendo facultada a participação do trabalhador. Visando incentivar o cumprimento do
seguro-defeso do camarão, a colônia ampliou o número de registrados e a Prefeitura de Paraty, desde 2012, passou a comple-
mentar o valor pago pelo governo federal.
Segundo Trimble, Araújo & Seixas (2014), os pescadores artesanais de Paraty descordam do período de defeso do ca-

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marão (Referente ao Princípio 2A), principal política de gestão pesqueira em volume de recursos financeiros. A manutenção
da época do defeso do camarão na Baía de Paraty é um tema polêmico e o setor pesqueiro já experimentou a sua mudança5.
Segundo Martins, Pinheiro e Leite-Júnior (2013, p. 212), a atividade reprodutiva contínua do camarão sete-barbas indica que os
defesos baseados em períodos de desova podem representar “uma estratégia de gestão pouco eficiente” por não atingir o obje-
tivo de proteger o ciclo de vida adequadamente. Esses autores destacam que os períodos reprodutivos do camarão sete-barbas
são variados “(...) em função das condições ambientais encontradas em cada local, as quais podem ser ideais para a desova
em diferentes épocas do ano” (MARTINS; PINHEIRO; LEITE-JÚNIOR, 2013, p. 212).
Na Oceania, onde muitos pescadores artesanais passaram a assumir a responsabilidade pelo manejo dos recursos
marinhos (RUDDLE, 2008), o principal desafio foi promover a flexibilidade dos sistemas de manejo tradicionais em face às rápi-
das mudanças e ao risco de homogeneização e congelamento do sistema tradicional pelas leis ocidentais (JOHANNES, 2002). A
definição do período do defeso na Baía da Ilha Grande, exemplifica a tensão existente entre as respostas adaptativas às mudan-
ças ambientais presentes no manejo de base comunitária e a inflexibilidade da legislação.

Oportunidades de novos arranjos institucionais para a pesca artesanal: Nos últimos anos, o governo vem criando
políticas voltadas para o pescador artesanal e que possibilitam a sua participação em um sistema de gestão historicamente mar-
cado pela abordagem “top-down”. Até 2003, a pesca artesanal foi provisoriamente prevista em lei, uma vez que, antes disso, as
políticas pesqueiras estavam voltadas ao desenvolvimento industrial da atividade (OLIVEIRA; SILVA, 2012).
Em 2006 foi aprovado o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (Decreto nº 5.758), que estabelece que as
AMPs devem ser criadas e geridas visando não só a conservação da biodiversidade, mas também a recuperação dos estoques
pesqueiros (Referente ao Princípio 4B). O Decreto no 6.040/07 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais e, baseado nesta política, o município de Paraty promulgou uma legislação específica para
suas comunidades tradicionais (Lei municipal no 1.835 de 2012), entre as quais se encontram os pescadores artesanais. Estas
políticas concedem direitos de uso e acesso aos recursos naturais às populações tradicionais, estando, desta forma, associadas
com o Princípio 1A (limite dos usuários).
Com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e Pesca (Lei 11.959 de 2009) os direitos trabalhis-
tas, previdenciários e de acesso ao crédito foram unificados e estendidos aos trabalhadores da pesca que não atuam na captura,
como é o caso de muitas mulheres que exercem atividades de beneficiamento do pescado (AZEVEDO, 2012). Ainda em 2009, foi
regulamentado o sistema de gestão compartilhada dos recursos pesqueiros (Portaria Interministerial MPA e MMA nº 2), ambas
medidas associadas aos Princípios 2B, 3 e 8.
Araújo et al. (2014) e Trimble, Araújo & Seixas (2014) relatam o desenvolvimento de um instrumento conciliatório6 entre
a ESEC Tamoios e os pescadores de Tarituba. Com a aplicação deste instrumento conciliatório, os pescadores estariam no-
vamente autorizados a exercer sua atividade profissional em sua comunidade e seriam estabelecidos limites entre os usuários
(Referente ao Principio 1A). Além disso, a implementação deste instrumento está associada com a adoção de abordagens par-
ticipativas, que envolvam os usuários no monitoramento dos recursos (Referente ao Principio 4B). Os envolvidos neste processo
esperam que os resultados do monitoramento gerem aprendizados para serem revertidos em mudanças nos arranjos institucio-
nais da pesca na Baía da Ilha Grande.
Araújo (2014) e Joventino, Johnsson & Lianza (2013) analisam a iniciativa de construção de acordos de pesca, através do
Projeto GPesca7. O GPesca funcionou entre 2009 e 2012 como uma arena pública de discussão, onde foram sistematizadas as
principais reivindicações dos pescadores artesanais. Os instrumentos conciliatórios e o GPesca representam iniciativas relacio-
nadas aos Princípios 6 e 8.

Considerações finais
Os impactos sociais da ESEC Tamoios na pesca artesanal das comunidades de Tarituba e Mambucaba, evidenciam a
necessidade de novos arranjos institucionais. Indicamos que as instituições de gestão da pesca estão desajustadas à realidade

5
O período de defeso do camarão é definido pela Instrução Normativa IBAMA nº 189 de 2008 e ocorre de 15 de novembro a 15 de janeiro e de 1º de abril a 31 de maio.
Ainda não foi determinado se o instrumento conciliatório será um “Termo de Compromisso” ou “Termo de Ajustamento de Conduta”.
Desenvolvimento e Gerenciamento de Sistemas de Gestão da Aquicultura e Pesca na Baía de Ilha Grande.

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da Baía da Ilha Grande e que as organizações dos pescadores precisam ser fortalecidas. O período de defeso do camarão foi
utilizado para exemplificar os desafios para criar instituições flexíveis, capazes de fornecer respostas adaptativas congruentes
com as condições locais. O conjunto de políticas apresentadas, o instrumento conciliatório e os esforços do GPesca representam
oportunidades para o aumento da robustez institucional da pesca. Ao proibir a pesca no seu interior, a ESEC Tamoios passou a
considerar os pescadores artesanais como uma ameaça a sua efetividade. No entanto, atuando na ilegalidade, não há incentivos
para que os pescadores artesanais compartilhem objetivos comuns com a AMP, como a adoção de estratégias integradas de
conservação da biodiversidade e recuperação dos estoques pesqueiros.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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PROJETOS DO CICLO DE CAPACITAÇÃO EM GESTÃO PARTICIPATIVA DO ICMBIO:
OPORTUNIDADES DE INCLUSÃO SOCIAL NA GESTÃO DA BIODIVERSIDADE?

Talbot, Virginia1 & Luz, Leda2

1. Analista Ambiental do ICMBio, virginia.icmbio@gmail.com; 2. Árvore Consultoria em Gestão Socioambiental, luz.leda@gmail.com

Resumo
A maioria das unidades de conservação brasileiras possui um histórico de pouca integração ao seu contexto territorial, o que gera
uma série de desafios para sua gestão. Um dos caminhos para aprimorar a gestão é gerir em diálogo estreito com a sociedade,
envolvendo-a nos processos de decisão. Entretanto, elaborar normas de forma participativa, que resultam de um pacto entre os
diferentes atores sociais, não é uma tarefa simples. O ICMBio tem buscado avançar na gestão da biodiversidade investindo, den-
tre outros, na preparação de seus gestores por meio do Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa, que utiliza projetos de in-
tervenção local como recurso pedagógico. O texto apresenta uma análise de diferentes aspectos dos projetos no período de 2010
a 2014, em busca de pistas sobre a contribuição dos mesmos para a inclusão social e a gestão participativa da biodiversidade.

Palavras-chave: Áreas protegidas, Conservação, Participação, Unidades de Conservação.

Introdução
A destinação de áreas para a conservação é uma forma de normatizar espaços construídos socialmente e envolvem com-
plexas interações. As unidades de conservação (UC) estão, independentemente de sua categoria de gestão, amalgamadas a um
ambiente social, nas suas esferas política, territorial, administrativa e simbólica (PIMENTEL; MAGRO, 2012).
Esta complexidade é um desafio para a administração dessas áreas, e poucas Unidades apresentam alta efetividade
de gestão, conforme análises realizadas em 2005 e 2010, pela parceria do ICMBio com o WWF-Brasil. A mais recente e última
análise da efetividade da gestão, realizada em 2010 pela mesma parceria, revelou que houve uma evolução, comparada com a
realidade de 2005/06. Mesmo assim, o estudo apontou que 31,2% das UC ainda estavam com baixa efetividade, 46,2% com média
efetividade e apenas 22,6% estavam no patamar de alta efetividade (ICMBIO; WWF-BRASIL, 2012).
Acredita-se que um dos caminhos para ampliar a efetividade das Unidades é fazer sua gestão em diálogo estreito com
a sociedade, envolvendo-a nos processos de decisão, conforme se recomenda em marcos legais nacionais e acordos interna-
cionais, como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, o Plano Estratégico de Áreas Protegidas - PNAP e os
princípios do Enfoque Ecossistêmico adotados pela Convenção da Diversidade Biológica - CDB, da qual o Brasil é signatário.
Entretanto, desenvolver processos participativos para elaboração de normas e regras que resultam de um pacto entre os diferen-
tes atores sociais não é uma tarefa simples.
A gestão destas áreas demanda inúmeros conhecimentos e habilidades para o alcance de seus objetivos de criação, que
em seu conjunto são muito abrangentes, da proteção da biodiversidade à promoção do desenvolvimento. Além disso, a educação
formal no Brasil não contempla o tema com a profundidade necessária, e a formação específica de profissionais para a gestão
de unidades de conservação ainda é incipiente e com pouca oferta de cursos específicos no Brasil e América Latina (LUZ et
al, 2011). No Brasil, podem ser citadas as iniciativas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA-AM, do Instituto de
Pesquisas Ecológicas - IPÊ-SP e da Escola Nacional de Botânica Tropical do Jardim Botânico do Rio de Janeiro – ENBT/JBRJ.
Refletindo sobre esta realidade e confrontando-se com as demandas impostas por uma gestão socioambiental das uni-
dades de conservação, a equipe do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio decidiu, no início desta
década, investir na formação de gestores na temática da gestão participativa (LUZ et al; 2011). Deste modo, em parceria com
a Cooperação Alemã (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit) e o Projeto Áreas Protegidas da Amazônia do
Ministério do Meio Ambiente - ARPA/MMA, o ICMBio iniciou em 2010 um Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa (CGP),
construído a partir das experiências de capacitação da Cooperação Alemã no contexto do Programa ARPA, no período de 2006
a 2009 (CASTRO et al; 2009). A capacitação implementada pelo ICMBio é composta por cerca de 200 horas distribuídas em
módulos presenciais ao longo de um ano, com elaboração e execução de projeto aplicativo e seminários de monitoramento e

05: Sistemas de Gestão e Governança


537
compartilhamento de resultados (LUZ et al., 2011).
O Ciclo de Gestão Participativa, doravante denominado Ciclo, trabalha com diferentes formatos pedagógicos como en-
contros presenciais, ensino à distância, intercâmbios e projetos aplicativos que são elaborados ao longo do processo formativo
e colocados em prática pelos participantes em seus contextos de trabalho, com orientação da equipe de instrutores formada por
servidores do ICMBio. Os projetos, como recurso pedagógico, têm como intencionalidade a aplicação prática do conhecimento
construído e adquirido ao longo da formação, com a expectativa de posterior incorporação dos aprendizados e boas práticas ao
cotidiano da gestão (LUZ et al., 2011).
Os projetos podem ser individuais ou coletivos, em função da proximidade regional ou da temática a ser desenvolvida
(LUZ et al., 2011). Desde o início, a perspectiva foi contribuir para a adoção de uma postura dialógica e para a criação de uma
ambiência favorável à participação. Deste modo, pretendia-se influenciar as práticas institucionais nas diferentes unidades or-
ganizacionais, desde as unidades de conservação, centros de pesquisa e coordenações-regionais, assim como as estruturas de
direção do ICMBio. Além do ICMBio, busca-se também semear as mesmas ideias em outras instituições públicas, em especial
as organizações estaduais responsáveis pela gestão de unidades de conservação da Amazônia, considerando os objetivos do
Programa ARPA, que apoia o Ciclo desde seu início (Coordenação do Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa, Comuni-
cação pessoal).
Após cinco anos, uma questão de fundo para a equipe de instrutores envolvida nesta iniciativa educativa é entender
o impacto ou a contribuição da formação na melhoria da gestão das UC. Reconhecendo que a questão merece investigação
aprofundada, este trabalho pretende contribuir para a construção de respostas a partir da análise das temáticas e desempenho
dos projetos aplicativos das quatro primeiras edições do Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa, além da experiência
das autoras como participante, coordenação e cooperação técnica do Ciclo. Ponderando a intencionalidade de aplicar os co-
nhecimentos construídos ao longo do Ciclo de Capacitação por meio dos projetos, acredita-se que essa análise possa evidenciar
questões relevantes e sinalizar indícios sobre alterações na gestão das UC.

Metodologia
Para este trabalho foram realizadas sistematização e análise da base de dados dos projetos já realizados no âmbito das
quatro primeiras edições do Ciclo de Gestão Participativa, além de uma análise documental do acervo existente no ICMBio e
entrevistas com participantes e parte da equipe pedagógica.
Os dados sobre os projetos foram organizados em planilha Excel com as seguintes informações básicas: Nome do (s)
responsável (eis), local de trabalho à época da participação no Ciclo, ano de participação e edição do Ciclo, região do Brasil,
Coordenação-regional correspondente quando aplicável, tema, título, objetivos e resultados esperados do projeto e uma coluna
de observações contendo informações relativas à execução do projeto, obtidas por meio das entrevistas realizadas. Outras infor-
mações foram coletadas a partir do quadro lógico de cada Projeto e de relatórios de desenvolvimento dos mesmos.
Foram realizadas entrevistas com os responsáveis pelos projetos, coordenação e equipe docente do Ciclo, por meio de
correio eletrônico e telefonemas e abordam questões sobre o desenvolvimento dos projetos, como desafios, práticas alternativas
adotadas, alterações no contexto, entre outras. Os contatos iniciais foram realizados em setembro de 2013 e para os projetos que
ainda estavam em execução, foram feitos contatos subsequentes nos anos de 2014 e 2015 para acompanhamento dos desdobra-
mentos. Para os responsáveis que não responderam ao contato inicial de 2013 foi feito um novo contato por correio eletrônico e
telefone em 2015. Nas entrevistas foram solicitadas informações de execução do projeto e atribuição de um valor de 0 a 6 para
essa execução conforme a escala apresentada na Tabela 1:

1
Faz parte da estrutura organizacional do ICMBio, que possui 11 Coordenações-regionais. Dentre suas atribuições, apoia os processos de gestão das UC, estimula a
colaboração mútua entre as equipes e promove a articulação local e regional.
2
Quadro Lógico ou Marco Lógico é a metodologia adotada para sistematizar as informações dos Projetos.

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Tabela 1. Escala de avaliação

Resultados e Discussão
O investimento na formação do quadro institucional na temática de gestão participativa da biodiversidade rendeu até 2015
cinco ciclos de formação. Envolveu 136 gestores de UC, centros de pesquisa e conservação, coordenações-regionais e Sede do
ICMBio, além de 21 gestores de outras instituições do SISNAMA (como Organizações Estaduais de Meio Ambiente – OEMA,
Agencia Nacional de Água- ANA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, Ministério
do Meio Ambiente – MMA) e produziu 107 projetos de aplicação do conhecimento desenvolvidos em diferentes instâncias do
ICMBio e das instituições parceiras.
Atualmente estes projetos se encontram em diferentes graus de execução. Do conjunto de 107 projetos desenvolvidos,
quatro não possuem informações disponíveis, portanto as análises subsequentes foram feitas a partir de 103 projetos.

Distribuição geográfica dos projetos


A distribuição geográfica dos projetos é apresentada na Figura 1, demonstrando que dentre os 103 projetos considerados
nesta análise, a maioria foi realizada na região Norte do país (40%) e a menor quantidade encontra-se na região Sul (4%). Alguns
fatores devem ser considerados na compreensão desta distribuição: o maior número de unidades existentes no bioma Amazônia,
o apoio do Programa ARPA para as UC do bioma e a presença de equipes oriundas dos últimos concursos públicos do ICMBio,
que foram direcionados a essa região.

Figura 1. Distribuição dos projetos por região do Brasil (universo de 103 projetos).

05: Sistemas de Gestão e Governança


539
Os 103 projetos foram desenvolvidos em unidades de diferentes órgãos e entidades do SISNAMA (Sistema Nacional de
Meio Ambiente), abrangendo as esferas federal e estadual (Fig. 2 e 3).
Com relação às unidades de conservação da esfera federal, as categorias Parque Nacional e Reserva Extrativista têm o
mesmo número de projetos e concentram sua maioria, demonstrando que a demanda por estabelecer processos participativos
de gestão é independente do grupo da UC, se de proteção integral ou de uso sustentável (Fig. 2).
Parte dos projetos envolve mais de uma unidade de conservação, na Figura 2 estes projetos estão sinalizados por duas
categorias de UC (por exemplo, PARNA e ESEC), pelos Núcleos de Gestão Integrada - NGI Itaituba e Boa Vista e pelas UC
vinculadas a coordenações-regionais do ICMBio, como por exemplo as CR 08, 07 e 10 respectivamente com sedes em Porto
Seguro, Rio de Janeiro e Cuiabá. A importância destes projetos reside na abrangência territorial e no potencial de integração
intrainstitucional.

Figura 2. Localização dos Projetos no âmbito do ICMBio (universo de 92 projetos).

Nas demais instituições participantes, as unidades de conservação foram local de sete projetos (três na categoria Parque,
dois na categoria RDS, 1 em Floresta Estadual e um em ARIE), sendo os outros desenvolvidos em setores diversos, como apre-
sentado na Figura 3.

Figura 3. Localização dos Projetos fora do âmbito do ICMBio (universo de 11 projetos).

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Temáticas trabalhadas pelos Projetos
Quanto às temáticas abordadas, a maioria dos projetos desenvolvidos (45) teve como foco os conselhos gestores, eviden-
ciando o estágio de implementação da gestão das UC envolvidas, no período de 2010 a 2014. Por outro lado, pode-se perceber
uma diversidade de temáticas do universo da gestão das UC (Tabela 2).

Tabela 2. Distribuição temática dos projetos do Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa no período de 2010 a 2014.

Dentre os 45 projetos desenvolvidos com conselhos gestores, é possível categorizá-los em processos de formação (31%),
renovação (29%), capacitação (24%) e funcionamento (16%). O período analisado, de 2010 a 2014, coincide com o período no
qual a formação dos conselhos foi uma prioridade institucional para o ICMBio e grande quantidade de conselhos gestores de
UC foi criada.
A segunda área temática com maior número de projetos desenvolvidos é “processos educativos” em espaços para além
dos Conselhos, demonstrando a importância desta estratégia para a gestão participativa da biodiversidade. Como sujeitos dos
processos educativos nestes projetos, há comunitários residentes em unidades de conservação (8 projetos), comunitários no
entorno de unidades de conservação (2), escolas (2), visitantes (1), jovens (1) e servidores (1).
O aperfeiçoamento de processos internos de planejamento e gestão estratégica é o foco de quatro projetos, seguindo a
orientação institucional do ICMBio para a adoção da gestão para resultados alinhada ao Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão (MPOG). Vale destacar que um destes projetos teve continuidade e foi aprofundado no contexto do Curso de Gestão
para Resultados, também desenvolvido no ICMBio. Possibilitou assim, a integração dos processos formativos institucionais e
reforçou a incorporação de novas práticas no cotidiano da gestão, transformando a cultura organizacional e gerando uma gestão
mais eficiente (Santana; Silva, 2014).

05: Sistemas de Gestão e Governança


541
O fortalecimento dos processos de gestão socioambiental no contexto das coordenações regionais do ICMBio é abor-
dado por três projetos, que estruturam a atuação na temática por meio da formação das Redes Socioambientais, redes colabo-
rativas de apoio às UC, que, se implementadas de fato, podem, entre outras coisas, aproximar as unidades de conservação dos
processos de tomada de decisão e assim, estimular a participação social local na gestão (MENDONÇA et al, 2014).
A temática do voluntariado foi abordada por apenas um projeto, e este teve um desempenho avaliado, pelo responsável,
como abaixo do esperado. Esses aspectos podem ser reflexos da pouca estruturação e valorização desta agenda na instituição
gestora. Entretanto, o voluntariado é uma potencial estratégia de gestão da biodiversidade e inclusão social, na medida em que
aproxima e envolve a sociedade e contribui para desenvolver sentimento de pertencimento e atitude de responsabilidade pela
gestão do território e conservação da biodiversidade, percepção corroborada por Scelza & Cardoso (2014) a partir da experiên-
cia de voluntariado na RESEX Soure -Pará.
As demais temáticas tratam, na maioria das vezes, da construção e implementação participativa de instrumentos de
gestão como plano de manejo, termos de compromisso, acordos de gestão e instrumentos ligados ao uso público.
Dentre os projetos desenvolvidos por instituições parceiras, três chamam a atenção por suas temáticas e abrangência ter-
ritorial, com contribuição na conservação da biodiversidade mesmo não tratando de unidades de conservação especificamente:
(i) o aprimoramento da participação social nos processos de licenciamento ambiental de petróleo e gás, desenvolvido por servi-
dor do IBAMA, (ii) elaboração participativa do instrumento de gestão “Plano Integrado de Recursos Hídricos” (PIRH) da bacia do
rio Paranapanema - São Paulo, desenvolvido por servidor da ANA, e (iii) capacitação de gestores da Secretaria Estadual de Meio
Ambiente do Rio Grande do Sul - SEMA/RS na temática de gestão participativa, desenvolvido por servidores da instituição. Esses
projetos tiveram um amplo alcance institucional, aprimorando procedimentos e fortalecendo a capacidade destas instituições,
federais e estaduais, de fazer gestão com a sociedade.

Grau de execução dos Projetos


Uma escala de execução de 0 a 6 foi adotada para identificar o grau de implementação dos projetos (Tabela 1), sendo que
seis significa pelo menos 76% de execução e zero significa que o projeto não foi executado.
Do universo de 103 projetos analisados, independentemente do ano de início de sua execução, 51 foram classificados
entre os graus 5 e 6, ou seja, possuem execução acima de 60%. Dezenove projetos estão com execução entre 30 a 60%, 18 estão
entre 16 e 30% e apenas três não foram executados. Nota-se na Figura 4 uma queda acentuada entre os níveis de execução 5
e 6, seguida por uma linearidade nos demais graus de execução. Quando se analisa o grau de execução por edição do Ciclo,
verifica-se que este padrão não se altera. A métrica escolhida com intervalos de 15 pontos percentuais pode não ter sido a mais
adequada para capturar a evolução da execução dos projetos.
Em função de dificuldades de comunicação com os gestores responsáveis, 11 projetos não possuem informações atu-
alizadas sobre seu grau de execução e não foram considerados nesta análise específica. O gráfico da Figura 4 apresenta 42
projetos com grau de execução seis, 34 projetos com grau de execução variando de 2 a 5, 13 projetos com grau de execução
um e três sem execução. Considerando a dinamicidade da gestão, estima-se que 20 projetos ainda estejam em andamento, por
terem sido iniciados em 2014 ou porque foram incorporados à rotina da gestão.

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Figura 4. Grau de execução dos projetos

Diversos fatores influenciam a execução dos projetos. Dentre os fatores citados pelos entrevistados como desafios para
a implementação dos mesmos, pode-se destacar: (i) inexistência ou corte de recursos orçamentários, (ii) equipe reduzida frente
a inúmeras demandas na gestão, (iii) mudança de prioridade pela instituição ou pelo chefe da UC, (iv) tempo da administra-
ção pública diferente do tempo das comunidades, considerando que os processos participativos geralmente demandam mais
tempo, (v) resistência da equipe à utilização de metodologias diferentes, (vi) descontinuidade dos projetos, frequentemente em
função da mobilidade dos servidores, (vii) conflitos sociopolíticos fora da governabilidade do projeto, e (viii) cultura organizacio-
nal arraigada que pouco reconhece e compreende processos de construção participativa.
De modo geral, a partir dos projetos foi possível verificar um esforço direcionado a: (i) o aumento no número das par-
cerias entre UC e distintos setores da sociedade local com melhoria da participação e cooperação, (ii) o distensionamento das
relações com a sociedade, (iii) a promoção de diálogos mais qualificados, e (iv) ampliação da compreensão sobre os objetivos
e funções das unidades de conservação e seus instrumentos de gestão, como conselhos, planos de manejo, termos de compro-
misso, entre outros.
O desenvolvimento dos projetos possibilitou também, segundo os gestores, o surgimento de novas lideranças nas comu-
nidades e o amadurecimento e a autoconfiança das equipes gestoras para o diálogo, incluindo a melhor proposição de instru-
mentos, ferramentas e linguagens adequadas ao público envolvido.
Percebe-se, a partir das declarações dos participantes, que apesar de alguns projetos não terem sido executados em sua
totalidade, os aprendizados vivenciados ao longo de sua construção foram válidos para a formação do servidor e para o desen-
volvimento de novas ações no mesmo ou em outro local de atuação.
É possível identificar características comuns aos projetos bem-sucedidos que podem orientar e inspirar novos projetos.
Dentre elas, os gestores e a equipe docente ressaltam: (i) simplicidade e objetividade; (ii) clareza na definição dos objetivos e
resultados esperados; (iii) permanência dos servidores no local de execução, garantindo a continuidade; (iv) flexibilidade para
a gestão adaptativa, a partir do registro das decisões e do monitoramento; (v) envolvimento da equipe e de parceiros no planeja-
mento e execução; (vi) pertinência do escopo do projeto para a gestão da UC.

Considerações Finais
A realidade da maioria das UC brasileiras possui um histórico de isolamento, com pouca integração aos seus contextos
social, cultural e econômico, resultante de inúmeros fatores que geraram resistência da sociedade à destinação de parte do ter-
ritório para a conservação da natureza. Além disso, a gestão destas áreas é, em geral, caracterizada por especificidades técnicas
que alijam o cidadão comum dos processos de gestão, reforçando o distanciamento destes de seu patrimônio natural protegido
pelas unidades de conservação.

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543
O Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa pode ser considerado como um esforço do órgão gestor federal no sen-
tido de ampliar suas capacidades para o diálogo com a sociedade, na promoção da conservação da biodiversidade brasileira. A
participação de outras entidades e órgãos do SISNAMA nesse esforço ainda tem muito potencial para crescer.
Os projetos desenvolvidos demonstram que a gestão participativa da biodiversidade não está restrita aos conselhos
gestores de unidades de conservação. Das temáticas abordadas, 40% foram dedicadas a algum aspecto dos conselhos e 60%
foram distribuídas por diferentes áreas da gestão, incluindo a criação de UC, a implementação dos instrumentos de gestão e o
processo de licenciamento ambiental.
É fundamental monitorar a execução dos projetos e ampliar a divulgação dos resultados e aprendizados gerados, con-
siderando que são experiências relevantes na construção de soluções para problemas comuns ou mesmo como inspiração para
novas ações. Alguns avanços nesse sentido foram alcançados, como a publicação de um número temático da revista Bio Brasil
do ICMBio em 2014, na qual dois artigos relatam experiências provenientes de projetos desenvolvidos no âmbito do Ciclo, a
iniciativa “Práticas Inovadoras na Gestão de UC” de 2014, onde três experiências selecionadas como “inovadoras” resultaram
de projetos do Ciclo e a publicação de artigos sobre os projetos em diferentes edições de eventos nacionais, como Seminário
de Áreas Protegidas e Inclusão Social - SAPIS e Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação - CBUC, mas muito ainda
precisa ser feito.
Projetos são apenas um recorte da análise do impacto do Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa. Avaliações de
impacto, como a desenvolvida para o primeiro Ciclo (ARAÚJO, 2012) necessitam de continuidade para as demais edições.
Os projetos são um recurso pedagógico e um mote para a melhoria da gestão, pelo exercício da participação, mas a
intencionalidade do Ciclo de Capacitação com este recurso vai além do desenvolvimento de ações com capacidade de impactar
positivamente a gestão e de gerar experiências com potencial de replicação. Pretende-se também criar uma ambiência favorável
para a participação social na gestão da biodiversidade. Neste sentido, depoimentos dos gestores apontam que transformações
na gestão foram possíveis a partir da capacitação e da execução dos projetos, fomentando o melhor entrosamento dos membros
das equipes e destes com a sociedade, além de em alguns casos promoverem também a organização da sociedade local.
O número, a abrangência territorial, as temáticas trabalhadas e o grau de execução dos projetos do Ciclo de Capacitação
em Gestão Participativa indicam uma ampliação da inclusão social nos processos de gestão, mesmo considerando que estamos
longe do ideal. Neste sentido, o Ciclo e seus projetos representam uma contribuição ao fortalecimento da participação na gestão
da biodiversidade e um passo na direção de ampliar o protagonismo da sociedade brasileira na gestão de seu patrimônio natural.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


545
GOVERNANÇA INDÍGENA EM ÁREAS DE SOBREPOSIÇÃO TERRITORIAL E A
FORMAÇÃO DO CONSELHO GESTOR DO PARQUE NACIONAL DO PICO DA NEBLINA

Bocarde, Flávio1; Ramos, Salomão M.2 & Uehara, Luciana Y.3

1. Analista Ambiental e Pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Amazônica,


flavio.bocarde@icmbio.gov.br; 2. Membro do Conselho Gestor e representante do Setor Etnoterritorial Maturacá, representante do Povo
Yanomami; 3. Técnica Ambiental do Parque Nacional do Pico da Neblina/ICMBio, luciana.uehara@icmbio.gov.br

Resumo
O trabalho registra o processo de formação do Conselho Gestor do Parque Nacional do Pico da Neblina criado em 1979 sobre
território de ocupação tradicional de dezenas de etnias do noroeste amazônico, região conhecida como a Cabeça do Cachorro.
Trata a questão da sobreposição territorial de unidades de conservação sobre terras indígenas com a proposta de estabeleci-
mento de um espaço adequado de governança e protagonismo indígenas onde essas populações afetadas possam participar
das decisões sobre a gestão territorial e promover o exercício de seus direitos originários, concebidos antes mesmo da forma-
ção do Estado Brasileiro. Seguindo as diretrizes estabelecidas por políticas nacionais, propõem que os Planos Conjuntos de
Administração (Eixo 3-PNGATI1) sejam estabelecidos durante o processo de elaboração dos PGTA2 e do Plano de Manejo, de
forma paralela e integrada. O trabalho ainda registra pronunciamentos espontâneos de representantes legítimos, a visão sobre
o processo histórico das relações com as instituições de Estado concebida por representantes da principal etnia que habita o
território, os Yanomami.

Palavras-chave: Governança Indígena, Sobreposição Territorial, Dupla Afetação, Conselho Gestor, PNGATI.

Introdução
Criado em 05 de junho de 1979, o Parque Nacional do Pico da Neblina possui uma área de 2.260.344 ha e é entremeado e
sobreposto a um complexo mosaico de áreas protegidas3. Pelo lado brasileiro temos a sobreposição do Parque às Terras Indíge-
nas do Médio Rio Negro II (1998, área de 316.216 ha), Balaio (2009, área de 257.281 ha), Yanomami (1992, área de 9.664.975 ha)
e Cué-Cué/Marabitanas (2013, área de 808.645 ha). Essa particularidade torna a unidade culturalmente singular, com seus mais
de 5 mil moradores (SESAI42011) distribuídos em 46 aldeias e outros sítios isolados, moradores esses que representam 13 etnias
das 23 presentes na região do alto rio Negro: Dessana, Karapanã, Kubeo, Pirá-tapuya, Tariano, Tukano, Tuyuka, Baniwa, Kuripako,
Yanomami, Baré, Yepamasã e Warekena.
A unidade de conservação ainda se sobrepõem a Reserva Biológica Estadual Morro dos Seis Lagos e está justaposto
em seu limite leste a Floresta Nacional do Amazonas. Numa abordagem amazônica mais ampla, a região onde está localizado é
considerada uma das 63 grandes áreas protegidas no mundo (SALAZAR et al., 2010), as Unidades de Conservação e Terras Indí-
genas brasileiras somadas ao conjunto de áreas protegidas na Venezuela - Parques Nacionais Serrania de La Neblina (1.360.000
ha), Parima Tapirapecó (3.420.000 ha) e Canaima (3.000.000 ha) -, totalizam aproximadamente 320.000 Km2 de áreas protegidas.
Esse enorme corredor de áreas protegidas favorece a proteção das terras altas do Escudo Guianês, em um ambiente físico com-
posto de cordilheiras e/ou tepuis evidenciados por picos íngremes e morros isolados, além de uma grande planície que compõe
o conjunto das paisagens cobertas por densas florestas tropicais, campinaranas, ecótonos e os raros refúgios ecológicos mon-
tano e altimontano e, inserida nesses ambientes,a proteção de considerável parcela da biodiversidade amazônica5.

Justificativa
A partir da criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em 2007, e com o estabeleci-
1
Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.
2
Plano de Gestão Territorial e Ambiental para Terras Indígenas.
3
Não existe a formalização do mosaico através da criação dessa estrutura legal de gestão.
4
Secretaria Especial de Saúde Indígena, senso de 2011.
5
Localizações do Parque Nacional do Pico da Neblina e das Terras Indígenas demarcadas podem ser visualizadas no mapa elaborado e disponibilizado pelo Instituto
Socioambiental (ISA): http://site-antigo.socioambiental.org/nsa/mapas/img/Abrangencia_altoMedioNegro_Simples_webV2012.jpg/mapa.

05: Sistemas de Gestão e Governança


547
mento de uma nova equipe de gestão para o Parque através do concurso público de 2009, identificou-se como ação prioritária
a formação de seu Conselho Gestor6. A equipe de servidores do Parque iniciou então em 2010 o planejamento das atividades
através da formação de um Grupo de Trabalho que incluía representantes: dos servidores da unidade, da Coordenação Re-
gional (CR2/ICMBio), da Coordenação de Gestão de Conflitos Territoriais representante da Diretoria de Ações Socioambientais
e Consolidação Territorial em Unidades de Conservação (COGECOT/DISAT/ICMBio), da Fundação Nacional do Índio através
da Coordenação Regional do Rio Negro (CRRN/FUNAI), da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), do
Instituto Socioambiental (Programa Rio Negro/ISA) e do Exército através da 2º Brigada de Infantaria de Selva Ararigbóia. Tam-
bém foram realizadas uma série de consultas às instituições com presença significativa dentro do território: Associação Serviço
e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), Projeto PróArteYanomami/Pró
Amazônia, Prefeituras de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro.
Desde o início do processo em 2010 buscou-se uma resignificação dos trabalhos históricos, e para que isso fosse pos-
sível, a sobreposição das diversas modalidades de áreas protegidas presentes foi considerada como uma oportunidade a mais
de proteção ambiental. Como meio de implementar a gestão do Parque nessa nova perspectiva, foi colocado em primeiro plano
a busca pela conservação da sociobiodiversidade através da implantação de uma gestão participativa junto aos diversos povos
indígenas que tradicionalmente ocupam o território.
Mas como entrar em um território onde conflitos históricos enraizaram ódio e desaprovação nos moradores que foram
afetados com a criação da unidade de conservação? Conflitos esses ainda mais acentuados por questões de cunho étnico e pelo
processo de ocupação territorial de fronteiras implementado pelo regime militar com início na década de 1970. Um dos mais
importantes conselhos recebidos na fase de contatos interinstitucionais prévios, mas muito difícil de se atingir por parte de seus
gestores dentro das esferas públicas, embora simples e desprovido de pretensões foi o mais efetivo: “só de calção, entre só de
calção”. Demorou para entender a dimensão desse conselho, mas a então reduzida equipe de servidores – 3 analistas ambien-
tais e 1 técnico ambiental7- deu início a um extenso e sistemático processo de contatos e sensibilização junto aos diversos povos
indígenas.
O planejamento das atividades iniciou-se em abril de 2010 e nesse momento foi estabelecido que os trabalhos seriam
realizados em duas etapas: a primeira para fazer a sensibilização dos moradores e identificação das possíveis instituições que
fariam parte do Conselho; e a segunda para que houvesse a decisão por parte das comunidades pela participação no Conselho
Gestor e a indicação de seus conselheiros. Essa estratégia foi proposta considerando que boa parte das comunidades desconhe-
cia a existência da UC, da equipe de servidores e do próprio ICMBio. Por exemplo, comunidades situadas no rio Marauiá e Maiá
(TI Yanomami) nunca haviam sido visitadas antes; mesmo em comunidades mais próximas que ficam na TI Médio Rio Negro II e
TI Balaio os moradores declararam nas reuniões que nunca tinham realizado um encontro ou reunião ali, pois em muitas dessas
comunidades o contato com o órgão gestor sempre foi pouco ou inexistente.

Primeiro Ciclo de Reuniões: Sensibilização


A primeira etapa foi executada durante os anos de 2010 e 2011 em “comunidades pólo” escolhidas por possuírem critérios
como infraestrutura mínima, proximidade geográfica ou capacidade de agregar os moradores por afinidades pré-existentes, tais
como: mesma língua falada,etnia e configuração social.
Para executar a programação dessa primeira etapa foi necessária, em alguns setores, a realização de uma visita prévia ao
local e as comunidades envolvidas buscando-se informações importantes para a realização de um breve diagnóstico registrando
dados populacionais e coordenadas geográficas para se estimar quanto de alimentação e combustível seriam necessários para
viabilizar as reuniões, além da própria consulta à comunidade sobre a realização das reuniões naquela localidade.Os contatos
informando a primeira visita ou mesmo para marcar as reuniões foram efetuados via radiofonia e, como o Parque não possui
rádio, contamos com o apoio de instituições parceiras que dispunham desses equipamentos8.
As reuniões efetuadas nas comunidades ocorriam ao longo de todo o dia e durante esses encontros eram disponibiliza-
dos lanches e refeições aos participantes. No inicio da reunião a equipe solicitava aos participantes a indicação de pessoas para

6
O Conselho Consultivo do Parque Nacional do Pico da Neblina.
7
Bruno Vinícius da Silva e Souza, Flávio Bocarde, Luiz Martins Gonçalves e Marcia Barbosa Abraão.
8
FUNAI, FOIRN, Distrito Sanitário Indígena Yanomami e ISA

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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fazerem a tradução simultânea da reunião do português para a língua predominantemente compreendida pelos moradores.
Em seguida os moderadores solicitavam autorização para fazer os registros das reuniões através de fotos, assinatura da lista de
presença, anotações em cadernos ou gravação em áudio para elaboração das atas. Explicavam que esses registros eram impor-
tantes e imprescindíveis para a documentação do processo de formação do conselho. Logo após, era feito uma apresentação
pessoal dos servidores e na sequência uma apresentação institucional, discorrendo sobre o ano de sua criação, competências e
objetivos do ICMBio. Depois eram apresentadas as Unidades de Conservação com enfoque específico sobre o Parque Nacional
do Pico da Neblina, destacando-se informações sobre o ano de sua criação, limites geográficos, tamanho de sua área e objeti-
vos. Outra informação abordada na reunião foi o fato da unidade de conservação ter sido criada sobre uma área de ocupação
tradicional indígena, onde as Terras Indígenas foram demarcadas em momento posterior a delimitação do Parque e compondo,
juntos, um grande mosaico de áreas protegidas.
Em seguida, buscando-se sempre utilizar uma linguagem simples e acessível, foram apresentados os assuntos relacio-
nados ao Conselho, sua importância como principal espaço de governança e participação social, estrutura, funcionamento, sua
composição, informações sobre o mandato dos conselheiros e outros importantes itens que constavam na Instrução Normativa
nº 11 de 08 de junho de 2010 (substituída pela IN nº 09 de 2014).
A Coordenação Regional do Rio Negro da FUNAI, instituição responsável pela gestão das Terras Indígenas sobrepostas
ao Parque, foi convidada através de ofícios elaborados para cada reunião e esteve presente em várias destas, expondo suas
competências e discorrendo sobre a reestruturação que o órgão vinha desenvolvendo na ocasião.
A primeira etapa foi concluída após realizadas 15 reuniões, envolvendo moradores de 39 comunidades distribuídas ao
longo da BR307, da calha principal do rio Negro e seus principais tributários tais como os rios Cauaburis, Maiá e Marauiá. Para
definição das comunidades que seriam convidadas foi adotado o critério de estar situada no interior da UC ou em uma zona bu-
ffer onde essas comunidades mantinham alguma relação de uso dos recursos naturais abrangidos pelo Parque. Ao todo foram 42
dias de trabalhos em campo, num período de oito meses, um consumo de 2.800 litros de combustíveis e milhares de quilômetros
percorridos por terra e água (Tabela 1 e Figura 1).
Características da região como distância geográfica, tempo, condições de deslocamento, sazonalidade climática (cheia
e vazante dos rios) e condições de trafegabilidade da BR 307 influenciaram o calendário de atividades que foi modificado e adap-
tado em sucessivos momentos para garantir a continuidade do processo de formação. Este primeiro ciclo de reuniões permitiu
a equipe realizar a sensibilização dos moradores acerca da importância da formação do conselho, e ainda conhecer a dinâmica
do território, fazer um registro preliminar das especificidades de cada região e iniciar o diálogo sobre as ações de gestão que
seriam desenvolvidas.

05: Sistemas de Gestão e Governança


549
Tabela 1. Cronograma do I Ciclo de Reuniões de Sensibilização do Conselho Gestor nas Comunidades 2010 e 20199

Já nesses primeiros contatos, os moradores expressaram através de suas falas os seus anseios e os conflitos existentes
em relação ao órgão gestor sobre o regramento de uso dos recursos naturais, os relatos principais versaram sobre diversas proi-
bições: da abertura de roças, realização de queimadas, extração de cipós, extração de madeira, pesca, caça, etc. Também foram
relatados problemas que extrapolavam a questão ambiental, tal como educação, saúde e segurança pública. Através dessas
conversas foi possível detectar a ocorrência de conflitos também entre os moradores de diferentes comunidades, principalmente
sobre o modo de compartilhar o uso dos recursos naturais ou mesmo por questões étnicas do processo de configuração histórica
de ocupação territorial.
Nesse momento surgiu a dúvida que perseguiria a equipe gestora até a finalização do processo de formação do Conse-
lho: como reunir num mesmo espaço, e discutir gestão integrada e participativa, diferentes povos que historicamente guerrea-
ram pelo domínio do território? Guerras, ataques, mortes, roubo de mulheres e crianças compunham os relatos coletados, como
seria caminhar nesse chavascal11 de ressentimentos? Veríamos ao longo do processo que estávamos equivocados.

9
Abraão, Marcia B.; Bocarde, Flávio; Gonçalves, Luiz M.; Souza, Bruno V. da S.; Relatório do Processo de Criação do Conselho Gestor do Parque Nacional do Pico da
Neblina, Documento Base para Instauração do Conselho Consultivo (Processo 02070.001988/2012-78), 2012.
10
Dados do senso SESAI de 2011. | 11 Vegetação característica tradicionalmente reconhecida pela dificuldade de transposição.

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Figura 1. I Ciclo de reuniões de sensibilização para formação do conselho nas comunidades.

Figura 2. Levantamento das instituições para compor o conselho durante o primeiro ciclo de reuniões.

Levantamento de instituições para composição do Conselho Gestor


Na primeira etapa de reuniões foi acordado que identificaríamos as instituições atuantes nas comunidades ou que os
moradores considerassem importantes para compor o conselho gestor da UC. Assim, foi aplicado o diagrama de Venn, uma
metodologia participativa que possibilitou a identificação e reflexão dos participantes acerca das relações das instituições com
as comunidades, evidenciando quais eram as instituições mais próximas das comunidades, e portanto, prioritárias para a com-
posição do Conselho. Em algumas reuniões maiores onde estavam presentes um número maior de participantes a aplicação do
diagrama foi impossibilitada, nesses casos, a indicação das instituições foi feita através de listagem simples (Figura 2). Depois
de concluir o primeiro ciclo de reuniões foi realizada uma análise dos diagramas e listagens contabilizando as instituições mais
citadas pelos moradores. Estas mais citadas foram convidadas a participar do conselho.

Avaliação do Processo de Formação do Conselho Gestor


Concluído o primeiro ciclo de reuniões nas comunidades, foi realizada uma Oficina na sede da unidade, durante dois
dias, para realizar uma avaliação do Processo de Formação do Conselho Gestor, definir as metodologias que seriam utilizadas
nas próximas reuniões e planejar o cronograma de atividades da segunda etapa. Participaram dessa oficina a Coordenação Re-
gional do ICMBio (CR2), a Coordenação de Gestão de Conflitos Territoriais (CGCOT/DISAT), e do Grupo de Trabalho de Forma-
ção do Conselho Gestor do Parque Nacional do Pico da Neblina estiveram presentes na ocasião a Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro, a FUNAI e o Instituto Socioambiental.
No primeiro dia da Oficina, a equipe gestora do Parque apresentou as ações para a gestão da Unidade enfatizando
aquelas desenvolvidas no processo de formação do conselho. No segundo dia, o Coordenador da CGCOT/DISAT discorreu
sobre a abordagem institucional frente ao regime jurídico da dupla afetação (TI/UC), a formação de conselhos gestores em UC,
as principais demandas e lacunas relativas à capacitação de conselheiros. Em seguida, os participantes do ICMBio reunidos
com o Grupo de Trabalho de Formação do Conselho Gestor avaliaram as atividades realizadas até aquele momento definindo em
conjunto uma proposta de composição do conselho. A primeira etapa de reuniões permitiu identificar as especificidades socio-

05: Sistemas de Gestão e Governança


551
ambientais das comunidades e agregá-las em setores representativos dentro do território. Dessa forma, foram então definidos 7
Setores Etnoterritoriais de representação dos moradores que agregariam as 56 comunidades existentes dentro do Parque, sendo
eles assim denominados: Setor Marauiá, Setor Maturacá, Setor Cauaburis, Setor Maiá, Setor CuéCuéMarabitanas, Setor Médio
Rio Negro II e Setor Balaio (Figura 3).
Outro momento da Oficina foi a definição das instituições que comporiam o conselho, utilizando os resultados advindos
das listagens e diagrama de Venn aplicados nas comunidades. O Grupo de Trabalho definiu uma relação composta pelas insti-
tuições mais citadas e as consideradas essenciais para uma representatividade paritária dentro da gestão do Parque Nacional
e das Terras Indígenas. Assim, após análises e discussões, ficou definida a composição inicial do Conselho Gestor do Parque
Nacional do Pico da Neblina, essa seria representada por 7 cadeiras advindas de representações diretas dos povos indígenas
moradores do Parque (os 7 Setores Etnoterritoriais), 7 cadeiras para instituições governamentais e 4 representantes de organiza-
ções não governamentais com trabalhos desenvolvidos junto aos povos indígenas no território do Parque (Tabela 2).

Tabela 2. Composição do Conselho gestor do Parque Nacional do Pico da Neblina

Figura 3. Localização dos setores etnoterritoriais do Parque Nacional do Pico da Neblina


(Obs: mapa ainda sem localização da TI CuéCuéMarabitanas).

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A realização dessa Oficina foi de suma importância, pois definiu as instituições e os setores do conselho, bem como a re-
presentatividade das populações indígenas dentro da gestão da unidade, composta por diferentes etnias que estão em diferentes
processos de relacionamento entre si e com a sociedade envolvente.

Segundo Ciclo de Reuniões: Indicação dos Conselheiros


Concluída a Oficina, com base no planejamento e cronograma de execução da segunda rodada de reuniões nos Setores
Etnoterritoriais, a equipe do Parque seguiu para os trabalhos de campo que junto aos moradores reunidos indicariam seus re-
presentantes para assumir o posto de conselheiros.
Neste segundo ciclo de reuniões que ocorreram nos sete setores etnoterritoriais do Parque, seguindo o mesmo caminho
apresentado na Tabela 1, foram revisadas as informações relatadas na primeira reunião buscando esclarecer e relembrar ain-
da mais ospontos importantes sobre o ICMBio, sua missão e objetivos. Além disso, foram pautados o processo de criação do
Parque, a ausência de consultas públicas na ocasião por ainda não representarem uma legislação ativa à época (apenas em 2000
as consultas passam a vigorar através do SNUC), seus limites geográficos, a sobreposição aos territórios indígenas reconhecidos
e demarcados em momento posterior (uma dinâmica específica sobre mapas com diversas camadas de informações confec-
cionadas em EVA foi elaborada) e a importância em se compreender as diversas áreas protegidas – UC e TI – e trabalhá-las
numa perspectiva de gestão integrada para a preservação da sociobiodiversidade local. Em um segundo momento da reunião
foi feito um apanhado de informações baseado na IN nº 11 de 2010 para enfatizar a importância do conselho e da atuação do
conselheiro para as comunidades, além de destacar as características que este deveria possuir para ser um bom conselheiro e
assim contribuir com o desenvolvimento das comunidades. Após a explanação das instituições e tiradas todas as dúvidas que
surgiam, os moradores tomavam a decisão pela participação ou não do setor e, se assim aceito, seguiam para a escolha dos
candidatos a conselheiros e então para a definição final dos nomes do titular e suplente. Cada setor fez sua escolha de modo
muito particular e conforme sua forma organizacional vigente, variando desde o voto secreto ou votação aberta à indicação por
lideranças tradicionais a partir de longas discussões (Figura 4).

Figura 4. II Ciclo de reuniões do conselho nas comunidades para a indicação dos conselheiros.

Paralelamente a este ciclo de reuniões nas comunidades, a equipe da UC fez reuniões e entregou convites para as
demais Instituições que comporiam o conselho. Todas as instituições responderam favoravelmente ao convite enviando seus
aceites e designando os nomes dos conselheiros. Entretanto, cabe ressaltar que o planejamento novamente precisou ser revisto
em mais de um momento e em mais de um dos setores etnoterritoriais. Uma das apostas feitas pela equipe gestora foi a de se
respeitar a forma original de processo político existente em cada um dos setores, seus espaços tradicionais de diálogos e inicia-
tivas de organização.
Em muitos momentos foram revistas as agendas de forma a conformar-se às assembleias tradicionais previstas para os

05: Sistemas de Gestão e Governança


553
setores, com ICMBio contribuindo para a realização integrada dos eventos, e nesses momentos de debate, as pautas referentes
ao Parque, a formação de seu Conselho Gestor e início de uma gestão de fato participativa vieram à tona dentro de uma série de
outras demandas emanadas das comunidades: questões referentes à saúde, educação, invasões, conflitos internos e movimen-
tos organizativos para fortalecimento de suas instituições ou mesmo para sua criação. Durante essa segunda etapa, a equipe de
gestores iniciou então sua imersão dentro do que seria a gestão do território, surgindo então uma enorme demanda de serviços
acumulada no tempo pela ausência dos antigos órgãos gestores no debate.
Em alguns setores não houve adesão imediata, a desconfiança ainda pairava no ar e outros conflitos ainda muito vivos.
Recebemos então solicitações para novos esclarecimentos, tempos para reflexão e outras reuniões para a tomada de decisões.
Cabe citar que outras frentes de gestão da unidade ainda continuavam a atuar, uma delas, escolhida não ao acaso, a geração de
conhecimento sobre o território através de pesquisas científicas continuou a ser implementada numa estratégia de aproximação
aos diferentes povos indígenas através da realização de trabalhos científicos colaborativos, a PesquisAção. Outra frente, prati-
cada a todo momento, foi a educação ambiental.
Ao final do segundo ciclo de reuniões e com a definição dos conselheiros das comunidades e das instituições, encami-
nhamos a documentação coletada durante o processo de formação do Conselho Gestor do Parque Nacional do Pico da Neblina
para sua publicação. Foram enviadas as cópias dos registros efetuados em toda a etapa de processo de formação do conselho
como lista de presença, termo de escolha do conselheiro, atas e os ofícios enviados as instituições, bem como a resposta com
os aceites destas instituições com a devida designação dos nomes dos conselheiros para a oficialização do Conselho Gestor do
Parque Nacional do Pico da Neblina (Figura 5).

Figura 5. Diversidade étnica presente no Conselho Gestor do Parque Nacional do Pico da Neblina, posse dos Conselheiros em abril de 2013.

Conclusão
Historicamente, o conceito de áreas protegidas forjou-se às custas da exclusão das populações que tradicionalmente
faziam uso comum dos espaços e dos recursos naturais, e através da retirada do território dessas comunidades que manti-
veram preservados importantes remanescentes florestais para a posterior criação de um “Parque” com essa mesma finalidade.
Entretanto, observa-se uma evolução do conceito de áreas protegidas nas últimas décadas, coincidente com o processo de de-
mocratização de alguns países em desenvolvimento. Portanto, a inclusão social que tem caracterizado a mudança de paradigma
conceitual e político das áreas protegidas reflete a resistência ao modelo dominante privatista, fruto da herança colonial euro-
centrista, marcado pela exclusão e pelo isolacionismo que tornaram essas áreas alienadas das realidades social e econômica
de seus países (FERREIRA, 2014).
Os trabalhos aqui apresentados surgem de uma iniciativa dos gestores do Parque Nacional do Pico da Neblina de harmo-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
554
nização interpretativa da Constituição Nacional (1988), do Estatuto do Índio 1973, do SNUC 2000, do PNAP 2006, PNDSPCT 2007
e da PNGATI 2012; na perspectiva de abordar a questão da sobreposição territorial com vistas à gestão integrada do território e
com o objetivo principal de traduzir o regime jurídico da dupla afetação, na prática, em um regime de “dupla proteção”. E para
que isso fosse possível, o processo de formação do Conselho Gestor da unidade de conservação deveria seguir parâmetros que
garantissem o protagonismo e governança indígenas sobre seu território de ocupação tradicional no qual se viram afetados pela
criação de um Parque Nacional antes mesmo de terem seus próprios territórios reconhecidos pelo Estado brasileiro.
Ainda são necessários muitos avanços para gerir de forma adequada os territórios em sobreposição, alguns avanços
deverão ser representados por regulamentações específicas que dêem sustentabilidade ao que se anuncia através das diver-
sas políticas nacionais citadas no parágrafo anterior. No caso do Parque Nacional do Pico da Neblina, a própria compreensão
identitária da unidade deve sofrer alterações, transladando-a muito mais para a classe de Uso Sustentável do que da de Proteção
Integral. Muitas das políticas públicas desenvolvidas para populações tradicionais residentes em unidades de conservação de
uso sustentável poderiam, com algum esforço adaptativo, serem também acessadas pelas populações indígenas residentes no
Parque Nacional. Entretanto, essas políticas ainda estão inacessíveis à implementação pelos gestores de unidades de conser-
vação sobrepostas. Exemplo disso é o Programa ARPA que investe milhões na gestão de UC’s Amazônicas, sendo hoje o maior
programa de apoio à implementação do SNUC nesse bioma (> 60.000.000 ha contemplados), mas que coloca como condicio-
nante a esse apoio que a unidade de conservação não possua sobreposição territorial com terras indígenas. Essa falta de políti-
cas públicas específicas, das muitas políticas de exclusão ou mesmo da falta de esforços para enquadramento em políticas já
existentes, relega os territórios sobrepostos a verdadeiro estado de abandono. Isso precisa mudar.
A PNGATI traz em seu eixo 3 a figura dos Planos Conjuntos de Administração, a serem construídos pelos órgão gestores
das terras indígenas (FUNAI) e unidades de conservação (ICMBio) e as populações indígenas afetadas pelo regime da dupla
afetação. O caminho a seguir para esse resultado não se encontra conceituado, entretanto, afirmamos que não existe outra forma
de gerir o território sem se construir conjunta e paralelamente seus Planos de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas
e o Plano de Manejo do Parque. Dessa forma os gestores do PARNA seguem abrindo e avançando no caminho do diálogo junto
às populações indígenas de forma que as propostas surjam através de trabalhos colaborativos, e desses a gestão integrada. Di-
ante situação de extrema vulnerabilidade de gestão por possuir apenas dois servidores (um terceiro será aposentado compulso-
riamente em 3 meses quando completará 70 anos), foram estrategicamente priorizados os setores etnoterritoriais (Figura 3) mais
ativos e os temas mobilizadores mais arraigados e mesmo mais conflituosos para serem tratados na perspectiva de uma gestão
integrada no âmbito do Conselho Gestor recém criado. O conflito atrai a atenção, dá visibilidade, garante o interesse ao debate, e
por esse caminho optamos por iniciar a governança. Não tínhamos, inicialmente, sequer autorização dos indígenas para entrar no
interior da unidade de conservação e, nesse processo, muitas foram as vezes em que fomos expulsos e até mesmo ameaçados
das mais variadas formas nos diversos setores etnoterritoriais. Os trabalhos desenvolvidos para a formação do Conselho Gestor
possibilitaram a abertura do diálogo e a mudança nessas relações conflituosas. A convivência dos gestores dentro das comuni-
dades mudou a forma de enxergar o outro, tanto dos gestores como dos próprios indígenas.
Apresentamos aqui alguns dos resultados provenientes dessa abertura do diálogo junto ao Setor Etnoterritorial de Matu-
racá, de ocupação da etnia Yanomami, localizada no sopé de Yaripo Maki (Serra dos Ventos) que possui como ponto culminante
o Pico da Neblina. Nesse setor, o conflito sobre o turismo, dentre tantos outros, regia as relações desde que os yanomami tiveram
a percepção da existência do Parque Nacional do Pico da Neblina. O Anexo 1 apresenta iniciativa do Conselheiro Yanomami do
Setor Etnoterritorial de Maturacá, Salomão Mendonça Ramos, registrando essas relações na visão de seu povo.
Reconhecemos o processo de ordenamento da visitação ao Pico da Neblina como epicentro de expansão da gestão da
unidade, e a formalização de uma Câmara Temática do Ecoturismo como roda motriz de seu Conselho Gestor. Mesmo que essa
discussão, hoje, ainda esteja limitada a dois setores etnoterritoriais do Parque (Maturacá e Cauaburis), o processo e os resultados
já obtidos têm servido de motivadores para outros atores do Conselho Gestor, e por consequência, do envolvimento dos demais
setores etnoterritoriais que já iniciaram a demanda pelo debate dos temas que julgam prioritários.
Em “Palavras Finais”, no anexo 1, registramos manifestação dos líderes tradicionais que acompanham atentamente
os trabalhos desenvolvidos, iniciativa que surge da própria cultura do Povo Yanomami e que, através de suas tradições, bus-
cam a superação dos conflitos do passado e a construção de uma nova perspectiva de aliança. O Himou, cerimônia que une
duas lideranças e que serve para externalizar todo rancor acumulado pelos conflitos foi recentemente praticado na sede do

05: Sistemas de Gestão e Governança


555
ICMBio, reuniu um líder tradicional Yanomami e o próprio Presidente da instituição. A reunião foi propiciada pela participação
do gestor da unidade, do conselheiro e de um líder tradicional no “Seminário Integrador do Curso Básico de Formação em
PNGATI” (FORMAR PNGATI/IEB, 27 a 29 de abril de 2015), na sequência uma reunião foi realizada com a direção do ICMBio,
e outra da mesma forma com a direção da FUNAI em sua sede, para que os trabalhos desenvolvidos no território e expostos no
seminário fossem apresentados para ambas instituições. Foi então que a cerimônia para construção da aliança, o Himou, foi rea-
lizada pelo tuxaua Carlos da Comunidade de Maturacá, que depois relatou ter ido a Brasília com esse objetivo em mente, numa
estratégia própria de superar os conflitos e construir a aliança para enfrentar os novos “inimigos”.
Apresentamos a tradução da cerimônia, propiciada por trabalhos posteriores durante a elaboração do documentário que
registra essa intervenção. A real compreensão das dimensões de tal evento só é possível na perspectiva da própria cultura ya-
nomami, a nós, napë (brancos), só acessíveis através de uma postura parentética12. Que a força do Himou, tão poderosa e indis-
solúvel para os Yanomami, seja capaz de identificar os reais inimigos, quem são os verdadeiros aliados nessa luta e de unificar
os esforços daqueles dispostos a proteger o território e a cultura, pelo menos são essas nossas esperanças enquanto gestores!

Referências
Estatuto do Índio. Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973.

FERREIRA, I.V. O dilema das terras indígenas no SNUC: Uma nova abordagem de um velho problema. In: A Diversidade Cabe
na Unidade? Áreas Protegidas do Brasil. Mil Folhas IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil. pp. 364-396. 2014.

PNAP - Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas. Decreto Nº 5.758, de 13 de abril de 2006. Ministério do Meio Ambiente.

PNGATI - Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas. Decreto n.º 7747, de 5 de junho de 2012.

PNDSPCT - Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Decreto Nº 6.040, de 7
de fevereiro de 2007.

RAMOS, S.M.; BOCARDE, F.; UEHARA, L.Y. Comunidades de Ariabu e Maturacá Terra Indígena Yanomami – AM. In: Cadernos
de Gestão Territorial e Ambiental no Noroeste Amazônico – Diálogos com a PNGATI. FOIRN – Federação das Organiza-
ções Indígenas do Rio Negro. pp. 75-85. 2015.

SALAZAR, L. C.; GASTON, K. J.. Very Large Protected Areas and Their Contribution to Terrestrial Biological Conservation. Bio-
science. 2010.

SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. Ministério do Meio Ambiente. 2000

VASCONCELOS, A.; MELO, A.G.; KARAWETARI, H.; MATOS, V. da S. Yanomami: Capacitação, formação, intercâmbio e edu-
cação. In: Propostas de implementação da PNGATI na Amazônia. Mil Folhas IEB - Instituto Internacional de Educação do
Brasil. pp. 67-68. 2015.

ANEXO 1

Relato Histórico do povo Yanomami com IBAMA e ICMBio

Em 1987, o povo Yanomami começou a discutir com o Gestor do IBAMA, o senhor Ézio, sobre a questão da instituição não
consultar os moradores da comunidade para conduzir os turistas ao Pico da Neblina, para realizar turismo em pesquisas ilegais
na região do parque. Os líderes tradicionais tomaram conhecimento dessa instituição e começaram a dialogar, com o intuito de
ter maior conhecimento sobre o IBAMA.
Nesse período, o Gestor do Parna começou a ter conflitos com os indígenas, pois, em diálogos com os líderes Yanomami

12
Colocar-se entre parêntesis, observar através do olhar do outro.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
556
do Rio Cauaburis, o senhor Ézio dizia: “Não poderei tomar satisfação com a comunidade. Posso entrar no parque? Conforme
está escrito na lei, tenho toda a autonomia institucional para entrar na área do parque”. Com isso, ele dizia: “Os Yanomami não
tem seus direitos para combater a instituição federal”. Todos os gestores dessa instituição, o antigo IBAMA, trouxeram vários
conflitos ao território Yanomami.
Em 1995, os Yanomami começaram a visar o trabalho do IBAMA, que estava conduzindo os turistas para ganhar dinheiro.
Com esse dinheiro proveniente do turismo, eles compravam ouro dos garimpeiros que trabalhavam naquela região. A gestão do
IBAMA organizava o grupo para levar os turistas sem a consulta aos Yanomami. O guia dessa comissão turística era pessoa de
fora, conhecido pela própria instituição. Com isso, os Yanomami ficaram furiosos, querendo descobrir o que estava acontecendo
com o trabalho dessa entidade. Os líderes tradicionais se organizaram para dialogar dentro da assembleia extraordinária para
fechar o parque nacional, juntamente com o Ministério Público Federal.
Nessa época, estava sendo criada a AYRCA – Associação Yanomami do Rio Cauaburis e seus Afluentes. Os povos Yano-
mami de Maturacá tiveram toda a autonomia coletiva com os líderes tradicionais e impediram a entrada dos turistas e de pes-
quisadores. A população tomou conhecimento que a instituição estava ultrapassando a autonomia dos moradores dessa região,
publicamente foi questionado o trânsito das pessoas de fora que vinham fazer turismo, a população sentiu que o trabalho estava
ilegal. Ao mesmo tempo, devido ao barulho dos motores, estava escasseando os rios, os peixes, as caças e a natureza da região
do Pico da Neblina.
Enfim, concluo a história do antigo IBAMA, que vinha trabalhando ilegalmente em território Yanomami. Em 3 de dezembro
de 1998, foi criada a AYRCA – Associação Yanomami do Rio Cauaburis e seus Afluentes, para lutar pelos direitos do povo Yano-
mami. Na época, foram discutidos problemas turísticos dentro de assembleia extraordinária pelo público, para o fechamento do
parque nacional. Mesmo com o parque fechado à visitação, a instituição continuou com o trabalho clandestino em território Ya-
nomami. Em 2008, o próprio IBAMA fez o Projeto Valor: Cento e cinqüenta mil reais junto com os turistas e com outros parceiros,
com a Funai de Brasília, para fazer as bases no ramal do Pico da Neblina13. Os Yanomami não gostaram do interesse do IBAMA,
pois a entidade estava realizando uma atividade ilegal para os moradores dessa região de Maturacá. Novamente, os Yanomami
ficaram muito furiosos, porque o IBAMA não os consultou.
O tempo passou, o nome da instituição apareceu como ICMBio, que tinha nascido para assumir o compromisso dentro
do parque. Os líderes tradicionais continuaram a não acreditar na nova gestão. Logo depois, o chefe do parque, senhor Flávio,
teve contato com os makayotheri14. Os Yanomami não acreditaram no projeto que estava sendo trabalhado, denominado Projeto
das Cavernas.
O ICMBio informou que a instituição era recente, que estava fazendo o mesmo papel do antigo IBAMA. Os Yanomami,
coletivamente com a sua associação AYRCA, tomaram providência para que o ICMBio trabalhasse juntamente com eles. Mais
uma vez o gestor do parque cometeu o erro de não reconhecer a autonomia dos líderes tradicionais15. Publicamente, o senhor
Flávio Bocarde recebeu a orientação dos Yanomami. O chefe do parque não pode ultrapassar os direitos dos Yanomami, que
moram em seu território na sua vida cotidiana.
Esperamos que a Funai na sua coletividade com o ICMBio, venha capacitar os nossos jovens. Na época, os líderes tradi-
cionais comentaram que não iriam mais consolidar os projetos feitos apresentados pelo gestor do parque.
Em 2011, os Yanomami tiveram contato com o ICMBio para criar o Conselho Gestor do Parque Nacional do Pico da
Neblina. Os líderes discutiram para que a instituição capacitasse os integrantes do Conselho Gestor para receber atividades
turísticas, só assim nós poderemos consolidar o Projeto de Ecoturismo.
Em 2012, foi criado o Conselho do Parna. O Povo Yanomami consolidou a criação do Conselho do Parque no evento da
assembleia extraordinária, onde estavam reunidas todas as lideranças de outras comunidades também associadas à AYRCA.

13
Instalação de bases em concreto e ferro na trilha de acesso ao Pico da Neblina decorrentes do acordo construído em uma ação de responsabilização imposta ao
Exército por iniciar ilegalmente a abertura de uma estrada até a comunidade de Maturacá. Os yanomami tiveram participação bastante limitada no processo de-
cisório. O Parque já se encontrava fechado à visitação por uma recomendação do Ministério Público Federal.
14
Como foram denominados os participantes, napë (brancos) e yanomami, do projeto de pesquisa colaborativa que visava a prospecção de cavernas e seu ma-
peamento no intuito de propiciar subsídios à discussão sobre qual o manejo mais adequado dessas cavidades uma vez que as cavernas - Makayo – estão presentes
na mitologia yanomami como ambientes sagrados. O projeto também ambicionava uma primeira tentativa de aproximação e superação dos conflitos junto ao Povo
Yanomami.
15
Ter multado apresentador de TV que ascendeu ao Pico da Neblina para gravar um reality show, onde saltaria de lá num paraglide, pois o mesmo teve sua auto-
rização negada pelo ICMBio e FUNAI.

05: Sistemas de Gestão e Governança


557
Hoje em dia, a população reconhece o trabalho e a importância do Conselho do PARNA. A instituição ICMBio está
mostrando a sua importância para capacitar os próprios filhos da terra durante este curso. Tradicionalmente, os Yanomami consi-
deram o Instituto Chico Mendes como seu aliado. A população espera que no futuro o Projeto Ecoturismo Yaripo seja executado
pelos Yanomami na coletividade com as rotas e trajetos determinados.
Com a colaboração de instituições como a Funai, o ICMBio, a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira, o Exército, o
Disei e o ISA, na visão dos Yanomami já está começando a clarear como trabalhar com atividades turísticas.
Os líderes tradicionais já contam com ajuda dos conselheiros que foram capacitados, visto que já realizaram vários cur-
sos importantes, como aprender a proteger nosso território. Sobre essa questão, nós temos que visar que a população comece a
se organizar. Os Yanomami do Rio Cauaburis agradecem à instituição ICMBio pela sua generosidade. Conduziu os dois conse-
lheiros para participar de cursos e na elaboração de artigos (RAMOS et al; 2015 e VASCONCELOS et al; 2015) sobre a PNGATI16.
Com isso, a população ficou mais confiante para consolidar qualquer evento que seja levado pelas instituições parceiras. A
população acredita que o ICMBio é uma instituição que demonstra a sua preocupação com os Yanomami.
No meio disso, o Instituto já capacitou os conselheiros para tomar posse no Conselho Gestor do Parque Nacional do
Pico da Neblina. O curso aconteceu no dia 29 de abril de 2013. Hoje em dia, os líderes tradicionais reconhecem o trabalho do
ICMBio, esperamos que a instituição indigenista, que é a Funai, contribua nessas questões. A população se refere que a Funai
não está querendo que os Yanomami executem um curso. Ao mesmo tempo, tradicionalmente sabemos respeitar a autonomia
das instituições parceiras. O povo Yanomami acha que a Funai tem que se aproximar do curso de capacitação que está sendo
realizado em Maturacá.
Os Yanomami querem trabalhar coletivamente com as instituições parceiras, tradicionalmente não aceitaremos público
ilegal, ressaltando que não será consolidado o Plano de Manejo onde os Yanomami não sejam consultados.
O Ecoturismo Yaripo está sendo realizado conforme as demandas das comunidades junto com as lideranças, com a dire-
toria da associação AYRCA, com os representantes das instituições e com os professores da região. Os cursistas já comentaram
que tem uma visão ampla porque os moradores já tiveram 3 módulos de capacitação, onde já temos diálogos de implementar a
PNGATI e como trabalhar o PGTA.
Finalmente, os cursistas e os líderes esperam que no futuro seja realizado e bem planejado o Ecoturismo Yaripo.
Eu, como conselheiro do Parque Nacional, lavrei este relato.
Palavras Finais

16
A partir de articulações do ICMBio, diversos conselheiros do PARNA participaram dos ciclos de formação: em 2013-2015 do Programa de Formação Continuada em
Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental – PNGATI realizado em Boa Vista/Roraima e em Brasília/DF pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB,
apoio Fundação Gordon e Betty Moore) e em 2014-2015 do Curso Básico de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas no Rio Negro, Noroeste Amazônico
realizado em São Gabriel da Cachoeira/Amazonas pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN, apoio PDPI/MMA).
16
Aqui a palavra “vocês” é utilizada para representar os inimigos do Povo Yanomami.Durante a tradução e em conversas posteriores ficou claro que Tuxaua Carlos se
referia de forma abrangente aos inimigos, mas com especial atenção aos legisladores presentes em Brasília e que representam uma ameaça aos Yanomami. Nesse
sentido, as palavras foram direcionadas ao Presidente do ICMBio numa interpretação de que ele teria acesso a um diálogo direto junto a esses inimigos nas esferas
de poder existentes em Brasília.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Himou

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AS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE O PARQUE NACIONAL DE SAINT-HILAIRE/
LANGE E SUA ZONA RURAL DE ENTORNO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A GESTÃO

Campos, Larissa Aparecida de Paula1; Adriano, Ana Paula Pereira2 & Quadros, Juliana3

1. Universidade Federal do Paraná, larissacamposga@gmail.com; 2.anapaulapereira781@gmail.com 3. quadros.juliana@hotmail.com

Resumo
As áreas naturais protegidas têm o papel do conservar e proteger o meio ambiente para demais gerações, a partir disso, se anali-
sou as relações existentes entre o Parque Nacional de Saint- Hilaire / Lange, localizado no litoral do Paraná, e sua zona de entorno.
Trabalhando com os residentes das Colônias rurais e Conselheiros do Conselho Consultivo do Parque. Objetivou-se compreender
as perspectivas dos moradores sobre a criação/gestão da unidade de conservação (UC). Os procedimentos adotados foram en-
trevistas por meio de questionários semiestruturados. Concluiu-se que tanto os gestores do Parque como os residentes do entorno
demonstraram interesse em fornecer e obter esclarecimentos a respeito da UC. Portanto há um espaço propício para ações de
gestão participativa, atuando através da preservação ambiental com a participação social, para o desenvolvimento regional e uso
racional dos recursos naturais.

Palavras-chave: Gestão de Unidades de Conservação, Gestão Participativa, Parque Nacional de Saint Hilaire/Lange, Litoral do
Paraná.

Introdução
Na sociedade há sempre a busca pela revalorização das paisagens naturais, com a conservação e a preservação têm-se
a oportunidade de manejar e zelar pelos recursos naturais. Está intrínseca nessa busca o pertencimento e a retomada da relação
do homem com a natureza, que se transforma a partir do momento em que este passa a se sentir parte do meio ambiente e a
reconhecer que as paisagens mudam e se reconstroem. Neste âmbito, as Unidades de Conservação (UC) realizam o papel do
conservar e proteger o ambiente para as gerações atuais e futuras. Em vista disto, surge a necessidade de desenvolver um dia-
gnóstico das relações existentes entre o Parque Nacional de Saint-Hilaire/Lange (PNSHL), UC de proteção integral, e sua Zona
de Entorno (ZE), trabalhando especificamente com os moradores e com os conselheiros representantes no Conselho Consultivo
da UC, visto que se constitui em instância de consulta à comunidade.
O que norteia o presente estudo e objetiva-se com a busca da compreensão da relação homem-natureza, bem como o
seu pertencimento em determinado território, é a compreensão das suas inter-relações, além de apontar quais as perspectivas
dos moradores sobre a criação da UC para determinar quais foram e/ou são as influências da implantação desta no modo de vida
dos entrevistados, estando ou não inseridos nos limites do Parque. Com estes dados referendados e analisados se busca trazer
contribuições para a Gestão da Unidade a fim de aperfeiçoar as relações entre o PNHSL e sua ZE.
No âmbito metodológico dividiu-se a amostra dos entrevistados em dois grupos sendo um os Conselheiros e outro as
Colônias, ambos moradores das Colônias presentes na ZE do Parque. Esses grupos foram entrevistados por meio de questio-
nários semi – estruturados divididos em duas seções: 1) “dados gerais”, que correspondeu à idade, sexo, nível de escolaridade
e atividade produtiva (trabalho); 2) “relação”, que abordou a opinião do ator social quanto à importância da Colônia perante o
PNSHL, se possuía conhecimento sobre representantes locais em contato com a administração da UC (conselheiros), identifi-
cação de ações de aproximação por parte da UC com o entrevistado, participação em atividades promovidas pela mesma e o
nível de influência desta nas suas atividades diárias. No caso do conselheiro foram feitas perguntas sobre a divulgação realizada
pela UC das informações relativas às atividades e as reuniões promovidas pelo conselho, a importância do envolvimento e a
frequência com que participavam das reuniões, e se este sentia-se ouvido ao longo do processo e de que forma atuava de modo
a contribuir com a gestão da unidade.

05: Sistemas de Gestão e Governança


561
As áreas naturais protegidas e os territórios em transformação
Historicamente as áreas naturais protegidas (ANP) se originaram devido à concepção ligada à proteção de locais de
relevante beleza cênica. Segundo Diegues (s.d, p.3) se atribuiu certo valor simbólico a estas áreas, onde tais espaços “serviriam
também como locais selvagens, onde o homem pudesse refazer suas energias gastas na vida estressante das cidades e do
trabalho monótono”.
Conforme o World Wide Fund For Nature (WWF, 2008, p.6) “O surgimento do atual modelo de “áreas naturais protegidas”
ocorreu nos EUA, devido ao problema da grande expansão urbana e agrícola sobre as áreas naturais”, sendo marco a criação
do Parque Nacional de Yellowstone em 1872. Assim como afirmam Gonçalves & Hoeffel (2012) a criação de ANP tornou-se um
instrumento “geopolítico” de controle do território, este é objeto central de disputas orientadas pelos interesses decorrentes de
sua ocupação.
Entretanto, tal modelo de gestão foi incorporado aos demais países, com características biológicas, ecológicas, sociais,
culturais e econômicas diferentes. Afirma-se que o processo de instalação das ANP gerou, por outro lado a violação dos direitos
humanos de comunidades ao redor do mundo, sem ser realizada uma pré-avaliação do contexto social das áreas em questão.
Para se compreender os processos que se sucedem as áreas naturais protegidas remetemos a compreensão do que
seria governança ambiental, está corresponde a um processo de intervenção no controle do uso dos recursos, delineada como
elemento norteador das políticas públicas (CÂMARA, 2013). A definição do conceito de governança do Banco Mundial volta-se
para “a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos econômicos e sociais do país, com vistas ao desen-
volvimento”. (WORLD BANK, 1992 apud CÂMARA, 2013). No âmbito ambiental o Programa das Nações Unidas para o Meio Am-
biente (PNUMA), no Relatório Perspectivas do Meio Ambiente Global, definiu governança como sendo “a maneira e mecanismos
na qual a sociedade exerce controle sobre os recursos e o acesso a estes regulados” (UNEP, 2007). Deste modo, a incorporação
da temática ambiental está intrínseca nos movimentos sociais, empresas privadas, organizações ambientais, pesquisadores,
grupos da sociedade civil, instituições governamentais, políticos e outros (LITTLE, 2003).
Nos territórios permeados pelo sistema atual de governança, cada sociedade produz o seu (s) território (s) e territoriali-
dade (s) a seu modo, em consonância com suas normas, regras, crenças, valores, ritos e mitos nas suas atividades cotidianas,
cada combinação específica de relação espaço – tempo acompanha e condiciona os fenômenos e processos territoriais (SA-
QUET, 2013). Na concepção mítica das sociedades primitivas e tradicionais, existe a noção de “simbiose” entre o “homem” e a
natureza. Nesta acepção a instituição de ANP excludentes desses grupos sociais é incompreensível, sendo essa atitude vista pe-
los mesmos como uma expropriação de seu território (DIEGUES, s.d). A conceituação do território se compreende nas diferentes
escalas temporais, com caráter permanente ou transformando-se em elemento da natureza espacial criada pela sociedade, cujo
objetivo é lutar para conquistá-lo ou protegê-lo. Segundo Haesbaert (2009), a territorialidade seria um fator que influencia (in)
diretamente a comunidade. É o território cultural (ista) que ocorre quando os grupos sociais imprimem no território à identidade
dos que ali residem, tendo como produto a apropriação resultante do imaginário e/ou “identidade social sobre o espaço”. Neste
sentido não se separa a (i) materialidade do território revelando-se no olhar da compreensão através da relação intrínseca da
economia, política, cultura e natureza no processo de territorialização. As relações do território com a paisagem e a história elu-
cidam diferentes perspectivas de compreensão da identidade, elemento central na constituição do território e da territorialidade
(SAQUET, 2013).

O Parque Nacional de Saint - Hilaire/Lange (PNSHL)


O PNSHL foi criado pela Lei Federal nº 10.227, no ano de 2001, e é administrado pelo ICMBio. As UC que integram
o SNUC (Lei nº9985 de 2000) se dividem em dois grupos principais, “Unidades de Uso Sustentável e Unidades de Proteção
Integral”. O PNSHL contempla a categoria de “proteção integral”, estas são aquelas que têm por objetivo básico, preservar a na-
tureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, isto é, não envolve consumo, coleta, dano ou destruição
dos mesmos, com exceção dos casos previstos na Lei.
O Parque abrange os municípios litorâneos de Matinhos, Guaratuba, Paranaguá e Morretes e contempla as montanhas
do maciço Serra da Prata com regiões que variam de 10 metros sobre o nível do mar até altitudes superiores a 1.400 metros,
estando inserida na área da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e na Área de Proteção Ambiental Estadual de Guaratuba, cor-
respondendo a um dos trechos mais conservados do bioma (PNSHL, 2014). A área da Serra da Prata representa um dos últimos

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562
refúgios naturais da região, favorecendo a sobrevivência de espécies endêmicas e abrigando diversas espécies da flora e da
fauna ameaçadas de extinção (PNSHL, 2014).
A sua ZE, pra o presente estudo, se baseou na Resolução nº428/2010 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONA-
MA) que a classifica como “áreas limitadas administrativamente, condicionando o exercício do direito de propriedade ao cum-
primento da função ambiental, em concordância com a obrigatoriedade do proprietário em zelar pela proteção e pela conserva-
ção ambiental em prol do bem-estar da coletividade”. Esta resolução não nomeia a área delimitada administrativamente como há
diferentes denominações em outras legislações ambientais, ficando para este estudo a nomeação de Zona de Entorno, com fins
de caracterizar a região. A resolução do CONAMA se volta para o licenciamento ambiental de empreendimentos de alto impacto,
que perpassam a três mil metros (3 km) a contar dos limites das UC, sendo esta alteração válida apenas para UC que não possua
Plano de Manejo no momento da criação desta resolução, que corresponde ao caso da UC estudada.
O PNSHL possui como objetivos a proteção e conservação dos ecossistemas de Floresta Atlântica existentes no local, e a
garantia da estabilidade ambiental dos balneários próximos, bem como também, da qualidade de vida das populações costeiras
da região (Lei nº 10.227, 2001). A ZE do Parque exerce papel fundamental no alcance dos objetivos de proteção e manutenção
da integridade biológica da área.
O conselho consultivo do PNSHL foi criado pela portaria nº 37 de 25 de junho de 2008 (BRASIL, 2008) com a finalidade
de contribuir com o alcance dos objetivos da UC. Os representantes das Colônias, objeto deste estudo, totalizam 17 indivíduos
caracterizados entre titulares e suplentes, definidos da seguinte forma: Colônia Cambará (Matinhos); Colônia Morro Inglês e
Colônia Taunay (Paranaguá); Colônia Santa Cruz (Paranaguá); Colônia Quintilha (Paranaguá); Colônia Maria Luiza (Paranaguá)
e por fim Colônia Pereira (Paranaguá, Matinhos e Pontal do Paraná) (PNSHL, 2015).
A UC detém 24.485,71 hectares, mas atualmente se encontra em processo de redefinição de limites, conforme Nota Téc-
nica nº 05 de 2013 que faz parte do processo de nº 02001.005621/2003-56. Há dentro dos limites do PNSHL, 183 áreas edificadas
e 100 áreas com moradores permanentes; com a mudança dos limites, passaria para 32 e 10, respectivamente. Algumas regiões
não terão os limites modificados por terem propriedades em regiões de risco de deslizamentos, cujo Ministério Público pontua
o reassentamento por situação de vulnerabilidade. O limite do Parque após a redefinição passaria para 24.166,17 ha, excluindo
1,3% da área atual.

Objeto de estudo
A amostra contemplada, como anteriormente citada, trata-se dos moradores das Colônias presentes na ZE da face leste
do PNHSL e respectivos representantes no Conselho Consultivo. As Colônias são: Maria Luiza, Taunay/Morro Inglês, Quintilha,
Santa Cruz, Pereira e Cambará, as quais perpassam a rodovia PR 508, conhecida popularmente como “Alexandra - Matinhos”,
caracterizada como área rural. A definição dos entrevistados ocorreu através de escolha aleatória de, no mínimo, dois represen-
tantes de cada Colônia, totalizando 18 entrevistados, além dos 12 conselheiros, gerando um total de 30 entrevistas.
A Colônia Pereira, se localiza nos Municípios de Paranaguá, Matinhos e Pontal do Paraná e a Colônia Cambará na área
rural de Matinhos. As demais Colônias estão presentes na zona rural de Paranaguá, que abriga cerca de seis Colônias agrícolas
fundadas no início do século XVII, segundo dados da Motirõ Sociedade Cooperativa (2015), que desenvolvem atividades nesta
localidade. Há na região da referida estrada aproximadamente 1.555 pessoas em 322 domicílios, o que representa 31% do total
da população rural de Paranaguá (5.083 hab). Destaca-se como produção agrícola local o cultivo da banana, arroz, mandioca,
hortaliças e pecuária de subsistência. Esta produção é geralmente comercializada em feiras na região urbana de Paranaguá e
Matinhos, o que corresponde à arrecadação econômica destas famílias (MOTIRÕ, 2015).

Resultados
Com relação à primeira categoria de respostas, correspondente aos dados gerais, observou-se que do total de entrevis-
tados (30), 57% (17) eram do sexo masculino e 43% (13) feminino. A idade que os moradores entrevistados ZE do Parque detêm,
tabulado em categorias de 10 em 10 anos, prevaleceu pessoas de terceira idade entre a faixa etária de 51 a 60 (10%), 61 a 70
anos (23%), seguida por aqueles que possuíam entre 71 a 80 anos com 20%, totalizando a soma destes em 53% pertencentes à
melhor idade.
Fez-se pertinente também observar o nível de escolaridade dos moradores entrevistados do PNSHL, que se destaca

05: Sistemas de Gestão e Governança


563
37% (11) que possuíam apenas o ensino fundamental I (1º a 4ª série), seguidos por aqueles que haviam iniciado ou concluído o
ensino médio, correspondentes a 33% (10) da amostragem. Foi observado que 20% (6) detêm formação completa ou incompleta
do ensino superior predominando esta representatividade para os entrevistados do grupo dos conselheiros.
Com relação às atividades produtivas exercidas por eles, a de maior relevância é a voltada para a utilização dos recursos
naturais (57% - 17), dentre estas estão atividades de agricultura, roça e agroindústria. Outro dado expressivo diz respeito aqueles
que exercem a atividade de dona de casa (17% - 5), seguido de 10% (3) que são funcionários públicos, e 10% (3) que são apo-
sentados.
Na segunda categoria, correspondente a vertente que observa a relação dos entrevistados do grupo Colônias com a
Gestão da UC, na tabela 1, as expressividades se voltam para o sentido de que 24% dos entrevistados disseram que a Colônia
local não é importante frente à Gestão do Parque, tais como representantes das Colônias Pereira e da Maria Luiza, esta última
se destaca por ser o ponto de menos tensão e relação com o Parque. Outro dado se refere aos moradores que se sentem como
“chave” para auxiliar no cuidado e na conservação do local, identificados como agentes ambientais. Estes correspondem a 24%,
e são pertencentes às Colônias da Quintilha, do Morro Inglês e Taunay, locais os quais possuem uma tensão expressiva com o
Parque.

Nos questionários houve a ocorrência de perguntas que se inter-relacionavam na abrangência da relação entre a Colônia
e o PNSHL. Sendo elas: a questão denominada R2 sobre conhecimento de representante que tinha contato com a gestão do
Parque, onde 55% não conhecem os representantes da sua própria Colônia. Na pergunta R3 sobre se algum representante ou
técnico do Parque já havia entrado em contato com o entrevistado, 89% responderam que não. Com relação ao questionamento
da R6 se o entrevistado já participara de alguma atividade promovida pelo Parque 77% disseram que não.

A pergunta R4 é relacionada com uma situação hipotética, em caso dos entrevistados ficarem sabendo que represen-
tantes ou técnicos do PNSHL estariam para visitar suas propriedades. Estes deveriam indicar o provável motivo para que tal
ocorresse. Se expressou nesta questão que 56% seria para prestar informações, orientações ou esclarecimentos.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Quando se relacionou a influência que a UC exerce na atividade produtiva dos entrevistados (pergunta R5) a expressivi-
dade foi que 44% consideram que não há nenhuma influência em suas atividades.

No âmbito dos questionários aplicados aos Conselheiros, na relação dos mesmos se destaca a questão R1 cuja pergunta
correspondente tratava-se da influencia do Parque na atividade produtiva do entrevistado, destes 58% afirmaram que não, conforme
Tabela 5.

Quando se relaciona a referida situação hipotética de visita, o dado que mais expressivo foi que 75% crêem que a visita se-
ria também para orientar, esclarecer ou prestar informações sobre o PNSHL ou sobre as limitações que estão sujeitos na região.

Como está em análise a representatividade dos entrevistados perante o Conselho Consultivo do Parque, bem como
em suas respectivas Colônias, coube perguntar se o conselheiro é informado das atividades e reuniões que o Parque promove

05: Sistemas de Gestão e Governança


565
(Questão R3). Destes, 92% disseram que sim. Relaciona-se esta questão a R5 que volta para a freqüência de participação dos
conselheiros nas atividades. Destes, 83% sempre buscaram freqüentar as reuniões. Os que apontaram que nunca participaram
são por não possuírem interesse, sendo representantes da Colônia Santa Cruz e Maria Luiza.

Perante o Conselho Consultivo do PNSHL, os Conselheiros quando indagados da importância de sua participação nesta
instância de consulta na questão R4, 83% sentem que são importantes. Este dado se reflete na pergunta R6, correspondente a se
o Conselheiro sente-se “ouvido” nas reuniões e 67% disseram que sim, o que não acarreta necessariamente a representatividade
perante as Colônias.

Os Conselheiros são líderes comunitários, por assumirem o papel perante a sociedade de representar o interesse comum
das Colônias, estes devem exercer certas ações e atuações para de fato gerar a representatividade. A partir destas ações, é im-
portante observar e questionar os entrevistados quais seriam as ações ou atuações que podem vir a contribuir com a gestão do
Parque. Em suma, 41% dos Conselheiros caracterizam como ação a participação social deles frente à comunidade. As demais
categorias apresentadas serão explanadas na seção “discussão”

Discussão
Ressalta-se, nos apontamentos pertinente ao grupo Colônias, que na ZE se faz necessário ter uma maior aproximação
entre a equipe gestora do Parque e as Colônias. Através dos dados obtidos a aproximação existente não ocorre de uma forma
satisfatória, como em alguns casos, que foi aplicada multas antes do repasse de informações, como afirmaram 16% (5). Na
região há a atuação de orgãos governamentais além do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio),
como a Polícia Ambiental, Instituto Ambiental do Paraná (IAP) e o Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
566
(EMATER). Há a percepção de que a atuação da Polícia Ambiental é bastante recorrente na região, principalmente nas Colônias
Pereira, Quintilha, Morro Inglês e Taunay. Segundo Teixeira & Limont (2007) a atuação desta tem sido contundente em diversas
regiões por se tratar normalmente de comunidades ribeirinhas, tradicionais, rurais, agricultoras o que demonstra a falta de sen-
sibilidade perante a estes núcleos populacionais diferenciados, que não se encaixam no atual modelo capitalista. Este grupode
fiscalização se encontra em processos de readequação para a aproximação com os núcleos populacionais do qual tratamos
conforme se explanou na última reunião (abril/2015) do Conselho Consultivo do PNSHL.
Neste âmbito cabe salientar a respeito da promoção e incentivo ao desenvolvimento socioambiental das Colônias que o
PNSHL busca promover através de parcerias com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor Litoral, organizações não go-
vernamentais e órgãos públicos. No âmbito das ONGs há a Motirõ que executa um trabalho junto às Colônias no que se refere ao
desenvolvimento econômico das propriedades agrícolas empreendedoras. Nas instituições públicas atuantes estão a EMATER e
a EMBRAPA, ambas perpassando os trabalhos voltados à agricultura. A primeira realiza o fomento dos processos de agricultura
orgânica e a segunda refere-se ao manejo e cultivo do fruto da Palmeira Jussara, bem como dos sistemas agroflorestais.
Portanto, se observa neste território diversos atores atuantes, e a Gestão do Parque volta-se para acompanhar, promover,
incentivar, colaborar e fomentar os projetos das instituições voltadas à sustentabilidade, utilizando o conselho e o espaço pro-
movido pelo mesmo, além de serem consideradas as demandas das comunidades. Na vertente do Conselho Consultivo os
representantes de cada Colônia trazem as demandas pertinentes ao local. Neste âmbito, citam-se como exemplo, proprietários
externos aos limites da Unidade que foram auxiliados no preenchimento do formulário do cadastro ambiental rural (CAR). Outro
exemplo é a orientação e incentivo junto aos proprietários para o manejo correto das trilhas na Colônia Quintilha. Desta forma,
conforme se explanou em entrevista com a equipe gestora, esta se envolve nas problemáticas locais diretamente ou indireta-
mente acionando os outros orgãos pertinentes para a promoção da melhoria da qualidade de vida desta população.
Correlacionando as mudanças que a criação do PNSHL trouxe para a região e a atividade produtiva, os moradores locais
e os Conselheiros relataram que estas ocorrem para aqueles que trabalham e retiram o sustento da lida com a terra, com o ter-
ritório e que exprimem sua identidade de cultura na forma de relacionar-se com o próximo, com o cultivo, a agricultura, etc. Em-
bora, o que acaba por influenciar também a atividade produtiva e a representatividade trata-se da questão dos limites do Parque,
representando 13% (4) da amostra os moradores inseridos nos limites da UC, incluindo conselheiros. Este dado acarreta a
percepção do questionamento se estes estão de fato representando a Colônia a qual fazem parte ou os seus próprios interesses.
É notório no presente estudo que a representatividade exercida pelos Conselheiros não atinge todos os envolvidos. Na
questão que relacionava se o entrevistado conhecia algum representante da Colônia, 10 dos 18 entrevistados (55%) disseram que
não, mas quando se relatava o nome do Conselheiro, se lembravam de quem se tratava, porém não sabiam do seu papel atuante
no Conselho Consultivo. Os que afirmaram conhecer foi por se tratar de pessoa pertencente à família, ou em alguns casos per-
tencente ao comércio local. Outro dado relevante é que a Universidade exerce um papel de ator social perante as Colônias, pois
é conhecida pelas atividades realizadas na região com os projetos de extensão. Outra observação a se fazer é o papel que as
Prefeituras deveriam exercer, sendo estas componentes importantes, como um mediador das tensões locais existentes, visto que
um dos entrevistados, parte do corpo de trabalho da prefeitura de Matinhos, não detinha conhecimento sobre o Parque.
Conforme a Instrução Normativa nº 09 de 2014 (ICMBIO, 2014) sobre o Conselho Consultivo do PNSHL em seu artigo 3º
Inciso II, a respeito de “criar câmaras ou grupos temáticos para análise e encaminhamento de especificidades da unidade (...)”,
implementou-se uma câmara técnica para a realização da comunicação perante as comunidades do entorno. Ressalta-se que o
Parque inclui quatro municípios e sua extensão territorial é altamente abrangente, o que influencia na comunicação. Este ques-
tionamento torna-se relevante por haver a necessidade, por parte dos moradores, de maiores esclarecimentos, orientações e
informações sobre o PNSHL, bem como sobre suas ações e como devem agir para com o MA, o qual se evidenciou nas questões
quanto a “relação” R4 dos Colonos e na R2 dos Conselheiros.
Conforme explanado sobre a representatividade dos Conselheiros, a visão dos atuantes na Gestão do Parque evidencia
que desde o seu início até o momento houve uma evolução, cuja dificuldade é a de trazer os moradores para participar ativamente
das atividades por conta do cotidiano e da atividade produtiva destes, pontuando que o diálogo entre as Colônias é esparso.
Os moradores da região, quando não há uma relação, acabam por não se sentirem parte do “TODO”, isto se demonstra
quando questionados sobre se a Colônia a qual pertencem é importante perante o PNSHL, e surgiu que 24% não viam a Colônia
como importante (Maria Luíza e Santa Cruz). Já outros 24%, das Colônias Quintilha, Morro Inglês e Taunay, se identificam na

05: Sistemas de Gestão e Governança


567
relação como possíveis “agentes ambientais”. Ou seja, através dos moradores da região estes poderiam atuar em conjunto com
a Gestão do Parque. Com relação aos conselheiros, os que se viam importantes nos processos de decisões, perante o Conselho
Consultivo, correspondiam 83%. Destes, dois representantes não se sentiam mais pertencentes ao Conselho e demonstraram
não ter vontade de continuar a representar as Colônias.
Tanto os moradores das Colônias como os Conselheiros da Unidade, são essenciais como agentes ambientais, caracteri-
zados conforme a normativa revogada do IBAMA nº 66 de 2005, a qual tinha dentre os objetivos, capacitar os moradores abarca-
dos nas UC com o intuito de auxiliar na gestão e manejo da área, bem como na fiscalização e resolução de possíveis conflitos.

Conclusões e Contribuições para a gestão


A participação se torna um processo social de interação entre os diferentes atores envolvidos nos processos de manejo e
cuidados para com o meio ambiente, é um exercício da cidadania, por demonstrar a responsabilidade que detém perante assun-
tos pertinentes. Esta noção nos trás a “gestão participativa”, que busca a interação para a tomada de decisões, a qual se constrói
com o grupo representante social através de um processo participativo impulsionado pela Gestão da Unidade.
A gestão participativa é um instrumento que corrobora com os principais objetivos dos conselhos gestores de UC, tais
como: a democratização da gestão do território (e de seus recursos naturais) e a resolução de potenciais conflitos socioambi-
entais. Trata-se, conforme citado pelo autor Orlando (2015), de uma governança ambiental local, produto de um desempenho
institucional dos espaços de decisão, alimentado pelas redes sociais que se alicerçam na confiança, cooperação e reciprocidade
entre os envolvidos. Para esta gestão ocorrer destaca-se o modo como a informação circula entre os indivíduos e a divulgação
para o público externo, ampliando assim as redes de atuação. Desta forma, o envolvimento da população local é um elemento
que se faz necessário para a incorporação das estratégias de manejo na conservação (PRIMACK; RODRIGUES, 2001).
Cabe-se aqui pontuar acerca do Conselho Consultivo do Parque, por ser a principal instância de participação no que
tange as Colônias. Este se dividiu em câmaras técnicas, cujas metas de aproximação são: divulgação das ações do Parque bem
como do Conselho perante a sociedade; desenvolver atividades de aproximação com o entorno em conjunto com a Universidade
através dos cursos de Gestão Ambiental e Serviço Social; divulgar a unidade e dar mais visibilidade a mesma. Para alcançar estas
metas, se propõe no desenvolver das atividades abarcarem os representantes atuantes/líderes perante as comunidades de forma
integral, com que eles tenham maiores interesses de participação e representação. O que se percebe é que estes acabam por
levar os seus interesses ao invés de focar nas coletividades propriamente ditas, além de haver o descrédito perante as atividades
desenvolvidas, e também se tratar em sua maioria (53%) de pessoas da terceira idade (faixa etária entre 50 a 80 anos), o que
acarreta o problema intrínseco nas Colônias que é o afastamento da juventude local.
A aproximação pode ser através dos próprios moradores, tal como um que pontuou nas entrevistas que a Colônia “ajuda
a dar visibilidade ao Parque” pelas atrações turísticas naturais que detém. Este é um potencial da Unidade, o que pode com a
capacitação dos moradores os colocarem no circuito de guias turísticos, gerando renda aos mesmos e aproximação com o local,
acentuando o sentimento de pertencimento e de identidade para com a unidade e a natureza que fazem parte com o meio em
que vivem como os mesmos se colocam.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


569
RELAÇÕES ANTAGÔNICAS E SOBREPOSIÇÕES NA APA DE GUARAQUEÇABA:
UM PANORAMA DO CONFLITO SOCIOAMBIENTAL

Sibuya, Nathalia de Jesus¹ & Denardin, Valdir Frigo²

1. Mestranda do PPG em Meio Ambiente e Desenvolvimento / Universidade Federal do Paraná, nathsibuya@gmail.com; 2. Professor do PPG
em Meio Ambiente e Desenvolvimento / Universidade Federal do Paraná, valdirfd@yahoo.com

Resumo
O modelo de ‘desenvolvimento’ vigente baseado somente no crescimento econômico, na lógica urbano - industrial e na moder-
nização social como única via de progresso, evidencia um modelo exploração nacional e global, gerador de conflitos socioambien-
tais. O Litoral do Paraná se apresenta como uma região potencial para os estudos em conflitos socioambientais, especialmente o
município de Guaraqueçaba. O presente artigo tem como objetivo compreender os conflitos socioambientais existentes na APA de
Guaraqueçaba e colocar em pauta a luta por um sentido aos recursos naturais e ao modo de vida das comunidades tradicionais. A
metodologia utilizada foi à pesquisa bibliográfica e documental, a pesquisa qualitativa e a utilização do geoprocessamento. A com-
preensão dos conflitos socioambientais permite elucidar os diferentes projetos de sociedade e visões de mundo de um território.

Palavras-chave: Conflitos Socioambientais, Unidades de Conservação, APA de Guaraqueçaba, Comunidades.

Introdução
O modelo de ‘desenvolvimento’ baseado essencialmente no crescimento econômico, na lógica urbano-industrial e na
modernização social como via única de progresso, evidencia um processo na qual as economias periféricas, os chamados
países do Terceiro Mundo, vivenciam o agravo das disparidades internas à medida que reproduzem o estilo de vida da raciona-
lidade produtiva dominante e possuem uma dependência deste sistema global (FURTADO, 1974; SEN 2000; LEFF, 2009).
O economista brasileiro Furtado (1974), em sua obra ainda muito atual - O mito do desenvolvimento econômico - faz uma
reflexão teórica, e afirma que o subdesenvolvimento está principalmente atrelado a heterogeneidade tecnológica que revela a
essência das relações externas deste tipo de economia. O autor salienta que acreditar na condição de igualdade entre as econo-
mias periféricas e as economias do centro atual do sistema capitalista é um mito, já que não se sustentaria ecologicamente, e a
permanência nesta lógica implica na degradação ambiental que pode levar a um colapso ambiental e um processo de exclusão
social acentuado.
Na década de 70, a emergência da crise ambiental global irá suscitar questionamentos em relação à sustentabilidade do
sistema de desenvolvimento econômico adotado para a garantia da sobrevivência humana. Para Leff (2009) a crise ambiental é a
crise dos recursos, a crise do conhecimento e da ciência, a crise das civilizações que coloca em ênfase a apropriação capitalista
da natureza por meio do modelo técnico-instrumental dos países desenvolvidos, se manifesta não só na degradação do meio
físico e biológico, como na alteração da qualidade de vida.
As conferências realizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e as publicações de denúncias e informes
científicos incorporaram ao conceito de desenvolvimento outras dimensões, especialmente a dimensão ecológica, suscitando o
debate pelo desenvolvimento sustentável. A participação do governo e do movimento ambientalista brasileiro nas conferências
realizadas pela ONU, motivou à instituição gradual de agências ambientais no Brasil, fazendo o Estado o agente protagonista na
formulação e implementação de políticas e práticas de gestão ambiental no país (LIMA, 2011).
Todo esse panorama, somado ao avanço das frentes de expansão territorial e a exploração desenfreada dos recursos na-
turais sobre os diferentes biomas, induziu a crescente criação de áreas protegidas sob a influência do modelo norte-americano,
eminentemente de concepção preservacionista, sem a participação pública e sem o devido planejamento no que tange a gestão.
A transição para um governo democrático alavancou a dinâmica dos movimentos sociais, em especial no âmbito do
mundo rural, neste período havia diversas lutas que se caracterizavam lutas por justiça ambiental, mas os movimentos ainda não
se autodenominavam desse modo. Destaca-se o Movimento dos Seringueiros liderados pelo Chico Mendes e o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB) ambos iniciados em meados da década de 70, o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra

05: Sistemas de Gestão e Governança


571
(MST) na década de 80, e o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) em 1995.
Estes atores irão assumir um papel fundamental na resistência ao modelo dominante, questionando os projetos de desen-
volvimento e as políticas ambientais governamentais aplicadas. São portadores de uma racionalidade ambiental que manifesta
uma vontade concreta de transformação das relações de produção e das relações sociedade-natureza (LEFF, 2009; GERHARDT;
MAGALHÃES; ALMEIDA, 2012).
Dentro desta perspectiva, a explosão dos conflitos socioambientais é uma das consequências do modelo adotado de
desenvolvimento econômico global e nacional, uma vez que o desenvolvimento em seu sentido real não deveria ser gerador de
conflitos e injustiças. O conceito de conflito socioambiental adotado tem como base o campo de discussões teóricas e políticas
da ecologia política, que se consolidou principalmente após os anos 80, após a próspera articulação entre movimentos ambien-
talistas e sociais (FIRPO; ALIER, 2007).
O presente artigo se propõe em seu objetivo geral compreender os conflitos socioambientais existentes, em comuni-
dades rurais inseridas na APA de Guaraqueçaba, e também coloca em pauta a luta por um sentido aos recursos naturais e ao
modo de vida das comunidades tradicionais. O trabalho está vinculado à pesquisa de mestrado em andamento, da linha de
Ruralidades, Ambiente e Sociedade (RAS) do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE),
da Universidade Federal do Paraná. Portanto, é importante salientar que os resultados aqui apresentados são parciais, podendo
ser complementados posteriormente.
O Litoral do Paraná se apresenta como uma região potencial para os estudos de conflitos socioambientais, uma vez que
se encontra condicionada em uma dualidade, onde de um lado é rica no cenário natural, é um dos remanescentes florestais
contínuos de Mata Atlântica considerada um hotspot mundial, e de outro lado é frágil nas condições socioeconômicas de sua
população local. O município de Guaraqueçaba é significativo neste cenário, devido a maior parte de sua extensão ser coberta
por Unidades de Conservação de diferentes categorias de uso e esferas governamentais, sobrepondo diversas normatizações, o
que favorece a constituição de uma arena de conflitos socioambientais que perduram até a atualidade.

Metodologia
No presente trabalho, a autora optou pelo Litoral do Paraná, na APA de Guaraqueçaba, como área de estudo para com-
preender os conflitos socioambientais. O critério de escolha levou em conta o perfil de cada município e quais teriam mais
probabilidade de abarcar maiores conflitos socioambientais no ambiente rural, devido a fatores como: presença e localização de
unidades de conservação, fragilidade socioeconômica, presença de populações tradicionais e da agricultura familiar, acesso aos
recursos naturais. Dentro deste contexto, se destaca quatro comunidades estudadas: o Acampamento do MST José Lutzemberg
no Rio Pequeno, Potinga, Açungui e Batuva.
O método empregado para o levantamento de informações foi à pesquisa bibliográfica e documental, a pesquisa qualita-
tiva e a utilização do geoprocessamento.
A pesquisa bibliográfica e documental consiste numa seleção de materiais diversificados, que tenham pertinência com o
problema da pesquisa, o que permite conhecer o que já foi estudado sobre o tema em questão (GERHARDT; SILVEIRA, 2009).
Nesta fase foram selecionados principalmente artigos científicos e demais documentos que abordavam: a categoria conflitos
socioambientais; os dados sociais, econômicos e ambientais, e também o histórico de uso e ocupação das localidades - Litoral
do Paraná, em especial Antonina e Guaraqueçaba.
O geoprocessamento foi aplicado na elaboração de mapas para a espacialização das informações, também foram utiliza-
dos estes mesmos dados acima citados, e os shapefiles disponíveis no site do IBGE, e o software de sistemas de informações
geográficas Gvsig.
A pesquisa qualitativa assimila um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam traduzir e expressar o sentido
dos fenômenos do mundo social, nesta abordagem valoriza-se o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente
estudado, e a descrição é um componente de destaque (GODOY, 1995; NEVES, 1996).

Caracterização do Litoral do Paraná


O Litoral do Paraná localiza-se no extremo leste do estado do Paraná, próximo a capital - Curitiba, entre os paralelos 25° e
26° de latitude sul e 48° e 49° de longitude oeste, no sul do Brasil. A planície litorânea se estende desde o sopé da Serra do Mar até

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o oceano, é classificada em três tipos principais de costas - costas estuarinas, costas de mar aberto e costas de desembocadura -
tem aproximadamente 90 km de comprimento, cerca de 10 a 20 km de largura e atinge o máximo de 50 km na baía de Paranaguá.
É recortada pelos complexos estuarinos das baías de Paranaguá, Laranjeiras, Pinheiros e Guaratuba, resultando em numerosas
ilhas, algumas de grande extensão, como as ilhas das Peças, Rasa, do Mel, da Cotinga e Rasa da Cotinga (BIGARELLA, 2001;
ÂNGULO et al., 2006).
Inserido integralmente em um dos remanescentes florestais do bioma Mata Atlântica, que figura entre os cinco primeiros
biomas no ranking dos hotspots mundiais em virtude de sua relevância biológica, sociobiodiversidade e por se encontrar alta-
mente ameaçado no planeta (CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL, 2005), considerado área prioritária para a conservação da
biodiversidade (MMA, 2007). Segundo, o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, relatório técnico publicado pela
Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais em 2015, o estado do Paraná é o segundo estado com
maiores extensões de vegetação de mangue (33.403 ha) e restinga (99.873 ha) na Mata Atlântica.
É composto por sete municípios: Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal do
Paraná; totalizando uma área de 6.058 km² e 265.392 habitantes (IBGE, 2010).

Figura 1. Localização dos municípios do Litoral do Paraná


Fonte: Governo do Estado, 2015.

Respectivo ao histórico de ocupação, o litoral paranaense foi primeira região colonizada no estado do Paraná, os estudos
comprovam que o primeiro habitante foi o homem do sambaqui que mais tarde foi extinto, aqueles que hoje denominamos como
“caiçara”, são frutos do processo de colonização da costa brasileira no século XVI, da miscigenação de europeus, escravos
africanos, e índios carijós, pertencentes a grande família Tupi-Guarani (BIGARELLA, 1999; KOMARCHESKI, 2012). Segundo Die-
gues (2001), as práticas, o modo de vida tradicional dos caiçaras e o isolamento territorial, foi o que possibilitou a conservação
dos remanescentes de Mata Atlântica que restaram no Litoral do Paraná e no Litoral sul de São Paulo.

05: Sistemas de Gestão e Governança


573
Os municípios que compõe o litoral paranaense possuem características e peculiaridades diversas, conforme os dados
do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil em 2013, as localidades de Guaratuba, Matinhos, Paranaguá e Pontal do Paraná
são as mais populosas e com maior grau de urbanização, possuem razoável renda per capita, altos índices de desenvolvi-
mento humano municipal e são menos favoráveis a pobreza; contudo, as localidades predominantemente rurais, como Antonina,
Guaraqueçaba e Morretes são as que detêm os piores índices.
As principais atividades econômicas estão centralizadas no setor industrial e de serviços, o industrial concentra-se ba-
sicamente em Paranaguá, devido à relação com o Porto, que entre período de 2001 a 2009, movimentou aproximadamente 5%
do total de cargas movimentadas no país (ZEE, 2012). O porto de Paranaguá é substancialmente um exportador de granéis, em
especial granéis sólidos, e representa grande importância no cenário econômico e político do estado do Paraná.
O turismo e a preservação ambiental também são atividades relevantes na região, posto que são responsáveis pela
geração de um conjunto de outros serviços. A agropecuária e a pesca tem pequena contribuição financeira comparada a outras
atividades citadas acima, embora sejam atividades extremamente ligadas à sobrevivência e segurança alimentar da população
(EMATER, 2014).

As Unidades de Conservação no Litoral do Paraná


O processo histórico de criação de Unidades de Conservação (UC) evidencia a influência do modelo norte-americano
nos países em desenvolvimento, inclusive no Brasil, baseado na noção de “wilderness”, onde a natureza é vista como intocada,
sem a interferência humana, reforçando a dicotomia entre o homem e a natureza.
No Litoral do Paraná, as primeiras áreas protegidas foram estabelecidas na década de 80, após o tombamento da orla
de Matinhos, da Ilha do Mel e a criação da Área de Especial Interesse Turístico (AEIT) do litoral, esse cenário foi motivado por
algumas conjunções que favoreceram o acontecimento.
A conjuntura nacional neste período se caracterizava pelo alto índice de novas UC, devido à influência da crise ambiental
global que impulsionou a discussão sobre a incompatibilidade dos processos convencionais de crescimento econômico e a
manutenção dos recursos naturais para a garantia da sobrevivência da espécie humana; e da construção da política ambiental
brasileira que estruturou as agências nacionais, direcionou políticas públicas e criou novas legislações.
Na conjuntura local, os diversos ciclos econômicos moldaram as unidades de paisagem e refletiram na degradação de
parte dos ecossistemas, mas sem alterações expressivas. Contudo, ainda que houvessem várias áreas significativas preser-
vadas, a situação do bioma Mata Atlântica no estado do Paraná era crítica, principalmente em razão da expansão das fronteiras
agrícolas, grande parte da cobertura vegetal original foi desmatada, restando poucos fragmentos e conduzindo a criação das
UC (FILHO, 2010).
As unidades eram constituídas sem qualquer planejamento relativo à gestão, sobretudo no processo de consulta pública
a população local do entorno, que muitas vezes era inexistente ou realizado de modo inadequado, gerando diversos conflitos que
perduram até a atualidade.
Somente no ano de 2000, sessenta e três anos depois da criação da primeira área protegida no Brasil – o Parque Nacio-
nal de Itatiaia em 1937 no Rio de Janeiro – que o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), Lei n° 9.985/2000, foi
aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro com o intuito de potencializar o processo de planejamento e gestão das unidades
de conservação, de modo integrado, propiciando a conservação dos ecossistemas e da sociobiodiversidade (MMA, 2015).
A normatização do SNUC ampliou formalmente a participação social nos processos decisórios, especialmente por meio
de três instrumentos: as consultas públicas, os planos de manejo e os conselhos gestores. Todavia, no campo prático, a norma-
tiva não teve aplicação plena no contexto do litoral paranaense, em razão da precariedade na gestão e manejo dessas UC, uma
vez que, a maioria não tem funcionários e verbas suficientes, conselho gestor atuando de modo ativo e participativo, e plano de
manejo finalizado.
No Paraná, a criação do ICMS Ecológico (Lei Complementar Estadual nº 59 de 1991, regulamentada pelo Decreto Esta-
dual n°974/91 e reformulada pelo Decreto Estadual n°2.791/96) possibilitou que a conservação ambiental pudesse trazer retorno
econômico aos municípios que apresentam UC em seu território ou que sejam diretamente influenciados por elas e manan-
ciais de abastecimento público. No estudo de Denardin et al (2008), é apontado que todos os municípios do litoral paranaense
recebem o benefício ecossistêmico, em alguns municípios o valor recebido chegou a ser equivalente ou superior aos repasses

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
574
de verba do Governo Estadual, entretanto os autores ressaltam que a maioria da população desconhece a existência dos créditos
recebidos e ainda existem muitos questionamentos relativos ao destino destes recursos.
No panorama atual, o litoral apresenta 76,84% de sua área ocupada com mata nativa em fase de regeneração em áreas
protegidas ou não (EMATER, 2014). O território é coberto por um mosaico de Unidades de Conservação, comporta categorias
de Uso Sustentável e Proteção Integral - em âmbito federal, estadual, municipal e privado. Na totalidade existem em âmbito es-
tadual 10 UC de proteção integral e 13 de uso sustentável, e em âmbito federal 6 UC de proteção integral e 6 de uso sustentável
(IAP, 2006; ICMBIO, 2015).
A política ambiental na região é marcada por uma sobreposição de legislações incidentes decorrentes das especifici-
dades das unidades territoriais e do controle do uso dos recursos naturais, o que dificulta a gestão do território de modo inte-
grado, podendo recair sob um mesmo recorte espacial além dos instrumentos específicos das UC como o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação - SNUC e o plano de manejo (quando existente), a Lei da Mata Atlântica, a Lei de Proteção a Fauna,
o Código de caça e pesca, o Código Florestal, o Código de Águas, o Plano Diretor, o Zoneamento Ecológico Econômico, entre
outros dispositivos (MIGUEL et al., 1998; SCHWARTZMAN; SIBUYA 2013).
Assim, mesmo com o devido conhecimento da importância do bioma Mata Atlântica no contexto nacional e mundial, a
criação de inúmeras áreas protegidas não pode ser assegurada uma condição de proteção efetiva das características naturais
e da sociobiodiversidade, tendo em vista que, essas áreas se caracterizam pela precariedade e falta de gestão e manejo; e o
Litoral do Paraná têm sido especulado como um novo pólo industrial, oferecendo, inclusive incentivos fiscais (Decreto Estadual
9.195/2010) para a instalação de novas empresas do setor naval na região, colocando em risco a integridade dos remanescentes
florestais naturais.

A APA de Guaraqueçaba e suas relações antagônicas


A Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba está localizada no litoral norte do Paraná, abrange todo o mu-
nicípio de Guaraqueçaba, parte de Antonina, Paranaguá e Campina Grande do Sul, perfazendo uma área de 282.444 hectares.
No território existem aproximadamente 55 comunidades distribuídas em seu território, com uma diversidade cultural e étnica,
entre agricultores familiares, pescadores artesanais, indígenas, quilombolas e trabalhadores ligados ao Movimento Sem Terra
(MST). A região é predominantemente rural, suas principais atividades econômicas são a agricultura, a pecuária, a silvicultura, a
exploração florestal e a pesca. O cultivo agrícola é baseado principalmente em banana, palmeira real, mandioca e arroz.
A criação da APA de Guaraqueçaba ocorreu em 31 de Janeiro de 1985 pelo Decreto nº 90.883 do Governo Federal, com o
intuito de assegurar a proteção das últimas áreas representativas da Floresta Pluvial Atlântica, onde se encontram espécies raras
e ameaçadas de extinção, o complexo estuarino da Baía de Paranaguá, os sítios arqueológicos (sambaquis), as comunidades
caiçaras integradas no ecossistema regional, bem como controlar o uso de agrotóxicos e demais substâncias químicas e esta-
belecer critérios racionais de uso e ocupação do solo na região. No interior da mesma estão presentes outras categorias de UC
como: a ESEC (Estação Ecológica) de Guaraqueçaba, o PARNA (Parque Nacional) do Superagui, a REBIO (Reserva Biológica)
Bom Jesus e as RPPNs (Reserva Particular do Patrimônio Natural).
O Estado do Paraná, através do Decreto 4.262, foi o primeiro no Brasil a instituir a categoria de manejo de Unidade de
Conservação denominada Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) no ano de 1994. A Sociedade de Pesquisa em Vida
Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) foi uma delas, recebeu a doação de áreas e constituiu a RPPN Morro da Mina no mu-
nicípio de Antonina, com cerca de 2.300 hectares. Também nesse mesmo período, a Fundação do Grupo Boticário comprou uma
área de 2.253 hectares, em Guaraqueçaba e concebeu a Reserva Natural Salto Morato.
A assinatura do Protocolo de Kyoto em 1997 estabeleceu a redução de gases do efeito estufa pelas nações industriali-
zadas e a implantação de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL), podendo ser cumpridos pelos países, fora de seu
território. Em meados de 1999, com as áreas Serra do Itaqui e Rio Cachoeira, a SPVS totaliza 18,5 mil hectares de terras na APA
de Guaraqueçaba (SPVS, 2013). Nesta conjuntura a organização não governamental conseguiu financiamentos com a TNC (The
Nature Conservancy) e empresas americanas, como a American Eletric Power, General Motors e Chevron Texaco, interessadas
em seus projetos de conservação ambiental e captação de carbono atmosférico, a fim de combater os efeitos do aquecimento
global. Além dos projetos de sequestro de carbono, a SPVS vem recebendo incentivos financeiros de empresas transnacionais
como a Audi com a campanha de adoção de um papagaio de cara roxa (BORSATTO, 2007; CORNETTA, 2007; SPVS, 2013).

05: Sistemas de Gestão e Governança


575
Figura 2. Localização das unidades de conservação e principais comunidades da APA de Guaraqueçaba.
Fonte: SCHWARTZMAN & SIBUYA, 2013.

A criação acelerada destas áreas protegidas, sem consulta pública as comunidades e o devido planejamento, fez com
que as legislações ambientais incidentes sobre esse mosaico de UC fossem sobrepostas e gerassem muitos conflitos. As crimi-
nalizações do modo de vida tradicional, a redução dos seus territórios e a restrição do tipo de produção, contribuem para que a
região tenha os piores índices de desenvolvimento humano do Estado do Paraná e um dos mais baixos do Brasil.
Os conflitos socioambientais podem ser entendidos como as práticas assimétricas de apropriação, uso e significação do
território por diferentes grupos, tem origem quando um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do
meio que desenvolvem ameaçadas por impactos indesejáveis. A base cognitiva dos sujeitos envolvidos nos conflitos estimulam
seus discursos e ações, de acordo com a sua concepção sobre o território, o meio ambiente, assim como o desenvolvimento, e
de modo mais geral a democracia (ACSELRAD, 2004; ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010; SVAMPA, 2012).
As comunidades estudadas (Rio Pequeno, Potinga, Açungui e Batuva) tem uma relação com o território se expressa muito
além da materialidade, é dotada de subjetividades circunscritas em seus modos de vida e cosmovisões de mundo, presentes em
ações e relações que expressam aspectos que não tem valor de troca, são incomensuráveis, como a reciprocidade e solidarie-
dade por meio de um mutirão na roça, no ato coletivo de se fazer a tradicional farinha de mandioca artesanal, ou a realização de
festas e místicas.
A dificuldade no diálogo entre os diversos atores sociais, os institucionalizados e os não institucionalizados, expõe as
comunidades da APA de Guaraqueçaba a uma situação de fragilidade. O conselho gestor da APA de Guaraqueçaba (CONAPA)
foi estabelecido somente em 2002, 17 anos depois da criação da UC, e possui caráter deliberativo.
O conselho é um espaço público de decisão e direcionamento de políticas públicas, que deveria incentivar a participação
social, contudo é marcado pelo esvaziamento dos comunitários. O diálogo utilizado nas reuniões e capacitações, geralmente é
baseado em uma linguagem tecnocrata, nada dinâmica, desalinhada ao perfil da representação comunitária, como foi possível

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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comprovar por intermédio da observação realizada nas reuniões do CONAPA de abril de 2013 a agosto de 2015.
Nota-se, especialmente por intermédio da pesquisa qualitativa realizada com as comunidades estudadas, que a demons-
tração pública do forte vínculo entre a gestão da UC e as organizações não governamentais responsáveis pela gestão das RPPNs
no território acaba inibindo a aproximação das comunidades nos conselho gestor, visto que a maioria das comunidades tem
conflitos eminentes com esses grupos, para elas as instituições são uma só.
Após várias denúncias das comunidades tradicionais e a gravação do documentário intitulado “A economia verde vs. a
economia das comunidades: uma história dos povos da mata atlântica no Sul do Brasil”, produzido em DVD pelo MST e pelo
Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (organização do Uruguai) em 2012, que retrata os conflitos enfrentados no território
pelas comunidades da APA, a situação na região amenizou um pouco, mas não foi mediada na totalidade.
Atualmente, a APA de Guaraqueçaba está em fase de elaboração do seu plano de manejo, a sua finalização está prevista
para o ano de 2016, a consulta pública do documento do plano só acontecerá no Conselho Gestor. Entretanto, há pouca divul-
gação da realização das reuniões, e neste ano de 2015 ainda não ocorreu nenhuma reunião do conselho gestor, a justificativa
alegada é a falta de verba do órgão gestor responsável.

Considerações finais
No presente artigo, foi possível concluir por intermédio do estudo de caso na APA de Guaraqueçaba, que os paradigmas
impostos pela lógica da racionalidade produtiva dominante colidem e afetam diretamente a reprodução dos modos de vida e os
usos dos recursos naturais das comunidades estudadas.
Os conflitos socioambientais expressam disputas por recursos naturais, territórios, diferentes visões de desenvolvimento,
democracia, trabalho, vida e natureza. Assim, a sua compreensão possibilita o reconhecimento dos múltiplos projetos de socie-
dade, revelam como as distintas racionalidades e assimetrias de poder impressas na dinâmica sociais e políticas se intercruzam,
contribuindo na construção de alternativas de enfrentamento e negociação que tenham como fundamento os princípios da sus-
tentabilidade e justiça ambiental (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010; ZHOURI2011).
As comunidades tradicionais possuem uma lógica diferenciada quanto a sua organização, caracterizada pelo uso comum
da propriedade e dos recursos naturais, contrário ao modelo dos institucionalizados, instaurado pelo sistema capitalista, na qual
o valor de troca da terra e a propriedade privada prevalecem. No entanto, esse fator não é percebido pelas instituições respon-
sáveis pela gestão do território, criando até nos espaços que deveriam ser participativos, uma discrepância entre a visões dos
institucionalizados e os não institucionalizados.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


579
CRUZANDO OS LIMITES: REFLEXÕES SOBRE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DE
GESTÃO TERRITORIAL INDÍGENA NO NORDESTE

Nilsson, Maurice Seiji Tomioka1,5; Parra, Lilian Bulbarelli2,5; Prudente, Hugo3 & Cardoso, Thiago Mota4,5

1. Doutorando em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades/ Diversitas- Universidade de São Paulo, mauricetomioka@gmail.com;
2. Mestranda em Geografia/Universidade Federal de Santa Catarina; lilianbparra@gmail.com; 3. Mestrando em Antropologia Social/
Universidade de São Paulo, prudente.hugo@gmail.com; 4. Doutorando em Antropologia Social/Universidade Federal de Santa Catarina,
thiagotxai@gmail.com; 5 - Wayuri Projetos e Assessoria Socioambiental

Resumo
A presente comunicação aborda questões relativas a terras e territórios indígenas partindo de reflexões e inquietações na nossa atu-
ação em iniciativas de pesquisa e em processos de gestão ambiental e territorial. Cada experiência, guarda sua própria história; e
cada relato, preserva a experiência particular e parcial, tanto no que tange à escolha do tema como a forma de narrativa. Apostamos
aqui na multiplicidade das formas de narrar, preservando as diferentes vozes no diálogo interdisciplinar entre nós, os autores. Esta-
mos tratando de quatro experiências junto a povos indígenas no Nordeste dentre eles: Pataxó, Pankararu, Potiguara e Fulni-ô. Nossa
abordagem se pauta na construção histórica das terras indígenas que conformam um fragmento do território atual que, apesar da
importância para garantia dos direitos indígenas não é suficiente para dar conta de territorialidade e modos de manejo ambientais
que se dão para além das fronteiras estatais e se difundem como multiterritorialidades, mobilidades e malhas de lugares vividos.
São territórios existenciais em “confronto” com os “territórios zonais”.

Palavras-chave: Mobilidade, Territorialidades, Territórios, Entorno de Terras Indígenas.

Introdução
Neste trabalho discutiremos quatro experiências com povos indígenas do Nordeste, com vistas a compreender como
têm se dado as formas de gestão indígena em diante do modo estatal de gerir o território, enfocando a relação entre o “território
real”, ou seja, aquele que emerge a partir das práticas dos povos indígenas, e terras demarcadas. Entendemos como gestão
indígena, o modo como os diversos povos atuam em seus territórios vividos, desenhando seus projetos de vida de acordo com
suas singularidades.
As quatro experiências relatadas envolvem os Pataxó (sul da Bahia), os Pankararu (Pernambuco), os Potiguara (Paraíba)
e os Fulni-ô (Pernambuco) que, em comum, trazem a concepção de terras e territórios indígenas e o reconhecimento de que
as atuais porções de terras que representam pequenos fragmentos dos territórios são fruto da situação histórica e da realidade
social atual dos povos indígenas do Nordeste; além de tratar de povos que estão envolvidos, de alguma forma, em processos de
demarcação ou Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas (GATI). Duas delas ocorreram no bioma da Mata Atlântica
nordestina; e duas, na Caatinga. Em que pesem as diferenças das experiências noticiadas e elementos analisados, além do elo
comum - tratar de povos indígenas no Nordeste - os quatro textos perseguem um objetivo de entender aspectos das visões e das
vivencias territoriais dos povos indígenas, para além de seus territórios demarcados. Através destes relatos buscamos mobilizar
reflexões que desafiem a gestão das áreas protegidas e a sua lógica de “inclusão social” a partir das premissas universalistas
(leis, normas, mercado, fronteiras, etc.), notadamente no que concerne às Terras Indígenas no Nordeste, com vistas a com-
preender como têm se dado as relações dos diversos povos com o território vivido e os limites e desafios da “governabilidade”
por parte do Estado.
A Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas - PNGATI (Decreto n°7747/2012) tem proporcionado opor-
tunidade de reavivar esse diálogo, que vem sendo feito em diversas outras situações, especialmente àquele relacionado com as
“sociedades com Estado”. Neste diálogo “o mapa” assume papel de destaque e há muito se percebe existir a consciência quanto
ao seu papel e poder em legitimar politicamente as delimitações, ao representar determinada realidade; terras indígenas, títulos
concedidos, sempre são representados através dessa ferramenta. Seu domínio, portanto, implica em reconhecimentos territoriais,
sobretudo no Nordeste, onde as terras demarcadas são frações do território existencial e vivido pelos diversos povos indígenas.

05: Sistemas de Gestão e Governança


581
Nosso objetivo é, justamente, o de provocar uma reflexão, a partir da própria experiência dos autores em ações e inicia-
tivas de pesquisa e assessoria com temas ligados à gestão territorial e ambiental junto aos povos indígenas aqui apresentados.
Buscamos refletir sobre nossas contribuições quando dialogamos e procuramos entender o devir das lutas territoriais indígenas
do Nordeste. Cada experiência guarda sua própria história e cada um dos relatos preserva esta experiência particular e parcial,
tanto no que tange à escolha do tema e à forma de narrativa. Portanto, a redação respeita o modo de escrita de cada um dos
Autores. Apostamos aqui na multiplicidade de formas de narrar, preservando as diferentes vozes no diálogo interdisciplinar entre
nós, os Autores.
Propomo-nos a perguntar: é a terra, enquanto substrato mensurável, gerenciado e demarcável; ou o território vivido,
expressão do movimento, do parentesco, do afeto e da resistência que define a presença e o status indígena no mundo atual?
Faz-se necessário quebrar uma ligação considerada inata, a dos povos indígenas e suas terras, e de que é possível ser Fulni-ô,
Pankararu, Pataxó ou Potiguara, de dentro e para além dos limites da terra demarcada, coexistindo em multiterritorialidades1
(HAESBAERT, 2004) ou por uma malha de lugares vividos e em constante transformação. Vamos aos textos, para uma discussão,
em formato de notas e relato (iniciais e parciais) do conjunto que seus resultados apontam.

Pataxó (por Hugo)


Os territórios indígenas se abrem para além de si mesmos, para os lugares onde estão os membros da sua comunidade,
em um movimento que vai do parentesco ao território e vice-versa. Ao mesmo tempo em que esta relação é fundante, o caráter
expandido do território é também objeto de um controle social e político. Ele é conduzido ativamente para construir o território,
para “fortalecer a aldeia”, como dizem os Pataxó2, que vivem em mais de trinta aldeias distribuídas em mais de seis terras
indígenas entre o extremo sul da Bahia e o norte de Minas Gerais. A maior parte destas Terras Indígenas está envolvida pelo
contexto regional sul baiano, e as cidades da região - ou mais distantes -, também são referências importantes para os Pataxó.
A atual configuração deste território, deve muito às ações de retomada que foram empreendidas por este povo, principalmente
da década de 1990 - e seguem acontecendo até hoje. Como o nome sugere, trata-se de ações coletivas que visam restabelecer
definitivamente a posse indígena sobre áreas tradicionais que lhes foram expropriadas.
A articulação para uma retomada pode levar anos e tem um papel central na consolidação de uma comunidade política.
O histórico recente de conquistas territoriais, o protagonismo de algumas lideranças e os compromissos políticos implicados em
uma ação de retomada conduzem a uma imagem segundo a qual uma nova aldeia Pataxó é fruto de uma parceria política entre
o cacique e seus liderados. Por um lado, o cacique oferece o seu “trabalho”, enquanto a comunidade que o apoia oferece a sua
“coragem” e a sua “confiança”. Fundada à base de uma relação de reciprocidade entre cacique e comunidade, uma nova aldeia
se inscreve, portanto, na lógica da dádiva e da retribuição, capaz de tornar a relação com o território parte de uma relação social.
Se a retomada estabelece esse paradigma, existe uma expectativa de que esta relação se perpetue, com a chegada de novas
famílias que devem “conseguir terreno”, exclusivamente através da intercessão do cacique que, por sua vez, vai “segurando, para
aquilo se tornar uma aldeia documentada”. Nesse quadro, a autonomia e a coesão políticas de cada aldeia são muito valorizadas.
Por outro lado, a relação entre parentesco e mobilidade territorial é muito enfatizada pelos Pataxó. Suas experiências de
deslocamento apresentam um território apreendido através das relações de parentesco. Uma família que deixou sua aldeia de
origem, se dispersou e voltou a se reunir em outra aldeia, pode contar como “veio chegando pra cá”, gradativamente, fazendo
os acordos necessários para a chegada de novos membros, aliando-se aos caciques e às outras famílias. O território é, assim,
apreendido móvel e desigualmente, através das relações de parentesco. Não raras vezes, o grande valor atribuído à solidarie-
dade entre parentes é expresso quando se fala da mobilidade territorial; “gostar de andar” é uma disposição coletivamente auto
atribuída e, mais que isso, “saber andar” é um valor a ser perseguido. É um índice de sociabilidade e boa convivência. A ênfase
no deslocamento tem infinitas e saborosas expressões: a casa é um “passa chuva”; ter “um primo em cada aldeia” e nunca ficar
sem abrigo é ser plenamente um índio Pataxó; o índio anda muito porque “é tudo dele mesmo”; “saber andar” é o mesmo que
“saber viver”, contar com a ajuda dos outros, ter despojamento e confiança. A reconstituição do território promove, assim, o con-

1
Multiterritorialidade, aparece, segundo Haesbaert (2004), como resposta ao processo identificado por muitos autores como a desterritorialização. O autor propõe
discutir, para além da perda de territórios, “a complexidade dos processos de (re)territorialização em que estamos envolvidos, construindo territórios muito mais
múltiplos(...) tornando muito mais complexa nossa multiterritorialidade”. Para Haesbaert, a multiterritorialidade contemporânea inclui uma grande variedade de ter-
ritórios (entre zonas e redes), combinados de diversas formas, permitindo a convivência simultânea de múltiplos territórios.
2
Os dados e parte da reflexão aqui apresentada sobre os Pataxó estão em Pedreira (2013).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
582
fronto dos Pataxó com seus próprios valores.
Aldeia Velha é uma das menores Terras Indígenas Pataxó, com apenas 2.100 hectares. Ela foi retomada em 1998, no
período que referimos como uma fase marcante da reconstituição territorial Pataxó. Parece-nos que esta reconstituição vem
sendo empreendida a partir de dois princípios antagônicos: um que enfatiza a formação de comunidades políticas delimitadas e
coesas sob a liderança de um cacique; e outro que enfatiza a circulação entre as aldeias, ou melhor, que define o território como
possibilidade de circulação oferecida pelo parentesco. Essa mediação entre o interior e o exterior é um fator constitutivo da Al-
deia Velha desde sua fundação, quando os “índios desaldeados” do Arraial D’Ajuda se reuniram para “fazer uma aldeia”. Quando
Ipê, que seria o primeiro cacique da Aldeia Velha, buscou apoio dos caciques de outras aldeias para reunir os índios que estavam
vivendo nas cidades da região, o líder Pataxó Manoel Santana lhe deu apoio e se referiu a “esses índios que tão espalhado por
aí”: “Quando existe uma tainha sozinha, desse tamanho, no rio ou no mar, é por causa que tem pai e mãe”. Ipê explica que “a
tainha é um peixe que dá no rio, em água doce, em água salgada, então eles só vive em grupo, esses peixe só vive em grupo,
tem grupo aí de cem, duzentas tainha...”. A retomada realiza, assim, o primeiro passo no longo processo que conduz esta aldeia
a vincular-se, definitivamente, a outras aldeias Pataxó. Seguindo por este caminho, este vínculo será constantemente atualizado,
entre outras coisas, pelo movimento de afirmação cultural e pela rede de parentesco posta em movimento na circulação dos
indígenas entre as aldeias.
À frente da retomada da Aldeia Velha, Ipê via, naquela iniciativa, a consumação de um destino irrevogável: “O índio é as-
sim... anda por aí tudo... pode passar cem anos, volta pra sua aldeia” e conclui, “o sangue puxa”. É interessante que para afirmar
a pertinência ao território, Ipê evoque, paradoxalmente, a imagem do indígena que “anda por aí tudo” e nunca “esquenta lugar”,
essa imagem sempre referida pelos Pataxó. Por fim, é o sangue que neutraliza o paradoxo, desenhando um triângulo: território,
mobilidade e parentesco, onde cada termo se apóia no outro.
Isso tem consequências no modo como os Pataxó vivem e manejam o seu território, uma vez que é a partir da rede de
parentesco e de parcerias políticas que um indivíduo ou uma família indígena encontra maior ou menor receptividade quando
pretende estabelecer uma nova moradia. Se por um lado “conseguir terreno” é, idealmente, selar uma aliança com um cacique
que lhe cede espaço, obtendo em troca um compromisso político que deve ser revertido para a vida em comunidade; por outro,
o índio “pode morar na aldeia que quiser”, valendo-se de sua rede de vínculos de parentesco, e dando lugar a acordos face a
face, sem a mediação do cacique. Esta última modalidade é ambivalente, responde ao ideal Pataxó de “saber andar” e “saber
viver”, mas é constantemente referida como um problema para a coesão da aldeia. Para um índio pataxó, o território se delineia,
assim, como um horizonte de acordos possíveis, entrecruzado pelas ofertas do contexto regional do extremo sul baiano e pelas
condições de diálogo com os parentes e as lideranças em cada aldeia. O território está aberto para o seu exterior, mas esta
abertura deve sempre ser parcial. Como declarou um líder de Aldeia Velha sobre a entrada na aldeia: “Aqui é igual casa de
abelha, só tem uma porta”.
Para os Pataxó de Aldeia Velha, e também de outras partes, o crescimento de uma aldeia, a mobilidade territorial e a
chegada de novos membros põem em jogo alguns de seus valores mais caros: o sucesso da luta pela terra, aquilo que se con-
seguiu garantir e regularizar/demarcar; o problema da autonomia e da coesão política da aldeia, expressa pelo compromisso
cacique-comunidade; a garantia do valor do despojamento (“saber andar”), que enfatiza a mobilidade e a solidariedade difusa do
parentesco. De certa maneira, estes dois últimos valores apresentam o limite um do outro. Enquanto a autoridade do cacique diz
respeito a uma ação política direta, articulada, dirigida a um fim e consagrada por uma conquista, a circulação entre as aldeias,
que se vale da rede social ensejada pelo parentesco, representa uma prática imersa nas relações cotidianas, de algum modo
subjacente e refratária ao controle, mas ao mesmo tempo definida como central na experiência com o território. Por sua própria
formação e pelos problemas que os Pataxó formulam e experimentam para “fortalecer” uma aldeia, o território está decidida-
mente emaranhado em uma gestão das relações.

Potiguara (por Thiago)


Mapas não são novidades no mundo dos Potiguara. São conhecidos desde tempos coloniais quando se inicia o processo
de fracionamento de seus territórios. Mapas foram usados para legitimar o confinamento e para distribuir terras à elite agrária
colonial e entre proprietários privados. Mapas foram usados em momentos cruciais desde o século XIX, como na época da vinda
da família real para o Brasil em 1808, que é visto como um fato marcante na história da mobilização Potiguara pela garantia do

05: Sistemas de Gestão e Governança


583
território tradicionalmente ocupado. Em tempos recentes, com a atual política indigenista e presença de um movimento indígena
vigoroso, iniciam-se processos de autodemarcação e de demarcação das Terras Indígenas com a produção de mapas produzi-
dos pelo exército e pela FUNAI, tendo esses mapas, reduzido drasticamente o tamanho das terras destinadas aos indígenas no
século XIX.
Continuamos com os mapas. Em setembro de 2010 chegamos pela primeira vez à sede do município de Baía da Traição,
enquanto consultores contratados pela Funai-Unesco para realizar um Diagnóstico Etnoambiental e Etnomapeamento das Ter-
ras Indígenas dos Potiguara, tendo como foco a gestão dos conflitos das atividades de carcinicultura realizado por algumas
famílias indígenas nos manguezais de Mamanguape e visando diagnosticar a situação da cana-de-açúcar no território. Após
mal-entendidos produtivos que impediram o início do trabalho na data prevista, retornamos às aldeias para começar, de fato, o
etnomapeamento através da metodologia proposta, que contemplava basicamente oficinas, entrevistas e caminhadas guiadas,
fora o levantamento de dados secundários inerente ao estudo. Antecedendo a pesquisa de campo – com oficinas, caminhadas,
conversas –, realizamos um primeiro (ou segundo) encontro com as lideranças indígenas e servidores da Funai para apresentar
o estudo e também para esclarecer conceitos como “etnomapeamento”, “território” e “gestão territorial”, e planejarmos con-
juntamente a agenda do campo. As explicações sobre o potencial dos mapas não animaram as lideranças e os presentes nas
reuniões: “mais um mapa, mais um diagnóstico...”, nos diziam. Ao final, falamos que o mapeamento poderia ser feito para “além”
das Terras Indígenas, e ao dizermos isto escutamos uma voz “aí, ficou interessante”. Um etnomapeamento para conhecer o que
já conheciam parecia não fazer sentido, enquanto um mapeamento que se engajasse nos atuais movimentos e preocupações que
perpassam as fronteiras de uma demarcação parecia fazer mais sentido para os índios naquele momento.
A primeira fase do etnomapeamento envolveu a confecção de mapas desenhados pelos indígenas participantes das ofici-
nas com a utilização de um papel em branco ou de um mapa-base contendo apenas a delimitação das terras indígenas, recursos
hídricos e vias terrestres. Consideramos as oficinas como espaços de conversação, onde o processo de desenhar se dava ao
mesmo tempo que os diálogos, discussão, planejamento e reconhecimento do território como um todo pelos participantes. A
interferência da equipe técnica se fez de forma provocativa, mediando e problematizando algumas questões, dando prioridade à
expressão de definições e classificações nativas. Em todos os casos os etnomapas foram direcionados para indicar parte do ter-
ritório ainda objeto de reivindicações e retomadas, bem como o território, fora das Terras Indígenas, que se encontra em situação
de conflito com a APA Mamanguape e a ARIE Foz do Mamanguape, por distintos objetivos que refletem nas formas de gestão
dos “recursos naturais” (ver CARDOSO et al., 2012).
Tanto na oficina realizada na aldeia Monte Mor, quanto na São Francisco, os participantes partiram dos marcos do ter-
ritório para iniciar o mapeamento de elementos importantes. Enquanto desenhistas mais talentosos conduziam o registro, os mais
velhos discorriam sobre a história de luta da demarcação, bem como relembravam fatos históricos relacionados a lugares e mu-
danças paisagísticas. Guiados por “conhecedores locais”, percorremos as três terras indígenas georreferenciando elementos
representados nos mapas construídos pelos indígenas nas oficinas de etnomapeamento, bem como buscamos compreender as
relações no ambiente. Nessas caminhadas com guias visitamos algumas roças e canaviais, subimos o rio Mamanguape e des-
cemos o rio Camaratuba de canoa, fomos às nascentes de alguns rios importantes, acompanhamos o trabalho de mariscagem,
de farinhada, estivemos em viveiros de camarão e ostra, entre outras atividades. Além de percorrermos o território, conversamos
com pessoas que nos relataram lembranças referentes a determinados locais, contribuindo para enriquecer a nossa compreen-
são sobre a história ecológica local.
Os desdobramentos do etnomapeamento e a forma com que os Potiguara vêm se apropriando dos etnomapas, revelam
a importância tanto, do processo, quanto do produto. O etnomapeamento, com todos os seus limites e riscos, constituiu, nessa
experiência aqui relatada, um instrumento interessante e útil para lidar com questões ligadas ao território pelos e a partir dos
Potiguara. Durante o processo de etnomapeamento houve um movimento de “apropriação” ou “indigenização da cartografia” e
mudança de trajetória dos objetivos e dos usos dos etnomapas. Se por parte do Estado, eles deveriam orientar a gestão ambien-
tal e apoiar a mitigação de conflitos, os indígenas por sua vez, se orientam e se motivam nesse trabalho por demandas diversas
ligadas à luta territorial e aos desafios econômicos para além da Terra Indígena demarcada - negando o “mito do funil demar-
catório”. Portanto, a elaboração desses instrumentos possuiu significados simbólicos e políticos enormes para os Potiguara,
pois significou a busca pelo respeito e pela simetria nas relações, bem como a conquista e a sustentabilidade de seus territórios
vividos e caminhos trilhados.

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584
Os etnomapas adentraram nos contemporâneos movimentos de retomada de terras que visam reviver de forma legítima
o território Potiguara, através de dois movimentos articulados: o primeiro, ao observar o próprio mapa do Estado, com um olhar
sobre o mapa do período imperial; e um segundo, ao observar a própria dinâmica territorial, a geografia reticular do mundo
vivido e as formas de habitar os ambientes – os lugares dos antigos (as taperas velhas), a história genealógica na paisagem e os
lugares sagrados. Ou melhor dizendo, os Potiguara vêm tensionando e acomodando de forma ativa sua territorialidade, ou seu
modo de mapear o mundo, com o processo de territorialização do Estado, ou seja, com a cartografia oficial. Os etnomapeamento
que aqui relatamos, não deixa de constituir um continuum deste processo de indigenização da cartografia por dentro da “virada
territorial” deste povo. Ligados por uma malha de pessoas, coisas, lugares e práticas que extrapolam os limites impostos pelo
território zonal sob o estatuto de Terras Indígenas, os Potiguara desafiam os limites que limitam seus movimentos.

Fulni-ô (por Lilian)


Os Fulni-ô habitam o agreste pernambucano, num local em que estão presentes alguns traços da transição entre a Mata
Atlântica e a Caatinga. Entre os povos do Nordeste, se destacam por manter no cotidiano a língua materna – Yathê - e um ritual
secreto e sagrado - O Ouricuri, ao qual se dedicam integralmente por três meses do ano. Para ser Fulni-ô, o indivíduo deve, desde
os primeiros anos de vida participar do Ouricuri anualmente e falar Yathê.
A rápida experiência com os Fulni-ô ocorreu com o intuito de realizar um diagnóstico socioambiental da área de ocupação
atual, como consultora contratada pela Coordenação Geral de Identificação e Delimitação / Projeto de Gestão Territorial e Ambi-
ental em Terras Indígenas. Teve como objetivos identificar as áreas de usos atuais, os ambientes imprescindíveis para a manuten-
ção socioambiental, e principalmente, a identificar a diversidade fundiária e as formas de gestão existentes na área indígena.
A história territorial deste povo é marcada por processos de territorialização e re-territorialização, pela persistência e
resistência a constantes investidas de redução de suas áreas e de massacre de sua gente. Da “doação de terras” aos indígenas
que lutaram na Guerra do Paraguai, a uma suposta “doação de terras” de indígenas para a santa (para a igreja construir com
mão-de-obra indígena uma igreja no centro da área doada), à atuação do governo do estado e do Serviço de Proteção ao Índio,
resulta a área destinada atualmente aos Fulni-ô. Um polígono com aproximadamente 11,5 mil hectares, com um núcleo urbano
incrustado no centro do quadrado, cuja população supera os 40 mil habitantes.
A área indígena foi dividida, inicialmente, em lotes de 30 hectares doados a algumas famílias Fulni-ô; subdivididos em não
se sabe quantas partes, sob a posse de “rendeiros”3 , incluindo os próprios indígenas que não possuem terras, e a prefeitura de
Águas Belas entre outros tantos. Trata-se de uma situação complexa que envolve conflitos territoriais (internos e externos ao povo
e à terra Fulni-ô), degradação de ambientes imprescindíveis à manutenção do sistema cultural, e disputas pelos recursos naturais
essenciais, como por exemplo a água. Aspectos que associados à questão econômica e ao sistema fundiário contribuem para o
entrave no processo de regularização de terra indígena.
A lista de impactos negativos que marcam a área indígena Fulni-ô inclui: o núcleo urbano de Águas Belas, rede viária com
rodovia federal que o atravessa no sentido leste a oeste, e uma estadual no sentido norte sul; há inúmeros problemas socioambi-
entais, entre os quais o acesso e a qualidade dos recursos hídricos, a presença de um lixão à céu aberto em que são depositados
os resíduos sólidos do município, um posto de gasolina instalado em rodovia que corta a área, acarretando problemas incluindo
acidentes com mortes e aumento de pessoas nas proximidades da área reservada para o ritual. Dentre os aspectos positivos,
destaca-se a presença de serras, a presença de recursos hídricos “disponíveis” e a diversidade de ambientes, dentre eles: os
brejos de altitude, como resquícios da transição da vegetação, e os tabuleiros, local onde nascem os rios, configurando impor-
tante área de recarga hídrica. Ainda há restritas terras agricultáveis, relacionadas ao “complexo” de serras que provém terra fértil
e recursos hídricos; contudo, boa parte encontra-se arrendada.
Esta diversidade é de grande relevância para a manutenção do Ouricuri, que é realizado numa pequena área (também
um polígono regular), de uso comum dos Fulni-ô que mantém reserva de “recursos” para o ritual, a qual, contudo apresenta sinais
de exaustão (SÁ; ALVES, 2011). Além das espécies encontradas nessa área de caatinga, outros elementos obtidos nas serras, nos
brejos de altitude e nos tabuleiros são necessários para a realização do ritual. Muitas dessas áreas usadas para coleta, caçadas,
pescarias encontram-se fora da reduzida área indígena atual.
Para acessar recursos e locais necessários à manutenção de saberes e práticas, os Fulni-ô desenvolveram estratégias
3
Termo para denominar pessoas, indígenas ou não indígenas que arredam determinadas áreas.

05: Sistemas de Gestão e Governança


585
que configuram multiterritorialidades construídas “na conexão flexível de territórios multifuncionais e multi-identitários” (HAES-
BAERT, 2004). Conformando territórios calcados na mobilidade, nas relações de vizinhança, nos conflitos e reciprocidades, seja
para acessar “matéria-prima”, como para manter suas práticas tradicionais, dentre elas, o Ouricuri.
A mobilidade pelos territórios múltiplos encontra distintos obstáculos envolvendo risco de vida; contudo, é primordial
para manter o fluxo de saberes intergeracionais relacionados ao Ouricuri e manutenção de práticas como as caçadas, as pesca-
rias (como a pesca de mergulho em cavernas), a coleta vegetal, dentre outras que pertencem ao universo Fulni-ô. Neste sentido,
Melo (2011) explica que “do ponto de vista nativo, a cultura está relacionada ao domínio do conhecimento religioso, os rituais,
político e botânicos, entre outros, que são transmitidos entre as gerações, dos antepassados, a eles que formam a cultura ances-
tral fundamentada em bases territoriais”.
Por meio de estratégias, entre consensos e dissensos, os Fulni-ô mantêm territórios e territorialidades que se conformam
entre uma rede relações de conflitos e reciprocidades estabelecidos interna e externamente. Áreas doadas, área urbana, reser-
vada para o ritual, e área necessária para a manutenção dos recursos naturais (estas últimas imprescindíveis para os Fulni-ô
manterem suas práticas), conformam um dos casos em que a diversidade fundiária e das formas de apropriação dos “recursos
naturais” existentes, extrapolam a noção de território estatal.

Pankararu (por Maurice)


Minha experiência entre os Pankararu se deu no âmbito da construção de um etnomapeamento com vistas a indicativos
de Gestão Ambiental de Terras Indígenas (GATI). Os Planos de Gestão Territorial Ambiental, entendidos como um etnoma-
peamento e um etnozoneamento objetivando um acordo de uso do território de um povo indígena apresentam dilemas quando
se pensa em sua construção: ele põe em evidência conceitos que precisam ser bem elaborados em suas relações entre si: a
Terra Indígena, figura jurídica de mediação com o Estado; o território, sempre relacionado ao povo indígena que o possui; e a
territorialidade e os modos de produzir território, que envolve povo, sociedade, comunidades, aldeias, parentelas, grupos políti-
cos, redes de alianças.
Embora a Terra Indígena seja a figura jurídica oficial, em relação ao território ela nem sempre se correspondem. No
Nordeste do Brasil, os territórios foram espremidos e rasgados por linhas retas, as terras demarcadas e reconhecidas, em um
processo de lutas em que o Estado chegou mesmo a negar aos índios o estatuto de diferenciação étnica (ARRUTI, 2012).
Quando consideramos a Terra Indígena Entre Serras, do povo Pankararu, isoladamente, não conseguimos interpretar
bem, porque se trata de uma unidade incompleta, parcial. Nascida como recuperação territorial, Entre Serras, deve incluir a TI
Pankararu. e para além disso, há Pankararu morando bem longe dessas duas terras, há uma população importante em São Paulo,
mas são populações interconectadas por um fluxo de mensagens, visitas mútuas, econômicos etc. Essas pessoas são parte do
povo Pankararu, tais relações demonstram que não se perdeu o compromisso com o território, mesmo distante.
Tal reflexão sobre os Pankararu e sobre o objetivo inicial de promover a discussão de um plano de gestão para a terra
Entre Serras (pensando na abrangência desse plano), chegamos à seguinte questão: quando se realiza o plano de uma terra
indígena e de seus moradores como unidade, é possível pensá-la também em relação a todos os não moradores que lhe dedicam
afeto? Os sujeitos de um plano de gestão se apresentam como um povo - são pessoas vinculadas entre si e a uma certa territoria-
lidade - e o objeto deste plano é, em última instância, o seu bem-estar. Um plano de gestão para a terra, deve ter como horizonte
a experiência de territorialidade de um povo, e como observamos na experiência Pankararu, essa transcende os limites jurídicos
demarcados para as duas terras indígenas.
Uma questão aí envolvida é a tentativa de analisar a participação econômica da terra indígena num contexto regional; ou
do povo, considerando que os Pankararu, moradores dessas cidades próximas da terra indígena, participam da vida econômica
da cidade. O consumo daquilo que se produz tem um papel pouco evidenciado ao se estudar economia indígena: muito do que
se produz não chega efetivamente ao mercado; é distribuído internamente satisfazendo as necessidades alimentares (e outras)
da população; embora não tenha valoração econômica clara, ela reduz a necessidade de participação na economia monetária,
talvez um aspecto mais importante que a renda. Não levar em consideração esses mecanismos, de baixo fluxo monetário, pode
levar a uma interpretação errônea do que apontam os dados.
Os Pankararu se tornam caso emblemático para discutir se devemos restringir o plano de gestão para a terra, e negli-
genciar o fato de que o povo a extrapola: os Pankararu que hoje habitam São Paulo tiveram papel muito importante em conseguir

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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recursos para a luta pela reconquista de Entre Serras, em processo de autodemarcação. Tal ajuda econômica foi essencial
para o sucesso da demarcação, evidenciando-se, aí, uma condição paradoxal: se decidiram migrar pela falta de condições de
realizarem suas existências em seu território original, ao rumarem a São Paulo como retirantes, ali conseguiram se realizar como
Pankararu, e sua condição diferenciada, de uma comunidade relativamente coesa, morando, em grande parte, agrupada, no
Bairro Real Parque, lhes permitiu um vínculo com a terra, que lhes é de direito; para a política de gestão ambiental, tal histórico de
vidas e lutas expõe um dilema sobre a realização de um plano de gestão: nas leituras “ocidentais” de territorialidades, o objetivo
que traz segurança é o da delimitação, o que, no entanto, não parece se constituir no objetivo enquanto povo: a terra indígena,
que é um direito, é também um enquadramento dos povos indígenas a certa ordem jurídica, e por não corresponder ao território
original, não dá conta de conter os usos reais e interesses destes àquilo que não está contido em seu interior, mas que representa
valor de uso, valor simbólico, e sobretudo, econômico para os Pankararu.
Do ponto de vista do mapeamento, a prática e a solução encontrada foi o de não restringir os mapas ao contexto interior
das terras indígenas, produzindo três escalas de abordagem nos mapas consagrados ao mapeamento territorial Pankararu:
mapas de sítio, de situação e de destaque; os mapas de sítio são os mapas da terra indígena propriamente, os mapas de des-
taque revelam peculiaridades de segmentos desta terra indígena, e mapas de situação revelam o contexto regional em que
está inserida a população Pankararu: em última instância, abrange até São Paulo, Roraima e todos os lugares por onde essa
população se espalhou. Os mapas regionais de situação buscam contemplar aquilo que foi ouvido nos depoimentos dos nossos
interlocutores: que a terra demarcada, mesmo incluindo a reconquista da Terra Indígena Entre Serras, não reflete o território
Pankararu; que áreas de uso fora do território permanecem em uso e com significado simbólico associado, e que em última
instância, o que faz de um povo indígena um povo diferenciado relaciona-se muito mais às suas territorialidades, à sua forma de
se relacionar com o território, em contraposição com as delimitações reconhecidas pelas sociedades de Estado: como exemplo
dessa territorialidade diferenciada, temos as “pontas de rama”, que são povos cuja origem advém dos Pankararu, mas que pos-
suem especificidades, decorrentes do fato de o próprio povo Pankararu ter se formado historicamente de uma junção de alguns
povos dessa região do Nordeste (o Médio São Francisco) em um aldeamento missionário (ARRUTI, 2012).
Pensar o plano de gestão para o povo (afinal, é pelo povo que deve ser feito), tendo a questão territorial pode não estar
na letra da lei, mas pode ser um recurso para que não se visualize a terra indígena fora de seu processo histórico, e para se
enfrentar o paradoxo de delimitar (impor limites), e de garantir direito à terra, mesmo que essa não corresponda ao território. E
marca a posição de que, mesmo sendo minorias, os povos indígenas perseveram-se em influenciar as políticas públicas para o
país, com foco, sobretudo, na questão territorial e nos modos de ocupação da terra.

Considerações finais: cruzando as experiências


Em todos os quatro relatos, os povos indígenas consideram seus territórios para além das fronteiras impostas pela ca-
tegoria terra indígena; para eles, o uso e a circulação nesse entorno e a inserção em itinerários mais amplos, justifica tal forma de
pensamento. Embora adotem diferentes estratégias com relação ao que consideram seu território é perceptível que suas ações
assentam em vínculos com a terra e com suas ligações de parentesco que se impõem como uma territorialidade singular, como
nos apresenta a experiência com os Pataxó e com os Fulni-ô.
Os “entornos” de terras indígenas são locais em que há interculturalidade, multiterritorialidade (HAESBAERT, 2004) con-
siderando a existência de outras territorialidades, ou seja, outras formas de se relacionar com a terra, de organizar os espaços
e de significar os lugares (SACK, 2011). Geralmente são marcantes o preconceito e discriminação a essas populações diferen-
ciadas, mesmo em caso de casamentos interétnicos. Observa-se a convivência de regimes diferentes de se perceber a relação
com o espaço, ora pautada pela propriedade privada, ora como território sagrado dotado de certa ancestralidade. No caso dos
Fulni-ô e dos Potiguara, em que as terras indígenas abrigam sedes municipais, tal multiterritorialidade atribuída à terra se daria
também dentro de suas terras reconhecidas.
Com relação aos mapas e outras representações da terra-território, em todos os casos, os interesses extrapolam à terra
reconhecida e demarcada, impondo ao seu interlocutor uma sensibilidade com relação a essa demanda. O mapa entra nova-
mente como uma ferramenta para demonstrar que seu território não se limita ao zoneamento imposto pelo Estado, e traz a neces-
sidade desse reconhecimento para além da reivindicação territorial. Reconhecer a presença indígena para além das suas terras,
como uma importante força na formação histórica desses locais pode ser mutuamente enriquecedor e imperioso para as atuais

05: Sistemas de Gestão e Governança


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experiências de gestão ambiental e territorial dos e para os povos indígenas.
A presença de multiterritorialidades bastante contrastadas tais como ‘índios’ e não ‘índios’ no entorno das terras indíge-
nas sugere um trabalho educacional de via dupla, num sentido em que Paulo Freire (1987) atribui (“ninguém educa ninguém,
as pessoas se educam umas às outras”), buscando uma compreensão maior da alteridade no cotidiano local, para reduzir a
violência das relações interétnicas.

Referências
ARRUTI, J. M. 2012 Pankararu: Introdução e bibliografia. Disponível em:http://jm-arruti.blogspot.com.br/2012/03/pankararu-
introducao-e-bibliografia.html. Acesso em 17 maio 2014.

CARDOSO, T.M.; PARRA, L.B.; MODERCIN, I.; GUIMARÃES, G. (Orgs.). Etnomapeamento dos Potiguara da Paraíba. Brasí-
lia-DF: FUNAI/CGMT/ CGETNO/CGGAM, 2012.

FREIRE P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 (1995).

HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade, Rio de Janeiro, 2004.

MELO, W. T. D. Identidade étnica e reciprocidade entre os Fulni-ô de Pernambuco. In: SCHRÖDER, P. Cultura, identidade e
território no nordeste indígena: os Fulni-ô. Recife: UFPE, 2011.

SACK, R D. O significado de territorialidade. In: DIAS, L.C. FERRARI, M.(orgs.). Territorialidades humanas e redes sociais.
Florianópolis, 2011.

SÁ, J. C. D.; ALVES, A. A educação como estratégias de apropriação de conhecimentos para fortalecimento da medicina tradicio-
nal: a experiência dos índios Fulni-ô (Águas Belas-PE). Revista Diálogos, n.5, 2011.

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DINAMIZANDO E CAPILARIZANDO A GESTÃO:
O CASO DOS NÚCLEOS DE BASE COMUNITÁRIA
DA RESERVA EXTRATIVISTA RIOZINHO DA LIBERDADE

Saldo, Pablo de Avila1

1. Analista ambiental, gestor da Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade,
pablo.saldo@icmbio.gov.br.

Resumo
A gestão por Núcleos de Base Comunitária está em vigor na Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade, no vale do Juruá acreano,
desde outubro de 2014, e busca um maior envolvimento dos moradores na gestão da unidade de conservação, bem como uma
estrutura de representação social na associação de moradores melhor alinhada com as características locais, procurando respeitar
e valorizar a distribuição espacial e outras particularidades da organização comunitária local. Ainda em desenvolvimento, o modelo
tem apresentado bons resultados frente aos objetivos, possuindo potencial de ser adotado em outras unidades de conservação de
uso sustentável, e possivelmente em unidades de conservação de proteção integral com a presença de população residente. Este
artigo apresenta o histórico que originou a proposta, sua implementação e os primeiros resultados obtidos.

Palavras-chave: Reserva Extrativista, Acre, Organização Comunitária, ARPA, Associativismo.

Reservas extrativistas e a institucionalização da organização comunitária das


populações tradicionais beneficiárias
Reservas extrativistas (RESEX) são unidades de conservação da natureza (UC) de uso sustentável, criadas pelo poder
público em áreas utilizadas por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementar-
mente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e têm como objetivos básicos proteger os meios
de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2000, art. 18). São
administradas por um órgão de Estado, com o apoio de um Conselho Deliberativo, formado por representantes de organizações
governamentais e não governamentais que tenham interface com a UC, além da representação direta de seus moradores e/ou
beneficiários (ICMBIO, 2014). Tradicionalmente, a existência de uma RESEX pressupõe a existência de, pelo menos, uma associa-
ção de moradores1, que compartilha a gestão com o órgão de Estado – no caso das RESEX federais, o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). Esta concepção de
gestão induz um processo de formalização da organização social das populações tradicionais envolvidas, nem sempre condizente
com o arranjo real e o estágio de maturidade técnica e política da organização comunitária e das necessidades para que o grupo
atue no espaço que lhe foi reservado, o que gera desafios para que estas populações participem efetivamente da gestão do território
protegido (CUNHA, 2010).

A Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade


Proposta por representantes do CNS em meados da década de 1990, e decretada em 2005 (BRASIL, 2005), a Reserva Ex-
trativista Riozinho da Liberdade (REAL), localizada no vale do Juruá acreano, é fruto de uma política já consolidada de criação de
RESEX2, onde, ainda que tenha sido solicitada pela população tradicional residente ou usuária dos recursos naturais no território, em
geral o processo de criação é protagonizado pelo Estado, e os moradores são “sensibilizados” e “mobilizados” pelos responsáveis
pelos estudos de criação da UC – geralmente um órgão governamental da área ambiental ou uma organização não governamental
contratada/financiada por este –, com maior ou menor envolvimento das representações nacionais ou regionais das populações
extrativistas, e algumas poucas lideranças comunitárias do território que se deseja proteger. Com a forte institucionalização do pro-

3
Conhecida originalmente como a “associação-mãe”, aquela que reunia todos os seus “filhos”: moradores, comunidades e/ou outras associações menores.
2
Em 2005, o total de RESEX criadas era de 67, cerca de ¾ do total de reservas atual (88) (ISA, 2015), conforme se pode observar na Figura 1. A primeira RESEX,
do Alto Juruá, é vizinha à REAL, e foi criada em 1992, após intensa mobilização e luta dos então seringueiros – e seus aliados – contra os patrões e a economia já
decadente da borracha.

05: Sistemas de Gestão e Governança


589
cesso de criação, que exige levantamentos socioeconômicos, fundiários e ambientais, corre-se o risco de a população beneficiária
da criação ser vista como “objeto” neste processo, e não como protagonista, como quando dos primórdios da construção da ideia
de RESEX, e da criação das primeiras. Pode-se dizer que a Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade encaixa-se neste contexto:
apesar de todo o trabalho que foi realizado pelas instituições governamentais e não governamentais, o grau de envolvimento na
gestão por parte moradores, de maneira geral, é baixo, e muitos moradores – sobretudo as novas gerações – têm dificuldade de
conviver com pressupostos da gestão, como uso comum, empoderamento e autonomia, organização endógena, cumprimento de
regras que não estão estabelecidas por leis, e o uso racional e respeitoso dos recursos naturais, bem como compreender a razão
da presença relativamente constante do órgão gestor no território e o seu papel, assim como a importância das frequentes reuniões.

Figura 1. Reservas extrativistas criadas por ano e o acumulado total, entre 1990 e 2014,
com destaque para 2005, ano de criação da RESEX Riozinho da Liberdade.

A REAL possui área de aproximadamente 340.000 hectares, uma população residente de cerca de 350 famílias, cerca de
5.530 hectares de supressão vegetal3, e está inserida em um mosaico – não formalizado – de áreas naturais protegidas, que envolve
outras duas RESEX federais (Alto Juruá e Alto Tarauacá), três Florestas Estaduais (do rio Liberdade, do Mogno e do rio Gregório)
e seis Terras Indígenas (Katukina do Campinas, Arara do Humaitá, Jaminawa Arara do rio Bagé, Kampa do igarapé Primavera, Rio
Gregório e Maxinawa da praia do Carapanã), além de projetos de assentamento, no eixo de desenvolvimento da BR-364, como pode
ser visto Figura 2, sendo esta uma área de nascente de importantes rios do vale do Juruá, local também reconhecido como berçário
da biodiversidade local4. A economia gira em torno da produção de farinha de mandioca e alguns outros poucos produtos agríco-
las de menor relevância econômica, como banana, jerimum e melancia, além do plantio de arroz, feijão, milho, mamão e outros
cultivos de subsistência. Com o declínio da economia seringueira, o extrativismo hoje é essencialmente de subsistência, focado
na extração de “vinhos”5 de açaí, buriti e outras palmeiras, algum pouco na produção de cestos e outros utensílios, e na extração de
alguns óleos medicinais para uso doméstico, além da madeira. A pecuária existe em pequenos rebanhos que atendem ao consumo
local. Existe uma relativamente forte economia de comércio – protagonizada pela compra e venda de farinha, e por moradores
que fornecem “estivas”6 em pequenos estabelecimentos ao longo da Reserva ou pelos comerciantes “mais fortes” localizados na
ponte do rio Liberdade, centro econômico da RESEX e adjacências – e também de serviços, como a serragem de madeiras para
a construção civil e naval (a construção/reforma de casas e canoas no interior da reserva é atividade relativamente constante) e a
reforma de motores e espingardas. Com a ampliação do acesso a políticas públicas, abriu-se todo um leque de oferta de empregos:
barqueiros que conduzem estudantes ou a produção agrícola, professores, microscopistas, agentes comunitários de saúde e outros.
A gestão da reserva também significa oportunidade de complementação de renda com a prestação de serviços de condução local
(barqueiro, mateiro) e de apoio à reuniões (serviços de cozinha, auxiliar de reuniões, animação infantil). Os programas de transfe-
rência de renda – Bolsa Família e Bolsa Verde – também possuem significativa relevância na economia local.

3
Segundo INPE (2015), a REAL possuía, em 2013, 1,62% de desmatamento percebido pelo sistema PRODES, o que significa uma média de 15 hectares de áreas
alteradas, em uso ou estágio de regeneração, por família estimada (350).
4
Locais como o “poção” nas cabeceiras do rio Liberdade, e a localidade de “Nova Olinda”, no alto rio Tejo, fazem parte de uma mesma região – distante das popula-
ções humanas – refúgio de animais silvestres e protegida no interior do mosaico.
5
Polpa aquosa preparada em água morna, para consumo imediato e que resiste alguns dias sem refrigeração, com significativa alteração de sabor ao longo de sua
existência.
6
Gêneros do dia-a-dia, como sal, macarrão, sabão e outros produtos industrializados.

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590
Figura 2. Localização da REAL e áreas protegidas adjacentes7.

Organização comunitária no alto rio Liberdade


Ao longo de 10 anos de implementação da REAL, somando-se a este outros 15 anos de organização comunitária formal
anteriores à criação, as lideranças da população tradicional residente no alto rio Liberdade vêm buscando a implementação de
um modelo de organização que contemple o atendimento às suas necessidades e o arranjo sociopolítico existente no território.
Em 1989 foi criada a Associação de Seringueiros do Alto Rio Liberdade (ASARIL), primeira experiência de formalização da
organização comunitária. Criada, como muitas outras em todo o Brasil, fundamentalmente para que os moradores acessassem
créditos agrícolas e/ou projetos extrativistas, a ASARIL foi abandonada por encontrar-se inadimplente junto aos órgãos públicos,
resultado de uso indevido e, sobretudo, falta de comprovação de gastos de recursos por parte da diretoria e de seus moradores.
Em 2007 foi criada a Associação Agroextrativista da Reserva Extrativista do Rio Liberdade (ASAREAL), com vistas à inserção das
comunidades na gestão da Reserva. O Conselho Deliberativo foi criado em 2012, prevendo a participação tanto da ASAREAL
quanto a representação direta de comunidades da REAL.
Ao longo da implementação da RESEX e, sobretudo, a partir de uma inserção do território numa série de políticas públi-
cas de âmbito federal, estadual e municipal, somando-se a isso a histórica carência de servidores públicos na gestão das uni-
dades de conservação e na promoção destas políticas públicas, o protagonismo da ASAREAL na orientação da implementação
destas políticas públicas se fez cada vez mais concreto e necessário, muitas vezes exigindo capacidades técnicas e financeiras
inexistentes na associação. Tal fato resultou em muitas iniciativas que não lograram êxito: projetos de geração de renda que não
trouxeram as melhorias na qualidade de vida que se pretendia; doação de insumos e equipamentos para benefício comunitário
que não chegaram aos que mais necessitavam, e muitas vezes foram apropriados indevidamente por um indivíduo ou grupo
familiar... As dificuldades de gestão destes projetos, na maioria das vezes delegada pelo poder público para execução direta
pela associação através de convênios de repasse de recursos financeiros8, resultaram, também, em desentendimentos entre
lideranças, seja pelo fato de determinadas comunidades não serem contempladas com os benefícios, seja pela discordância
entre lideranças sobre o modelo de gestão dos projetos e dos benefícios, seja ainda pela indisposição das lideranças em admi-

7
O mapa tem o Sul apontando para cima, pois comunitários e a gestão lêem o território com a nascente do rio no alto, sendo esta, também, a sensação que se tem
quando em campo.
8
O Governo do Estado do Acre já executou quatro Planos de Desenvolvimento Comunitário (PDCs) em comunidades do interior da RESEX, e recentemente transferiu,
via convênio, recursos da ordem de quinhentos mil reais para a construção de 30 tanques de piscicultura, uma ponte e outros empreendimentos socioeconômicos.

05: Sistemas de Gestão e Governança


591
nistrarem projetos e recursos sem o reconhecimento dos moradores e de forma voluntária, sem ganho financeiro direto.

Primeiras intervenções na gestão


Deste histórico, somado a ele processos de disputa interna em momentos de eleição para a composição da diretoria da
ASAREAL, resultou um acentuado distanciamento das comunidades e suas lideranças locais do processo de tomada de decisão,
e da posterior execução das decisões tomadas. Em julho de 2013, numa iniciativa protagonizada pelo ICMBio para mobilização
da ASAREAL, apenas 12 dos 22 diretores da associação atenderam à convocação, e destes, menos da metade desempenhava
suas atribuições, procurava trabalhar pela organização comunitária ou pela melhoria da qualidade de vida dos moradores da
RESEX. Ainda assim, desta iniciativa saiu um plano de trabalho para revitalizar a associação, o qual, apesar de executado, não
logrou êxito, tendo os problemas permanecidos basicamente os mesmos.

O desafio do Plano de Manejo


Em 2013, após o estabelecimento do Conselho Deliberativo, a gestão da REAL definiu como meta a elaboração do plano
de manejo da RESEX. O desafio então se apresentou de forma natural: Como superar as dificuldades históricas de organização
comunitária com vistas à gestão da RESEX, e envolver efetivamente lideranças e moradores na construção de um modelo de
gestão que busque garantir o cumprimento dos objetivos de criação da UC? A equipe gestora tinha contato mais efetivo com
pouco mais de uma dúzia de representantes comunitários, desconhecia significativamente o cotidiano dos moradores, e tinha
dificuldade para identificar prestadores de serviço (barqueiros, cozinheiras, mateiros) e fornecedores de insumos básicos
(frutas, farinha, carne) para a realização das oficinas e demais atividades necessárias para a elaboração do plano, utilizando
principalmente mão de obra externa para a realização das ações de gestão.

Estruturando um plano para fortalecer a organização comunitária


Em abril de 2014 o ICMBio organizou uma oficina de planejamento para o fortalecimento do associativismo e da orga-
nização comunitária na REAL, e convidou todos os membros da atual diretoria da ASAREAL, lideranças históricas da RESEX e
moradores interessados para um encontro de dois dias, cujo objetivo era identificar as causas das dificuldades de organização
comunitária, e propor meios de superação destas dificuldades, de forma a garantir um maior protagonismo da população
tradicional residente na gestão da REAL e na implementação das políticas públicas direcionadas para aquele territórios. Das
25 vagas previstas compareceram apenas 11 participantes, o que já reforçava a análise da precária situação da organização co-
munitária e a baixa disposição da população local em participar da gestão da RESEX e da associação. Apesar do quórum abaixo
do esperado, a oficina cumpriu com seus objetivos.
As principais dificuldades foram identificadas a partir da descrição de comportamentos e hábitos dos atores. Para isto,
lançou-se mão de uma pergunta orientadora: “Como é” o comportamento do ator. A sistematização deste debate encontra-se na
Tabela 1. Cada um dos comportamentos observados foi alvo de comentários e análise. A análise geral é de que existia razoável
desarticulação entre os atores e ausência institucional generalizada, baixo envolvimento dos moradores, o que desestimulava
aqueles que têm interesse na gestão.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
592
Concomitantemente, foram identificados comportamentos e hábitos desejáveis nestes mesmos atores, através da per-
gunta orientadora “como poderia ser”. Interessante notar que alguns comportamentos desejáveis deduzem comportamentos não
descritos durante o debate, como a questão política, que muito tem influenciado na dinâmica comunitária (Tabela 2).

05: Sistemas de Gestão e Governança


593
Complementarmente, fez-se uma análise específica da ASAREAL, após a primeira tentativa de revitalização:
• O tesoureiro está mais atuante;
• Conselhos fiscal e deliberativo estão parados;
• Custo alto para reunir os membros;
• Baixa arrecadação da Associação;
• É preciso dividir melhor as tarefas;
• Os membros precisam compreender e assumir suas responsabilidades;
• A comunicação entre ICMBio e ASAREAL precisa ser melhorada;
• Mensalidade é baixa?
De posse das sistematizações, e energizados pelo debate, os participantes da oficina retornaram aos locais onde moram
ou estavam hospedados, com a missão de reunirem-se no dia seguinte para construírem um novo modelo de organização para a
REAL, que buscasse superar os obstáculos identificados, e estimulasse a ocorrência dos aspectos desejados.

Construindo o modelo
A partir desta reflexão, e também do histórico de experiências semelhantes, sobretudo na Reserva Extrativista Alto Juruá,
debateu-se sobre um modelo que tivesse como base de funcionamento cada comunidade da REAL, que fortalecesse o trânsito
de informações, e que simplificasse a estrutura e momentos de tomada de decisão.
O modelo construído se estrutura a partir de coletivos denominados núcleos de base comunitária9 (NBC): uma comuni-
dade, fracionamento espacial de uma ou agrupamento de algumas interrelacionadas, que deve escolher dentre os seus mora-
dores um conjunto de três representantes: uma mulher, um homem e um jovem de qualquer sexo.10Estes representantes dividem
as responsabilidades de organização comunitária e de representação da liderança comunitária. Dentre os três, um é escolhido
como conselheiro comunitário titular, e representa a comunidade nos conselhos deliberativos da Associação e da RESEX. Na
impossibilidade deste se fazer presente aos encontros, um dos outros dois representantes, ou até mesmo um morador designado
pela comunidade ou que esteja presente no encontro assume o papel de conselheiro. A diretoria executiva da associação pas-
sou a ser escolhida dentre os membros do Conselho Deliberativo da ASAREAL, que passou a ser constituído pelos conselheiros
comunitários de todos os núcleos de base constituídos11. Este mesmo grupo passará12 a integrar o Conselho Deliberativo da
ASAREAL, na qualidade de membro titular ou suplente.
Uma vez que a questão financeira teve grande relevância durante as discussões, tendo sido alvo de análise e tentativa de
ação anteriormente, esta recebeu significativa atenção no momento de elaboração do modelo. Definiu-se que os representantes
de núcleo de base teriam autonomia para associar e cobrar mensalidade dos sócios, podendo utilizar parte dos recursos arrecada-
dos para a realização dos trabalhos do NBC, desde que autorizados pela diretoria executiva. Também se discutiu a possibilidade
de o ICMBio contratar prestadores de serviço comunitários por meio da ASAREAL e não diretamente, como vinha acontecendo.
Em fevereiro de 2014 o Programa Áreas protegidas da Amazônia (ARPA) abriu edital para seleção de Planos de Ação
Sustentável (MMA, 2014). A equipe gestora da REAL submeteu projeto de implementação da proposta elaborada na oficina de
associativismo, o qual foi aprovado. O projeto se propõe a promover um processo amplo de reorganização comunitária para a
participação dos moradores na sua Associação (ASAREAL) e no Conselho Deliberativo da RESEX, a partir do estabelecimento
de cerca de 25 núcleos de base comunitária; discutir e estabelecer uma nova forma de funcionamento da ASAREAL e de cons-
tituição de sua diretoria; dotar a ASAREAL de estrutura mínima para o seu bom funcionamento; e reformular a estratégia de
participação direta das comunidades no Conselho Deliberativo da RESEX. Em resumo: refinar, validar e implementar o modelo
construído durante a oficina.
A implementação da proposta iniciou em outubro de 2014, com a realização de 23 reuniões comunitárias – que contou
com a participação de 316 moradores – para discussão e refinamento do modelo, e constituição de 17 dos 23 Núcleos de Base
Comunitária propostos (Figura 3).

9
A ideia de núcleos de base comunitária é antiga, funcionando, segundo as particularidades de gestão de cada reserva extrativista, em várias delas.
10
Esta divisão busca potencializar o trabalho com questões de gênero – ação de fundamental importância na sociedade mundial – e de juventude, um setor identifi-
cado estratégico para a manutenção no tempo das reservas extrativistas.
11
Com isso, instituiu-se um modelo de eleição distrital e indireta para os cargos executivos da Associação.
12
Este passo ainda não foi oficialmente implementado, aguardando o processo de recomposição do Conselho Deliberativo da REAL, o que deve acontecer em 2016.

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594
Segundo o novo estatuto (ASAREAL, 2014):

Os Núcleos de Base Comunitária são as instâncias básicas de funcionamento da Associação, e


serão constituídos em número suficiente que garantam a democracia interna e a participação das
comunidades na Associação, com a responsabilidade de:
a) Zelar pelo cumprimento deste estatuto e demais regras da Reserva;
b) Promover a organização comunitária na sua área de responsabilidade;
c) Realizar reuniões na sua área de responsabilidade, quando solicitado ou necessário;
d) Representar a(s) comunidade(s) da sua área de abrangência quando solicitado ou necessário;
e) Indicar prestadores de serviço à Associação, ao ICMBio ou seus parceiros, dentro de sua área
de responsabilidade;
f) Cobrar a anuidade dos associados, e repassá-la ao Conselheiro Comunitário da Associação;
g) Realizar o cadastramento de novos membros da Associação;
h) Divulgar o conteúdo deste Estatuto e outros documentos de interesse dos associados;
i) Procurar solucionar problemas dentro de sua área de responsabilidade, ou relatá-los às instân-
cias competentes;
j) Procurar solucionar problemas que envolvam sua área de responsabilidade e a área de respon-
sabilidade de outro(s) núcleo(s) de base comunitária, com o apoio destes.

Figura 3. Arranjo dos Núcleos de Base Comunitária da RESEX Riozinho da Liberdade.

Primeiras capacitações e o modelo em funcionamento


Entre 22 e 25 de janeiro aconteceu o Primeiro Encontro de Núcleos de Base da REAL, com a participação de 23 re-
presentantes de 16 NBCs. O encontro contou com extensa programação, com a realização de capacitações em variadas áreas,
especialmente focadas no desempenho dos representantes junto a suas comunidades. Temas como a organização de rodas

05: Sistemas de Gestão e Governança


595
de conversas, a elaboração de atas, a organização e convocação de uma reunião foram discutidos, praticados e efetivamente
realizados, constituindo-se o encontro, também, em momento particularmente importante para a identificação de necessidades
e interesse de capacitação para jovens, mulher e homens; a priorização de ações socioambientais e econômicas, e tratamento
aos temas mais importantes ou de fácil resolução; bem como o planejamento participativo de uma aula de campo da Universi-
dade Federal do Acre, com quatro dias de duração, que distribuiu 44 alunos de duas disciplinas ao longo de 17 núcleos de base
comunitária, para realizarem investigação em seis linhas de pesquisa, cinco da área da saúde e uma de priorização e construção
de modelo conceitual de cadeias produtivas de interesse das comunidades.
A utilização de jogos e técnicas do Teatro do Oprimido , para dar tratamento a determinados aspectos dos temas e pro-
mover o fortalecimento do grupo, recém constituído, foi de fundamental importância. Tendo-se identificado a questão do lixo
nas comunidades como a principal prioridade de ação, discutiram-se temas como reciclagem e conscientização ambiental,
tendo-se, inclusive, produzido uma encenação musical sobre o tema, intitulada “não jogue o lixo no rio”. Complementarmente,
questões como o exercício de poder e comportamento em reuniões também foram exemplarmente debatidas, com a vivência
de situações relacionadas.

Primeiros resultados
A aula de campo com os alunos da UFAC foi um teste importante para o modelo, uma vez que exigiu ampla mobilização
de lideranças, prestadores de serviço e moradores, para a realização das oficinas, rodas de conversa, entrevistas, investigações
em campo e outras ferramentas utilizadas. Também fortaleceu a divisão de responsabilidades entre equipe gestora, diretores da
ASAREAL e representantes de núcleo de base, contando ainda com a colaboração dos professores da UFAC responsáveis pelas
disciplinas. Apesar de alguns percalços (como o atraso na organização das equipes nas canoas no momento da partida, a não
previsão de diesel para uma das canoas utilizadas, estudantes que aguardaram por cerca de duas horas – sob forte chuva – a
“conexão” entre duas canoas responsáveis por levá-las para as comunidades mais distantes) a experiência foi considerada por
todos como exitosa, e inspiração para a elaboração do Plano de Manejo da REAL, que tem na relação estudantes + moradores
a sua base de trabalho, e foi iniciada em junho de 2015.
Em 17 de fevereiro de 2015 a Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade completou 10 anos de criação com extensa
programação e ampla participação dos moradores. Durante as festividades, que incluíram um culto ecumênico entre os princi-
pais representantes locais (e convidados) das igrejas presentes na REAL, dois torneios de futebol concomitantes em diferentes
comunidades da RESEX, bingo e atividades (jogos, brincadeiras, cantorias, pintura corporal, construção de murais) com as
crianças, realizou-se uma assembléia da ASAREAL – com 53 participantes – que apresentou o plano de ações estratégicas para
o mandato 2015-2016 (e além), aprovou novo formato de carteira e ficha de associação e atualizou o valor da anuidade para
sessenta reais (R$60). A dimensão do evento exigiu ainda mais articulação e divisão de responsabilidades entre os envolvidos
e, mais uma vez, apesar das eventualidades identificadas, (sem o controle do fornecimento da alimentação, em uma das noites
o jantar elaborado não foi suficiente para todos os participantes, demandando reforço; a necessidade de se complementar a
carne adquirida; e o combustível insuficiente para os deslocamentos realizados) todas elas devidas ao número de pessoas bem
acima do esperado, o evento foi considerado um sucesso. Momento especial foi a realização de um resgate do histórico socio-
econômico de organização comunitária, que contou com a participação de antigas lideranças locais e regionais, e o primeiro
gestor da RESEX.
Desde a organização da assembleia da ASAREAL em novembro de 2014 é a Associação que seleciona os prestadores
de serviço para a realização de atividades relacionadas ao PAS e demais ações de gestão da RESEX. Inicialmente os presta-
dores de serviço foram indicados pela ASAREAL, e o ICMBio realizou o pagamento do serviço diretamente aos prestadores, em
nome da Associação. Numa etapa intermediária, o pagamento foi feito à ASAREAL, mas toda a individualização dos pagamentos
foi organizada pela equipe gestora do ICMBio. Atualmente, o ICMBio realiza o pagamento integral à ASAREAL pelos serviços
prestados, e esta se responsabiliza pelo pagamento individual dos prestadores de serviço. Em acordo entre ICMBio, ASAREAL
e prestadores de serviço, a associação é remunerada com 20% do valor líquido das diárias pagas aos prestadores de serviço.
Este recurso arrecadado já permitiu a realização de várias atividades da Associação, como a realização de torneios de futebol,

13
Técnica teatral desenvolvida por Augusto Boal que se utiliza de jogos e dinâmicas de cena, buscando a transformação da sociedade no sentido da libertação dos
oprimidos (Boal, 2005, pág 18).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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apoio financeiro a sócios necessitados (remédios e transporte até a “rua”14), viagens de membros da diretoria executiva, em
especial a presidente eleita, Maria Renilda Santana da Costa (popularmente conhecida como “Branca”), segunda secretária na
gestão anterior. O complemento de carne durante a realização dos 10 anos da RESEX, bem como a aquisição de itens como o
globo e cartelas do bingo, bolas e alguns dos prêmios para as competições, foram adquiridos com recursos arrecadados pela
Associação nesta intermediação. Um resultado complementar para a gestão foi a desburocratização do processo de prestação
de serviço, anteriormente realizados via a contratação de pessoa física, o que demandava uma série de informações cadastrais,
pagamento da guia da previdência social, alternância na seleção dos prestadores para evitar possíveis vinculações trabalhistas,
gerando relativa sobrecarga aos atuais dois gestores da RESEX pelo ICMBio. Com a reformulação do sistema, a ASAREAL
responsabiliza-se integralmente pelos prestadores de serviço.
Ainda sobre este arranjo, o fato de ser a Associação quem seleciona os prestadores de serviço melhorou a disponibili-
dade e a qualidade de serviços rotineiramente prestados, como barqueiros e fornecimento de alimentação. Também, como a
ASAREAL privilegia a contratação de sócios “em dias” com suas obrigações estatutárias (como manter a mensalidade em dia,
participar dos encontros, conhecer seus direitos e deveres), o interesse em prestar serviço tende a estimular o envolvimento
dos moradores de uma maneira geral, já que, com a instalação dos núcleos de base comunitária as ações de gestão têm sido
executada com maior capilaridade dentro da RESEX.

Algumas pendências
Um desafio tem sido a constituição dos núcleos de base faltantes, e a efetivação da tríplice representação (mulheres,
jovens e homens) dentro dos núcleos de base constituídos. Outra meta do projeto ainda não devidamente contemplada é a ca-
pacitação dos membros da diretoria executiva da ASAREAL, sobretudo os tesoureiros, no desempenho das suas funções.

Referências
ASAREAL – Associação Agroextrativista da Reserva Extrativista do Rio Liberdade. Estatuto da Associação Agroextrativista
da Reserva Extrativista do Rio Liberdade. 15 de novembro de 2014.

BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Editora Record, 2005.

BRASIL. Decreto s/n de 17 de fevereiro de 2005. Cria a Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade.

BRASIL. Lei Federal Nº 9.985 de 18/07/2000. Regulamenta o artigo 225 da Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de
Unidades de Conservação e da outras providências.

CUNHA, C. C. Reservas Extrativistas: institucionalização e implementação no Estado brasileiro dos anos 1990. 2010,
310p. Tese (Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

ICMBIO – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Instrução Normativa No 9, de 05 de dezembro de 2014.
Disciplina as diretrizes, normas e procedimentos para formação, implementação e modificação na composição de conselhos
gestores de unidades de conservação federais.

INPE – Instituto Nacional de Pesquisa Espacial. Dados de desmatamento em UCs: Reserva Extrativista Riozinho da Liber-
dade. Disponível em http://www.dpi.inpe.br/prodesdigital/atruc.php?ID=264&ano=2013&. Acesso em 17 junho 2015.

ISA – Instituto Socioambiental. Reservas Extrativistas. Disponível em http://uc.socioambiental.org/uso-sustentavel/reserva-


extrativista. Acesso em 17 junho 2015.

MMA – Ministério do Meio Ambiente. Programa Áreas Protegidas da Amazônia. Subcomponente 2.3 – Integração das
Comunidades; Edital Nº 3: Chamada de propostas de Planos de Ação Sustentáveis (PAS). Fevereiro de 2014.

14
“Rua” é um termo popularmente utilizado para designar a cidade, neste caso o centro urbano de Cruzeiro do Sul/AC.

05: Sistemas de Gestão e Governança


597
É PARQUE, MAS NEM TÃO PARQUE ASSIM: REPRESENTAÇÕES ACERCA DO
PARQUE NACIONAL DA SERRA DO CIPÓ1

Souza, Leonardo Vasconcelos de

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, leodesouza.90@hotmail.com

Resumo
A adoção de políticas ambientais no Brasil envolve interesses baseados em diferentes ideais que geram diferentes usos sobre os
territórios. Objetivou-se identificar a representação dos moradores locais e funcionários do Parque Nacional da Serra do Cipó sobre
o que é um parque e quais usos seriam condizentes com sua conservação. As representações foram colhidas através de grupos
focais e entrevistas semiestruturadas, onde se objetivou captar a história de vida dos entrevistados, além de observação participante
com moradores e funcionários. Os resultados apontam paradoxos entre concepções teóricas e práticas de parques, entendidos
como territórios de conflitos. Percebe-se que diferentes formas de se representar nossos parques refletem diferentes formas de se
compreender a conservação ambiental, que também refletem diferentes representações sobre a relação homem/natureza.

Palavras-chave: Parque Nacional da Serra do Cipó, Conflitos socioambientais, Relação homem/natureza.

Introdução
Esse estudo parte do princípio de que existem diferentes pensamentos que influenciam a conservação ambiental do ter-
ritório brasileiro2. Visto que essas diferentes formas de se pensar e implementar a conservação derivam das representações subjeti-
vas existentes sobre a relação homem/natureza e sobre o próprio conceito de ambiente, proponho-me a identificar a representação
de atores envolvidos no contexto do Parque Nacional da Serra do Cipó (PARNA Cipó) sobre o conflito entre a população local e a
área protegida, identificando assim a representação desses atores sobre o que é um parque.
Os atores envolvidos são moradores do distrito da Serra do Cipó, que enfrentam conflitos territoriais com o Estado, gerados
durante o processo de implementação e gestão do PARNA Cipó, e os servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), órgão gestor da unidade, lotados no PARNA Cipó. Optou-se por alterar os nomes dos entrevistados man-
tendo seu anonimato.
As representações desses atores foram colhidas através de metodologias qualitativas que incluíram a realização de entre-
vistas com base em roteiro semiestruturado, onde objetivou-se captar sua história de vida, no contexto da observação participante e
da pesquisa-ação, totalizando cerca de 20 atores entrevistados em um total de quinze entrevistas realizadas entre janeiro e outubro
de 2014. Algumas representações também foram colhidas a partir de conversas informais onde foram feitas anotações em caderno
de campo.
A proposta do estudo se justifica ao contribuir para a discussão sobre a conservação ambiental em áreas protegidas de
forma a incluir os direitos sociais. Embora exista uma vasta bibliografia sobre os aspectos biológicos e o contexto turístico da Serra
do Cipó, há poucas referências que discorrem sobre questões sociais envolvendo a implantação e gestão do PARNA Cipó.
Este texto inicia-se apresentando a história da criação e implementação do PARNA Cipó e revela a existência de conflito
entre população local e Estado. Posteriormente, apresenta-se as representações sobre os significados que o PARNA Cipó assume
para os sujeitos da pesquisa. Por fim, apresentam-se reflexões sobre os paradoxos que constituem o modelo de parque brasileiro.

O Parque Nacional da Serra do Cipó


Segundo relato de um ex-morador local, por volta da segunda metade da década de 1960, iniciaram-se as primeiras dis-
cussões a respeito da criação de um parque na região. Como resultado deste movimento, o Parque Estadual da Serra do Cipó (PE
1
Esse estudo consiste em parte de minha monografia apresentada ao curso de Ciências Socioambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em
2014, e também é um dos produtos do projeto de pesquisa e extensão O Parque Nacional da Serra do Cipó (MG) e populações locais: desvelando conflitos e histórias
marginalizadas, ainda em andamento, realizado no âmbito do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais e do Programa Cidade e Alteridade, ambos da UFMG.
2
O termo conservação será utilizado neste texto como referente aos ideais da Biologia da Conservação. Não se objetivou entrar aqui na discussão acerca da dicotomia
conservacionismo/preservacionismo ou quaisquer outras categorias que possam ser adotadas, até porque, conforme discutiu Gerhardt (2008), essa discussão não é
dada a partir de dois lados opostos bem definidos.

05: Sistemas de Gestão e Governança


599
Cipó) foi criado através da lei Nº 6.605/1975, contudo, o governo só iniciou a realização de estudos objetivando sua consolidação
fundiária no ano seguinte (SOCT/CETEC, 1982a).
A criação de áreas protegidas sem a execução de estudos sobre seus aspectos ecológicos e socioculturais era comum no
Brasil, fato que só foi proibido (mas não necessariamente cumprido) com a promulgação do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC), lei Nº 9.985/2000, que definiu como dever a realização de tais estudos (MENDES, 2011). Para Dourojeanni
(2002), estudos sobre os custos relacionados à consolidação fundiária dessas Unidades de Conservação (UC) também deve-
riam ser obrigatórios, já que, dentro do contexto de criação de Parques, o direito à indenização da população residente constitui
processo moroso que pode levar anos até ser efetivado (RIBEIRO; DRUMOND, 2013), tornando-se uma “promessa” do Estado
que quase nunca é cumprida.
Em 1981, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) iniciou um trabalho para transformar o PE Cipó em
Parque Nacional (SOCT/CETEC, 1982b). O PARNA Cipó foi criado através do Decreto 90.223, de 1984, contando com cerca de
40% de suas terras já adquiridas pelo Estado no momento de sua criação (ICMBIO, 2009c). Através do Decreto 94.984/1987, foi
declarada a desapropriação do restante das terras contidas dentro dos limites do PARNA Cipó (BRASIL, 1987).
Segundo o Plano de Manejo do PARNA Cipó, do total de terras que compõem a unidade, metade foi adquirida através de
acordos de compra e venda com os moradores. A outra parte precisou ser desapropriada via processos judiciais. Ainda segundo
o documento, houve uma mudança na legislação brasileira que só permitia a desapropriação de terras mediante a apresentação
de suas escrituras. Como muitas das famílias eram posseiras, o valor de suas indenizações passou a ser bem menor já que ape-
nas suas benfeitorias eram passíveis de indenização. Outros fatores complicadores foram a instabilidade econômica da época
(que transformava as indenizações pagas em valores irrisórios), a situação dos documentos de algumas propriedades/posses
(como terras a serem inventariadas) e desavenças familiares.
A junção desses fatores implica em que parte dos processos de desapropriação permaneça em aberto, fazendo com que
moradores e ex-moradores do território hoje delimitado como PARNA Cipó estejam ainda reivindicando por seus direitos, que
incluem indenizações justas e a garantia de que possam utilizar as terras enquanto tais indenizações não são pagas.
Os servidores lotados no PARNA Cipó alegam não compreender a totalidade da situação fundiária da unidade, uma vez
que muitos documentos sequer estão sob seu domínio, e um deles acredita que o melhor caminho para a resolução do problema
seria a anulação do processo “para que então a gente tenha oportunidade de trazer essas famílias pra que sejam citadas da for-
ma correta e para que recebam aquilo que tem direito” (Geraldo, servidor do PARNA Cipó. Depoimento colhido em 28/10/2014).
O Ministério Público Federal (MPF) alega ser preciso investigar melhor a situação, pois alguns ex-moradores podem
já ter sido indenizados, porém, o fato do pagamento ter sido realizado em parcelas pode ter gerado esse sentimento entre as
famílias de que elas não receberam os valores devidos. Ainda segundo o MPF, é preciso confirmar se os representantes legais
desses proprietários/posseiros repassaram os valores indenizados a seus clientes e se, no caso das propriedades em espólio,
esses valores foram distribuídos entre os herdeiros3.
Diante desse caos fundiário, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), órgão
gestor da unidade à época, solicitou, em 1989, a imissão de posse do território delimitado como PARNA Cipó (MPF, 2013), tendo
sido esta obtida na segunda metade da década de 1990 (ICMBIO, 2009b). Contudo, injustiças ainda foram identificadas também
neste processo. O MPF alega que houve irregularidades na citação de proprietários de terras no processo de regularização
fundiária do PARNA Cipó, sendo que alguns deles só tomaram conhecimento da ação quando notificados pelo IBAMA para
retirarem-se do terreno, o que já enquadra como nula a imissão de posse para o órgão ambiental (MPF, 2013).
Quatro famílias ainda residem dentro dos limites do Parque na chamada Zona de Ocupação Temporária (ZOT), delimi-
tada na região conhecida como Retiro (ICMBIO, 2009c). O uso do território por parte dessas famílias é limitado conforme as
especificações da ZOT, o que não as agrada por inviabilizar algumas de suas práticas.
Esses e outros impasses, causados pelas diferentes visões dos atores envolvidos, geram um cenário de conflito ambiental,
não existindo consenso sobre as formas de se efetuar a conservação ambiental da região. Os vários sentidos dados a uma UC con-
sistem em “uma tradução de imagens sob o viés das representações individuais sobre as relações do ambiente e da sociedade”
(PIMENTEL et al., 2011:145). Esse cenário de subjetividade também se faz presente no PARNA Cipó, onde buscou-se aqui com-

3
Questões discutidas em reunião, realizada em março de 2014, entre representantes da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do MPF-MG, representante
de uma das famílias atingidas e pesquisadores.

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preender as diferentes representações que o Parque possui para cada um dos grupos sociais envolvidos em seu contexto.

O Parque e suas representações


A chegada de um parque na Serra do Cipó foi sentida pelos moradores antes de sua criação, durante o levantamento
de proprietários e posseiros do território, processo em que, tendo poucas informações sobre o que se passava, essas famílias
receberam os técnicos do órgão ambiental em suas casas e os ajudaram a medir e quantificar suas vidas em planilhas, trabalho
necessário para as desapropriações legalmente previstas, porém pouco esclarecido a esses moradores. O próprio ICMBio
admite que “a criação do Parque Nacional da Serra do Cipó produziu uma série de expectativas e reações, positivas e negati-
vas” (ICMBIO, 2009b:75). Entre as promessas que lhes foram feitas, os moradores listam, além das indenizações, a oferta de
empregos e terras para que pudessem reconstruir suas vidas.

“[...] já vinha notícia que tava chegando o Parque (na época falava IBAMA; nem IBAMA, IBDF) e
acharam que era um bicho que tava chegando. Eles não sabiam, não tinha informação. Chegou
pessoal pra fazer medição [...]. Demarcaram as terras e eles ficaram esperando a resposta.
E falou que ia ter indenização, que eles iam receber rápido por aquilo, por o que eles tavam
cercando ali. Aguardaram, aguardaram. Não tiveram resposta [...]. Mas desceram com aquele
pensamento: “Nós vamos receber um dinheiro. Então nós vamos poder reconstruir uma vida aqui
em Cardeal Mota” (Ofélia, descendente de família atingida pelo PARNA Cipó. Depoimento colhido
em 17/01/2014).

A situação fundiária do PARNA Cipó permanece irregular e é causa de atritos entre população local e Estado, sendo con-
senso entre os servidores do ICMBio a existência de conflito. A solução encontrada para lidar com essas famílias foi a criação, em
2009, da ZOT, criada em caráter vitalício contendo normas de ocupação a serem seguidas pela população residente (composta
por idosos e adultos sem filhos) até que lhes sejam pagas as indenizações devidas, mas sem estender tal direito a seus suces-
sores. Conforme os termos definidos no Plano de Manejo do PARNA Cipó, essas famílias podem viver nos limites das ZOT, mas,
quando vierem a falecer, suas casas não poderão ser ocupadas por seus herdeiros (ICMBIO, 2009d). Ou seja, o Estado sinaliza
que prefere tolerar a presença ilegal dos residentes ao invés de gerar maiores discórdias com a população local, aguardando
que o problema seja resolvido pelo tempo, pois, uma vez que os residentes venham a falecer, a ocupação irregular do PARNA
Cipó estará resolvida.
Apesar de regulamentar o direito à moradia dessas pessoas, a ZOT não contribui para a resolução do conflito, pois o
problema enfrentado por essas famílias não é referente a uma questão financeira apenas (embora ela também seja importante),
mas envolve desejos dessa população que não almeja deixar seu território e têm algumas de suas práticas ameaçadas pelo novo
sentido dado ao território, no caso, a conservação ambiental restritiva.

“A questão do dinheiro nesse momento também já não faz diferença nenhuma mais. A gente foi
totalmente atropelado. Vi a vida deles totalmente atropeladas” (Ofélia, descendente de família
atingida pelo PARNA Cipó. Depoimento colhido em 03/10/2014).

Existem mecanismos que podem assegurar uma melhor convivência dos moradores no Parque enquanto suas indeni-
zações não são sanadas, dando-lhes inclusive a garantia legal do direito de morar dentro da UC. Um deles seria a adoção de
um Termo de Compromisso (TC) entre o órgão ambiental e as famílias residentes. Esse TC constitui um instrumento de caráter
transitório para a mediação de conflitos em UC (ICMBIO, 2012), que, segundo Ribeiro & Drumond (2013), também consiste em
um mecanismo legal de promoção do diálogo entre população e Estado. As autoras também ressaltam o potencial desses Ter-
mos para diminuir restrições da população local e melhor garantir a consolidação dos objetivos de conservação previstos para
a UC, sendo, portanto, um mecanismo de implicações positivas tanto para a conservação ambiental, quanto para a manutenção
do patrimônio cultural representado por essas famílias e seus modos diferenciados de vida. Para servidores entrevistados, o TC
pode solucionar o conflito existente no PARNA Cipó já que traria maior segurança para os processos de gestão da unidade, for-
malizando a condição de moradia e definindo as atividades que podem, ou não, ser realizadas pelos moradores.
Um ex-chefe do PARNA Cipó conta que tentou criar um TC com os moradores do Retiro, mas a proposta foi barrada pelo

05: Sistemas de Gestão e Governança


601
escritório central do ICMBio, pois, à época, não havia uma diretriz que definia os critérios para se redigir tal Termo. A Instrução
Normativa Nº 26 do ICMBio foi criada em 2012, contudo, os servidores afirmam que criá-la não basta, sendo necessário capacitar
a equipe para redigir e aplicar os TCs, aplicabilidade essa que também é dificultada pela negação da população em participar
de sua elaboração, conforme é previsto na Instrução Normativa. Os servidores alegam que isso ocorre devido à população
desconfiar dos agentes ambientais. “Desconfia com razão? Sim, desconfia com razão. Nós temos um histórico de relação de
conflito com essas populações” (Geraldo, servidor do PARNA Cipó. Depoimento colhido em 28/07/2014). Enquanto os mora-
dores não passarem a confiar no órgão ambiental e em seus funcionários, redigir um Termo desses será impossível, já que ideal
e normativamente é preciso a participação da comunidade para a redação do TC.
Contudo, “a solução jurídica não resolve o problema histórico cultural” (Fernando, servidor do PARNA Cipó. Depoimento
colhido em 20/01/2014). O desejo de se manter no território (ou mesmo de retornar, como foi afirmado por alguns ex-moradores)
não vem sozinho, sendo almejada a liberdade para manterem práticas que lhes foram transmitidas por seus pais e avós, que
sustentaram o modo de vida das famílias da região por gerações e que agora são postas na ilegalidade.
É preciso reforçar que esses TC só são previstos para o caso de residentes enquadrados como populações tradicionais,
contudo o reconhecimento dessa tradicionalidade não é tão simples (RIBEIRO; DRUMOND, 2013). A legislação que garante o
direito dessas populações exige, além de seu autoreconhecimento como tradicionais, um laudo antropológico que ateste sua
tradicionalidade, mas esses traços de tradicionalidade permanecem como difíceis de serem julgados/comprovados (Ibid). Essa
dificuldade se reflete nas falas dos servidores que não entendem totalmente os procedimentos para que as famílias sejam en-
quadradas como populações tradicionais e tenham direito a firmarem um TC.
Esse distanciamento dos agentes ambientais com relação às questões socioculturais é um dos questionamentos que se
faz ao modelo de proteção integral adotado no Brasil, já que os órgãos ambientais parecem não incluir outras legislações que não
aquelas atribuídas aos órgãos ambientais no processo de gestão do patrimônio ambiental. Percebe-se que esses servidores são
direcionados a cumprir apenas um certo contingente legal, não recebendo formação a respeito desse outro campo que envolve
os aspectos culturais dos territórios. A dificuldade em lidar com as diversas formas de conflito envolvendo populações diferen-
ciadas, que ainda residem e resistem dentro do território do PARNA Cipó, aparece constantemente durante as conversas com
os servidores. O próprio ICMBio admite que os problemas de relacionamento existentes entre Parque e população são devidos,
entre outros fatores, à falta de treinamento adequado dos servidores (ICMBIO, 2009d:2). Esses servidores demonstram, em di-
versos momentos, compreender que as populações residentes do Parque “querem continuar fazendo o que faziam, inclusive em
grande parte em nome da sua sobrevivência” (Geraldo, servidor do PARNA Cipó. Depoimento colhido em 28/07/2014). Contudo,
eles alegam que a inclusão desse novo universo legislativo no contexto de quem trabalha com conservação é muito recente, algo
que eles estão aprendendo agora e ainda têm muitas dúvidas.
Entre as imposições previstas na ZOT, a restrição da prática do cultivo é uma das que mais limita as famílias do Retiro. “A
área da gente plantar foi só diminuindo, foi só ficando lá pra perto da porta, na beira, aqueles pezinhos de manga... O lugar que
a gente plantava um arroz, um feijão foi fechando...” (Hugo, morador do Retiro. Depoimento colhido em 20/01/2014). O próprio
ICMBio atesta que a agricultura, se implementada de modo tradicional, “é um tipo de atividade com maior possibilidade de con-
viver em harmonia com os objetivos de unidades de conservação” (ICMBIO, 2009b: 43). No entanto, a prática não foi conciliada
com os objetivos do PARNA Cipó, havendo ainda a proibição de se abrir novas roças, o que fez com que o cultivo de alimentos
fosse substituído pelas idas e vindas aos supermercados do distrito para a compra de mantimentos.
O cultivo também constituía parte importante do processo de geração de renda das famílias atingidas e também um
modo de interação solidária desses indivíduos em comunidade, uma vez que “quando cê não tinha as coisa aí, cê emprestava
com o outro” (Jorge, morador do Retiro. Depoimento colhido em 28/07/2014). Não que esses moradores não estivessem envolvi-
dos com o mercado no passado, mas sua dependência dos produtos industrializados e agrícolas comercializados nunca foi tão
alta. “Hoje, tudo nós temos que comprar” (Jorge, morador do Retiro. Depoimento colhido em 28/07/2014). A inviabilização do
cultivo dentro das necessidades dessas famílias, além de não ser justa a elas, não compromete apenas seu direito de produção
de alimentos, mas impede que elas coloquem em prática o trabalho no qual se ocupavam há anos, pelo qual construíam suas
identidades com o território e pelo qual construíram suas histórias. “A vontade que a gente tem, eu não sei não. É de poder ficar
no lugar da gente. [...] A gente sai do lugar, a gente não tem costume do lugar, não tem lugar pra fazer nada” (Mário, morador
do Retiro. Depoimento colhido em 28/07/2014).

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É difícil para essa população compreender a situação legal referente a suas terras, principalmente pelo fato de algumas
dessas pessoas terem tido pouco ou nenhum estudo formal. Quando perguntados sobre a situação jurídica de suas terras, muitos
declaram não compreender tais questões; por outro lado, os servidores do PARNA Cipó alegam que também não estão em uma
condição muito diferente: “Nós desconhecemos uma parte dessa história daqui” (Bernardo, servidor do PARNA Cipó desde
2010. Depoimento colhido em 20/01/2014). Ou seja, nem o Estado está totalmente ciente da situação dos processos fundiários
cuja sua ação (de criar um parque) gerou. Devido ao número de processos e das diferentes instâncias em que eles estão (alguns
são do âmbito administrativo do ICMBio, outros são processos judiciários), os servidores alegam ser difícil encontrar todos os
documentos que compõem o quadro da situação fundiária do parque.

“Isso aqui é uma infinidade de situações que, às vezes, pra gente que tá no executivo aqui, é
muito difícil buscar essas informações porque quem dialoga com a justiça é a Procuradoria e
muitas vezes a gente tem procuradores que não necessariamente dialogam com a gente, assim,
de um modo muito fácil. Têm situações e situações, claro” (Queila, servidora do PARNA Cipó.
Depoimento colhido em 20/01/2014).

Percebe-se no contexto do PARNA Cipó a ocorrência de um processo autoritário e intolerante de criação, implementação,
implantação e gestão da UC, o que pode ser associado ao “engessamento da unidade regulatória em contraposição à diversidade
de situações” (PIMENTEL et al., 2011) que se apresentam localmente. Existe um cenário político de ressentimentos (LOBÃO, 2006)
por parte dos moradores, que se sentem prejudicados pela chegada do Parque, o que pode resultar na rejeição dessas famílias
a quaisquer práticas conservacionistas adotadas pelo poder público (MENDES, 2011), o que é evidenciado pela fala de Nelson:
“Quando nós estávamos lá, nós tentávamos conservar a natureza lá, olhar, dar notícia e tudo. Mas tiraram as pessoas! Agora não
tem nada disso não. Agora por mim pode queimar até o mundo todo” (Morador do Retiro. Depoimento colhido em 19/01/2014).
Embora alguns moradores enxerguem a figura de um parque como “um produto do Governo Federal que mais se vende
hoje pro turismo” (Denis, membro da associação de moradores local. Depoimento colhido em 03/10/2014), outros acreditam na
importância biológica da unidade e a avaliam como necessária para a Serra do Cipó, sobretudo para a organização da atividade
turística na região. Para Denis, existe muito ainda a ser revisto sobre a ideia de parque, tanto em seu conceito difundido pela so-
ciedade quanto na legislação, pois “eles [os órgãos ambientais] já chegaram com uma referência que o problema na natureza
é a comunidade, onde que eu falo que a biologia, às vezes, errou muito” (Depoimento colhido em 03/10/2014). Para Ofélia, des-
cendente de família atingida pelo PARNA Cipó, a questão está centrada “sobre o modelo de parque que a gente tem. Poderia
aceitar-se as pessoas sim dentro do parque” (Depoimento colhido em 03/10/2014).
Embora percebam que a concepção de UC de Proteção Integral gere conflitos territoriais, os discursos de alguns dos
servidores do PARNA Cipó exprimem sua crença na premissa de que a eficaz conservação da biodiversidade, inclusive para
sua utilização pelas populações humanas, só pode ser alcançada com uma baixa atividade de exploração humana nos territórios
conservados, o que nos remete a um discurso de segregação entre humanidade e natureza. Contudo, um desses servidores
alega que “a humanidade está em todo lugar. Então, essa história de que tem terra sem gente não existe mais. [...] Botar uma
cerquinha, pegar uma carabina e falar que é só não deixar ninguém entrar que isso aqui está protegido é uma ilusão” (Geraldo,
servidor do PARNA Cipó. Depoimento colhido em 28/07/2014), o que realça certa contraposição entre as subjetividades desses
gestores no que tange a suas concepções sobre a relação homem/natureza.
Nesse sentido, associa-se o conflito na Serra do Cipó entre ICMBio e população local a outro conflito que se dá no campo
das ideais sobre o que é parque e o que é proteção integral. Percebe-se que a categoria parque é compreendida, hegemonica-
mente, por esses servidores como um território destinado a dois usos somente: conservação e uso público. Contudo, parte da
equipe também encara o PARNA Cipó como um território de conflito que envolve interesses conservacionistas, turismológicos,
econômicos, de moradia, de adoção de práticas tidas como tradicionais.
Para a comunidade local, o PARNA Cipó é tido como a extensão do Estado que, em prol da conservação ambiental, pro-
move injustiças sociais. Apesar da unidade ser considerada uma instituição importante para a Serra do Cipó, tanto por fomentar
sua economia, quanto por ordenar o turismo local, o sentimento de indignação está presente em muitas dessas pessoas. Indig-
nação pela forma como tiveram suas identidades atropeladas, pelo descaso que sentem por parte do Estado e por acreditarem
que sua situação nunca será resolvida.

05: Sistemas de Gestão e Governança


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Legalidade X Realidade
Os depoimentos colhidos e a observação realizada junto a esses autores revelaram também a existência de paradoxos
entre o modo como os parques são desenhados na política de conservação brasileira (Parque Legal) e a forma como o são con-
solidados no âmbito do local (Parque Real). Alguns desses paradoxos, percebidos no caso do PARNA Cipó, são apresentados a
seguir e estão sintetizados na Figura 1.

Figura 1.Esquematização das diferenças entre o modelo de parque brasileiro (Parque Legal) e sua aplicação (Parque Real). Criação própria.

Apesar de ser perceptível a disposição de alguns policy makers brasileiros em criar parques (assim como outras áreas
protegidas), percebe-se que esses atores não se preocupam em (ou ao menos não têm sido capazes de) destinar os recursos
financeiros necessários para a eficaz implementação e gestão desses territórios de conservação (ICMBIO, 2009a), o que pode
ocorrer devido ao baixo poder político que a temática ambiental possui frente a interesses econômicos. Isso tem resultado em um
cenário político brasileiro onde é comum que o Estado não seja eficaz em concretizar a implantação das UC que cria (MENDES,
2011).
A implantação e gestão de UC no Brasil, sobretudo as de Proteção Integral, têm gerado diversos episódios de conflitos
em que se disputa o poder pelo controle do ambiente (ABAKERLI, 2001), o que é evidenciado pela análise dos documentos e
depoimentos aqui apresentados. Os conflitos na Serra do Cipó também são causados pela existência de diferentes modos de
representação e apropriação de ambiente, o que é evidenciado não somente através das entrevistas e da observação realizada
junto aos atores entrevistados, mas também na legislação ambiental brasileira.
Para as famílias que viviam e vivem no território tido hoje como Parque Nacional, há o comprometimento da continui-
dade de sua reprodução social, que passa a ser limitada ou mesmo inviabilizada pela categoria de UC criada na Serra do Cipó.
Considerando-se que a cultura de um grupo humano não é estática já que, durante seu processo de transmissão hereditária,
os códigos culturais que a formam podem permanecer, ser recodificados ou mesmo perdidos em prol da adoção de outros
(CLAVAL, 1999), não é possível afirmar que a mudança nas vidas dessas pessoas se deva exclusivamente à chegada do PARNA
Cipó, visto que seus valores e comportamentos estavam sujeitos a sofrer alterações com o decorrer do tempo. O que se percebe
no contexto do PARNA Cipó é que, ao se impor uma prática de conservação ambiental baseada no saudosismo do selvagem
(THOMAS, 2010), criou-se um outro saudosismo entre a comunidade atingida; um saudosismo sociocultural referente ao modo
de vida no qual essas famílias iam se reproduzindo socialmente e no espaço.
Esse risco à continuidade de práticas sociais é ainda mais ressaltado quando atinge comunidades que possuem modos
de vida que promovem usos e significações diferenciados de se apropriar do ambiente (DIEGUES, 2001). Para Arruda (1999),
esses modelos próprios de desenvolvimento criados temporal e espacialmente por essas comunidades diferenciadas não são
valorizados e a expulsão desses grupos sociais de seus territórios acaba constituindo uma ação do Estado que incentiva a inte-
gração ou a marginalização dessas pessoas no padrão hegemônico de sociedade. Como resultado, tem-se não somente a perda

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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do patrimônio cultural que esses modos de vida diferenciados constituem, mas também a expansão de dinâmicas predatórias
pela sociedade, o que, em um contexto geral, vai contra os objetivos de conservação promovidos pelo próprio Estado.
A questão central que causa todos esses conflitos de interesses está ligada, portanto, às diferentes visões que se tem
sobre como implementar a conservação da biodiversidade, protegendo-a frente aos impactos causados pela expansão do mode-
lo urbano e industrial de sociedade. Mais do que promover a segregação entre homem/natureza, conforme é, de certo modo,
colocado pelo conceito legal de parque, é preciso compreender as diferentes transformações que os diferentes grupos humanos
promovem no espaço em que vivem, para então analisar quais medidas devem ser tomadas em cada caso.
Mesmo em meio a críticas negativas aos parques brasileiros, não está se defendendo aqui a extinção desse ou de
qualquer outro tipo de área protegida, uma vez que se percebe como necessária a delimitação de áreas com usos restritos e con-
trolados em prol da manutenção de ecossistemas. Contudo, busca-se incentivar o movimento de reflexão sobre nossos parques
de modo a incorporar-lhe saberes e usos locais demonstrando a fragilidade de se implementar a conservação da forma que é
proposta, uma vez que ela limita sua própria gestão, diminui o espaço cultural e baseia-se em medidas administrativas descone-
xas com as realidades do território que visa conservar (PIMENTEL et al., 2011).
Como exemplo dessa desconexão entre Parque Legal e Parque Real estão as populações que residem ou fazem uso
dentro de territórios transformados em Parques, o que representa um grande antagonismo entre o conceito de Proteção Integral
definido teórica e legalmente e sua construção real (PIMENTEL et al., 2011), o que tem gerado conflitos na região da Serra do
Cipó, que podem comprometer a capacidade de conservação (MEDERIOS, 2006; PIMENTEL et al., 2011) e a qualidade de vida
das populações locais.

Discussões finais

Leonardo: Se você pudesse resumir em uma frase o conceito de Parque, qual seria?
Ofélia: Mudança. Tanto no modelo, quanto no que a gente tem aqui.
(Ofélia, descendente de família atingida pelo PARNA Cipó. Depoimento colhido em 03/10/2014 por
Amanda Pacífico e Leonardo de Souza).

A política de conservação ambiental brasileira é relativamente recente, sendo necessário promover constantes reavalia-
ções com o intuito de melhorar sua eficácia para a proteção de nossos ecossistemas já tão fragilizados. A discussão dos ideais
de conservação pode diminuir contradições existentes entre discursos e suas aplicações práticas, contradições que são comu-
mente percebidas no atual cenário brasileiro de conservação ambiental.
É claro que o desenho de parque expresso na legislação jamais poderá ser aplicado sem ajustes às diferentes realidades
às quais for submetido, o que exige tanto uma visão mais ampla sobre o que são as práticas de conservação quanto uma maior
inserção da população local nessa discussão.
Uma vez que a gestão do PARNA Cipó não consegue fazer valer mecanismos que promovam melhores condições de vida
a suas populações atingidas, como o Termo de Compromisso, o PARNA Cipó torna-se replicador de uma política conservacionis-
ta que é no mínimo utópica já que não consegue conciliar-se com as realidades locais. É preciso construir outras possibilidades
de conservação para o PARNA Cipó, valorizando as tentativas de resolução dos conflitos fundiários e culturais existentes, sem
deixar de cobrar empenho para que um TC seja celebrado entre as partes. Mesmo servindo como paliativo, os TCs podem satis-
fazer as necessidades e desejos da população que aguarda as indenizações por suas terras, assegurando-lhes mais qualidade
de vida e segurança jurídica. Ressalta-se que a adoção de um TC, ou mesmo da ZOT, não constitui benefício, mas sim direito
legitimamente assegurado à população e estabelecidos como dever do Estado.
Conclui-se, portanto, que o PARNA Cipó é um parque, mas, ao mesmo tempo, não é tão parque assim, pois não consegue
se manter dentro do desenho de parque previsto em nossa legislação nem mesmo nos ideais de conservação que o moldaram.
Como consequência, a consolidação prática do PARNA Cipó se torna não somente ilegal em diversos termos, como também um
mecanismo que cria questões sociais ao ferir direitos da população local.

Referências
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605
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Documentos, Reportagens e Sites


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– Encarte 1. Diário Oficial da União, n.127. Brasília, 6 jun. 2009a.

ICMBIO. Portaria n.55: Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra do Cipó e Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira
– Encarte 2. Diário Oficial da União, n.127. Brasília, 6 jun. 2009b.

ICMBIO. Portaria n.55: Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra do Cipó e Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira
– Encarte 3. Diário Oficial da União, n.127. Brasília, 6 jun. 2009c.

ICMBIO. Portaria n.55: Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra do Cipó e Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira
– Encarte 4. Diário Oficial da União, n.127. Brasília, 6 jun. 2009d.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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ICMBIO. Instrução Normativa Nº 26, de 4 de julho de 2012. Estabelece diretrizes e regulamenta os procedimentos para a elabo-
ração, implementação e monitoramento de termos de compromisso entre o Instituto Chico Mendes e populações tradicionais
residentes em unidades de conservação onde sua presença não seja admitida ou esteja em desacordo com os instrumentos de
gestão. Diário Oficial da União, n.130. Brasília, 6 jul. 2012a.

MPF. Cumprimento da Sentença em Ação de Desapropriação – Processo n° 2000.38.00.08183-3. Belo Horizonte: Ministério Pú-
blico Federal, 4 out. 2013.

SOCT/CETEC. Relatório das principais atividades realizadas para a implementação do Parque Estadual da Serra do
Cipó. Belo Horizonte: Sistema Operacional de Ciência e Tecnologia (SOCT) / Fundação Centro Tecnológico de Minas Gerais
(CETEC), ago. 1982a.

SOCT/CETEC. Anexo 8.1. In: SOCT/CETEC. Relatório das principais atividades realizadas para a implementação do
Parque Estadual da Serra do Cipó. Belo Horizonte: Sistema Operacional de Ciência e Tecnologia (SOCT) / Fundação Cen-
tro Tecnológico de Minas Gerais (CETEC), ago. 1982b.

05: Sistemas de Gestão e Governança


607
ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS PARA CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
DE USO SUSTENTÁVEL: O CASO DAS RESEX MARINHAS NO ESTADO DO PARÁ

Silva, Regina Oliveira da1; Albuquerque, Adna2; Almeida, Ruth Helena Cristo3 & Pereira, Jorge Luiz Gavina4

1. Museu Paraense Emílio Goeldi, oliveira@museu-goeldi.br; 2. Consultora Independente, adnaalbuquerque@ yahoo.com.br;


3. Universidade Federal Rural do Pará, ruthpara@yahoo.com.br; 4. Museu Paraense Emílio Goeldi, jorgeluiz gavina@museu-goeldi.br

Resumo
Estudos socioambientais estão previstos no SNUC para a criação de unidades de conservação de uso sustentável. Nos anos de
2012 e 2013 foram realizados quatro estudos para a criação especificamente reservas extrativistas marinhas no estado do Pará.
Trabalhou-se nos municípios de Magalhães Barata, Marapanim, São Caetano de Odivelas e Augusto Correa. Foram desenvolvi-
das metodologias para esses levantamentos tendo-se como base teórica as etnociências e a participação. As metodologias foram
agregadas de forma a responder as questões, como: se há ocorrência de populações tradicionais, seus modos de vida e usos dos
recursos naturais existentes. Os resultados apontaram para existência de populações tradicionais, tendo como principal ambiente
utilizado os manguezais. Discute-se o futuro do território após a da criação das desejadas unidades de conservação, o que ocorreu
em 2014.

Palavras-chave: Etnociências, Métodos Participativos, Reservas Extrativistas Marinhas.

Introdução
Sabe-se que a proteção, o uso sustentável da biodiversidade e a manutenção de populações tradicionais são alguns dos
desafios da humanidade para as próximas décadas. A estratégia, praticada pelos governos em geral, para se atingir estas metas de
conservação é a criação e manutenção de Unidades de Conservação (UC) como Parques Nacionais, Reservas Biológicas e Reser-
vas Extrativistas. Se bem gerenciados, estes espaços oficialmente protegidos podem dar uma contribuição extremamente relevante
para a proteção da natureza contra a extinção de espécies, o desmatamento em larga escala e o mal uso de recursos naturais, além
de evitar o aumento do número de refugiados da conservação e valorizar os ditos “saberes não-científicos” (DOWIE, 2006; BORGES
et. al; 2007). A criação de unidades de conservação implica em transpor barreiras que afetam direta e indiretamente setores e atores
sociais locais em prol de uma sociedade futura.
As Reservas extrativistas foram concebidas com o propósito de manutenção da biodiversidade e da diversidade cultural
de povos tradicionais. Tendo sua concepção advinda das lutas dos movimentos sociais ao se conjugarem aos movimentos ambi-
entalistas desde o final da década de 1980. O processo de criação desses territórios pode ser sintetizado por meio da dinâmica do
movimento social dos seringueiros em dois momentos principais: o primeiro relativo aos chamados “empates”- que se configuraram
em ações coletivas de caráter espontânea; e o segundo relativo à proposição das “Reservas Extrativistas”- resultante do I. Encontro
Nacional dos Seringueiros (ALLEGRETTI, 1989).
Esses territórios foram destinados à exploração sustentável e à conservação dos recursos naturais por população extrativis-
ta. As reservas extrativistas chamam a atenção dos conservacionistas e pesquisadores por se tratarem de uma categoria que mescla
as questões da conservação da biodiversidade com as prerrogativas das comunidades extrativistas tradicionais.
Muitas vezes, as reservas extrativistas são pensadas somente territórios florestais, quando há viabilidade do extrativismo
ocorrer em outros ecossistemas, como o clássico exemplo da primeira reserva extrativista criada fora dos limites da Amazônia e
com uso de recursos distintos. Trata-se da Reserva Extrativista Marinha (REM) de Pirajubaé, no estado de Santa Catarina, criada
em 1992 (CECCA, 1997).
Mesmo na região amazônica, especificamente nos Estados do Amapá, Pará e Maranhão que possuem ecossistemas cos-
teiros, diversos estudos têm mostrado a viabilidade do extrativismo nesses ambientes. Destacam-se estudos de Furtado com as
populações Haliêuticas (1994) os de Cunha (1992) sobre o extrativismo nos manguezais, entre outros.
Podendo ser categorizadas como uma subcategoria das reservas extrativistas, as Reservas Extrativistas Marinhas (REM)
estão abrangidas pela definição do artigo 18 do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei n. 9985 de

05: Sistemas de Gestão e Governança


609
18/06/2000), que as define como: “Área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extra-
tivismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos
básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade”.
Entende-se que a criação de uma Reserva Extrativista envolve o reconhecimento das comunidades tradicionais, de seus
territórios e da importância do conhecimento e das práticas locais para conservação ambiental. Considera-se que as questões
socioambientais, por sua complexidade, requerem ser observadas e analisadas sob a ótica da interdisciplinaridade, uma vez
que envolvem não somente os conhecimentos técnico-científicos, mas também as dimensões históricas, culturais, políticas e
institucionais, capazes de dar visibilidade à pluralidade socioambiental existente.
As comunidades pesqueiras são desconsideradas pelo poder público no que se refere: (i) à proteção dos territórios de
pesca e propriedades de uso comum, prejudicadas por uma legislação elitista e excludente; (ii) estão submetidas ainda ao fato
da pesca ser considerada de livre acesso, ao agravamento dos riscos sofridos pelos oceanos, à especificidade dos recursos
explorados (como mobilidade e sazonalidade); (iii) à ausência de institutos jurídicos pertinentes, à concorrência com a pesca
industrial e à dificuldade em entender-se terra e mar como uma unidade na qual comunidades tradicionais dependem não só
economicamente como socioculturalmente (FURTADO,1993; OLIVEIRA et al., 2013).
No Estado do Pará, nos períodos de 1997 a 2007, inúmeras demandas para criação de unidades de conservação de uso
sustentável na região costeira surgiram a partir do movimento dos pescadores e pescadoras em defesa de seus territórios. Em
2001 é criada a primeira REM do Estado, localizada na Ilha do Marajó, município de Soure. Desde então, com os movimentos
sociais mais organizados, outros territórios foram delimitados nessa categoria de unidade de conservação.
Atualmente existem 12 REM no Estado do Pará. As últimas REM criadas no ano de 2014 foram o objeto deste estudo. Este
artigo tem como objetivo descrever os métodos desenvolvidos para a realização dos estudos socioambientais tendo como base
teórica as etnociências e a participação.

Metodologia
O estudo foi realizado em quatro municípios da região do Nordeste Paraense, denominada de Microrregião do Salgado,
a saber: Magalhães Barata, Marapanim, São Caetano de Odivelas e Augusto Correa, atendendo aos processos de solicitação
para criação de unidades de conservação de uso sustentável junto ao ICMBio (Figura 1) .Os municípios foram percorridos
alternadamente a cada dois meses, ocasião em que se organizam os contatos com lideranças locais para uma agenda prévia
de atividades de campo. Em cada município foram visitadas as comunidades que haviam solicitado a criação da RESEX, assim
como as organizações e instituições locais que apoiavam a proposta, com permanência média de 10 a 15 dias em cada região.
Os dados aqui apresentados foram coletados de dezembro de 2012 a junho de 2013.

Levantamento de dados
A realização do diagnóstico socioambiental foi precedia pela pesquisa de dados bibliográficos e documentais. Foram
utilizados métodos de abordagem qualitativa e quantitativa, como observação participante, conversas informais, entrevistas aber-
tas e fechadas e listagem livre. Um informante-chave identificado pelos moradores como a pessoa que “tem o dom” para de-
terminada atividade era entrevistado e indicava outro morador que na opinião dele também “tinha do dom”. Foram utilizados
questionários semiestruturados que abordaram questões tais como: caracterização familiar, domiciliar, estrutura e organização
social, conhecimento sobre o que são reservas extrativistas, áreas e técnicas de pesca utilizadas; identificação e caracterização
biológica das espécies vegetais do ecossistemas manguezal, principais representantes e seus usos da fauna local terrestre e
aquática encontradas na região.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
610
Figura 1. Nordeste Paraense e a localização da microrregião do Salgado.

Para o reconhecimento/identificação das espécies locais utilizou-se a metodologia de apresentação de pranchas com
imagens e fotos. A confirmação taxonômica das espécies citadas pelos entrevistados foi realizada por meio de consultas à litera-
tura específica para a região.
Para complementar os estudos sobre os recursos marinhos e de desembocaduras, além do trabalho de etnolevanta-
mento, foram realizados acompanhamentos de pescarias tradicionais e observação de desembarque pesqueiro que ocorriam na
ocasião da estadia de campo (Figura 2).

Figura 2. Espécies de peixes identificados por meio de e desembarques pesqueiros (A) acompanhamentos das
pescarias (B) no Município Marapanim-PA.

O tempo de permanência em cada comunidade foi de pelo menos um a dois dias, quando por meio da realização de
oficinas eram prestados esclarecimentos sobre os objetivos do projeto e as formas de trabalho. Nas oficinas foram realizadas
atividades em grupos e aplicados métodos de coleta de dados utilizando-se técnicas e ferramentas participativas. Para a for-
matação e discussão dos atores institucionais e políticas públicas utilizou-se o diagrama de Venn. Informações sobre o futuro
do território uma vez concebido foram obtidas e analisadas mediante o uso da ferramenta da Matriz Histoecológica (OLIVEIRA,
2008). Trata-se de um método que permite avaliar as mudanças ocorridas e os graus de importância dos principais produtos na-
turais utilizados pelas famílias no passado (-10), no presente (0) e as projeções para o futuro (+10) e esclarecer o uso e o acesso
aos recursos nesses períodos. A ideia não é buscar consenso e sim promover o debate entre os participantes do grupo. Neste

05: Sistemas de Gestão e Governança


611
exercício, o desafio aos participantes das oficinas foi que ao pensarem nos produtos ou atividades do futuro, trabalhassem com
a questão: Se a RESEX for criada/ampliada como vocês acham que estarão vivendo em dez anos?
Os resultados dos grupos sempre foram apresentados pelos próprios comunitários, gerando debates e esclarecimentos
sobre os temas abordados, além da compreensão sobre a criação de um território voltado à utilização sustentável dos recursos
naturais.
O uso de imagens de satélite georreferenciadas contribuiu para a elaboração dos mapas das áreas de uso e delimitação
da unidade de conservação. Segundo Chambers (1994) os mapas são ferramentas que podem gerar informações rápidas e de
alta qualidade, e que conduzem ao empoderamento da comunidade. O mapeamento participativo foi a ferramenta utilizada para
auxiliar na nomeação e marcação das áreas de uso em cada comunidade visitada. Assim, se delimitaram os principais locais de
pesca, caça, extração de produtos do mangue, capoeiras e matas. Também foram identificadas, quando possível, as áreas de
ocorrência de reprodução, padrões migratórios e melhores épocas de pescaria na região (Figura 3).

B
A

C D
Figura 3. Aspectos das oficinas realizadas. (a). apresentação da matriz; (b) Diagrama de Venn; (c) e (d) mapeamento.

Os resultados das atividades de campo foram processadas, tabuladas, e analisadas da perspectiva socioambiental. Os
mapas de uso foram digitalizados e as áreas delimitadas.

Resultados
Os dados levantados indicam que as áreas levantadas se localizam em municípios pobres e desprovidos de políticas
públicas voltadas para a as práticas exercidas pelos moradores, como a pesca artesanal e o extrativismo, além de apresentarem
um alto índice de moradores (78%) que dependem dos benefícios sociais do governo federal.
Notou-se ainda que havia uma intensa especulação imobiliária e as áreas de mangue vêm sendo diretamente afetadas
pela construção de portos e desembarcadouros de particulares, assim com a prática ilegal da pesca esportiva.
A respeito das dificuldades vividas nos municípios observou-se que muitas comunidades ‘sofrem’ com a ausência de
serviços básicos. Muitas não possuem transporte público, muitas estão isoladas, o que prejudica o acesso à educação, ao
sistema de saúde e o atendimento às necessidades básicas de serviços para os moradores das comunidades, como por exem-
plo, escoamento da produção. Foi registrada a carência de escolas para formação após o ensino fundamental, o que promove a
migração, sobretudo dos jovens para as cidades.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
612
Além disso, muitos dos postos de saúde não funcionam, a coleta de lixo não é adequada e não acontece em todas as
comunidades, fazendo com que o lixo se acumule nos cursos d´água, atraindo doenças pela presença de insetos, como moscas
e mosquitos, roedores e urubus.
A descrição das condições em que muitos habitantes das comunidades visitadas ainda se encontram, demonstra como
muitas ações precisam ser executadas. É importante sanar a visível exclusão econômica e social, o que demandaria uma aproxi-
mação cada vez maior do Estado para a execução de políticas públicas que melhorem o quadro descrito e o acesso aos serviços
básicos por parte de todas as comunidades.
Uma das questões discutidas nas oficinas, especificamente em São Caetano de Odivelas e Marapanim, e que se constitui
em uma das sérias ameaças à biodiversidade são os dois empreendimentos portuários planejados que se localizam na Ponta
da Tijoca, e na ilha da Romana no município de Curuçá. O interesse pelo local está diretamente ligado as condições físicas do
ambiente com profundidade de vinte e cinco metros, em águas calmas, o que dispensaria de dragagem. O primeiro é o Terminal
Marítimo Off-shore do Espadarte, que, nos anos de 1980 foi cogitado para ser o porto de Carajás e o segundo, trata-se do porto
flutuante, empreendimento do grupo Anglo-American (Companhia de Minerais Metálicos S.A- MMX).
O ecossistema reconhecido como principal é o manguezal, ou “mangal”, que na concepção dos extrativistas “não tem
dono, é livre e todo mundo pode usar”. Os moradores possuem conhecimento de seu ambiente e já exercem práticas conserva-
cionistas como a não retirada das espécies vegetais do mangue para produção de carvão ou lenha, além de evitarem o uso de
apetrechos de pesca considerados danosos com a pesca de rede de poitá e a “tapagem” dos igarapés.
Além da ideia da criação de uma unidade de conservação de uso sustentável, os resultados da matriz histoecológica
apontaram para a preocupação dos moradores com a conservação ambiental e com as possibilidades de investimentos em
outras atividades, tais como o turismo, retratada nas falas: “Se a RESEX chegar aqui é possível ter melhorias, mas se tiver uma
fiscalização o mexilhão pode voltar a aparecer no rio”. “Aqui no município o turismo é forte e na comunidade precisa de hotel,
pensamos também em ter criação de peixes e beneficiamento”. Os moradores de comunidades onde havia maior concentração
de pescadores alegaram que “a pesca é nossa principal atividade, por isso o interesse em mostrar como será no futuro”. Outras
comunidades optaram pela diversificação dos produtos para sua manutenção desde a criação da unidade de conservação.
A defesa dos territórios tradicionais de pesca por parte de pescadores artesanais não é tarefa fácil, uma vez que resulta
da difícil definição da apropriação dos espaços marinhos fora do contexto social dos envolvidos (CORDELL, 2001).
O modo como populações tradicionais de pescadores definem os territórios marinhos para diversos usos (trabalho,
subsistência, relações simbólicas), vem sendo estudado em diferentes pesquisas, onde novas visões de patrimônio são conside-
radas, permitindo o afloramento de outros níveis de relações entre sociedade e propriedade. Esses entendimentos, ao reconhe-
cerem as regras informais (mas nem por isso menos rígidas) existentes entre pescadores, legitimam direitos consuetudinários de
posse garantindo a manutenção dos locais de pesca (MALDONADO, 1986; CASTRO, 1997; MARQUES, 1991; MARQUES, 2001).
Chamy (2002) destaca que a questão é revestida de entendimentos divergentes, já que o mar é em grande parte, um
território de livre acesso. A própria Constituição Federal de 1988 não permite a posse das águas e os recursos pesqueiros são
inseridos na categoria de bens de livre acesso, o que contribui ainda mais para a exclusão das populações descapitalizadas
diretamente dependentes desses recursos. As inter-relações específicas entre pescadores artesanais e ambiente marinho, um
espaço dinâmico e arriscado, permite a elaboração de um conhecimento.
Os resultados obtidos do exercício da Matriz histoecológica, ressaltou a preocupação com os recursos pesca ao longo
dos anos e especificamente o pescado. Segundo eles “a pesca é nossa principal atividade, por isso o interesse em mostrar como
será no futuro”. Afirmaram que ”a RESEX sendo criada, os peixes podem voltar, mas não será muito não; a RESEX pode melhorar
a vida dos marisqueiros porque terá mais fiscalização, mas a pesca está fracassando”.
Observou-se que os moradores têm a percepção de que com a criação da RESEX haverá regras para o uso da terra e
“veem” na fiscalização a possibilidade de que haja controle sobre o uso de alguns recursos, além de que haverá proteção do
território.
Os resultados apresentados pelas comunidades apontaram complexidades à luz dos processos de gestão de recursos
naturais de uso coletivo, por exemplo. No entanto, nos permitiu sugerir que os resultados poderiam conduzir à criação de novos
territórios e de interpretações das tendências sugeridas pelos moradores para sua manutenção.
Os relatórios gerados abasteceram ao ICMBio para a finalização dos processos iniciados pelas populações locais e que

05: Sistemas de Gestão e Governança


613
motivaram a realização do estudo aqui apresentado, além da realização das audiências públicas na região.
Ressalta-se que, uma vez delimitadas as áreas e finalizadas as audiências públicas, foi necessário que o movimento so-
cial, capitaneado por lideranças locais estruturados em organizações civis, novamente se manifestassem pela criação imediata
dessas novas reservas extrativistas.
As unidades de conservação foram criadas em novembro de 2014, por decreto presidencial e mantidas suas nomeações
conforme sugeridas pelos extrativistas durante as audiências públicas realizadas pelo ICMbio.
Foram criadas as Reservas Extrativistas Marinha Cuinarana em Magalhães Barata; Mestre Lucindo, localizada no mu-
nicípio de Marapanim,a Mocapajuba em São Caetano de Odivelas e a ampliação da RESEX Marinha Araí-Peroba em Augusto
Corrêa.

Considerações finais
A criação de reservas extrativistas, cada vez mais comum na região Amazônica, implica problemas muito sérios para
além da questão ambiental, ligados em especial à estrutura de poder local e à gestão do território. Criar reservas extrativistas não
se resume à sua delimitação e à legalização de suas terras.
Os desafios para o desenvolvimento das RESEX incluem a necessidade do estabelecimento de atividades econômicas e
sustentáveis dos produtos tradicionais, a ausência de escolas e serviços de saúde, e o desrespeito aos seus limites por parte de
invasores, que depredam recursos e ocupam terras além do estabelecimento de uma gestão participativa.
Estas REM poderão contribuir para a conservação dos recursos naturais e para que as comunidades locais tenham
segurança fundiária, acesso às linhas de crédito e financiamento para a reforma agrária, fomento comercial, proteção e reco-
nhecimento do seu modo de vida.
O perfil das populações tradicionais é ajustado de acordo com as paisagens naturais que caracterizam as diferentes
formas de vida das comunidades estudadas. A criação e ampliação destas novas RESEX possibilitou o reconhecimento de popu-
lações tradicionais no Salgado Paraense, como é o caso dos pescadores artesanais, marisqueiros, caranguejeiros, agricultores e
pescadores de camarão. Atualmente alguns grupos já comercializam seus produtos com empresários da cidade de Belém que
valorizam seus modos de vida e praticam o preço justo.
A criação das reservas extrativistas nesses municípios intensificará a necessidade de mediação, diálogo e real conhe-
cimento da dinâmica dos recursos naturais como bens públicos assegurados pela constituição federal aos povos do mangue.

Referências
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cial, 1989.

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FURTADO, L. et al. Os Povos das Águas: Perspectiva na Amazônia. Belém: Museu Goeldi, 1993.

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FURTADO, L. Comunidades tradicionais: sobrevivência e preservação ambiental. In: D’ INCAO, M. A.; SILVEIRA, I.M. (orgs). A
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MALDONADO, S. C. Pescadores do mar. São Paulo: Ática, 1986.

MARQUES J.G. Aspectos ecológicos na etnoictiologia dos pescadores do Complexo estuarino-lagunar Mundaú-
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OLIVEIRA, R. et al. Relatórios do diagnóstico socioambiental referente à proposta de criação da Reserva Extrativista
Marinha, nos município de Magalhães Barata, São Caetano de Odivelas, Marapanim e Augusto Correa, no estado
do Pará. 2013.

05: Sistemas de Gestão e Governança


615
INTERFACES E SOBREPOSIÇÕES ENTRE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E
TERRITÓRIOS DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS:
DIMENSIONANDO O DESAFIO

Madeira, João Augusto1; Abirached, Carlos Felipe de Andrade1; Francis, Poliana de Almeida1;
Castro, Daniel de Miranda Pinto de1; Barbanti, Olympio2; Cavallini, Marcelo Meirelles1 & Melo, Mônica Martins de1

1. Analistas ambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, madeiraquecupimnaoroi@gmail.com


2. Universidade Federal do ABC (UFABC).

Resumo
A implementação de áreas protegidas é uma das principais estratégias para a Conservação da Natureza no mundo. Entretanto,
a forma como as unidades de conservação (UC) foram criadas e geridas ao longo de sua história no Brasil, não raro, interferiu
em direitos básicos de povos e comunidades tradicionais, como acesso a territórios, políticas públicas e serviços essenciais à
dignidade. Tais efeitos precisam ser tratados e minimizados com vistas a viabilizar a gestão e a aceitação e apropriação das UC,
pelas comunidades locais e pela sociedade em geral. Um passo essencial para a construção de estratégias de gestão dos con-
flitos decorrentes da situação é lançar luz sobre o tamanho do desafio, em termos quantitativos e qualitativos. Apresentamos aqui
alguns resultados gerais de um amplo levantamento destas interfaces, feito por consulta a todos os gestores das UC federais, e
a discussão de possíveis encaminhamentos.

Palavras-chave: Acordos de Convivência, Colisão de Direitos, Conflitos Territoriais, Diagnóstico Participativo, Termos de Compromisso.

Introdução
A criação e implementação de Áreas Protegidas é considerada uma das principais estratégias para a conservação da bio-
diversidade no Brasil e no mundo (IUCN, 1980; 2014; BRUNER et al., 2001; BALMFORD et al., 2002). Desde 1988, a definição de
espaços territoriais protegidos em todas as unidades da Federação é função do Poder Público, devendo contribuir para o objetivo
de assegurar o direito de todos ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida”, conforme o Artigo 225 da Constituição Federal. A promulgação do SNUC não só regulamentou este artigo da
Constituição como estabeleceu diretrizes por meio das quais o Brasil cumpriria compromissos assumidos como signatário da
Convenção para a Diversidade Biológica (CDB), firmada por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, mais conhecida como “Rio 92” (ONU, 1992). Firmando a CDB, o Brasil comprometeu-se com o estabelecimento
de áreas protegidas em pelo menos 10% de seu território.
Durante a 10ª Conferência das Partes da CDB, realizada em Nagoya no Japão, em Outubro de 2010, foi aprovado o Plano
Estratégico de Biodiversidade para o período 2011 a 2020, contemplando 20 metas – Metas de Aichi, dentre as quais o estabeleci-
mento de áreas protegidas em 17% do território continental dos países signatários (Meta 11, LINO et al. 2011); além da obrigação
de considerar, respeitar e aproveitar os conhecimentos de comunidades tradicionais e indígenas com vistas a respeitar a harmonia
entre homem e natureza (meta 18, LINO et al. 2011).
O Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), instituído pelo Decreto n° 5.758/2006, constitui a plataforma
sobre a qual o Estado brasileiro pode harmonizar a implementação de instrumentos da política ambiental, da política indigenis-
ta, da política quilombola e da política para comunidades tradicionais. O PNAP define uma estratégia territorial de integração e
complementaridade entre áreas protegidas, sob a forma de Unidades de Conservação da Natureza, Terras Indígenas, Territórios
Quilombolas e Territórios Tradicionais.
Sucede, entretanto, que a aplicação dessas políticas pelos diferentes órgãos públicos competentes resulta, em muitos ca-
sos, na coincidência de diferentes tipos de áreas protegidas no mesmo território, já que em muitos casos, os mesmos atributos têm
importância ambiental e cultural. Apesar de apresentarem objetivos complementares, uma leitura não abrangente e sistêmica da
legislação esparsa revela um conflito aparente entre as normas que regem e orientam a gestão dos distintos tipos de áreas protegi-
das. Essa interpretação superficial suscita posicionamentos excludentes, gera conflitos e distancia potenciais alianças estratégicas

05: Sistemas de Gestão e Governança


617
face aos reais vetores de depredação da natureza e da cultura, igualmente protegidas pela Constituição Federal.
No momento em que é cada vez maior o reconhecimento mundial da importância e efetividade da contribuição dos ter-
ritórios ocupados por povos indígenas e comunidades tradicionais para a conservação da biodiversidade e para a mitigação dos
efeitos das mudanças climáticas globais, o Brasil deve unir-se ao esforço mundial de integração entre os diferentes tipos de áreas
protegidas. Citamos abaixo um trecho do documento produzido ao final do Congresso Mundial de Parques da UICN, realizado
em Sydney em 2014, denominado “Compromissos de Sydney” (UICN, 2014), para ilustrar esta visão:

“As contribuições destas áreas terrestres e marinhas para os resultados de conservação em escala
local, nacional e global são agora uma parte central do discurso conservacionista e são entendidos
como cruciais para o alcance de várias das Metas de Aichi da CDB até 2020, incluindo Meta 11
(referente a áreas protegidas). Além disso, há um crescente reconhecimento do papel que o co-
nhecimento tradicional desempenha no aumento da resiliência e da capacidade das comunidades
para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas, como mencionado no Quinto Relatório de
Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).”

A história das unidades de conservação (UC) no Brasil é marcada pela alternância de períodos mais e menos favoráveis
à sua implementação (RAMOS, 2014; MADEIRA et al., 2015) bem como pela existência de significativo passivo de consolidação
territorial das UC, incluindo aí pendências de regularização fundiária e ausência de encaminhamentos concretos para os confli-
tos decorrentes da presença de populações humanas nas UC, quando em desacordo com as suas categorias de manejo ou seus
instrumentos de gestão. (VIANA, 2008; BARRETO FILHO, 2014).
A consciência de que estas situações de sobreposição e interfaces territoriais constituem aspecto importante para a con-
solidação das Unidades de Conservação influenciou o processo de estruturação organizacional do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade – ICMBio, sendo constituída uma Coordenação específica para o tratamento de tais situações.
Trata-se da Coordenação de Gestão de Conflitos Territoriais – COGCOT, vinculada à Coordenação Geral de Gestão Socioam-
biental – CGSAM, integrante da estrutura da Diretoria de Ações Socioambientais e Consolidação Territorial em Unidades de
Conservação – DISAT. Cabe à COGCOT auxiliar na formulação de diretrizes institucionais para a gestão das interfaces entre uni-
dades de conservação e territórios étnicos e áreas de uso por povos e comunidades tradicionais, bem como apoiar tecnicamente
as equipes de gestão das UC no tratamento das situações que envolvem os direitos sociais, ambientais, territoriais e culturais
desses grupos diferenciados, formadores da diversidade da sociedade brasileira.
A COGCOT atua no sentido de construir entendimentos e acordos que viabilizem tanto a gestão das UC quanto a consecução
das políticas públicas voltadas à proteção do patrimônio natural e cultural e ao desenvolvimento socioambiental nos territórios em
que as UC estão inseridas. As pactuações decorrentes do processo de abertura do diálogo interinstitucional e entre órgão gestor e
comunidades locais propiciam ambiente favorável ao alcance de encaminhamentos conciliados, transitórios ou definitivos, para os
casos que envolvem “colisão de direitos fundamentais” (MPF, 2014), que devem ser tratados de modo a que nenhuma das partes
tenha o seu direito inteiramente preterido, ainda que em alguns casos seja impossível que ambos sejam integralmente contemplados.
A partir da instituição da COGCOT, buscou-se conhecer a real dimensão do desafio, de modo a se conhecer com mais
precisão, em termos quantitativos e qualitativos, os casos de interface territorial. Em 2012 houve um esforço de levantamento das
situações de sobreposição entre UC e Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e Territórios de Populações Tradicionais, com
informações já então catalogadas no ICMBio, que resultou no trabalho intitulado “Geografia dos Conflitos Territoriais” (ICMBio,
2012), o qual apontou a existência de cerca de 100 casos de situações desta natureza, mapeados ali com maior ou menor nível
de detalhamento, conforme a disponibilidade de dados.
Em 2013 e 2014 foi realizado novo esforço no sentido de aprimorar o diagnóstico anteriormente realizado, por meio
da aplicação de extenso questionário aos gestores das Unidades de Conservação, que resultou no levantamento denominado
“Interfaces Territoriais entre Unidades de Conservação e Povos e Comunidades Tradicionais”. Com o aporte das informações
disponibilizadas pelas UC, foi possível obter um panorama das sobreposições, constituindo importante subsídio para a definição
de diretrizes e estratégias de atuação institucional perante o tema. Dados do levantamento alimentarão um sistema informatizado
denominado Sistema de Interfaces Territoriais – SIT, que pretende fornecer informações atualizadas acerca das interfaces.
Sistematizamos e analisamos aqui alguns dos principais resultados deste diagnóstico, apresentados e problematizados

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618
em função de variáveis como categoria das UC, bioma, grupo social envolvido e de dois dos principais instrumentos disponíveis
para lidar com as situações decorrentes das interfaces: os planos de manejo e os termos de compromisso. Espera-se que as in-
formações aqui contidas venham a contribuir para que a temática das sobreposições territoriais seja encarada de forma respon-
sável e sob a luz dos princípios constitucionais, promovendo soluções justas que levem à conservação da diversidade natural e
cultural que compõem a riqueza do nosso país.

Métodos
Os resultados aqui apresentados têm como fonte as respostas dadas por gestores de UC ao questionário “Interfaces entre
Unidades de Conservação e Povos e Comunidades Tradicionais”, que incluiu também interfaces com agricultores familiares e
assentamentos da reforma agrária. Trazemos aqui as informações consideradas mais relevantes para a discussão das interfaces
e de possíveis encaminhamentos.
A pergunta inicial do questionário, dirigida a todos os gestores em outubro de 20131 e que indicou haver ou não interfaces,
foi a seguinte:

Existem populações tradicionais, comunidades quilombolas, povos indígenas, agricultores famili-


ares ou assentados da reforma agrária, que residem, usam recursos naturais ou utilizam a UC
como via de acesso, em desacordo com a categoria ou instrumentos de gestão da Unidade?

A maioria das respostas se deu entre novembro e dezembro de 2013, tendo se completado até março de 2014. Em alguns
casos, de UC que se encontravam sem nenhum servidor lotado, as respostas foram dadas por servidores de Coordenações
Regionais. Seguiu-se a complementação e/ou esclarecimento das informações por técnicos da COGCOT através de consultas
a materiais disponíveis na sede e de contatos telefônicos com as equipes das UC. Reunido o conjunto de informações possíveis,
o material foi organizado na COGCOT para alimentar o “Sistema de Interfaces Territoriais” – SIT, sistema informatizado que
facilitará o trabalho do ICMBio de manter sempre atualizadas as informações colhidas, possibilitando o adequado planejamento
das ações de gestão das situações eventualmente geradas por estas interfaces e a priorização dos casos que apresentem maior
risco de escalada de conflito.
Dentre as informações colhidas no questionário, destacamos aqui as seguintes: i) taxa de respostas ao questionário por
categoria de UC; ii) porcentagem de presença de interfaces por categoria de UC; iii) porcentagem de presença de interfaces por
categoria de UC em cada bioma; iv) porcentagem de interfaces por categoria de UC por grupo social envolvido; v) abordagem
da interface nos planos de manejo por categoria de UC; e vi) porcentagem das UC com interfaces nas quais há demanda por
termo de compromisso (TC), negociações em curso para a elaboração de TC ou TC em implementação.

Resultados e Discussão
O levantamento atingiu uma taxa de respostas bastante elevada (96,4% das UC de Proteção Integral e 82,1% das de Uso
Sustentável). Ao todo foram recebidas respostas sobre 277 UC, no momento em que havia 313 UC federais no país, representan-
do, portanto, uma taxa de resposta total de 88,5% (Tabela 1).
A análise dos dados indicou haver 185 interfaces com UC federais, sendo 132 em 94 UC de Proteção Integral e 53 em 44
UC de Uso Sustentável. A taxa de ocorrência de interfaces é elevada, especialmente nas categorias de Proteção Integral (Tabela
2). Note-se que nas UC de uso sustentável, a presença humana é prevista, de modo que só foram computados os casos em que
sua presença ou os usos praticados, estejam em desacordo com a categoria ou com algum de seus instrumentos de gestão
(plano de manejo, plano de uso, acordo de gestão, entre ouros).
Verifica-se que foram informadas interfaces em praticamente todos os biomas (exceto Pampa e Pantanal, que têm cada
um apenas duas UC federais), em todas as Unidades da Federação e em todas as categorias de UC. Os dados trazem também
um conjunto de informações que permitem qualificar as interfaces e discutir medidas e estratégias de enfrentamento do pro-
blema. Em suma, todo este conjunto de dados possibilita ao ICMBio definir critérios de priorização que permitirão qualificar as
ações para o tratamento das situações decorrentes das interfaces existentes.

1
Nossos agradecimentos aos colegas do ICMBio que se dedicaram à trabalhosa tarefa de responder ao referido questionário que, entre outros resultados institucio-
nais gerados, possibilitou este trabalho.

05: Sistemas de Gestão e Governança


619
A Tabela 2 mostra as UC com e sem Interface por categoria de manejo e o Total de Interfaces. Nas UC de Proteção Inte-
gral a ocorrência de interfaces territoriais é destacadamente maior, o que não representa surpresa, já que a maioria das UC deste
grupo não admite a presença humana. A percentagem de presença de interfaces para o Grupo Proteção Integral como um todo
é de 69,6%. Dentre as categorias de uso sustentável, a proporção é de 31,0%.
Para o entendimento da análise deve-se observar que existem UC com mais de uma interface, podendo ocorrer na
mesma unidade uma interface com território indígena e outra com quilombola, ou mesmo mais de uma interface com diferentes
comunidades de um mesmo grupo social. Isso explica porque o número de interfaces é maior do que o número de UC que
responderam ao questionário afirmando haver interfaces. Por exemplo, 53 dos 69 parques nacionais informaram a existência de
81 interfaces.

Interfaces por categoria e por bioma


A distribuição por bioma das interfaces informadas tem relação com a quantidade de UC existentes em cada um deles,
mas a correlação não é direta. O maior número de interfaces existentes está no bioma Amazônia, mas esta preponderân-

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cia se dá em proporção menor do que a que corresponderia à preponderância territorial das UC amazônicas em relação ao
sistema como um todo. Os dados com o número de interfaces, o número de UC e a área total ocupada por elas estão na Tabela
3. Verifica-se que em regiões de baixa densidade populacional (como é o caso da Amazônia), a porcentagem de interfaces exis-
tentes é relativamente mais baixa que a porcentagem de território protegido no mesmo bioma. No extremo oposto, em regiões
de alta densidade populacional a proporção de interfaces é maior que a porcentagem de área protegida naquele bioma (como
na Mata Atlântica e Zona Marinho-Costeira).

Interfaces por grupo social


A análise das interfaces por grupo social requer o conhecimento de suas especificidades, haja vista as diferentes políticas
públicas, órgãos competentes e relações com os territórios que ocupam.
A Tabela 4 mostra que, dentre as 132 interfaces que ocorrem em UC de Proteção Integral, a maior parte envolve agricul-
tores familiares e populações tradicionais (N=40; 30,30% e N=38; 28,79%, respectivamente). Seguem-se interfaces com indíge-
nas (N=27; 20,45%), quilombolas (N=15; 11,36%), e assentados da reforma agrária (N=12; 9,09%). Para todas as categorias de
grupo social, o maior número de ocorrências dá-se nos Parques Nacionais (81; 61,36%), seguidos das Estações Ecológicas (26;
19,70%) e Reservas Biológicas (21; 15,91%).

Agricultores familiares são, entre as categorias aqui consideradas, aquela que menos detém direitos que garan-
tam seu espaço de trabalho, exceto quando contemplados pela reforma agrária (mas na presente análise os assentados es-
tão em outro grupo). Populações tradicionais detêm direitos territoriais de permanência em seu espaço tradicional de uso
e identidade; mas ainda não detêm, apesar da possibilidade de lograrem a criação de Reservas Extrativistas, Florestas Na-
cionais e Reservas de Desenvolvimento Sustentável, políticas e instrumentos bem estabelecidos para obterem o reco-
nhecimento à delimitação de seu espaço de uso, como ocorre com indígenas e quilombolas. Aparentemente, há menos

05: Sistemas de Gestão e Governança


621
interfaces com grupos sociais que têm sua situação mais claramente reconhecida pelo poder público.
Nas UC de Uso Sustentável (Tabela 5), verifica-se um quadro um pouco diferente, com o maior número de interfaces
ocorrendo também com agricultores familiares (37,74%), mas seguidos de indígenas (33,96%). Populações tradicionais têm nas
RESEX, FLONA e RDS instrumentos de reconhecimento de seus direitos territoriais e ambientais, daí, possivelmente, haver me-
nos casos de interfaces com este grupo social em desacordo com as normas destas UC. Indígenas e populações tradicionais,
em vários casos, disputam os mesmos recursos, mas seus direitos são contemplados (quando o são) por instrumentos diferen-
tes. As categorias onde mais ocorrem interfaces (FLONA, 47,17% e RESEX, 39,62%) são também as mais numerosas no sistema
federal e são categorias que preveem posse e domínio públicos das terras envolvidas.

Unidades de conservação, interfaces e abordagem nos planos de manejo


Uma das importantes informações obtidas através deste levantamento foi a situação de cada uma das unidades quanto
à existência ou não de um Plano de Manejo (PM) e, nos casos em que o documento existe, o tipo de tratamento que ele dá à
interface. Analisa-se, portanto, se uma determinada interface está numa UC com ou sem PM; havendo PM, se ele aborda ou não
a interface; e quando a interface é tratada, se o PM indica ou não os encaminhamentos para a gestão da interface. Analisa ainda
se os encaminhamentos indicados consideram a necessidade de que a solução seja negociada com o grupo social envolvido ou
se apresentam a solução pronta, de forma unilateral.

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622
No caso das UC de Proteção Integral (Tabela 6), 56,8% das interfaces estão em UC que já têm PM e 12,9% o têm em
processo de elaboração, apontando para um total de quase 70% das interfaces em UC deste grupo de categorias com PM num
futuro próximo. Há uma quantidade significativa de interfaces que não são abordadas nos PM existentes (37,3%); 21,3% men-
cionam a interface, mas não apontam solução. Entre os PM que registram a existência da interface e indicam uma abordagem
para o problema, 1,3% apontam a regularização fundiária, 8,0% apontam encaminhamentos unilaterais e 32,0% apontam encamin-
hamentos a serem negociados com o grupo social envolvido, como um termo de compromisso.

A situação é bem diversa para as UC de uso sustentável (Tabela 7), onde a incidência de interfaces é bem menor (25,4%
do total de UC). A proporção de interfaces ocorrendo em UC com PM é menor (47,1%), mas com os 17% em elaboração, deve-se
contar em breve com cerca de 64% das interfaces em UC de uso sustentável com PM. A proporção de interfaces não abordadas
por PM existentes é um pouco menor (32%), mas a proporção de interfaces mencionadas sem a indicação de solução é maior
(40%). Não há PM em UC de usos sustentável que indique uma solução unilateral.
Outra informação importante se obtém do cruzamento dos dados de tipo de abordagem feita pelos PM com o tempo
decorrido desde a sua publicação. Entre os PM mais recentes encontramos uma proporção maior de indicações de ações pac-
tuadas (46,7%), enquanto nos PM mais antigos esta proporção está próxima dos 15% (Tabela 8). A proporção de PM que indicam
ações unilaterais para lidar com as interfaces variou menos, embora seja um pouco maior nos PM mais antigos que nos recentes.
Já a porcentagem de PM que não abordam as interfaces reduziu-se significativamente, mas ainda é alta: 26,7% nos PM mais
recentes, 60% nos de 10 a 14 anos e 41,7% nos mais antigos, de mais de 15 anos (Tabela 8).

05: Sistemas de Gestão e Governança


623
Encaminhamentos transitórios para interfaces: termos de compromisso
Diante do volume e variedade de situações de interfaces territoriais identificadas, outra importante análise feita sobre as
respostas obtidas é quanto ao número de gestores que informaram haver demanda pela celebração de termos de compromisso
(ou instrumentos semelhantes) com os grupos sociais envolvidos nas interfaces, com vistas a compatibilizar, ao menos transito-
riamente, a conservação da biodiversidade e a sobrevivência digna dos moradores e usuários de recursos naturais; bem como
viabilizar uma convivência harmônica entre comunidades e gestão da Unidade. O instrumento previsto na legislação que se
adéqua à maior parte destas situações é o termo de compromisso.
Considerando-se as dificuldades em termos de recursos humanos e financeiros para o enfrentamento deste e de tantos
outros problemas nas UC, os TC seriam uma forma de permitir que a busca e a construção do melhor encaminhamento para as
interfaces pudesse se dar em um clima de boa convivência e, portanto, mais produtivo. Para qualificar esta ação foi publicada uma
Instrução Normativa (IN no 26/2012) do ICMBio, que visa a dar uniformidade aos procedimentos de elaboração, implementação e
monitoramento de termos de compromisso com populações tradicionais em unidades de conservação. O caminho da construção
de TC vem sendo trilhado pelo ICMBio, nos moldes previstos na IN 26/2012, em seu capítulo II (dos objetivos e diretrizes), Art. 3º:

I - compatibilizar os objetivos da unidade de conservação e as formas próprias de ocupação do ter-


ritório e de uso dos recursos naturais pela população tradicional residente na unidade, seus modos
de vida, fontes de subsistência e locais de moradia;
II - assegurar as condições de gestão da unidade de conservação e a integridade dos atributos que
justificaram sua criação, até a efetiva consolidação territorial da área.

As tabelas 9 e 10 mostram o cenário do processo de demanda e implementação de termos de compromisso nas UC


federais. Percebe-se que o número de TC em implementação é pequeno frente à demanda já verificada, sobretudo entre as UC
de proteção integral (Tabela 9). Saliente-se que o fato de em alguns casos não haver demanda pode dever-se a uma situação de
relativa tranqüilidade na relação entre as partes (comunidade e equipe gestora da UC) ou à falta de conhecimento e organização
dos envolvidos para a busca da garantia de seus direitos.

Considerações finais
O tema aqui abordado tem sido, historicamente, foco de acaloradas discussões de cunho político-ideológico no meio
institucional, social e acadêmico. Frequentemente tende-se a um movimento “pendular”, no qual a gestão das unidades de con-
servação ora tende a desconsiderar os direitos das populações afetadas pela sua criação, ora dá ênfase aos mesmos, suscitando
críticas conforme a conjuntura no momento. Sem adentrar em casos específicos, que não é o objetivo do presente artigo, con-
sideramos oportuno que as discussões acerca do tema sejam pautadas na objetividade e na busca de soluções concretas para
as sobreposições. Faz-se necessário considerar o conjunto de interesses legítimos e direitos envolvidos nas interfaces, de modo
que as soluções encontradas sejam de fato implementadas e alcancem o fim das controvérsias.

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Ainda que alguns processos de criação de Unidades de Conservação não tenham sido suficientemente cuidadosos
na prévia identificação de eventuais territórios tradicionais nas áreas transformadas em UC de proteção integral, considera-se
legítima e necessária a implementação de um sistema de áreas protegidas capaz de garantir a conservação da natureza. Con-
sidera-se igualmente legítima a presença de povos e comunidades tradicionais, muitas vezes responsáveis pela manutenção dos
atributos naturais que justificaram a posterior afetação da área como unidade de conservação. Em muitos casos, infere-se que
o deslocamento dessas populações de seus territórios ancestrais acarretaria em prejuízos para a conservação da natureza, e tal
medida só deve ser adotada em casos excepcionais e mediante processo dialogado com os grupos envolvidos.
A adoção de posicionamentos radicais pelas partes inviabiliza o tratamento dos conflitos, dificulta a implementação da
UC e prejudica o alcance dos direitos da população envolvida. Por outro lado, a observância ampla e sistêmica do ordenamento
jurídico nacional e internacional que rege a matéria, contribui para a construção de entendimentos, acordos e soluções de con-
trovérsias, proporcionando a harmonização e complementaridade entre as políticas ambiental, cultural, étnica e territorial.
Exemplos dessas possibilidades são os nove termos de compromisso já celebrados entre o ICMBio e comunidades
tradicionais (Tabelas 9 e 10), a participação ativa de povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais
nos Conselhos Gestores de UC, o envolvimento colaborativo do ICMBio nas políticas de gestão ambiental de terras indígenas
(PNGATI - Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas) e de territórios quilombolas, assim como os
acordos celebrados no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) da Advocacia Geral
da União (AGU).
O diagnóstico das interfaces territoriais realizado pela COGCOT/ ICMBio tem a intenção de iluminar novos caminhos que
levem a resultados justos, democráticos e transparentes, com institucionalidade e observância a todos os direitos em questão.
Espera-se que o conhecimento acerca do histórico e do atual cenário das sobreposições possa também contribuir para a cor-
reção de eventuais injustiças porventura decorrentes da sobreposição de territórios tradicionais por unidades de conservação
que impõem limitações ao exercício dos direitos de comunidades locais que secularmente ocupam e conservam áreas com
atributos naturais relevantes também para a conservação da biodiversidade.
Sabe-se que o apoio da sociedade é fundamental para a consolidação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação
e para a manutenção da integridade do conjunto das Áreas Protegidas instituídas no país, todas fortemente ameaçadas pelos
interesses dos setores desenvolvimentistas que dominam o cenário político no Brasil.
Diante do exposto, propomos que, a partir da sistematização dos dados e do real dimensionamento da questão, se cons-
trua uma nova visão acerca da complexa realidade das interfaces territoriais, orientando as ações do poder púbico no sentido da
mediação de interesses/direitos e da promoção da justiça social, posto que é sua função. Propomos a priorização da busca de
arranjos institucionais e encaminhamentos colaborativos, que fortaleçam as políticas de implementação de todas as Áreas Pro-
tegidas e valorizem a complementaridade entre as dimensões cultural e ambiental, reconhecendo a indissociável relação entre
homem e natureza, no país do pluralismo e da megadiversidade.

05: Sistemas de Gestão e Governança


625
Referências
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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MONITORAMENTO PARTICIPATIVO DA BIODIVERSIDADE: ENVOLVIMENTO
DE ATORES LOCAIS NA CONSERVAÇÃO E GESTÃO DAS
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NA AMAZÔNIA

Prado, Fabiana1; Tofoli, Cristina Farah de1; Figueira, Pollyana Lemos1; Chiaravalloti, Rafael Morais1,2; Santos,
Rita Silvana Santana dos3; Sousa, Ilnaiara4; Fernandes, Laís4; Bonavigo, Paulo Henrique5 & Maduro, Rubia Goreth Almeida4

1. IPÊ-Instituto de Pesquisas Ecológicas pradoff@ipe.org.br, tina@ipe.org.br, lemos@ipe.org.br; 2. University College London


chiaravalloti@ipe.org.br; 3. PPG Educação, Universidade de Brasília ritasilvana@gmail.com; 4. Consultor independente ilnaiarasousa@gmail.
com, laisrochafernandes@gmail.com, rubiagorethalma@gmail.com; 5. Ação Ecológica Guaporé-Ecoporé pbonavigo@gmail.com.

Resumo
O presente trabalho tem o objetivo de promover o envolvimento socioambiental para o fortalecimento da gestão das Unidades de
Conservação (UC) e a conservação da biodiversidade na Amazônia. Sete macroações foram implementadas de maneira intera-
tiva: articulação com o ICMBio, envolvimento de comunidades e parceiros locais, capacitação em monitoramento participativo,
construção e validação participativa de protocolos, capacitação de monitores e coleta de dados. Resultando em 90 eventos, com
1.879 participações, e a implementação de monitoramento em seis UC. A participação das comunidades e instituições locais
no processo criou um senso de pertencimento entre as comunidades e a gestão. Entretanto, é necessário que haja comprome-
timento com as comunidades de modo contínuo, cultivando relações e utilizando as informações para a qualidade de vida dos
moradores e a gestão socioambiental das UC.

Palavras-chave: Gestão Socioambiental, Monitoramento Participativo, Envolvimento Comunitário, Conservação da Biodiversi-


dade e dos Recursos Naturais.

Introdução
Os ambientes naturais estão sob pressão em todo o planeta e, consequentemente, enfrentamos graves impactos ambi-
entais. A biodiversidade diminuiu quase 20% entre 1970 e 2008 (BUTCHART et al., 2010). A resposta principal para tais desafios
tem sido a criação de áreas protegidas, e hoje em torno de 12,9% da superfície do mundo é protegida sob alguma categoria
(JENKINS; JOPPA, 2009).
O Brasil seguiu essa tendência e hoje é um dos líderes mundiais no percentual de áreas formalmente protegidas, com
aproximadamente 20% do seu território sob diferentes categorias de proteção. Considerado um país megabiodiverso, o Brasil
supera o número de 200 mil espécies registadas (LEWINSOHN, 2006). A sociodiversidade brasileira é igualmente rica. São mais
de 300 etnias indígenas e diversas comunidades tradicionais, como: quilombolas, caiçaras, extrativistas e ribeirinhos (IBGE,
2012). Todas elas detêm importantes conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e contribuem no desenvolvimento
sustentável e na conservação das áreas protegidas do Brasil. Contudo, efetivar a participação social é um desafio, pois estes
processos estão intrinsecamente ligados ao histórico de democratização da nossa sociedade.
Para além de todas as adversidades e considerando os desafios estruturais das Unidades de Conservação, como o
número de unidades descentralizadas em todo o território nacional com recursos financeiros e equipe técnica escassos, a gestão
dessas áreas protegidas tem sido otimizada por meio de iniciativas de envolvimento da população local (PADUA; CHIARAVAL-
LOTI, 2012). Dentre elas, destaca-se o monitoramento participativo da biodiversidade que tem o intuito de auxiliar a gestão de
áreas protegidas, criando uma cultura crítica, respeito a floresta e seus recursos, e ser um importante mecanismo para garantir
a efetividade da gestão, como acesso à recursos, uso, conservação e distribuição de benefícios (EVANS; GUARIGUATA, 2008).
Assim, tem-se buscado maneiras de criar condições reais para que as populações locais possam participar nos proces-
sos decisórios ao lado de outros especialistas. A colaboração entre a população local e a gestão da Unidades de Conservação
tende a aumentar em processos com abordagens participativas, promovendo o estabelecimento de acordos de gestão para uso
de recursos, não só pela informação obtida por meio do monitoramento, mas pela maior proximidade construída entre população

05: Sistemas de Gestão e Governança


627
e gestão (DANIELSEN et al., 2005).
No sentido de promover o envolvimento socioambiental para o fortalecimento da gestão das unidades de conservação
e a conservação da biodiversidade, o Ministério do Meio Ambiente, por meio do Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), em parceira com IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas e Cooperação Técnica Alemã – GIZ vem
desenvolvendo o presente estudo, para implementação de monitoramentos participativos da biodiversidade em seis unidades
de conservação da Amazônia.

Material e Métodos
Área de Estudo
O Monitoramento Participativo da Biodiversidade é desenvolvido em seis unidades de conservação federais da Amazô-
nia: Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, Floresta Nacional do Jamari, Parque Nacional do Jaú, Reserva Extrativita do Rio
Unini, Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque e Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns (Figura 1). Estas áreas foram
escolhidas a partir de um conjunto de critérios estabelecidos pelo corpo técnico do ICMBio.

Figura 1. Localização das Unidades de Conservação Amazônica onde o monitoramento participativo foi implementado.

A Reserva Extrativista (RESEX) do Cazumbá-Iracema, categoria uso sustentável, localiza-se nos municípios de Sena
Madureira e Manoel Urbano, no Estado do Acre, na bacia hidrográfica do Rio Purus. A RESEX foi criada em 2002, com 750.917,74
hectares e forte participação dos moradores que utilizam: borracha, castanha, óleo de copaíba, açaí, farinha e mel. A Floresta
Nacional (FLONA) do Jamari, categoria uso sustentável, criada em 1984 com 222.114,24 hectares, localiza-se nos municípios de
Candeias do Jamari, ltapuã do Oeste e Cujubim, no Estado de Rondônia, na bacia hidrográfica do Rio Madeira. Quase metade
da área (aproximadamente 105.000 hectares) é destinada ao manejo florestal madeireiro, uma experiência piloto de concessão
florestal promovida pelo Serviço Florestal Brasileiro. O Parque Nacional (PARNA) do Jaú, categoria proteção integral, criado em
1980 com 2.367.333,44 hectares, localiza-se nos municípios de Novo Airão e Barcelos, no Estado do Amazonas, na bacia hidrográ-
fica do Rio Negro. O Parque protege uma das maiores extensões de floresta tropical úmida contínua do mundo e foi reconhecido

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como Sítio do Patrimônio Mundial Natural e Reserva da Biosfera pela Organização das Nações Unidas pela Educação, Ciência
e Cultura (UNESCO), fazendo parte do Corredor Central da Amazônia e do Mosaico de Áreas Protegidas do Baixo Rio Negro. A
RESEX do Rio Unini, categoria uso sustentável, criada em 2006 com 849.684,79 hectares, localiza-se no município de Barcelos,
Estado do Amazonas, na bacia hidrográfica do Rio Negro. Com sua criação, o governo atendeu a uma reivindicação de seis
anos da Associação de Moradores do Rio Unini. A RESEX está localizada numa área de grande importância biológica e faz parte
do Mosaico de Unidades de Conservação do Baixo Rio Negro. O Parna das Montanhas do Tumucumaque, categoria proteção
integral, foi criado em 2002 com 3.865.188,53 hectares, abrangendo parte dos municípios de Oiapoque, Calçoene, Pedra Branca
do Amapari, Serra do Navio e Laranjal do Jari no estado do Amapá e uma pequena porção do município de Almeirim, no Estado
do Pará. É o maior Parque Nacional e a segunda maior unidade de conservação do Brasil. A RESEX Tapajós-Arapiuns, categoria
uso sustentável, criada em 1998 com 677.513,34 hectares, localiza-se nos municípios de Santarém e Aveiro, no Estado do Pará. Na
Reserva residem cerca de 20 mil pessoas, que fazem uso dos recursos naturais por meio de técnicas tradicionais, cuja subsistên-
cia baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte.
Na área há forte envolvimento e participação dos moradores na gestão da Unidade de Conservação (ICMBIO, 2014; INSTITUTO
SOCIOAMBIENTAL, 2014).

Metodologia
Este trabalho foi desenvolvido seguindo o encadeamento de sete macroações demonstrado na Figura 2, onde atividades
independentes têm seus próprios meios e fins, porém estão integradas às demais atividades, constituindo um conjunto sistêmico
maior, o qual possibilita o envolvimento comunitário na gestão da unidade de conservação. Este trabalho foi dividido em três
tópicos no intuito de facilitar a estrutura do texto: articulação e mobilização, eventos formativos/capacitações, construção de
protocolos e implementação do monitoramento.

Figura 2. Esquema conceitual das ações desenvolvidas

Articulação e Mobilização
Foram realizadas reuniões, encontros e oficinas com parceiros locais (ONG, Universidades e Agentes Públicos) para
convidá-los e envolvê-los no processo de construção do monitoramento participativo da biodiversidade. As comunidades tiveram
uma atenção especial, respeitando a realidade local e o grau de participação e envolvimento com cada Unidade de Conserva-
ção. O processo de mobilização para as atividades de conhecer o programa de monitoramento, participar das capacitações e
construir o protocolo e coleta de dados, seguiu o seguinte roteiro:
1. Mapear as instituições e líderes que podem potencializar a mobilização;

05: Sistemas de Gestão e Governança


629
2. Planejar com o gestor, um melhor período de mobilização, combinado com outras ações da Unidade de Conservação;
3. Definir a quantidade e perfil das comunidades, instituições e pessoas a serem mobilizadas, dadas a relevância para o
monitoramento e a atividade em si;
4. Estabelecer estratégias para contato e aproximação com as comunidades, instituições e pessoas (meio de comunica-
ção, dia e horário, local);
5. Estabelecer informações a serem levantadas: costumes da comunidade, atividades econômicas realizadas, histórico
e aspectos culturais, interesse em participar do monitoramento e da atividade, sugestão de dia, horário e local da oficina, o que
considera relevante monitorar.

Eventos Formativos/Capacitações
Neste trabalho valorizamos os espaços de aprendizagem e consideramos que eventos formativos são tanto os cursos
estruturados e temáticos, quanto as oficinas de mobilização e construção do protocolo de monitoramento. A perspectiva me-
todológica desses eventos está baseada na participação efetiva das pessoas, na valorização dos diferentes conhecimentos e
saberes e na capacidade dos sujeitos envolvidos em construir novos conhecimentos. Fundamenta-se na convergência dos ideais
freireiano, transdisciplinar e da autopoiesis ao reconhecer que a construção do conhecimento de cada sujeito emerge das intera-
ções dele com o ambiente e dos sentidos e significados que os temas, em discussão, trazem para os participantes.
Segundo Smith & Verissimo (2009), as pessoas só aprendem aquilo que faz sentido para elas, sendo assim, os eventos
formativos têm a intenção de despertar o desejo e/ou a necessidade dos participantes para aprender e se envolver com o moni-
toramento da conservação da biodiversidade contribuindo para leituras críticas frente à realidade e proposições favoráveis a
melhoria da mesma enquanto um bem comum a todos os seres vivos.
Os cursos e oficinas foram organizados de modo a possibilitar (re)conhecer a realidade local das UC como parte inte-
grante de um sistema que tem a intenção de monitorar a conservação da biodiversidade envolvendo comunitários e parceiros
nos processos de planejamento, execução e avaliação. Por essa razão os diferentes olhares, práticas e experiências trazidos
pelos participantes, sendo científicos ou não, são considerados fundamentais por refletirem a diversidade, os saberes e as per-
cepções das pessoas sobre a realidade, tornando-se ponto de partida para construção de novos conhecimentos necessários a
implementação desse trabalho.
Os momentos dentro de cada formação foram organizados de maneira complementar e sucessiva buscando possibilitar
aos participantes estabelecerem as relações entre as partes (UC) e o todo (programa de monitoramento). Nesse sentido, as
atividades previstas propiciaram democratização do tempo de fala, integração entre os participantes, diálogo, uso de linguagem
adequada aos diferentes níveis de escolaridades e decisão coletiva.
Os eventos formativos foram as molas propulsoras desse trabalho, onde cada evento tinha atividades práticas e vivenciais
nas Unidades de Conservação para construir conceitos e ampliar a participação.

Construção de protocolos e implementação do monitoramento


O monitoramento em cada Unidade de Conservação foi estruturado por um conjunto de protocolos (descritos abaixo) es-
tabelecidos pelo Programa de Monitoramento da Biodiversidade in situ do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiver-
sidade, que denomina-se Protocolo Básico e outros construídos coletivamente com a participação de comunitários, sociedade
civil, universidades e gestores públicos, os chamados Protocolos Complementares.

Protocolo Básico
Os grupos biológicos e suas métricas foram escolhidos considerando seu potencial de discriminar perturbações, in-
cluindo de mudanças climáticas, e contribuir para a obtenção de informações confiáveis, de baixo esforço e custo (PEREIRA
et al; 2013), definindo os grupos biológicos a serem monitorados: plantas lenhosas (estimativa da biomassa com medição do
diâmetro e altura estimada); borboletas frugívoras (proporção de tribos, dominância e abundância); aves cinegéticas, dentre
elas tinamídeos e cracídeos; e mamíferos diurnos de médio e grande porte (abundância estimada em indivíduos, riqueza e
composição de espécies, variação da dominância e proporções de grupos funcionais).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
630
Protocolo Complementar
Os protocolos complementares foram construídos especificamente para cada Unidade de Conservação a partir de Alvos
de Conservação vinculados a um instrumento de gestão e priorizados por grau de importância. Para isso seguiu-se um roteiro
com perguntas orientadoras relacionadas a: escala espacial, escala temporal, fator de desenho, unidade de resposta e fator ali-
nhado. O protocolo foi construído em cinco etapas:
1. Um pequeno grupo composto por gestor da UC, comunitários locais e parceiros fizeram uma primeira discussão para
identificar os alvos relevantes;
2. Uma oficina realizada na UC, ampliando a participação dos mesmos grupos representativos, aprofundando a dis-
cussão sobre quais alvos de conservação escolher e quais perguntas o monitoramento precisa responder. Fez-se uma prioriza-
ção dos alvos escolhidos;
3. Um especialista de cada alvo analisou o material e fez uma proposta de pré-protocolo;
4. Uma oficina com representações de cada UC (gestores do ICMBio, comunitários locais, parceiros e consultores),
discutiram e propuseram ajustes no protocolo;
5. Apresentação do protocolo para grupos de pesquisadores e comunidades locais para validação final.

Resultados
Entre setembro de 2013 e março de 2015 foram realizados 90 eventos com 1.879 participações nas macroações deste tra-
balho, conforme descrito nos itens subseguintes. Vale ressaltar que contabilizamos o número de participações em cada evento,
visto que cada indivíduo pode ter participado de mais de uma das macroações realizadas.

Articulação e Mobilização
Este trabalho estabeleceu relações de confiança e compromisso com o órgão público responsável pela gestão das Uni-
dade de Conservação, envolvendo servidores tanto no nível tático como no operacional, além de promover o diálogo e ações
conjuntas da Diretoria de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade (DIBIO) e Diretoria de Ações Socioambientais
e Consolidação Territorial em Unidade de Conservação (DISAT), bem como da equipe da Cooperação Técnica Alemã (GIZ).
Junto às Unidades de Conservação e instituições parcerias locais foram realizados 16 eventos contando com 45 participações
de 11 instituições.
As atividades de mobilização e articulação nas Unidades de Conservação para apresentação do Monitoramento Partici-
pativo da Biodiversidade ocorreram entre o final de 2013 e o início de 2014. Nos 22 eventos realizados foram envolvidas insti-
tuições parceiras locais, gestores das Unidades de Conservação e comunidades locais, totalizando 383 participações, de sete
instituições parceiras e 92 comunidades.

Capacitação
Curso de Monitoramento Participativo da Biodiversidade
O Curso de Monitoramento Participativo da Biodiversidade contou com a participação de 53 pessoas entre gestores de
doze UC Federais, comunitários, parceiros locais, equipe das coordenações do ICMBio envolvidas na temática, instrutores e
pesquisadores.
O objetivo principal do curso foi gerar subsídios aos participantes sobre a participação social em programas de monito-
ramento da biodiversidade, promovendo a associação entre o monitoramento da biodiversidade com os diferentes instrumentos
de gestão das UC.
Dentre os temas abordados, podemos destacar: participação social na gestão ambiental pública na conservação da bio-
diversidade; instrumentos de gestão; conceitos, fundamentos e experiências de monitoramento participativo da biodiversidade
e protocolos de amostragem de indicadores do monitoramento da biodiversidade. O momento prático do curso, deu-se pela
identificação de alvos de monitoramento complementar regrados por instrumentos de gestão.

05: Sistemas de Gestão e Governança


631
Protocolos Complementares
Inicialmente, foram articulados cinco eventos com os comunitários das unidades de conservação com o intuito de mo-
bilizá-los para a oficina que foi realizada posteriormente para identificação dos alvos de biodiversidade para o monitoramento-
complementar. Estes eventos contaram com 34 participações e representantes de 73 comunidades.
As 18 oficinas participativas para identificação dos alvos para o monitoramento complementar, contaram com 236 partici-
pações entre 11 gestores, 12 parceiros locais e representantes de 43 comunidades das Unidades de Conservação. A Tabela 1
apresenta os alvos de biodiversidade identificados em casa Unidade de Conservação.

Na oficina para discussão e ajuste do protocolo, estiveram presentes 55 participantes: comunitários, instituições parceiras
locais, ICMBio, Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, Cooperação Técnica
Alemã - GIZ e consultores contratados para delineamento dos protocolos. As atividades teórico-práticas desenvolvidas possibili-
taram aos participantes propor ajustes na proposta de protocolo complementar destinada a cada Unidade de Conservação, bem
como, discutir e estabelecer estratégias para implementação das próximas etapas do trabalho. Após este momento, algumas
Unidades de Conservação apresentaram e validaram os protocolos junto às comunidades e instituições parceiras locais (Tabela
2), onde fez-se outros pequenos ajustes conforme necessário.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Cursos de Capacitação de Monitores
Foram realizados nove cursos de formação de monitores ambientais para atuarem no Monitoramento da Biodiversidade,
formando 179 monitores. O curso foi planejado em dois formatos: protocolo básico e complementar juntos ou de forma separada,
com o objetivo de atender a realidade e tempo de implementação do monitoramento em cada uma das Unidades de Conserva-
ção envolvidas.
Nesse curso buscou-se formar membros da comunidade local que reflitam sobre a importância do monitoramento da
biodiversidade para gestão da UC a qual integra, bem como utilizar adequadamente os protocolos para coleta de dados.

Coleta de dados do monitoramento - protocolo básico e complementar


As coletas de dados do protocolo básico (mamíferos, aves, borboletas e plantas) foram de março/2014 a Junho/2015, com
duas amostragens na RESEX do Cazumbá-Iracema/Pará e no Parque Montanhas do Tumucumaque/Amapá e uma amostragem
na Flona do Jamari/ Rondônia, no Parna Jau/Amazonas e na RESEX Tapajós-Arapiuns/Pará. Essas coletas são pilotos e serviram
para iniciar a rotina de monitoramento nas UC, estabelecer o fluxo de coleta e armazenamento dos dados, bem como estabelecer
um vínculo com os monitores ambientais que farão a ponte entre o monitoramento e a comunidade local.
As coletas do protocolo complementar foram de outubro/2014 a março/2015, onde realizaram-se quatro amostragens na
RESEX do Rio Unini e Parna Jaú/Amazonas (quelônios aquáticos), duas no Parna Montanhas do Tumucumaque/Amapá (macro-
invertebrados, peixes e parâmetros ambientais), três amostragens na RESEX Tapajós-Arapiuns/Pará (duas de caça e uma de ex-
ploração madeireira) e uma na Flona Jamari/Rondônia (monitoramento de médios e grandes mamíferos o instalação armadilhas).

Discussão
O Monitoramento Participativo em Unidade de Conservação da Amazônia teve sua implementação fortemente alicerçada
nas articulações com os parceiros, nas capacitações dos atores envolvidos e na construção participativa de protocolos que
respondem questões da gestão da UC.
Em processos participativos é importante que ocorram eventos formativos constantes, visando o alinhamento de saberes
dos diversos envolvidos (COOPER et al., 2007). Assim, cada uma das atividades que abrangiam decisão ou execução foi prece-
dida por uma atividade de capacitação, criando espaços que favorecem o diálogo, o intercâmbio de experiências e a agregação
de conhecimento de diferentes atores. Desta forma, moradores, gestores e parceiros das Unidades de Conservação e entorno

05: Sistemas de Gestão e Governança


633
estão se apropriando do monitoramento ao longo do processo. A abordagem de tomada de decisão de baixo para cima, apoiada
nesse trabalho, vai ao encontro de iniciativas de conservação, que cria o senso de pertencimento entre os envolvidos no processo
como um todo e as ações efetivas de conservação (SMITH; VERISSIMO, 2009).
Essa construção conjunta de conhecimento permitiu que, além do monitoramento, os moradores locais pudessem estar
mais inseridos no contexto da gestão da Unidade de Conservação e no manejo sustentável dos recursos, valorizando sua im-
portância, percebendo o reflexo do valor dos recursos naturais na economia local, aplicando conceitos no seu cotidiano e sendo
agentes multiplicadores nos locais onde moram. Comparando com outros trabalhos ao redor do mundo, podemos apontar que
chegamos a um resultado semelhante aos trabalhos de monitoramento de base comunitária que têm sido replicados em diversos
países com resultados satisfatórios (LEWIS, 2007).
Envolvimento e pactuação com parceiros e instituições locais foram de fundamental importância para a implementação
do monitoramento. Não apenas pela adesão, mas pelo apoio técnico, logístico e financeiro realizados. Por meio do trabalho
participativo, foi possível identificar alvos de biodiversidade e delinear protocolos que complementassem as ações já realizadas
localmente, potencializando e fortalecendo-as.
Outro ponto fundamental na implementação do monitoramento participativo foi a participação do órgão gestor, nesse
caso o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. A articulação de diferentes coordenações e duas Diretorias
possibilitou ações integradas que promoveram maior respaldo institucional, por meio de vínculos com os instrumentos de gestão.
Ressalta-se os Conselhos Gestores, como espaços legítimos de participação, onde influenciam e potencializam a implementa-
ção do monitoramento. Ao longo do desenvolvimento do presente trabalho, foi possível observar que o envolvimento do gestor
da Unidade de Conservação foi fundamental para sucesso das ações propostas. Sendo elementos-chave na implementação, na
articulação de parcerias e no envolvimento das comunidades.
O envolvimento dos atores locais em programas de monitoramentos, estão diretamente relacionados: ao degrau da es-
cada de participação em que cada UC se encontra; ao histórico de criação da UC e seus conflitos ambientais; e ao perfil dos seus
gestores. Esse conjunto de fatores influenciam em maior ou menor escala os processos participativos e os de base comunitária.
Evidentemente, nas RESEX pelo seu histórico, os processos de envolvimento e articulação junto às comunidades tendem à maior
participação por parte das comunidades locais.
Apropriação e empoderamento dos atores locais não tem importância apenas para o sucesso do monitoramento, mas,
principalmente, para aumentar sua atuação na gestão da Unidade de Conservação e na conservação da biodiversidade. Uma vez
cientes da importância do monitoramento da biodiversidade, para o manejo dos recursos naturais essenciais ao modo de vida
tradicional ou de recursos-chave para conservação da UC, os envolvidos reflitam e atuem em resposta ao que estão aprendendo
e observando (EVANS; GUARIGUATA, 2008).
Adicionalmente, o envolvimento promovido com a abordagem participativa também permitiu que houvesse reconhe-
cimento e valorização pessoal e capacitação continuada de monitores. Desta forma, há melhoria na autoestima do monitor e
são apresentadas possíveis alternativas de atuação na comunidade, com elementos inovadores e tecnológicos, despertando a
atenção dos jovens para a valorização dos modos de vida tradicionais e da conservação da biodiversidade no local onde vivem
e qualificar a atuação profissional local.
Considerando que o monitoramento participativo é um catalisador para processos de aprendizagem da gestão das Uni-
dades de Conservação e não apenas um meio de obtenção de informação (EVANS; GUARIGUATA, 2008), é importante salientar
que a implementação e as ações que envolvem a participação dos agentes têm valor semelhante à dos resultados do monito-
ramento em si. O foco central deste trabalho foi a promoção do envolvimento das comunidades na gestão e tomada de decisão
referente às Unidade de Conservação que tem impacto direto em suas vidas, no manejo de recursos naturais e na conservação
da biodiversidade. Contudo, é necessário que haja pactuação com as comunidades de modo contínuo, cultivando essa relação
ao longo dos ciclos de monitoramento de forma participativa e adaptativa, garantindo a participação dos moradores locais na
tomada de decisão a partir das informações geradas.

Referências
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
634
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SMITH, R.; VERISSIMO, D. Let the locals lead. Nature, v. 462, p. 280 - 281. 2009.

05: Sistemas de Gestão e Governança


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O PROGRAMA ÁREAS PROTEGIDAS DA AMAZÔNIA (ARPA) E O FORTALECIMENTO
COMUNITÁRIO EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Bueno, Marco Antonio Ferreira¹ & Silva, Andréa Leme da²

1. Programa Áreas Protegidas da Amazônia, Departamento de Áreas Protegidas, Ministério do Meio Ambiente, marco.bueno@mma.gov.br;
2. Consultora do Programa Áreas Protegidas da Amazônia, leme.andrea@gmail.com

Resumo
O estabelecimento e a gestão de áreas protegidas têm incorporado aos poucos o conceito de governança participativa, pro-
movendo o envolvimento e a participação de comunidades humanas locais. Este processo é uma oportunidade de gerar apoio
à gestão da área protegida e, ao mesmo tempo, melhorar as condições de desenvolvimento local. O Programa Áreas Protegidas
da Amazônia apoia a consolidação de 105 Unidades de Conservação (UC), além de projetos comunitários em 23 destas UC,
fortalecendo a organização comunitária e o desenvolvimento sustentável. As principais dificuldades desses projetos têm sido a
falta e alta rotatividade de funcionários nas UC e a demora na aquisição e entrega de equipamentos e contratação de pessoal. Os
principais resultados têm sido o fortalecimento de parcerias, intercâmbios e trocas de experiências entre comunidades e entre
diferentes UC e o fortalecimento do diálogo institucional.

Palavras-chave: Governança. Capacitação. Planos de ação. Integração das comunidades. Participação comunitária.

Introdução
A gestão de recursos naturais em áreas protegidas tem caminhado em direção a um modelo menos regulatório e mais
inclusivo, caracterizado por diversas parcerias entre os órgãos gestores e outros atores sociais como as comunidades locais,
organizações não governamentais e o setor privado (DOVERS et al., 2015). Ou seja, desenha-se há mais de uma década uma
mudança de foco de governo para governança, que começou a se fortalecer a partir do 5º Congresso Mundial de Parques, em
Durban, na África do Sul (BORRINI-FEYERABEND; HILL, 2015).
O conceito de governança não é uma novidade para povos indígenas e populações tradicionais. Eles exercem uma forma
de governança do território e dos recursos naturais há centenas, muitas vezes milhares de anos, desenvolvendo estratégias de
subsistência frente às oportunidades e desafios do seu meio ambiental e social (BORRINI-FEYERABEND; HILL, 2015).
Uma governança efetiva envolve a construção de relações positivas entre as pessoas, setores e tomadores de decisão
e trabalha em múltiplas escalas espaço-temporais. Há uma relação direta entre governança e efetividade de gestão de áreas
protegidas de tal sorte que territórios cuja conservação tem o envolvimento direto de comunidades locais trazem benefícios à
sociedade por um custo relativamente baixo (BORRINI-FEYERABEND; HILL, 2015).
Isto é reforçado pelo sentimento de pertencimento e apropriação do lugar onde vivem famílias e se estabeleceram co-
munidades humanas no entorno e dentro de territórios que vieram a se tornar Unidades de Conservação, o que trouxe uma nova
relação e dinâmica das pessoas com o meio do qual sobrevivem (CALEGARE; HIGUCHI, 2013). Há que se considerar quais
são os impactos positivos e negativos gerados no dia-a-dia destes ocupantes tradicionais do território com a criação da Unidade
de Conservação, que pode ser o resultado de uma demanda da própria sociedade local, mas que muitas vezes é imposto pelo
poder público.
Além de ser uma questão ética, o papel das áreas protegidas e da conservação da biodiversidade e dos recursos naturais
em beneficiar comunidades humanas locais é uma oportunidade de alavancar o desenvolvimento local em regiões biologica-
mente ricas mas com diversos níveis de pobreza do ponto de vista humano (SCHERL et al., 2004). Uma das recomendações do
5º Congresso Mundial de Parques foi exatamente que as áreas protegidas e sua gestão devem ajudar a reduzir a pobreza local
(mas de forma alguma resolvê-la por si só) e minimamente não exacerbá-la.
Daí vem a recomendação de que os órgãos gestores de Unidades de Conservação adotem como uma iniciativa funda-
mental a capacitação local para a integração dos moradores locais com a gestão de áreas protegidas e o apoio a projetos que
integrem conservação e desenvolvimento (SCHERL et al; 2004).

05: Sistemas de Gestão e Governança


637
O alcance de metas de conservação e a provisão de serviços ambientais em áreas protegidas dependem de como e por
quem as decisões de gestão estão sendo tomadas. O envolvimento de atores locais na tomada de decisão, que vai muito além de
uma simples consulta, pode levar a maior participação e, consequentemente, a maior aceitação e apoio público (ao menos em
nível local) à área protegida (BORRINI-FEYERABEND et al., 2013).
O alcance dos objetivos de uma área protegida também depende da capacidade dos indivíduos, comunidades e orga-
nizações envolvidas de tomarem as melhores decisões. A capacitação no nível local é sempre desafiadora devido aos múltiplos
interesses e percepções que podem existir dentro de uma mesma comunidade. Portanto, é importante responder de forma muito
clara “quem será capacitado” e “para que”, além de focar em capacitações específicas para circunstâncias específicas dentro
das quais se quer atingir metas pré-estabelecidas (MÜLLER et al., 2015).
Da mesma forma, o apoio a iniciativas de geração de renda local, desenvolvimento de tecnologias sociais e gestão de
recursos naturais, entre outras, deve não somente considerar a participação direta dos beneficiários, mas a demanda de ações
a serem alavancadas deve partir dos próprios moradores locais cuja existência e reprodução física e cultural se apoiam na uti-
lização direta de recursos naturais.
Esse artigo investiga em que medida e de que forma os planos de ação comunitários do Programa Áreas Protegidas
da Amazônia (ARPA) tem contribuído para o fortalecimento comunitário no entorno e/ou dentro das Unidades de Conservação
apoiadas pelo programa e que lições podem ser tiradas para o aprimoramento e a continuidade deste processo.
Os planos de ação comunitários do Programa ARPA retomam de certa forma a trajetória dos Projetos Demonstrativos
(PDA) do bem sucedido Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), encerrado em 2009, cujo
objetivo central foi apoiar comunidades locais a desenvolverem métodos alternativos e inovadores de manejo e conservação dos
recursos naturais, reforçando sua capacidade de encontrar soluções sustentáveis de desenvolvimento local na Amazônia e Mata
Atlântica (GUERRA; ASCHER, 2006).

O Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) e as populações locais


O Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), criado por meio do Decreto nº 4.326/2002, é uma iniciativa de longo
prazo do governo brasileiro, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente, para a conservação de 60 milhões de hectares
de ecossistemas no bioma Amazônia através da criação, consolidação e sustentabilidade financeira permanente de Unidades de
Conservação (UC), utilizando recursos internacionais e contrapartidas do governo brasileiro e de governos estaduais. O ARPA
está muito próximo de atingir a sua meta: apoia 105 UC, cobrindo uma área de cerca de 58,3 milhões de hectares. O Programa
tem por objetivos a (1) conservação de uma amostra representativa da biodiversidade no bioma Amazônia, dos ecossistemas
e das paisagens a ela associados e (2) a manutenção de serviços ambientais nestas regiões. O apoio do ARPA a UC também
contribui para o desenvolvimento sustentável de comunidades humanas locais.
Baseado em um dos princípios fundamentais do ARPA, a gestão descentralizada e participativa, desde a sua criação o
programa apoia comunidades locais usuárias de Unidade de Conservação ou dela beneficiárias, desenvolvendo e implementan-
do estratégias de fortalecimento do uso sustentável dos recursos naturais por estas comunidades.
Este apoio se dá de duas formas. A primeira se dá de forma mais difusa pela consolidação das UC através do apoio
financeiro a ações como regularização fundiária, proteção e manejo (incluindo ações de fiscalização), pesquisa e monitora-
mento, elaboração ou revisão do Plano de Manejo e apoio à integração com o entorno e a participação comunitária. No âmbito
desta ação está a mobilização para a formação do Conselho Consultivo ou Deliberativo (dependendo da categoria da UC),
manutenção do Conselho e capacitação dos conselheiros. Neste componente o ARPA apoia também a elaboração de Termos de
Compromisso para Unidades de Conservação de Proteção Integral e da Concessão Real de Direito de Uso para Unidades de
Conservação de Uso Sustentável.
A segunda e mais específica forma de apoio ao fortalecimento comunitário é dado no âmbito do subcomponente denomi-
nado “Integração das Comunidades”, que financia Planos de Ação Sustentável (PAS), direcionados para populações tradi-
cionais, e Planos de Ação dos Povos Indígenas (PPI), direcionados para a integração de ações entre UC e Terras Indígenas
vizinhas. Um total de 23 planos de ação (selecionados através de chamadas de propostas, uma por UC) têm sido apoiadas desde
setembro de 2013, com encerramento previsto entre abril e junho de 2016 (Mapa 1).
Foram contempladas todas as categorias de Unidades de Conservação apoiadas pelo Programa ARPA: Parque Nacional

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(PN), Parque Estadual (PE), Estação Ecológica (ESEC), Reserva Biológica (REBIO), Reserva Extrativista (RESEX) e Reserva de
Desenvolvimento Sustentável (RDS).
O prazo de execução planejado dos planos de ação varia entre 18 e 24 meses e para cada uma das Unidades de Con-
servação selecionadas foi destinado o valor de R$ 190.000 para a execução do plano de ação. O total de recursos investidos é de
cerca de R$ 4.300.000, sendo R$ 2.590.000 para os planos de ação do edital de 2013 e R$ 1.710.000 referente aos planos contem-
plados no edital de 2014.

Figura 1. Mapa com os planos de ação comunitários em Unidades de Conservação apoiados pelo Programa ARPA.

Estes planos se justificam frente aos possíveis impactos da criação e consolidação das Unidades de Conservação apoia-
das pelo ARPA no modo de vida e na economia das comunidades humanas residentes na sua área de influência devido a
restrições de acesso a recursos naturais. As regras e procedimentos do subcomponente “Integração das Comunidades” estão
definidos no Manual Operacional do Programa ARPA e foram aprovados pelo Comitê do Programa ARPA, a instância máxima
de decisão do Programa. Os documentos orientadores do subcomponente se baseiam nas políticas de salvaguardas sociais e
ambiental do Banco Mundial (que gerencia a doação do Global Environment Fund, o GEF, ao ARPA).
As propostas de planos de ação elaboradas em conjunto por comunidades locais e órgãos gestores e enviadas à Uni-
dade de Coordenação do Programa ARPA foram analisadas e selecionadas por um Grupo de Trabalho formado por dois órgãos
gestores estaduais de Unidades de Conservação (a Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso e Instituto Naturatins do Tocan-
tins); Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio); Funai (Fundação Nacional do Índio); Fundo Mundial
para a Natureza (WWF-Brasil); Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio); Ministério do Meio Ambiente (MMA); Coorde-
nação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
As atividades elegíveis para os PAS foram: 1. Estímulo ao uso de tecnologias alternativas de uso sustentável dos recursos
naturais de acordo com as diretrizes do Plano de Manejo da UC; 2. Atividades alternativas de subsistência à tradicional produção
agroextrativistista usual na localidade; 3. Capacitação em práticas de conservação ambiental e uso sustentável de recursos na-
turais; 4. Atividades de proteção e vigilância conjunta das UC complementares às ações já apoiadas pelo ARPA; 5. Promoção de
intercâmbios para troca de experiências; 6. Estímulo à participação na gestão das Unidades de Conservação (via Conselhos) e
7. Estímulo à organização de cooperativas de serviços.
Os PPIs beneficiam povos indígenas cujos territórios tenham interface com Unidades de Conservação federais e esta-
duais e que possuam alguma relação com as mesmas, como a utilização de áreas de importância sociocultural, de realização de

05: Sistemas de Gestão e Governança


639
atividades produtivas e de proteção territorial.
As atividades elegíveis para os PPI foram: 1. Atividades relacionadas à conservação ambiental e ao uso sustentável dos
recursos naturais pelos povos indígenas; 2. O fortalecimento de iniciativas produtivas indígenas com o apoio à utilização e ao
desenvolvimento de novas tecnologias sustentáveis; 3. Atividades voltadas para elaboração / implementação de planos de gestão
territorial e outros instrumentos de gestão de Terras Indígenas e Unidades de Conservação; 4. Atividades de proteção conjunta
das áreas, incluindo a garantia da permissão do acesso dos povos indígenas às áreas de importância social, econômica e cul-
tural; 5. Atividades voltadas para resolução de conflitos socioambientais entre povos indígenas e gestores governamentais e/ou
outros habitantes de Unidades de Conservação; 6. Estímulo ao fortalecimento da participação de representantes indígenas na
gestão das Unidades de Conservação (via Conselhos) e 7. Atividades de capacitação em gestão ambiental e territorial de terras
indígenas.
É importante destacar que os PPI foram elaborados a partir de um diagnóstico socioeconômico rápido participativo da
situação dos povos indígenas cujas terras têm interface com a UC, com atenção particular: aos sistemas de gestão territorial e
ambiental praticados pelos povos indígenas; à utilização dos recursos e elementos materiais e imateriais existentes nas Unidades
de Conservação e à identificação dos impactos adversos da restrição ao uso do território e à identificação de arranjos de coges-
tão ou outros métodos necessários e apropriados para mitigação dos efeitos dessa restrição. Também foram realizadas consultas
prévias, livres, informadas e culturalmente apropriadas a respeito dos PPIs propostos.
Os 23 planos de ação foram selecionados através de duas chamadas de propostas publicadas em 2 editais, um em 2013
e ou outro em 2014. No edital de 2013, foram selecionados 12 PAS e 2 PPI (Tabela 1). Os planos de ação foram selecionados
segundo seis critérios de seleção: (1) a clareza e pertinência dos objetivos, métodos de trabalho e resultados do projeto e a
adequação do orçamento apresentado), (2) a contribuição da proposta para resolução de conflitos entre a UC e os moradores
locais, (3) a contribuição da proposta para a melhoria da qualidade de vida das populações locais, (4) a contribuição da proposta
para a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais da UC e do seu entorno, (5) a sinergia da proposta com o plano de
manejo da UC e (6) o caráter inovador da proposta.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
640
O ICMBio foi o principal proponente e teve 15 propostas contempladas, seguido pela Secretaria Estadual de Meio Ambi-
ente do Amazonas (à época denominada Secretaria de Desenvolvimento Sustentável, ou SDS – AM), com 6 propostas. O Instituto
Naturantis (Tocantins) e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Acre tiveram 1 proposta selecionada cada um (Figura 2).

05: Sistemas de Gestão e Governança


641
Figura 2. Órgãos gestores de Unidades de Conservação contemplados com recursos para executarem
planos de ação comunitários com apoio do Programa ARPA de 2013 a 2016.

No total, 18 PAS estão sendo executados, frente a 5 PPI.


Os resultados aqui apresentados e discutidos referem-se aos 14 planos de ação do edital de 2013. O monitoramento e
a avaliação dos planos de ação do edital de 2014 se iniciarão no segundo semestre de 2015, quando completarão aproximada-
mente um ano de execução.

Monitoramento e avaliação
Os planos de ação têm sido monitorados por meio de consultoria externa, com o uso preferencial de metodologias par-
ticipativas. O levantamento de dados primários tem sido feito através de viagens a campo e de oficinas participativas com os
gestores dos planos de ação. O levantamento de dados secundários tem privilegiado a análise documental dos planos de ação,
relatórios de progresso, atas de reunião e demais documentos relativos à implementação dos projetos e a análise de indicadores
de desempenho e de resultados nos estudos de avaliação intermediária do Programa.
Até o momento foram realizadas duas oficinas participativas de avaliação com os gestores das UC (dezembro de 2013 e
dezembro de 2014). Na última oficina, foi utilizada a matriz SWOT (ou FOFA para Fortalezas, Oportunidades, Fraquezas e Amea-
ças), que consiste numa ferramenta estrutural utilizada na identificação das forças e fraquezas internas de uma organização, bem
como nas oportunidades e ameaças externas.
Além disso, foram realizadas cinco visitas de campo, em caráter amostral, para o acompanhamento da implementação
das atividades junto aos beneficiários dos planos de ação, nas seguintes UC: RESEX Rio Xingu, Parque Estadual do Cantão,
Parque Nacional do Jaú, RESEX Rio Unini, RESEX do Baixo Juruá e RDS Uacari (onde se realizou a atividade de campo de moni-
toramento da RESEX do Médio Juruá).

Resultados
Dos 14 planos de ação do edital de 2013, 6 deles apresentaram os maiores avanços na execução dos recursos aportados
pelo Programa ARPA.
Na RESEX Médio Juruá, o PAS “Plano de Integração visando o fortalecimento das comunidades da região Médio Juruá”
conseguiu estruturar de forma mais consolidada as atividades de vigilância comunitária com o apoio financeiro extra ao orça-
mento da UC. O resultado imediato foi a redução das invasões nos lagos definidos para o manejo da pesca e nas praias (tabu-
leiros) de desova dos quelônios. Outros resultados evidentes foram o maior sucesso na resolução de conflitos através do apoio
às reuniões setoriais com os comunitários da RESEX do Médio Juruá e RDS Uacari e o aumento da participação das mulheres
por meio do apoio a uma associação própria.
Na RESEX do Rio Unini, o PAS “Manejo do Pirarucu: alternativa de renda e estímulo à organização comunitária, gestão
participativa e uso sustentável dos recursos no Rio Unini” resultou em maior coesão, engajamento e envolvimento dos beneficiári-
os nas atividades em curso, na intensificação do intercâmbio de conhecimentos nas atividades de contagem de pirarucus com
pescadores experientes (“manejadores”) de outras UC, na capacitação dos pescadores em atividades de contagem, técnicas
de pesca e comercialização, agregando conhecimento aos pescadores do Rio Unini; na contribuição para o zoneamento e a
proteção das áreas de pesca no rio Unini, em processos de capacitação em práticas de conservação ambiental e uso sustentável

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
642
de recursos naturais, na agregação do conhecimento científico, empírico e tradicional, estimulando o engajamento das comuni-
dades locais na conservação de suas áreas. O PAS tem sido imprescindível para dar continuidade ao compromisso assumido
com as comunidades de implementação do manejo do pirarucu, elencado como ação prioritária do Plano de Manejo da UC.
No Parque Nacional do Jaú, o PAS “Programa de capacitação de jovens lideranças multiplicadora em Unidades de Con-
servação federais: Jovens Protagonistas no Rio Unini – Verde Perto Educação” tem sido bem sucedido. Os resultados mais
evidentes são o empoderamento do público jovem da RESEX Unini e a sua preparação para assumir um papel protagonista
na gestão participativa da UC, parcerias efetivas com a organização não governamental Fundação Vitória Amazônica (FVA), a
melhoria do interesse do público jovem nas atividades da RESEX, a participação voluntária do público jovem nas reuniões de
Conselho Consultivo, no acompanhamento das reuniões do ICMBio em suas comunidades e na proatividade na organização dos
módulos. Este PAS destaca-se por ser o único entre todos os 23 em execução com uma profissional com dedicação exclusiva ao
plano de ação, o que traz uma importante lição sobre a boa execução dos recursos.
No Parque Nacional do Cabo Orange, o PAS “Ações para a gestão participativa da pesca ao norte do Estado do Amapá”
tem resultado em duas frentes importantes: a primeira refere-se ao avanço na resolução de conflitos socioambientais locais e no
fortalecimento de parcerias entre o ICMBio, universidades, institutos de pesquisa e os beneficiários representados pela Colônia
de Pescadores de Oiapoque. Neste âmbito, os parceiros têm investido com a contrapartida de equipamentos e orçamento nas
atividades de pesquisa em curso. A segunda frente inclui o acúmulo de conhecimento para subsidiar a criação de uma RESEX
Marinha como alternativa compensatória à restrição do uso dos recursos pesqueiros e consequente proteção do PN Cabo
Orange, conforme previsto em seu Plano de Manejo.
No Parque Estadual do Cantão, o PPI “Vigilância indígena dos Territórios Karajá e Javaé do entorno do Parque Estadual
do Cantão” trouxe bons resultados no avanço da construção de um acordo de pesca que contemple as etnias locais, além da
capacitação e zoneamento de lagos e rios destinados à pesca e à preservação; na pactuação com as comunidades sobre as
especificações dos equipamentos de pesca; no acordo sobre a divisão de lagos para pesca com fins comerciais, pesca ritual e
de subsistência e corpos d’água exclusivos à preservação e reposição dos estoques pesqueiros e no estabelecimento de cotas
de pesca por pescador, definido no primeiro acordo com base no valor de renda gerada pela comercialização desse pescado
equivalente a um salário mínimo.
Finalmente, o PAS “Capacitação em práticas de conservação ambiental e uso sustentável dos recursos naturais nas
comunidades da RESEX Maracanã” foi um dos planos de ação que mais avançaram dentre todos aqueles em execução ao pro-
mover a organização social e construção de propostas participativas para o uso dos recursos naturais e o fortalecimento da base
comunitária com o envolvimento contínuo de jovens e adultos com temas ligados à ética, coletividade, cidadania, meio ambiente
e organização social.

Lições aprendidas: obstáculos para o sucesso na implementação dos planos de ação


Os fatores que têm representado grandes barreiras ao sucesso na implementação eficaz dos planos de ação são prin-
cipalmente a burocracia inerente à execução dos recursos, seja para a compra de equipamentos, seja para a contratação de
consultores, que é dependente de uma plataforma virtual em tempo real de gestão financeira denominado Sistema Cérebro, de
propriedade do gestor financeiro do Programa ARPA, o Funbio.
Todas as solicitações feitas pelos gestores de UC são realizadas no Cérebro e é aí que começa o longo trajeto desde a
inserção das especificações do que está sendo pedido (tipo de equipamento ou perfil do consultor com Termo de Referência),
passando pela avaliação e aprovação (ou não) do ponto focal do Programa ARPA no órgão gestor, da Unidade de Coordenação
do Programa, para somente então chegar ao Funbio, que também poderá ou não solicitar ajustes no protocolo gerado com a
solicitação.
Somente após este trâmite é que se inicia a aquisição do bem ou a contratação do profissional propriamente dito, o que
em muitos casos pode levar vários meses. Este gargalo é aquele que deve ser abordado e solucionado definitivamente em novas
ações de apoio a planos de ação no futuro, pois, apesar da execução do Plano Operativo da UC (POA), que contempla todas
as demais atividades apoiadas pelo ARPA, ser realizada em algum grau em parceria com as comunidades locais, os planos de
ação dependem muito mais diretamente da disponibilidade e engajamento das comunidades que são ao mesmo tempo agentes
e beneficiários locais de projetos comunitários.

05: Sistemas de Gestão e Governança


643
A não entrega de um equipamento no tempo previsto ou a não contratação de um profissional ou instituição que fará uma
capacitação ou facilitará um evento poderá comprometer o alcance das metas previstas no planejamento feito entre órgão gestor
e comunidades ou associações comunitárias e, principalmente, derrubar a confiança que as comunidades locais depositaram no
plano de ação e na perspectiva de que este plano traria melhorias no modo de vida e na economia local.
Outro fator muito limitante é o uso da conta vinculada, instrumento disponibilizado pelo FUNBIO que permite ao gestor
da UC realizar compras locais de valores relativamente pequeno. Com a conta vinculada, as UC adquiriram autonomia para um
tipo de execução financeira direta. Contudo, esta autonomia é limitada por regras e critérios específicos que delimitam o universo
de insumos elegíveis e formas de controle (conferência das despesas inseridas nas prestações de contas junto com extratos
bancários e monitoramento e as responsabilidades de todos os envolvidos em sua utilização).
Em tese, a conta vinculada facilita a execução do Plano Operativo (POA) tanto da UC quanto do plano de ação comuni-
tário. Todavia, como o gestor tem que operar ambos os POA com somente uma conta vinculada, ele tem um teto máximo que
deve ser divido entre duas execuções, o que o obriga a fazer a prestação de contas ao FUNBIO (através do envio de notas fiscais
e outros tipos de comprovantes de todas as movimentações financeiras) sempre que o teto é atingido, para somente a partir da
aprovação da prestação de contas a sua conta vinculada ser novamente alimentada. Isto torna a execução do plano de ação muito
mais morosa se comparado a uma conta vinculada exclusiva para executar o plano. Esta tem sido uma reivindicação constante
dos gestores de UC com planos de ação, mas não pode ser viabilizado pelo gestor financeiro do Programa.
Outro importante obstáculo à execução dos planos foi a baixa qualidade da internet nas sedes das UC, seja no campo ou
nos municípios onde estão localizadas. Como a interação no Sistema Cérebro é feita em tempo real, qualquer protocolo que não
consiga ser inserido ou aprovado pelas instâncias atrasa todo o fluxo de aprovação muitas vezes de forma irremediável, especial-
mente em situações onde o FUNBIO realiza a compra de equipamentos por lotes que têm prazos para fecharem. A melhoria do
acesso do gestor à internet é uma condição fundamental para o funcionamento eficiente das ações de gestão das UC, incluindo
projetos de caráter comunitário.
Outro aspecto levantando pelos gestores foi o cenário nacional desfavorável a políticas voltadas para a conservação
ambiental e a consequente dificuldade em acessar outras fontes de financiamento para apoiar qualquer iniciativa de apoio a
comunidades locais, mas estas questões fogem da governança do Programa ARPA. O receio da descontinuidade dos recursos
aportados (uma que vez que não há recursos previstos para planos de ação na fase III do Programa ARPA, que se inicia em 2016)
e dos atrasos de execução é um elemento de grande desestímulo para as comunidades locais beneficiárias.
Todas as questões levantadas até o momento referem-se às ameaças externas da gestão da Unidade de Conservação
e dos planos de ação. Em âmbito interno, considerando as ações do órgão gestor, as fraquezas e dificuldades se resumem na
dificuldade do poder público realizar concursos para a contratação de servidores em caráter permanente para a gestão da UC.
Mesmo aquelas UC em que há servidores lotados (ou profissionais com cargos comissionados), há historicamente uma alta
rotatividade de pessoal nas UC amazônicas, o que representa um constante problema de como repor equipes que se perdem ao
longo dos ciclos políticos e que levam consigo boa parte da memória das ações executadas.
De modo geral, a escassez de recursos humanos e a insuficiência de recursos financeiros representam os principais de-
safios para a consolidação das UC no bioma Amazônia. O Amazonas, por exemplo, o estado com mais UC apoiadas pelo ARPA,
tinha em dezembro de 2010 apenas um funcionário para quase 6.000 km² nas UC estaduais de uso sustentável (IMAZON, 2014).
Ainda que haja sucesso em se lotar servidores nas UC, a qualificação muitas vezes insuficiente e inadequada e as opor-
tunidades de capacitação insuficientes são outras fraquezas que os órgãos gestores precisam equacionar. Por fim, a falta de
acompanhamento adequado e regular pelo órgão gestor e por determinadas coordenações dentro do órgão gestor que traba-
lham com o fortalecimento comunitário são obstáculos para o bom funcionamento dos planos de ação até o momento.

Resultados positivos na execução dos planos de ação


As oportunidades geradas pelo apoio do Programa ARPA aos projetos de fortalecimento comunitário têm sido o acesso
a uma fonte confiável, mas não duradoura, de recursos para o apoio ao uso sustentável dos recursos naturais, a maior visibili-
dade das ações de gestão e conservação da UC, a construção de novas parcerias e o fortalecimento de parcerias históricas, a
possibilidade de realizar intercâmbios e trocas de experiências entre comunidades e entre diferentes UC, e, em particular, o for-
talecimento do diálogo interinstitucional. As principais forças relacionadas aos órgãos gestores têm sido o compromisso muitas

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
644
vezes pessoal dos gestores na implementação dos planos de ação, a integração com as comunidades do entorno, a participação
dos beneficiários na resolução de conflitos socioambientais, a participação mais ativa dos beneficiários nos Conselhos das UC,
o fortalecimento da gestão territorial, o fortalecimento das instâncias participativas e a geração de renda para as comunidades
locais.
Conforme já mencionado, o destacamento de um técnico exclusivo para a gestão do plano de ação é condição fundamen-
tal para o bom andamento e o sucesso da iniciativa.

Conclusão
Os planos de ação implementados pelo Programa ARPA têm apresentado avanços significativos na capacitação das co-
munidades locais, incluindo a gestão participativa dos recursos naturais e a geração de renda (manejo do pirarucu na RESEX Uni-
ni, manejo de quelônios na RESEX Ituxi); o fortalecimento comunitário das instâncias participativas das UC (RESEX Maracanã);
a resolução de conflitos socioambientais (no Parque Nacional do Cabo Orange e no Parque Estadual do Cantão); a formação de
jovens lideranças com o objetivo de promover sua ação protagonista na gestão participativa das UC (Parque Nacional do Jaú);
a capacitação das comunidades para o uso público da UC com potencial geração de renda local (Parque Nacional do Viruá); o
fortalecimento do intercâmbio e a integração de comunidades e a troca de saberes (RESEX Rio Xingu, PAS Médio Juruá).
Um dos principais desafios para a implementação dos planos de ação e para a gestão das UC tem sido reforçar e quali-
ficar o escasso quadro de funcionários lotados nas UC. Além disso, para otimizar os investimentos e os esforços envolvidos, é
necessário assumir o desafio de manejar áreas protegidas de forma participativa e consolidar os planos de gestão territorial
com foco em uma agenda socioambiental compartilhada. Por fim, pelo fato da execução dos planos operativos das UC serem
totalmente baseados em um sistema gestor virtual dependente do funcionamento eficiente da internet, é necessário repensar em
que medida este modelo é adequado à realidade das Unidades de Conservação na Amazônia.

Referências
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2013, xvi + 124p. (Best Practice Protected Area Guidelines Series No. 20).

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TAS, C.C.F.; HIGUCHI, N. (Eds.) Morar e viver em Unidades de Conservação no Amazonas: considerações socioambien-
tais para os planos de manejo. Manaus, p. 189-212. 2013.

DOVERS, S. et al. Engagement and participation in protected area management: who, why, how and when? In: WORBOYS, G.L.
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em: http://imazon.org.br/areas-protegidas-na-amazonia-brasileira-avancos-e-desafios-2/. Acesso em 18 junho 2015.

MÜLLER, E. et al. Capacity development. In: WORBOYS, G.L. et al. (Eds.) Protected Area Governance and Management.
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SCHERL, L.M. et al. Can Protected Areas Contribute to Poverty Reduction? Opportunities and Limitations. Gland, Switzer-
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05: Sistemas de Gestão e Governança


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PERFIL DA FAMÍLIA BENEFICIÁRIA NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DA
BAÍA DO IGUAPE: REFORÇANDO A AUTONOMIA

Mendonça, Felipe Cruz1; Cunha, Claudia Conceição1; Tardio, Bruno Marchena Romão1;
Oliveira, Rosenil Dias de1 & Freitas, Sérgio Fernandes1

1. Analistas Ambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), felipe.mendonca@icmbio.gov.br;


claudia.cunha@icmbio.gov.br; bruno.tardio@icmbio.gov.br; rosenil.oliveira@icmbio.gov.br; sergio.freitas@icmbio.gov.br

Resumo
A discussão sobre o direito de propriedade nas Reservas Extrativistas (RESEX) tem sido objeto de discussões que variam de
posições atreladas à defesa de que não existem normas que garantam a sustentabilidade dos recursos naturais naquela ca-
tegoria de unidade de conservação (UC), e posicionamentos que ressaltam a importância de um novo modelo de co-gestão
Estado-Sociedade nas UC. Tendo como princípio que as RESEX caracterizam-se como uma área de regime de propriedade
dos recursos naturais de forma comunal, onde ocorre a posse coletiva entre usuários (beneficiários) que dividem direitos e res-
ponsabilidades sobre os recursos, esse trabalho utiliza-se do processo de definição do perfil da família beneficiária na RESEX
Marinha (RESEXMar) da Baía do Iguape (BA) para discutir sua capacidade de contribuir no fortalecimento da autonomia e sen-
timento de pertencimento de uma população a seu território.

Palavras-chave: Autonomia, Família Beneficiária, Propriedade Comunal, Reserva Extrativista, Unidade de Conservação.

Introdução
A Reserva Extrativista (RESEX) é uma categoria de unidade de conservação da natureza prevista no Sistema Nacional
de unidades de conservação (SNUC), que tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e cultura de populações
tradicionais extrativistas e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da Unidade1. Dentre as categorias de unidades de
conservação (UC), a RESEX se diferencia por ter sido originada de uma demanda do movimento social, no âmbito da luta dos
seringueiros por seu território, na década de 80 (CUNHA, 2010).
Inicialmente materializada na Política Agrária como Projeto de Assentamento Agroextrativista, e posteriormente inserida na
legislação ambiental como categoria de unidade de conservação, as RESEX ainda enfrentam sérias desconfianças sobre seu real
papel como capazes de cumprir sua função de proteção da natureza ou mesmo na garantia do modo de vida de sua população.
Além das críticas relacionadas com a sustentabilidade do extrativismo (HOMMA, 1993), parte dessa desconfiança está
fundada nas reflexões de Garrett Hardin (1965) em seu texto “A tragédia dos comuns”. O autor afirma que recursos que não têm
uma regulação estão fadados ao declínio, pois os “comuns” tenderiam a esgotá-los. Em outras palavras, os recursos que não
pertencessem a “alguém” em particular estariam sujeitos a uma utilização competitiva que os condenaria à extinção, pela super-
exploração. Assim, argumentava duas soluções para o não esgotamento dos recursos: que fossem privatizados ou transformados
em propriedades públicas. Esse argumento foi forte e diferentemente apropriado ao longo dos anos (GOLDMAN, 2001).
Ao lado de outras críticas às unidades de conservação de uso sustentável, vinculadas à concepção de que não é pos-
sível conciliar o uso humano à conservação da natureza, a “tragédia dos comuns” presta-se a uma argumentação especialmente
direcionada ao questionamento das Reservas Extrativistas como categoria de unidade de conservação. Seus críticos na maior
parte das vezes desconsideram (ou deliberadamente omitem) o fato do trabalho de Hardin estar centrado em “propriedades de
livre acesso”, nas quais não há controle no acesso aos recursos (FENNY et al., 2001). Ao tempo em que, em nossa avaliação, o
regime de propriedade relacionado aos recursos das Reservas Extrativistas tem maior proximidade aos princípios de proprie-
dade comunal, onde a posse é coletiva e os grupos de usuários dividem direitos, responsabilidade na definição das regras e
responsabilidades sobre os recursos (FENNY et al., 2001; McKEAN; OSTROM, 2001).
Nas RESEX, o instrumento de gestão2 que contempla a definição das regras de uso e acesso aos recursos, estabelecendo-se
1
A lei n° 9985/2000, que instituiu o SNUC, define RESEX como “uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais cuja subsistência baseia-se no extrativismo
e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura
dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.”

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647
os compromissos da comunidade demandante do uso do território, está atualmente normatizado no denominado acordo de
gestão. O referido documento faz parte do plano de manejo da Unidade.
Para definição das regras é necessária ainda a caracterização da “população que tem direito” ao uso dos recursos e
aquela que será excluída ou terá acesso diferenciado ao mesmo. Essa definição está contemplada no “perfil da família bene-
ficiária” da unidade de conservação, no qual se definem as características daqueles que serão os detentores do direito de uso
concedido pelo Estado, para este território.
Entendendo que tanto a definição das regras de uso quanto a delimitação do detentor desse direito são essenciais na
conformação do futuro da Reserva Extrativista e que, este processo, quando democrático e protagonizado pelas famílias envolvi-
das pode contribuir para o fortalecimento desses grupos na gestão de seu território, esse trabalho objetiva discutir o processo
de definição da família beneficiária de uma RESEX como um instrumento capaz de contribuir no fortalecimento da autonomia e
sentimento de pertencimento de uma população a seu território. Para isso, utilizou-se como estudo de caso o processo integrado
de elaboração dos instrumentos de gestão da Reserva Extrativista Marinha da Baía do Iguape (BA).

Propriedade de uso comum e as reservas extrativistas


Como já vimos, as Reservas Extrativistas são criadas para beneficiar populações tradicionais extrativistas que têm nos
recursos naturais a forma necessária para reprodução de seu modo de vida3. Comumente vem sendo reivindicadas por esses
grupos quando este modo de vida encontra-se ameaçado, seja por especulação imobiliária, instalação de grandes empreendi-
mentos (públicos ou privados) ou mesmo pela reivindicação de posse da área ocupada e/ou utilizada, diferentes formas de a-
propriação do território (simbólica e materialmente) encontram-se em conflito na sociedade, disputando prioridades e garantias.
Em todos esses casos está em jogo a destinação dada ao território em questão. “Quem usa”, “como usa”, “para que usa”
são variáveis que norteiam processos de criação de uma determinada UC. Ao se criar uma UC define-se quem dela poderá fazer
uso (pesquisadores, visitantes, extrativistas, estudantes etc) e quem dela deve ser excluído por apresentar forma de uso confli-
tante com a definição da categoria de UC. As Reservas Extrativistas estão baseadas essencialmente no uso dos recursos naturais
para sobrevivência e reprodução social, portanto, sua criação só faz sentido se houver algum grau de dependência por parte da
população a esses recursos, que devem ser utilizados de forma sustentável. Concordamos com Caldasso et al. (2012) quando
defende que a definição de regras claras e bem definidas sobre o uso dos recursos parte da responsabilidade de sucesso das
reservas extrativistas.
Para fins desse artigo, utilizamo-nos da reflexão de Fenny et al. (2001) quando apresenta quatro categorias de direito de
propriedade, relacionados ao manejo dos recursos comuns: livre acesso, propriedade privada, propriedade comunal e proprie-
dade estatal. Como propriedade comunal, a autora define que ocorre quando

os recursos são manejados por uma comunidade identificável de usuários interdependentes. Es-
ses usuários excluem a ação de indivíduos externos, ao mesmo tempo em que regulam o uso
por membros da comunidade local. Internamente à comunidade, os direitos aos recursos normal-
mente não são exclusivos ou transferíveis, e sim frequentemente igualitários em relação ao acesso
e ao uso (FENNY et al. 2001, p. 21)

Em nossa avaliação, essa descrição é totalmente pertinente ao regime de uso praticado nas reservas extrativistas: uma
propriedade do Estado (RESEX), com regime de concessão de uso a uma população bem definida (papel do perfil da família
beneficiária), na qual são aplicadas regras que regulam o uso dos recursos naturais (acordo de gestão). Ao mesmo tempo, al-
guns desafios associados à propriedade comunal são comumente perceptíveis nas RESEX:

pressões sobre os recursos ocasionados pelo crescimento populacional ou por mudanças tecnológicas e
econômicas, incluindo novas oportunidades de mercado, podem contribuir para a desestruturação de me-
canismos de propriedade comunal voltados à exclusão de agentes externos[...] (FENNY et al. 2001, p. 25).

2
Mais adiante discutiremos sobre instrumento de gestão.
3
Sua justificativa como unidade de conservação está fundamentada na dependência dessas populações aos recursos naturais, e o acúmulo de conhecimentos para
seu uso sustentável, uma vez que sua existência é dependente da conservação dos mesmos.
4
Essa classificação diz respeito ao regime de propriedade dos recursos, no caso dos recursos de propriedade comum. Esse esforço teórico de classificação diz
respeito à forma de manejo dos recursos, no sentido de responsabilidade e manejo dos recursos naturais de um determinado território por um grupo de pessoas

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Assim, a discussão envolvendo os instrumentos de gestão dessa categoria de UC precisa considerar suas especifici-
dades no que diz respeito à gestão do território, tal como ao sistema de tomada de decisão, uma vez que se faz necessário, ao
lado da construção e estabelecimento de regras, o acordo entre as partes envolvidas de forma a levar a uma verdadeira co-
responsabilidade entre as mesmas5.

Instrumentos de Gestão de Reservas Extrativistas


As unidades de conservação dispõem de instrumentos que, a partir dos objetivos de cada categoria de UC, estabelecem
normas de uso do território (como, onde e quem pode usar) e as ações de manejo previstas. Esses instrumentos são conhecidos
como “Instrumentos de gestão”6. Como exemplos, podemos citar o plano de uso público, o termo de compromisso com popu-
lações tradicionais em unidades de proteção integral, o acordo de gestão, plano de proteção e o plano de manejo. Dependendo
dos desafios de gestão da Unidade, pode-se adotar um conjunto de instrumentos para o alcance dos resultados esperados
visando à conservação do território.
Trataremos neste artigo dos instrumentos plano de manejo, acordo de gestão e perfil da família beneficiária, que têm
relação com o tema que queremos explorar. De acordo com o SNUC, o plano de manejo representa um

documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de
conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o
manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão
da unidade (BRASIL, 2000, art. 2°, inciso XVII)

No âmbito federal, os planos de manejo das Reservas Extrativistas estão regulamentadas através da Instrução Normativa
(IN) do ICMBio n°01/2007 que disciplina as diretrizes, normas e procedimentos para a sua elaboração. Na referida IN, esse docu-
mento é definido, obrigatoriamente, como de construção participativa, envolvendo e tendo como protagonistas as populações
demandantes da Unidade.
O plano de utilização (hoje denominado acordo de gestão) foi o primeiro instrumento de gestão pensado para as RESEX
no início dos anos 1990. A primeira institucionalidade das Reservas Extrativistas na política ambiental (Decreto n° 98.897/1990)
estabeleceu que “o contrato de concessão incluirá o plano de utilização aprovado pelo Ibama7 e conterá cláusula de rescisão
quando houver quaisquer danos ao meio ambiente ou a transferência da concessão inter vivos” (grifo nosso). Este instrumento
tinha como objetivo proporcionar um mecanismo legal de auto-gestão8 dos territórios pelos extrativistas, cabendo ao poder pú-
blico o papel de acompanhar a sua implementação

A autonomia dos seringueiros em seu território foi, ao nosso ver, contemplada pela legislação ao
lhes conferir a responsabilidade de elaboração do plano de utilização, que destacaria as regras a
serem seguidas na RESEX e imputar ao Ibama a responsabilidade de apenas “supervisionar” este
plano. O moderno (ciência) se rende ao tradicional (saber) a partir do momento em que as regras
de gestão daquele território são definidas pelos conhecimentos tradicionalmente produzidos, no
exercício do fazer. O plano de utilização seria discutido pelos comunitários, definindo o que é per-
mitido ou proibido naquela unidade territorial, e caberia ao Estado (representado pelo Ibama) tão
somente referendá-lo e observar a sua aplicação, em seu poder de fiscalização. Cabe ao poder
público assegurar-se da destinação correta da área, mas os termos sob os quais ocorrerá esta
destinação serão definidos pela população beneficiária no contrato (CUNHA, 2010, p.112 e 113).

5
Ainda que não seja objetivo deste artigo, cabe ressaltar que a idéia original de auto-gestão pelos beneficiários pensada para as RESEX, na prática, não vem se
estabelecendo de forma pacifica e sem conflito. Por ser um território estatal, com uso concedido às populações tradicionais, o poder do Estado vem muitas vezes se
sobrepondo aos interesses extrativistas.
6
A Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA - Lei nº 6.938, de 31 de Agosto de 1981), institui em seu artigo 9° os instrumentos da PNMA, ou seja, os mecanismos
utilizados pela administração pública para que os objetivos da política nacional sejam alcançados. Entre estes instrumentos estão as áreas especialmente protegidas,
como as UC. Os instrumentos de gestão que aqui nos referimos, dizem respeito aos instrumentos voltados para que as UC alcancem seus objetivos de criação.
7
Nesse período o IBAMA era o órgão gestor das unidades de conservação federais.
8
No entanto, a realidade da implementação das reservas extrativistas, foi bastante diferente da proposta original, onde o papel do Estado tomou tamanho tal, que hoje
se pergunta até onde vai o poder de intervenção das populações tradicionais extrativistas na gestão destas áreas protegidas.

05: Sistemas de Gestão e Governança


649
Com o advento do SNUC em 2000 foi instituída a obrigatoriedade de elaboração do plano de manejo para todas as cate-
gorias de unidades de conservação. Para as Reservas Extrativistas, cujo documento de regulação e normatização era o plano de
utilização, houve alguma resistência em aceitar um documento técnico que contemplasse esse regramento. Ao longo do tempo,
foi-se construindo o entendimento de que o plano de utilização seria um capitulo dos planos de manejo, sendo referendado na já
citada IN n° 01/2007 que dispõe sobre os planos de manejo de RESEX.
No entanto, em 2012, a partir das discussões para normatização dos planos de utilização no âmbito do ICMBio, este
instrumento foi renomeado de “acordo de gestão”9. No mesmo ano, o ICMBio publicou a Instrução Normativa n° 29, que institui
as diretrizes, requisitos e procedimentos administrativos para a elaboração e aprovação de acordo de gestão em unidade de
conservação de Uso Sustentável federal com populações tradicionais. Segundo a IN acordo de gestão é definido como

[...] o documento que contém as regras construídas e definidas pela população tradicional bene-
ficiária da unidade de conservação de Uso Sustentável e o Instituto Chico Mendes quanto às ativi-
dades tradicionalmente praticadas, o manejo dos recursos naturais, o uso e ocupação da área e a
conservação ambiental, considerando- se a legislação vigente.

No que diz respeito ao perfil da família beneficiária, preconiza-se que a caracterização da “população tradicional bene-
ficiária da Unidade e outros usuários, suas formas de organização e de representações social” (ICMBio, 2007, Art. 7) devem estar
presente nos estudos que embasam a construção do plano de manejo.
Ainda que exista a necessidade de caracterização dos beneficiários das RESEX, foi somente com a IN n° 35 de 27 de
dezembro de 2013, que foram apresentados maiores detalhes sobre os procedimentos técnicos para sua definição:

III – perfil da família beneficiária: descrição das características que identificam a população tradi-
cional de cada Unidade de Conservação, servindo como parâmetro para o reconhecimento da
família beneficiária da Unidade de Conservação;
IV – Família Beneficiária da RESEX e FLONA: família que compõe população tradicional, que
atende aos critérios de definição de perfil da família beneficiária da Unidade de Conservação, re-
conhecida pela comunidade e pelas instâncias de gestão da unidade como detentora do direito ao
território compreendido na UC e acesso aos seus recursos naturais e às políticas públicas voltadas
para esses territórios [...] (ICMBio, 2013, Art. 2°)

Como discutimos anteriormente, a definição do perfil das famílias que terão acesso aos recursos naturais da Unidade, é
marco decisório para a gestão da RESEX, uma vez que delibera de quem é o direito de uso ao território10. Esse perfil é oficiali-
zado por Portaria específica do ICMBio e incorporado, tal como o acordo de gestão, no plano de manejo da Unidade.
No ICMBio a construção desses instrumentos de gestão encontra-se fragmentada internamente em setores ou coorde-
nações, sendo realizada mediante disponibilidade de recursos financeiros e humanos, o que desfavorece ações conjuntas e
estratégicas que poderiam potencializar tal construção.
Esse trabalho objetiva discutir o processo de definição do perfil da família beneficiária de uma RESEX como instrumento
capaz de contribuir no fortalecimento da autonomia e sentimento de pertencimento de uma população a seu território, utilizando-
se como estudo de caso a Reserva Extrativista Marinha (RESEXMar) da Baía do Iguape (BA).
O processo de Estruturação dos Instrumentos de Gestão da RESEXMar da Baía do Iguape foi planejado com o in-
tuito de integrar a construção dos três instrumentos de gestão acima referidos. Trazendo elementos do planejamento estratégico,
buscou-se contemplar a elaboração da caracterização/diagnóstico da Unidade, a construção de sua missão e visão de futuro; a
definição do perfil da família beneficiária; a construção do acordo de gestão e zoneamento e, por fim, o seu planejamento. Todas
as etapas trabalhadas comporão o plano de manejo da RESEX.
9
Esse termo surge pela primeira vez na discussão de um decreto que regulamentaria as Reservas Extrativistas. O Decreto ainda não chegou a ser publicado, mas
o Órgão responsável pela gestão das UC assumiu essa nomenclatura em substituição à anterior, que carregava em si uma história de lutas vinculada à história das
RESEX.
10
A definição do perfil dos beneficiários de uma RESEX é de fato tão importante, que deveria ser mais aprofundada dentro dos trabalhos para a criação da Unidade.
A IN ICMBio nº 03 de 18 de setembro de 2007 que disciplina as diretrizes para a criação das RESEX e Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) já indica em
seu artigo 7° a necessidade de, ainda no seu processo de criação, elencar “as características sócio-culturais e econômicas da população tradicional solicitante” (art.
7°, inciso IV). No entanto, nesse momento do processo essa caracterização tem sido realizada de forma bastante ampla e sem compromisso com a definição de um
perfil especifico e detalhado para a UC.

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Neste contexto, várias etapas intermediárias foram organizadas e planejadas de forma a facilitar a compreensão e enten-
dimento sobre os passos necessários para a concretização dos citados instrumentos de gestão junto às comunidades. Tais pas-
sos foram acompanhados de perguntas norteadoras como: “O que precisamos para realizar o processo?” (1º passo), ou “Quais
são as famílias e usuários que podem acessar os recursos da RESEX?” (5º passo). Na Figura 1 é possível visualizar as etapas
traçadas durante o planejamento das ações e as instâncias responsáveis pela tomada de decisão (em amarelo). Destaque para
o 5° passo que representa a definição do perfil da família beneficiária.

Figura 1. Etapas do processo de estruturação dos instrumentos de gestão da RESEXMar da Baía do Iguape,
com destaque para a etapa do perfil da família beneficiária.

Reserva Extrativista Marinha da Baía do Iguape


Criada pelo Decreto de 11 de agosto de 2000 abrange os municípios de Maragogipe, São Félix e Cachoeiras, no Estado
da Bahia. Envolve as áreas de mar (estuário) e mangue na Baía do Iguape, possuindo cerca de 10 mil hectares, que vai desde
a região Pilar (São Félix) até próximo a São Roque e Ilha de Monte Cristo (divisa Cachoeira e Saubara). As famílias residem
no entorno da lamina d’água e vivem predominantemente da atividade de pesca artesanal e extração de mariscos. Camarão,
siri, sururu e ostras são exemplos de recursos naturais explorados na Unidade, que possui cerca de 3.500 famílias, dentre elas
quilombolas que reivindicam seus territórios.

A elaboração do perfil da família beneficiária


Ao longo dos trabalhos de elaboração integrada dos instrumentos de gestão da RESEXMar da Baía do Iguape serão alcan-
çados alguns resultados intermediários. Dentre eles, a definição do perfil da família beneficiária, cujo processo de elaboração
está apresentado na Figura 02 e sobre o qual nos deteremos a partir de agora.

05: Sistemas de Gestão e Governança


651
Figura 2. Etapas de elaboração do perfil da família beneficiária da RESEXMar da Baía do Iguape.

Grupo de Trabalho e Oficinas Comunitárias


A IN nº 35/2013 também menciona a necessidade de se criar um grupo de trabalho (GT) também chamado de grupo
acompanhamento (GA), que dentre outras atribuições, pretende garantir a representatividade das populações tradicionais em to-
das as atividades desenvolvidas. As oficinas comunitárias foram realizadas no período de 03 a 13 de setembro de 2014, em 15 dife-
rentes localidades em áreas dos Municípios de Maragogipe, Cachoeira e São Félix, mobilizando cerca de 2000 pessoas (Figura 3).

Figura 3. Reuniões realizadas na comunidade Comissão/Baixinha e na comunidade Boiada

Foram organizadas 4 (quatro) equipes, compostas de servidores do ICMBio, grupamento ambiental da Guarda Munici-
pal11 e membros do grupo de acompanhamento para a realização de 15 oficinas comunitárias nas diferentes localidades que
compõem a RESEX, na tentativa de envolver o maior número de pessoas possível, em um processo de mobilização raramente
visto nessa Unidade desde sua criação.
As reuniões comunitárias obedeceram dinâmicas semelhantes de condução, pois tinham o mesmo objetivo, salvaguar-
dando as particularidades de cada comunidade, aliado a percepção adaptativa da equipe técnica envolvida. A programação foi
dividida em cinco momentos: a) Boas Vindas/apresentação dos participantes, programação, objetivo e acordos de convivência
da reunião; b) Apresentação dos instrumentos de gestão da RESEX: perfil da família beneficiária; c) Resultados do levantamento
socioeconômico da RESEX (Projeto Envolver12); d) Trabalho em grupos com a pergunta: “Quem deve ser a família beneficiária
9
O grupamento ambiental da Guarda Municipal trabalha em parceria com a RESEX em diversas ações da gestão da Unidade, desempenhando um papel muito mais
amplo do que de policiamento e fiscalização. Na rodada de oficina, apoiaram na logística e também como equipe de moderadores das oficinas.
12
O projeto Envolver, desenvolvido na RESEX Baía de Iguape pela FGV com o apoio de 46 colaboradores locais, teve o objetivo de atender à necessidade de identifi-
cação e cadastramento dos beneficiários da UC. O projeto gerou o diagnóstico socioeconômico da RESEX e os mapas de identificação dos pesqueiros na Unidade.
O trabalho aplicou questionários em mais de 3.400 famílias entre os meses de agosto e dezembro de 2012.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
652
da RESEX”? (com base no uso do recurso natural); e) Plenária final com apresentação das propostas.
A metodologia empregada evidenciou diferenças e conflitos de interesse políticos e sociais, expôs reflexões sobre identi-
dade e auto-reconhecimento por parte das populações tradicionais existentes mas, principalmente propiciou conhecer as carac-
terísticas das famílias que sobrevivem, quer em maior ou menor grau de dependência dos recursos advindos da RESEX.
O protagonismo das comunidades durante a discussão residiu grande força do processo, no sentido de representar um
momento de discussão da própria RESEX, seus usos e usuários13 e portanto, subsidiar tomadas de decisão no que se refere ao
acesso de políticas públicas destinadas a esse grupo. A Figura 4 mostra um exemplo dos resultados apresentados pelos grupos
em uma das oficinas de discussão sobre o perfil.

Figura 4. Painel da família beneficiária da oficina comunitária na localidade Comissão/Baixinha, com os dissensos destacados.

Como o processo de construção do perfil da família beneficiária não se esgota apenas nas reuniões comunitárias, pois
é necessário cumprir as demais etapas previstas na IN nº35/2013, os dissensos da plenária final são acatados e posteriormente
discutidos com o grupo de trabalho, que então tem a missão de encaminhar proposta única como fruto de discussão de todas as
etapas comunitárias do processo.

Indicação de proposta única ao perfil da família beneficiária


Se considerarmos uma ordem de importância entre todas as etapas necessárias para a condução dos processos que irão
subsidiar a caracterização da família detentora dos direitos atrelados ao uso do território, esta etapa seria a mais desafiadora, pois
sua legitimidade dependerá da lisura e respeito por todas as etapas anteriores a este momento, bem como desafia a interpreta-
ção subjetiva e de abrangência de todas as particularidades apresentadas pelas populações que compõe o território em questão.
Para facilitar a compreensão, uma representação esquemática com as características elencadas pelas comunidades,
aliadas aos critérios norteadores definidos na IN nº35/2013 foi montado (Figura 5), e a partir dele descrito a proposta de carac-
terização familiar que melhor contemplou a realidade presenciada no processo.

É importante reconhecer que esse processo de integração e participação social na construção de instrumentos de gestão foi possível por um ambiente institucional
13

no qual vem sendo construídas normativas e entendimentos internos nesse rumo, como é detalhado por Mendonça e Talbot (2014).

05: Sistemas de Gestão e Governança


653
Figura 5. Representação esquemática e proposta construída no processo de definição do perfil da família beneficiária trabalhada pelo GT.

Percepções sobre o resultado do perfil


A proposta final do processo de elaboração do perfil da família beneficiária RESEXMar da Baía do Iguape trouxe bastante
reflexões para a equipe técnica à frente do processo e questionamentos por parte das instâncias hierárquicas avaliadoras do IC-
MBio. Em um primeiro olhar, parece ser inclusivo em demasia, não diferenciando de forma bem clara quem são os beneficiários
da RESEX. Esta impressão inicial pode gerar uma preocupação quando analisamos o adensamento populacional na região
do entorno da Unidade. Buscando uma possível interpretação dos resultados gerados, é importante contextualizar e buscar na
história de ocupação do território, indicações que nos ajudem a refletir o perfil construído.
A RESEXMar da Baía do Iguape está inserida em um estuário de mesmo nome, dividida por três grandes municípios do
Recôncavo Baiano: São Félix, Cachoeira e Maragojipe, contabilizando aproximadamente uma população de 110 mil pessoas.
No cadastro de famílias que utilizam ao menos uma vez por mês os recursos pesqueiros da RESEX, dentre a população destes
municípios, foram identificadas cerca de 3.600 famílias de marisqueiras e pescadores que realizam suas atividades produtivas de
forma familiar, artesanal e tradicional. Este número de famílias, possivelmente beneficiárias, ainda pode ser considerado grande
para uso dos recursos numa Reserva Extrativista estuarina de pequena dimensão (10.082,45 hectares).
A história da formação das comunidades de pescadoras e pescadores quilombolas na região remonta desde o século
XVI, quando ainda território de usufruto do povo indígena Tupinambá. O Recôncavo Baiano foi uma das primeiras regiões a gerar
fontes de recursos para a coroa portuguesa no período colonial. A estruturação de portos e o grande fluxo de embarcações do
Velho Mundo para Salvador facilitaram a vinda forçada de grandes montantes de nações africanas na região. Foi esta mão de
obra escrava que sustentou durante muito tempo a produção de cana-de-açúcar, do fumo e outros produtos agrícolas, trazendo
prosperidade e riquezas à coroa portuguesa e aos grandes proprietários de terra.
Devido à alta produtividade pesqueira do estuário (segundo informações do monitoramento do desembarque pesqueiro
realizado nesta RESEX, a Baía do Iguape representa a segunda maior região de produtividade pesqueira de todo o estado da
Bahia) e à facilidade de acesso e escoamento de produtos por via marítima, a maioria das propriedades rurais foi instalada às
margens da Baía do Iguape, gerando um adensamento de engenhos que utilizavam um grande contingente de mão de obra
escravizada.
Este histórico de ocupação dos engenhos - os atuais quilombos - concentrado no entorno da RESEXMar da Baía do
Iguape resultou na existência de cerca de 92 comunidades tradicionais extrativistas, distribuídas entre diversos territórios re-
conhecidamente quilombolas. Desta forma, sugere-se que o elevado número de beneficiários da RESEX possa estar associado

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654
muito mais ao histórico de formação agregada das comunidades tradicionais extrativistas que ao aumento populacional nos cen-
tros urbanos de São Félix, Cachoeira e Maragojipe. Desta maneira, o grande número de beneficiários pode não ter relação com
o texto da definição do perfil da família beneficiária, mas sim pela coexistência num pequeno território de muitas comunidades
tradicionais com influência de povos africanos, indígenas e europeus.
O perfil tange também uma temática importante que é o auto-reconhecimento das populações tradicionais como socie-
dades de cultura diferenciada das demais. Apesar de saberem apontar “os outros” e entenderem subjetivamente o que percebem
enquanto “nós”, o auto-reconhecimento perpassa por uma séria multidimensional de fatores, como o grau de empoderamento
do território, de auto-estima, da influência de culturas urbanas, o desenvolvimento do patronato e do racismo, a desvalorização
do trabalho do pescador e da marisqueira etc. Esta gama de fatores articulados dificulta a tradução desta percepção complexa
do “nós” em uma linguagem de estética formal a ser utilizada como critério normativo de separação entre beneficiários e não
beneficiários num instrumento de gestão oficial.
Como a iniciativa de discussão de questões identitárias é recente na RESEXMar da Baía do Iguape, espera-se que no
decorrer do processo de reflexão e avaliação sobre o atual perfil da família beneficiária, os possíveis problemas sejam percebi-
dos por todos (órgão gestor, parceiros e beneficiários) e os ajustes necessários venham a ocorrer quando pertinentes.

Conclusão
Entendemos que a experiência de elaboração do perfil da família beneficiária na RESEXMar da Baía do Iguape represen-
tou um momento de construção de um conjunto de regras naquela UC, assim como uma oportunidade de (re)conhecimento de
si, no exercício do auto-reconhecimento e da alteridade, no sentido de discutir questões como “o que nos diferencia dos outros?”
“o que nos outorga um direito que não é outorgado a outros”, e mais especificamente “quais as características que nos coloca a
definição como “uma” comunidade?”. Essas reflexões, no contexto de uma UC com forte influência urbana, um grande adensa-
mento populacional e ocupação do território por populações historicamente marginalizadas, não é fácil de serem tratadas. Mas
enfrentá-lo pode ser a chance de sobrevivência de uma UC em um ambiente de enormes pressões aos seus recursos e ao modo
de vida tradicional de suas populações.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


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Diário Oficial da União Nº. 182, Seção I, página 104, de 20/09/2007

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PLANEJAMENTO DE BACIA HIDROGRÁFICA PARA GESTÃO DE TERRITÓRIOS
SOBREPOSTOS: SERTÃO DE UBATUMIRIM–UBATUBA/SP

Simões, Eliane1; Bussolotti, Juliana2; Navarro, Flávia3; Silva, Danilo S.4; Moreira, Noeli3; Ferreira, L. C.5;
Carvalhal, Fabiana3; Lóssio, Natália3 & Franco, Caetano3.

1.Pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais – UNICAMP e do Laboratório de Planejamento Ambiental Costeiro
– UNESP São Vicente; coordenadora técnica do Projeto de Planejamento Ambiental da Sub-bacia dos Rios Iriri/Onça – Associação Cunham-
bebe, simoeslica@gmail.com 2.Pesquisadora colaboradora do Laboratório de Planejamento Ambiental Costeiro – UNESP São Vicente; profes-
sora da da UNITAU e Presidente da Associação Cunhambebe 3.Técnicas integrantes da equipe do Projeto de Planejamento Ambiental da
Sub-bacia dos Rios Iriri/Onça – Associação Cunhambebe 4. Mestrando da UNESP Presidente Prudente e gestor do Parque Estadual da Serra
do Mar – Núcleo Picinguaba – Fundação Florestal. 5.Professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais – UNICAMP.

Resumo
Utiliza-se a ferramenta de planejamento, voltada ao ambiente integrador da microbacia hidrográfica, para contribuir com a
construção de acordos conciliatórios em caso de Territórios Sobrepostos: Comunidade Tradicional Caiçara e Unidades de
Conservação de Proteção Integral. O processo de planejamento participativo é propiciado pelo uso de diversas metodologias
(visitas domiciliares para caracterização da ocupação individualizada, difusão de informações, mobilização e esclarecimento;
mapeamento do uso do solo em quintais, construção de mapa-diagnóstico interativo e de maquete de planejamento do futuro em
oficinas coletivas), fundamentadas na cartografia social como meio de afirmação de identidade, espacialização e explicitação
de conflitos. A formulação participativa, com aprendizagem social e engajamento da comunidade, propiciou a integração de
instrumentos de ordenamento territorial vigentes e empoderamento comunitário.

Palavras-chave: Comunidades Tradicionais, Planejamento Participativo, Cartografia Social, Gestão Compartilhada, Conciliação
de Direitos.

Introdução
A conciliação de Territórios Sobrepostos – de Comunidades Tradicionais e de Unidades de Conservação – configura
desafio muito presente em boa parte das áreas historicamente utilizadas por grupos sociais portadores desse estatuto jurídico
(SIMÕES, 2010 e 2015).
A despeito da existência de uma variedade de normativas legais que amparam o direito de permanência dessas comuni-
dades tradicionais em seu território de origem – onde mantêm laços culturais e socioeconômicos que definem sua identidade -,
os gestores de Unidades de Conservação (UC), em especial de proteção integral, apresentam inúmeras dificuldades de operar
com a leitura integrada do arcabouço jurídico afeto ao tema. Isto é, há tendência frequente em fixar a base da atuação frente aos
casos de Territórios Sobrepostos apenas na legislação relacionada exclusivamente à conservação ambiental (MENDES, 2009;
FERREIRA, 2004 e 2005).
Essa aparente impossibilidade de diálogo, entre o direito de proteção à diversidade cultural e a conservação da biodiver-
sidade, tem gerado inúmeros conflitos, muitas vezes violentos, entre gestores e comunidades, que têm contribuído para aumen-
tar a situação de exclusão social, bem como, reduzido a condição de conservação ambiental das áreas protegidas (SIMÕES,
2010 e 2015).
Entre as dificuldades apresentadas para desenvolvimento de processos conciliatórios, é possível destacar as seguintes:
• Insuficiência das políticas públicas existentes para tratar de Territórios Sobrepostos: do ponto de vista da conser-
vação ambiental, costuma-se abordar o tema como “gestão da presença humana em UC”, isto é, de forma parcial e pejorativa,
somente pela ótica da legislação ambiental; por outro lado, sob a ótica do movimento social, há tendência de negação ao valor
da conservação das UC, como estratégia de resistência aos avanços desmedidos dos projetos de desenvolvimento regionais e
nacionais, como autodefesa ao alijamento das políticas públicas para legitimar a luta pela titularidade da terra;

05: Sistemas de Gestão e Governança


657
• Complexidade do tema, políticas públicas e legislação relacionada aos povos e comunidades tradicionais rela-
tivamente recentes: o que se traduz em número ainda reduzido de experiências de construção de pactos conciliatórios bem
sucedidos; disso decorre desvalorização do tema por parte dos órgãos gestores de UC, em favorecimento de outras frentes
consideradas prioritárias;
• Inexperiência, inabilidade e qualificação insuficiente: dos gestores (em todos os níveis decisórios) para operar com
os dois conjuntos de normativas jurídicas; inexistência de equipe interdisciplinar, qualificada e numericamente capaz de traba-
lhar com o tema de forma adequada; desconhecimento de instrumentos jurídicos passíveis de serem desenvolvidos para gerar
pactos ou acordos de gestão conciliatórios;
• Descrédito em relação às instituições gestoras: por parte das comunidades tradicionais, pesquisadores e grupos
defensores, face do histórico de atuação inadequada, incoerente e/ou violenta por parte dos gestores; esse descrédito é fortalecido
pelo distanciamento das diversas instituições com competência associada à esse, frente da complexidade que envolve cada caso.

Fundamentando essa dificuldade de enfrentamento dos conflitos, ainda que a ideologia da conservação da sociodiversi-
dade já esteja em processo de difusão há cerca de 20 anos (FERREIRA, 2002, 2005), se faz presente o ideário conservacionista,
restrito à natureza idealizada, intocada, à parte da presença dos grupos humanos. Por outro lado, concomitantemente, convive-se
com processos de expansão urbano-industriais, intensivos e altamente impactantes, no mesmo contexto onde se inserem essas
situações de sobreposição. Frequentemente, esses impactos têm sido assimilados como inerentes ao modelo de desenvolvi-
mento econômico adotado, anistiados assim como toleráveis.

O processo de ocupação gerou, em muitos casos, a perda dos territórios de comunidades indí-
genas, quilombolas e caiçaras. Esse fenômeno vem sendo agravado pela pressão fundiária exer-
cida por grupos econômicos ligados à indústria imobiliária, pela migração populacional de outras
regiões, criando contingentes que demandam novas áreas para habitação, pelo turismo de massa
e pela pouca efetividade do planejamento e do controle do uso do solo. As relações sociais e
políticas decorrentes desse processo de ocupação projetam disputas sobre o território, travadas
também nos instrumentos de ordenamento territorial, que conferem ou reduzem direitos fundiários
e de propriedade, regulam e induzem os usos do solo (ABIRACHED, 2011, p.13).

Tais processos se reproduzem no Litoral Norte Paulista, especialmente decorrentes da exploração de hidrocarbonetos
(pré e pós sal), escolhido como cenário para aplicação das estratégias ora apresentadas, particularmente, no Sertão de Ubatu-
mirim, situado no bairro de mesmo nome, em Ubatuba/SP.
Nesse estudo1, optou-se por utilizar a unidade geográfica da microbacia para buscar elementos constitutivos da análise
integrada do território e, por meio de diversas ferramentas de planejamento participativo, instrumentalizar a comunidade para
definir arranjo institucional de gestão dos recursos naturais e do território que melhor se adequaria para a condição de sobre-
posição em que se encontra.
Assim, o objetivo desse artigo é avaliar a aplicação de estratégias de planejamento participativo e da cartografia social
como ferramentas para diagnosticar questões relativas à sobreposição de territórios e gerar diretrizes de gestão ou caminhos
para enfrentamento de conflitos. Espera-se com isso, contribuir para a integração de instrumentos de ordenamento territorial já
incidentes na área para a formulação de pactos conciliatórios que garantam a permanência e desenvolvimento socioeconômico
da comunidade, bem como a conservação ambiental.

Metodologia
Área de estudo
A Sub-bacia Hidrográfica de Ubatumirim contempla os Rios Iriri/Onça, situada no extremo norte do município de Uba-
tuba/SP, entre as Praias de Ubatumirim/Estaleiro e o Sertão de Ubatumirim, subdivididos pela rodovia BR 101– Rio-Santos, con-
forme é possível visualizar no figura 1. A Sub-bacia apresenta uma extensa rede hidrográfica, com nascentes inseridas em duas
Unidades de Conservação (UC) e afluentes imersos na floresta ombrófila densa (Mata Atlântica).
1
Este estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto: Planejamento Ambiental da Sub-bacia dos Rios Iriri/Onça, desenvolvido pela Associação Cunhambebe da Ilha
Anchieta, com outras instituições parceiras, entre 2013 e 2015, com recursos do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO).

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Figura 1. Sub-bacia Hidrográfica dos RiosIriri/Onça, no contexto das Unidades de Conservação, do
Município de Ubatuba e do Estado de São Paulo.

Há particularidades especiais e conflitos diversos decorrentes de sobreposição de instrumentos de ordenamento territo-


rial, interesses econômicos e necessidades sociais, dentre os quais se destacam:
• Ocupação histórica por comunidade caiçara tradicional, anterior às UC;
• Parque Nacional, prevendo exclusivamente a preservação ambiental no Plano de Manejo;
• Parque Estadual estabelecendo diretrizes para desenvolvimento social de forma sustentável, em compatibilidade com
a conservação ambiental, inseridas no Plano de Manejo;
• Plano Diretor Municipal prevendo gestão compartilhada nos trechos de sobreposição, de modo a contemplar a ma-
nutenção da vida caiçara. No entanto, a Lei de Uso do Solo não foi finalizada, portanto, o Plano Diretor ainda não foi regulamentado;
• Incongruências entre as diretrizes de gestão ambiental e a lentidão em efetivação das medidas que contemplem a
permanência da comunidade na terra, e a continuidade de suas práticas tradicionais, vêm gerando dificuldade de manutenção
da agricultura, ausência de perspectivas de postos de trabalho, omissão do poder público com relação à instalação de serviços
e infraestrutura básica e consequentemente, descaracterização cultural, comercialização de terras cada vez mais crescente e
comprometimento ambiental;
• Instalação do turismo de veraneio em toda a bacia vem se intensificando, com expansão de ocupações irregulares,
inexistência de sistema de saneamento adequado, aumento crescente da população flutuante nas férias, causando comprometi-
mento dos cursos d’ água;
• Plano de Gerenciamento Costeiro em pleno processo de revisão do Zoneamento Ecológico-Econômico, sofrendo forte
pressão do setor imobiliário para flexibilização das metas de conservação;
• Dificuldades diversas de interação/interlocução da comunidade tradicional com: as normativas legais vigentes, as ins-
tituições governamentais, a interpretação documental, as ferramentas de informática e comunicação atuais e, as estratégias de
trabalho integradas entre as três associações comunitárias.
Os moradores exercem múltiplas formas de uso do território: praticam agricultura familiar (sob regime de pousio e coi-
vara) e extrativismo de produtos madeireiros e não madeireiros, estabelecem formas próprias de repartição de glebas para uso
dos recursos, em função de aspectos socioculturais constituídos historicamente.. A utilização da unidade de planejamento “bacia
hidrográfica” despontou como estratégia favorecedora para a leitura e interpretação integrada de todos esses fatores implicados,
sobretudo, por permitir uma visão abrangente e interdisciplinar.

05: Sistemas de Gestão e Governança


659
Em face desses problemas e demandas, elaborou-se o Planejamento Ambiental da Sub-bacia entre 2013 e 2015, por
meio de processo de mobilização comunitária intensivo, que permitiu construção de laços de confiança entre os técnicos e a
comunidade.

Planejamento Participativo
Foi desenvolvido um conjunto de estratégias de mobilização comunitária para viabilizar ações de mapeamento e planeja-
mento participativo, baseadas na Cartografia Social (ACSELRAD; COLI, 2008; ALMEIDA, 2004), como perspectiva para explici-
tação das características e peculiaridades da comunidade tradicional caiçara, bem como de seus conflitos, tais como:
a) Visitas domiciliares: foram realizadas quatro campanhas de campo, para caracterização dos ocupantes, de todas as
edificações, por meio de roteiro de entrevista estruturada, gerando banco de dados georreferenciados; distribuição de boletins
informativos sobre o andamento das atividades; esclarecimento a respeito dos objetivos do projeto e divulgação das ações pre-
vistas; mapeamento do uso da terra ao redor das edificações/sítios; distribuição de convites para as oficinas; complementação
da maquete em construção, com famílias tronco/principais, originárias da maior parte dos grupos familiares.
b) Oficinas de diagnóstico e planejamento: foram realizadas nove oficinas com duração de cerca de 4h de trabalho cada
uma, utilizando técnicas diversas que objetivaram fortalecer a participação dos moradores, maior intercâmbio de informações
e maior engajamento possível dos moradores (procurou-se garantir a presença de pelo menos um representante das famílias
principais), na construção do diagnóstico e do zoneamento ambiental do bairro. Os produtos elaborados foram apresentados
em oficina final para os órgãos gestores a fim de validá-los, e conferir sua aplicabilidade/inserção nas agendas institucionais.
O diagnóstico e o planejamento foram formulados de forma processual, partindo do mapeamento participativo do bairro,
usando passos lógicos e estratégicos, que permitiram a espacialização geográfica das características de uso da terra atuais e
necessidades futuras.

Mapeamento e diagnóstico participativos


Previamente à execução das oficinas, foi gerada uma carta contendo a subdivisão digital do território do bairro em 48
setores (Figura 2, montado sobre imagem aérea de 2011, cedida pela Fundação Florestal), definidos por arruamento, a partir de
uma base de informações geográficas (SIG), com o software da ESRI ArcGis 9.3.

Figura 2. Subdivisões territoriais utilizadas para montagem do mapa participativo utilizado na oficina de diagnóstico.

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660
Essa setorização foi utilizada para gerar croquis de campo para as visitas domiciliares (Figura 3) contendo informações
de referência como: limites de edificações, códigos de identificação do Programa de Saúde da Família (PSF), ruas/acessos e
hidrografia, para subsidiar a confecção de desenhos registrando o uso da terra nos quintais, com os moradores (Figura 4).
Posteriormente, esses croquis contendo desenhos dos quintais, representando o uso da terra em escala individualizada
(micro), foram colados em sequência, por arruamento, em um tecido de TNT contendo 7 x 6 m, disposto no chão da escola lo-
cal. Os principais rios e outros detalhes foram também inseridos previamente. Durante uma das oficinas, os moradores foram
convidados a completar esse mapeamento, utilizando diversos materiais que foram disponibilizados pela equipe (papéis de seda
coloridos, miniaturas de plástico de animais e de madeira representando edificações, sementes de juçara, folhas secas, terra e
areia, rolhas de garrafas). Assim a comunidade construiu o uso da terra em macroescala, agregando elementos tridimensionais,
trazendo mais vida e facilidade de visualização/identificação, à medida que puderam “entrar dentro do mapa”, compreender e
envolver-se com ele. Os moradores foram corrigindo detalhes, preenchendo os espaços entre as ruas, pensando no uso indi-
vidual, familiar e coletivo: espaços públicos, grandes áreas de plantio, extrativismo e cultivo de animais, situadas em áreas no
entorno dos quintais ou mais distantes.

Planejamento participativo
O planejamento foi favorecido por meio da inserção de elementos para completar, desta vez, uma maquete do bairro,
cuja base também foi montada previamente (em isopor), contendo referências geográficas: cotas altimétricas, hidrografia e edi-
ficações (representadas por alfinetes). A comunidade preencheu essa base com o uso da terra efetuado atualmente e potencial,
conforme pode ser observado nas figuras 5 e 6, usando pequenos pedaços de papéis de seda coloridos, salpicados sobre cola
(previamente passada com pincel sobre a maquete), alfinetes e pequenos pedaços de EVA (representando placas de sinaliza-
ção), espetos de madeira e etiquetas de sulfite (para inerir propostas para o futuro), terra e areia.

Figuras 5 e 6. Construindo o futuro por meio da maquete.

05: Sistemas de Gestão e Governança


661
A maquete permitiu compor visão do todo com mais facilidade, já que a escala menos detalhada que a do mapa interativo
favorecia a visualização integrada de vários aspectos: relevo, altitude, hidrografia e vegetação; posicionamento das edificações,
das áreas agrícolas e de extrativismo em relação à hidrografia e aos limites das Unidades de Conservação, áreas de mata mais
conservada e de trechos usados como pousio. Ao mesmo tempo em que os moradores complementavam a maquete, refletiam
sobre essas interrelações. Consequentemente, emergiam os conflitos, assim como muitas dúvidas e demandas para melhoria
da qualidade de vida, e também, para proteger o ambiente do bairro de pressões externas (especulação imobiliária, degradação
dos corpos d’ água, uso turístico inadequado, dentre outros aspectos).
Foi necessário realizar mais uma oficina, para entender melhor as diretrizes de instrumentos já existentes: Plano Diretor
Municipal, Tombamento da Serra do Mar, Planos de Manejo das UC, Gerenciamento Costeiro. Assim, sobre essa maquete pro-
curou-se sobrepor as diferentes zonas já definidas em cada um desses instrumentos, confeccionadas em papel de seda colorido.
As folhas foram posicionadas gradativamente sobre a maquete, conforme efetuada a apresentação de cada Plano, acompanhada
de painel contendo as principais regras (usos permitidos e proibidos).

Resultados
Foi possível formular proposta de microzoneamento da Sub-bacia do Ubatumirim (Figura 7), em especial na porção dos
territórios sobrepostos, isto é, no Sertão de Ubatumirim, por meio de participação intensiva dos moradores, desencadeada pelo
processo construído com as diversas ferramentas utilizadas.
O mapa 3 mostra que a comunidade formulou o zoneamento preliminar contendo nomenclatura especial, escolhida
por eles, usando linguagem que melhor caracteriza a relação que estabelecem com a floresta, como a Zona da Mata Caiçara,
assemelhando-se ao conceito de “floresta cultural” utilizado por Furlan (2006). Esse conceito é entendido pelos estudiosos como
processo de domesticação/socialização da natureza ou de floresta socialmente produzida (BRANDT; NODARI, 2011; PARDINI,
2012; NAREZI; MARQUES, 2012).

Figura 7. Zoneamento preliminar concebido pelos moradores.

Ressalta-se que esse zoneamento ainda está em construção, portanto, deverá receber o tratamento técnico-científico
necessário para melhor dialogar com os instrumentos de ordenamento territorial vigentes. A própria comunidade solicitou que a
Zona Agrícola seja rebatizada como Zona Agroecológica, que melhor caracterizaria o tipo de agricultura praticada no bairro, sem
uso de agrotóxicos, de baixo impacto e com prática de pousio que permite recuperação do solo.

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A técnica de pousio, muito utilizada nas culturas anuais tradicionais, é também empregada nessa
cultura perene [banana]. O consórcio de bananeiras com plantas nativas do estrato herbáceo e
arbustivo e algumas do estrato arbóreo, não altera as propriedades físicas e químicas do solo. Im-
portante destacar que, caso sejam interrompidas as culturas em Ubatumirim, o ciclo da sucessão
florestal deverá ser mais rápido (a reinstalação da floresta e sua evolução para estágios mais avan-
çados de sucessão florestal), pelo fato dos trechos com bananais apresentarem atualmente uma
maior fertilidade natural do solo e uma maior capacidade de suporte, quando comparados com os
solos dos trechos florestados contíguos (RAIMUNDO; SIMÕES, 2008 p. 21).

O projeto Planejamento Ambiental na Sub-bacia do Iriri/Onça prevê também a elaboração de subsídios para o orde-
namento territorial da bacia hidrográfica, que utilizam diferentes escalas, estão justapostos e, mesmo, são concorrentes entre si.
Por isso, dedicou-se também a entender as diretrizes previstas nestes instrumentos, suas incongruências e possibilidades de
diálogo, sobre o que se discorre brevemente a seguir, com foco na questão das UC, tema central deste artigo.
O Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina foi elaborado por meio de um convênio entre o Ministério do
Meio Ambiente (MMA), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), uma organização
não governamental e, posteriormente, a UNICAMP. Orientou-se por três documentos técnicos preliminares, produzidos entre
1997 e 2000. Foi lançado em 2001 e oficializado pela Portaria Ibama nº 112/2012. O Zoneamento do PNSB se estruturou por um
gradiente de conservação ambiental, contendo as zonas usualmente previstas: Intangível, Primitiva, de Recuperação, de Uso
Extensivo, Histórico-Cultural, de Uso Intensivo e de Uso Especial. Em relação às populações tradicionais, cita apenas a comu-
nidade indígena inserida na Zona de Uso Especial, enquadrada no Segmento Conflitante Guarani-Araponga. O Plano não men-
ciona a presença e as atividades agrícolas e extrativistas realizadas pelas comunidades tradicionais do Sertão do Ubatumirim
(ABIRACHED, 2011). Parte do pressuposto que a regularização fundiária seria resolvida e que esse problema seria eliminado,
enquadrando a área do Sertão em Zona Primitiva.
O Plano de Manejo do Parque Estadual da Serra do Mar foi elaborado pelo Instituto Ekos Brasil, contratado pelo Instituto
Florestal, por meio do Projeto de Preservação da Mata Atlântica (PPMA), com recursos do Banco Alemão KfW (cooperação
técnica Brasil/Alemanha). Contou com a participação da sociedade e foi realizado entre os anos de 2005 e 2006. O zoneamento
estabeleceu (além de todas as outras zonas convencionais) a Zona Histórico-Cultural Antropológica para enquadrar as áreas
ocupadas por comunidades tradicionais, prevendo a permanência e desenvolvimento socioeconômico dos moradores, por meio
da formulação de Planos de Uso Tradicionais (SIMÕES, 2010 e 2015).
Para Abirached (2011), o PUT

[...] trata-se de um instrumento de gestão territorial e ambiental. Contendo regras de uso e de re-
cursos naturais e um microzoneamento, elaborados por uma câmara técnica instituída para esse
fim, formada por representantes das comunidades e órgãos públicos competentes, no âmbito do
conselho do Núcleo Picinguaba. O PUT foi incorporado à ZHCAn, que, por sua vez, para carac-
terizar as populações tradicionais tomou como base, entre outros subsídios, os laudos técnicos de
instituições públicas elaboradas para esse fim (ABIRACHED, 2011, p.54).

Assim, de acordo com o Plano de Manejo do Parque Estadual, nas comunidades que ainda não apresentam Plano de
Uso Tradicional, como é o caso do Sertão do Ubatumirim, as normas de uso e ocupação nesta zona serão aplicadas conforme a
similaridade das sub-zonas já definidas em outras comunidades (Cambury e Sertão da Fazenda).
Foi importante verificar que os órgãos gestores participantes da oficina final avaliaram que há possibilidade de inserção
do zoneamento preliminar proposto pela comunidade nos seguintes instrumentos de ordenamento vigentes: Plano Diretor Mu-
nicipal, Plano de Manejo do Parque Estadual, Plano de Bacias Hidrográficas do Litoral Norte, Tombamento da Serra do Mar e Zo-
neamento Ecológico-Econômico do Gerenciamento Costeiro. Apenas o Parque Nacional da Serra da Bocaina se posicionou des-
favoravelmente à perspectiva de negociar a integração do zoneamento da micro-bacia nas diretrizes de gestão da UC Federal.

Conclusões
O processo de elaboração do Plano da Microbacia envolveu a totalidade dos moradores do Sertão do Ubatumirim, por

05: Sistemas de Gestão e Governança


663
meio de diversas ferramentas de planejamento participativo e cartografia social em várias etapas (4 campanhas de campo para
visitas domiciliares, 9 oficinas e 6 reuniões; distribuição de 6 Boletins Informativos e 2 folhetos), sendo que contou com participa-
ção ativa de cerca de 25% dos moradores do Sertão, presentes nas atividades coletivas.
Identificou-se a presença de 405 habitantes no Sertão de Ubatumirim, distribuídos em 165 residências de um total de 424
edificações (entre casas de veraneio, galpões, casas de farinha e outras), sendo que a totalidade dessas moradias foi abrangida
pelas visitas domiciliares realizadas nas campanhas de campo.
O planejamento ambiental na Sub-bacia Hidrográfica demonstrou constituir uma estratégia adequada de mobilização e
aprendizagem social, construindo os cenários atuais e perspectivas de futuro do bairro, compondo um inventário com cartas de
diagnóstico e ordenamento territorial do Sertão do Ubatumirim. O projeto ofereceu elementos para que as dinâmicas socioespa-
ciais do bairro pudessem ser explicitadas, pensadas e trabalhadas conforme os desejos da própria comunidade.
Espera-se que as diretrizes a serem formuladas no âmbito desse projeto possam contribuir para a construção do Plano
de Uso Tradicional dessa ZHCAn do Sertão de Ubatumirim, se a comunidade assim desejar, bem como para elementos gerais
integradores de todos os instrumentos de gestão incidentes no território. Nesse sentido, a utilização do instrumento Plano Inte-
grado da Sub-bacia pode ser bastante oportuna para dirimir as incoerências e sobreposições entre os outros instrumentos, bem
como, favorecer o consenso e a tomada de decisão coerente.
As comunidades tradicionais normalmente formulam suas próprias regras de uso coletivo dos recursos, que são transmi-
tidas de geração em geração. São muitos os exemplos em que comunidades conseguiram trabalhar a complementação dessas
regras, compondo acordos de uso dos recursos naturais de forma compatível com a conservação dos mesmos, com ou sem a
aajuda de órgãos do governo ou outras instituições de apoio/coordenação (OSTROM, 1990 e 2010; VIEIRA, BERKES; SEIXAS,
2005; FEENY et al; 2001; FERREIRA, 1998; 1999; 2002; 2004; 2005).
Resumindo, os desafios para continuidade desse processo são os seguintes:
• O Plano da Sub-bacia já elaborado contém um zoneamento com diretrizes gerais relevantes e formuladas participativa-
mente com os moradores: caberia fomentar sua complementação, adequação e incorporação junto aos órgãos gestores;
• Há uma série de instrumentos de ordenamento territorial incidentes na Sub-Bacia que podem contribuir para a gestão
integrada dos territórios sobrepostos;
• O Plano de Bacias é uma ferramenta privilegiada para promover a integração entre todos os instrumentos vigentes,
formulando regramentos detalhados e específicos, já que o tema recurso hídrico é abrangente e consensual, fluindo por todo o
cenário, ultrapassando fronteiras administrativas, e que catalisa as interações entre meio físico e biótico;
• A aplicação efetiva de qualquer instrumento de gestão integrada depende do envolvimento permanente de toda a co-
munidade e da pactuação entre os moradores e destes com os órgãos gestores, constituindo processo de gestão compartilhada;
• A gestão compartilhada requer disponibilização de informações integradas e geração de capacidades institucionais e
comunitárias para acesso, interpretação, alimentação e atualização constantes;
• Faz-se necessário constituir um arranjo de governança adequado para exercer a gestão compartilhada, formular dis-
positivos e procedimentos especiais para atender às particularidades da comunidade do Sertão de Ubatumirim, sobretudo com
relação ao licenciamento das atividades passíveis de serem realizadas em cada zona;
• É importante e necessário criar condições para o monitoramento do instrumento de gestão integrada a ser formulado,
por meio de controle cidadão.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


665
PROGRAMA DE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS MUDANDO O FOCO DA RESEX
ARAPIXI: DA PECUÁRIA PARA O SISTEMA AGROFLORESTAL

Silveira, Leonardo Konrath da1; Rios, Cláudia Márcia Almeida1; Oliveira, Késsia Monteiro de2 & Gomes, Noel Humberto Dias2

1. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), leonardo.konrath@gmail.com;


2. Associação de Produtores Rurais Extrativistas da Resex Arapixi (APREA)

Resumo
O PAA foi criado em 2003, para garantir acesso a alimentos em quantidade, qualidade e regularidade necessários às populações
que se encontram em situação de insegurança alimentar e nutricional, tendo também por objetivo promover a inclusão social no
campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar. Uma das principais características deste Programa é o seu amplo es-
pectro de atuação, pois fortalece o tripé: produção, comercialização e consumo. A RESEX Arapixi foi criada em 2006 tendo como
objetivos a proteção dos meios de vida e a cultura da população extrativista residente na área de sua abrangência e assegurar
o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. Este trabalho tem por objetivo apresentar as mudanças na RESEX Arapixi
através do acesso dos produtores ao PAA e apresentar como ocorreu acesso o a este, assim como o impacto benéfico tanto para
a qualidade de vida dos beneficiários da UC como também para a conservação do meio ambiente.

Palavras-chave: PAA, Políticas Públicas, Reserva Extrativista Arapixi, Arapixianos, Capacitar para Fortalecer.

Introdução
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) foi instituído através da Lei Federal nº 9.985, o qual divide
as Unidades de Conservação (UC) em duas categorias, as UC de Proteção Integral e as de Uso Sustentável. As UC de Uso
Sustentável permitem a exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos
processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economica-
mente viável (BRASIL, 2000). Mas estas UC apresentam uma outra importância fundamental, já que buscam associar a cultura
das populações tradicionais daquele local específico com o desenvolvimento sustentável.
Segundo o Relatório da Comissão Mundial de Desenvolvimento e Meio Ambiente das Nações Unidas, por desenvolvi-
mento sustentável podemos considerar o desenvolvimento “capaz de suprir as necessidades da população mundial sem com-
prometer as necessidades das populações futuras” (CMMAD, 1988). Embora o termo desenvolvimento sustentável seja ampla-
mente discutido em nossos dias ainda há a necessidade de definirmos o que é o desenvolvimento em si, sendo então definido
como o “aumento da capacidade de suprimento das necessidades humanas e a melhoria da qualidade de vida” (IBAMA, 2001).
Já a sustentabilidade pode ser definida como as preocupações ambientais, econômicas e sociais, consideradas no seu conjunto
e visando a conclusão de diferentes objetivos ao mesmo tempo (SATO, 2000).
Segundo Fernandez (2011) a emergência do movimento ambientalista no final da década de 1960 e o choque do petróleo
nos anos 1970 trouxeram a atenção para temas da diminuição dos recursos naturais de uso comum, das opções alternativas de
geração de energia e da pobreza em escala global. Este cenário acabou por impulsionar a crítica aos modelos de desenvolvi-
mento econômico até então vigentes, apontando para a incompatibilidade entre os processos convencionais de crescimento
econômico e a garantia de sobrevivência da espécie humana no longo prazo.
Ainda em Fernandez (2011) a abordagem padrão da Economia dos recursos naturais e do meio ambiente baseia-se na
ideia da internalização das externalidades, ou seja, baseia-se no pressuposto de que todo bem ou recurso ambiental não incluído
no mercado pode receber uma valoração monetária adequada. Desta forma é possível afirmar que uma UC, mesmo sendo de
Uso Sustentável “realiza” serviços ambientais que garantem a manutenção dos diversos recursos naturais que ali se encontram
assim como do próprio meio. Talvez um dos fatores preponderantes quando falamos nesta categoria de UC esteja justamente
relacionado à preservação da cultura das populações tradicionais que ali se encontram, já que a maioria destas desenvolveu ao
longo de gerações maneiras que podem ser consideradas sustentáveis de se relacionar com o meio ambiente e com os recursos
naturais.

05: Sistemas de Gestão e Governança


667
Segundo Arruda (1999) populações tradicionais são aquelas que apresentam um modelo de ocupação do espaço e
uso dos recursos naturais voltados principalmente para a subsistência, com fraca articulação com o mercado, baseado em uso
intensivo de mão de obra familiar, tecnologias de baixo impacto derivadas de conhecimentos patrimoniais e, normalmente, de
base sustentável. Em geral ocupam a região há muito tempo e não têm registro legal da propriedade privada individual da terra,
definindo apenas o local de moradia como parcela individual, sendo o restante do território encarado como área de utilização
comunitária, com seu uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente.
Geralmente as populações tradicionais encontram-se em situações de forte pressão, seja ambiental ou econômica, situa-
das muitas vezes na faixa da pobreza. Seguindo por esta lógica, Martine (2001) afirma que os pobres habitam os lugares menos
adequados, têm menos acesso às amenidades urbanas e são os primeiros a serem massacrados por desastres naturais e am-
bientais, ou pela expansão imobiliária. Torna-se fácil evidenciar isto principalmente junto aos ribeirinhos amazônicos na região
do médio purus, onde se encontra a Reserva Extrativista Arapixi, devido as fortes pressões provenientes do desmatamento que
se aproxima aos limites sul da UC, o que acaba por ameaçar um dos principais recursos daquela população tradicional: as co-
locações de castanha.
A Reserva Extrativista (RESEX) é uma categoria de UC de Uso Sustentável que apresenta a participação como um
princípio essencial de sua existência, desde as etapas de criação, implantação e gestão (BRASIL, 2002). A gestão de uma RE-
SEX apresenta um grande desafio, já que esta categoria possui pessoas morando em seu interior, sendo consideradas como
população tradicional. Toledo (2001) defende que a presença de populações tradicionais em áreas naturais protegidas, pode ser
associado com a existência de espécies endêmicas naqueles locais, assim como também pode ser relacionado o elevado nível
da diversidade biológica, este autor consegue indicar a coexistência desses elementos como benéfica, visto que o manejo de
recursos naturais realizado pelas populações tradicionais e através da acumulação de conhecimentos transmitidos ao longo do
tempo, contribui para o fortalecimento e aumento da biodiversidade.
A função que determinados elementos culturais apresentam no manejo dos recursos naturais, tem relação com o sucesso
da adaptação das populações tradicionais em seus próprios territórios, pois verifica-se que a constituição física e biológica des-
sas áreas é determinada pelo modo de vida empregado (PEREIRA, 2010). Toledo (2001) afirma que, devido à sua inserção em
áreas naturais, as populações tradicionais procuram adaptar o meio às suas necessidades, ao mesmo tempo em que se adaptam
às condições oferecidas. Através dessas constatações é possível afirmar que as populações tradicionais podem ter práticas cul-
turais conservacionistas sem a existência de uma ideologia conservacionista específica. Assim sendo, encontramos populações
que não possuem uma ideologia claramente conservacionista e que seguem regras culturais para a utilização de seus recursos
naturais de uma forma sustentável (ALMEIDA; CUNHA, 1999).
As populações tradicionais podem muito bem ser “encaminhadas” para uma percepção ambiental mais ampla, onde
entendam a importância do meio e que sua devida conservação pode gerar melhorias não só em sua qualidade de vida, mas um
implemento de sua produção. A produção é justamente um dos caminhos mais fáceis para buscar alterar positivamente a quali-
dade de vida das populações tradicionais. Algumas políticas públicas do Governo Federal buscam justamente casar a melhoria
na qualidade de vida com a produção do pequeno agricultor familiar e, entre estas políticas públicas podemos citar o Programa
Fome Zero (PFZ).
O PFZ é um grande marco no Brasil, pois se agregam um conjunto de programas de intervenção, tanto de caráter ime-
diato quanto de natureza estrutural, implementados por meio de instrumentos de políticas públicas (BECKER; ANJOS, 2010). De
acordo com Takagi, Del Grossi &Graziano da Silva, tornava-se imperativo promover a articulação das políticas estruturais com
as políticas emergenciais de combate à fome, destacando-se entre as políticas estruturais prioritárias as políticas de geração de
emprego e renda, como a expansão do microcrédito, a qualificação profissional, o estímulo a micro empreendimentos, a realiza-
ção de uma reforma agrária que amplie o acesso à terra, a expansão da previdência social para as pessoas em regime informal
de trabalho, incluídas as famílias rurais, e algumas adequações na política agrícola no âmbito da comercialização e acesso aos
mercados. Segundo Becker & Anjos (2010) o PFZ foi concebido para articular um conjunto amplo de políticas públicas, onde de
um lado temos as políticas de transferência direta de renda, como o Bolsa-Família, e de outra parte constam ações voltadas à reor-
denação fundiária, apoio à instalação de jovens agricultores, acesso a políticas públicas de fomento à produção da agricultura
familiar, entre outras.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi criado exatamente dentro deste contexto. Este Programa foi criado em

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2003, com o objetivo de garantir acesso a alimentos em quantidade, qualidade e regularidade necessários às populações que
se encontram em situação de insegurança alimentar e nutricional. O PAA também tem por objetivo promover a inclusão social
no campo por meio do fortalecimento da agricultura familiar. Uma das principais características deste Programa é o seu am-
plo espectro de atuação, pois fortalece o tripé: produção, comercialização e consumo. Podem comercializar alimentos ao PAA
agricultores familiares, pescadores artesanais, silvicultores, extrativistas, indígenas, membros de comunidades remanescentes
de quilombos e agricultores assentados que apresentem a Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF), conhecida por DAP (GRISA, 2009)
A modalidade “Compra para Doação Simultânea” (CAEAF) do PAA, busca adquirir alimentos de agricultores familiares
e destiná-los para pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social, as quais são atendidas por programas e
instituições locais (escolas, creches, abrigos etc.). Uma das principais dificuldades para a população tradicional, principalmente
para os ribeirinhos amazônicos é que para a execução do PAA torna-se necessária a constituição de uma complexa rede de
atores localizados desde a escala nacional até a local, interligando produtores e consumidores e várias instituições (GRISA, 2009).
Segundo Brandão (1981), as unidades familiares sentem orgulho em demonstrar que grande parte do que consomem
resulta do próprio trabalho sobre a terra, sendo motivo de orgulho do pai, enquanto “chefe da família”, e assim mostrar que quase
tudo que ela necessita provém do seu próprio trabalho sobre a terra. Uma maior autonomia alimentar garante legitimidade à
família diante de seus pares, pois ser colono e produzir para o autoconsumo são indissociáveis (GRISA, 2007).
Wilkinson (1997) afirma que o futuro da produção agrícola familiar depende menos da competitividade definida nos
estreitos limites tecnológicos e organizacionais, do que do efetivo surgimento de uma coalizão de atores comprometidos com a
redefinição das prioridades econômicas regionais, a partir do potencial produtivo do sistema de produção familiar.
O PAA pode ser visto como uma via de desenvolvimento rural singular, pois contempla não somente o plano econômico,
mas também a melhoria da qualidade de vida do pequeno produtor rural assim como das populações tradicionais, buscando
estabelecer novas relações com outros atores econômicos. Ações, neste sentido, podem contribuir para que os agricultores fa-
miliares enfrentem os desafios do mundo contemporâneo, à medida que simultaneamente oportunizam a inserção nos mercados
e a geração de trabalho e renda junto aos beneficiários (BECKER; ANJOS, 2010).
Em relação a RESEX Arapixi um dos maiores problemas de sua gestão encontrava-se relacionado a criação de gado.
Segundo o próprio SNUC não podem ser criados animais de grande porte em Reservas Extrativistas, mas através do Plano de
Utilização da RESEX Arapixi verifica-se essa “permissividade”, embora com algumas ressalvas. No início dos anos de 2010, a
maior preocupação da equipe gestora da RESEX Arapixi estava vinculada a ideia de que a UC poderia se tornar uma grande
fazenda ou um conjunto de pequenas fazendas, devido a proliferação das cabeças de gado. Em parte, esse crescimento popu-
lacional dos rebanhos bovinos estava vinculado a falsa ideia de “dinheiro fácil”, pois alguns acreditavam que a criação de gado
não exige muito trabalho e nem muito investimento de mão de obra e financeiro, já que quando os animais são vendidos ou então
quando a carne é comercializada, existe a impressão de uma grande geração de renda, devido ao montante financeiro recebido
naquela ocasião ser expressivo.
Um dos focos do Programa Capacitar para Fortalecer, implementado na RESEX Arapixi desde 2012, trata justamente de
oferecer alternativas para a população tradicional da RESEX Arapixi para melhoria de sua qualidade de vida, sendo uma de suas
linhas temáticas a melhoria e aumento da produção daquelas famílias que ali se encontram. O Programa Capacitar para Forta-
lecer tem sido uma ferramenta fundamental na gestão da RESEX Arapixi, pois além de fortalecer e empoderar novas lideranças
tem possibilitado desenvolver e implementar atividades que exigem um nível maior de organização.
Este trabalho tem por objetivo geral apresentar as mudanças na RESEX Arapixi através do acesso dos produtores desta
UC ao PAA; também é objetivo deste trabalho apresentar como ocorreu acesso ao PAA e o impacto benéfico tanto para a quali-
dade de vida dos beneficiários da RESEX Arapixi como também para a conservação do meio ambiente de forma geral.

Métodos
Para a realização deste trabalho foram pesquisados diversos documentos da gestão da RESEX Arapixi no período de 2012
a 2015, tais como atas de reuniões realizadas pela equipe gestora da RESEX Arapixi, o Plano de Manejo (2010) da UC, assim
como relatórios de reuniões da Associação de Produtores Rurais Extrativistas da RESEX Arapixi (APREA).
A RESEX Arapixi foi criada em 21 de junho de 2006 através do Decreto Presidencial s/n, tendo como objetivos a proteção

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dos meios de vida e a cultura da população extrativista residente na área de sua abrangência e assegurar o uso sustentável dos
recursos naturais da unidade. A UC apresenta uma área total de 133.637 hectares, localizada totalmente no município de Boca do
Acre/AM, a aproximadamente a 40 quilômetros de distância de sua sede. A UC é praticamente cortada ao meio pelo Rio Purus,
apresentando em seu interior cerca de quinze comunidades, com aproximadamente 700 moradores, divididos em 160 famílias.
Para fins de melhor explanação os moradores/beneficiários da RESEX Arapixi serão referidos no texto como Arapixianos.
Torna-se essencial descrever como foi concebido e estruturado o Programa Capacitar para Fortalecer nos métodos, já
que foi através deste que foi possível acessar com êxito o Programa de Aquisição de Alimentos. O Programa Capacitar para
Fortalecer foi estruturado como projeto para a conclusão do II Ciclo de Gestão Participativa, oferecido pelo ICMBio no período
de 2011 a 2012, realizado na Floresta Nacional de Ipanema em Iperó-SP. A primeira atividade realizada foram oficinas sobre or-
ganização comunitária e associativismo. Estas oficinas foram realizadas em cada um dos três setores em que a RESEX Arapixi
tem sido dividida pela sua equipe gestora a fim de facilitar o desenvolvimento de atividades. Nestas oficinas a equipe gestora da
UC contou com o apoio de um facilitador da GIZ e de uma bolsista extensionista da Universidade Federal do Acre (UFAC). Estas
oficinas tinham como principal objetivo a elaboração de um plano de trabalho comunitário, além da identificação de moradores
da UC que apresentassem perfil de liderança.
Durante a realização destas oficinas os facilitadores observaram quais participantes apresentavam perfil de liderança.
Para esta identificação, foi observado se haviam participantes cuja opinião se destacava e, ainda, se os demais participantes
demonstravam confiança naquela pessoa. Também era observado se exerciam influência sobre os outros, defendendo aquilo no
que acreditavam, se tinham iniciativa, tendo ainda capacidade de organizar seus pensamentos e objetividade. Outro ponto de
fundamental importância era observar se estas pessoas conseguiam/sabiam trabalhar em equipe, assim como se estes sabiam
ouvir e falar no devido momento, se questionavam quando tinham dúvidas, se estes não eram individualistas, querendo trabalhar
apenas com o aquilo que consideravam importante e, se respeitavam a opinião dos outros.
No mês de julho de 2012 foi realizada uma capacitação para as lideranças identificadas durante as atividades na UC e
também para os conselheiros do Conselho Deliberativo da Reserva Extrativista Arapixi. Esta capacitação foi elaborada para que
fosse realizada junto à VIII Reunião do Conselho Deliberativo da RESEX Arapixi, com dois dias específicos para a capacitação e
um dia para a reunião propriamente dita. Esta capacitação foi realizada por servidores do ICMBio, participantes do II Ciclo de
Gestão Participativa, momento em que foi realizado um intercâmbio entre gestores de outras Unidades de Conservação. Para
a realização desta atividade, foi realizado o diagrama histórico a fim de auxiliar os servidores do ICMBio, que participaram da
capacitação, e demais participantes (conselheiros e demais moradores da RESEX), a compreender o contexto da UC de uma
forma mais geral. A capacitação foi baseada em estudos sobre desenvolvimento de lideranças comunitárias, tendo como base a
cartilha “Desenvolvimento de Lideranças comunitárias” (SCHLITHLER, 2008).
Em agosto de 2012 foram realizadas, novamente, oficinas sobre associativismo com as Associações Comunitárias da UC,
sendo que um dos objetivos destas oficinas foi verificar se as metas propostas e planejadas nas oficinas que ocorreram anterior-
mente, através do calendário sazonal, foram atingidas. Infelizmente naquele momento nenhum dos objetivos tinha tido qualquer
tipo de encaminhamento ou avanço. Muitos participantes nem lembravam que tinham que fazer algo relativo aquela atividade
anteriormente proposta.
O Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) realizou também o curso Chefia e Liderança em outubro
de 2012, onde diversos moradores da RESEX Arapixi já selecionados, em reuniões e oficinas realizados anteriormente, partici-
param. O curso foi realizado em dois dias na Universidade Estadual do Amazonas (UEA) na sede do município de Boca do Acre.

Resultados e Discussão
O processo para a RESEX Arapixi se estruturar e começar a acessar o Programa de Aquisição de Alimentos foi lento e
gradual. Lento devido principalmente ao baixo nível de organização encontrado nos Arapixianos. As Associações Comunitárias
que já existiam no ano de 2012, ano em que se iniciou a implementação do Programa Capacitar para Fortalecer, não se encontra-
vam regulares, ou seja, todas estas possuíam algum tipo de pendência, geralmente relacionada com documentação em atraso
e/ou falta de pessoas interessadas em “tocar o barco”.
O Programa Capacitar para Fortalecer desempenhou um papel fundamental no fortalecimento de lideranças, sendo
aquelas recém identificadas com este perfil ou aquelas que já eram lideranças reconhecidas em suas respectivas comunidades

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e/ou localidades. Através dessas oficinas, capacitações e reuniões foi possível estabelecer uma relação diferenciada com os Ara-
pixianos. Ao longo do tempo foi possível minimizar a impressão de desconfianças entre o órgão gestor (ICMBio) representados
pela equipe gestora da UC e os Arapixianos. Estabeleceu-se uma relação de maior confiança, onde muitos começaram a apostar
na nova linha de ação do ICMBio, buscando fortalecer as lideranças comunitárias. Algumas novas lideranças passaram a se
aproximar e demonstrar interesse no processo de gestão da RESEX Arapixi, sendo uma destas lideranças o Sr. Noel Humberto
Dias Gomes.
A equipe gestora da RESEX Arapixi passou a contar diretamente com o auxílio do Sr. Noel no desenvolvimento de diver-
sas atividades realizadas na UC. Reuniões, oficinas e cursos passaram a ser acompanhados sempre pelo Sr. Noel e, geralmente
este também se fazia sempre presente quando eram entregues convites nas comunidades pela equipe gestora para a realiza-
ção de quaisquer atividades. Percebendo a aceitação do Sr. Noel pelos Arapixianos e, ainda percebendo que as comunidades
pareciam prontas para um maior nível de organização, iniciou-se o processo de mobilização para a criação da Associação de
Produtores Rurais Extrativistas da RESEX Arapixi (APREA).
No período entre a XI e a XII Reunião do Conselho Deliberativo da RESEX Arapixi (CDRA), estruturou-se a APREA. Foi
realizada ainda uma Reunião Extraordinária do CDRA tendo como foco principal justamente a criação e instituição da APREA.
Esta reunião extraordinária foi realizada em setembro de 2013 na sede do município de Boca do Acre, na Universidade do Estado
do Amazonas. Foram convocados para esta reunião os conselheiros do CDRA, mas também quaisquer beneficiários da RESEX
Arapixi interessados em compor a diretoria da APREA. A eleição de sua diretoria foi realizada, assim como seu estatuto foi ela-
borado, votado e aprovado. A APREA foi devidamente registrada em fevereiro de 2014.
O processo de criação da APREA, do seu início até seu o registro em cartório, contou com apoio direto do IIEB e do ICM-
Bio, os quais apoiaram através de recursos como gasolina, alimentação, voadeira, barqueiro e material de escritório, para que
fosse possível não só a realização das primeiras mobilizações em cada comunidade, mas também a realização das reuniões que
resultaram na criação da APREA. Em todas as reuniões do CDRA passou a ser cedido um turno desta para que fosse realizada
também a reunião da APREA, buscando não só otimizar recursos, mas também por tornar mais fácil a mobilização dos atores
envolvidos.
A conquista mais importante da APREA foi mobilizar os Arapixianos para acessar o Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA). Inicialmente a maioria dos Arapixianos mostraram-se receosos com o PAA, mas através de diversas reuniões realizadas
junto ao ICMBio, APREA, Secretaria de Estado de Produção Rural do Amazonas (SEPROR/AM) e CONAB, alguns resolveram
arriscar. E o risco valeu a pena. Como a maior parte da produção ao longo do ano da RESEX Arapixi é de banana pacova ou
banana-comprida, banana maçã, açaí, macaxeira (farinha), cupuaçu, coco, feijão de praia, pupunha e, como boa parte destes
produtos pode ser entregue ao PAA, aqueles produtores que foram inseridos no Programa tiveram um ótimo rendimento. Para ter
uma ideia mais clara da diferença que este programa ocasionou nos rendimentos dos Arapixianos inscritos no PAA, vejamos o
exemplo da banana comprida. Geralmente no município de Boca do Acre o cacho de banana comprida é vendido na faixa entre
R$ 8,00 e R$ 10,00, variando conforme a época do ano ou devido a ocorrência ou não de alagação no município. Em 2014 o valor
pago ao produtor inscrito no PAA referente a banana comprida era de R$1,50 o kg, como, em média o cacho de banana comprida
pesa aproximadamente 15 kg (podendo chegar até a 20 kg em alguns casos), o produtor poderia receber mais de R$ 22,50 em
um único cacho, tendo um “lucro” de mais de 200%. Embora seja realmente uma melhora substancial nos rendimentos de cada
produtor Arapixiano, o PAA dispõe somente R$ 4.500 por DAP, ou seja, assim que o produtor entregar a quantidade de produtos
que alcance o valor total de R$ 4.500, somente poderá efetuar novas entregas no ano subsequente.
Em Boca do Acre dos mais de 70 produtores inscritos no PAA, 52 são Arapixianos. Embora alguns Arapixianos tenham
desanimado com a morosidade do processo de pagamento e, ainda, devido a grande alagação ocorrida nos meses de fevereiro
e março no Rio Purus em Boca do Acre, a qual ocasionou a perda de parte da produção, alguns produtores começaram a realizar
as entregas de seus produtos em fevereiro de 2015, assim que a SEPROR-AM informou que haviam sido liberados os recursos
para o PAA para este ano.
O valor oferecido por DAP ainda é considerado por muitos muito baixo, já que boa parte dos produtores da RESEX Arapixi
contam com uma produção capaz de suprir o dobro deste valor. Devido a muitas dificuldades na execução do PAA em Boca do
Acre, geralmente estas relacionadas a falta de responsáveis técnicos no IDAM responsáveis para acompanhar todo o processo
de entrega, desde a pesagem do produto, até a entrega deste a instituição beneficiada e, ainda para a geração dos documentos

05: Sistemas de Gestão e Governança


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de entrega e seu respectivo encaminhamento para a SEPROR-AM em Manaus. Assim como a falta de técnicos na SEPROR para
acompanhar cada um dos municípios incluídos no PAA no Estado do Amazonas e a documentação de cada produtor que efetuou
suas entregas para a SEFAZ-AM, acabou tornando o processo todo muito demorado entre o momento da entrega do produto
para o IDAM até o recebimento do valor referente aquela entrega. Esta morosidade no processo acabou desestimulando alguns
Arapixianos.
Não querendo “deixar a peteca cair”, a equipe gestora da RESEX junto com a APREA começou a buscar uma alternativa
ao PAA “Estadual”. Como o acesso ao PAA “Estadual” havia funcionado perfeitamente, a APREA começou a estruturar-se para
acessar o PAA “Federal”, onde a gama de recursos disponíveis por DAP é muito superior, chegando ao quádruplo do que vinha
sendo “oferecido” pelo PAA “Estadual”, desde que o produtor acesse todos os módulos deste Programa. Somente para o modo
“Compra para Doação Simultânea” o recurso disponível chega a R$ 8.000,00 por DAP. O PAA “Federal” possui uma grande
vantagem, pois toda a carga burocrática fica por conta da APREA, desta forma, a condução do Programa fica sob sua própria
responsabilidade. Com a execução do PAA sendo “interna” à APREA e não mais externa, como antes era dependente de diversas
instituições (IDAM, SEPROR, SEFAZ), o processo de entrega do produto e recebimento do valor referente ao que foi entregue
torna-se muito mais rápido e interessante aos produtores. O PAA “Federal” possui uma grande desvantagem, já que toda a carga
burocrática recai sobre responsabilidade da APREA, o que exige um nível de organização muito superior. Embora acessar o PAA
“Federal” apresente um nível maior de complexidade e organização, sendo esta fase inicial superada, a execução do Programa
em si não deverá apresentar maiores dificuldades, cabendo somente a APREA manter a sua execução e organização.
O principal resultado referente ao acesso dos produtores Arapixianos ao PAA foi a diminuição das cabeças de gado na
RESEX Arapixi. Este fato de certa forma surpreendeu a própria equipe gestora da UC, já que não se imaginava um efeito tão
direto e em tão pouco tempo. As primeiras entregas realizadas por produtores Arapixianos ao PAA foi realizada no final de março
de 2014 e, já em outubro deste mesmo ano era possível verificar a diminuição de solicitações de autorizações junto a equipe
gestora da RESEX Arapixi para cercas e currais. De início este fato foi considerado como uma simples coincidência, mas ao
longo do ano de 2015 verifica-se o mesmo tipo de padrão: os Arapixianos vem solicitando autorizações para “brocar”/roçar e não
mais para utilizar madeira para a construção de cercas e currais. Também já é possível verificar a diminuição de cabeças de
gado em diversas “propriedades” na RESEX Arapixi, pois muitos estão percebendo que com uma área de três a quatro hectares
cultivada com banana (com aproximadamente 3.000 pés de banana) é possível arrecadar em média de R$ 2.000 até R$ 3.000 por
bimestre, podendo arrecadar até mais. Através da criação de gado, para obter este mesmo recurso ao bimestre são necessárias
aproximadamente de 40 a 50 cabeças de gado, o que ainda exige uma grande manutenção e cuidados não só da pastagem como
do próprio rebanho, não levando em consideração o tamanho da área necessária para desenvolver plenamente essa quantidade
de cabeças de gado precisa ser muito maior, sendo necessário pelo menos de 30 a 35 hectares.
O Programa Capacitar para Fortalecer no período de 2015 a 2017 será dividido em dois eixos temáticos: Educação Am-
biental e, Produção, Sustentabilidade e Manejo. Em relação ao eixo temático Educação Ambiental este terá como foco inicial
estruturar uma forma adequada de armazenamento de resíduos sólidos, para que estes sejam recolhidos a cada trimestre pela
Prefeitura Municipal de Boca do Acre. Ao mesmo tempo será ainda objetivo deste eixo desenvolver composteiras nas diversas
comunidades, aproveitando resíduos orgânicos e de varrição que possam servir como adubo para ser utilizado em viveiros de
mudas de plantas nativas a serem utilizadas na própria RESEX Arapixi para recompor áreas degradas ou para desenvolvimento
de Sistemas Agroflorestais (SAFs) na própria comunidade. O eixo temático Produção, Sustentabilidade e Manejo terá como foco
inicial a identificação de duas áreas para realização de inventário florestal. Este tem por objetivo verificar se as áreas em questão
apresentam potencial para exploração madeireira. Havendo potencial serão então desenvolvidos dois Planos de Manejo Flores-
tal Comunitário (PMFC), provavelmente nas comunidades São José e Manithiãn. Tendo sido concluído o processo de elaboração
dos PMFCs, então caberá a equipe gestora da RESEX Arapixi desenvolver junto a APREA um projeto para a confecção de móveis
“sustentáveis”, buscando gerar uma maior renda para os Arapixianos e ainda oferecer ao mercado de Rio Branco e Porto Velho
moveis provenientes de uma área devidamente preservada, ou seja, com a utilização de “madeira verde”. Ao mesmo tempo este
eixo terá como foco incentivar o desenvolvimento de Sistemas Agroflorestais na RESEX Arapixi, buscando implementar uma
maior gama de produtos a serem ofertados, não tornando os Arapixianos “prisioneiros” de alguma cultura específica. E, final-
mente, ainda caberá a este eixo buscar estruturar o manejo de Pirarucu (Arapaima gigas) e Tracajá (Podocnemis unifilis), após
a elaboração e respectiva publicação do acordo de pesca da RESEX Arapixi.

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Estruturar SAFs na RESEX Arapixi é algo fundamental para sua gestão, pois além de utilizar de um modo mais sustentável
e consciente os recursos do meio, proporciona um aumento direto na produção de cada unidade familiar Arapixiana. A imple-
mentação de SAFs ocasiona uma redução do desmatamento, já que é possível utilizar uma mesma área para diversas culturas
distintas, garantindo além da manutenção da biodiversidade do ecossistema e a conservação do próprio solo, já que não se trata
de um sistema de monocultura que através de anos sucessivos acaba por exaurir os recursos deste.

Conclusão
O Programa de Aquisição de Alimentos parece ser a solução temporária para um meio de vida mais sustentável na RE-
SEX Arapixi. Oferecendo uma melhoria nos rendimentos das famílias da RESEX, despertou o interesse de muitas outras famílias
que não acreditaram no potencial do PAA, as quais deverão acessar o Programa em 2016. Correlacionar a produção sustentável
com a melhoria nos rendimentos das famílias torna o PAA uma ferramenta essencial para a efetiva gestão de uma UC de Uso
Sustentável. Mesmo com áreas pequenas de plantio torna-se possível atingir a meta plena de recursos oferecidos no PAA.
O acesso ao PAA foi uma das maiores conquistas do Programa Capacitar para Fortalecer, aproximando ainda mais a
equipe gestora da UC com os Arapixianos e, ainda, melhorando diretamente a qualidade de vida destes. Através do PAA foi
possível estabelecer um maior fortalecimento da APREA, o que é fundamental, pois além de aumentar a própria confiança dos
Arapixianos nesta nova instituição, também acabou por aumentar a confiança da própria diretoria da APREA, a encorajando para
galgar patamares mais altos através de outros projetos e benefícios.
Um fator que precisa ser melhor estudado nos anos subsequentes é a correlação entre PAA e a diminuição do gado na
RESEX Arapixi. Com informação referente a somente um ano, torna-se difícil embasar devidamente se o PAA realmente causa
um impacto “positivo” na diminuição das cabeças de gado na UC. Para a equipe gestora é evidente que vem ocorrendo uma di-
minuição gradual no montante de cabeças de gado na RESEX Arapixi, mas esta informação pode estar vinculada a outra questão
do que ao próprio PAA.
Acessar o PAA diretamente via APREA deverá incentivar a participação de muitos outros produtores que até então es-
tavam com sérias dúvidas em relação ao Programa e sua funcionalidade. Mas mesmo frente a todas as dificuldades que tornaram
o processo de acesso ao PAA lento, muitos já se encontram interessados e até otimistas. Como a execução do PAA caberá so-
mente a APREA, isso deverá deixar todos os produtores participantes muito mais entusiasmados.
Através do PAA é possível afirmar que para Unidades de Conservação de Uso Sustentável, a conservação dos recur-
sos naturais está diretamente relacionada a uma melhoria nos rendimentos da população tradicional que ali vive. Garantindo
melhores rendimentos e, assim, uma melhoria na qualidade de vida destas famílias, torna-se possível abordar as temáticas
ambientais. Sem resolver a problemática social é impossível falar em conservação dos recursos naturais em UC como RESEX e
Reservas de Desenvolvimento Sustentável.
Finalmente podemos afirmar que alternativas como o PAA são essenciais para a devida conservação dos recursos na-
turais. A RESEX Arapixi é um exemplo de que relacionando aumento na geração de renda obtém-se um impacto positivo direto
na conservação do ambiente.

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SUBCOMITÊS DE BACIAS HIDROGRÁFICAS: APRIMORAMENTO DA PARTICIPAÇÃO
SOCIAL PARA A CONSERVAÇÃO DOS AQUÍFEROS E DAS ÁGUAS SUPERFICIAIS
NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL CARSTE DE LAGOA SANTA

Barbosa, Cláudia Silva1;, Oliveira, Daniel Duarte de2 & Nogueira, Derza Aparecida Costa3

1.ICMBio, claudia.barbosa@icmbio.gov.br 2.Subcomitê do Carste, coordenação@scbhcarste.com.br


3.Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, derza.nogueira@cbhvelhas.org.br

Resumo
Esse trabalho busca compreender a influência dos Subcomitês de Bacia Hidrográfica do Ribeirão da Mata e do Carste para a
efetividade da apropriação social da gestão e conservação dos recursos hídricos na região da Área de Proteção Ambiental Carste
de Lagoa Santa – APACLS. Observou-se que a criação dos Subcomitês de Bacias Hidrográficas e a diversidade de entidades
que os compõem, além da capilaridade administrativa promovida por estes, têm sido fundamentais para estimular discussões e
atividades específicas de conservação junto aos atores sociais e aos órgãos gestores ao nível municipal, estadual e federal. Esses
subcomitês se configuram como importantes espaços para o desenvolvimento da participação social e consequentemente da
governança socioambiental no âmbito da APACLS.

Palavras-chave: Área de Proteção Ambiental Carste de Lagoa Santa, Subcomitês de Bacias Hidrográficas, Participação Social

Introdução
Aliar o desenvolvimento econômico com a proteção dos recursos naturais é um dos grandes desafios que abarcam a
gestão de unidades de conservação (UC), principalmente àquelas de uso sustentável1, como a Área de Proteção Ambiental
Carste de Lagoa Santa (APACLS). Essa unidade foi criada em 1990 com intuito de proteger e conservar a vegetação de transição
de dois importantes hotspots, a Mata Atlântica e o Cerrado, além de sua fauna, seus sítios arqueopaleontológicos e os recursos
hídricos superficiais e subterrâneos inseridos nesse território. Sua classificação, Área de Proteção Ambiental2(APA), torna o
desafio de gestão ainda maior, pois este tipo de unidade de conservação prevê a possibilidade de uso de uma parcela de seus
recursos naturais, porém não esclarece quanta utilização é considerada sustentável e nem quem poderá utilizar (RYLANDS;
BRANDON, 2005).
Para agravar a situação de risco ambiental da APACLS, nos últimos anos, tem sido promovida uma política de desenvolvi-
mento do Vetor Norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), impulsionada pela Linha Verde, que constitui em um
conjunto de obras rodoviárias executadas na rodovia MG-010 e pela implantação do novo Centro Administrativo do Estado de
Minas Gerais (SILVINO, 2012). Apenas para exemplificar, no que tange às questões relacionadas com o uso de recursos hídricos,
estudos de Martins, 2008; Peixinho, Feitosa (2008) e Ferreira (2011), enfatizam os impactos ambientais causados pelos diversos
usos da água na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) junto aos corpos hídricos subterrâneos e superficiais que
compõem parte da bacia do rio das Velhas, à qual a APACLS esta associada. O Instituto Mineiro de Gestão das Águas confirma
o exposto ao apontar a RMBH (incluindo o território da APACLS) como a região que mais contribui com a poluição na bacia do
rio das Velhas (IGAM, 2009).
É neste contexto de crescimento econômico e urbanístico que a Área de Proteção encontra-se inserida, e, por isso, vem
sofrendo novas pressões, diferentes daquelas do início da década de 1990, quando foi decretada. Esta conjuntura cria também
outra necessidade, a de expandir suas ferramentas de gestão, agregando novas parcerias e promovendo novas ações que visem
à proteção de seu patrimônio.
Uma dessas ferramentas de gestão, que vem se mostrando eficiente é a gestão participativa. Para De Souza & Mattos
1
O objetivo básico das Unidades de Conservação de Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos
naturais. (Brasil. 2000. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000).
2
Área de Proteção Ambiental (APA), trata-se de uma unidade de Conservação de Uso Sustentável, em geral extensa, com um certo grau de ocupação humana, dotada
de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como
objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. (Brasil. 2000. Lei
nº 9.985, de 18 de julho de 2000).

05: Sistemas de Gestão e Governança


675
(2006), este tipo de gestão promove o ambiente adequado para confrontar e negociar os diferentes interesses e objetivos dos
participantes, permitindo a elaboração do consenso necessário para levar a diante um projeto. À medida que a interação avança,
as partes vão adquirindo um compromisso crescente junto à UC.
A gestão participativa vem sendo proposta há muito tempo, notavelmente, quando o assunto é gestão das águas. A Lei
nº 13.199, de 29 de janeiro de 1999, que dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos no estado de Minas Gerais,
recomenda, há quase duas décadas, que a gestão das águas seja realizada de forma descentralizada e participativa. Essa reco-
mendação pode ser interpretada como uma solução evidente, ou seja, para evitar ou solucionar conflitos. Neste mesmo sentido,
LOUREIRO, FREDERICO & CUNHA (2008) propõem uma reflexão semelhante, que é gestão participativa e integradora, cujo
objetivo é agregar resultados positivos na gestão das Unidades de Conservação.
Comumente, as Unidades de Conservação, como a APACLS, já possuem em seus Planos de Manejo, diretrizes de gestão
participativa, por meio do envolvimento de diferentes seguimentos, como sociedade civil, empresas, órgão públicos, entre ou-
tros, junto ao seu Conselho Consultivo. Porém, por vezes, este tipo de participação pode se tornar uma via de mão única, onde
os representantes atuam apenas como defensores de interesses específicos do segmento que representam. Assim, faz-se ne-
cessário buscar soluções para tornar a gestão participativa em uma via de mão dupla, para que os segmentos envolvidos sejam
tão beneficiados quanto à própria UC. Uma possível solução é a maior interação entre os membros do Conselho Consultivo desta
Unidade de Conservação, junto a outras instituições ou grupos, neste caso, o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas e
seus Subcomitês –SCBH, fortalecendo esses conselhos como espaços de governança socioambiental.
A metodologia utilizada para estruturação deste artigo consiste em uma análise qualitativa das ações promovidas pelos
Subcomitês de Bacia Hidrográfica do Ribeirão da Mata e do Carste, que, direta ou indiretamente produzem resultados que
impactam na proteção do patrimônio ambiental da APACLS. A partir dessa análise, foi possível tecer um paralelo entre as atri-
buições dos Subcomitês e sua influência na tomada de decisão relacionada à unidade de conservação.
Para melhorar a compreensão no momento da análise, será apresentada uma caracterização destes Subcomitês, quanto
a sua composição legal, suas atribuições e a representatividade dos mesmos, bem como uma breve caracterização da própria
APACLS.

Subcomitês de Bacia Hidrográfica (SCBH)


O Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Ribeirão da Mata (SCBH Ribeirão da Mata) foi criado em novembro de 2006 e sua
atuação abrange os municípios de Capim Branco, Confins, Esmeraldas, Lagoa Santa, Matozinhos, Pedro Leopoldo, Ribeirão das
Neves, Santa Luzia, São José da Lapa e Vespasiano em Minas Gerais. Já o Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Carste (SCBH
Carste), criado em setembro de 2013, abrange os municípios de Confins, Funilândia, Lagoa Santa, Matozinhos, Pedro Leopoldo
e Prudente de Morais. Ambos os Subcomitês são grupos consultivos e propositivos, com atuação nas sub-bacias hidrográficas
do Rio das Velhas (SEPÚLVEDA, 2006).
A constituição dos Subcomitês, formalizada a partir da publicação da Deliberação Normativa nº 02, de 2004, exige a
presença de representantes de segmentos da sociedade civil organizada, dos usuários de água e do poder público. Como dito,
estes Subcomitês fazem parte do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Velhas), que, por definição é um órgão
colegiado instituído por lei, com composição paritária de representantes que atuam na área dos recursos hídricos. Assim como
definido na DN 02/2004, o SCBH do Ribeirão da Mata, bem como o SCBH Carste são coordenados por representantes de cada
segmento que os compõem, sendo eleitos em plenária, um Coordenador Geral e dois Coordenadores Adjuntos, que são auxili-
ados por uma Secretaria executiva (CBH Velhas 2009).
A Deliberação Normativa nº 02/2004 estabelece em seu texto as diretrizes de atuação dos SCBH, dentre as quais, insti-
tui que os Subcomitês, poderão ser consultados sobre conflitos referentes aos recursos hídricos e, também, poderão levar ao
conhecimento do CBH-Velhas e dos órgãos e entidades competentes os problemas ambientais, porventura, constatados em
sua sub-bacia. Em seu artigo 3º, a DN nº 02, ainda atribui aos Subcomitês a responsabilidade de acompanhar a elaboração e a
implementação do Plano de Recursos Hídricos da bacia hidrográfica do rio das Velhas em sua área de atuação, prioritariamente,
no que diz respeito às atividades de preservação, conservação e recuperação hidroambiental da bacia. Sepúlveda (2006), ainda
frisa que Subcomitês têm um importante papel de articuladores locais das entidades existentes na bacia e que possuem fun-
ções públicas relacionadas com as questões ambientais, sociais e educacionais. Por fim, este autor compara os Subcomitês às

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câmaras técnicas de Comitês, que possuem regimento e critérios de participação definidos e cujo papel está relacionado a uma
função ou a um tema específico como, por exemplo, outorga, legalidade ou comunicação.

APA Carste Lagoa Santa (APACLS)


A APACLS localiza-se ao norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e ocupa aproximadamente 35.000
hectares da bacia hidrográfica do rio das Velhas, afluente do rio São Francisco (BRASIL, 1990; NEVES, 2010). Seu território englo-
ba todo o município de Confins, onde se encontra o aeroporto internacional Tancredo Neves, além de parcelas dos municípios
de Lagoa Santa, Pedro Leopoldo, Matozinhos e Funilândia, todos em Minas Gerais (Figura 1). Estes municípios, nos últimos anos,
apresentaram consideráveis taxas de crescimento populacional e econômico, que, consequentemente, culminaram em impac-
tos ambientais sobre os ecossistemas e, notavelmente, sobre recursos hídricos locais (PEREIRA; CALDEIRA, 2011; PADOAN;
SOUZA, 2013).

Figura 1. Localização da APACLS. Fonte: Arquivo ICMBio/APACLS.

A APA Carste é gerida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade em parceria com o seu Conselho
Consultivo (BRASIL, 2005). Este instituto é responsável por realizar ações de fiscalização, de licenciamento ambiental, além de
promover atividades de Educação Ambiental junto aos usuários de recursos da APA. Considerando que se trata de uma UC ao
nível federal, no seu interior também interferem legislações ao nível estadual e municipal, especialmente aquelas relacionadas
com a conservação, proteção e o licenciamento ambiental.
No contexto científico e histórico, a APACLS destaca-se por suas características físicas peculiares e por sua importância
internacional em termos da arqueologia e paleontologia. Nesta Área de Proteção, foram encontrados alguns dos exemplares de
fósseis humanos mais antigos da América do Sul, com foco para o “Homem de Lagoa Santa”, marco antropológico descoberto
por Peter Wilhelm Lund3 no século XIX, e, “Luzia”, escavada na década de 1970 pela equipe coordenada pela arqueóloga Annette
Laming-Emperaire4, e considerada o esqueleto humano mais antigo das Américas (WENCESLAU, NEVES; PILÓ, 2012. O inte-
resse científico nacional e internacional ainda persiste, e, atualmente, encontra-se em desenvolvimento um importante projeto de
escavação no sítio arqueológico denominado de Lapa do Santo, sob a coordenação do pesquisador André Strauss em parceria
com o Instituto Max Planck de Antropologia, da Alemanha, que está comprovando as singularidades dos rituais funerários dos
povos primitivos na região da APACLS (CARDOSO, 2014).
Do ponto de vista biótico, embora esteja localizada em uma região metropolitana, a APACLS ainda configura-se como
3
Peter Wilhelm Lund (1801 - 1880). Naturalista dinamarquês que registrou ossadas de homens pré-históricos, enterradas juntos com ossos de animais da fauna extinta,
o que lhe tornou conhecido internacionalmente, e valeu-lhe o cognome de “Pai da Paleontologia do Brasil” (GUIMARÃES & HOLTEN, 1997).
4
Annette Laming-Emperaire (1917- 1977), Arqueóloga que liderou a missão arqueológica franco-brasileira na década de 1970, quando foi escavado, possivelmente,
o mais antigo fóssil humano do Brasil e das Américas, com cerca de 11,5 mil anos (DeBlasis, 2014).

05: Sistemas de Gestão e Governança


677
importante área para alimentação e dessedentação de uma gama de animais silvestres, com destaque para as aves nativas e
migratórias, que, por tal relevância, fizeram com que a APA tenha sido indicada para inclusão no Sítio de Importância Internacio-
nal – RAMSAR5(NÓBREGA, 2013).
Além das peculiaridades ecológicas, a APACLS também conta com aspectos geomorfológicos e paleontológicos de
destaque (KOHLER, 1994), que, ao longo dos anos, vêm contribuindo para criação de outras unidades de conservação em seu
interior, como previsto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (BRASIL, 2000). Atualmente, dentre as unidades de
conservação de proteção integral criadas, existem quatro (04) monumentos naturais e dois (02) parques estaduais que coincidem
parcialmente ou totalmente com o território da APACLS (IEF, 2015).
No ambiente físico, a APACLS, talvez possua sua maior responsabilidade de proteção, que é a proteção dos recursos
hídricos do carste, que, inclusive, dá nome à UC. Os relevos cársticos são, por natureza, grandes armazenadores de água em
subsuperfície (endocarste). Esta particularidade única confere a esse tipo de paisagem a característica principal de ser fonte
de água potável (TRAVASSOS; VARELA, 2008). O Carste de Lagoa Santa localizado na região centro-sul do estado de Minas
Gerais/ Brasil está em grande parte situado no interflúvio do Rio das Velhas (leste) e ribeirão da Mata (oeste-sudoeste) e tem
como principais sub-bacias hidrográficas os córregos Samambaia, Palmeiras-Mocambo, Jaguara e riacho do Gordura, para
onde são drenadas as águas pluviais captadas, em grande parte, pelos inúmeros dolinamentos distribuídos ao longo da área
(BERBERT-BORN, 2000).
Além da água subterrânea, a APACLS conta com inúmeras lagoas, principalmente, nas planícies cársticas dos distritos
de Mocambeiro (Matozinhos) e Fidalgo (Pedro Leopoldo), porém, mesmo estando incluídas em uma área de proteção, sofrem
com uma expressiva ocupação antrópica que implica em risco à sua integridade (SILVINO, 2012).
Essas lagoas, formadas por dissolução calcária, apresentam um quadro complexo em termos de recuperação ambiental
e riscos de contaminação de sua drenagem subterrânea. Devido às suas características geológicas, poluentes podem infiltrar e
atingir o lençol freático, responsável por exportar estes poluentes rapidamente pelo sistema de drenagem da bacia, potenciali-
zando assim sua dispersão. Acrescenta-se, ainda, o fato de que a área atingida pode ser bastante expressiva, já que os divisores
de água em subsuperfície não coincidem necessariamente com os divisores em superfície (SIMÕES et al., 2005 apud SILVINO,
2012).
Os ecossistemas locais da APACLS são muito vulneráveis aos impactos ambientais, conforme aponta Silvino (2012),
especialmente quando relacionados com essas lagoas cársticas que estão seriamente ameaçadas. Este autor alerta para a
necessidade de melhoria da gestão dos ecossistemas aquáticos como medida para favorecer a sustentabilidade dos mesmos.
Para auxiliar na gestão socioambiental, na conservação desse patrimônio natural e na sustentabilidade regional a equipe
e o Conselho da UC se baseiam nas diretrizes do seu Plano de Gestão/Zoneamento Ambiental (IBAMA/CPRM, 1998). Entretanto,
a aplicação das diretrizes do Plano não tem se mostrado suficientes para reduzir os impactos ambientais que o rápido cresci-
mento da região metropolitana de Belo Horizonte vem promovendo.

Desenvolvimento
O Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas - CBH Velhas auxilia na interlocução entre os Conselheiros do Plenário,
as Câmaras Técnicas, os Subcomitês e a Associação Peixe Vivo. Através de uma equipe de trabalho de mobilização social e
educação ambiental desenvolve ações de diálogo entre esses atores e as comunidades da bacia do Rio das Velhas, estimulando
a elaboração de propostas de recuperação ambiental dos seus afluentes além de para consolidação da participação social e
para maior capilaridade do Comitê nas sub-bacias hidrográficas do Rio das Velhas. A principal forma de descentralização e
participação promovida e incentivada pelo CBH Rio das Velhas é o reconhecimento dos Subcomitês, como grupos consultivos e
propositivos que permitem inserção regionalizada e qualificam os debates e análises do Comitê, frente à diversidade de paisa-
gens e contextos da bacia do Rio das Velhas.
A Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas possui mais de 200 sub-bacias, sendo que, a fim de proporcionar a gestão des-
centralizada e o planejamento territorial integrado, o CBH Rio das Velhas agrupou essas sub-bacias em 23 Unidades Territoriais
Estratégicas (UTE’s). Nesses territórios são aplicados recursos da cobrança pelo Uso da Água e são analisados e implantados

5
Convenção de RAMSAR, concluída em 1971 no Irã, tem por objeto o “uso racional” das zonas úmidas – armazéns naturais de diversidade ecológica, especialmente
como habitat de aves aquáticas ecologicamente dependentes das mesmas (GRANZIERA, 2007).

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programas e estudos específicos, incluindo aqueles discutidos pelos Subcomitês.
Como dito, os Subcomitês de bacia são grupos consultivos e propositivos que atuam nos limites de suas sub-bacias
hidrográficas. Entretanto, além de se prestarem ao papel o qual, formalmente, baseia-se sua constituição, os Subcomitês do
Ribeirão da Mata e do Carste vêm assumindo, cada vez mais, um papel executivo, no que se refere à promoção de atividades de
cunho socioambiental, dentro de suas limitações geográficas de atuação, configurando. como importantes instâncias de partici-
pação social e governança para melhoria da gestão do território abrangido pela APACLS.
Dentro das varias ações propostas e desenvolvidas pelos Subcomitês destacam-se as reuniões ordinárias que ocorrem
mensalmente e envolvem, em média, a participação de 24 membros, além de cerca de 15 convidados e visitantes em cada re-
união. Nesses encontros são discutidas temáticas de interesse dos atores envolvidos, como processos de licenciamento ambien-
tal, projetos educativos e socioambientais, além da formação de grupos de trabalho para ações específicas, como nos processos
de outorgas nas sub-bacias da UTE Carste.
No que diz respeito à criação e realização de projetos, destaca-se a iniciativa do SCBH do Ribeirão da Mata com o projeto
“Valorização de cursos d’água em áreas rurais da bacia hidrográfica do Ribeirão da Mata”, criado em 2011, e, cujo objetivo foi
minimizar os impactos ambientais no âmbito da sub-bacia por meio de ações de educação ambiental, técnicas alternativas de
produção agrícola e o tratamento de efluentes em áreas rurais (CBH VELHAS; SBHRM, 2011).
O SCBH do Carste, por sua vez, tem avançado na realização do projeto denominado “Rede Asas do Carste” que busca,
em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, favorecer processos educativos junto às escolas da região, por meio
do monitoramento de aves migratórias que utilizam as lagoas cársticas existentes nos seis municípios que compõem seu limite
de atuação (FIGUEIRA, 2014). Este projeto visa envolver, diretamente, mais de 200 pessoas, dentre os quais estão os alunos das
escolas participantes, os conselhos dos SCBH e da APACLS, profissionais das secretarias de educação e de meio ambiente dos
municípios envolvidos, voluntários e organizações não governamentais.
Outra iniciativa, com caráter executivo, é a realização de expedições e de visitas técnicas promovidas pelos SCBH, com
destaque para a expedição “Manuelzão desce o Ribeirão da Mata”, ocorrida em 2006 (CBH VELHAS; SBHRM, 2011), e a última
visita técnica realizada em 2014 pelos conselheiros do Subcomitê do Carste. Nestas ações, os conselheiros tiveram a oportuni-
dade de conhecer o patrimônio, as especificidades e os impactos presentes no âmbito dos limites geográficos de atuação de
seus Subcomitês (CBH VELHAS, 2014) e propor atividades, como realização de ações fiscalizatórias.
Outra atividade que chamou a atenção pelo amplo envolvimento dos Subcomitês foi um seminário promovido pelo SBCH
Carste no mês de março de 2014 com grande representatividade da comunidade acadêmica e que promoveu uma importante
discussão a respeito dos recursos e impactos ambientais na região onde se encontram os SCBH dos Carste e do Ribeirão da
Mata, e, também, da APACLS.
Em meados de 2015 o Comitê de Bacia Hidrográfica do rio das Velhas abriu seleção de demandas espontâneas para a
elaboração e implantação de Projeto Hidroambiental, atendendo a Deliberação Normativa N°01, de 11 de fevereiro de 2015. Os
representantes do Subcomitê do Carste fizeram a indicação de uma demanda relacionada com a readequação e revisão do Pro-
jeto Piloto de Revitalização da Lagoa Fluminense, em Matozinhos. Já os membros do Subcomitê do Ribeirão da Mata aprovaram
a demanda referente ao Projeto de Saneamento Básico em Áreas Rurais na bacia do Ribeirão da Mata, no qual está previsto a
instalação de 350 fossas sépticas nas comunidades e microbacias da região.
Essas e outras ações, como já dito, são realizadas dentro das unidades territoriais abarcadas pelos SCBH que, em grande
parte, coincidem com a unidade territorial da APACLS. Diante disso, essa UC ocupa uma cadeira nos conselhos dos dois SCBH,
a fim de somar na promoção de uma maior capilaridade das discussões relacionadas com as temáticas da bacia hidrográfica do
Rio das Velhas, onde a mesma encontra-se inserida (CBH VELHAS; 2008). Por outro lado, a participação da APACLS, nos conse-
lhos do SCBH contribui tecnicamente nos debates e fortalece a participação de usuários, que dependem de anuências, licenças
e autorizações dessa APA para exercerem suas atividades produtivas, que são muito distintas. Para exemplificar, dentre os usos
dos recursos hídricos nos municípios abrangidos pela APACLS, a criação animal, irrigação e outros usos, são os mais significa-
tivos. Entretanto há que ser ressaltado os usos destinados à indústria e à mineração em Pedro Leopoldo, dentre os municípios
da região (IGAM, 2011, Tabela 1). Todos esses usos por sua vez carecem de mitigação dos impactos ambientais, especialmente
devido à fragilidade ambiental do ambiente cárstico e consequentemente das águas subterrâneas e superficais a ele associadas.

05: Sistemas de Gestão e Governança


679
Tabela 1. Número de Captações por Finalidade de Uso

Fonte: Adaptado de IGAM (2011:15-16)

Nesse cenário, é oportuno destacar que para a bacia do rio das Velhas existe um Plano Diretor que está em fase de re-
definição. O novo Plano baseia-se nos levantamentos dos impactos ambientais locais e regionais, nas demandas existentes e futu-
ras e na identificação de áreas prioritárias de proteção, dentre outros. A metodologia de base do Plano é o estudo e planejamento
por Unidade Territorial Estratégica - UTE, o que acaba por ser uma inovação em termos de bacia hidrográfica (IGAM, 2009).
O Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas – PDR configura-se como um plano
norteador de ações com proposições advindas e discutidas pelos diversos setores da sociedade, sendo que cada sub-bacia tem
o seu plano específico. Infere-se que os Subcomitês poderão auxiliar na sustentabilidade da bacia de forma mais integrada e
articulada, pois as ações implementadas deverão considerar todo o contexto socioeconômico e ambiental do território, incluindo
o abrangido pela APACLS. Sendo que, a implementação do PDR e a dos projetos a ele relacionados, através de demandas dos
projetos hidroambientais dos Subcomitês, se dará através de recursos provenientes da cobrança pelo uso da água.
Cabe salientar que a realização de consultas públicas ao longo do desenvolvimento do Plano Diretor compuseram os
diagnósticos socioambientais para as UTEs. Nessas audiências ocorreu ampla participação dos membros dos Subcomitês e
demais atores sociais que discutiram os usos preponderantes e prioritários das águas, as áreas prioritárias para a conservação
visando a proteção dos recursos hídricos, usos e ocupação do solo e fatores de pressão sobre os recursos hídricos, problemas
relacionados com a quantidade e a qualidade ambiental dos recursos hídricos. Essas audiências reforçam a importância da
efetiva participação social no que tange as políticas públicas.
As atividades anteriormente elencadas propiciaram a interlocução entre diferentes atores sociais, a proposição de ações
de intervenção no âmbito territorial dos Subcomitês e a discussão e proposição de políticas públicas de conservação e proteção
ambiental, o que favorece a descentralização do poder decisório sobre os recursos hídricos conforme aponta Guedes (2009).
Entretanto, essas ações ainda são insuficientes para minimizar todos os impactos ambientais regionais. Um exemplo disso, é que
função da escassez de água na região metropolitana ao longo de 2014 e 2015 o Conselho Estadual e Recursos Hídricos publicou
uma Deliberação Normativa quanto à restrição de uso para captações de água, incluindo indicativo de redução de 20 até 50%
do consumo de água (CERH/MG, 2015). O objetivo da deliberação é prevenir ou minimizar os efeitos de secas e da degradação
ambiental, além de atender aos usos prioritários. Nesse cenário de restrição hídrica os Comitês de Bacia Hidrográfica poderão
solicitar que seja feita a declaração de situação crítica de escassez hídrica. Dessa maneira a oitiva aos Conselhos de Bacias
Hidrográficas, incluindo os Subcomitês do Carste e do Ribeirão da Mata, é primordial para que haja a efetividade das ações
relacionadas com as restrições de uso e para a melhoria das condições hídricas regionais, consequentemente da qualidade am-
biental dos recursos no âmbito da APACLS uma vez que os referidos Subcomitês abrangem diferentes atores sociais envolvidos
com a UC.
Em julho de 2015 ocorreu o V Encontro de Subcomitês promovido pelo Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas.
Esse encontro buscou favorecer a troca de experiências entre os membros dos Subcomitês e outros atores convidados, além
disso, auxiliou na discussão dialogada sobre a cultura da escassez, sobre a gestão participativa e as políticas públicas, enfati-
zando o Plano Diretor de Recursos Hídricos, com indicação de ações de melhoria da qualidade ambiental no âmbito da bacia
(CBH VELHAS, 2015).
Apesar dos avanços promovidos pelos Subcomitês, entende-se que é relevante o aprimoramento constante do diálogo
entre os conselheiros e desses com os setores que representam, de forma que sempre tenham voz e estejam empoderados, to-
mando posição diante das situações de conflitos, além de serem cada vez mais propositivos no que tange as políticas públicas de
gestão dos recursos hídricos. O que por sua vez, gera desafios aos conselheiros dos Subcomitês, como: o aperfeiçoamento das

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estratégias de ação, a ampliação e aprimoramento da mobilização e da participação social, promoção de uma maior visibilidade
e do fortalecimento do seu papel como importantes entes de gestão participativa dos recursos hídricos.
Com base no exposto, compreende-se que sendo conselhos consultivos e propositivos os Subcomitês auxiliam direta-
mente em ações de tomada de decisão e no controle social, em nível regional, para a prática da governança socioambiental
dos recursos hídricos e dos ecossistemas a ele associados. Além disso, se estabelece uma rede de sujeitos sociais que trocam
experiências entre si e fomentam ações de sustentabilidade em seus territórios de atuação.

Conclusão
Conduzir de forma sustentável o desenvolvimento econômico no interior da APACLS é, de fato, um grande desafio. Ainda
mais, pelas mudanças constantes que seu entorno, e seu próprio interior, vêm sofrendo. Apenas a aplicação do Plano de Gestão/
Zoneamento não consegue frear os impactos ambientais que ocorrem na UC.
Ainda que não tenham sido criados com o objetivo de dar apoio específico à APACLS, os SCBH vêm se mostrando efi-
cientes ao fazê-lo. As ações dos Subcomitês do Carste e do Ribeirão da Mata apontam para a descentralização das decisões
relacionadas aos recursos hídricos e promoção de ações de revitalização e preservação ambiental. Ao mesmo tempo em que
se configuram como importantes espaços de diálogo qualificado, os Subcomitês favorecem ao intercambio de experiências
entre diversos atores sociais, à capilaridade administrativa entre os diferentes níveis de poder e às proposições de ações para
gestão participativa relacionadas com os recursos hídricos e, consequentemente, para os demais recursos ambientais no ter-
ritório abrangido pela APACLS. Dessa maneira, os Subcomitês configuram-se como espaços para uma governança participativa
que envolve vários setores da sociedade e acabam por interferir de forma positiva nas políticas públicas afeitas a conservação
ambiental no âmbito de sua jurisdição.
Por outro lado, a participação da APACLS como membro de ambos os Subcomitês reforça a busca de articulação entre
instâncias governamentais em níveis distintos, estimulando a integração de ações em prol da melhoria das condições socioam-
bientais no âmbito da UC.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


683
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO, PRÁTICAS RELIGIOSAS NEOPENTECOSTAIS E
DIREITOS HUMANOS: O CASO DO PARQUE NACIONAL DA TIJUCA (RJ)

Maciel, Gláucio Glei1 & Gonçalves, Rafael Soares2

1. Educador Ambiental e Doutorando em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
minhatrilha2000@yahoo.com.br. 2. Professor do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. rafaelgonçalves@yahoo.com.br

Resumo
O presente texto analisa os resultados das atividades em educação ambiental realizadas entre os anos de 2013 e 2014 no âmbito
do projeto Elos da Diversidade em que ocorreu a aproximação entre acadêmicos e religiosos que buscavam a proteção ambien-
tal e a manutenção das atividades ritualísticas de forma integrada. Assim, através da pesquisa-ação foram possíveis leituras bi-
bliográficas, realização de cursos, aplicação e análise de questionários e, também, reflexão e apresentações das particulari-
dades que caracterizam os sujeitos envolvidos, seus movimentos de resistência contra o cenário de violação de direitos. Os
resultados revelam que nas práticas religiosas neopentecostais no Setor Pretos Forros e Covanca, no Parque Nacional da Tijuca
(Rio de Janeiro, RJ) a gestão e o uso demandam respeito, reconhecimento da diversidade cultural e, também, políticas públicas
que assegurem espaços para a realização de rituais.

Palavras-chave: Unidade de Conservação, Práticas Religiosas Neopentecostais, Direitos Humanos, Parque Nacional da Tijuca (RJ).

Introdução
Este artigo trata dos resultados da realização de atividades integradoras em educação ambiental junto a religiosos neo-
pentecostais. São intervenções realizadas entre os anos de 2013 e 2014 no âmbito do projeto Elos da Diversidade, promovido pela
Superintendência de Educação Ambiental da Secretaria do Estado do Ambiente do Estado do Rio de Janeiro em parceria com a
Universidade do Estado do Rio de Janeiro1.
Como práticas extencionistas, as atividades de educação ambiental envolveram no âmbito da pesquisa-ação e do estudo
de caso: leituras bibliográficas, observação participante, realização de cursos, e oficinas para integrar os neopentecostais e po-
tencializar o aprendizado em educação no processo de gestão ambiental pública2.
As ações desenvolvidas foram um convite à proteção ambiental e à luta por direitos à prática religiosa com o objetivo de
sugerir a criação de políticas públicas para garantir a igualdade na diferença, na perspectiva de contribuir para a percepção
integral do ambiente.
Em face disso, torna-se fundamental refletir e, também, construir elementos para possíveis enfrentamentos para a questão
apresentada. Para tanto, vincularemos nos capítulos um e dois as categorias Unidade de Conservação; Diversidade Religiosa;
Direitos Humanos; Parque Nacional da Tijuca e Práticas Religiosas Neopentecostais. Por fim, analisaremos os principais resulta-
dos obtidos nas ações em Educação Ambiental desenvolvidas no âmbito do Projeto Elos da Diversidade.

Unidade de conservação, diversidade religiosa e direitos humanos


Para analisarmos a categoria Unidade de Conservação vinculada à diversidade religiosa e aos direitos humanos é ne-
cessária uma reflexão, ainda que breve, a respeito de seu papel e de sua importância no dia-a-dia dos visitantes. Nesse sentido,
a investigação sobre os princípios que envolvem a noção de Unidade de Conservação no Brasil contribui para entendermos que
o equilíbrio e a harmonização das funções de usufruto desses espaços é o mecanismo fundamental para uma política pública
que pretenda garantir a condição de igualdade de direitos e de diversidade no acesso e uso da Natureza.
Dessa maneira, as vivências religiosas em Unidades de Conservação facilitam a percepção integrada do ambiente, na
medida em que estimulam a visão articulada dos aspectos ecológicos, sociais, econômicos e culturais, contribuindo para o
1
Instituto de Geografia (IGEOG) da UERJ.
2
Esta proposta político-pedagógica é assumida, pelo menos, na teoria e fragmentada na prática da Gestão Socioambiental do Instituto Chico Mendes de Biodiver-
sidade.

05: Sistemas de Gestão e Governança


685
reconhecimento da diversidade como componente da “realidade social presente nas diferentes culturas, etnias, formas de vida,
escolhas, valores, crenças” (BARROCO, 2006, p. 1 ). Sendo assim, as Unidades de Conservação, sobretudo, a categoria Parques
Nacionais passam a ser compreendidas e utilizadas não apenas na perspectiva da proteção, da pesquisa, da educação e do
turismo voltado para o mercado; mas também como afirmação de identidade, de pertencimento e de justiça social (CORRÊA,
COSTA, LOUREIRO, 2013).
Nessa perspectiva, as atividades religiosas inseridas em unidades de conservação, a partir de uma proposta pedagógica
que reconhece que qualquer conhecimento está inacabado, incompleto e, por isto, oferece a possibilidade de ser questionado,
interrogado e reformulado pode despertar a relação com o ambiente, a natureza e a cultura de maneira emancipatória.
Sendo assim, todos os possíveis modos simplificadores de pensar podem ser agregados. Porém, sem dar espaço ao que
Morin (2005, p. 6) chama de “implicações redutoras, unidimensionais, mutiladoras”, que desfaz a complexidade da realidade.
Em face de, uma racionalidade conservadora que nega as práticas religiosas em parques nacionais voltados à “proteção inte-
gral”, nos termos colocados por Diegues (2001) e contraditoriamente permite o uso turístico3 desses espaços.
Dessa forma, percebemos que a partir de uma abordagem educacional integradora é possível a realização de práticas
religiosas em contato com a natureza. Contudo, não é o que se observa, pois a gestão stricto senso das áreas naturais protegidas
estão envolvidas por uma lógica científica e econômica na qual a diversidade e o respeito aos rituais vem sendo negligenciados
e/ou negados.
De acordo com Corrêa, Costa e Loureiro (2013, p. 5),

há 141 anos, desde que se criou o primeiro parque nacional do mundo (Yellowstone National Park,
em 1872, na cordilheira dos Grand Tetons, EUA), ao se instituir por lei um parque ou uma reserva,
as populações locais (tradicionais ou não), que muitas vezes estão instaladas nestes territórios por
centenas de anos, são compulsoriamente expulsas e ficam impedidas de reproduzir seu modo
tradicional de vida

Consoante com o entendimento dos autores acima destacamos o Boletim de Ocorrência 1897/14 da Polícia Federal que
descreve a condução de um evangélico, morador da cidade do Rio de Janeiro à delegacia por suspeita de ter ateado fogo em
parte do Setor Pretos Forros e Covanca, em áreas do Parque Nacional da Tijuca:

Aos 27 dia (s) do mês de agosto, nesta Superintendência Regional no Rio de Janeiro, onde se en-
contrava fulano, Delegado de Polícia Federal compareceu ciclano, natural do Rio de Janeiro, pro-
fissão Fiscal Federal do ICMBio, lotado e em exercício no Parque Nacional da Tijuca. Inquirido a
respeito dos fatos, respondeu: QUE, trabalha comparece hoje na Polícia Federal em companhia de
seus colegas xyz, ambos analistas e fiscais, em razão de incêndio ocorrido anteontem na mata den-
tro da área do Parque, isto é, no dia 25/08/2014, especificamente no Morro do Ramalho, na Beira
da Estrada Grajau- Jacarepaguá, em frente ao ‘Cabanas da Serra’; QUE no dia de hoje localizaram
um neopentecostal dentro da área do parque, e entrevistando-o ele disse que foi o responsável
pelo incêndio ocorrido anteontem. QUE trouxeram o religioso à Polícia Federal para providências4.

Podemos dizer que o pensamento “unidimensional” (MORIN, 2005, p. 6) dos Fiscais foi suficiente para o entendimento
distorcido de que o religioso havia ateado fogo em áreas do Parque dois antes do fato ocorrido. O simples ato de encontrar e en-
trevistar o neopentecostal determinou seu fichamento na Polícia Federal, sinalizando, portanto, um possível caso de intolerância.
Tal situação de intolerância religiosa ocorre, sobretudo com os neopentecostais que lutam para manter um modo de vida
relacionado ao ambiente natural5, ainda que, em espaços urbanos, preservando as crenças transmitidas de modo oral e por meio
escrito6 de geração em geração. Condição que trataremos no próximo capítulo.
Mas, por agora, podemos apontar que o caso ressaltado no boletim policial é um exemplo explicito da negação do di-

3
Para saber mais sobre o assunto pesquisar o trabalho de Botelho e Maciel (2014) no site: http://www.anptur.org.br/novo_portal/anais_anptur/anais_2014/arquivos/
DTP/trabalhos-dtp4.html.
4
Os nomes e matrículas dos sujeitos envolvidos foram retirados a fim de preservar suas identidades.
5
Movimentos de resistência em favor da manutenção religiosa neopentecostal podem ser verificados no Estado do Rio de Janeiro, em unidades de conservação, tais
como: Parque Nacional da Tijuca, Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Parque Estadual da Pedra Branca, Parque Estadual da Serra da Tiririca, Rebio Tinguá etc.
6
Relatos entre aqueles que não sabem ler e leitura da Bíblia Sagrada entre os de pouca escolaridade.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
686
reito à prática religiosa em parques nacionais brasileiros, é sim, ato de intolerância e de desrespeito ao outro. Portanto, ato de
supressão dos direitos humanos como via de manifestação de forças sociais que formulam os interesses e as identidades sociais
nas sociedades ditas democráticas na qual o Brasil é signatário (KOERNER, 2003, p. 152).
Estamos falando de negação de direitos humanos de caráter transnacional, aqueles que apoiam “à constituição de agen-
tes coletivos e à construção de problemas sociais, assim como auxiliam a formulação de diagnósticos e programas de ação
compartilhados pelos agentes internos às democracias” (KOERNER, 2003, p. 152).
Diante do contexto apresentado acima, podemos então retirar que a criação de Unidades de Conservação no Brasil im-
plicou em uma solução à proteção ambiental pelo “alto”, tomando emprestado o termo utilizado por Gramsci (2011) para dizer
que as populações religiosas, em destaque as vulnerabilizadas, não foram convidadas a participar da elaboração das normas de
gestão e uso das áreas naturais protegidas.
Dessa maneira, percebemos que há uma lógica seletiva, perpassando a gestão e o uso destes espaços naturais prote-
gidos na medida em que, exclui e autoriza o usufruto apenas àqueles que podem pagar para estar em contato com a natureza,
tais como: turistas e católicos que, segundo Corrêa Costa e Loureiro (2013), contam com permissão prévia para realizar seus
diferentes rituais e infraestrutura adequada para receber os visitantes religiosos e realizar suas práticas, como lugares/templos
sagrados7, o que significa privilégios para uns, e a negação de direitos de uso à outros grupos.
Nessa perspectiva, os parques nacionais no país são fechados em si mesmos, são intocados, conforme trata Diegues
(2001). Porém, reproduzem as práticas economicista e individualista das cidades8 onde estão inseridos, através da fragmentação
dos saberes e da repressão da expressão de diferentes grupos religiosos.
O que pode se observar é que o direito à manutenção das tradições e práticas religiosas, antes realizadas livremente
por diferentes segmentos em parques nacionais, gradativamente foi sendo modelado pela racionalidade científica e econômica
dominante para que predomine determinadas formas de expressão e iniba outras. Assim, as tradições são negadas e condena-
das à submissão, própria do pressuposto materialista que vigora nas sociedades ocidentais como a brasileira.
Daí a importância do Projeto Elos da Diversidade no enfrentamento das questões colocadas acima. Criado inicialmente
com o objetivo de atender às demandas das populações afro-brasileiras inseridas nas práticas religiosas da Umbanda e do Can-
domblé, também incluiu, em 2013, as demandas de neopentecostais negros e moradores de favelas. Isso porque tal segmento
embora tenha o direito, por lei de realizar práticas religiosas, este tem sido negado no caso das práticas que ocorrem em áreas
protegidas, como em parques nacionais.
Por isto, os processos educativos voltados para o enfrentamento da intolerância religiosa, foram sendo construídos, no
sentido de sugerir políticas públicas focadas no respeito e na criação de Espaços Sagrados que coletivamente pensados e ge-
ridos e legalmente instituídos pudessem abarcar quer o direito aos rituais neopentecostais, quanto à preservação da natureza.
Nessa direção, as atividades de educação ambiental realizadas no âmbito do Projeto Elos da Diversidade voltaram-se
às áreas do Parque Nacional da Tijuca devido a relevante demanda para o uso público religioso de grupos subalternizados9 em
contato com a natureza.

Parque Nacional da Tijuca e as práticas religiosas neopentecostais


Pensar a relação entre o Parque Nacional da Tijuca e a ritualística neopentecostal no setor Pretos Forros e Covanca im-
plica, anteriormente, uma análise de suas características, sem perder de vista que elas não se esgotam nesse trabalho. Sendo as-
sim, é importante entendermos: que Parque Nacional da Tijuca é esse? E quem são os neopentecostais que lá resistem fazendo
contato com o sagrado?
Como vimos, a racionalidade da gestão e do uso dos recursos naturais disponíveis em Unidades de Conservação no
Brasil, preconiza, assim como nos países ocidentalizados, a diferenciação entre os seres humanos e natureza. Sendo assim, essa
racionalidade nega, controla e disciplina a natureza, entendida e modelada como objeto a ser mercantilizado por determinados
7
No caso as Capelas Mayrink e Silvestre, o Cristo Redentor e a Capela de Nossa Senhora Aparecida, no Corcovado há, coletores de lixo em todos os ambientes,
coleta regular de resíduos, áreas para acenderem velas e colocarem demais artefatos da ritualística e áreas para estacionamento, iluminação e segurança (CORRÊA;
COSTA e LOUREIRO, 2013).
8
De acordo com Harvey (2005), há no mundo ocidental um processo de reconfiguração das cidades, sobretudo, em face dos megaeventos. Nesse contexto, os espa-
ços urbanos são gentrificados para o uso mercadológico. Daí a gestão dos parques nacionais voltar-se para o uso turístico em detrimento do bem comum.
9
A noção de subalternidade, utilizada neste artigo para destacar a marginalização e a repressão cultural imposta aos neopentecostais está pautada nas formulações
de Gramsci (2011) sobre a relação entre força e consenso, numa proposta metodológica unificada para a análise do Estado.

05: Sistemas de Gestão e Governança


687
setores dominantes da sociedade.
Consoante a essa ideia, Alves (2010) ressalta que nas sociedades industrializadas o antagonismo chegou ao ponto limite,
em virtude da interdição ao reconhecimento dos ser humano como ser “natural”, o que repercute em todas as relações sociais
de convício diretos ou não com a natureza. Nesse cenário, o entrelaçamento entre o pensamento científico e a industrialização
produz a fragmentação da percepção e, consequentemente, do direito de acesso aos bens ambientais.
É nesse sentido que a gestão do Parque Nacional da Tijuca é pautada. Não há exceção à regra. O Parque vem se tornan-
do, ao longo dos anos, espaço privilegiado de dominação das classes burguesas brasileiras e internacionais que se constituíram
no país sem abandonar o “atraso” – recorrendo ao termo utilizado por Santos (2012) para demostrar a “Questão Social” e suas
particularidades no Brasil.
No mundo capitalista industrial, no qual o Brasil coaduna, o determinismo mecanicista que é “o horizonte certo de uma
forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender o real do
que pela capacidade de o domina e transformar” (SANTOS, 2010, p. 17). É esse também o horizonte cognitivo adotado pelos
interesses da sociedade burguesa que se institui no país e que vai administrar até os dias atuais os recursos e bens naturais do
Parque Nacional da Tijuca.
É essa mentalidade de mundo-máquina newtoniana que permeia as teorias e práticas da burguesia nacional que por
sua vez transforma a imagem desta Unidade de Conservação em negócio. Por ela, o Parque Nacional da Tijuca, um exuberante
fragmento da Mata Atlântica de 3,956 hectares, tem suas funções primárias10 deixadas para segundo plano, em nome da con-
cessão de uso e exploração turística. Não somos contra a visitação turística e, sim, à privatização e, por conseguinte, à negação
do espaço ao uso religioso.
Dividido pelos interesses da classe dominante o ser humano passa a achar “normal” viver em um mundo hierarquizado,
departamentalizado, especializado e unidimensional já que as sociedades burguesas tendem a negar a diversidade cultural, por
conta, da ideia de padronização que permite níveis de produção e consumo vinculados ao lucro (ALVES, 2010).
Nesta direção, marcada pelo pensamento linear, as práticas neopentecostais ocorridas no Parque Nacional da Tijuca
são excluídas, marginalizadas e tomadas como exóticas, devido ao fato de estes religiosos se afastarem do modelo de vida
pragmático e, também, por pertencem a um segmento evangélico reconhecido entre os protestantes como “canelas de fogo”.
De acordo com dois membros da igreja Assembleia de Deus do Ministério de Cordovil entrevistados no âmbito do projeto
Elos da Diversidade, os servidores da unidade em questão os diferenciam dos turistas pelo modo diferente de trajar roupas, de
arrumar os cabelos, de falar etc:

Toda vez que encontramos alguns funcionários do Parque somos abordados [...] eles logo querem
saber o que estamos fazendo na área. No entanto, isto, não ocorre com outras pessoas. Acho que
é o nosso jeito de vestir. Vestimos assim porque somos um povo diferente, um povo separado,
escolhido por Deus! ( Entrevista de neopentecostal ao IGEOG, 2014).
Somos reconhecidos pela roupa que vestimos, pela forma que amarramos nossos cabelos, pelo
modo que falamos, pela bíblia que carregamos e porque somos pobres e não moramos nas pro-
ximidades [...] se fossemos de outra maneira, talvez, o pessoal do Parque não importunasse a
gente (Entrevista de neopentecostal ao IGEOG, 2014).

A partir desses relatos e, também, através de outros depoimentos que por questões éticas não abordaremos aqui con-
cluímos que os “canelas de fogo” são indivíduos e/ou grupos de neopentecostais trabalhadores subalternizados pelo modo de
produção capitalista, moradores de favelas e também da Baixada Fluminense, pouco escolarizados, de maioria negra que se
converteram à “Jesus Cristo” sob circunstâncias vinculadas à questão social, tais como: falta moradia, desemprego, aprision-
amento penitenciário, uso de drogas e demais mazelas sociais.
Daí a necessidade de buscar contato com o Sagrado em espaços retirados, como no Setor Pretos Forros e Covanca,
em áreas do Parque Nacional da Tijuca para enfrentar as condições subalternas que estes grupos sociais atravessam. Daí a
importância Sagrada e também social desta área11.

Regulação do equilíbrio hídrico, controle de erosão, regulação climática e manutenção dos cursos e mananciais de água potável.
10

Estes dados foram obtidos por meio de pesquisa elaborada no âmbito do projeto Elos de Diversidade, com aplicação de questionários com os usuários do Monte
Cardoso, entre 2013 e 2104, como parte do processo de Educação Ambiental.

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Nestes espaços seus rituais consistem em orações, jejuns, batismo nas águas, queima do pedido de oração em rochas,
aterramento de recipientes de azeite em busca da unção divina, o que os configura religião com fortes vinculações com a na-
tureza. Tal condição nos leva a dizer que os “canelas de fogo” tem interesse na preservação da natureza, pois, sem está o ritual
não se completa.
Mas, como os parques nacionais, no Brasil, não permitem a permanência de populações humanas dentro de seus espa-
ços, a não ser que sejam visitantes e pesquisadores, a solução inicialmente encontrada pelos preservacionistas, foi à proibição
dos rituais neopentecostais - a partir de 2008, ano em que o Setor Pretos Forros e Covanca passou a ser considerado pelo Plano
de Manejo do Parque Nacional da Tijuca área de recuperação ambiental - seja, por meio de colocação de grades, troncos, ara-
mes farpados, placas sinalizando a proibição e/ou por multas e diferentes formas de coerção. Vide as fotografias abaixo extraídas
da monografia de Silva (2012) que comprovam a violação dos direitos à prática religiosa:

Figura 1. Grades e troncos Fonte: Silva (2012)

De acordo com Silva (2012) “esta última barreira foi levantada em dezembro de 2011 por ordem do Parque Nacional da
Tijuca, mais uma vez visando impedir a entrada de pessoas na área de preservação florestal”. As estacas da direita, em cor cinza,
já estavam ali, resquício de uma barreira maior, anterior, que fora arrancada parcialmente pelos neopentecostais como forma de
resistência social.
Observamos que, desde 2004, ainda sob a gestão do IBAMA havia resistência neopentecostal no Setor Pretos Forros e
Covanca (Monte Cardoso)12. Neste espaço, os religiosos lutavam em favor da manutenção de suas praticas religiosas frente à
negação do uso sagrado imposta pelo poder público (SILVA, 2012).
De acordo com o Plano de Manejo (2008), - sob a administração do ICMBio -estabeleceram-se mais restrições de uso
de acordo com , as formas de resistência entre neopentecostais e servidores do Parque Nacional da Tijuca se acirram naquela
área da Floresta, o que resulta em “apelo em tom reflexivo” pregado em uma das estacas que compõem a barreira (Figura 2),
deixando clara a relação de conhecimento pelos gestores do parque do uso público religioso desse Setor.

Figura 2. Cartaz com “apelo reflexivo” Fonte: Silva (2012)

O fiscal do ICMBio responsável pelo Setor Pretos Forros e Covanca, reconhece o fenômeno do “monte sagrado” pelos
evangélicos e as formas de resistência. Segundo suas palavras:

“de seis meses pra cá nós fechamos, aí cortaram de novo. Eu dei ideia de fazer um muro de con-
creto aqui. Fazer um muro de concreto e por trás do muro plantavam [sic] as árvores. O muro ia
manter as mudas crescendo, de maneira que quando tivesse árvore o muro já podia derrubar que
ninguém encostava mais a árvore. Porque se botar muro de árvore normal aqui eles vão cortar a
árvore. Ou senão cabo de aço. Que isso aqui não, isso corta. Se botar cabo de aço grosso, quero
ver. E solda a amarração dele, acabou o problema” (Silva, 2012, p. 25).

Na lógica cartesiana dos conservacionistas, esses religiosos foram nomeados como agressores da natureza, fato que
aponta para duas questões significativas: a primeira diz respeito ao resgate pelo fiscal, mesmo sem a plena consciência do mito

Havia “canelas de fogo” que derrubavam as barreiras colocadas pelos servidores do Parque Nacional da Tijuca e também, os questionavam face a face do motivo
12

da proibição à prática religiosa.

05: Sistemas de Gestão e Governança


689
moderno que segundo Diegues (2001, p. 50):

Refere-se a um conjunto de representações existentes entre setores importantes do Conserva-


cionismo ambiental de nosso tempo, portador de uma concepção biocêntrica das relações
homem/natureza [...] pela qual originou a concepção dos “parques nacionais” norte-americanos,
na segunda metade do século XIX, pela qual porções de território consideradas “intocadas” foram
transformadas em áreas naturais protegidas, nas quais não poderia haver morador, mas apenas
visitantes poderiam apreciar as belezas naturais.

A segunda questão é que o Estado por meio de fiscais ignora a existência prévia de regimes de uso comum, relações
afetivas e religiosas de grupos neopentecostais sobre esses mesmos espaços, caracterizando a violação dos direitos humanos
na medida em que, inviabiliza a manutenção dessa tradição religiosas que, segundo estudos realizados pelo IGEOG (2014) são
realizadas há pelo menos 50 anos no Setor Pretos Forros e Covanca e proíbem o uso democrático deste espaço.
Nesse sentido, o Parque Nacional da Tijuca representa um tipo específico de espaço que mesmo, estando no âmbito da
concepção instrumental do Estado de Quijano (1988), institucionalizado mediante decretos e leis, sendo, portanto, terras públi-
cas ignora a democracia quando impede o uso público religioso neopentecostal.
Diante disso, o modelo de gestão e uso do Parque torna-se antidemocrático e contraditório visto que, os fiscais em nome
das leis ambientais e de suas formações pragmática violam as determinações do artigo 5º da Constituição Federal que garante
a livre ritualística para diferentes grupos sociais. Esta mentalidade simplificadora e ideologicamente determinada tem conflitado
com o pensamento religioso dos neopentecostais e tem se constituído em ferramentas de subalternização, divisão de classe
e segregação étnica, tendo em vista o perfil dos cristãos “canelas de fogo”. Aliás, tal noção converge fielmente com os ideais
do modelo conservacionista norte-americano que se espalhou pelo mundo, recriando a dicotomia entre “povos tradicionais” e
“parques”(DIEGUES, 2001).
O caso vivenciado pelos religiosos neopentecostais, “canelas de fogo” no Setor Pretos Forros e Covanca, em áreas do
Parque Nacional da Tijuca demostra que, esses grupos sociais, vulnerabilizados pelo processo de pauperização que assola
uma parcela significativa da sociedade brasileira, têm sido afetados também pela institucionalização e gestão mercadológica
dessa Unidade de Conservação, que foca suas políticas no atendimento aos serviços de visitação turística em detrimento do uso
público religioso.
Dessa maneira, as normas de gestão e de uso dos espaços naturais protegidos no Brasil, sobretudo no caso em nos de-
bruçamos, violam o artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assegura que todo ser humano tem direito à
liberdade de pensamento, consciência e religião. Este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular (UNIC/
RIO/005, 2009). Sendo assim, as normas do Parque Nacional da Tijuca afetam o modo de vida desses religiosos, suas identidades
culturais que os constituem com seres sociais no espaço em face do mundo homogeneizante atual.

Resultados obtidos entre 2013-2014


Antes de analisarmos os resultados obtidos, é pertinente explicitar a metodologia adotada. Seguimos os trâmites de
pesquisa científica, no sentido de que buscamos sistematizar e organizar as atividades, compreender a dinâmica da realidade
em que o problema, o conflito e formas de resistência socioambiental estão inseridos, possibilitando a atuação organizada,
consciente e participativa dos atores sociais que compõem o objeto de estudo. Para tanto, consideramos a pesquisa-ação13 e o
estudo de caso14, por atenderem a necessidade de reunirmos as abordagens qualitativa e quantitativa no desafio da educação no
processo de gestão ambiental em uma unidade de conservação como no caso do Parque Nacional da Tijuca (RJ).
Isto posto, a fim de compreender o alcance do Projeto Elos da Diversidade nas atividades de religiosos neopentecostais
no Setor Pretos Forros e Covanca, serão apresentadas as particularidades que caracterizam os sujeitos envolvidos.

13
Segundo Thiollent (2004, p. 61), esse tipo de pesquisa social tem base empírica e é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução
de um problema coletivo no qual os pesquisadores e participantes estão envolvidos de modo participativo.
14
O estudo de caso é uma modalidade de pesquisa pela qual se tenta compreender fenômenos complexos em curto espaço de tempo, Yin (2005, p. 63).

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690
O Grupo de Trabalho
Consideramos o grupo que atuou no Projeto Elos da Diversidade como parte do resultado devido às suas particulari-
dades. A primeira diz respeito à inter-relação entre os diferentes saberes e fazeres, tendo vista que, inicialmente, o grupo foi
composto por umbandistas, candomblecista e professores universitários. Observamos que, mesmo diante de um cenário em que
o pragmatismo científico e a racionalidade economicista imperam, provocando a fragmentação das relações socioambientais, a
harmonização e a cooperação entre os atores foram possíveis com vistas a alcançar o objetivo comum.
A segunda particularidade é marcada pela inclusão, em 2013 e 2014, de técnico e de pastores neopentecostais no grupo
de trabalho do projeto. Sendo assim, notamos que as relações foram colaborativas e de respeito à diversidade de saberes e cren-
ças, possibilitando que as ações fossem elaboradas e executadas de maneira coletiva e interdependente.
Além disso, a maturidade das discussões, a seriedade dos segmentos participante dos encontros em saber respeitar o
outro – tomando emprestadas as palavras de Corrêa, Costa & Loureiro (2013) – facilitaram que outras particularidades apareces-
sem: a) de acordo com os religiosos neopentecostais, membros do grupo de trabalho, é fundamental atuar no interior das igrejas
evangélicas. Isso porque há uma parcela de religiosos que, ao realizarem os rituais em áreas do Parque Nacional da Tijuca, de-
gradam o ambiente por desconhecimento da teoria, da prática e da necessidade de conservação. Nesse sentido, destacaram-se
a importância da realização de parcerias entre instituições religiosas e públicas para realização de diálogos e formação, através
de cursos, oficinas, palestras, seminários e elaboração de materiais pedagógicos para os evangélicos “canelas de fogo”; b) é ne-
cessária a mobilização das lideranças e, posteriormente, dos membros das igrejas neopentecostais periféricas para elaboração
de condicionantes e de projetos de intervenção. Assim, é provável que consigam evitar a degradação ambiental, e enfrentar a
intolerância, econômica, étnica e religiosa, decorrente das relações entres fiscais e técnicos dos órgãos ambientais e religiosos
empobrecidos e de pela negra, com o objetivo de constituir e consolidar políticas públicas; c) os neopentecostais “canelas de
fogo” se semelham aos religiosos umbandistas e candomblecistas nas condições econômicas, étnicas, política e, também, nas
desistências de frequentar certas áreas preservadas tal qual o Setor Pretos Forros e Covanca porque há anos ocorrem relações
de intolerância, de coerção e de ameaça de violência por parte do Estado.

A Opção pelos Questionários


Consoante com as ponderações e com as ideias extraídas no grupo de trabalho, a Coordenação do Projeto Elos da Di-
versidade determinou que nos cursos, oficinas, palestras, seminários, mutirões de limpeza e plantio realizados em parceria com
os neopentecostais “canelas de fogo” fossem aplicados questionários. O objetivo foi de coletar e sistematizar informações que
favorecessem o entendimento do objeto por meio de um conjunto de questões, associadas ao interesse de proteção ambiental e
de manutenção da ritualística.
Ao aplicarem os questionários nesses contextos diminuíam-se a dificuldade de expressão e comunicação entre educado-
res, professores e neopentecostais “canelas de fogo” e a demora na coleta dos questionários.
Nesta relação dialógica tanto o grupo de trabalho quanto os religiosos atuaram como sujeitos da ação educativa, asseguran-
do, portanto, as determinações de uma vertente de educação ambiental que defende a leitura da problemática socioambiental sob
a ótica da complexidade do meio social, da problematização e comprometimento com transformações estruturais da sociedade.

Sobre Análises e Reflexões dos Resultados Obtidos com os Questionários


A fim de cumprir com os objetivos de pesquisa estabelecidos no âmbito do Projeto Elos da Diversidade para a vertente
religiosa neopentecostal foram aplicados entre os anos de 2013 e 2014 cerca de 300 questionários.
No que se refere aos resultados obtidos verificamos que a maior parte dos entrevistados é residente em favelas da cidade
do Rio de Janeiro (70%), oriundos da zona oeste da cidade (38%), seguido pela zona norte (25%) e zona sul (7%). Dentre os reli-
giosos da Baixada Fluminense (12%) moram em Duque de Caxias, (16%) em São João do Meriti e (2%) em Magé. Sendo assim,
observamos que a maior parte dos religiosos reside em bairros do entorno do Parque Nacional da Tijuca, em função de suas
faces serem voltadas para as regiões norte, leste, oeste e sul da cidade.
De acordo com a pesquisa, a renda familiar oscila entre R$ 800,00 e 1.500,00 (78%). No entanto, o estudo revela que (22%)
dos religiosos neopentecostais que participaram das entrevistas seguidas de atividades de educação ambiental sobrevivem com
menos de R$ 400,00 por mês. Nesse grupo, notamos que estas pessoas procuram emprego há mais de dois anos.

05: Sistemas de Gestão e Governança


691
Também, foi possível constatar que entre os neopentecostais que realizam seus rituais no Setor Pretos Forros e Covanca
(59%) são homens e (41%) mulheres. São frequentadores assíduos, sobretudo nos fins de semana que, acompanhados de paren-
tes, pastores e membros de suas denominações religiosas, sobem o “Monte Cardoso” para cultuar, jejuar, batizar, queimar
pedido de oração, enterrar azeite como forma de purificação, ler a Bíblia Sagrada e meditar, permanecendo no local em média
quatro horas. Porém, há casos de pernoites que acontecem de acordo com o ritual a ser praticado.
O estudo revelou ainda que a idade dos religiosos varia de 17 a 82 anos. Contudo, podemos verificar também que crian-
ças entre 5 e 9 também frequentam este espaço Sagrado na companhia dos pais (3%). Além disso, verificamos que quando inda-
gados sobre o nível de escolaridade 63% responderam que completaram o ensino fundamental, 16% concluíram o ensino médio.
Identificamos também que 21% não foram à escola, contudo, destes 13% sabem ler um pouco e 8% não ler nada.
No que diz respeito à etnia, a pesquisa revelou que 94% se autodeclararam negros e 6% brancos. Já no que tange a de-
nominação neopentecostal que pertencem, 58% disseram ser filiados as Igrejas Assembleias de Deus, 29% às Igrejas Deus é
Amor, 11% Igrejas Universal do Reino de Deus e 2% às Casas de Orações.
A pesquisa também buscou avaliar os serviços e infraestrutura disponíveis. Quando perguntados sobre: 1) a sinalização
indicativa do acesso ao Setor Pretos Forros e Covanca; 2) proteção do patrimônio natural; 3) qualidade da água; 4) limpeza; 5)
segurança (em caso de ocorrência de crimes) 6) áreas de lazer; 7) área de atividade religiosa, 8) presença institucional 87%
avaliaram como ruim e 13% declararam não ter condições de responder. Cabe ressalvar que quanto a presença institucional,
ou seja, dos fiscais/analista ambientais no Setor Pretos Forros e Covanca 100% dos entrevistados afirmaram ser quase sempre
coercitiva e violenta.
Quanto à expectativa dos neopentecostais em relação aos serviços de apoio à prática religiosa a serem disponibilizados
pelo Parque Nacional da Tijuca como parte das políticas públicas de uso coletivo de áreas comum, o estudo indica que há boa
aceitação para: colocação de um banheiro; organização e delimitação de áreas específicas no Setor Pretos Forros e Covanca
para a prática religiosa; realização de cursos, oficinas, palestras e seminários e produção de matérias pedagógicos sobre educa-
ção ambiental em suas igrejas; mutirão de limpeza e replantio orientado; constituição de um grupos dos neopentecostais “canela
de fogo” e da Natureza. Estas variáveis demostram a ausência e negligencia do Estado no que se refere a garantia de infraestru-
tura e manutenção deste espaços e revela a necessidade e aceitação dos religiosos no tocante a formação e proteção da área.

Considerações finais
Tendo em vista a necessidade de reflexão sobre a interface entre unidade de conservação, práticas religiosas neopen-
tecostais e direitos humanos o presente artigo analisou as atividades em educação ambiental realizadas no bojo do Projeto Elos
da Diversidade, desenvolvido pela Superintendência de Educação Ambiental da Secretaria do Estado do Ambiente do Estado
do Rio de Janeiro que, em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuaram junto a indivíduos e grupos neo-
pentecostais “canelas de fogo”, na tentativa de possibilitar a proteção da natureza e a manutenção das práticas ritualísticas deste
seguimento social no Setor Pretos Forros e Covanca, em áreas do Parque Nacional da Tijuca.
Isto foi possível a partir de estudos de diferentes fontes bibliográficas referentes as temáticas ambientais e humanas, do
acompanhamento das ações desenvolvidas pelo Projeto e, também, da análise dos dados extraídos por meio de entrevistas. Foi
possível compreender melhor que, se por um lado o modo de pensar e agir conservacionista pode contribuir para que a natureza
se torne mais “intocada”, mais acessível a visitação turísticas mercadológica e mais vinculada a promoção da imagem da cidade
do Rio de Janeiro por meio de divulgação de sua beleza cênica; de outro, esta racionalidade pode negar os direitos humanos, na
medida que desenvolve a intolerância, a discriminação e o preconceito ao lidar com religiosos neopentecostais “canela de fogo”.
Os resultados obtidos apontam para existência de relações dicotômicas entre o modo de pensar-agir da conservação da
natureza e a garantia dos direitos humanos, sobretudo, no que diz respeito à manutenção das práticas religiosas neopentecostais.
Tal fragmentação se dá particularmente com o fechamento, multas e coerções intolerantes impetradas contra o segmento social
que tratamos nesta abordagem.
É nesta perspectiva de conservação ambiental que se reproduz o pensamento científico e econômico do mundo atual. É
em Unidades de Conservação, como no caso do Parque Nacional da Tijuca, que se materializam as normas e formas de fiscali-
zação que em nome da dicotomia ser humano x natureza e do mercado turístico. São nestes espaços que o direito às práticas
religiosas neopentecostais realizadas por negros empobrecidos são violados. Porém, também, são em espaços com esses que

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os religiosos que resistem à intolerância, ao preconceito econômico e à “discriminação de cor” (VIGEVANI, OLIVEIRA, LIMA
2008, p 31). Portanto, é através do Projeto Elos da Diversidade que surge a oportunidade de pensar o espaço natural também a
partir do olhar dos neopentecostais “canelas de fogo”, que em muito diferem dos evangélicos detentores dos recursos econômi-
cos e do poder político no Brasil.
Dessa maneira, notamos também através dos resultados que a partir de uma visão de educação ambiental integradora e
libertadora é possível diluir o pragmatismo científico e os conflitos entre as diferentes percepções religiosas, tendo em vista que,
isto foi possível no Âmbito do Projeto Elos da Diversidade que findou no último mês de 2014 por falta de recursos financeiros para
a realização das atividades.
Finalmente, considerando que há necessidade da manutenção das práticas religiosas neopentecostais “canela de fogo”
no Parque Nacional da Tijuca destacamos que é fundamental a criação de políticas públicas que fomentem a inserção da ra-
cionalidade dos direitos humanos no campo ambiental, através de cursos e oficinas para gestores e fiscais e, sobretudo, como
regras no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) a fim de que a gestão das áreas naturais protegidas seja
tolerante e respeite o uso democrático, criando condições de fato à realização desta ritualística.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


693
A CRIAÇÃO DO PARQUE NACIONAL MARINHO DAS ILHAS DOS CURRAIS
E A NOVA REALIDADE DA REGIÃO

Sant’ana, Thamyres Pires¹, Santos, Carolina Santana² & Krelling, Allan Paul³

1. Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá. thamyres.santana@hotmail.com.br


2.carolinna.ss@hotmail.com²3.allan.krelling@ifpr.edu.br

Resumo
O arquipélago de Currais está localizado no Estado do Paraná e é uma área desabitada com pouca ou nenhuma interferência
humana. Em junho de 2013, o projeto de lei que cria um Parque Nacional Marinho no local foi sancionado (Lei n.º 12. 829); esta
categoria de Unidade de Conservação proíbe qualquer tipo de atividade com exceção de turismo ecológico ou pesquisas cientí-
ficas. O presente trabalho pretendeu analisar o processo de criação do Parque e a nova realidade da região, especialmente os
conflitos socioambientais gerados à comunidade pesqueira. A partir das informações coletadas através de reuniões e entrevistas
semiestruturadas com informantes-chaves, os principais impactos observados foram a perda de área de pesca de espécies de
safra e a perda de usos não materiais. Em uma tentativa de eventualmente auxiliar a gestão, considera-se que a inclusão da co-
munidade pesqueira nas tomadas de decisões futuras é essencial.

Palavras-chave: Parque Nacional Marinho de Currais, Unidade de Conservação, Conflitos Socioambientais, Pesca e Gestão.

Introdução
Contextualização
Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), os Parques Nacionais são Unidades de Conservação
(UC) de proteção integral, que tem como objetivo preservar os ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza
cênica. Ao mesmo tempo, possibilita a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e
interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.
Cabe ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) executar as ações do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação, podendo propor, implantar, gerir, proteger, fiscalizar e monitorar as UC instituídas pela União. Criado
em 2007, pela Lei 11.516, o ICMBio é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e integra o Sistema Nacional do Meio Ambiente
(Sisnama) (ICMBIO, 2015).
Entretanto, não é apenas o SNUC a política pública que atua sobre as Unidades de Conservação no Brasil. As áreas marinhas
protegidas também recebem atenção de tratados internacionais como, por exemplo, a Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB.
Em 2010, durante a Conferência das Partes (COP10), da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), realizada na
cidade de Nagoya, no Japão, foram estabelecidas novas Metas Globais de Biodiversidade para o período de 2011 a 2020. O Brasil
aceitou cumprir as propostas da Conferência, e estas se transformaram em Metas nacionais através do Conselho Nacional da
Biodiversidade. Dentre as questões ambientais abordadas, as áreas protegidas estão incluídas e recebem destaque na meta 11
que estabelece:

Meta 11. Até 2020, que pelo menos 17% das áreas terrestres e de águas continentais e pelo menos
10% das áreas costeiras e marinhas, especialmente áreas de particular importância para a biodi-
versidade e para os serviços ecossistêmicos, sejam conservadas por meio de um sistema de áreas
protegidas efetivamente e equitativamente manejadas [...] (CONABIO/MMA 2013).

Apesar de ser fundamental – e inquestionável – a necessidade de criação de áreas protegidas, a localização dessas UC
deve considerar não apenas atributos naturais e ecológicos, mas também as relações entre sociedade e ambiente de uma deter-
minada região. Esta abordagem propicia a efetiva conservação e também evita que a implantação de Unidades de Conservação
seja fonte de inúmeros conflitos socioambientais, principalmente no interior ou entorno de Parques, como se observa em algumas
regiões (CONTI; ANTUNES,2012). Nogueira (2009) destaca que o atual aumento da visibilidade dos estudos etnoecológicos
na conservação ambiental, reitera a necessidade de envolver as práticas sociais, os usos e significados atribuídos ao meio nas

05: Sistemas de Gestão e Governança


695
novas pesquisas e projetos conservacionistas.
Essa afirmação, contudo, não relega a conservação a um patamar inferior às questões sociais, senão coloca-a em uma
posição de equidade e complementaridade, de forma que ambas sejam consideradas. Por exemplo, quando Acselrad (2005 apud
NOGUEIRA, 2009) destaca que os conflitos ambientais se dão pela expansão e intensificação do uso de áreas para a produção
econômica do mercado, dado o esgotamento de áreas utilizadas e a necessidade de aumentar a produção, depreende-se que
a atividade econômica da sociedade também é responsável pela geração de conflitos ambientais. Especialmente em áreas
costeiras e litorâneas esses conflitos são mais intensos, por conta da maior quantidade de população vivendo nessas regiões.
O litoral do Paraná possui sete municípios: Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal
do Paraná. O Município de Paranaguá é o maior centro urbano do Litoral do Paraná com área de 826,675 km² e 140.469 habitantes,
os municípios que se localizam em frente ao arquipélago de Currais são de Matinhos com área 117,743 km² e 29.428 habitantes
e Pontal do Paraná com área de 199.847 km² e 20.920habitantes. De acordo com pesquisa realizada através do portal na internet
do ICMBio e do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), há 19 Unidades de Conservação, sendo 12 estaduais e 7 federais em todo o
litoral, e poucas englobam ambientes aquáticos. O litoral paranaense apresenta poucos pontos de costões rochosos. Dentre eles,
existe o arquipélago de Currais (Figura 1).

Figura 1. Mapa do Litoral do Paraná. Figura 2. Arquipélago de Currais. Fonte: Associação MarBrasil.
Fonte: (Carniel and Krul, 2010) Adaptado.

O arquipélago de Currais está localizado em frente aos municípios de Matinhos e Pontal do Paraná e é composto por três
ilhas oceânicas: Grapirá, Três Picos e Filhote. Possui uma rica biodiversidade de aves marinhas, sendo um importante local para
nidificação, e possui a natureza em sua forma natural, por conseguinte, uma área desabitada com pouca ou nenhuma interferên-
cia humana, especialmente em sua área emersa (Figura 2).
No ano de 2006, o arquipélago de Currais foi indicado pelo Projeto de Conservação e Utilização sustentável da Diversi-
dade Biológica brasileira (PROBIO), do Ministério do Meio Ambiente, como área prioritária para conservação da Mata Atlântica
e dos Campos Sulinos, na categoria de área de extrema importância biológica. Ainda, por conta dessas características em 20 de
junho de 2013 foi sancionada a lei federal n°12.829 que cria o Parque Nacional Marinho de Currais (ParNaMar Currais).
Antes mesmo da criação do ParNaMar Currais, o Projeto Currais vem sendo desenvolvido como objetivo de buscar infor-
mações através de pesquisas científicas sobre a fauna marinha e formas de uso no Arquipélago de Currais. Através da análise
das informações obtidas pretende-se compreender melhor a dinâmica sócio-ecológica da região e vislumbrar o futuro manejo
participativo para a área. A partir das pesquisas realizadas ao longo do projeto foram identificadas 144 espécies da comunidade
incrustante e 29 espécies da ictiofauna, sendo duas espécies de recursos pesqueiros de valor comercial: budião (S. frondosume)
e peixe-cirurgião (A. chirurgus).
Foram observadas também diferentes formas de uso no entorno do arquipélago, como: pesca esportiva, caça submarina,
passeio e pesca artesanal. O arquipélago é utilizado pelos pescadores artesanais da região, principalmente pelas comunidades
de Matinhos, Shangri-lá, Ipanema, Canoas, Barrancos, Atami e Pontal do Sul. Segundo levantamento feito pelo método de avista-
gem no arquipélago de Currais, de 67 embarcações, avistadas na região durante o período de estudo, 44 realizavam atividades

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de pesca. Os pescadores afirmaram utilizar a região para a pesca de tainha (Mugil spp.), cavala (Scomberomorus spp.) e sal-
teira (Oligoplites spp.), principalmente durante o outono e o inverno. Esse período pode ser considerado o “período de safra”
dessas espécies. No litoral paranaense, a atividade pesqueira é considerada artesanal, com alguns polos semi-industriais, pos-
suindo importância para a economia regional (ANDRIGUETTO FILHO et al.,2006 apud MEDEIROS; AZEVEDO, 2015).
Considerando o panorama de que o ParNaMar de Currais, o qual tem o objetivo de proteger uma área de interesse para
conservação da biodiversidade, localiza-se em uma região onde usos tradicionais e não-tradicionais ocorrem simultaneamente
é de extrema relevância identificar os principais conflitos gerados a partir de sua criação, devendo-se ter especial atenção à
comunidade pesqueira do litoral do Paraná.

Objetivo
O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo de criação do Parque Nacional Marinho de Currais, seguindo
a regulamentação da Lei nº 9.985, de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), e analisar a
nova realidade da comunidade que vive na região ou no entorno de Currais, identificando os conflitos e os possíveis impactos
sociais da criação do Parque Nacional Marinho de Currais.

Metodologia
Para a análise do processo de criação do ParNaMar Currais, foi realizada uma pesquisa documental (SÁ-SILVA, ALMEI-
DA; GUINDANI, 2009) constituída por revisão bibliográfica, especialmente das legislações aplicáveis e do processo de criação
disponível em fontes oficiais (Câmara e Senado Federal). Os documentos e legislações foram lidos e uma comparação foi feita
observando-se a existência ou inexistência de documento comprobatório da etapa prevista em lei.
Ainda para confirmar as informações observadas em pesquisa documental, realizou-se a validação das informações du-
rante uma reunião que envolveu a participação de três grupos de atores sociais que estão relacionados ao parque: a comunidade
pesqueira, comunidade científica e o órgão gestor do parque. Essa mesma reunião serviu para o logro do outro objetivo desta
pesquisa.
Para a compreensão da nova realidade local, diferentes técnicas foram utilizadas. As formas utilizadas para obtenção
de informações foram reuniões e entrevistas semiestruturadas com ênfase em (i) apresentar o Projeto Currais, já que alguns
pescadores associam a criação da UC com o Projeto, (ii) discutir assuntos envolvendo a criação do Parque Nacional Marinho de
Currais e (iii) identificar possíveis conflitos gerados pela criação da UC, principalmente para a comunidade pesqueira. A reunião
foi gravada e todas as contribuições dos diferentes grupos envolvidos foram consideradas para posterior análise e edição de um
pequeno vídeo-documentário sobre o encontro.
Cada grupo foi convidado para participar da reunião utilizando o método mais adequado de comunicação. Os gestores
do ICMBio foram contatados através de e-mail e por meio de ofício; as comunidades pesqueiras contatadas através de ligações
telefônica se os representantes das demais comunidades e pesquisadores foram contatados através de e-mail. A apresentação
do projeto foi feita através de apresentação oral com auxílio de slides em Powerpoint, e as discussões foram feitas de forma livre,
onde cada indivíduo ou grupo expressava-se sem determinação de tempo e sem ordem definida de fala. A partir dessa reunião,
sistematizaram-se as principais opiniões dos grupos presentes sobre a nova realidade da região.
O segundo método utilizado, para mapear e compreender os principais conflitos gerados pelo ParNaMar, foi a pes-
quisa participativa. Dentre as diferentes técnicas de coleta, análise e divulgação de dados que a pesquisa participativa oferece,
utilizaram-se as entrevistas semiestruturadas com informantes-chaves (SEIXAS, 2005).
As informações a serem coletadas foram definidas com base na experiência prévia da reunião. As questões foram ela-
boradas e buscou-se enunciar questionamentos claros e diretos sem a utilização de termos técnicos, procurando facilitar a com-
preensão por parte dos entrevistados. O objetivo foi buscar a aproximação da linguagem a do público entrevistado e também
otimizar o tempo de trabalho em campo. As questões das entrevistas buscavam obter informações que a comunidade adquiriu
ao longo dos anos em que praticou a atividade de pesca em torno do arquipélago como: conhecimentos ecológicos e conheci-
mentos sobre a atividade pesqueira ao redor do arquipélago, especialmente aqueles adquiridos em seu cotidiano.
Definiram-se as comunidades pesqueiras de Matinhos (Matinhos – PR) e de Barrancos (Pontal do Paraná – PR) para a
realização das entrevistas. Estas comunidades foram selecionadas, pois foram identificadas nas atividades prévias de campo e

05: Sistemas de Gestão e Governança


697
na reunião como aquelas que praticam, de forma mais intensa, atividades no entorno do arquipélago de Currais.
Após a seleção das comunidades, definiram-se dois informantes-chave por comunidade. As atividades realizadas em
outras fases do projeto, incluindo a reunião e alguns encontros com os pescadores, possibilitaram a identificação dos principais
representantes com influência em cada comunidade pesqueira. Considerou-se para esse momento as “pessoas mais capazes de
informar sobre um tópico especial, ou de fornecer pontos de vista particulares” (SEIXAS, 2005) de cada comunidade.
Para pesquisa de campo a equipe foi até os locais onde atuam os informantes-chaves para aplicar as entrevistas, as quais
foram marcadas com antecedência mínima de vinte e quatro horas. Priorizaram-se os horários mais favoráveis aos entrevistados.
No caso dos pescadores, optou-se por realizar as entrevistas no período da tarde, quando já haviam retornado das atividades de
pesca. Cada entrevista foi realizada por dois integrantes do projeto, onde um realizava os questionamentos e o outro transcrevia
as informações adquiridas. Cada entrevista teve duração de aproximadamente uma hora e trinta minutos. Posteriormente, para
serem analisadas, as respostas obtidas foram codificadas e separadas em três categorias: “respostas iguais (concordaram)”,
“respostas parecidas (semelhantes)” e “respostas diferentes (discordaram)”. As pertencentes aos dois primeiros grupos foram
selecionadas para compor os resultados obtidos através deste trabalho, pois atestam a veracidade das respostas àquela questão.

Resultados
A criação do Parque Nacional Marinho das Ilhas dos Currais
De Projeto de Lei a Lei Federal
O Projeto de Lei da Câmara nº 60, de 2003 (PL nº7.032, de 2002, na origem), que cria o Parque Nacional Marinho das Ilhas
dos Currais foi apresentado pelo então deputado estadual do Paraná, Luciano Pizzatto, no ano de 2002, conforme a justificação
contida no projeto:

“O objetivo do presente projeto é assegurar a conservação desse importante patrimônio ambi-


ental do Estado do Paraná e do País. Convém lembrar que o Paraná não dispõe de muitas ilhas
oceânicas ou outras formas de sustentação da vida marinha, e o aumento das atividades de pesca
e visitação colocam em risco as condições ambientais desta região, sendo necessário ordenar
estas atividades, compatibilizando as diversas atividades com as necessidades de seu equilíbrio
socioambiental. As Ilhas pertencem à União e são desabitadas, o que significa que para a criação
do Parque não será necessária a desapropriação de terras e nem serão criados problemas sociais
(PLC nº 7032/2002).”

O projeto de lei esteve em tramitação no poder legislativo durante onze anos. Quando estava na Câmara dos Deputados,
o projeto passou por duas comissões. Primeiramente, foi aprovado em 27 de novembro de 2002 pela Comissão de Defesa do
Consumidor – antiga Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, que foi desmembrada em 2004 –tendo
como relator o ex-deputado José Borba. Em 11 de dezembro de 2002, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania, sendo o ex-deputado estadual Osmar Serraglio, o seu relator. Em seu parecer pela constitucionalidade, juridicidade
e técnica legislativa, Serraglio propôs a única emenda do projeto, na qual opinava que os artigos 3º, 4º, 5º, 6º e 7º deveriam ser
suprimidos, passando o 8º a constituir o 3º. Posteriormente, o projeto foi encaminhado para o Senado Federal, passando também
por outras duas comissões. Passados 7 anos, foi aprovado em 15 de julho de 2009, pela Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania; o relator foi o ex-senador Osmar Dias. Foi então enviado à comissão temática “Comissão do Meio Ambiente, Defesa
do Consumidor e Fiscalização e Controle”. Após aproximadamente 4 anos, o projeto foi aprovado em 05 de março de 2013 tendo
o Senador Cristovam Buarque como relator. Com isso, o projeto de lei foi enviado para a votação no Plenário do Senado, em
maio do mesmo ano, onde foi aprovado por unanimidade. Em 20 de junho de 2013, a presidente da República, Dilma Rousseff,
sancionou o projeto de lei e foi criado o Parque Nacional Marinho na região (Lei nº 12.829/2013).
Como a emenda proposta pelo deputado Serraglio foi aprovada, a lei que cria o PARNA Currais passou a ser constituída
por apenas três artigos. O Art. 1º determina a criação e os limites da UC, que formam um quadrilátero e abrangem todo o arqui-
pélago além de uma extensa área marinha (Figura 3). O Art. 2º define que a UC:

[...] tem por finalidade proteger os ecossistemas das Ilhas dos Currais, bem como os ambientes
marinhos dos limites do seu entorno, permitindo ainda a proteção e controle de relevantes áreas
de nidificação de várias espécies de aves e de hábitat de espécies marinhas (Lei 12.829/2013).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Por fim, o Art. 3º determina que a lei entra em vigor na data de sua publicação.

Figura 3. Ilustração com os limites do PARNA Currais. Fonte: Arquivo pessoal.

Participação Pública na criação do Parque


O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) prevê em seu Art. 5º, inciso III: [as diretrizes] “Assegurem a
participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação”. No processo de pes-
quisa documental não foram encontrados documentos publicados pelo Poder Público (como relatórios, atas de reuniões ou lista
de presença) apontando a participação da população na criação do ParNaMar Currais. Foi encontrado apenas um documento,
sendo o relatório final do Projeto de Recifes Artificiais Marinhos (RAM, 2003), que menciona uma caracterização dos sistemas
pesqueiros do litoral do Paraná, com base em dados de 1999. Entretanto esse trabalho considera as comunidades de Piaçaguera,
Barra do Superagui, Piçarras, Pontal do Sul e Caieiras para essa caracterização. Entretanto, estas comunidades não seriam as
que fazem uso dos recursos atualmente.
Para confirmar a informação obtida, durante a reunião pública com o tema “O Arquipélago de Currais: os resultados
do Projeto Currais, a comunidade local e a nova realidade da região”, que ocorreu em 20 de setembro de 2013, durante o IV
Congresso de Cultura e Educação para a Integração da América Latina(CEPIAL) e I Encontro de Etnicidade e Populações
Autóctones, alguns representantes da comunidade pesqueira (Matinhos, Barrancos e Shangri-lá) foram questionados sobre a
realização de reuniões públicas antes do Projeto de Lei, entretanto nenhum representante confirmou esta informação e relataram,
ainda, que apenas tiveram conhecimento da UC pouco antes da sua aprovação pelo Senado.
Ainda como forma de confirmação dos resultados da pesquisa documental, durante o evento 2º Seminário Regional de
Investimentos e Desenvolvimento Sustentável do Litoral do Paraná, que ocorreu no dia 05 de novembro de 2013, foi possível
realizar contato com o ex-deputado Luciano Pizzatto, proponente do Projeto de Lei. Segundo ele, o processo de consulta pública
ocorreu no ano de 2002 por meio de audiências públicas na Câmara Federal e também em seminários realizados em Paranaguá
contando, inclusive, com a presença de 300 pescadores artesanais.
Dessa forma, observa-se que há diferentes versões sobre a participação pública no processo de criação, porém não
foram encontrados registros de reuniões públicas ou encontros com o fim de discutir a proposta de criação do ParNaMar de Cur-
rais durante a pesquisa documental e como os representantes não confirmaram a participação, diferentemente do que apontado
pelo proponente do Projeto de Lei, é possível que a consulta pública tenha abrangido um público diferente do que os principais
usuários do recurso ou não ter tido sido realizada a divulgação eficiente, caso os encontros tenham efetivamente sido realizados.

Dos estudos técnicos para a criação do ParNaMar Currais


O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) prevê, em seu Art. 22, parágrafo 2º, que “a criação de uma
unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a
dimensão e os limites mais adequados para a unidade [...]” (Lei n.º 9.985/2000). Mesmo considerando a existência dessa legisla-
ção, durante a pesquisa documental não foram encontrados estudos técnicos, publicados pelo Poder Público, a fim de embasar

05: Sistemas de Gestão e Governança


699
a criação do ParNaMar de Currais. A informação existente em relação ao Parque, constante na justificação, é que “O Centro de
Estudos do Mar, da Universidade Federal do Paraná, desenvolve várias pesquisas nas Ilhas”. Efetivamente, aproximadamente 20
publicações científicas existem sobre o arquipélago, entretanto os estudos sobre a região contemplam, em sua maioria, períodos
reduzidos de execução1 e também não tem foco exclusivo na criação de uma UC no local. Há apenas uma citação encontrada
na literatura sobre esse tema, incluindo as temáticas “categoria (de UC)” e “plano de manejo das ilhas oceânicas do litoral do
Paraná”. Este trabalho elaborado por Borzone e colaboradores, em 1994, não está disponível on-line e é anterior ao SNUC.
Em relação à localização e às dimensões, lê-se na justificação do Projeto de Lei a citação que:

[...] a área de oceano incluída nos limites do Parque, a mesma permite a existência de uma zona de
proteção entre as Ilhas e a região de uso público, incluindo pedras, lajes e outras formas naturais
onde existe variada fauna aquática. Sua porção maior em direção oposta a costa deve-se ao fato de
nesta área existirem estruturas de Recifes Artificiais instaladas há vários anos, na fase de pesquisa
do Projeto, onde já vivem de forma permanente raros exemplares de “meros”, peixes com várias
centenas de quilos, que adotaram as estruturas como excelente área de convivência.

Como já mencionado e apesar do número de trabalhos apresentados acima, não foram encontrados estudos conduzidos
especificamente para embasar a criação da PLC da UC na região. Apenas o mesmo relatório final do Projeto RAM – Recifes
Artificiais Marinhos tem em seu título o termo “Parque”2 Marinho.
Seguindo o procedimento de confirmação, o ex-deputado Luciano Pizzatto foi questionado sobre a realização dos estudos
técnicos para o estabelecimento dos limites do ParNaMar. O ex-deputado reiterou que o princípio do Parque veio com o Projeto
RAM – Recifes Artificiais Marinhos (executado pelo Instituto Ecoplan) – que difere do atual Programa REBIMAR (executado pela
Associação MarBrasil) – e que o Centro de Estudos do Mar da UFPR embasou a parte científica. Ele ressaltou ainda que a ideia
seria uma área de exclusão entre os arquipélagos de Itacolomi e Currais. Entretanto não mencionou quais estudos embasaram
efetivamente os limites.
Ainda como forma de compreender o processo de estabelecimento dos limites do Parque durante a reunião ocorrida na
CEPIAL (opcit), o coordenador da Regional Sul do ICMBio, Daniel Penteado, relatou que o órgão respondeu a notificação do
Ministério do Meio Ambiente sobre criação do ParNaMar de Currais dizendo que esta seria possível, mas alertou que deveria ser
feita com mais cautela, pela ausência de registros de consulta pública e devido a poucos estudos científicos realizados no local.
Sendo assim, os limites da UC e a sua categoria poderiam não corresponder ao que era necessário.

A nova realidade da região


Os resultados das entrevistas semiestruturadas apontam que a criação desta UC afeta diretamente as duas comunidades
pesqueiras entrevistadas – Barrancos e Matinhos – pois durante as entrevistas foi comum a declaração de que o arquipélago
de Currais era utilizado como ponto de pesca, principalmente em relação à pesca da tainha (Mugil sp.) e da cavala (Scomber
sp.). Estas espécies de peixes são capturadas intensamente durante três meses do ano: maio, junho e julho. Sendo que devido
às condições climáticas, as pescarias ocorrem em apenas quarenta dias. De acordo com os entrevistados os principais tipos de
pesca realizados em Currais são o cerco e o fundeio com distância de 50/100m das ilhas. Os entrevistados afirmam que terão que
sobre explorar outro ponto de pesca, para compensar a quantidade de peixes que não podem mais capturar no arquipélago de
Currais; e o local alternativo mais apontado foi a Ilha de Itacolomi (Guaratuba – PR). Embora a Unidade de Conservação no local
afete economicamente a atividade pesqueira, o ponto mais destacado pelos pescadores foi a perda dos usos não materiais que
eram realizados no arquipélago antes da criação do Parque. As comunidades o utilizavam para refúgio em ocasiões como, por
exemplo, ventanias e tempestades ou problemas com a embarcação; as ilhas também serviam como ponto de referência para
se deslocar para outras áreas. Como estes são usos indiretos e alguns deles envolvem a salvaguarda da vida humana, provavel-
mente poderão continuar ocorrendo mesmo com a criação da UC, desde que sejam previstos no futuro Plano de Manejo ou que
acordos sejam estabelecidos com o Conselho Gestor do Parque.
Alguns dos entrevistados também acreditam que leis ambientais, como o SNUC, interferem na reprodução social das
1
Existem ainda outros estudos, que não foram publicados, ou que não estavam disponíveis on-line e dessa forma acabaram não sendo incluídos na presente pesquisa
documental.
2
Aspas do próprio documento.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
700
comunidades pesqueiras. Apesar de serem contrárias a UC, as comunidades se mostram dispostas a colaborar com a Gestão
do Parque participando de encontros ou reuniões e compartilhando os seus conhecimentos ecológicos, adquiridos ao longo dos
anos que exerceram a atividade pesqueira na região. Também consideram o turismo no local como uma possibilidade de mini-
mizar os efeitos da criação, refletidos diretamente em sua renda econômica.
As leis que regularizam a pesca têm sido cada vez mais restritivas e o histórico é de formas pouco participativas dos
usuários dos recursos pesqueiros no momento de suas elaborações. Isso dificulta a aceitação das normas, além de tornarem a
maior parte das atuações ilegais. Por esse motivo, muitas vezes alguns pescadores acreditam que há o fornecimento das infor-
mações adquiridas nas pesquisas – realizadas tanto por universidades quanto por instituições do terceiro setor– para os órgãos
públicos, que supostamente contribuem para as restrições instituídas. No caso deste ParNaMar, o Projeto Currais é muitas vezes
acusado de ter “apressado” a sua criação ou ter algum tipo de ligação com o projeto de lei; a figura 4 mostra como esta afirmação
é infundada, já que a proposta da UC na região antecede até mesmo a criação de algumas das instituições responsáveis pelo
projeto de pesquisa3.

Figura 4. Linha do tempo com o ano de criação do projeto de lei que cria o PARNA Currais, do SNUC, do ICMBio e
das instituições envolvidas no Projeto Currais. Fonte: elaboração própria.

Discussão
O longo prazo de tramitação – 11 anos – para a aprovação do projeto de lei que cria o PARNA Currais é um fator que
dificulta tanto a recuperação de informações do processo, quanto para considerar a participação popular efetiva. Com o pas-
sar do tempo, a dinâmica de uma população local para extrair os recursos naturais de uma determinada região pode se alterar,
devido a questões políticas, ambientais, sociais e econômicas (por exemplo, como determinados tipos de pesca podem passar
a ser proibidos e outros passam a ser utilizados, os recursos pesqueiros extraídos no momento da consulta podem ser diferentes
dos que são extraídos hoje e etc.). Portanto, mesmo que tenha ocorrido à consulta pública no ano de 2002, o planejamento feito
a partir do debate realizado naquele momento, caso tenha ocorrido, pode ser pouco eficaz, pois talvez não esteja de acordo com
a realidade atual do arquipélago.
A consulta pública no momento da elaboração da proposta da UC é indispensável, mas dependendo do modo como é
realizada também não resultará em um bom planejamento para a área. O ideal é que estejam inseridos neste processo, prin-
cipalmente, os usuários dos recursos naturais da região e outros atores com potencial para serem afetados com a sua criação.
Apesar de a legislação ambiental ser favorável a participação pública, tem sido recorrente a ausência da sociedade civil
na criação, implantação e gestão das UC. Algumas diretrizes definindo como devem ocorrer as consultas públicas foram criadas.
Atualmente existem duas instruções normativas (IN) do ICMBio, a de 18 de setembro de 2007 e a de 15 de maio de 2008, que
definem a forma de realização de encontros e sua finalidade.
A ausência de estudos específicos para a criação de UC pode trazer dificuldades para sua gestão e ainda gerar conflitos
socioambientais que poderiam ser evitados. A criação de UC só desencadeará menos conflitos socioambientais se ocorrer com
os devidos procedimentos de análise técnica e consulta pública, sendo os seus objetivos claros e precisos, e suas características
de acordo com os usos que ocorrem na região.
Em relação à nova realidade da região, uma vez que as espécies de peixes mais pescadas são migratórias, e que estas
podem ser encontradas em áreas externas aos limites do Parque Nacional Marinho, infere-se que o arquipélago é um ponto de
concentração que facilita a captura, mas não é um ponto exclusivo dessa prática de pesca. Entretanto, o dimensionamento dos
impactos reais sobre as práticas de pesca ainda precisa ser feito. Além disso, o impacto dessas mesmas práticas de pesca sobre
a fauna local, também precisa ser avaliado. Assim promovendo o desenvolvimento socioambiental propriamente dito.

3
O Projeto Currais é Executado pela Associação MarBrasil (terceiro setor), Instituto Federal do Paraná e Centro de Estudos do Mar da Universidade Federal do Paraná
(ambas Instituições Federais).

05: Sistemas de Gestão e Governança


701
Considerações finais
O longo processo de criação do ParNaMar de Currais contribuiu para a geração de conflitos, mas alguns dos conflitos
socioambientais identificados com a criação do ParNaMar, como o acesso ao arquipélago e aos seus recursos pesqueiros, são
solucionáveis, dependendo apenas da elaboração de uma agenda conjunta entre atores envolvidos.
Devido à população local, especialmente os pescadores artesanais das comunidades apontadas, não apresentar um
histórico de envolvimento com o processo de criação desta UC, torna-se ainda mais fundamental a sua participação na gestão
da área, bem como nos processos de construção e tomadas de decisão.

Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer à Fundação Grupo Boticário pelo patrocínio do Projeto Currais, ao Instituto Federal
do Paraná, pelo apoio financeiro por meio do Programa de Bolsas de Extensão da Diretoria de Extensão e Políticas de Inclusão
– DIEXT, à Associação MarBrasil pela Execução do Projeto e ao Centro de Estudos do Mar da Universidade Federal do Paraná.

Referências
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tal: Desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2005, p. 287.

BORZONE, C.A. 1994. Proposta para a categoria e o plano de manejo das ilhas oceânicas do litoral do Paraná. Pontal do Paraná,
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pp. 73-108.

05: Sistemas de Gestão e Governança


703
A GESTÃO PARTICIPATIVA NA RESERVA EXTRATIVISTA RIO XINGU

Guedes, Maite Alves1, Pereira, Mauro Braga Costa2 & Brusnello, Leidiane Diniz3

1. maiteaguedes@gmail.com 2. correiodemauro@gmail.com, 3. leidiane.brusnello@gmail.com


Analistas Ambientais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade vinculados ao Núcleo de Gestão Integrada de Altamira

Resumo
A Reserva Extrativista é uma categoria de unidade de conservação criada a partir do pleito dos movimentos sociais para garantir
o reconhecimento do direito ao território das comunidades tradicionais que viviam nas florestas, com destaque para os chamados
seringueiros. Apesar desse histórico e das garantias legais atualmente existentes, a participação desses grupos na gestão das
RESEX, em muitos casos, ainda não é efetiva. A partir do estudo de caso da RESEX Rio Xingu, buscar-se-á contribuir para uma
melhor compreensão de alguns dos espaços de participação atualmente existentes nessa categoria de Unidade e seus limites.

Palavras-chave: Reserva Extrativista, Participação Social, Unidade de Conservação

No caso, a gente pensava que era uma coisa e foi outra diferente. (...) A gente pensava, porque
lá no relatório quando se brigou para criar a RESEX se dizia que quem mandava lá dentro era o
ribeirinho e não é, quem manda lá é o Governo. (Morador da RESEX Rio Xingu)

Introdução
As Reservas Extrativistas (RESEX) são áreas protegidas por lei que, pelas normativas vigentes, trazem a participação
social como parte constitutiva tanto do seu processo de criação, como de sua gestão.
A proposta da categoria de unidade de conservação (UC) Reserva Extrativista nasce no interior do movimento social dos
seringueiros – notoriamente no I Encontro Nacional dos Seringueiros ocorrido em 1985 – e foi efetivada como política pública
através do Decreto Presidencial n. 98.897/1990. Este caminho foi traçado pela luta dos seringueiros por uma reforma agrária
compatível com a territorialização desse grupo, em articulação com o movimento ambientalista internacional que pressionava o
governo brasileiro pelo combate ao desmatamento na Amazônia (ALLEGRETTI, 2008, p. 51).
A Lei 9.985/2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e normatiza atualmente a gestão
dessas áreas, tem como uma das suas diretrizes gerais a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e
gestão das UC, o que se aplica a todas as categorias previstas. Para a efetivação dessa diretriz, foram criados, no próprio texto
da lei e em normativas posteriores, diversos instrumentos como, por exemplo, a instância do conselho gestor da Unidade. No
caso das RESEX esse fórum tem poder deliberativo sobre os diversos temas relacionados à gestão da Unidade e a participação
de representantes das comunidades é garantida. Diante desse cenário, uma vasta literatura tem tratado da questão de como se
efetivar uma gestão ambiental participativa nas UC, em especial em RESEX, inclusive na forma de manuais de gestão.
Contudo, observa-se, em muitos casos concretos, que a participação social na gestão das RESEX ainda não se dá de forma a
efetivamente reconhecer a autonomia das comunidades tradicionais na gestão desses territórios tal como ambicionado pelos movi-
mentos sociais envolvidos na criação desta categoria de UC. É o que apontam diversos trabalhos de pesquisa sobre essa temática5.
1
Para a história do movimento dos seringueiros ver também, dentre outros: Almeida (2004), Almeida (1993) e Porto-Gonçalves (1999).
2
Ressalta-se ainda a importância da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece aos povos indígenas e tribais, entendidos
também como os povos e comunidades tradicionais previstos na legislação brasileira, não apenas o direito de domínio e posse sobre os territórios tradicionalmente
ocupados, mas também o direito de realizar a gestão dos recursos naturais dessas terras.
3
Ver Neiva et al. (2013) e ARPA; MMA (2009).
4
Sobre o conceito de território, ver Porto-Gonçalves (2012, p. 34): “o conceito de território deixa de ser pensado como a base física de exercício da soberania do
estado, tal como consagrado no direito internacional e sua ciência jurídica e política, e passa a ser visto como o processo de apropriação e controle do espaço
geográfico com seus recursos e suas gentes, revelando as tensas relações de poder que lhes são constitutivas. E como não há apropriação material que não seja
acompanhada por um determinado sentido dado por uma cultura, em outras palavras, como não há apropriação material que não seja ao mesmo tempo simbólica, o
processo de apropriação da natureza é acompanhado, ao mesmo tempo, por uma tensa e intensa luta pelos sentidos a ela atribuídos. Nesse sentido, a natureza e a
cultura são politizadas. Enfim, território é igual à natureza mais cultura através das relações de poder”.
5
Guerrero, Torres & Camargo. (2011), na análise dos processos participativos de elaboração de planos de manejo de Reservas Extrativistas, apontam como limitantes
a priori o fato de os planos de manejo não serem uma demanda advinda das populações e que seus processos de elaboração pecavam, nos casos analisados, tanto
pela falta de conhecimentos prévios sobre as características socioculturais do grupo, como pelo tempo destinado à sua elaboração. Almeida (2004), por sua vez,
aponta claramente a necessidade de as políticas ambientais considerarem a diversidade étnica dos grupos residentes nessas áreas e que detêm formas próprias de
organização e uso do território; para o autor, isso evitaria “o equívoco de reduzir a questão ambiental a uma ação sem sujeito”.

05: Sistemas de Gestão e Governança


705
Na RESEX Rio Xingu (RRX), local de estudo foco desse artigo, não é diferente. Apesar dos esforços da equipe do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – órgão federal legalmente responsável pela gestão da unidade – de
se fazer presente e aproximar a gestão dos moradores nas suas bases, a distância em relação aos processos de tomada de de-
cisão ainda é percebida pelos ribeirinhos. Tal sensação faz referência, segundo relatos dos moradores, aos próprios processos
participativos desenvolvidos no interior da RESEX, como no âmbito do conselho deliberativo e da associação de moradores, e à
atuação dos seus representantes nesses espaços.
Considerando essa realidade, as orientações normativas vigentes e o processo histórico de constituição da RESEX como
uma categoria específica de unidade de conservação, buscou-se com este trabalho analisar alguns dos espaços de participação
social em UC por meio do estudo de caso da RRX e seus instrumentos atuais de gestão. Para isso, foram levantados e analisados
dados primários já produzidos sobre a gestão da RRX, como processos administrativos, relatórios de atividades e outros docu-
mentos, além de dados secundários, como pesquisas já desenvolvidas sobre o tema. Em um segundo momento, foram realiza-
das entrevistas semi-estruturadas com lideranças sobre o histórico de criação da RESEX e sua gestão atual, além da utilização
da observação participante em diferentes espaços de decisão, como reuniões realizadas junto aos moradores.
Há que se considerar, ainda, que os autores são também analistas ambientais do ICMBio e atuam no âmbito do Núcleo
de Gestão Integrada de Altamira, onde esta inserida a gestão da RRX. Tal fato influenciou não apenas a escolha do objeto de
estudo, mas também relativizou, em alguma medida, as informações obtidas e, daí, as próprias conclusões alcançadas. Contudo,
esse fator trouxe também a oportunidade de agregar à análise as experiências vividas e acumuladas nos diversos momentos de
gestão. Trata-se, assim, de reconhecer a perspectiva sob a qual foi desenvolvido o presente trabalho e que deve ser considerada
na sua leitura.

A Reserva Extrativista Rio Xingu


A RRX é uma UC federal criada no dia 05 de junho de 2008, totalmente inserida no município de Altamira, estado do
Pará, com o objetivo de “proteger os meios de vida e a cultura da população extrativista residente na área de sua abrangência e
assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade” (BRASIL, 2008). Atualmente, são beneficiários da RRX cerca de
243 beiradeiros6, distribuídos em 57 núcleos familiares, localizados em casas que distam, em média, aproximadamente cinco
quilômetros umas das outras.
A origem dessas famílias ribeirinhas remonta aos migrantes nordestinos que se estabeleceram na região para trabalhar
com a extração do látex nos dois períodos de produção intensa de borracha na Amazônia e aos diversos povos indígenas pre-
sentes (ICMBIO, 2012).
A atividade de exploração da borracha era administrada por meio do sistema de aviamento, que se baseia no adian-
tamento de mercadorias e instrumentos de trabalho em troca da produção extrativa, que também funcionava para a coleta de
castanha e o “marisco do gato”, como é chamada a caça de animais silvestres para comercialização da sua pele. Paralelamente,
também se praticava agricultura, pesca e caça para o consumo das famílias.
A exploração da borracha, como a principal fonte de renda da maioria das famílias, foi sucedida pela venda de pele de
animais silvestres até a década de 1970 e pela comercialização de pescado a partir da década de 1980, primeiramente salgado
e atualmente conservado com gelo. Também nessa década, começam a atuar, ali, as primeiras empresas madeireiras; atividade
que permaneceu em menor ou maior grau até a criação da RESEX. Destaca-se, por fim, a abertura de fazendas a partir de 2002,
cujas atividades também foram paralisadas com a criação da unidade.
Dentre as atividades econômicas desenvolvidas, percebe-se em uma análise inicial, que a estrutura de produção da bor-
racha foi a que mais marcou a organização social do grupo, não apenas na atual distribuição espacial das casas, mas também
nas relações sociais estabelecidas e que se assemelham ainda à organização das colocações de seringa. Esse sistema foi des-
crito por Almeida (2012) no caso de seringais do Alto Juruá, no Acre:

6
A denominação “beiradeiro” é uma categoria nativa, utilizada para autodenominação do grupo. “A nossa tradição é beiradeiro”, declarou um morador. Conforme Brah
(2006), a identidade e a diferença são construídas a partir da subjetividade do grupo, mas também de acordo com determinado contexto e motivação política. Vê-se
na história do grupo a utilização de diferentes categorias identitárias: antes “arigós” e “seringueiros”, “beiradeiros”, e mais recentemente, ribeirinhos e populações
tradicionais.
7
Trata-se da última unidade criada na região conhecida como Terra do Meio, que abriga um conjunto de áreas protegidas que inclui sete unidades de conservação
e oito terras indígenas que, juntas, abrangem mais de onze milhões de hectares (ICMBIO, 2012).

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706
A unidade de uso de recursos da floresta não é o seringal, e sim a colocação e os grupos domésti-
cos que a constituem. É na colocação que são tomadas as decisões relevantes sobre o volume e a
variedade da produção, o nível de povoamento e a conservação ambiental. [...]
As casas de uma colocação são na maior parte dos casos de chefes de família ligados por laços
de parentesco [...]
Colocações próximas interligam-se por laços de parentesco, casamento, compadrio, cooperação
e comércio. Reúnem-se em mutirões e festas, sem respeitar fronteiras de seringais, e transpondo
mesmo as bacias hidrográficas. (ALMEIDA, 2012, p. 127-130)

Muitos moradores da RESEX dizem que, antigamente, ao invés das “reuniões” realizadas hoje, os encontros entre as
famílias se davam mais nas festas do “beiradão” e em situações de convite de um vizinho para ajudar na roça, no sistema de
troca de dias.8
O sistema de aviamento descrito anteriormente também ainda permanece de alguma forma. Atualmente, os chamados
regatões, que são geralmente parentes dos atuais moradores que vivem em Altamira, adiantam mercadorias em troca principal-
mente do pescado, mas também da castanha e outros produtos.
Com relação a atual estrutura de prestação de serviços sociais presente na RESEX, verifica-se ainda significativa limi-
tação. A primeira escola começou a funcionar apenas em 2010 e o primeiro e único posto de atendimento de saúde existente
iniciou suas atividades em 2014. Ressaltam-se também as dificuldades de comunicação, uma vez que são inexistentes sistemas
de telefonia fixa ou móvel, conexão com internet e também de transporte público. As limitações na garantia desses direitos são
apontadas como os principais motivos para a mudança de moradores para a cidade, conforme relato de uma moradora citando
a questão da educação: “tinha muita gente, mas morreu, outros saíram, porque não tinha escola”.

O processo de criação da RESEX Rio Xingu


A criação da RRX está inserida no quadro mais amplo de criação do conjunto de UC da região conhecida como Terra do
Meio, que objetivou a proteção de um ambiente de significativa biodiversidade no contexto nacional, mas também a salvaguarda
dos modos de vida e garantia do território das populações ali residentes, que estavam em constante ameaça pela ação de ma-
deireiros e grileiros.
Principalmente a partir da década de 1990, com o aumento da pressão sobre os seus territórios, os moradores da Terra do
Meio, adotaram a estratégia de buscar apoio das instituições da cidade de Altamira para fazer frente às invasões. O Movimento
pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu, que dará origem posteriormente à Fundação Viver, Produzir e Preservar, en-
caminhou no início dos anos 2000, em conjunto com outras 114 organizações, documento ao governo brasileiro revelando a sua
preocupação pela proteção e conservação do território do Médio Xingu (IBAMA,2004). A partir dessa demanda, o Ministério do
Meio Ambiente (MMA) contratou a formulação de uma proposta técnica (MMA, 2003) que subsidiou os processos de criação
das cinco UC federais da Terra do Meio, que foram decretadas em diferentes momentos, a partir de 2005, conforme o andamento
dos processos administrativos e, principalmente, segundo o contexto político.
Com relação ao histórico de criação específico da RRX, como descrito no item anterior, após o abandono da exploração
da borracha pelos patrões, os seringueiros tiveram um tempo de certa autonomia no uso do território e seus recursos até a chega-
da das empresas madeireiras a partir da década de 1980. Disputando com as madeireiras, grileiros atacavam a região e, entre
eles, cabe destaque à atuação da empresa conhecida como CR Almeida que se dizia “dona” da área da RESEX, entre outros 7
milhões de hectares. Seus títulos fundiários, entretanto, já haviam sido contestados pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e pelo
Ministério Público Federal (MPF), no episódio que ficou conhecido, à época, como “a maior grilagem da história” (WEIS, 2005).
Conforme relato de morador: “aí ela [a CR Almeida] dizia que era dona da terra, que era o Cecílio Rego de Almeida e ele dizia
que ele tinha um metro cúbico de dinheiro para brigar contra o governo por essa terra”. A ocupação dessa grileira foi mantida até
2008, quando foi cumprida decisão da justiça federal que obrigou sua saída do local.
Os moradores lembram-se desse tempo como de grande conflito e divisão da comunidade. Enquanto alguns falam com
certo saudosismo da época em que a empresa “pagava para eles ficarem em casa”, prestava assistência de saúde e educação,
e distribuía cestas básicas no beiradão; outros se lembram dos “pistoleiros armados” que os obrigavam a sair das suas terras.
8
No sistema de “troca de dias”, quem é convidado apoia no trabalho da roça ou da casa, e quem recebe a ajuda fornece alimentação e fica com a responsabilidade
de retribuir o convidado com o seu trabalho.

05: Sistemas de Gestão e Governança


707
Em reportagem sobre a resistência contra a criação da RESEX, veiculada em site de circulação local da época, cita-se:

O presidente da associação, Dicé Viana Nascimento, diz que eles são contra a RESEX pela ex-
periência vivida na região depois da criação de outras reservas, onde a população foi abandonada
pelo governo. “Estamos lá sem assistência, não tem transporte para os doentes”, revelou, infor-
mando que a comunidade fica há mais de dois dias de Altamira, viajando de barco pelo Rio Xingu.
Dicé diz que a maioria das famílias da área rejeita a criação, apesar das investidas do governo e de
Organizações Não Governamentais (ONGs) para que a RESEX seja criada. (LEAL, s/d)

Enquanto isso, alguns moradores denunciavam as ameaças de morte que vinham sofrendo por parte da grileira:

Atual presidente da Associação de Moradores do Médio Xingu, Herculano convive com o risco
da morte desde 2000. Quando os grileiros começaram a invadir sua comunidade, formada por 52
famílias, ele reagiu, denunciando as ilegalidades. Recados ameaçadores não tardaram a chegar.
O primeiro sinal de que as intimidações passariam de meros alertas verbais ocorreu em 2004,
com o incêndio criminoso de cinco casas da região. No último dia 17, veio o ultimato dos grileiros.
Herculano, um sobrinho e um afilhado, este menor de idade, foram abordados por cinco homens
e mantidos presos durante 14 horas. (MARIZ, 2008)

Os anos anteriores à criação da RESEX foram de intenso conflito de interesses pela destinação da sua área atual, que
abrangiam as fazendas que estavam sendo questionadas pelo MPF (MPF, 2008), a ocupação da CR Almeida, além da ação do
próprio Estado e das organizações da sociedade civil que vislumbravam a criação da reserva.9
Assim, com relação à participação social nesse processo de criação da unidade, destaca-se a intensa mobilização dos
moradores e a presença de diversos atores com objetivos, muitas vezes contraditórios, gerando situações de entendimento com-
plexo. Percebe-se que os moradores e as lideranças que se formaram nesse processo, se apropriaram de formas distintas dessa
complexidade, o que gerou em alguns casos certa falta de clareza sobre os interesses reais de cada agente envolvido, conforme
entrevista realizada com uma moradora:

Isso aí é que muita gente fala que disse que ela ia grilando a terra, porque eles pagavam o pes-
soal para ficar, né. [...] Pagavam para ficar, ainda davam o rancho. Eles iam construir casa para
o pessoal lá tudinho, tirar madeira [...]. Um bucado lá ele ajudava. [Pergunta:] Mas qual era o
objetivo do trabalho deles, porque eles queriam ficar aí?
Aí eu não sei o que que é. Eu quase não conversava com eles.

Instâncias de participação social na gestão – o conselho gestor e a associação


de moradores
O processo de criação da RESEX, apesar dos conflitos e impactos gerados nas relações interfamiliares, foi um importante
impulsionador da organização política das famílias que viviam na área da unidade. Os processos de formação política de base,
tão presentes na região da Transamazônica, liderados pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), não foram realizados nessa
região do Xingu. A organização social dos moradores tem como base principalmente a família expandida, com características
ainda das antigas colocações de seringa. Assim, a necessidade de ação política coletiva mais ampla para a criação da RESEX e
para sua gestão autônoma, uma vez criada, surge como algo novo.

A Associação de Moradores
A criação da Associação de Moradores do Médio-Xingu (Amomex) começa a ser discutida no momento de maior conflito
entre a empresa CR Almeida e os atuais moradores da RESEX. Atendendo a uma orientação do Ibama e de outras entidades que
atuavam na região para a criação da unidade, começa a ser formada a associação como uma estratégia para unir os moradores
em torno da ideia de criação da unidade e também como uma necessidade formal de representação coletiva desses moradores.
Nenhuma entidade deste tipo existia até então no âmbito do conjunto de famílias beiradeiras do médio rio Xingu.

9
A postergação da criação da RRX em relação às demais UC da região levou a considerações sobre outros possíveis conflitos de interesse no Governo, como o, à
época, projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte (ISA, 2008).

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A Amomex, no seu processo de criação, teve uma composição diretiva provisória e, desde a sua formalização em 2009,
passou por três diretorias diferentes, sendo a mais recente eleita em maio de 2013. Entre essa última eleição e o início de 2014
ainda não havia sido realizada nenhuma assembleia ordinária e a diretoria não se reunia com frequência. A associação não tem
significativa arrecadação própria, apesar de prevista a obrigatoriedade de contribuição dos associados no seu estatuto. As ativi-
dades que têm realizado ultimamente são financiadas através de projetos previstos no Plano de Desenvolvimento Regional Sus-
tentável do Xingu (PDRS-Xingu), apresentados e implementados com a assessoria do Instituto Socioambiental (ISA). A associa-
ção ainda não tem uma sede, seja na RESEX ou na cidade, e não tem nenhum tipo de estrutura administrativa. A gestão dos seus
documentos, como estatuto social e atas de reunião, ainda é feita com o apoio de instituições parceiras, como a ISA e o ICMBio.
Durante atividades de capacitação da Amomex realizadas pelo ICMBio em parceria com o Conselho Nacional das Popu-
lações Extrativistas (CNS) ao longo do primeiro semestre de 2014, pôde-se compilar algumas dificuldades para a gestão da
associação apontadas pelos moradores que nos ajudam a entender o seu estado atual. Destacam-se os seguintes pontos: a
falta de união entre os moradores e diretores da associação; dificuldades de comunicação e de acesso à informação; falta de
entendimento e compromisso dos moradores; falta de participação nas decisões sobre os projetos e pesquisas realizados na
unidade; dificuldades para gestão de projetos e dos bens da associação; falta de acesso a políticas públicas, em especial de
saúde e educação.
Com relação à estrutura de comunicação, já descrita anteriormente, foi possível identificar que as limitações hoje exis-
tentes e as grandes distâncias entre as casas dos moradores e também com o centro urbano, são importantes gargalos para a
atuação atualmente exigida da associação de moradores.
Já as questões relacionadas à falta de união, entendimento e compromisso dos moradores parecem remeter, em parte,
às dificuldades enfrentadas atualmente para a organização política dentro dos modelos impostos. A reunião do grupo em torno
da discussão de temas que dizem respeito ao direcionamento de suas vidas em âmbitos de decisão coletiva como a associação
e o conselho ainda é algo recente. Assim, não são espaços a que todos os moradores buscam participar. Da mesma forma, exis-
tem novas regras e uma nova forma de agir nas relações, o que muitas vezes tem gerado situações de conflitos, como visto nas
declarações de uma moradora:

Só que era um pessoal unido [antes da criação da RESEX], eu não sei que agora virou tudo de
cabeça para baixo.
Só que hoje em dia, devido à RESEX também, tá tendo mais conflito, sei lá, eu digo que é. Mas só
que as pessoas não entendem o que o pessoal vai lá para fazer, as visitas, ele explica, [mas] eles
não tão entendendo o que é.

Da mesma forma, pela representação política estar ligada à relação com a “cidade”10, mais restrita à atuação das lider-
anças, e pelas dificuldades relacionadas aos processos formativos no interior da unidade para lidar com os novos instrumentos
de ação política previstos, aqueles que conseguiram ter uma experiência durante o processo de criação da RESEX acumularam
um capital político11 que os colocou em um patamar muito diferente dos demais moradores. Tal fato é exemplificado também na
existência de lideranças que são pouco contestadas em um ambiente de reunião, mas que nos espaços de conversa são muito
criticadas, conforme constatado nas oficinas. Essas lideranças desenvolveram habilidades para atuar nesses novos espaços e
têm pouca concorrência para disputa do campo político nesses novos termos.
Sobre esse aspecto do papel da liderança e da “profissionalização” da representação política, percebe-se ainda que as
exigências de participação nas reuniões da cidade têm gerado um distanciamento de certos diretores da Amomex em relação
aos demais moradores, conforme identificado pelos participantes das oficinas. Essa relação mais intensa com a cidade do que
com os moradores em si leva também ao questionamento do quanto a legitimidade da atuação de alguns diretores está fundada
nas suas bases de representação ou nas relações que são mantidas com esses novos espaços externos e principalmente com
os atores que detém certo poder de atuação na RESEX, como o ICMBio e ONGs. Tais relações de poder e autoridade são pro-

10
A relação com a “cidade” nesse caso pode ser traduzida como a relação com as instituições de apoio, como o ICMBio e ONGs, mas também com os órgãos do
Estado de prestação de serviços básicos, como saúde e educação.
11
Para Bourdieu (2012, p. 164), “a concentração do capital nas mãos de um pequeno grupo é tanto menos contrariada e, portanto tanto mais provável, quanto mais
desapossados de instrumentos materiais e culturais necessários à participação ativa na política estão os simples aderentes – sobretudo, o tempo livre e o capital
cultural”.

05: Sistemas de Gestão e Governança


709
porcionadas tanto pela própria natureza da ação da instituição, como a competência fiscalizatória do ICMBio, mas também pelas
relações assistencialistas construídas, amplificadas pelas difíceis condições de vida dos moradores.
Já o apontamento das dificuldades de acesso aos serviços básicos, que poderia demonstrar em um primeiro olhar certa
confusão na identificação dos papéis de cada instituição, pois esses não seriam, a princípio, uma função da associação, parece
sinalizar, sobretudo para o que Roy (1995) detectou: “a possibilidade de desenvolvimento pessoal é pré-condição para participa-
ção ativa no coletivo” (ROY, 1995, p. 118). Assim, para os moradores apostarem no protagonismo da organização da associação
de moradores na gestão do território, é preciso que vejam suas necessidades básicas resolvidas e essas suas aspirações tam-
bém refletidas no trabalho coletivo.

O Conselho Deliberativo
O conselho deliberativo é o fórum de tomada de decisão que reúne órgãos governamentais, entidades da sociedade civil
e representantes comunitários. Conforme o Decreto Presidencial n° 4.340/2003, é competência do CD decidir e acompanhar os
diferentes aspectos da gestão da unidade, como o processo de elaboração do plano de manejo, a autorização de empreendi-
mentos e atividades potencialmente poluidores, a gestão financeira do órgão executor e a relação com a população do interior e
entorno da unidade.
Atualmente, o conselho da RRX, criado em 2010 e renovado em 2013, é formado por oito cadeiras de representações
comunitárias, três cadeiras de entidades da sociedade civil e cinco cadeiras de representações governamentais, totalizando 16
membros. No caso desse conselho, as reuniões ordinárias devem ocorrer duas vezes ao ano, segundo seu regimento interno.
Desde 2012, o ICMBio tem buscado construir o seu planejamento anual com base no Plano de Ação elaborado no con-
selho, na tentativa de aproximar a realidade da gestão do órgão às demandas discutidas e apresentadas nesse fórum. Contudo,
a atuação do conselho ainda tem se restringido aos momentos de reunião que, pela quantidade realizada e prevista no seu
regimento, tem possibilitado pouco tempo de discussão sobre a diversidade de temas que envolvem a gestão da Unidade. As
autorizações de pesquisa e o monitoramento de projetos, por exemplo, são dois assuntos sobre os quais os moradores têm
demandado mais discussão, mas que não conseguem ser totalmente tratados no espaço do conselho, como seria preferível,
ficando, ao invés disso, em parte a cargo da gestão do ICMBio.
No funcionamento do conselho, é possível identificar ainda certa confusão sobre o papel das instituições e fóruns que
atuam na RESEX. Em reunião realizada em dezembro de 2014, foi claro, por exemplo, o desconforto dos conselheiros ao terem
que decidir sobre o tema da entrada de um novo morador na RESEX que já havia sido analisado pela assembleia geral da as-
sociação de moradores, mas que o Plano de Manejo da unidade indicava que deveria passar pela apreciação final desse fórum.
Após reunião restrita aos conselheiros comunitários, realizada por iniciativa dos mesmos, foi decidido que tal matéria voltaria à
assembleia e que a decisão dessa instância seria acatada pelo conselho.
É perceptível, ademais, uma tendência a delegar ao conselho a resolução de todos os conflitos existentes nesses territó-
rios. A ausência histórica do Estado na prestação dos serviços básicos contribui para que toda a demanda reprimida de acesso a
direitos seja direcionada em um primeiro momento às instituições que atuam no local e ao conselho. Contudo, como a resolução
de grande parte dos temas muitas vezes não é de competência das instituições presentes nas reuniões e como o atendimento
das demandas de acesso aos serviços estatais se dá de forma lenta, fica muitas vezes a sensação de que poucos dos problemas
levados ao conselho são realmente resolvidos. Analisando a ata da primeira reunião ordinária realizada, por exemplo, pode-se
verificar que das sete deliberações finais direcionadas aos diferentes órgãos competentes apenas a implementação das escolas
foi atendida e mesmo assim quatro anos depois desse encontro.
Gera-se, assim, um desgaste desse instrumento, sentido principalmente pelas lideranças comunitárias participantes
desse espaço. Todas as deliberações discutidas no conselho e que são levadas às famílias, mas que não são efetivadas, levam
à perda de credibilidade dos representantes. O desânimo decorrente é notado nos casos de desistência de conselheiros comu-
nitários. Em 2012, por exemplo, três representantes pediram desligamento por carta, alegando que o trabalho que realizavam
“não adiantava de nada”. Da mesma forma, em 2014, um conselheiro pediu demissão afirmando que “a nossa palavra não está
valendo mais”.
A criação do conselho inaugura também uma nova forma de resolução dos conflitos existentes no interior da própria
comunidade, que passa a conviver e, em alguns casos, tenta substituir os modos antigos de resolução. Os servidores do ICMBio

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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recebem, por exemplo, muitos casos de conflitos por áreas de uso entre os beiradeiros, o que antes dependia em geral do acordo
entre os envolvidos, como presente na fala de um morador entrevistado que reclamava sobre o uso de área de seus castanhais
por outros moradores: “Aí é como diz a história, hoje é pecado matar gente ruim, naquela época não era. Aí, hoje, depois que
o Governo criou a RESEX, agora todo mundo deita e rola por cima dos outros. Antigamente não, todo mundo respeitava todo
mundo”.
Parece, nesses casos, encontrarmos alguns elementos do processo civilizador analisado por Elias (1993) ao descrever as
mudanças da sociedade medieval para a moderna:

A interdependência mais estreita de todos os lados, a pressão mais forte vinda de todas as di-
reções, exigem e instilam um auto-controle mais uniforme, um superego mais estável e novas
formas de conduta entre as pessoas: os guerreiros tornam-se cortesãos (ELIAS, 1993, p. 224-225)

No caso dos moradores da RRX, podemos perceber que a maior presença do Estado passa a realizar uma pressão maior
sob as condutas e a imposição de determinadas formas de resolução dos problemas. Muitas dessas já estavam previstas em lei,
mas não eram adotadas tendo em vista o distanciamento das estruturas estatais de controle, e outras surgiram com a criação da
RESEX. Os moradores que antes tinham na unidade familiar o âmbito principal de tomada de decisão sobre a sua vida prática,
passam a se ver em fóruns de planejamento das ações da RESEX e também do território mais amplo das áreas protegidas da
região, com outros moradores e atores diversos, aumentando as suas redes de relações, o que também passa a exigir um modo
de conduta específico.
Ainda sobre o espaço do conselho, são notórias também as limitações intrínsecas ao modelo adotado. No âmbito federal,
o presidente do conselho é sempre um gestor do ICMBio, conforme normativa dessa Instituição (ICMBIO, 2010). O acúmulo
da função de servidor público, muitas vezes envolvido também na tarefa de fiscalização direta nas unidades, e de presidente de
um espaço que objetiva a participação cidadã, pode criar um constrangimento ético para o servidor, dividido entre a posição
institucional e do espaço coletivo, mas também certo acanhamento dos demais atores em colocar livremente suas posições, pela
autoridade imbuída na figura do servidor, conforme também identificado por Gohn (2004) no estudo dos conselhos municipais.
Além disso, muitos dos conflitos existentes em UC estão relacionados com a atuação do próprio órgão gestor, que também influ-
encia nas relações de poder endógenas dos grupos sociais locais, como citado anteriormente.
Ainda utilizando a análise de Gohn (2004), para o bom funcionamento dos conselhos gestores é apontada pela autora a
necessidade de um fluxo contínuo entre os representantes das comunidades participantes e suas bases, além de um reveza-
mento dessas lideranças. Contudo, tal tarefa torna-se limitada naqueles locais onde a formação política de base das comuni-
dades para atuação nos modelos atuais de participação social não ocorreu anteriormente e subsistem outras formas de decisão
coletiva, como é o caso da RRX.

Considerações Finais
Vimos assim, que existe um caminho histórico de luta e uma orientação legal que garante às comunidades tradicionais a
participação social na gestão do seu território. Contudo, pela experiência da RRX, vimos também que, na prática, ainda existem
diversos obstáculos para tornar essa participação efetiva, a começar pelas limitações dos próprios instrumentos disponíveis.
A história dos moradores dessa unidade mostra como a empresa seringalista influencia a conformação da ocupação do
território e a organização social do grupo até os dias de hoje. Esse contexto, conjugado com a ausência histórica do Estado na
oferta de serviços básicos de saúde e educação – dentre outros – marcou a organização política do grupo e o próprio processo
de criação da RESEX.
A figura do conselho e da associação de moradores surge nesse contexto como algo estranho à organização sociopolítica
dos moradores. A associação foi criada por requisito do Estado para reconhecimento de uma representação daquela coletivi-
dade, sem envolver uma demanda das famílias por instrumentalizar uma organização política já existente. Da mesma forma, o
conselho foi imposto pela legislação vigente como um dos instrumentos de gestão do território para implementação da RESEX.
Surge, assim, nesse processo, por imposição do Estado, uma nova territorialidade beiradeira e, no seu bojo, novas for-
mas de lidar com os conflitos presentes. Para além do espaço político preexistente das colocações, certas decisões serão discu-
tidas em espaços mais amplos, envolvendo os moradores de toda a RESEX. Da mesma forma, surgem novas formas de decidir

05: Sistemas de Gestão e Governança


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sobre certos conflitos existentes, o que se dará por vezes nos chamados espaços de reunião. Por fim, na análise das relações de
poder construídas viu-se que a posição de autoridade assumida pelo órgão gestor pode dificultar a prática democrática tanto no
espaço da associação como do conselho.
Conforme Guerrero, Torres & Camargo (2011), um primeiro passo necessário para possibilitar uma participação social
realmente efetiva, do ponto de vista das instâncias que se colocam a frente dos processos de implementação dos instrumentos
de gestão, é conhecer profundamente o grupo social beneficiário da Unidade e suas dinâmicas. Como um seguinte passo, iden-
tificamos a necessidade de construção de processos de troca de conhecimentos e formação de novas habilidades que coloquem
os atores participantes dos espaços públicos de gestão em relações mais isonômicas. Conforme Gohn, “informação, conhe-
cimento e ação são condições para o exercício do poder” (GOHN, 2004, p. 51). Trata-se não apenas de melhor compreender
esses espaços, mas também de possibilitar a reflexão junto às comunidades sobre os mesmos, superando os modelos postos,
pensando e adaptando a política pública à realidade local.
Para a realidade da RRX, seguir esses passos primeiros poderia ter evitado o que muitas vezes transmitiu uma sensação
de instigar conflitos ou de procurar consertar algo que não está encaixando bem. Contudo, ainda não resolveríamos o fato de o
órgão gestor ser instado pela legislação vigente a implementar os instrumentos de gestão do território previstos que, ao serem
usados em um grupo de 57 famílias, significa praticamente normatizar sobre as relações pessoais entre elas.
Assim, o presente estudo de caso leva a refletir também sobre a pertinência da imposição de um modelo único de gestão
de RESEX. Considerando as especificidades socioculturais das comunidades tradicionais, reconhecidas e protegidas por lei,
parece-nos que os instrumentos de gestão dos territórios há décadas protegidos por esses grupos, deveriam ser mais flexíveis
para serem implementados em realidades tão diversas. Vislumbra-se, assim, a necessidade de pensarmos a construção de alter-
nativas locais de gestão mais condizentes com a complexidade das características e formas de organização dos grupos sociais
que esses instrumentos visam proteger.
Não se trata aqui de considerar que a relação dos moradores com o seu território nunca tenha sido modificada por de-
cisões do Estado. Trata-se, contudo, de reconhecer como as ações de implementação da unidade, que visam o fortalecimento
de uma gestão participativa têm interferido na organização sociopolítica interna do grupo, que muitas vezes não tem tido outra
escolha a não ser “participar” desses novos espaços impostos.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


713
CÂMARAS TÉCNICAS DE PESCA COMO INSTRUMENTOS DE GESTÃO
PESQUEIRA EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO MARINHO-COSTEIRAS:
O CASO DO LITORAL DO PARANÁ

Destéfani, Homero Luiz¹; Luiz Francisco, Faraco, Ditzel² & Medeiros, Rodrigo Pereira³

1. Universidade Federal de Santa Catarina, h.destefani@gmail.com 2. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade/
Estação Ecológica de Guaraqueçaba, luiz.faraco@icmbio.gov.br 3. Núcleo de Ensino em Sistemas Pesqueiros e Áreas Marinhas
Protegidas/ Centro de Estudos do Mar/ Universidade Federal do Paraná, verdesfilmes@gmail.com

Resumo
As unidades de conservação marinho-costeiras têm se revelado como espaço importante para a gestão pesqueira e representam
uma alternativa ao ineficiente modelo de gestão desse setor. Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivos: identificar
as relações sociais entre os atores durante um período de atividades da Câmara Técnica de Pesca (CTP) compartilhada pelos
conselhos das unidades de conservação federais do litoral norte do Paraná, e identificar, nesse espaço de discussão, as pos-
sibilidades e obstáculos para a promoção da gestão participativa. Foram aplicados questionários com os atores para identificar
como era o cenário da CTP e como eram as relações sociais entre eles. Os pontos positivos e negativos identificados nesse
estudo podem contribuir para que os instrumentos gerados pelas unidades de conservação possam ser mais eficientes e auxiliar
na gestão pesqueira no litoral paranaense.

Palavras-chave: Pesca, Gestão Participativa, Paraná, Unidades de Conservação, Guaraqueçaba

Introdução
As áreas marinhas protegidas, além do seu papel na promoção da conservação da biodiversidade, têm se revelado como
espaços importantes para a gestão pesqueira (ANGULO-VALDES; HATCHER, 2010). Desta forma, ampliam-se os objetivos de
gestão, incluindo a manutenção e proteção dos modos de vida dos usuários dos recursos pesqueiros, e outras dimensões huma-
nas (CHARLES; WILSON, 2009).
No Brasil, as áreas marinhas protegidas, devido a sua importância para a gestão pesqueira, representam uma alternativa
ao ineficiente modelo de gestão pesqueira no país (SEIXAS; KALIKOSKI, 2009). Essa situação permanece, apesar de um novo
modelo onde a participação tem sido melhor definida, porém, com limitações quanto à sua aplicação (MEDEIROS et al., 2013).
O presente trabalho explora as perspectivas de promoção da gestão pesqueira em áreas marinhas protegidas. Parte-se
da experiência da Câmara Técnica de Pesca (CTP) criada no âmbito de três unidades de conservação federais do litoral do
Paraná. Na análise, buscou-se identificar as relações sociais entre os atores durante um período (2004 a 2011) de atividades da
Câmara Técnica de Pesca e identificar as possibilidades e obstáculos para a promoção da gestão participativa nesse espaço de
discussão.
O artigo está organizado em seis seções. Após a introdução, a segunda seção desenha a problemática e o contexto do
estudo de caso. A terceira seção trata da área de estudo e da metodologia aplicada para desenvolver o trabalho. A quarta seção
contém os resultados, a quinta apresenta a discussão e, por fim, a sexta apresenta as considerações finais.

Contexto da Análise
Pesca artesanal e modelos de gestão participativa
Da mesma forma que em diversas regiões do mundo, no Brasil, a pesca artesanal tem um papel importante em termos de
produção, correspondendo a 53% da produção marinha e estuarina (entre 2000 e 2003) (REVIZEE, 2006). Na região Sudeste-Sul,
a participação do setor artesanal na produção pesqueira é considerada reduzida em termos do total de pescados desembarca-
dos. No entanto, o número de pessoas envolvidas é significativo, destacando a importância social da pesca artesanal. No estado
do Paraná, a pesca artesanal possui maior importância relativa (BORGES et al., 2006). A pesca de pequena escala tem sido parte
importante das atividades econômicas da zona costeira do Paraná há mais de dois séculos (MIGUEL, 1997). As populações

05: Sistemas de Gestão e Governança


715
presentes no Complexo Estuarino de Paranaguá (CEP) viviam com o uso dos recursos naturais (pesca, caça, pequena agricul-
tura e coleta de recursos florestais) ou dedicando-se aos empregos gerados pela urbanização. Há aproximadamente 60 vilas
de pescadores, rurais ou urbanas, no entorno do CEP. Entre as décadas de 1930 e 1960 ocorreu a maior parte da migração de
agricultores do interior para a zona costeira, para se tornarem pescadores artesanais (ANDRIGUETTO FILHO, 2002; 1999).
Críticas provenientes do setor produtivo (artesanal e industrial) à gestão pesqueira incluem a ineficiência administrativa e
a desorganização política (MARTINS, 2012). O quadro institucional da pesca no período entre 1962-2012 envolveu quatro ciclos
institucionais, com poucas oportunidades de experimentação de estratégias alternativas de gestão pesqueira e, por conseguinte,
com baixo aprendizado institucional (SILVA et al., 2013). Evidencia também um modelo que possuiu poucos avanços conceituais
e metodológicos. Apesar das mudanças propostas na nova lei em vigor, que cria o sistema de gestão compartilhada de gestão
dos recursos pesqueiros (BRASIL, 2009), os instrumentos de ordenamento necessitam de reavaliação e de adequação diante da
realidade atual (MEDEIROS et al., 2013).
Também observam-se limitações em termos da contribuição científica a novas perspectivas de gestão. A gestão con-
vencional do meio ambiente e dos recursos naturais vem sendo amplamente criticada (HOLLING, 1995) e, no caso da pesca
artesanal, as pesquisas relacionadas à esses temas não trataram de forma adequada a dimensão socioeconômica dos pescado-
res, as questões de subsistência, a gestão integrada dos recursos costeiros e o potencial de abordagens participativas. Faz-se
necessário explorar alternativas para aprender com as lições das diversas experiências que estão sendo realizadas (BERKES,
2003). Os modelos alternativos (descentralizadores) de gestão dos recursos naturais podem proporcionar uma mudança na
gestão da pesca artesanal, especialmente em países em desenvolvimento (SERAFINI, 2012). No Brasil, são utilizados vários ter-
mos para descrever diferentes arranjos de gestão participativa, entre eles: gestão compartilhada, cogestão, manejo comunitário,
manejo participativo, manejo local, comanejo, e cogerenciamento. Eles diferem em suas definições, porém, todos passam a
noção de que os usuários dos recursos possuem envolvimento nos processos de gestão (SEIXAS; KALIKOSKI, 2009).
A gestão de diversos tipos de pescarias, de florestas, fauna, áreas protegidas e outros recursos requer a ação conjunta
de várias partes. O conceito de governança remete à ideia de incluir, além do governo, as parcerias com a sociedade civil. O
compartilhamento de responsabilidades entre o governo e os usuários dos recursos naturais locais, formando parcerias, pode
ser entendido como cogestão (BERKES, 2009). Esse autor trata, ainda, da evolução do conceito de cogestão apontando alguns
pontos importantes, como: importância da atuação de organizações ponte, papel das lideranças comunitárias, geração de con-
hecimento, aprendizagem social e a emergência da cogestão adaptativa (adaptive co-management).
A cogestão adaptativa (CGA) é uma abordagem que trata de pontos importantes, que contribuem para melhorar a gestão
da pesca artesanal, como: a construção do conhecimento (diferentes formas de conhecimento interagindo e evoluindo); prati-
car e aprender fazendo (destaque para o papel das lideranças); construção, manutenção ou fim de instituições; capital social e
confiança; empoderamento; sistemas de gestão transescalares; e tratar das perturbações externas (colaboração e adaptação)
(FOLKE et al., 2005; BERKES, 2009). Segundo Armitage et al. (2007) o termo cogestão adaptativa é a soma da característica
abrangente de cogestão, sobre compartilhamento de responsabilidade entre atores, com a dinâmica de aprendizagem e adapta-
ção (mais conhecida como “learning-by-doing”, ou, “aprender fazendo”) no decorrer dos processos de gestão.
Plummer et al. (2012) apresentam fatos que apontam o sucesso da CGA como: participação e envolvimento de atores
sociais relevantes; resolução de conflitos; e melhora no estado (saúde) do recurso. Já entre os que apontam o fracasso estão:
incapacidade de alcançar o uso sustentável do recurso ou a resiliência sócio-ecológica; e a falta de facilitação do pluralismo e
das ligações, entre outros. Dentre os fatores que contribuem para o sucesso da CGA estão: redes sociais; aprendizagem; par-
ticipação de todos os atores relevantes; e a geração, uso e compartilhamento de informação e conhecimento. Por fim, entre os
fatores que contribuem para o fracasso estão: conflitos de interesses e assimetria de poderes entre os envolvidos; falta de recur-
sos (financeiros, humanos, técnico); e deficiências/inconsistências na comunicação, linguagem, conhecimento.

Unidades de conservação e os espaços de discussão entre atores sociais relacionados


à pesca artesanal no litoral norte do Paraná
A pesca acaba afetando não apenas os recursos pesqueiros, mas também a biodiversidade marinha em geral (PAULY et
al., 1998). Tendo consciência disso, é importante que se desenvolvam ações e políticas que almejem conjuntamente a conserva-
ção dos recursos pesqueiros e da biodiversidade marinha como um todo. Entre essas políticas, está a criação de áreas protegi-

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das. O governo brasileiro protege as áreas naturais por meio de Unidades de Conservação (MMA, 2013). No caso de UC fe-
derais, o responsável pela administração dessas áreas é o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Algumas dessas áreas tendem a excluir ou limitar o acesso de pescadores aos territórios de pesca e aos recursos, trazen-
do benefícios do ponto de vista biológico e ecossistêmico, porém, com prejuízos sociais e econômicos para as populações cujos
modos de vida dependem diretamente destes recursos. Na zona costeira, é comum observar casos em que as áreas protegidas
se sobrepõem às áreas utilizadas por comunidades locais. Isso pode contribuir para aumentar os conflitos entre os atores sociais
de uma região ou servir como um instrumento para a gestão pesqueira (FARACO, 2012), dependendo da abordagem feita pelos
gestores das UC, do esclarecimento e cumprimento dos objetivos, das ações a serem executadas e da dinâmica de participação
dos atores envolvidos nas tomadas de decisão, principalmente dos usuários dos recursos pesqueiros.
No litoral norte do Paraná, há certa carência de informações técnico-científicas no âmbito dos recursos pesqueiros, dos
serviços ecossistêmicos, da gestão pesqueira e do perfil dos pescadores. Isso demonstra que para o setor artesanal, as políticas
públicas e os planos de gestão não possuem subsídios suficientes para comprovar que elas estão considerando/representando
as peculiaridades do local e trazendo bons resultados, tanto na parte biológica quanto na socioeconômica. A respeito das normas
sobre a pesca, os pescadores do litoral norte do Paraná sofrem com diferentes restrições que são geradas por órgãos ambientais
e de gestão pesqueira de diferentes níveis (municipal, estadual e federal), sendo que o conhecimento tradicional dos pescadores
sobre as pescarias foi pouco ou nada considerado para a criação das regras. Entre os conflitos relacionados à pesca artesanal na
região do CEP, estão: a competição com a pesca industrial; a criação de áreas protegidas onde populações utilizavam tradicio-
nalmente os recursos naturais; a baixa representatividade das lideranças comunitárias; a falta de empoderamento dos pescado-
res artesanais; a baixa consideração do conhecimento tradicional local; e uma participação baixa e pouco efetiva dos usuários
dos recursos nas tomadas de decisão.
As Baías de Laranjeiras e Pinheiros, as principais do município de Guaraqueçaba, compreendem extensa região es-
tuarina de grande importância para a preservação ambiental. São marcadas pelas UC federais – Área de Proteção Ambien-
tal de Guaraqueçaba (APA de Guaraqueçaba), Parque Nacional do Superagüi (PARNA do Superagüi), Estação Ecológica de
Guaraqueçaba (ESEC de Guaraqueçaba) com diferenciados níveis de restrição ao uso. Também existem na região Reservas
Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) e não há UC estaduais e/ou municipais. A ESEC de Guaraqueçaba e o PARNA de
Superagui, por definição, não permitem práticas extrativistas, porém, a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC) e as convenções internacionais em que o Brasil é signatário garantem às comunidades tradicionais o direito de re-
produção de seu modo de vida e acesso ao território. A oposição entre a proibição legal do uso direto de recursos e a apropriação
destes ambientes por parte dos pescadores para se reproduzirem social e economicamente, acarreta em uma série de situações
conflituosas, principalmente pelas restrições impostas pelos órgãos ambientais gestores e fiscalizadores (SILVA, 2014).
As unidades de conservação possuem conselhos que servem como uma ferramenta de relacionamento entre o órgão
gestor e a sociedade. São formados por órgãos públicos, organizações da sociedade civil e populações tradicionais, quando
houver. O conselho pode ser consultivo ou deliberativo. Nesse contexto, nos conselhos consultivos, o governo consulta, define
as normas e informa suas decisões, já nos conselhos deliberativos, o governo age como facilitador da discussão e possui direito
de voto, sendo a maior parte formada por membros de comunidades, tendo estes maior poder de decisão. As UC federais do
CEP (APA de Guaraqueçaba, ESEC de Guaraqueçaba e PARNA de Superagui) possuem conselhos consultivos como espaço
de gestão participativa.
Como estrutura de apoio à gestão pesqueira integrada nestes conselhos, foi criada a Câmara Técnica de Pesca, em 2004.
Reuniões anuais foram realizadas até 2009, quando a Câmara Técnica ficou inativa apesar de tentativas de sua reativação. Entre
essas tentativas está uma reunião em 2011. O principal objetivo era contribuir com o ordenamento pesqueiro, buscando soluções
para os conflitos mais relevantes envolvendo essa atividade na região do CEP. Dentre os diferentes atores sociais envolvidos na
gestão dos recursos pesqueiros da região estão: órgãos gestores de unidades de conservação, órgãos de fiscalização, órgãos
federais e estaduais do meio ambiente, universidades, organizações não- governamentais (ONGs) e pescadores.
A crise na gestão convencional dos recursos naturais demonstra que há necessidade da construção de modelos alterna-
tivos de gestão. Os conselhos e a CTP podem ser espaços de desenvolvimento desses modelos (nesse caso, a cogestão adap-
tativa). Ao analisar a CTP, esse estudo tem como objetivo geral trazer informações que possam contribuir com o ordenamento
pesqueiro e servir como subsídios à gestão das UC e da pesca, buscando contribuir para a melhoria da situação dos pescadores

05: Sistemas de Gestão e Governança


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artesanais da região do CEP e dos espaços de discussão sobre a gestão pesqueira, e para o fortalecimento da relação entre
pesquisadores, pescadores e gestores.

Materiais e Métodos
Área de estudo
No ano de 1982, a partir do Decreto nº 87.222, foi criada a Estação Ecológica de Guaraqueçaba, posteriormente ampliada
pelo Decreto Federal 93.053 de 1986, com uma área de aproximadamente 4.470 hectares, composta basicamente por man-
guezais no entorno das baías de Laranjeiras e Pinheiros e por algumas ilhas no estuário (MMA, 2013). Em 1985, foi criada a APA
de Guaraqueçaba, pelo Decreto nº 90.883. No ano de 1989 foi criado o Parque Nacional de Superagui, através do Decreto Federal
nº 97.688. O Parque foi ampliado em 1997, passando a ter 33.988 ha. Com a ampliação, outras comunidades foram incluídas
dentro dos limites do Parque. Além da Colônia de Superagui, também se encontram atualmente dentro do PARNA de Superagui,
as comunidades de Barbados, Canudal, Vila Fátima, Ararapira, Barra do Ararapira, Rio dos Patos e Abacateiro, como também
famílias isoladas da Praia Deserta (Figura 1).

Figura 1. Mapa da região do Complexo Estuarino de Paranaguá, com os limites das seguintes unidades de conservação: Parque Nacional do
Superagui, Estação Ecológica de Guaraqueçaba e Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba. Fonte: Mapa criado pelo Núcleo de Ensino
em Sistemas Pesqueiros e Áreas Marinhas Protegidas, do Centro de Estudos do Mar, da Universidade Federal do Paraná (2014).

Em relação aos conselhos das UC, o da APA de Guaraqueçaba foi criado em abril de 2002, pela Portaria n° 65/2002; o da
ESEC de Guaraqueçaba foi criado em janeiro de 2012, pela Portaria nº 3/12; e o do PARNA do Superagui foi criado em junho de
2006, pela Portaria nº 45/2006.
Segundo Correa (1987) a Baía de Paranaguá possui cerca de 66 espécies de peixes com importância comercial. Esse
autor lista algumas dessas espécies: tainha (Mugil liza), bagre marítimo (Netuma barba), pampos (Trachinotus carolinus e T.
falcatus), pescadas (Cynoscion leiarchus e C. acoupa), corvina (Micropogonias furnieri), bagre (Cathorops spixii e
Sciadeichthyes luniscutus), robalo (Centropomus parallelus), betara (Menticirrhus americanus) e os paratis (Mugil curema
e M. gaimardianus). No caso do camarão as espécies capturadas são: camarão sete-barbas (Xiphopenaeus kroyeri), branco
(Penaeus schmitti) e o rosa (P. paulensis e P. brasiliensis).
Dados do Ministério da Pesca e Aquicultura apontam um total de 10345 pescadores profissionais no Paraná. Em
Guaraqueçaba, estima-se que o número de pescadores registrados é de 1.096. Segundo esse mesmo cadastro, o município teria
572 embarcações de pesca, sendo 380 canoas a remo, 140 canoas a motor, 50 bateiras e 2 barcos (MPA, 2012; ANDRIGUETTO,

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et al., 2006, apud, FARACO, 2012). Faraco (2012) fez uma classificação de nove vilas de pescadores presentes na região do CEP:
Vila das Peças e Ilha Rasa são vilas grandes (com mais de 50 famílias); Barra do Ararapira, Guapicum, Poruquara, Tromomô e
Massarapuã são vilas médias (entre 10 e 50 famílias); e Canudal e Engenho Velho são vilas pequenas (menos de 10 famílias).
Silva (2014) aponta que em média, a população das comunidades de dentro das baías depende mais da pesca do que aquelas
situadas em mar aberto.

Metodologia
Entre as variáveis apontadas por Plummer et al. (2012) como relevantes para análise da cogestão adaptativa, foram avali-
adas nesse estudo: os conflitos entre atores, a aprendizagem, as redes sociais, a interação entre os atores, e as relações de con-
fiança. Foram escolhidas essas variáveis devido à intenção de conhecer como eram as atividades da CTP e como elas poderiam
ser melhoradas para o futuro, isto é, buscar compreender como eram as relações entre os atores sociais e quais foram os resul-
tados dessa interação para que se possa aprender com o que foi feito e como melhorar esse espaço de discussão. Assim, com
essa análise é possível levantar pontos que possam melhorar a participação dos atores nas arenas de discussão, melhorar esses
espaços de discussão e demonstrar a importância da interação e da união entre os atores para se planejar e executar ações.
Para identificar as relações entre os atores sociais envolvidos e, também, compreender como era o cenário das reuniões
da CTP, entre 2004 e 2011, e como essas poderiam ser retomadas/melhoradas no futuro, foi feito um questionário com intenção
de avaliar as variáveis citadas no parágrafo anterior, que tratam de aspectos relacionados à CGA, e de propiciar informações fun-
damentais para uma reativação eficaz da CTP. Foram aplicados 11 questionários, sendo 2 presenciais, feitos no mês de maio de
2014, com os presidentes das Colônias de Pescadores, e 9 virtuais, enviados por e-mail aos representantes ou ex-representantes
de organizações que atuavam ou ainda atuam na gestão pesqueira no CEP, sendo: ICMBio (1), Instituto Ambiental do Paraná
(IAP) (1), Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) (1), Universidade Federal do Paraná (UFPR)
(1), Instituto Federal do Paraná (IFPR) (1), Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPE) (2) e Mater Natura (2). Esses foram enviados e
retornaram respondidos durante o mês de julho. A dificuldade de encontrar os representantes e ex-representantes que participa-
ram da CTP devido ao período de aproximadamente três anos de inatividade motivou o questionário virtual.
As conversas presenciais com os pescadores foram importantes para demonstrar a intenção dos estudos e deixar claro
qual era a proposta do trabalho, buscando uma melhor relação de confiança entre os pescadores e o pesquisador. As entrevistas
presenciais foram realizadas na sede das Colônias de Pescadores em Guaraqueçaba e Matinhos. Foi utilizado um computador
para anotar/salvar as respostas de todos os entrevistados. Antes das entrevistas, que foram agendadas por telefone, foi explicado
para os entrevistados os objetivos do trabalho, a forma de abordagem que iria ser realizada e como os dados seriam trabalhados.
Obteve-se assim um consentimento verbal dos entrevistados para contribuir com a pesquisa.

Resultados
As respostas dos entrevistados foram agrupadas em diferentes tópicos e dentro desses é possível observar relações com
as variáveis estudadas, isto é, os dados obtidos contribuíram para melhorar o conhecimento sobre a Câmara Técnica de Pesca
e para identificar possibilidades e obstáculos para a construção da cogestão adaptativa. Entre os aspectos relevantes ocorridos
nas reuniões da CTP, os entrevistados apontaram: que a CTP era uma arena importante para colocar os problemas em debate e
um espaço que os pescadores tinham para se manifestar, onde havia um diálogo entre órgãos gestores/organizações e os pes-
cadores. Também foram ressaltados a participação qualificada e representativa da CTP envolvendo diferentes atores sociais, e
o planejamento das ações da CTP. Além desses aspectos, outros pontos positivos foram: a troca de informações e aplicabilidade
de alguns dados gerados pelas instituições de pesquisa; preocupação com alternativas tecnológicas e ambientais para as ne-
cessidades dos caiçaras; especificidade e praticidade dos temas abordados na CTP; curso de capacitação para formação dos
conselhos da região; e o uso de pesquisas na área.
Já a respeito das deficiências/falhas da CTP, os entrevistados apontaram: a falta de consenso entre os pescadores para
propor estratégias de ordenamento, de aplicação das propostas em médio e longo prazo e de apoio financeiro e jurídico para re-
solução dos problemas levantados pela CTP; a dificuldade de mobilização e locomoção dos representantes locais; os problemas
na comunicação entre pescadores e técnicos; a descontinuidade de ações por falta de recurso pessoal e/ou financeiro; e pouca
agilidade nas ações, em trazer resultados rapidamente.

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Os entrevistados consideraram que as reuniões da CTP contribuíram para que melhorasse as relações entre os atores
envolvidos na pesca. Muitos destacaram o ICMBio e os pescadores como sendo as principais organizações em que o relaciona-
mento evoluiu ao longo do período de reuniões. No geral, houve uma melhora nas relações entre todos os atores (Ministério da
Pesca, IAP, ONGs, CEM/UFPR). Para continuar com as melhorias foram apontados alguns fatores como: aumentar a comunicação
e troca de informações; formar parcerias e trazer apoio; esclarecer o papel e responsabilidade dos atores; e unir os envolvidos.
Os atores ressaltaram, também, a importância da reativação da CTP por diferentes motivos (Quadro 1).

Quadro 1 – Fatores relevantes apontados pelos atores sociais para a reativação da Câmara Técnica de Pesca.

Fonte: O autor.

O quadro a seguir demonstra quais devem ser, segundo os entrevistados, os primeiros passos a serem dados pela CTP,
os principais temas a serem debatidos e os resultados esperados com a reativação, segundo os entrevistados (Quadro 2).

Quadro 2 – Os entrevistados apontaram os primeiros passos a serem dados e os principais temas a serem abordados ao
se reativar a Câmara Técnica de Pesca e os resultados esperados com a reativação da Câmara Técnica de Pesca.

Fonte: O autor.

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Discussão
Atualmente, ocorre uma descrença na gestão por parte dos pescadores artesanais. A participação do público é um
componente-chave para o desenvolvimento de processos de cogestão, e, portanto, deve ser um tema central na investigação
de cogestão. Existem diferentes razões para os pescadores não participarem das reuniões com o governo, entre elas estão: a
reputação ruim dos órgãos ambientais; a crença de que o governo prejudica o pescador; a falta de interesse e a preocupação dos
pescadores; os pescadores não gostam de reuniões; as reuniões são cansativas; a linguagem usada nas reuniões não é clara; e
há poucos resultados provenientes das reuniões (TRIMBLE, ARAUJO; SEIXAS, 2014).
Alguns pontos positivos sobre as reuniões da CTP foram destacados pelos entrevistados, como: elas criam um espaço
onde se pode debater os problemas, ocorrer um bom diálogo entre os atores, haver a manifestação dos pescadores, para buscar
soluções para os conflitos mais rapidamente, gerar estudos sobre as pescarias e trazer subsídios para ações sobre a pesca. Es-
ses pontos se enquadram, de certa forma, em fatores que podem ser encontrados em casos de sucesso da CGA ou servirem
para se construir esse arranjo de gestão, como: a participação dos atores relevantes, a resolução de conflitos, geração de co-
nhecimento, criação de redes sociais e desenvolvimento de habilidades para se comportar nas arenas de discussão (PLUMMER
et al., 2012).
Duas deficiências apontadas pelos entrevistados nas reuniões da CTP foram: a falta de consenso entre os pescadores e a
comunicação entre esses e os técnicos. Plummer et al. (2012) aponta que o conflito de interesses entre os envolvidos e as incon-
sistências na comunicação e informação são fatores que podem atrasar a consolidação da CGA. Essas deficiências somadas à
necessidade de esclarecimento de dúvidas sobre normas de pesca e responsabilidades dos atores demonstram a necessidade
de estratégias de mediação entre usuários (neste caso, pescadores artesanais), tomadores de decisão (gestores) e outros atores,
e de trazer informações para empoderar os pescadores. As organizações ponte tornam possível fazer os pescadores saírem da
simples condição de usuários, para tomadores de decisão. Normalmente, esse é o papel feito por pesquisadores, ONGs e outras
agências (DESTÉFANI et al., 2014). É importante a presença de organizações ponte, também, para melhorar a comunicação e
mediar os encontros entre os atores, pois em cenários com relações enfraquecidas e baixa representatividade essas organiza-
ções são capazes de esclarecer dúvidas, gerar/fortalecer as redes sociais e, teoricamente, demonstrar uma visão neutra dos
conflitos. Como esclarece Folke et al. (2005), as organizações ponte podem facilitar a união da ciência e do conhecimento local,
fornecendo uma arena para construção de confiança, aprendizagem, colaboração vertical e horizontal, e resolução de conflitos.
Berkes (2009) aponta a importância da atuação das organizações ponte como uma ferramenta na construção da cogestão.
Como visto, ocorreu uma melhora nas relações entre os atores quando existia a CTP. O ICMBio e os pescadores estavam
comparecendo em bom número nas reuniões da CTP e, além disso, contavam com parcerias com outros órgãos. Esses atores
trabalhavam em conjunto para se planejar e executar algumas ações. Se esse ambiente for retomado pode ser um espaço impor-
tante para construir processos de CGA. As redes sociais são importantes para que ocorra o estabelecimento de alianças entre os
atores e a resolução de problemas locais e regionais (SERAFINI, 2012). Esse autor afirma que a falta de interação entre usuários
de diferentes localidades para a resolução de problemas e conflitos contribui para a falta de confiança entre os pescadores. Tais
redes servem para compartilhar informações, conhecimentos e interesses envolvendo os atores sociais em múltiplos níveis.
Uma possibilidade para contribuir com a CGA associada às redes sociais é a construção de diálogo entre os usuários devido à
similaridade dos problemas que afetam os pescadores e o conhecimento local que eles possuem.

Conclusão
Em relação ao espaço de discussão criado pela CTP, foram observados fatores que contribuem para se alcançar a CGA.
Entre eles estão: a participação dos atores relevantes envolvidos; melhorias na discussão dos temas, na aprendizagem social e
na formação de redes sociais; desenvolvimento de habilidades desses atores; e a geração e uso do conhecimento. A assimetria
de poder entre os envolvidos, os conflitos de interesses, deficiências na comunicação, insuficiência de recursos, fracas redes
sociais e problemas nos processos de tomadas de decisão são alguns fatores que podem ser obstáculos para a consolidação da
CGA. Na situação atual do CEP, as UC acabam sendo obstáculos para as atividades das comunidades tradicionais. No entanto,
os conselhos e a CTP funcionam como ferramentas que as comunidades podem utilizar para aumentar sua participação nos
processos de gestão e buscar soluções para os conflitos. Apesar das dificuldades, as lideranças não podem perder a esperança
em conseguir bons resultados às suas comunidades e ao setor pesqueiro, pois elas são o principal elo entre os pescadores

05: Sistemas de Gestão e Governança


721
artesanais e outros órgãos. É importante haver representatividade nas arenas de discussão onde são tomadas as decisões sobre
o ordenamento pesqueiro para que assim os personagens principais estejam trabalhando juntos, respeitando uns aos outros e
buscando um objetivo em comum.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


723
DESAFIOS DA GESTÃO DE RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
NO ESTADO DE SÃO PAULO: QUATRO SITUAÇÕES NO MOSAICO DO
JACUPIRANGA – VALE DO RIBEIRA (SP)

Bim, O. J. B.1, Vieira, A.2, Portilho, W. G.3 & Campolim, M. B.4

1.Pesquisador do Instituto Florestal/SMA/SP, ocimarbim@ig.com.br 2.Gestor de UC/Fundação Florestal/SMA/SP, airton.botujuru@gmail.com


3.Gestor de UC/Fundação Florestal/SMA/SP, rdsqbt.rdsba@gmail.com 4.Pesquisador do Instituto Florestal/SMA/SP,
marcoscampolim@yahoo.com.br

Resumo
O presente trabalho parte de pesquisa realizada entre 2008 a 2014 no Mosaico de Unidades de Conservação (UC) do Jacupi-
ranga (SP) e é resultado do trabalho de pesquisa-ação vivenciado por seus autores, gestores e pesquisadores do Mosaico, e
pretende discutir o processo de gestão participativa desencadeado em quatro Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS)
do Mosaico, criado em 2008 na região do Vale do Ribeira, São Paulo. Como atividade principal de gestão das RDS Barreiro-
Anhemas, Lavras, Pinheirinhos e Quilombos da Barra do Turvo destaca-se o pleno funcionamento dos Conselhos Deliberativos
dessas Áreas Protegidas, cujos resultados contribuem para a conservação da biodiversidade, fortalecimento do processo de
gestão participativa e redução de conflitos socioambientais existentes nessas áreas.

Palavras-chave: Mosaico, Unidades de Conservação, Território; Comunidades Tradicionais e Conselhos.

Introdução
Desde 1958 e de forma mais intensa nas décadas de 1970 e 1980, os esforços preservacionistas levaram à criação de
Unidades de Conservação que impediram que uma grande quantidade de área florestal fosse derrubada de forma predatória
para a exploração econômica. No entanto, essa mesma política de proteção ambiental restringiu as comunidades locais ao uso
da terra e acesso aos recursos naturais, impedindo-as de exercer suas atividades agrícolas e extratoras, sem lhes proporcionar
alternativas de geração de renda ou mecanismos compensatórios. Tal ação afastou a população local do processo de preserva-
ção do meio ambiente, se colocando na contramão de diversas experiências cujo êxito na conservação ambiental dependeu da
cooperação das comunidades locais (MENDES Jr; NOGUEIRA, 2007, p.61).
Nesse contexto regional foi criado no ano de 1969 o Parque Estadual de Jacupiranga (PEJ) que ocupava mais da
metade da área do município de Barra do Turvo (73% do território) e se estendia ainda pelos municípios de Cajati, Eldorado,
Jacupiranga, Cananéia e Iporanga. Na região foco deste estudo – Barra do Turvo e Cajati - o PEJ abrigava mais de 1.800 famílias.
Estes municípios apresentam um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado de São Paulo, além de
integrarem o grupo de municípios onde se concentram os piores indicadores avaliados pelo Índice Paulista de Responsabilidade
Social (IPRS)1. Estas condições, associadas às restrições impostas pela existência de uma Unidade de Conservação de proteção
integral – o Parque Estadual de Jacupiranga – ajudaram a compor o cenário de pobreza e conflitos na região (BIM, 2012).
A área original de 139.418,3 ha do antigo Parque Estadual de Jacupiranga se converteu, numa proposta pactuada com
as comunidades, em um Mosaico de 234.000 ha, contendo três Parques (PE Caverna do Diabo - PECD, PE Rio Turvo – PERT e
PE Lagamar de Cananéia - PELC), cinco Reservas de Desenvolvimento Sustentável, quatro Áreas de Proteção Ambiental e duas
Reservas Extrativistas. Como resultado deste processo houve aumento em mais de 10 mil ha de área de proteção integral e a
criação de várias unidades de uso sustentável, que possibilitaram a permanência das populações tradicionais e camponesas no
local, de forma organizada, e o uso do território de acordo com o modo de vida tradicional.
A implantação de Mosaicos de Unidades de Conservação no Brasil é recente e está prevista na Lei Nº 9.885/07/2000 que
criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Geralmente o Mosaico é estabelecido junto a um conjunto pré-
existente de áreas protegidas. No entanto, a experiência vivenciada no Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga

1
O Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS) traz indicadores que sintetizam a situação de cada município do Estado no que diz respeito à riqueza, escolari-
dade e longevidade (FUNDAÇÃO SEADE).

05: Sistemas de Gestão e Governança


725
(MOJAC) no Estado de São Paulo contradiz essa lógica ao propor a implantação de um Mosaico a partir da fragmentação de
uma área protegida, o antigo Parque Estadual de Jacupiranga (PEJ).
A ideia de um Mosaico de Unidades de Conservação constrói processos de diálogo entre população e gestores, podendo
ser um instrumento que contribui para a conservação da biodiversidade e soluções de conflitos socioambientais.
A criação de várias Unidades de Conservação de Uso Sustentável no Mosaico do Jacupiranga possibilitou a permanência
das populações residentes no território – comunidades tradicionais, migrantes-pequenos agricultores - de forma organizada e
isentas da pressão que sentiam antes quando estavam ocupando um Parque “onde tudo é proibido”, criando uma multiterritoria-
lização que perpassa pela complexidade territorial proposta por Haesbaert (2004), em que as questões da relação sociedade e
natureza são intrinsecamente ligadas, podendo-se dizer que uma (sociedade) não existe sem a outra (natureza). A marca do ter-
ritório do Mosaico do Jacupiranga é esta relação sociedade e natureza: como as comunidades se apropriam e usam o território e
como o Estado tenta preservá-lo. Milton Santos (1996) afirma que sem os elementos sociedade e natureza não haveria território.
As Reservas de Desenvolvimento Sustentável do Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga foram criadas
pela Lei nº 12.810 de 21/02/2008, assim constituídas e amparadas como de Uso Sustentável pela Lei nº 9985 de 18/07/2000 (Siste-
ma Nacional de Unidades de Conservação - SNUC), requerendo gestão comum e participativa entre órgão gestor e moradores.
De acordo com o SNUC, as RDS têm como objetivo básico preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as
condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos
naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do
ambiente, desenvolvido por estas populações, requerendo gestão comum e participativa entre órgão gestor e moradores. De
acordo com o que dispõe o artigo 20 do SNUC, a RDS “é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência
baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às
condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversi-
dade biológica”.
As Reservas de Desenvolvimento Sustentável são de domínio público, com uso concedido às populações tradicionais
através de Contrato de Concessão de Direito Real de Uso, geridas por Conselhos Deliberativos, presididos pelo órgão respon-
sável por sua administração e constituídos por representantes de órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das
populações tradicionais residentes na área.

Material e Métodos
Área de estudo - Vale do Ribeira
O Vale do Ribeira (Figura 1) é uma das mais antigas regiões de colonização do País, tendo os primeiros núcleos de povo-
amento europeu chegado à região no século XVI. A região é cortada pelo Rio Ribeira de Iguape e forma um polígono irregular
localizado no Sudeste do Estado de São Paulo, com 1,7 milhões de ha entre o oceano Atlântico e a Serra do Mar e corresponde a
10% da área territorial do Estado de São Paulo. O clima é tropical úmido e com alta precipitação anual média (PETRONE, 1958),
fator este sempre lembrado quando se analisa fracassos da integração histórica da região nas políticas econômicas rurais do
estado de São Paulo.

Figura 1. Mosaico do Jacupiranga - Vale do Ribeira

A região possui o maior índice de cobertura vegetal natural do Estado, onde 1,2 milhões de hectares são de nítida voca-
ção florestal (LEPSCH, 1990). No Vale do Ribeira estão concentrados os mais importantes remanescentes de florestas em área
contínua dos ecossistemas da Mata Atlântica em suas várias formações florestais e não florestais, cuja importância para proteção

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
726
é reconhecida mundialmente. As Matas Atlânticas abrangem tipologias que variam desde a floresta tropical de altitude
aos manguezais e restingas. Esse contínuo de vegetação assim como várias áreas adjacentes, apresenta grande diversidade es-
trutural, ou seja, grande diversidade e zonação de ambientes e, consequentemente alto nível de biodiversidade, incluindo níveis
genéticos de espécies, de comunidades e ecossistemas, bem como a presença de espécies-chaves e endêmicas de fauna e
flora, que requerem todos os esforços para a sua conservação.
As RDS analisadas se concentram nos municípios de Barra do Turvo e Cajati (Figura 2).

Figura 2. Mapa do Mosaico Jacupiranga (Bim, 2012)

Breve Caracterização das Reservas de Desenvolvimento Sustentável do Mosaico


RDS Barreiro/Anhemas
Está localizada no município de Barra do Turvo e possui área de 3.175,07 hectares. É formada por gleba às margens do
Rio Turvo e próxima da sede do município. Toda inserida em terras públicas estaduais conta com uma população de 99 famílias,
predominantemente moradores tradicionais - caboclos, que habitam a região desde antes da criação do PEJ, representando 86%
da população. Os outros 14% são de pequenos agricultores vindos de Minas Gerais e do Paraná. Os usos são para a pecuária de
bovinos e bubalinos, de corte e de leite, agricultura de produção de alimentos e produção de grãos para comercialização, bem
como novas formas de utilização do solo, como o sistema agroflorestal. O relevo é ondulado, com solos de média fertilidade. A
cobertura florestal é a floresta ombrófila densa em vários estágios sucessionais em aproximadamente 25,8% da área (FF, 2010).
A recategorização da área para Reserva de Desenvolvimento Sustentável justificou-se por tratar-se de terras públicas e com
predominância de moradores tradicionais, apesar das práticas agrícolas serem pouco sustentáveis. Praticamente 74,2% da área
estavam desmatados, cobertos com pastagens e com problemas de erosão causados pelo manejo inadequado da pecuária.
Conta com um conselho gestor2 atuante composto por dezoito membros titulares, sendo dez representantes dos mora-
dores tradicionais, três representações de ONGs locais e cinco representantes de órgãos governamentais. Iniciou seus trabalhos
em janeiro de 2010 e já realizou 55 reuniões ordinárias, com a participação média de 20 pessoas entre conselheiros e moradores.
(RDS, FF, 2012).

2
Conselho Deliberativo formalizado pela Portaria FF nº 4 de 19 de janeiro de 2010 (Plano de utilização/FF, 2010)

05: Sistemas de Gestão e Governança


727
RDS dos Pinheirinhos
Localizada no município de Barra do Turvo com área de 1.531,09 hectares, é formada por três comunidades e está inteira-
mente inserida em terras públicas estaduais, porém não incorporadas ao patrimônio do Estado. Conta com uma população de 60
famílias, predominantemente moradores tradicionais de Barra do Turvo que habitam a região desde antes da criação do PEJ. Os
usos do solo são para a pecuária de corte e leite e agricultura de produção de alimentos. A cobertura florestal é de floresta om-
brófila densa em vários estágios sucessionais em aproximadamente 20% da área, sendo o relevo ondulado. Esta RDS é a que tem
a pior localização em termos de acesso e é praticamente desprovida de qualquer tipo de infraestrutura. As estradas de acesso
são precárias, serviços públicos também e o atendimento com energia elétrica ainda é parcial. A questão da recategorização
para RDS foi pouco contestada, porém, os moradores reivindicam a ampliação da área da RDS em mais de 554 ha (FF, 2010).
Conta com um conselho gestor deliberativo3 atuante, composto por quinze membros titulares, sendo nove representantes
dos moradores tradicionais, dois representantes de ONGs locais e quatro representantes de órgãos governamentais. Iniciou seus
trabalhos em janeiro de 2010 e já realizou 31 reuniões ordinárias, com a participação média de 18 pessoas entre conselheiros e
moradores (RDS, FF, 2012).

RDS Quilombos Barra do Turvo


Localizada no município de Barra do Turvo, com área de 5.826,46 ha e totalmente inserida em terras públicas, é ocupada
por quatro comunidades quilombolas – Cedro, Pedra Preta / Paraíso, Ribeirão Grande e Terra Seca, reunidas em três associações
e respectivos territórios, conta com população de 193 famílias, das quais 84,2% são remanescentes de quilombos, segundo laudo
antropológico do ITESP e dado confirmado em entrevistas. Os usos do solo são a agricultura para produção de alimentos através
do sistema de pousio e da agrofloresta, criação de pequenos animais e pecuária de corte e leite. A área tem cobertura florestal
de floresta ombrófila densa, em mais de 60,3% da área, com relevo ondulado (FF, 2010).
Conta com conselho gestor deliberativo4 composto por 20 representações, sendo 12 conselheiros das comunidades
quilombolas, 5 das instituições públicas e 3 das ONGs, e com 55 reuniões ordinárias realizadas até o momento com média de
participação de 25 pessoas por reunião, entre conselheiros e comunidades (RDS, FF, 2012).

RDS Lavras
Localizada no município de Cajati, possui 889,74 ha e é ocupada por apenas onze famílias de moradores tradicionais
de Cajati. A cobertura florestal de floresta ombrófila densa é de 81,1% da área nos diversos estágios de regeneração. O uso do
solo é de pastagem para pecuária de corte e leite, bananal e agrofloresta. A área desta RDS foi destinada a ocupantes do PERT
e PECD. Por meio de estudos de capacidade de suporte foram realocadas para a RDS nove famílias, oriundas dos Parques e
residir numa área onde as atividades de agricultura podem ser desenvolvidas de forma sustentável, com regras, geridas pelo
Estado e com um conselho que determina o que deve e pode ser feito. As famílias já foram aprovadas pelo conselho da unidade,
e pela Fundação Florestal para entrarem na área (FF, 2010).
O conselho gestor deliberativo5 é composto por dez membros, sendo seis representantes das comunidades tradicionais,
dois representantes dos órgãos governamentais e dois representando as ONGs locais. Já realizou 35 reuniões com uma média
de participação de 12 pessoas por reunião, entre conselheiros e comunidade (RDS, FF, 2012).

Referencial Teórico
Como referencial teórico desta pesquisa, utilizamos a categoria de território e territorialização, pois tratamos da espaciali-
dade humana, da interação sociedade-natureza e das relações de poder que envolveram e ainda envolvem a criação e implanta-
ção das Reservas de Desenvolvimento Sustentável do Mosaico do Jacupiranga.
Para Milton Santos, na definição de território deve ser considerada “a interdependência e a inseparabilidade entre a ma-
terialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política” (SANTOS, 2000, p. 247).
Santos (2000) propõem que o território usado “é tanto o resultado do processo histórico quanto a base material e social das novas

3
Conselho Deliberativo - Portaria FF nº 06 de 19 de janeiro de 2010.
4
Conselho Deliberativo - Portaria FF nº 005/2010 (FF, 2010).
5
Conselho Deliberativo - Portaria FF nº 013/2010 (FF, 2010).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
728
ações humanas. Isso nos permite uma consideração abrangente da totalidade das causas e dos efeitos do processo socioterrito-
rial”. Todo o processo de formação do território do antigo Parque Estadual de Jacupiranga foi marcado pela interdependência
entre natureza e seu uso. Para Milton Santos (2000), (...) por território entende-se geralmente a extensão apropriada e usada.
Mas o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de pertencer aquilo que nos pertence....Esse sentimento de exclusivi-
dade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde a existência do Estado.
A criação do MOJAC ocorreu por meio da transformação de uma área pré-estabelecida pelo Estado, portanto, um ter-
ritório político jurídico no meio de uma grande diversidade de perspectivas. Esse território passa por uma reterritorialização,
inicialmente determinado pelo Estado através da criação da reserva florestal, na década de 1940, e do Parque Estadual de
Jacupiranga (PEJ) em 1969. A criação do PEJ não levou em consideração a presença de populações em seu interior e tampouco
os usos tradicionais que essas populações faziam deste território. Vale ressaltar que o território, para seus ocupantes, já estava
estabelecido bem antes da implantação do Parque. Como consequência desta imposição, estabelece-se o conflito de uso. Como
afirma Diegues (1996, p. 158):

(...) Conflito se reporta também à ecologia política ou à política toutcourt, uma que o Estado impõe
espaços territoriais onde vivem populações tradicionais, outros espaços tidos como “modernos
e públicos”: o dos parques e reservas de onde, por lei, necessariamente devem ser expulsos os
moradores. Num primeiro momento, esses atores sociais são invisíveis, e os chamados “planos de
manejo dos parques” nem sequer mencionam a sua existência.

Mudar esta situação que caracteriza a criação das áreas protegidas no Brasil, de um território imposto (DIEGUES, 1996),
para um novo território de uso - com a criação de unidades de conservação de uso sustentável, em que o uso e a apropriação
do território se dão pelos ocupantes - mesmo que ainda sob a tutela do Estado que se dá por meio do domínio jurídico e pela
indicação do gestor da área - é o que se tem proposto com a criação do Mosaico do Jacupiranga.
A partir da criação do MOJAC, o território passa a ter novos desafios e novas oportunidades. A reterritorialização trouxe
as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), lugares-territórios onde as atividades de sobrevivência estão intimamente
ligadas ao uso da terra, propiciando o fortalecimento do sentido de territorialidade e pertencimento e das práticas da agrofloresta
e da agroecologia. Além disso, o Mosaico possibilitou mais acesso às informações sobre gestão e mesmo de técnicas de manejo
de produção, estimulando debate visando melhoria da atividade agropecuária desenvolvida na área, e pela disponibilidade de
serviços públicos de infraestrutura, como a instalação da energia elétrica, a recuperação e manutenção das estradas rurais e a
execução de projetos de habitação.
Para analisar se este processo está sendo trilhado rumo a um círculo virtuoso, pelos caminhos da apropriação material e
imaterial do território, e se está conseguindo estabelecer uma nova relação entre Estado-Sociedade-Natureza, diferente daquela
onde se sobressai o conflito socioambiental e que tem sido a marca das políticas preservacionistas no Brasil, o trabalho utilizou-se
também da análise de conteúdo, estudo de caso e pesquisa documental, além da categoria de território e de outros instrumentos.

Análise Documental de Atas dos Conselhos e outros documentos relativos às UC


Foi feita a leitura e análise das atas das reuniões dos conselhos das quatro RDS que integram a região da área de estudo.
Os assuntos foram classificados em temas e subtemas que poderiam fornecer aspectos que apontassem a compreensão sobre
o processo de criação e implantação dessas Reservas, as representações consensuais dos grupos de atores bem como suas
divergências, os posicionamentos e sentimentos em relação às Unidades de Conservação, à atuação do Estado, às necessidades
dos seus representados, à preocupação com o desenvolvimento das comunidades e à solução das situações enfrentadas pelos
ocupantes.
As reuniões contaram com a presença de representantes dos moradores, lideranças da sociedade civil e do Estado,
sendo constantes nestes encontros os debates sobre as mudanças do território, o acesso à terra e o uso do território. Nas atas das
reuniões há registro de falas relevantes para a compreensão de todo este processo, sendo fundamentais nesta pesquisa. Após a
leitura dos documentos, foi feita uma prospecção da fala dos participantes e, através do método de associação de palavras e de
temas, a análise temática do texto foi elaborada utilizando-se o método da contagem de um ou vários temas, subtemas ou itens
de significação (BARDIN, 1977).

05: Sistemas de Gestão e Governança


729
Resultados e Discussão
As quatro RDS contam com dois gestores nomeados pela Fundação Florestal, com os conselhos deliberativos formados e
realizando reuniões periódicas. Porém, a infraestrutura ainda não é satisfatória: falta transporte para os conselheiros participarem
das reuniões, os conselhos não contam com secretaria executiva, o que sobrecarrega o trabalho dos gestores.
No Brasil os grupos sociais excluídos “não tem presença nos processos decisórios porque não possuem os recur-
sos econômicos, sociais e cognitivos que permitiriam sua participação nas atividades que permeiam processos decisórios
em torno de questões ambientais” (JACOBI, 2005, p.118). Essa realidade tem sido superada nas RDS estudadas, pois, com
muito esforço dos gestores tem se efetivado a construção de prática democrática da gestão das UC, constituindo os conselhos
deliberativos no espaço consolidado de gestão participativa, valorizando as manifestações do coletivo e do protagonismo dos
representantes comunitários. Revela essa representação comunitária como de apropriação dessa importância do conselho e sua
dinâmica de administração do território de cada RDS. Essa rotina e procedimentos adotados pelos conselhos, enquanto presen-
ça de gestão territorial de fato, molda o espaço conselho gestor, como lugar de exercício de cidadania e de participação política
desses grupos antes excluídos. Para Silva (2007), “é através do conselho gestor que seja propiciada a participação organizada
e responsável da população que de alguma forma interage com a Unidade de Conservação”.
Nos conselhos os temas mais debatidos são as questões relacionadas à posse da terra e às regras de uso do território, e
que demandam maior tempo do funcionamento dos conselhos. No inicio dos trabalhos dos conselhos faltava uma melhor com-
preensão por parte das comunidades envolvidas sobre o processo de elaboração da lei que criou as unidades, sendo o assunto
ponto de pauta de várias reuniões.
Havia muitas dúvidas sobre o que significaria para as comunidades a criação de RDS, no lugar do antigo Parque. A pro-
posta de criação das Reservas de Desenvolvimento Sustentável do Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga surgiu
de cima para baixo, pela coordenação do grupo de trabalho do projeto de lei do Mosaico, em vez de ser proposta pela comuni-
dade, conforme preconizado pelo SNUC. Ao longo do processo isso foi muito criticado pelas comunidades.
Através do processo de gestão participativa, as comunidades conseguiram entender melhor a proposta e vêm se apro-
priando da gestão das RDS, sendo este processo uma marca positiva nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável de Lavras,
dos Pinheirinhos, do Barreiro-Anhemas e dos Quilombos de Barra do Turvo, onde seus conselhos funcionam desde 2009, com
reuniões frequentes, quase que mensais, com uma média de participação de 30 pessoas por reunião, sempre com quórum para
as suas deliberações. Essa participação vem contribuindo para o processo de formação e conhecimento dos direitos e deveres
dos comunitários e a importância que tem a conservação da área.

O processo de Gestão Participativa: avanços e dilemas - Período de março de 2010 a


dezembro de 2014 – Reuniões dos conselhos das RDS
A seguir são apresentadas as análises das atas das reuniões das quatro RDS do Mosaico do Jacupiranga: RDS de Lavras,
dos Pinheirinhos, do Barreiro-Anhemas e dos Quilombos de Barra do Turvo. Foram lidas 173 atas de reuniões e analisadas 70
atas, onde constavam na pauta assuntos relacionados à implantação das unidades. As reuniões contaram com a participação de
1.612 pessoas, entre conselheiros e presentes nas plenárias. A maioria dos conselhos é formada por representantes das comu-
nidades, dos representantes do Estado (Câmara, Prefeitura, Itesp, Fundação Florestal e Casa da Agricultura/CATI), com forte
representação local. Constata-se uma aliança entre os comunitários e os representantes dos órgãos governamentais, por haver
identificação com os problemas e anseios das comunidades.
Na análise do conteúdo das atas verificou-se que 26% dos assuntos tratados são relacionados à implantação e discussão
do Mosaico e das RDS, às ações e o papel do Estado; 18% à infraestrutura; 12% ao Plano de Utilização; 12% trataram das questões
ambientais gerais/projetos e 11% sobre autorizações de roças e manejo. Já o tema relativo ao próprio conselho somou 9% dos
assuntos, a questão fundiária 8% e os conflitos e ameaças 4%.
A crítica referente à criação de uma RDS em detrimento de uma APA ficou bastante evidenciada nas reuniões da RDS Bar-
reiro-Anhemas, aparecendo também na RDS dos Pinheirinhos, porém com menos intensidade. Diversos setores da comunidade
questionaram essa alternativa de Unidade de Conservação, em contraposição à argumentação do gestor, que apresentava os
benefícios de uma RDS. Esse debate se estendeu ao longo de praticamente todas as reuniões, chegando-se ao questionamento,
inclusive, de “que quem recentemente desmatou e destruiu a natureza, com a lei do Mosaico teve privilégios, pois nas APAs

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
730
pode tudo e na RDS há um conjunto de regras a seguir” (RDS, FF, 2012).
Ainda sobre o tema Mosaico/Papel do Estado, figuraram com certa intensidade nas discussões os subtemas relacionados
ao não cumprimento da lei, à omissão, lentidão e morosidade do Estado e à falta de implantação de políticas públicas. Dos as-
suntos discutidos, 18% referem-se ainda ao tema infraestrutura, com os subtemas energia elétrica, estradas, saneamento básico
e coleta de lixo dominando os debates e demonstrando a preocupação das comunidades e o desejo de que as políticas públicas
fossem implantadas imediatamente nas RDS. A lentidão na chegada da energia elétrica nas comunidades também teve muito
destaque entre os assuntos tratados.
O tema Plano de Utilização representou 12% dos assuntos debatidos. Por lidar com o cotidiano das RDS e ser um instru-
mento formal para a implantação destas UC, o Plano de Utilização mereceu destaque nas discussões, já que deveria ser discu-
tido e aprovado pelos Conselhos para que tivesse valor formal. As regras para as atividades econômicas e de uso dos territórios
suscitaram muitos debates entre os conselheiros, destacando-se a participação do gestor no processo para dirimir as dúvidas
sobre o documento.
Dos assuntos discutidos, 12% referem-se às questões ambientais gerais e aos projetos nas UC, destacando-se o ICMS
Ecológico, os projetos de recuperação ambiental e de geração de renda, a agrofloresta, criação de peixes, combate à poluição,
uso de agrotóxicos, animais mortos e ao uso do fogo, incentivo à prática dos mutirões, o que evidencia as preocupações e os
posicionamentos dos conselheiros.
O tema das autorizações de roças e manejo de espécies nativas aparece com 11% entre os assuntos tratados, com vários
subtemas relacionados na forma de pedidos das autorizações: construção de tanque, poda e corte de árvores, desmatamento
para agrofloresta, documentação para o Pronaf, roçada de pasto, agilização das vistorias, construção de casa, uso de madeira
nativa. Esse tema é característico em processo de implantação de uma RDS e a demora na concessão das autorizações também
foi alvo de muitas críticas, mesmo que tenham ocorrido várias autorizações delas durante o processo.
O papel do Conselho e seu funcionamento foi tema presente entre os assuntos discutidos (9%). Foram citados: o esforço
em se reunir mensalmente, a importância do conselho, os avanços, a participação social, a análise de seu funcionamento, a falta
de estrutura e autonomia do Conselho e a dicotomia entre o que é debatido na base (conselhos) e a falta de retorno das deman-
das por parte da Fundação Florestal (SMA/São Paulo). A questão fundiária aparece com 8% entre os assuntos tratados.

Considerações sobre a análise das Atas


A análise das atas possibilita considerar que houve e está havendo um processo rico de debates, com críticas, tomada de
posições e busca por encaminhamentos de soluções para as questões do cotidiano das UC. Os temas da implantação das Uni-
dades de Conservação e a efetiva implantação de políticas públicas foram a tônica das reuniões. Há o consenso de que o poder
público, caracterizado na região de estudo pela Fundação Florestal/SMA, as Prefeituras e o governo federal (no caso específico
do Programa Luz para Todos), não vem cumprindo o seu papel conforme esperado pelas comunidades envolvidas.
Através dos conselhos das RDS é construído espaço real e prático de participação. Analisando este processo, tendo
como base o conceito de escadas de participação (ARNSTEIN, 2002), é possível afirmar que a participação das comunidades
nos conselhos das RDS está ocorrendo em diferentes níveis, já que, além da informação gerada e editada, consultas públicas
foram realizadas e consensos, acordos e parcerias estão sendo buscados e/ou em construção.

Análise de documentos dos pedidos de autorizações para uso do Território


Para se aferir se o processo de gestão participativa tem contribuído para a gestão da área e com resultado prático,
procurou-se fazer uma análise dos mecanismos de pedidos para o uso do território e acordos construídos nos conselhos das UC.
Com esses instrumentos, foi analisado como estes se relacionam com o funcionamento do território, e como a gestão participa-
tiva das RDS contribui para redução dos conflitos socioambientais e uso do território.
A seguir quadro com os pedidos de uso do território, após a implantação dos conselhos das RDS no período de 2009 a 2012.

05: Sistemas de Gestão e Governança


731
Observa-se que 43% dos pedidos são relacionados à construção e reforma de moradia e 32% a limpeza, roçada de áreas
para a agricultura e pecuária. Desta forma, 75% dos requerimentos apresentados são relativos à atividade cotidiana de trabalho
e de sobrevivência dos moradores.
Abaixo a Figura 3 apresenta o tipo de autorizações emitidas no período, sendo 137 autorizações. Sendo 56 autorizações
em 2009, 23 em 2010 e 61 autorizações em 2011. (RDS, 2012).

Figura 3. Tipo de Autorizações e Porcentagem

Observa-se que a grande maioria das autorizações (68%) é voltada para atendimento à prática da agricultura e da pecuária,
solicitação de corte de vegetação para a implantação de roças e pedido para roçada de pasto para pecuária e produção de ali-
mentos. Em seguida estão os pedidos de construção (17%), atividades típicas do funcionamento dos sítios dos moradores.
Esse processo de construção de acordos contribuiu com a redução de um tipo de conflito que colocava o Estado e a
comunidade em constante disputa, pois antes da criação das RDS, quando o território pertencia a um Parque Estadual, e o uso
do território era proibido, e as praticas agrícolas eram coibidas através autuações, multa e processos judiciais.
Nos anos de 2012 a 2015, esse processo se manteve e apresenta resultados similares aos apresentados.

Conclusões
Pode-se afirmar que, nesse estudo de caso, a utilização de instrumentos de gestão ambiental e a construção dos acordos
nos conselhos das RDS contribuem para a redução dos conflitos na área e para imprimir a gestão participativa. O estabelecimento
de novos procedimentos metodológicos, jurídicos, econômicos ou sociais fortalece as práticas de gestão participativa do território,
e uma nova forma de administrar o seu uso. Nessa linha, a prática da gestão ambiental participativa vai se configurar como uma
importante forma para se estabelecer um relacionamento harmônico entre sociedade e meio ambiente (THEODORO et al., 2002).
O processo que se vivencia com o funcionamento dos Conselhos Deliberativos das RDS representa a prática da gestão
ambiental participativa, com a busca de caminhos para sobrepor os entraves da implantação do Mosaico e do uso do território.
Os conflitos e disputas por atividades essenciais aos moradores sempre foram vistos pelo poder público como grandes riscos à
conservação. E este mesmo processo de atuação dos conselhos contribuirá para esclarecer a sociedade e mesmo pactuar pelo
manejo tradicional em bases fortalecidas.
Colocar na balança os aspectos positivos da presença destas comunidades na região e os procedimentos de tolerância

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
732
– que ao final acabam garantindo uma menor pressão dos contraventores sobre a área - pode representar um ganho e não um
prejuízo para o estado de conservação das UC.
Do ponto de vista social, a paisagem com pequenos agricultores é melhor do que a paisagem homogênea das pastagens.
E do ponto de vista ambiental, possibilitam conectividade entre os fragmentos florestais existentes.
O funcionamento efetivo dos conselhos gestores é um dos principais instrumentos de implantação do Mosaico do Jacu-
piranga e da prática da gestão compartilhada das UC.
Constata-se como notório o esforço coletivo empreendido por gestores e as comunidades envolvidas de construir pontes
que possibilitem a concretização desse novo Território, onde se consiga garantir a conservação da área em concomitância com
a garantia de que as comunidades também possam viver e desenvolver as atividades produtivas locais de forma sustentável.

Referências
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BARDIN, L. Análise de Conteúdo, São Paulo: Edições 70, 1977.

BIM, O.J.B. 2012. Mosaico do Jacupiranga – Vale do Ribeira, São Paulo: conservação, conflitos e soluções socioambientais.
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DIEGUES, A.C. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

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FF- FUNDAÇÃO FLORESTAL Plano de Utilização da Reserva de Desenvolvimento Sustentável dos Pinheirinhos. São
Paulo: FF, 2010.

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2007. Tese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, 2007.

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RDS, FF. Atas das reuniões das RDS do Mosaico. Documento interno. Registro, 2012.

05: Sistemas de Gestão e Governança


733
SÃO PAULO Lei nº 12.810, de 21 de fevereiro de 2088. Altera os limites do Parque Estadual do Jacupiranga e cria o Mosaico do
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DIAGNÓSTICO DO SISTEMA SÓCIO-ECOLÓGICO ‘CONSERVAÇÃO E USO DE
FLORESTAS NATIVAS EM UNIDADES DE PRODUÇÃO AGRÍCOLAS PRIVADAS DO
CORREDOR ECOLÓGICO CHAPECÓ, SANTA CATARINA, BRASIL’.

Zuchiwschi, Elaine¹ & Fantini, Alfredo Celso²

1.Fundação do Meio Ambiente - FATMA, elainez@fatma.sc.gov.br 2.Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
Um desafio atual na gestão de florestas nativas no Brasil é conciliar sua conservação com a produção agropecuária em unidades
de produção privadas, visto que as regras estabelecidas pela legislação vigente não estão sendo cumpridas. Para a identifica-
ção de variáveis que influenciam nessa situação-problema, devido sua complexidade, pode-se adotar abordagem sistêmica.
Este trabalho buscou realizar um diagnóstico do sistema de interesse ‘Conservação e uso de florestas nativas em unidades de
produção agrícolas privadas do Corredor Ecológico Chapecó’, por meio da elaboração de um mapa do sistema e descrição de
seus componentes, visando identificar variáveis relevantes para a sustentabilidade das florestas nativas em longo prazo na área
de estudo. Verificou-se que o mercado agropecuário, os sistemas de produção, vinculados ao relevo, e a fraca internalização das
regras de conservação e uso podem ser variáveis relevantes.

Palavras-chave: Commons, Corredor Ecológico Chapecó, Governança.

Introdução
Este artigo é decorrente de uma pesquisa que segue o paradigma científico Sistêmico, em que os fenômenos e seus
mecanismos de funcionamento são tratados em sua totalidade e não a partir da descrição meticulosa das partes e de suas pro-
priedades. Pode-se definir um sistema como sendo “uma entidade que mantém sua existência e funções como um todo através
das interações entre as suas partes” (O’CONNER; MCDERMOTT, 1997, p. 2), que seguem regras gerais de organização.
A abordagem sistêmica é importante para explicar e lidar com ‘situações-problema’ do mundo real caracterizadas como
situações de complexidade, ou seja, situações em que normalmente verificamos controvérsia, conflitos de interesses, incertezas
e múltiplas perspectivas e que o próprio problema e sua solução não estão explícitos (SCHLINDWEIN, 2007). A forma de lidar
com esse tipo de situação consiste de um processo cíclico em que idéias e conceitos sistêmicos são mobilizados para distinguir
sistemas de interesse e a reflexão sobre a modalidade da ação prática retro-alimenta o pensamento sistêmico buscando melhor
conhecer o mundo e agir de maneira diferente sobre ele (SCHLINDWEIN, 2007).
Ostrom (2007) propõe a abordagem de diagnósticos de sistemas sócio-ecológicos para a identificação da combinação
de variáveis que propiciem o uso sustentável e produtivo de determinado sistema de recurso, operando em uma escala espa-
cial e temporal específica, e a combinação que tende a levar os recursos ao colapso e a altos custos para a humanidade. Essa
proposta metodológica apresenta um mapa conceitual geral de grupos de variáveis, ou macrovariáveis, que são relevantes para
esses diagnósticos e que abrange (i) sistema de recursos, (ii) unidade dos recursos, (iii) interações, (iv) resultados, (v) sistema
de governança e (vi) usuários (OSTROM, 2007). A autora ressalta que é necessário identificar variáveis que estão dentro desses
grupos de variáveis (ou macrovariáveis), em níveis conceituais mais inferiores e fazer relações verticais e horizontais entre elas.
A abordagem proposta por Ostrom (2007) teve origem em estudos realizados a partir da década de 1970, sobre o manejo
de recursos limitados, que despertam interesses de diversos usuários e que possuem características de bens públicos, sendo
denominados de ‘recursos de uso comum’. Uma das principais questões sobre os recursos de uso comum é como manter a
produtividade e a capacidade de atender as demandas de consumo dos recursos, considerando um espectro de longo prazo
de utilização (OAKERSON, 1992). A evolução da teoria sobre os recursos de uso comum identificou sistemas de recursos com-
plexos, que envolvem diferentes tipos de usos subtraíveis e não-subtraíveis, entre diferentes grupos de atores, através de uma
mistura de regimes de direito de propriedade dentro de uma mesma área (STEINS; EDWARDS 1999).
Um desafio atual na gestão de ecossistemas florestais nativos no Brasil, recursos tratados como bem de interesse comum,
é conciliar a conservação de florestas nativas e a produção agropecuária em propriedades privadas. Existe um grande déficit

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735
de conservação de ecossistemas naturais em terras agrícolas privadas no Brasil a título de Áreas de Preservação Permanente
(APPs) e de Reserva Legal, sendo que usos antrópicos ilegais em APPs chegam a 42% dessas áreas (SPAROVEK et al., 2010).
Em Santa Catarina a situação não é diferente, pesquisas realizadas junto a agricultores de Santa Catarina revelam uma
situação-problema que envolve questões relativas às restrições ao uso direto de recursos florestais nativos por agricultores fa-
miliares e a discordância e o descumprimento dos agricultores para preservação de vegetação nativa em seus imóveis conforme
prevê a legislação vigente, em especial o Código Florestal (Lei Federal 12.651/2012) (BRASIL, 2012) (ALARCON; BELTRAME;
KARAM, 2010; SIMINSKI; FANTINI, 2010; ZUCHIWSCHI et al., 2010).
Considerando o desafio apresentado foi desenvolvida pesquisa para caracterizar o sistema sócio-ecológico relacionado
com a conservação, manejo e uso de recursos florestais nativos em unidades de produção agrícolas do Corredor Ecológico
Chapecó. O Corredor Ecológico Chapecó é uma área especialmente protegida, localizado na região Oeste do estado de Santa
Catarina, criado pelo Decreto Estadual n° 2.957/2010 (SANTA CATARINA, 2010) e administrado pela Fundação do Meio Ambien-
te - FATMA. Possui como estratégias de gestão mecanismos econômicos voltados à conservação e recuperação de ecossistemas
naturais, assim como incentivos às práticas agrícolas conservacionistas.
Foi iniciado um processo de diagnóstico do sistema sócio-ecológico de interesse a partir da elaboração de um mapa do
sistemade interesse e a descrição dos seus componentes.

Métodos
A partir das estruturas de análise de recursos de uso comum, em especial as propostas por Oakerson (1992) e Ostrom
(2007), foi adotada metodologia sistêmica para, em linhas gerais, analisar a condição do sistema de interesse “Conservação e
uso de floretas nativas em unidades de produção agrícolas privadas do Corredor Ecológico Chapecó”, nos anos de 2011 a 2013,
período em que foi realizada a pesquisa.
A área de estudo está inserida no Corredor Ecológico Chapecó, localizado na região Oeste do estado de Santa Catarina,
criado pelo Decreto Estadual n° 2.957/2010, com área de 5.170,47 Km² e abrangendo 23 municípios. Devido os recursos de inte-
resse da pesquisa serem as florestas nativas em unidades de produção agrícolas privadas, não foram incluídas na área de estudo
as unidades de conservação, terras indígenas e áreas com altitudes acima de 1000 metros, onde passa a ocorrer os ecossistemas
de Campos do Planalto (KLEIN, 1978). Portanto, a área de estudo abrange aproximadamente 56% da área do Corredor Ecológico
Chapecó, o que equivale a uma área de 289.315,47 ha.
Foi elaborado um mapa conceitual (OSTROM, 2007) ou mapa do sistema de interesse (THE OPEN UNIVERSITY, 2012)
da condição à época do sistema, tendo como componentes macro e microvariáveis consideradas relevantes na literatura dos
commons (OSTROM, 2007; OSTROM, 1990). Um mapa de um sistema de interesse é a representação gráfica da estrutura de
um sistema e que contribui para a reflexão, entendimento e planejamento de um sistema real (THE OPEN UNIVERSITY, 2012).
Foi feita a descrição da condição à época de cada variável ou componente do sistema de interesse, por vezes em escala
de paisagem, no âmbito da área de estudo no Corredor Ecológico Chapecó, e por vezes em escala de unidade de produção,
quando se referem às unidades de produção agrícolas privadas amostradas no âmbito da pesquisa de Zuchiwschi (2013).

Mapa do Sistema Sócio-ecológico de interesse ‘Conservação e uso de


florestas nativas em unidades de produção agrícolas privadas do
Corredor Ecológico Chapecó’
Na Figura 1 é apresentada proposta de mapa do sistema de interesse ‘Conservação e uso de florestas nativas em uni-
dades de produção agrícolas privadas do Corredor Ecológico Chapecó’.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 1. Mapa do sistema de interesse “Conservação e uso de florestas nativas em unidades de produção
agrícolas privadas do Corredor Ecológico Chapecó”.

Os componentes do mapa do sistema de interesse são descritos nos subitens que se seguem conforme as suas condições
à época da realização da pesquisa.

Estabelecimento agropecuário - sistemas de produção


O Corredor Ecológico Chapecó foi dividido em Regiões Socioeconômicas de acordo com as características dos siste-
mas de produção desenvolvidos nos estabelecimentos agropecuários (FATMA; SOCIOAMBIENTAL, 2009). A partir dessa clas-
sificação foram identificados quatro sistemas de produção na área de estudo: Familiar Tradicional, Familiar de Assentamentos,
Patronal Grãos e Silvicultura.
No sistema de produção Familiar Tradicional verificou-se em trabalho de Zuchiwschi (2013) que a média da área dos
imóveis amostrados era de 36,2 ha (d.p. 40,9), a principal fonte de renda agrícola é obtida da produção de leite em 47,5% das
unidades de produção agrícolas amostradas (UPAs), da produção de grãos (milho, feijão e soja) em 35% das UPAs e da produção
integrada de aves ou suínos para 20% das UPAs. No sistema de produção Familiar de Assentamentos a média da área dos
imóveis amostrados era de 16,1 ha (d.p. 6,7), verificou-se que a principal fonte renda agrícola é obtida da produção de leite em
52% das UPAs, da produção de grãos (milho, feijão, arroz e soja) em 28% das UPAs e da produção de hortaliças em 8% das UPAs
(ZUCHIWSCHI, 2013).
No sistema ‘Patronal Grãos’ a média da área dos imóveis amostrados era de 481 ha (d.p. 481,5), a principal fonte de renda
agrícolaé a produção de grãos (soja, milho, feijão, trigo e aveia) para 73% das UPAs amostradas, da criação de gado de corte
em 18% das UPAs, da produção de leite em 4,5% das UPAs e da avicultura em 4,5% das UPAs (ZUCHIWSCHI, 2013). Dentre agri-
cultores que têm como principal fonte de renda a produção de grãos, 31% deles produz leite como uma atividade secundária
(ZUCHIWSCHI, 2013).
No sistema Silvicultura a média da área dos imóveis amostrados era 4550 ha (d.p. 9557,2), se caracteriza por um sistema
de agricultura predominantemente patronal, em que o principal produto é a madeira, produzida a partir de plantios homogêneos
de pinheiros e/ou eucaliptos, com processamento ou não da madeira na unidade amostrada.
Em trabalho de Zuchiwschi (2013) verificou-se que os sistemas de produção com maior proporção de florestas nativas

05: Sistemas de Gestão e Governança


737
nos imóveis rurais são Silvicultura (40%) e Familiar de Assentamentos (32%), que não diferem entre si, seguidos dos sistemas
Familiar Tradicional (23%) e Patronal Grãos (18%), que não diferem entre si. Agricultores desses sistemas de produção possuem
representações sociais e atitudes distintas em relação às florestas nativas. Agricultores dos sistemas Familiares possuem maior
predisposição à conservação de florestas nativas porque esses recursos proporcionam resultados que são mais importantes
e mais positivos, como a disponibilidade de recursos para uso e local para gado se abrigar, em relaçãoaos demais sistemas
(ZUCHIWSCHI, 2013). Para agricultores do sistema Silvicultura verificou-se que a conservação da água, através da conservação
de florestas, não é um fator relevante e que possuem uma representação negativa das florestas nativas relacionada à aspectos
da legislação (ZUCHIWSCHI, 2013).

Mercado, condições sócio-econômicas, políticas e tecnológicas


Os produtos que se destacam no mercado agropecuário na área de estudo são o leite, aves, suínos, grãos e madeira
e celulose. A produção de leite na região Oeste catarinense vem se configurando como ‘atividade âncora’ na composição da
renda da agricultura familiar, substituindo o papel da suinocultura que passa por um processo de forte concentração (FERRARI
et al., 2005; TESTA et al., 1996). Testa et al. (1996) destacam algumas vantagens da atividade para a agricultura familiar como alta
capacidade de absorção de mão-de-obra e de agregar valor na propriedade, o grande alcance social e a possibilidade de uso
econômico e conservacionista de terras “não nobres”. No entanto, Ferrari et al. (2005) alertam para a ameaça do eminente pro-
cesso de concentração e exclusão de agricultores familiares da atividade devido às exigências de cunho sanitário da Instrução
Normativa nº 51 do MAPA e a transferência de renda dos produtores de menor para os de maior escala, via tabela de bonificação,
ou seja, é pago maior preço pelo litro de leite para produtores com maior escala, dentre outros fatores.
As microrregiões catarinense de Joaçaba e Chapecó abrangem seis municípios que fazem parte do Corredor Ecológico
Chapecó e juntas, entre 2010-2011, responderam por 41,3% da produção catarinense de aves (EPAGRI/CEPA, 2012). Apesar
do crescimento de 6,2% da produção catarinense de aves entre 2009 e 2011 (EPAGRI/CEPA, 2012), o preço pago ao produtor
de aves no Oeste de Santa Catarina não tem compensado os seus investimentos na aquisição de novos equipamentos ou na
manutenção das instalações destinadas à produção, conforme as necessidades e exigências das empresas (PERTILE, 2008).
Entre 2008 e 2011, as oscilações dos preços do milho (63,6%) e da soja (51,2%) ocorreram em maior dimensão do que o preço do
frango (20%) (EPAGRI/CEPA, 2012). Isso se dá porque os preços de milho e soja são realmente de mercado, enquanto os preços
do frango, cuja produção é toda integrada em Santa Catarina, são controlados pelas empresas integradoras e cooperativas, que
evitam as oscilações bruscas e os valores extremos (EPAGRI/CEPA, 2012).
Entre 2000 e 2009 o rebanho suíno catarinense cresceu 56,8%, com destaque para a microrregião de Xanxerê, que possui
16 municípios do Corredor Ecológico Chapecó (EPAGRI/CEPA, 2012). De forma semelhante à produção de aves, a produção de
suínos também enfrenta dificuldades relacionadas à diversos fatores como o crescimento da demanda interna muito lenta, pro-
blemas com as importações da Rússia e da Ucrânia, o preço alto do milho e baixos estoques internacionais, déficit da produção
catarinense de milho, dentre outros fatores (EPAGRI/CEPA, 2012). A concentração da produção de suínos tem aumentado con-
sideravelmente de forma a eliminar pequenos produtores, visto que as empresas integradoras priorizam as grandes produções
e, preferencialmente, aquelas localizadas próximo às unidades industriais (PERTILE, 2008).
No Estado de Santa Catarina a microrregião de Xanxerê, que abrange 16 municípios do Corredor Ecológico Chapecó, é a
maior produtora de soja do Estado (34,6% da produção), a maior produtora de trigo (31,7% da produção), sendo responsável ain-
da por 9,9% da produção de milho e 11,9% da produção de feijão (dados referentes à safra de 2010-2011) (EPAGRI/CEPA, 2012).
A microrregião de Chapecó, que abrange três municípios do Corredor Ecológico também se destaca na produção de grãos no
Estado, sendo a maior produtora de milho (18,2%), produzindo 14,9% da soja, 7,3% do feijão e 15,5% do trigo (dados referentes
à safra de 2010-2011) (Epagri/CEPA, 2012). Em Santa Catarina, nos últimos anos, o mercado propício da soja em relação aos
demais grãos, a maior liquidez desse produto, menor custo de produção e menor sensibilidade aos problemas climáticos tem
proporcionado o crescimento em área da soja em detrimento do milho e do feijão (RODIGHERI, 2012). Para a safra de 2012-2013
em Santa Catarina, a margem bruta de lucro da soja foi de 106,42% e do milho alta tecnologia de 60,37% (EPAGRI/CEPA, 2013).
Os dados oficiais do IBGE mostram que a silvicultura catarinense, após ter passado por dois anos fracos em produção,
produziu em 2010 mais de 18 milhões de metros cúbicos de toras que foram transformados pela indústria (EPAGRI/CEPA, 2013).
A indústria do papel e celulose ampliou em 30% seu consumo de matéria-prima, enquanto a produção de madeira para proces-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
738
samento mecânico aumentou 11% em relação a 2009 (EPAGRI/CEPA, 2013). As florestas plantadas também vêm aos poucos
substituindo as florestas nativas no fornecimento de lenha e de madeira para carvão vegetal (EPAGRI/CEPA, 2013).

Taxa de desconto
Uma outra variável importante na teoria sobre os recursos de uso comum é a taxa de desconto, que, segundo Ostrom
(1990), se refere ao valor atribuído a um recurso no espaço de tempo. A autora afirma que os indivíduos atribuem menor valor aos
benefícios que eles esperam receber em um futuro distante e maior valor aos que esperam receber no futuro imediato.
A taxa de desconto neste trabalho é relativa aos recursos florestais nativos, mas se aplica de forma indireta por meio das
opções disponíveis aos agricultores em relação ao uso da terra, o que tem consequências sobre a manutenção de maiores ou
menores áreas de florestas, na localização dessas florestas nos imóveis e até mesmo na qualidade da floresta, visto que algumas
atividades como a pecuária ou a exploração de erva-mate podem implicar em manejos intensivos das florestas.
No Corredor Ecológico Chapecó considera-se que existam situações relevantes entre os agricultores para essa variável
do sistema:
• taxas de desconto elevadas para agricultores com imóveis localizados em relevo plano a suave ondulado, onde é pos-
sível a mecanização da agricultura, devido o mercado favorável para a produção de grãos;
• taxas de desconto medianas para agricultores com imóveis localizados em relevo mais acidentado e que produzem
leite, o que demanda áreas menos propícias para mecanização para pastagem;
• taxas de desconto baixas para agricultores com imóveis localizados em relevo mais acidentado e que produzem suínos
e aves, não dependendo das áreas acidentadas para o sistema de produção, com exceção da produção de lenha para aqueci-
mento dos aviários.

Organizações sociais ligadas ao meio rural


Entre agricultores da área de estudo verificou-se em trabalho de Zuchiwschi (2013) 58% de citações de participação em
cooperativas, 25% de citações de participação em sindicatos e 16% de citações de participação em associações, sendo que em
muitos casos os agricultores participam de mais de uma organização social. Os agricultores participam principalmente de coo-
perativas agropecuárias que oferecem como benefícios a venda de insumos à preços mais baixos e com prazos mais estendidos,
a compra de sua produção, assistência técnica gratuita, cursos, a participação nos lucros (em algumas delas não) e cota capital
(ZUCHIWSCHI, 2013).

Condições físicas do ambiente


As condições físicas do ambiente determinam ou influenciam fortemente as características, o acesso, dentre outros as-
pectos dos recursos florestais nativos, assim como as opções de uso e ocupação da terra. Na área de estudo, aspectos físicos
que se destacam na gestão das florestas nativas em unidades de produção agrícolas privadas (UPAs) são as condições do
relevo e a presença de cursos e corpos d’água, esses últimos por condicionarem a conservação de florestas nativas, conforme
a legislação vigente.
Na área do Corredor Ecológico Chapecó, seguindo Rosa e Hermann (1986), encontra-se as Unidades Geomorfológicas
Planalto dos Campos Gerais e Planalto Dissecado Rio Iguaçu/Rio Uruguai. A Unidade Geomorfológica Planalto dos Campos
Gerais caracteriza-se por um relevo relativamente plano e conservado, possuem áreas com colinas suaves de pequeno desnível
entre topo e vale, com ocorrência de rupturas de declive e sulcos estruturais associados (ROSA; HERMANN, 1986). Na Unidade
Geomorfológica Planalto Dissecado Rio Iguaçu/Rio Uruguai as formas de relevo são produto da intensa dissecação diferencial
provocada pela maior energia do relevo, configurando na paisagem encostas em patamares e profundos entalhamentos fluviais
seguindo linhas estruturais mantendo essa característica para toda a unidade (ROSA; HERMANN, 1986). Portanto, é possível
identificar duas características distintas de relevo na área de estudo, um relevo plano a ondulado e um relevo mais acidentado,
coincidindo com as unidades geomorfológicas descritas.
A área de estudo possui 76,2% de sua área com relevo pouco acidentado (declividade < 20%) e 23,9% relevo acidentado
(declividade > 20%), sendo que a intersecção do mapa de declividade com o mapa de uso e ocupação da terra indica maior
proporção de florestas nativas (42,7%) nas áreas de relevo acidentado em relação às áreas com relevo pouco acidentado (30,2%)

05: Sistemas de Gestão e Governança


739
(ZUCHIWSCHI, 2013) . As áreas com relevo mais acidentado coincidem com as áreas de ocorrência do sistema de produção
Familiar Tradicional, já as áreas com relevo pouco acidentado com o sistema de produção Patronal Grãos (ZUCHIWSCHI, 2013).
Em imóveis rurais da área de estudo verificou-se que as Áreas de Preservação Permanente (APPs) de cursos e cor-
pos d’água, conforme o Código Florestal brasileiro (Lei 12.651/2012) (BRASIL, 2012) representam, em média, 24% da área dos
imóveis, sendo ocupadas com florestas nativas (43%), lavouras temporárias (26%), pastos (19%), dentre outros usos (ZUCHIWS-
CHI, 2013).

Usuários dos recursos - agricultores e beneficiários dos serviços ambientais


Pode-se considerar como usuários dos recursos florestais nativos de unidades de produção agrícolas privadas da área
de estudo os proprietários ou posseiros das terras onde estão esses recursos que podem se beneficiar, de forma direta e priva-
tiva, dos serviços de provisão (alimentos, fármacos, fibras, combustível, etc), manejando e utilizando as florestas nativas, e que
também podem ser responsáveis pela oferta (provedor) e manutenção dos recursos (produtor). Outro grupo de usuários seriam
os beneficiários dos serviços ambientais das florestas (apropriadores de bens e serviços não-subtraíveis), que podem ser tanto
os proprietários ou posseiros das terras onde estão esses recursos, como também pessoas externas a essas áreas, que podem
usufruir principalmente dos serviços de regulação e suporte.

Governança dos recursos florestais nativos


Regras operacionais
As principais regras operacionais para a conservação, manejo e uso das florestas nativas que se aplicam às unidades de
produção agrícolas privadas da área de estudo fazem parte da legislação ambiental vigente, como citado abaixo:
• conservação, manejo e uso de Áreas de Preservação Permanente conforme o Código Florestal brasileiro (Lei Federal
12.651/2012) e o Código Estadual de Meio Ambiente de Santa Catarina (Lei Estadual 14.675/2009);
• conservação, manejo e uso de florestas a título de Reserva Legal conforme o Código Florestal brasileiro (Lei Federal
12.651/2012) e o Código Estadual de Meio Ambiente de Santa Catarina (Lei Estadual 14.675/2009);
• conservação, manejo e uso de florestas nativas no Bioma Mata Atlântica conforme a Lei Mata Atlântica (Lei Federal
11.428/2006 e Decreto Federal 6.660/2008).
Os objetivos e o conteúdo das principais normas legais no país que estabelecem regras de manejo e conservação de
florestas nativas estão bastante direcionados à preservação e à manutenção de funções ou serviços ambientais de uso indireto
ou não-subtraíveis. Essas normas estão pouco direcionadas ao uso direto ou subtraível (principalmente serviços de provisão),
mesmo que de forma sustentável, o que somente aparece como concessões inevitáveis a casos excepcionais e eventuais.

Regras de tomadas de decisões


Na atualidade, as tomadas de decisão sobre as formas de conservação e manejo das florestas nativas que se aplicam
às unidades de produção agrícolas privadas da área de estudo ocorrem, em parte, em nível federal, através de normas legais
elaboradas pelo poder legislativo e pelo poder executivo, como são as resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente
(CONAMA). Da mesma forma, as tomadas de decisão ocorrem em nível estadual e em nível municipal são raras as normas
estabelecidas para o manejo de florestas nativas.
Existe forte centralização das tomadas de decisões nos níveis mais elevados da hierarquia, visto que as normas esta-
belecidas no nível federal geralmente são bastante específicas, dando pouca margem para adaptações às condições locais.
No entanto, regras estabelecidas em níveis estadual e municipal podem ser pouco restritivas, oferecendo risco ao patrimônio
natural, como ocorreu na elaboração do Código Estadual de Meio Ambiente de Santa Catarina (Lei Estadual 14.675/2009) que
estabeleceu regras incompatíveis com o Código Florestal brasileiro.

Regime de propriedade
O regime de propriedade dos recursos florestais nativos presentes nas unidades de produção agrícolas do Corredor
Ecológico Chapecó é o privado, sobre o qual incide o regime jurídico “bem de interesse comum do povo” que limita os direitos
de propriedade, como o manejo e a apropriação dos recursos, através de regras operacionais estabelecidas por normas legais.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
740
Monitoramento
O monitoramento do cumprimento das regras operacionais está à cargo da fiscalização ambiental realizada no Estado
principalmente pela Polícia Militar Ambiental, mas também pela Fundação do Meio Ambiente (FATMA) e por alguns órgãos
municipais de meio ambiente que possuem estrutura para tal atividade. A limitação de efetivos e a imensa área a ser coberta no
Estado limita o poder de atuação. Devido às limitações em fiscalização as sanções acabam sendo aplicadas a partir de denún-
cias, o que tem gerado conflitos nas comunidades rurais.

Sanções
As sanções para o descumprimento das normas legais estão previstas na legislação, principalmente pela Lei de Crimes
Ambientais (Lei 9.605/1998) e sua regulamentação (Decreto 6514/2008), e são graduais no sentido que consideram o tipo e a
dimensão do dano causado, porém estabelecem intervalos amplos para multas, o que dificulta a padronização entre os agentes
fiscais.

Enforcement
Os órgãos governamentais tem investido pouco em reforçar as regras de manejo, uso e conservação dos recursos flo-
restais nativos, o que ocorre, de forma predominante através de programas e projetos de desenvolvimento rural e educação
ambiental propostos e implementados por organizações da sociedade civil.
Um reflexo do fraco enforcement é o resultado encontrado em trabalho de Zuchiwschi (2013) em relação às informações
detidas pelos agricultores da área de estudo sobre as regras de conservação e uso dos recursos florestais nativos. Apenas 5%
dos entrevistados possuíam informações completas sobre a localização de APPs e somente 9% dos entrevistados possuíam
informações corretas sobre as medidas das APPs (ZUCHIWSCHI, 2013). Além disso, 68% dos entrevistados acreditam que não
existem possibilidades de uso dos recursos florestais nativos protegidos em APPs e RL, mesmo que de forma sustentável, o que
é previsto na legislação (ZUCHIWSCHI, 2013).

Mecanismos de resolução de conflitos


A resolução de conflitos ocorre somente no âmbito formal da esfera do poder judiciário, em processos morosos, por
vezes com a intervenção dos Ministérios Públicos Federal ou Estadual, visto que os recursos florestais nativos são caracterizados
como ‘bem de interesse comum’ e por isso precisam ser resguardados pelo estado.

Interações - representações sociais, atitudes e comportamento


Na proposta metodológica de Oakerson (1992) as interações se referem a estratégias dos usuários, ou seja, na tomada de
decisão individual dos usuários a partir de lógicas enraizadas nos contextos locais e no comportamento humano.
No trabalho de Zuchiwschi (2013) realizado na área de estudo uma das dimensões da representação social dos entrevis-
tados sobre as florestas nativas que mais se destacou foi a percepção da necessidade de se conservar as florestas nativas para
as futuras gerações, para que elas possam conhecer as espécies nativas e acessar um ambiente com qualidade, que forneça
recursos naturais como água e madeira, e que seja capaz de desempenhar funções ambientais como de regulação do clima e
servir de habitat para animais.
Uma outra dimensão da representação social de agricultores da área de estudo, associada de forma significativa ao
sistema de produção Silvicultura, mas com contribuição de outros sistemas de produção, é a visão negativa das normas legais de
conservação de florestas nativas nos imóveis rurais, por considerarem que comprometem suas atividades produtivas, acarretam
ônus financeiro, em especial pelo pagamento de impostos de áreas improdutivas (ZUCHIWSCHI, 2013).
Agricultores da área de estudo acreditam que os principais fatores que controlam seu comportamento, no sentido de
encorajar a conservação de recursos florestais nativos são, principalmente, a conservação da água e o gosto pela natureza, mas
também o relevo, o cumprimento das leis ambientais, o uso dos recursos, dentre outros (ZUCHIWSCHI, 2013). Os agricultores
acreditam que os principais fatores que controlam seu comportamento, no sentido de constrangimento de comportamentos
direcionados à conservação dos recursos florestais nativos são a ausência de pagamento pelas áreas conservadas, falta de re-
cursos financeiros para investir na recuperação, impossibilidade de recuperar com espécies úteis, necessidade de melhoria na

05: Sistemas de Gestão e Governança


741
facilidade/permissão de uso dos RFN, dentre outros (ZUCHIWSCHI, 2013).
A principal referência dos agricultores para as decisões relativas à conservação de florestas é, para a grande maioria
deles, a família, que tem forte aceitação para atitudes positivas em relação à conservação.

Conclusões
A elaboração do mapa do sistema de interesse e a descrição de alguns aspectos dos componentes do mapa, permitiu
identificar algumas variáveis que influenciam nas tomadas de decisão dos agricultores da área de estudo na conservação e uso
de florestas nativas.
Verificou-se que a área de estudo está inserida em uma região com importante contribuição para o mercado agropecuário
do Estado, e os sistemas de produção ali desenvolvidos estão em constante influência da dinâmica do mercado, como por exem-
plo, da demanda atual e crescente da produção de grãos, o que influencia no uso da terra e, consequentemente, na tomada de
decisão do agricultor em conservar ou não florestas nativas. Mesmo existindo regras para a conservação e uso das florestas nati-
vas, essa variável parece ter fraca influência sobre os agricultores porque são pouco conhecidas, a capacidade de monitoramen-
to do seu cumprimento pelo Estado é reduzida e faltam regras de manejo sustentável que incentivem a valorizem esses recursos.
O relevo é uma variável que pode condicionar o uso da terra, como por exemplo, as limitações para a agricultura me-
canizada em áreas de relevo acidentado, podendo favorecer a conservação de florestas, e está bastante vinculado com o sistema
de produção desenvolvido.
Apesar dos desafios de se lidar com essa situação complexa, a que se considerar que prevalece entre agricultores da
área de estudo a representação social positiva a respeito das florestas nativas e a família é a principal referência para as tomadas
de decisão desses agricultores.
Outros estudos são necessários na área de estudo para melhor elucidar a influência das variáveis identificadas neste
trabalho na conservação e uso das florestas nativas em unidade de produção agrícolas privadas.

Agradecimentos
Aos agricultores que participaram voluntariamente da pesquisa, à CAPES pela bolsa de estudo, à Secretaria de Estado do
Desenvolvimento Econômico Sustentável de Santa Catarina e à Fundação do Meio Ambiente - FATMA pelos dados fornecidos.

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EDUCAÇÃO AMBIENTAL COMO PROPOSTA DE FORTALECIMENTO DA GESTÃO
PARTICIPATIVA DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO
COM PRESENÇA DE COMUNIDADES TRADICIONAIS:
O CASO DA ESTAÇÃO ECOLÓGICA JUREIA-ITATINS (IGUAPE-SP)

Cruz, Thais Pereira da1 & Torres, Juliana Rezende2

1.Graduanda em Licenciatura em Ciências Biológicas, Universidade Federal de São Carlos – campus Sorocaba,
thais.cruz89@gmail.com 2.Profª Adjunta do Departamento de Ciências Humanas e Educação,
Universidade Federal de São Carlos – campus Sorocaba, julianart@ufscar.br

Resumo
Unidades de Conservação (UC) são espaços que, além dos aspectos ecológicos, comportam relações sociais complexas por
vezes movidas por conflitos oriundos de divergências quanto às intenções de uso do território e dos recursos naturais e quanto à
distribuição do poder decisório, principalmente em UC de proteção integral com presença de comunidades tradicionais, como
é o caso da Estação Ecológica Jureia-Itatins (EEJI), instituída em 1986, localizada no Vale do Ribeira, estado de São Paulo. Essa
pesquisa buscou investigar a repercussão da criação da EEJI sobre as comunidades tradicionais locais, quanto à ocupação do
território, modo de vida e identidade cultural, bem como a participação social dessas comunidades tradicionais nos processos
decisórios da EEJI.

Palavras-chave: Unidades de Conservação, Comunidades Tradicionais, Participação, Educação Ambiental Crítica.

Introdução
Diante do atual cenário de degradação ambiental, decorrente do paradigma societário hegemônico que norteou a tra-
jetória de ocupação e exploração dos recursos naturais, a criação de áreas naturais legalmente protegidas, ou Unidades de
Conservação (UC), constitui uma das estratégias mundiais mais reconhecidas atualmente para a conservação de ecossistemas,
espécies e recursos naturais. Além da dimensão ecológica, esses espaços de reordenamento territorial integram-se fortemente
às regiões e comunidades em que se inserem de forma que possuem um enorme potencial de uso público para fins recreativos,
acadêmicos, educacionais e de oportunidades de fortalecimento de interações sociais e participação crítica cidadã (QUEIROZ,
2013).
Porém, o processo de criação e gestão das UCs, por vezes ainda é regido de uma forma fortemente centralizado e unila-
teral em detrimento de uma concepção mais pluralística que considere o contexto social, cultural, econômico e político em que
a UC está inserida (BRASIL, 2014). O poder de decisão envolvendo o uso dos recursos naturais e a ocupação territorial distribui-
se de forma não equitativa entre os grupos sociais envolvidos, resultando na exclusão das comunidades locais dos processos
decisórios e consequentemente no desperdício de um precioso potencial cultural, além do agravamento dos conflitos ambientais
locais (LOUREIRO; CUNHA, 2008).
A motivação dessa pesquisa partiu de uma reflexão pessoal sobre o papel da sociedade civil, sobretudo das comuni-
dades tradicionais, nos processos de tomadas de decisão envolvendo os recursos naturais, ocupação territorial e a transforma-
ção da realidade local de acordo com a concepção Crítica de Educação Ambiental. As comunidades que compartilham os seus
territórios com as áreas protegidas, além de possuírem o direito à participação, podem oferecer uma grande contribuição tanto
para a criação de processos de gestão ambiental como de estratégias de enfrentamento aos conflitos ambientais.
Nesse contexto de abordagem de UC, A Estação Ecológica Jureia-Itatins (EEJI), localizada no Vale do Ribeira (entre os
municípios de Iguape, Peruíbe, Miracatu e Itariri) e criada em 1986, foi eleita por estar inserida numa área de grande relevância
ecológica, abrigando a maior concentração (cerca de 66%) de áreas remanescentes da Mata Atlântica no Estado de São Paulo
(PEIXOTO, 2005), e consequentemente uma rica biodiversidade que vem inspirando pesquisas de diversas instituições do país
nos últimos anos.

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745
Figura 1. Estação Ecológica Jureia-Itatins e seus limites intermunicipais. Fonte: Blog do Aender. Acesso em 03/11/2014.

O território compreendido pela EEJI e seu entorno também possui grande relevância do ponto de vista antropológico, cul-
tural e social, devido à forte presença de comunidades tradicionais caiçaras1, descendentes de povos que ocuparam a região há
centenas ou até milhares de anos, conforme constatado por evidências arqueológicas, sendo que atualmente existem 22 comuni-
dades no território (ALMEIDA et al., 2013). O conhecimento tradicional destas comunidades também tem sido recorrentemente
objeto de estudo de pesquisas de diversas áreas (QUEIROZ, 1992). Além disso, há o fator econômico, uma vez que a região tem
atraído fortemente o mercado imobiliário e o turismo de massa, e o fator histórico, já que a região foi uma das primeiras a serem
ocupadas pelos colonizadores ibéricos, desempenhando um importante papel nos ciclos econômicos do Brasil, do período co-
lonial até o século XX (DIEGUES, 2007).
Por se tratar de uma área protegida e ao mesmo tempo possuir presença humana, de comunidades tradicionais ou não
tradicionais, a EEJI também é caracterizada por historicamente protagonizar conflitos de interesses envolvendo setor imobiliário,
grandes empreendimentos, ambientalistas e comunidades tradicionais locais. Esses conflitos surgem a partir de diferentes in-
tenções de uso do território e dos recursos naturais abrangidos pelas UC, principalmente as de proteção integral, como é o caso
da EEJI, e já foram identificados e descritos por pesquisadores de diversas áreas, como Queiroz (1992), Nunes (2003), Peixoto
(2005), Bacelar & Silva (2008), entre outros.
Temas como percepção ambiental (PEIXOTO, 2005) e Educação Ambiental (EA) no contexto específico da EEJI também
aparecem, embora menos frequentemente. Visto que a EA ainda é relativamente pouco explorada em pesquisas desenvolvidas
na EEJI e seu entorno mesmo ocupando um papel de destaque nas políticas públicas e sendo reconhecida como um importante
meio de mediação de conflitos e fortalecimento das comunidades, esse trabalho busca reafirmar o papel da EA Crítica no forta-
lecimento da participação social no contexto da EEJI, do ponto de vista das comunidades tradicionais locais.
Dessa forma, os objetivos da pesquisa foram: (1) investigar como a criação da EEJI repercutiu sobre as comunidades
tradicionais locais, quanto à ocupação do território, modo de vida e identidade cultural; (2) identificar os conflitos nas relações
entre os diversos atores sociais que interagem com a UC e (3) diagnosticar a atual situação da EEJI quanto à participação so-
cial das comunidades tradicionais nas atividades que ocorrem na área e em seus processos decisórios, buscando responder
a seguinte pergunta: Qual poderia ser o papel da Educação Ambiental Crítica para o fortalecimento da gestão participativa e
mediação de conflitos na EEJI?

1
O termo “caiçara” define os indivíduos especificamente descendentes da miscigenação entre índios Guaranis e Carijós, europeus (principalmente portugueses,
mas também espanhóis, franceses e holandeses) e afrodescendentes, no litoral do Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro (MERLO, 2009; DIEGUES, 2007).

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Metodologia
As repercussões da criação da EEJI sobre o modo de vida e arranjo social das comunidades tradicionais locais e as for-
mas de participação dessas comunidades, que compõem o objeto de estudo desta pesquisa, são processos dinâmicos determi-
nados por variáveis que estão além de um controle intencional. Dessa forma, a opção metodológica qualitativa, mais especifica-
mente o estudo de caso, demonstrou ser a mais viável. Em tal abordagem, o ambiente em que ocorrem os fenômenos estudados
constitui a fonte direta dos dados e o processo é mais enfatizado do que o produto em si (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).
A etapa de coleta de dados consistiu em realização de entrevistas semiestruturadas aos integrantes de comunidades
tradicionais da Jureia que vivenciaram os desdobramentos da criação da EEJI. Os relatos foram registrados em gravações de
áudio e posteriormente transcritos. Na medida do possível, buscou-se garantir o anonimato dos entrevistados e entrevistadas,
uma vez que o contexto vivencial da EEJI é um tanto frágil e conflituoso.
Para fins analíticos, as entrevistas foram divididas em seis categorias de análise determinadas a partir das respostas (ou
“a posteriori”), a saber: (1) impactos da criação da EEJI sobre modo de vida e identidade cultural das comunidades tradicionais
locais, (2) relação entre equipe gestora da EEJI e comunidades tradicionais locais, (3) arranjo da participação das comunidades
tradicionais da EEJI, (4) contribuição das comunidades tradicionais à conservação da natureza, (5) EA e comunidades tradi-
cionais na EEJI e (6) perspectivas futuras. Os relatos foram analisados pontuando-se as semelhanças entre eles, identificando
elementos comuns nas falas para assim traçar o panorama atual da EEJI e propor encaminhamentos para o fortalecimento da
gestão participativa.

Resultados e Discussão
Os resultados foram divididos em categorias apresentadas em tópicos contendo as questões, alguns depoimentos que
sintetizam os elementos mais recorrentes nas falas, seguidos pela análise e considerações, conforme a seguir.

Sobre a criação da EEJI e seus impactos sobre modo de vida e identidade cultural
das comunidades tradicionais locais
Essa primeira categoria buscou entender quais os impactos da criação da EEJI sobre o modo de vida e a identidade cul-
tural das comunidades que já ocupavam o território. Dessa forma, essa categoria contemplou as seguintes perguntas: (1) “Como
era o modo de vida nas comunidades antes da EEJI?”, (2) “Como foi a criação da EEJI, você se lembra?” e (3) “A EEJI trouxe
alguma mudança para as comunidades? O que mudou?”.

“As comunidades caiçaras, que vivem do Paraná ao Rio de Janeiro, sempre viveram da agricul-
tura de subsistência, itinerante, o extrativismo, a pesca e a caça, tudo de subsistência. E tudo o
que produzia ou pescava a mais, era vendido. Dependem totalmente da natureza, pra fazer o
remo, o pilão, a canoa, a cama, o capim pra fazer o colchão, só usa coisa do mato. O alimento
é do mato, só a roupa que ia buscar na cidade, e roupa era bem pouquinha que a gente tinha.
Basicamente vivem da floresta, da terra e do mar. Tudo o que tem ali nos ecossistemas.” [E3]
“Na época, eles diziam que queriam fazer um santuário ecológico, mas não falaram da situação
de ser EE, que se proíbe pesca, agricultura... então quando os caiçaras que viviam lá olharam pra
isso, viram que era uma coisa completamente diferente, porque começou a vir guarda-parque,
entrar na casa das pessoas, abrir tampa de panela pra ver se tava com caça, abrir guarda-roupa
pra ver se tinha espingarda, então foi se tornando um ambiente muito difícil de se viver” [E5]
“Aí quando vieram esse pessoal do meio ambiente, foram apertando, apertando cada vez mais...
já não podia mais fazer a roça, já não podia mais cortar uma madeira, que já vinha processo e
multa em cima, não tinha mais como sobreviver” [E4]

Todos os depoentes descrevem o modo de vida da comunidade como estritamente dependente dos recursos naturais,
ressaltando, principalmente a agricultura de subsistência. O próprio arranjo social era organizado em função da agricultura de
subsistência: a rotina, o trabalho e até mesmo as manifestações culturais, como o tradicional fandango caiçara, que ocorria após
os “mutirões” de trabalho na roça, como se fosse uma celebração após o trabalho. Os relatos também destacaram muito a extra-
ção de madeira da caixeta (Tabebuia cassinoides), árvore caracterizada por sua madeira clara, porosa, leve e macia, sendo por

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747
isso, muito utilizada pela comunidade para a confecção de utensílios, instrumentos musicais tipicamente usados no fandango,
como a viola caiçara e a rabeca, e até mesmo artesanato, uma das principais fontes de renda da comunidade, além do extrati-
vismo do palmito juçara (Euterpe edulis).
Entre os entrevistados, a maioria vivenciou e se recorda do processo de criação da Estação Ecológica. Os depoimentos,
unanimemente, apontam o processo de criação da EEJI como conflituoso, envolvendo interesses de grupos distintos. Todos os
depoimentos afirmaram que, em algum momento, os moradores chegaram a ser procurados pela SEMA (Secretaria Especial do
Meio Ambiente, órgão público da época) para serem informados sobre a possibilidade de criação de um “santuário ecológico” e
para terem seus imóveis avaliados visando um suposto ressarcimento em caso de remoção da comunidade do território, porém
sem receber os esclarecimentos sobre todos os aspectos que envolvem a instituição e funcionamento da Estação Ecológica,
incluindo as restrições com relação ao uso dos recursos naturais, sendo que muitos moradores só ficaram sabendo da Estação
Ecológica quando começaram a chegar as multas e os processos judiciais.
Algumas respostas ainda ressaltam que as comunidades não só foram deixadas à margem das discussões envolvendo
o planejamento, implementação, gestão da UC, como tiveram coibidas suas tentativas de organização visando aproximação do
poder público por várias estratégias, como, por exemplo, a desarticulação dos movimentos de luta pelos direitos das comuni-
dades, por empregarem moradores na fiscalização (guarda-parques), instaurando assim um clima de competição e hostilidade
dentro da própria comunidade.

Sobre a relação entre equipe gestora da EEJI e comunidades tradicionais locais


A segunda categoria buscou entender qual é a relação das comunidades com a equipe gestora da EEJI, de forma que
perguntou-se: (4) “A comunidade se reúne frequentemente com os gestores da EEJI? Qual a finalidade dessas reuniões?”

“Eles se reuniram com a comunidade, muitas vezes... Mas falam, falam, de um jeito que a gente
não entende, falam uma coisa, fazem outra. Até hoje é assim. (...) a última foi em outubro [de
2014], no salão paroquial, mas eles nem avisaram a comunidade, muita gente nem foi, não ficou
sabendo.” [E1]
“O que mais a gente faz é se reunir com eles [gestores]. E tem sido muito dramático, a todo custo
eles querem dizer que a comunidade chegou depois da Estação Ecológica (...) o que é absurdo
e vai contra todas as evidências, que mostram que a comunidade está aqui há muito tempo.” [E5]

Pode-se concluir que a relação entre as comunidades e os órgãos gestores, principalmente no período que se sucedeu à
criação da EEJI, é extremamente distanciada, e um dos fatores que contribuiu fortemente para isso, além de toda a questão políti-
ca e econômica, é a falta de acessibilidade por parte dos representantes desses órgãos gestores, que é manifesta até mesmo na
linguagem que eles usam ao conversar com os moradores: vocabulário técnico e distante da realidade em que as comunidades
estão inseridas, gerando falhas de comunicação e, consequentemente, afastando as possibilidades de diálogo significativo. Essa
hipótese pode ajudar a entender, por exemplo, porque muitos moradores afirmam nunca terem sido procurados pelo poder
público e órgãos gestores para serem informados sobre as implicações em se transformar a área em UC de proteção integral,
ao passo que outros afirmem que sim, que foram informados, mas na época não compreenderam plenamente quais seriam as
consequências disso para o seu modo de vida.
Atualmente, as reuniões entre representantes da comunidade e equipe gestora da EEJI, bem como de suas instâncias su-
periores, ainda são marcadas por tensões e conflitos, e a comunidade encontra dificuldades em se inserir nos debates de forma
equitativa, sendo que muitas vezes não chegam nem mesmo a ter oportunidade de trazer suas demandas e sanar suas dúvidas, o
que os impulsiona a buscarem outros mecanismos de participação nos processos decisórios, o que nos leva ao próximo tópico.

Sobre o arranjo da participação das comunidades tradicionais da EEJI


A terceira categoria procurou investigar como se desenvolvem os processos de participação das comunidades tradicio-
nais nos processos decisórios da EEJI, perguntando-se: (5) “As comunidades que vivem no interior ou no entorno da EEJI pos-
suem algum órgão de representação? Como ele funciona?” e (6) “De que maneira a comunidade busca a participação na tomada
de decisões? Quais foram os avanços?”.

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“Quando criaram a EE, em 1986, começou a chegar a polícia, multar um, multar outro, proibir a
pesca, proibir a roça, já não podia mais reformar casa (...) Foi aí que a gente começou a se orga-
nizar, se reunir, criamos a UMJ [União dos Moradores da Jureia].” [E3]

“A UMJ, é a nossa associação política, né. A AJJ, ela cuida mais dessa parte artística, né, mostrar o
fandango, a cultura em si. A UMJ é mais pela questão dos territórios, como se trabalha o território.
Se a gente vai fazer uma oficina na escola, a gente vai como AJJ, agora se for mais embate político
em assembleia, ou numa questão mais federal, a gente vai como UMJ.” [E5]

Todos os entrevistados mencionaram a União dos Moradores da Jureia (UMJ) e a Associação dos Jovens da Jureia (AJJ),
entidades estabelecidas no início da década de 1990 com o intuito de fortalecer as comunidades tradicionais locais, garantir seu
direito de permanência nos seus territórios e consolidar sua identidade cultural, reconhecendo a importância dessas entidades
para as conquistas alcançadas e para o fortalecimento de sua identidade cultural.
De acordo com os relatos, as reuniões, tanto da UMJ quanto da AJJ são realizadas mensalmente, ocorrendo reuniões
extraordinárias conforme a demanda. O contato associação-comunidade é realizado pessoalmente, e também via e-mail, blogs e
redes sociais. As lideranças dessas associações são escolhidas democraticamente por um processo eleitoral que ocorre a cada
dois anos. Embora haja certa hierarquia (sendo que há cargos de lideranças, como presidentes, vice, tesoureiros, entre outros),
o processo procura ser o mais democrático e transparente possível, sendo que nas reuniões, inclusive nas deliberativas, todos
tem a oportunidade de se manifestar.
Para amplificarem seu reconhecimento, legitimidade e participação, tanto a UMJ quanto a AJJ, de maneira organizada,
têm buscado outras vias, como parcerias com universidades e instituições de pesquisa que lhes dão respaldo acadêmico, além
de ONGs, para levar suas demandas a instâncias superiores, como Defensoria Pública e Ministério Público Federal, ou mesmo
a articulação com outras comunidades tradicionais, de outras localidades que enfrentam conflitos parecidos, o que tem con-
tribuído para o empoderamento dessas comunidades, resultando em diversas conquistas e encaminhamentos no cenário local
e nacional.
Apesar dos obstáculos e de todas as tentativas de silenciamento e rechaço à sua participação, as comunidades tradicio-
nais da EEJI se empenharam arduamente e incessantemente para garantirem seus direitos territoriais, culturais e ambientais,
construindo um histórico de resistência, ainda que isso não seja tão devidamente valorizado e reconhecido. Interessante notar
que essas comunidades atualmente estão muito bem respaldadas, academicamente e juridicamente, e inteiradas sobre os seus
direitos, graças à sua própria iniciativa, enquanto povo organizado, de estabelecer o diálogo entre os saberes tradicionais e o
saber acadêmico através das parcerias firmadas.

Sobre a contribuição das comunidades tradicionais à conservação da natureza


Para investigar qual o grau de percepção dessas comunidades com relação a isso, perguntou-se: “(7) Qual a importância
das comunidades na preservação da natureza?”.

“Nunca houve desmatação grande por parte dos trabalhadores da terra, por causa disso, aí... a
gente escolhia um pedaço de mata virgem, porque tudo isso aí é conhecido por nós, mata virgem
que nunca foi mexida, o mato que foi mexido que vai indo, vai indo e vira caporão, que é madeira
mais grossa. A gente escolhia o lugar pra fazer a roça, plantava, ficava ali uns dois ou três anos e
depois não mexia mais, porque a terra vai perdendo a força que tinha, aí tinha que deixar o mato
crescer ali de novo, e escolhia outro lugar pra plantar de novo a roça” [E4]
“Depois da saída das comunidades do território onde hoje é a Estação Ecológica, as áreas mais
destruídas são as áreas em que não tem mais ninguém, porque a própria casa, o fato de ter gente
morando, já cria uma proteção no entorno.” [E5]

Um aspecto que foi explorado nos depoimentos é o “efeito inibidor regional” que as comunidades tradicionais exercem
nos territórios que ocupam, agindo como obstáculo contra o avanço do desmatamento, o que torna as áreas protegidas com
presença dessas comunidades mais conservadas em relação às áreas “vazias”, mesmo as de proteção integral (BRASIL, 2014).
Esse aspecto faz dessas comunidades, potenciais colaboradoras do poder público nos objetivos conservacionistas, não seus

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opositores. De forma geral, os relatos demonstraram que a comunidade é bem ciente de seu papel nesse sentido.

Sobre EA e comunidades tradicionais na EEJI


A quinta categoria de análise, procurou estabelecer qual é o modelo de EA que ocorre dentro da EEJI e se esse modelo
contempla as comunidades tradicionais. As perguntas foram: (8) “Existem projetos de EA dentro da EEJI? A quem se direcio-
nam? Em algum momento é chamada?”

“Na EEJI é permitido EA, só que é muito complexo, tem que ter um projeto muito específico e
bem alinhado com os objetivos da unidade, mas não presta EA à sociedade, nem à comunidade.
O que tem lá são alguns monitores, geralmente pessoas da comunidade, que conhecem o lugar,
que acompanham só os pesquisadores, e no máximo alguns grupos de escolas. (...) E aí ele passa
todo o conhecimento da comunidade pra esses pesquisadores, acompanha, vai mostrando. (...)
mas só para esses pesquisadores.” [E5]

Aproximadamente um terço dos entrevistados criticou o modelo de EA que ocorre na EEJI, relatando que ele é excludente
(ou até mesmo inexistente) e em nenhum momento contempla a participação das comunidades tradicionais. Baseando-se nos
relatos, é possível inferir que não há um programa de EA, muito menos de EA Crítica, dentro da EEJI e, quando ocorre alguma
atividade nesse sentido, é de maneira pontual e desconexa da realidade local, como visitas monitoradas de grupos ou escolas,
por exemplo.

Sobre perspectivas futuras


A última categoria de análise buscou identificar os próximos encaminhamentos das mobilizações das comunidades da
EEJI e seu atual panorama. Dessa maneira, questionou-se: (9) “Como conciliar preservação da natureza e direitos dos povos e
comunidades tradicionais?”, (10) “As comunidades da Jureia costumam dialogar com outras comunidades tradicionais, de outras
localidades?” e (11) Quais os atuais encaminhamentos para se solucionar os conflitos em UC de proteção integral com presença
de povos e comunidades tradicionais?”

“São várias formas, uma é excluir as UC de proteção integral dos territórios que tem presença de
comunidade, ou mudar de categoria, para RDS, que o estado vai gerir, mas garantindo, pelos pla-
nos de manejo e tudo, que a comunidade possa viver, trabalhar, viver conservando como ela faz
sempre. (...) Dá pra conciliar as duas coisas, com certeza, o ser humano e o meio ambiente.” [E5]
“Para mim só tem um fator para isso acontecer, que é mantendo as comunidades no lugar, porque
assim você tem as duas coisas, você consegue manter as gerações futuras e a conservação do
meio ambiente. E a própria questão da gestão também, incluir mais a comunidade.” [E6]
“Naquele momento, a EE foi essencial, pela questão das usinas nucleares, mas que deveria ter
sido discutida imediatamente, logo após, esse modelo, essa categoria, para, de repente, discu-
tir uma recategorização, para um modelo que permitisse uso sustentável, que não excluísse as
populações que pertencem aquele território (...) ” [E3]
“Está havendo um maior interesse do estado, do poder público em se aproximar das comuni-
dades tradicionais, mas isso devido à pressão dos movimentos sociais. E os grupos que de al-
guma forma se aproximam das comunidades tradicionais, também estão acreditando mais. Está
havendo uma maior demanda nesse sentido.” [E3]

A recategorização imediata de UC de proteção integral para UC de uso sustentável em casos de presença comprovada
de comunidades tradicionais, através de estudos sociológicos e antropológicos prévios, foi quase que unanimemente apontada
como uma solução viável a curto e médio prazo para os conflitos. Porém, esse modelo de recategorização deve ser discutido
juntamente com a comunidade, ouvindo suas demandas, respeitando seus direitos territoriais e de participação. Do contrário,
o problema de exclusão e marginalização da comunidade acaba sendo recorrente, como tem sido no caso da Jureia, mesmo
após a recategorização em 2013. Esse modelo de recategorização mais inclusivo e participativo para a EEJI é uma das principais
bandeiras levantadas por essas comunidades.

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Interessante ressaltar que, como expresso nas falas, os moradores, de uma forma geral não se opõem à intervenção do
poder público no sentido de resguardar áreas de relevância ecológica e social, nem contra as políticas ambientais em si. O que
eles combatem é a forma centralizadora, e por vezes autoritária que essas políticas são instituídas e desenvolvidas, que acaba
deixando de lado e até mesmo criminalizando grupos que já são historicamente fragilizados.
Portanto, as associações das comunidades tradicionais da EEJI são espaços que contribuem fundamentalmente para
a construção de processos participativos, mas, conforme exposto pelos entrevistados ainda encontram limitações para se in-
serirem nos processos decisórios sobre a destinação dos recursos naturais e uso do território da EEJI devido à dificuldade de
diálogo com o órgão gestor que administra a EEJI e a ausência de um plano de manejo definido e de um conselho consultivo.
Dessa forma, os entrevistados apontaram que os próximos encaminhamentos centram-se em continuar buscando uma aproxi-
mação do diálogo com o poder público, que vem se mostrando mais aberto em atender às suas demandas, bem como fortalecer
a discussão sobre um modelo de recategorização que realmente contemple a valorização e participação da comunidade, no
planejamento, elaboração do plano de manejo e gestão da área protegida em questão.

Considerações Finais
Os conflitos observados em UC de proteção integral com presença de comunidades tradicionais atestam, de maneira
irrefutável, a indissociabilidade entre os aspectos naturais e sociais. Por essa razão, é necessário se superar a visão fragmentada
que atrela as UC unicamente a aspectos “naturalistas”, enxergando-as como espaços que agregam diversas relações sociais e
possibilidades de participação social e experiências educativas. Além disso, o planejamento e instituição de novas UC devem
partir de um amplo processo de discussão entre as partes afetadas por esse processo, contemplando não só a biodiversidade,
como também a diversidade social. Esse debate tem se expandido nos últimos anos, principalmente devido ao aumento das mo-
bilizações dos movimentos sociais e dos documentos oficiais (nacionais e internacionais) e políticas públicas que estenderam o
reconhecimento aos povos e comunidades tradicionais, defendendo a permanência dos mesmos em seus territórios de origem.
Porém, a relação entre órgãos gestores de UC e comunidades tradicionais, de uma forma geral, ainda permanece dis-
tanciada e conflituosa, como é o caso da EEJI, UC de proteção integral inserida numa das regiões mais relevantes (e paradoxal-
mente mais vulneráveis) do ponto de vista ecológico, histórico, cultural e social do Brasil. Podemos concluir que a criação desta
UC foi resultado de um processo centralizador, o que resultou na marginalização das comunidades tradicionais, que tiveram
suas atividades de subsistência restritas, além de suspensão de serviços públicos como saúde e educação, o que forçou muitas
famílias a deixarem os seus territórios e migrarem para as periferias das cidades vizinhas, o que significa não mais vivenciar a
sua cultura de modo pleno, o que vem afetando a construção da sua identidade enquanto caiçaras e os expondo a diversos pro-
blemas sociais, como a violência urbana, desemprego, dificuldade de acesso a serviços públicos, entre outros.
Como forma de enfrentamento a esses conflitos, os remanescentes das comunidades que ainda vivem no território e
mesmo os que já o deixaram, organizam-se e mobilizam-se através de suas entidades de representação, a UMJ e a AJJ, estabe-
lecendo parcerias com outras instituições e comunidades, construindo assim suas vias de participação, ainda que nem sempre
sejam adequadamente reconhecidas e legitimadas pelos órgãos gestores.
Outro aspecto das UC, inclusive as da categoria de proteção integral, se refere à EA, prevista no SNUC como uma das
principais finalidades destes espaços. Porém, a concepção de EA que prevalece na EEJI (conforme os relatos obtidos nesta pes-
quisa) ainda se restringe muito a conceitos como sensibilização, numa abordagem desconexa do contexto social e da realidade
local, além de contemplar uma porção muito reduzida da sociedade. Já a EA Crítica, que problematiza as questões ambientais,
encarando-as como resultado de um modelo de civilização e como processo histórico, se configura como um importante ins-
trumento de transformação social em espaços não formais como as UC, uma vez que seu esforço educativo se converge para
as causas, e não para os efeitos, da problemática ambiental. Tal concepção de EA pode fortalecer o senso crítico dos sujeitos,
tornando-os mais reflexivos, fortalecendo sua participação crítica nos processos decisórios, oferecendo subsídios para a criação
de novas políticas públicas e a construção de um novo (e necessário) paradigma de conservação da natureza, o que, portanto,
responde à pergunta de pesquisa: Qual é o papel da Educação Ambiental Crítica para o fortalecimento da gestão participativa
e mediação de conflitos na EEJI?
Contudo, a discussão sobre EA e gestão participativa no contexto da EEJI está longe de se esgotar aqui, de forma que
se pretende dar continuidade a essa pesquisa futuramente, estabelecendo como objetivo a elaboração e desenvolvimento, de

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maneira conjunta e integrada, de um projeto de EA ancorado nesse referencial teórico, aplicado à realidade das comunidades
tradicionais afetadas pelas políticas ambientais que norteiam o modelo de gestão da Jureia, buscando estabelecer parceria com
os órgãos gestores e a equipe da UC.

Referências
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PEIXOTO, C. F. Percepção Ambiental na Estação Ecológica Jureia-Itatins. 2005. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambi-
ental) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

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O PROGRAMA DE VOLUNTARIADO DO INSTITUTO CHICO MENDES DE
CONSERVAÇAO DA BIODIVERSIDADE COMO MECANISMO DE INTERFACE
SOCIOESTATAL E/OU PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Dau, Julia Zapata Rachid1 & Oliveira, Flávia Cristina Gomes de2

1.Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, julia.zapata@icmbio.gov.br


2.Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, flavia.oliveira@icmbio.gov.br

Resumo
Este trabalho analisa o Programa Nacional de Voluntariado no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade como
mecanismo de interface socioestatal. Para tal, utiliza-se dados como adesão das unidades de conservação federais e dos cen-
tros nacionais de pesquisas ao Programa, bem como número de vagas oferecidas pelo Instituto para a prestação de serviço
voluntário. Conclui-se que embora a concepção do Programa Nacional de Voluntariado tenha sido regulamentada como política
pública com interface socioestatal, a complexidade de sua implementação a torna uma ferramenta de participação social iso-
lada, à medida que não promove efetivamente a cogestão das unidades de conservação federais.

Palavras-chave: Voluntariado, Interface Socioestatal, Participação Social e Unidade de Conservação.

Introdução
O Programa Nacional de Voluntariado – PNV do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio foi
regulamentado por meio de uma Instrução Normativa em 2009. Desde então, a busca em realizar serviço voluntário nas unidades
de conservação federal e centros nacionais de pesquisa, unidades descentralizadas vinculadas ao ICMBio, vem crescendo ano a
ano. Inicialmente as atividades vinculadas à área de proteção eram as que tinham maior oferta de vagas. Atualmente, já é possível
perceber uma mudança para as áreas de pesquisa e uso público.
Um estudo específico sobre as causas do aumento de vagas e procura pela sociedade sobre este tipo de atividade poderá
ser realizado em outro momento. A princípio buscaremos entender se o voluntariado, ou mais especificamente o Programa de
Voluntariado do ICMBio, pode ser considerado como um mecanismo efetivo de participação social e/ou interface socioestatal.
Até que ponto esta interface interfere na implementação da política pública?
Para responder tal problema, ao longo deste trabalho, utilizaremos o conceito de interface socioestatal apresentado por
Pires e Vaz e as ideias de Avritzer, que defende que a participação social nas políticas públicas deve ser analisada conforme
seus efeitos democráticos e distributivos. Posteriormente apresentaremos, além da metodologia utilizada, o histórico do PNV e
analisaremos alguns dados sobre vagas disponibilizadas e unidades descentralizadas que aderiram ao Programa. Finalmente,
apresentaremos algumas considerações finais.

Referencial Teórico e Metodologia


Referencial Teórico
Um dos teóricos sobre a participação social nas políticas públicas, Leonardo Avritzer, afirma que nos últimos 10 anos
houve mudança na literatura sobre a participação social “complexificando o argumento dual da participação social versus não
participação” (AVRITZER, 2010, p.163). Neste sentido, a análise sobre participação social deixou de ser a identificação de instru-
mentos participativos ou não, para focar nos “i) efeitos democráticos da participação dos atores da sociedade civil nas políticas
sociais e ii) os efeitos distributivos da participação social.” (AVRITZER, 2010, p. 163).
Ao estudar os conselhos municipais, Avritzer identifica que um dos impactos da participação social nas políticas públicas
diz respeito à relação entre participação, capacidade distributiva e performace administrativa, ou seja, capacidade de aumentar
a receita e/ou recursos do município, como por exemplo, o aumento de funcionários dedicados à política pública e o aumento
de arrecadação propriamente dito. Segundo seus estudos, há uma relação entre as arrecadações tributárias municipais e o grau
de intensidade participativa.

05: Sistemas de Gestão e Governança


753
Já quando trata da participação social na esfera federal, Avritzer estuda os Conselhos e as Conferências Nacionais. Avalia
que houve avanços da participação social na definição de agenda, mas nem tanto na implementação destas políticas públicas.
Assim, resume que no nível federal, há avanços na organização da participação social, mas pouco nos impactos desta participa-
ção social nas políticas públicas e na organização do governo, e indica que os novos avanços da participação social devem ser na
produção e na implementação de políticas públicas, garantindo assim uma maior democratização do governo (AVRITZER, 2010).
Neste sentido, Avritzer defende que a participação social nas políticas públicas deve ser analisada conforme seus efeitos
democráticos e distributivos, por meio da identificação das relações entre participação, capacidade distributiva e performance
administrativa em três momentos distintos do processo do “fazer política pública”: a definição da agenda, a produção da política
pública e a sua implementação.
Roberto Pires e Alexandre Vaz também avançam na análise de participação e não participação social nas políticas públi-
cas. Propõem a utilização do conceito de interface socioestatal para o mapeamento analítico das formas de interlocução e
contato entre Estado e sociedade nos programas do governo federal, a partir da sistematização e análise de dados do Sigplan1
entre os anos de 2002 a 2010. Levam em consideração a evolução e disseminação das interfaces socioestatais nos programas
pesquisados, a diversificação em tipos e formatos, a associação entre tipos e áreas temáticas, e os significados e contribuições
que as interfaces deram à gestão dos programas (PIRES; VAZ, 2012, p.14).
Para estes autores,

“... a adoção do conceito de interface socioestatal, em vez do usualmente adotado conceito de par-
ticipação social, como embasamento teórico-analítico com maiores alcance e poder explicativo e
de compreensão não apenas do papel, mas principalmente, das influências e impactos dos tipos
de canais instituídos e concretizados pelo governo em relação tanta à sociedade quanto à própria
estrutura da administração pública. A interface consiste num espaço político, isto é, num espaço
de negociação e conflito, estabelecido intencionalmente entre atores, cujos resultados podem
gerar tanto implicações coletivas, quanto implicações estritamente individuais”. (ISUNZA; HEVIA,
2006 apud PIRES; VAZ, 2012, p.15)

Deste modo, esclarecem com base nos textos de Isunza e Hevia, que a interface estatal é constituída por uma interface
política, que pode ser compreendida por suas subdivisões: a interface mandatória, a interface de transferência e a interface de
cogestão. Diferentemente, portanto, da análise de participação social que constitui a interface cognitiva, que pode ser entendida
pela interface de contribuição, interface de transparência e interface comunicativa (PIRES; VAZ, 2012).
O conceito de interface socioestatal, como apresentado acima, nos parece mais apropriado para a análise da realidade
brasileira atual, já que a interface socioestatal é entendida como um espaço político e, como tal, a compreensão da relação do
Estado e da sociedade dar-se-á por meio da compreensão do papel e dos impactos que este espaço político desencadeia nas
políticas públicas. No caso do Programa Nacional de Voluntariado do Instituto Chico Mendes, a concepção da gestão da biodi-
versidade, a cargo do Estado, torna-se permeável à atuação dos cidadãos, criando espaços de construção coletiva de conheci-
mento e permitindo o engajamento social no debate e na justificação dos conteúdos normativos da própria política ambiental. No
âmbito do Programa, pode-se afirmar que estão combinados na atuação voluntária mecanismos que ampliam os instrumentos
de participação, viabilizando a cogestão pública.
Assim, ao atuarem como espaços da formação democrática da opinião e da vontade coletiva, as unidades de conser-
vação federais e os centros nacionais de pesquisa tornam-se instâncias geradoras de poder legítimo. Na concepção do PNV,
a sociedade civil é entendida como uma esfera solidária e corresponsável pela gestão da biodiversidade, contribuindo com os
processos que legitimam o poder estatal.
Sob esta ótica, as unidades de conservação federais e os centros nacionais de pesquisa do ICMBio, enquanto área ter-
ritorial, passam a constituir espaços políticos e, enquanto política pública, uma interface socioestatal. De modo análogo ao que
ocorre com as cidades e sobretudo com os municípios, a relação de afinidade e pertinência da população local com as unidades
descentralizadas do ICMBio potencializa o desenvolvimento de instrumentos de participação social, ao mesmo tempo em que
compromete a comunidade com as decisões quanto a iniciativas e prioridades na gestão dessas áreas públicas, acabando por
constitui-se em mecanismo legítimo de interface socioestatal.
1
Sistema de Informações Gerenciais e de Planejamento, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

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754
Metodologia
Para o desenvolvimento deste trabalho foi realizado levantamento bibliográfico sobre o tema participação social no Brasil
e mecanismos de interface socioestatal2, bem como pesquisa histórica da legislação relativa ao trabalho voluntário em unidades
de conservação. Para a coleta de informações sobre o Programa Nacional de Voluntariado do ICMBio - PNV, foi utilizado o
cadastro das unidades descentralizadas participantes do Programa, elaborado no formato de relatório, e atualizado até julho
de 2014 pela Coordenação Geral de Proteção, área responsável pela coordenação nacional do PNV no âmbito do Instituto. Na
análise realizada, foram consideradas apenas as informações relativas ao número de unidades descentralizadas que aderiram ao
Programa entre 2009 e 2014, bem como ao número de vagas disponibilizadas anualmente para o serviço voluntário por área de
atuação, denominada “linha temática”. As demais informações, referentes à avaliação anual do PNV e da atuação dos voluntários,
encontravam-se incompletas e pouco sistematizadas. Portanto, por se tratar de fonte com baixa confiabilidade, tais informações
foram desconsideradas na análise e conclusões do presente trabalho.

Descrição do Estudo de Caso


Neste item iremos discorrer sobre o histórico normativo e legal que levou à formulação do Programa Nacional de Volun-
tariado no Instituto Chico Mendes, para posteriormente apresentar o referido Programa, instituído pela Instrução Normativa nº
06/2009, e dados compilados de 2009 a 2014.

Histórico Normativo
Voluntários que realizam atividades em unidades de conservação não é novidade em outros países. Nos Estados Unidos,
por exemplo, o trabalho voluntário faz parte da cultura norte americana e muitos cidadãos utilizam seu tempo livre para se dedi-
car às atividades em áreas protegidas.
Nos dois órgãos do governo norte americano que administram as unidades de conservação, a saber, o U.S. Forest Ser-
vice e o U.S National Park Service, o programa de voluntariado está consolidado e é reconhecidamente fundamental não só para
incrementar a força de trabalho, bem como para garantir a destinação de recursos para estes órgãos gestores e/ou unidade de
conservação específica.
No Brasil, o trabalho voluntário foi normatizado pela Lei nº 9.608/1998, que definiu serviço voluntário como atividade não
remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública ou instituição privada sem fins lucrativos, sem gerar vínculo empre-
gatício, nem obrigação de natureza trabalhista, previdenciária ou afim. O referido diploma legal teve como preocupação central
explicitar a natureza não-trabalhista do serviço voluntário, mais do que normatizá-lo como mecanismo de participação social.
Na área de meio ambiente, a atividade voluntária foi legitimada com a criação dos “mutirões ambientais”, por meio da
Resolução nº 03/1988, do Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA. O ato normativo destinou-se a permitir a participa-
ção de entidades civis com finalidades ambientalistas no exercício de atividade fiscalizatória em áreas protegidas, por meio da
constituição de mutirões.
Com a finalidade de regulamentar o funcionamento dos mutirões ambientais, foi editada a Instrução Normativa nº 19/2001,
do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA. Nesta ocasião, surgiu a figura do Agente
Ambiental Voluntário - AAV, novo ator no cenário ambiental federal, com participação definida em ato normativo e vinculada à
entidade ambientalista sem fins lucrativos. A despeito das atribuições fiscalizatórias conferidas aos mutirões ambientais terem
sido largamente contestadas, inclusive por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2.714/2003, vislumbra-se com
a introdução da figura do AAV o cerne embrionário de um importante mecanismo de participação social na área ambiental.
Em 2002, o serviço voluntário em unidades de conservação federais foi regulamentado por meio do Decreto nº 4.519/2002.
Embora demonstre a mesma intencionalidade já consolidada na Lei nº 9.608/1998, qual seja, distinguir o serviço voluntário das
atividades remuneradas exercidas com vínculo empregatício, a edição do referido Decreto apresenta como avanço a demarca-
ção legal de um novo espaço de participação social por meio da atividade voluntária: o território das unidades de conservação
sob domínio da União.
Com vistas à regulamentação do Decreto, em 2005 o Ministério do Meio Ambiente - MMA publica a Portaria nº 19/2005,

2
Mecanismos de interface socioestatal é definido por Pires & Vaz como a base para análise das interações Estado e sociedade, “desde a participação social em
fóruns coletivos e deliberativos, (...) às formas mais restritas e individualizadas de contato” (PIRES & VAZ, 2012. p.6)

05: Sistemas de Gestão e Governança


755
normatizando o Programa de Voluntariado em Unidade de Conservação. A partir desta regulamentação, ocorre a abertura das di-
versas atividades relativas à gestão ambiental das unidades de conservação à participação do voluntário, dentre elas o uso público,
monitoramento ambiental e atividades de proteção, em detrimento das atividades fiscalizatórias, não previstas na referida portaria.
No mesmo ano, e em resposta às contestações sobre o caráter exclusivamente fiscalizatório dos mutirões ambientais, o
IBAMA editou a Instrução Normativa nº 66/2005, revogando a anterior sobre o tema, por meio da qual também amplia o escopo
de atribuições dos AAV, incluindo atividades de educação ambiental e preservação dos recursos naturais, bem como delimita
o espaço de atuação dos voluntários às unidades de conservação federais e áreas protegidas. Nota-se importante avanço com
a publicação desta normativa quanto à referência ao “exercício da cidadania” na definição do AAV, reforçando a concepção de
serviço voluntário em unidade de conservação como instrumento de participação social, concepção esta já presente na Portaria
nº 19/2005 do MMA.
Em 2007, com a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, a nova autarquia passou
a ser responsável pela gestão das unidades de conservação federais. Desta forma, a partir de uma releitura da atuação voluntária
nas áreas sob sua responsabilidade, o Instituto promoveu a reedição do Programa de Voluntariado criado pelo MMA, por meio
da publicação da Instrução Normativa nº 03/2009 – ICMBio. Destacam-se como principais inovações desta regulamentação a in-
clusão do serviço voluntário em todas as unidades descentralizadas do ICMBio, incluindo os centros nacionais de pesquisa além
das unidades de conservação, bem como a possibilidade de atuação dos voluntários no apoio às diversas atividades de gestão
da biodiversidade a cargo do Instituto Chico Mendes, abarcando as seguintes linhas temáticas: manejo para conservação; pes-
quisa e monitoramento; gestão socioambiental; uso público e negócios; consolidação territorial; produção e uso sustentável; e
proteção ambiental.
Ademais, é definida uma série de atribuições institucionais, conferidas a diversas instâncias do ICMBio, relativas à imple-
mentação e operacionalização do Programa. Desta forma, ficou estabelecida a responsabilidade institucional de promover a
participação social por meio do trabalho voluntário, por um lado, e garantida a cogestão pelos voluntários nas ações de conser-
vação da biodiversidade, por outro. Neste novo formato, o Programa Nacional de Voluntariado reeditado pelo ICMBio extrapola
o conceito de instrumento de participação social, passando a ser concebido como mecanismo de interface socioestatal na área
de meio ambiente.

O Programa Nacional de Voluntariado do ICMBio


A implementação do PNV, iniciado em 2009 com a publicação da Instrução Normativa nº 03/2009, está sob a condução da
Coordenação Geral de Proteção, setor do ICMBio responsável por ações de fiscalização e prevenção / combate aos incêndios
florestais. Isto porque, desde o início, havia forte interesse institucional em desenvolver o trabalho com brigadas voluntárias nas
unidades de conservação federais, tendo em vista o número insuficiente de brigadistas contratados anualmente pelo Instituto
para ações de controle de incêndios. Desta forma, tal como ocorre com o modelo americano, o serviço voluntário era visto, so-
bretudo, como oportunidade de ampliar a força de trabalho do ICMBio.
Este direcionamento inicial do PNV reflete-se nos dados relativos ao grande número de vagas disponibilizadas anual-
mente pelas unidades descentralizadas para o serviço voluntário na linha temática “Proteção Ambiental”, que engloba as briga-
das voluntárias (Tabela 1). Até 2013, mais da metade das vagas foram disponibilizadas para esta linha temática, considerada
prioritária. Cabe ressaltar que a formação de brigadistas voluntários exige aporte de recursos da Instituição para capacitação
e aquisição de equipamentos de proteção individual (EPI), conforme previsto na Instrução Normativa nº 03/2009 – ICMBio,
diferentemente das outras linhas de atuação do PNV. Mesmo assim, por envolver ações emergenciais, a implementação das
brigadas voluntárias contou com maior apoio institucional em relação às demais linhas temáticas, o que pode ser verificado pelo
número de vagas disponibilizadas anualmente até 2013.
Em 2014, ocorreu um significativo aumento das vagas direcionadas para atuação voluntária na área de pesquisa
e con-servação da biodiversidade – incluindo as linhas temáticas “Manejo para Conservação” e “Pesquisa e Monitoramen-
to” – e, principalmente, na área de apoio à visitação nos Parques Nacionais – representada pela linha temática “Uso Públi-
co e Negócios” (Tabela 1). Tal aumento coincidiu com o grande incremento do turismo no Brasil, decorrente sobretudo da
ocorrência da Copa do Mundo de futebol, responsável por alavancar o ecoturismo brasileiro por meio do projeto Parques da

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05: Sistemas de Gestão e Governança
757
Copa3. Ademais, o apelo à questão ambiental passou a atrair substancialmente a participação de estudantes e pesquisadores
junto às unidades de conservação e centros de pesquisa do ICMBio, ocasionando o aumento da oferta de vagas para o serviço
voluntário especializado.
Também no caso das linhas temáticas ligadas ao uso público e à pesquisa, tal como ocorreu inicialmente com a proteção
ambiental, percebe-se que o interesse quanto ao incremento da força de trabalho por meio do serviço voluntário permanece
como fator determinante quanto à disponibilização de vagas, e, portanto, como elemento direcionador da participação social.
Na análise quanto à quantidade de unidades descentralizadas que aderiram ao Programa por ano, de acordo com a
TABELA 2, observa-se que até 2012 o número de adesões era crescente, período em que ocorreu incremento institucional na
formação das brigadas para atuarem nas emergências ambientais, tornando-se decrescente em 2013 e 2014 – ressalvando-se
que a consolidação dos dados ocorreu até julho/2014. Ademais, verifica-se que mais da metade das adesões foi realizada pelas
unidades de conservação do grupo “Proteção Integral”, que inclui as categorias “Parque Nacional”, “Reserva Biológica” e “Es-
tação Ecológica”, as quais atraem, sobretudo, a atuação de voluntários das áreas de pesquisa, conservação da biodiversidade,
uso público e proteção ambiental.

Vale ressaltar que apesar de ser baixo o número de adesões, proporcionalmente ao número de unidades de conservação
e centros de pesquisa geridas pelo ICMBio (Figura 1), o Programa Nacional de Voluntariado não possui financiamento próprio,
nem ação orçamentária específica para suportar os custos de sua implementação. Neste sentido, o PNV implementa-se por seu
baixo custo (muitas vezes custo zero), e em decorrência da articulação dos gestores das unidades de conservação no sentido de
captar recursos e buscar parcerias locais para custear eventuais despesas.
Ademais, a adesão ao PNV acaba por se tornar restrita às unidades de conservação localizadas próximas aos núcleos
urbanos, fato que facilita tanto no deslocamento dos voluntários e no conhecimento por parte da sociedade daquela área pro-
tegida, quanto na existência de articulações e parcerias locais para patrocínio das atividades a serem realizadas. Destacamos
que grande parte das unidades de conservação localiza-se distante dos centros urbanos, fato que dificulta o estabelecimento de
parcerias ou outros meios para captação de recurso para este fim. Além da localização, a existência de algum atrativo específico
em uma determinada unidade de conservação também justifica a adesão ao Programa e o interesse do cidadão em se deslocar.
Neste cenário de restrições, a existência de 27% das unidades de conservação federais que aderiram ao Programa deve ser
considerando um número expressivo.

3
O Projeto Parques da Copa trata-se do investimento de R$ 10,4 milhões, por meio do Ministério do Turismo, em 16 unidades de conservação federais, cujo objetivo
principal consistiu na melhoria da infraestrutura de acesso. Outras informações sobre o Projeto Parques da Copa podem ser obtidas junto ao Ministério do Turismo,
Ministério do Meio Ambiente e Diretoria de Criação e Manejo de Unidades de Conservação do ICMBio.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 1. Percentual de unidades de conservação que aderiam ao PNV do ICMBio.
Fonte: Organizado pelo autor. Dados: Programa Nacional de Voluntariado do ICMBio.

Figura 2. Percentual de centros nacionais de pesquisa que aderiam ao PNV do ICMBio.


Fonte: Organizado pelo autor. Dados: Programa Nacional de Voluntariado do ICMBio.

Percebemos assim, que não obstante a relação entre sociedade e Estado seja concebida na normatização do Programa
Nacional de Voluntariado do ICMBio como uma interface socioestatal, a partir da previsão de cogestão das unidades descen-
tralizadas, ainda hoje esta interface não foi efetivada. A implementação do Programa necessita de financiamento próprio para
que assim possa expandir as atividades para outras unidades descentralizadas que não possuem fontes de recursos próprias.
Além disso, linhas temáticas como “Gestão Socioambiental” e “Produção e Uso Sustentável”, que ainda apresentam baixa
adesão por parte das unidades descentralizadas e, consequentemente, menor quantitativo de vagas disponibilizadas, carecem
de incentivo institucional para o fortalecimento da interface com a Sociedade por meio do trabalho voluntário, principalmente por
envolverem ações estrategicamente relacionadas à participação social.

Considerações Finais
Inicialmente levantamos o problema se o Programa Nacional de Voluntariado do ICMBio pode ser considerado como
um mecanismo efetivo de participação e/ou interface socioestatal e até que ponto esta interface interfere na implementação da
política pública.
Apresentamos no histórico normativo que a concepção do Programa Nacional de Voluntariado reeditado pelo ICMBio
extrapola o conceito de instrumento de participação social, passando a ser concebido como mecanismo de interface socioestatal
na área de meio ambiente.
No entanto, por meio dos dados levantados junto a Coordenação Nacional do Programa, identificou-se que inicialmente
o PNV esteve voltado às ações de emergências ambientais, sendo vislumbrado como forma de aumento de mão de obra. Mais
recentemente, em um novo contexto, aumentou a oferta de vagas em outras linhas temáticas, envolvendo atividades vinculadas
à pesquisa da biodiversidade e ao uso público, mas o Programa continuou sendo prioritariamente visado como incremento
de força de trabalho. Adicionalmente, o fato do PNV não possuir financiamento próprio e depender de parcerias locais para
patrocínio e execução das atividades fragiliza a ampliação do Programa e, consequentemente, dificulta a sua implementação.
Neste sentido, concluímos que despeito da concepção do Programa Nacional de Voluntariado ter sido proposta e regu-
lamentada como política pública com interface socioestatal, sua implementação a torna uma ferramenta de participação social
isolada, à medida que não promove efetivamente a cogestão das unidades de conservação federais, restringindo a promoção
dos efeitos democráticos e distributivos.

05: Sistemas de Gestão e Governança


759
Referências
AVRITZER, L. O Papel da Participação nas Políticas Sociais do Governo Federal. In: SILVA, F. de S.& LOPEZ, F. G e PIRES, R. R.
C. (orgs). Estado, Instituições e Democracia: democracia - Volume 2 / Brasília, 2010

BRASIL. Decreto nº 4.519 de 13 de Dezembro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 16/12/02, Seção I, Pág. 6.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis. Instrução Normativa nº 19 de 5 de novembro de
2001. Diário Oficial da União, Brasília, 13/11/01, Seção I, Pág. 91.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis. Instrução Normativa nº 66 de 12 de Maio de 2005.
Diário Oficial da União, Brasília, 23/05/05. Seção I, Pág. 55 e 56.

BRASIL. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Instrução normativa nº 03 de 02 de Setembro de 2009. Diário
Oficial da União, Brasília, 18/09/09, Seção I, Pág. 95 a 98.

BRASIL. Lei nº 9.608 de 18 de Fevereiro de 1998. Diário Oficial da União, Brasília, 19/02/98, Seção I, Pág. 30.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Portaria nº 19 de 21 de Janeiro de 2005. Diário Oficial da União, Brasília, 24/01/05, Seção
I, Pág. 103.

CONSELHO NACIONAL DE MEIO AMBIENTE – CONAMA. Resolução nº 3 de 16 de março de 1988. Diário Oficial da União,
Brasília, 16/11/88, Seção I, Pág. 22.123.

PIRES, R.; VAZ, A. Participação social como método de governo? Um mapeamento das “interfaces socioestatais” nos pro-
gramas federais. Texto de Discussão. Ipea: Rio de Janeiro, fevereiro de 2012.

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POSSIBILIDADES PARA OS MOSAICOS DE ÁREAS PROTEGIDAS: A EXPERIÊNCIA
DO 1° ENCONTRO PARA O DIÁLOGO ENTRE COMUNIDADES AGRÍCOLAS E
TRADICIONAIS E PARQUES DO MOSAICO CARIOCA (RJ)

Marques, Ana Carolina1; Pena, Ingrid Almeida de Barros2 & Marques, Maria Clara de Oliveira3

1. Instituto Estadual do Ambiente/RJ, carolmarques.inea@gmail.com 2.Associação de Amigos do Mosaico Carioca (AAMC)


3.Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/IGEO)

Resumo
O Mosaico de Áreas Protegidas é um instrumento de gestão e ordenamento territorial previsto pela lei que institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação, e pressupõe a gestão integrada de áreas protegidas, tanto no que tange ao aspecto
ecossistêmico, quanto institucional. O trabalho trata da 1° experiência do Mosaico Carioca como um promotor do encontro entre
o poder público e alguns grupos de produtores agrícolas e quilombolas da cidade do Rio de Janeiro, que tem a dinâmica de suas
vidas afetadas pela gestão das áreas protegidas. A configuração deste encontro foi o evento “1° Encontro para o Diálogo entre
Comunidades agrícolas e tradicionais e Parques do Mosaico Carioca, Experiências: Parque Estadual da Pedra Branca e Parque
Estadual do Mendanha”, realizado em dezembro de 2014. Com base neste acontecimento, são apresentadas algumas reflexões
tecidas sobre o papel dos MAP no contexto deste tipo de conflito.

Palavras-chave: Mosaico de Áreas Protegidas, Comunidades Agrícolas e Tradicionais, Conflito Socioambiental, Mosaico Ca-
rioca; Gestão Integrada.

Introdução
O Mosaico de Áreas Protegidas (MAP) é um instrumento de gestão e ordenamento territorial previsto pela Lei n°9.985/2000
que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). A criação de um MAP está relacionada à existência de
áreas protegidas próximas, justapostas e sobrepostas.
Este intrumento pressupõe a gestão integrada de áreas protegidas, tanto no que tange ao aspecto ecossistêmico, quanto
institucional, tendo um conselho de caráter consultivo como sua instância de gestão. Como a gestão de uma determinada área
protegida pode ocorrer nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal), a gestão dos mosaicos implica a integração
entre as esferas de governo, dependendo das áreas protegidas abarcadas por um MAP. Além disso, o conselho deve ser consti-
tuído por representantes do governo e da sociedade civil. Neste sentido, fazem parte da gestão de um MAP não só os gestores
das áreas protegidas, mas também representantes de empresas, universidades, ONGs e outros segmentos sociais (em alguns
casos, historicamente excluidos) que possuem a dinâmica de suas vidas afetada pela gestão, uso e ocupação de uma determina-
da área protegida. Assim, segundo Gidsicki (2013), os MAP vêm se consolidando como um dos mais importantes instrumentos
que promovem a gestão integrada e participativa dessas áreas e sua inserção positiva nos territórios.
Segundo Loureiro et al. (2014), desde 2007, no estado do Rio de Janeiro, é possível observar um aumento de mobilização
para a criação e consolidação dos mosaicos, principalmente pela SEA/RJ e órgãos vinculados (até outubro 2007 IEF e FEEMA, e
atualmente o Instituto Estadual do Ambiente (INEA). Para os autores, as iniciativas representam uma tentativa de enfrentamento
de um cenário em que as UC (as estaduais, e, principalmente, as municipais) possuem dificuldades para garantir o cumprimento
de suas competências institucionais, com pouco incentivo para a consolidação de estratégias participativas e integradas de
gestão territorial (não só no estado do Rio de Janeiro, mas por circunstâncias históricas do país) e representam também uma
busca por articulação com outras políticas setoriais. Assim, recentemente estes órgãos passaram a fomentar a criação e fortaleci-
mento de MAP e corredores ecológicos.
Neste contexto, alguns MAP, no âmbito do estado do Rio de Janeiro, tem exercido um papel importante como espaços de
encontro e diálogo entre representantes da sociedade civil e do governo. Neste contexto, os MAP podem ser considerados um
instrumento em potencial para se pensar as transformações sociais associadas às áreas protegidas.

05: Sistemas de Gestão e Governança


761
A sobreposição entre UC - especialmente de proteção integral - e áreas historicamente utilizadas por comunidades agrí-
colas e/ou tradicionais gera conflitos que marcam diversas unidades de conservação (UC) no país. Embora haja previsão de dife-
rentes formas de tratar estas populações, poucas vezes são abordadas possibilidades além da desapropriação e deslocamento
destas pessoas de seu local de origem, ainda que isto nem sempre seja do seu desejo.
Tal abordagem põe a perder todo potencial de apoio a conservação que as populações tradicionais representam. Segun-
do publicação do Ministério Público Federal (BRASIL, 2014), à medida que essas comunidades sejam efetivamente envolvidas
nos processos formais de conservação da natureza, compartilhando esforços com o governo para a proteção, manejo sustentável
e gestão, tanto maior será a chance de criar condições reais para atingir alto nível de conservação ambiental, inclusive, de fortal-
ecer alianças para contraposição de interesses econômicos degradadores.
Diante desta problemática, este trabalho tem como finalidade apresentar a 1° experiência do Mosaico Carioca como um
promotor do encontro entre o poder público e alguns grupos de produtores agrícolas e quilombolas da cidade do Rio de Janeiro,
que tem a dinâmica de suas vidas (em especial, suas atividades produtivas) afetadas pela gestão das áreas protegidas. A confi-
guração deste encontro foi o evento “1° Encontro para o Diálogo entre Comunidades agrícolas e tradicionais e Parques do Mo-
saico Carioca, Experiências: Parque Estadual da Pedra Branca e Parque Estadual do Mendanha”, realizado em dezembro de
2014.
Para tal, este trabalho está dividido em quatro partes: a primeira consiste na caracterização do Mosaico Carioca, conside-
rando o seu contexto físico e e enfatizando sua atuação institucional; a segunda compreende uma breve análise sobre algumas
comunidades tradicionais e agrícolas presentes no território do Mosaico Carioca; a terceira parte trata do evento supramencio-
nado, apresentando o os caminhos percorridos para a sua realização; e, na última parte são explicitadas algumas reflexões e
perspectivas tecidas sobre o papel dos MAP na promoção do diálogo entre a gestão pública e as comunidades que vivem dentro
e no entorno de UC, em especial as de proteção integral.
Fazendo uso de uma abordagem qualitativa, este trabalho teve como métodos: pesquisa bibliográfica e análise de da-
dos secundários para fundamentar as informações referentes ao Mosaico Carioca e aos segmentos sociais envolvidos, e também
estudo de caso para retratar a experiência exposta.

O Mosaico Carioca
O Mosaico Carioca, reconhecido em julho de 2011 pela Portaria nº 245 do Ministério do Meio Ambiente (MMA), está inte-
gralmente inserido na malha urbana, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, com pequenas partes nos municípios de Nova
Iguaçu e Nilópolis. Conforme sua portaria de reconhecimento, o Mosaico Carioca é composto por 23 (vinte e três) UC, sendo 2
(duas) federais, 4 (quatro) estaduais e 17 (dezessete) municipais. Tal composição está representada na Figura 1.

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762
Figura 1. Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, conforme portaria de reconhecimento, n° 245, de 11 de julho de 2011.
Fonte: Gerência de Gestão de Unidades de Conservação, SMAC, 2013.

Entre os anos de 2012 e 2013, algumas UC foram recategorizadas e criadas para compatibilizar sua gestão com a real
dimensão e função da área. Em junho de 2013, uma equipe do Instituto Brasileiro de Anáises Sociais e Econômicas (Ibase)
iniciou a execução do “Projeto Mosaicos da Mata Atlântica: Fortalecimento da sociobiodiversidade da Mata Atlântica e apoio à
gestão integrada de Mosaicos de Áreas Protegidas”, custeado com recursos de compensação ambiental estadual e supervisio-
nado pela Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) e pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA). Por intermédio desta iniciativa,
foi realizado o processo de constituição do conselho consultivo do Mosaico Carioca, incluindo a elaboração de seu regimento
interno e desenvolvimento dos planos de ação (2014 - 2016). Neste contexto, foi elaborada uma proposta de uma nova portaria
ministerial para o Mosaico Carioca, contemplando as mudanças em relação à composição das UC e do conselho consultivo. O
documento foi enviado ao MMA no primeiro semestre de 2014, e até o momento em que o presente trabalho foi concluído não
houve resposta (PENA, 2015).
O conselho conta com a participação de mais de 30 representantes de diferentes instituições: órgãos públicos ambi-
entais, universidades, empresas e movimentos sociais organizados. Um destes movimentos é a Rede Carioca de Agricultura
Urbana (Rede CAU)1, que compreende o Mosaico Carioca como um espaço de atuação para estabelecer um diálogo sobre a
importância e o valor das famílias agricultoras em UC (DIAS; MORAES, 2015).
O plano de ação foi elaborado de forma participativa no primeiro semestre de 2014, agrupados em torno de temas con-
siderados estratégicos: Conservação da biodiversidade, Uso Público, Socioambiental e Proteção. Para apoiar a implementação
dos planos de ação, posteriormente foram criadas câmaras temáticas (CT), e no âmbito destas, grupos de trabalhos (GT).
Um dos objetivos do tema Conservação da Biodiversidade é “Construir diálogo com as comunidades agrícolas no interior
(e entorno) das UC do Mosaico Carioca”. Cumpre salientar que este objetivo foi apresentado como uma demanda pela con-
selheira do Mosaico Carioca representante da Rede CAU, durante a elaboração participativa do Plano de Ação do Mosaico. As
estratégias para o cumprimento do objetivo foram pensadas conjuntamente com outros conselheiros. A relevância deste objetivo,
isto é, o diálogo entre os gestores de UC e as comunidades agrícolas e tradicionais que estão presentes e atuantes no território
do Mosaico, está no entendimento de que esta é a única forma possível de encontrar os melhores caminhos para compreender
e solucionar os conflitos existentes.

1
Criada em 2009, a Rede CAU reúne mais de 30 organizações para a defesa da agroecologia na cidade do Rio de Janeiro. Participam representantes de diversas or-
ganizações populares; agricultores, instituições de pesquisas e ensino; e agentes governamentais e não governamentais que se percebem com autonomia para essa
representação. A rede está vinculada à Articulação de Agroecologia do Estado do Rio de Janeiro (AARJ), ao Coletivo Nacional de Agricultura Urbana, e à Articulação
Nacional de Agroecologia (ANA) (AS-PTA, 2015).

05: Sistemas de Gestão e Governança


763
Neste sentido, no âmbito da CT Conservação da Biodiversidade do Mosaico Carioca, composto por representantes da
sociedade civil e do governo, foi iniciada uma mobilização para concretizar o objetivo proposto (Construir diálogo com as comu-
nidades agrícolas no interior (e entorno) das UC do Mosaico). Posteriormente foi formado um GT para tratar especificamente da
organização do evento, composto por 6 conselheiros, sendo 3 representantes da sociedade civil e 3 do poder público (além do
Núcelo de apoio ao Mosaico Carioca).

Breve análise sobre comunidades tradicionais e agrícolas que vivem


no interior e entorno de UC cariocas
Diversos trabalhos apontam as ocupações irregulares como um dos problemas centrais na gestão das UC do município
do Rio de Janeiro. Além de moradias bastante simples que na maioria das vezes ocupam encostas e outras áreas de risco e de
residências de luxo e de veraneio, fruto da pressão do mercado imobiliário, são também considerados como ocupações irregulares
e igualmente invasoras pequenas propriedades e/ou lotes rurais mais antigos, que guardam resquícios da agricultura da cidade.
Segundo Vallejo et al. (2009), a maioria dos conflitos existentes no Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB), por exemplo,
estão relacionados à questão fundiária, sendo que, 40% das ocupações são pertencentes à famílias que permanecem no local há
mais de 2 ou 3 gerações, muitas vezes antes da criação do próprio parque. No entanto, mesmo em meio às ameaças da expansão
urbana, e às restrições da legislação ambiental quanto a sua permanência nos parques, algumas comunidades agrícolas e tradi-
cionais ainda resistem e se mobilizam para a manutenção e o reconhecimento de suas práticas agrícolas e de suas identidades,
além de lutar para mostrar a possibilidade de conciliar suas atividades com os objetivos de conservação da natureza (PRADO,
MATTOS; FERNANDEZ, 2012).
Exemplos desses movimentos podem ser vistos a partir do fortalecimento de organizações como a Associação de Agri-
cultores Orgânicos da Pedra Branca em Rio da Prata (AgroPrata), a Associação de Agricultores de Vargem Grande (AgroVargem)
e a Associação de Lavradores e Criadores de Jacarépagua (PRADO; MATTOS; FERNANDEZ, 2012), o reconhecimento oficial da
Comunidade Cafundá Astrogilda como comunidade tradicional remanescente de quilombolas, no caso do PEPB.
Na zona sul, área nobre da cidade do Rio de Janeiro, destaca-se a comunidade quilombola Sacopã que foi formalmente
reconhecida em 2004 pela Fundação Palmares. A comunidade habita uma área desde o final da década de 1920, onde se esta-
belece uma relação ancestral com a vinda dos seus antepassados para a região e que hoje se encontra com uma importante área
verde e biodiversidade, tendo sido, por esse motivo, afetado pelo poder público como área de proteção com a criação do Parque
Natural Municipal José Guilherme Mercquior (MAIA, 2010).

O “1° Encontro para o Diálogo entre Comunidades agrícolas e


tradicionais e Parques do Mosaico Carioca, Experiências:
Parque Estadual da Pedra Branca e Parque Estadual do Mendanha”
A 1° reunião para tratar da organização do evento aconteceu no dia 21 de outubro de 2014, no Núcleo de Apoio ao Mo-
saico Carioca, e contou com a presença de representações da Rede CAU, órgãos públicos, empresa e conselheiros do Mosaico
Carioca. Nesta ocasião, foi identificada a necessidade de conversar com as comunidades agrícolas e tradicionais objetivando
apresentar esta nova “metodologia” de diálogo, o Mosaico Carioca.
Assim, a segunda reunião aconteceu no dia 27 de outubro de 2014, no Rio da Prata (Campo Grande/ RJ) e contou com a
presença de agricultores que vivem dentro e no entorno do PEPB, ONGs, representantes de órgãos públicos ambientais e con-
selheiros do Mosaico Carioca. Nesta ocasião, foi definido que o foco principal do evento seria ouvir as necessidades, dúvidas e
pleitos das comunidades.
A terceira reunião para a construção do diálogo aconteceu no dia 10 de novembro de 2014, com os produtores do Men-
danha, no Sindicato Rural do Rio de Janeiro. Mais de 30 pessoas participaram, dentre produtores rurais, representantes do INEA,
SEA, Emater Rio e conselheiros do Mosaico Carioca. As principais temáticas e demandas apontadas como relevantes para a
construção do diálogo foram: a importância do associativismo, as queimadas, especulação imobiliária e questões sobre o uso
do solo na APA Gericinó/Mendanha.
A quarta reunião aconteceu em Vargem Grande no dia 17 de novembro de 2014, e estavam presentes produtoras e
produtores agrícolas, representantes de comunidades quilombolas, INEA, SEA, Emater Rio e conselheiros do Mosaico Carioca.

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Destacam-se como temas de debate: a necessidade de tornar as informações referentes ao Mosaico Carioca (e às UC abarca-
das por ele) acessíveis (tanto fisicamente quanto à adequação de linguagem), a possibilidade de o Mosaico ser um apoiador
no reconhecimento de comunidades tradicionais inseridas no seu território e a necessidade de tornar a Trilha Transcarioca2 um
projeto mais inclusivo e próximo à realidade social que está inserido.
A estruturação do evento contou com uma mesa de abertura, uma apresentação sobre o Mosaico Carioca, e 3 mesas
redondas: 1) Conflitos; 2) Resistências; e 3) Convergências (finalização e encaminhamentos).
De modo geral, o acontecimento consistiu na exposição de questões que perpassam os conflitos territoriais, em especial
os fundiários e os ligados à atividade agrícola, a partir da perspectiva de moradores, quilombolas, produtores e produtoras agrí-
colas que vivem dentro e no entorno dos dois parques estaduais do Mosaico Carioca. Os principais conflitos pontuados foram,
a invisibilidade dos agricultores pelo fato da prefeitura municipal declarar que não existe área rural no município, os agricultores
serem tratados como principais infratores, os privilégios dados a infratores e invasores de maior poder aquisitivo, a população
ser ignorada em projetos para o território como a Trilha Transcarioca, de forma a favorecer os interesses do mercado, e a espe-
culação imobiliária e favelização. Como principais oportunidades foram apontadas o apoio que os moradores dão à conservação,
afastando invasores e degradadores, a chance deles se capacitarem em práticas agroecológicas e se organizarem em associa-
ções e cooperativas, a chance de discutir como apoiar a permanência da agricultura sem que isso implique em inobservância
da legislação ambiental, além da abertura do diálogo por si só. Tanto agricultores quanto gestores enxergam ameaças comuns,
como a especulação imobiliária, favelização e a realização indevida de corridas de Motocross dentro das UC, o que evidenciou
a importância de uma atuação conjunta para a conservação e não uma exclusão das comunidades agrícolas, tratando-as da
mesma forma como se tratam infratores.

Algumas reflexões e perspectivas


Este evento foi o primeiro passo para a construção de um diálogo entre o poder público, responsável direto pela gestão
de UC, e as comunidades residentes no interior dos Parques Estaduais da Pedra Branca e do Mendanha. Ele tornou evidente a
necessidade de garantir que o Mosaico Carioca seja um espaço para o poder público escutar as comunidades presentes no seu
território. Alguns encaminhamentos foram elaborados ao final do evento, como forma de garantir a continuidade do diálogo e
apontar o direcionamento que se pretende seguir a partir de agora para sanar os conflitos com as comunidades agrícolas dentro
das duas UC. Segue abaixo a listagem dos mesmos:
• Intercâmbio e troca de experiências com agricultores e gestores que participam de outros MAP;
• Fomento para transição agroecológica e práticas sustentáveis no entorno das UC do Mosaico Carioca;
• Articulação para viabilizar projetos junto a Câmara de Compensação Ambiental para levantamentos socioeconômicos
dos PEPB e PEM;
• Calendário anual para discussão sobre o tema;
• Criação de fórum permanente de discussão trimestral, fazendo revezamento entre os locais;
• Montar projeto piloto no PEPB para construção de termos de compromisso entre INEA e produtoras e produtores agrícolas.
A partir dos encaminhamentos podemos concluir que há o reconhecimento por parte de alguns gestores públicos de
um histórico marcado por abordagens de distanciamento e a busca por mudanaça de cenário. Comunidades que já viviam em
localidades dentro e no entorno dos parques não devem ser removidas a força e, portanto, devem ser construídos instrumentos
que regulem sua permanência, reconhecendo a proteção que elas trazem ao ambiente e ao mesmo tempo limitando condutas
que possam vir a ser lesivas ao mesmo. Ao ser esvaziada a posição de opositores, dificultadores, oponentes, invasores e degra-
dadores e reconhecida a posição de interlocutores necessários, os povos e comunidades tradicionais alcançam a legitimidade e
a visibilidade necessárias à condição de corresponsáveis pela conservação (BRASIL, 2014).
Proporcionar este espaço de diálogo para sanar conflitos socioambientais históricos vem se mostrando como uma das
principais provas da efetividade dos MAP na gestão integrada da conservação ambiental, criando condições para que as UC
(inclusive as de proteção integral) cumpram seus objetivos de criação ao mesmo tempo em que promovem a valorização da
2
Este pode ser considerado o principal projeto do Mosaico Carioca, sendo também o que possui maior visibilidade, pois possui um forte apelo turístico e econômico.
O projeto consiste na conexão de um conjunto de trilhas existentes e em vias de implementação num traçado de cerca de 180 km pelas seguintes UC: Parque Natural
Municipal (PNM) de Grumari, Parque Estadual da Pedra Branca, Parque Nacional da Tijuca, PNM da Catacumba, PNM da Paisagem Carioca e o Monumento Natural
Municipal dos Morros do Pão de Açúcar e da Urca (PENA, 2015, p. 75).

05: Sistemas de Gestão e Governança


765
sociobiodiversidade presente nas mesmas.

Agradecimentos
A elaboração deste trabalho foi possível graças à todo o grupo de trabalho empenhado na organização e execução do
“1° Encontro para o Diálogo entre Comunidades agrícolas e tradicionais e Parques do Mosaico Carioca, Experiências: Parque
Estadual da Pedra Branca e Parque Estadual do Mendanha”, na organização das reuniões de mobilização pré-evento. Foram
produtores rurais, representantes de organizações sociais e servidores da SMAC e INEA que tornaram possível este primeiro
para um objetivo em comum. Neste sentido, os autores agradecem especialmente à: Bernadete Montesano, Maria das Graças
Nascimento, Vinicius de Laia, Marco Antonelli, Carlos Dário, Alexandre Chagas Francisco Caldeira, Sandro Da Silva Santos,
Alexandre Pedroso, Sílvia Baptista, Alba Simon, Rita Montezuma, Daniela Albuquerque, Claudemar Mattos, Marta Varges, Clau-
dia Magnanini, Madalena da Silva Gomes, Solimar Oliveira de Farca, Luiz Carlos do Nascimento e Pedro dos Santos, que partici-
param ativamente nas etapas de mobilização e organização do evento.
Além desses, agradecemos também à todos os participantes do evento, que contribuíram com os ricos debate: Renan
Zanatta, Rafael Ribeiro, Mario Luiz, Marcelo Barros de Andrade, Christiane dos Santos Rio Branco, Fernanda da Silva Figueira
Rodrigues, Daniel Machado de Oliveira Patrícia Tavares, Renato Silva, Nazário Luz, Stella Rodriguez, Maria Regina, Morgana
Mazelli, Carlos Alberto Riacalvo, Sampaia do Rosário, Aurea Alves do Nascimento, Arnaldo Costa, Roberto Nascimento, Laura
Sinay, Marcia Cristina, Jorge Cardia, Francisco Souza, Annelise Fernandez, Cristina Novais, Eric Vidal, Vagner Rodrigues, Vinicius
Bertin, Rodolfo Lobato, Emilia Jomalinis, Marcelo Correa, Saney Souza, Herica Simone, Gabriel Ribeiro Batista e Lorena Dávila.

Referências
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aspta.org.br/2015/03/agroecologia-espaco-de-producao-dos-encontros-das-organizacoes-camponesas/>Acesso em 14 julho 2015.

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2000.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Rio de Janeiro. 2009.

05: Sistemas de Gestão e Governança


767
RESERVA PARTICULAR DO PATRIMÔNIO NATURAL MUNICIPAL CASCATINHA,
SITUAÇÃO ATUAL DA GESTÃO DA PRIMEIRA RPPNM DE CURITIBA

Basniak, Marília Thiara Rodrigues¹ & Tetto, Alexandre França ²

1. Mestranda no PPG em Engenharia Florestal da Universidade Federal do Paraná – UFPR, mariliabk@gmail.com Curitiba - Brasil.
2. Professor Doutor do Departamento de Ciências Florestais – UFPR.

Resumo
A RPPNM Cascatinha foi a primeira RPPNM a ser criada no município de Curitiba. Criada no ano de 2007, serviu de inspiração
para a criação de outras áreas protegidas privadas em Curitiba. Após cerca de 8 anos da sua criação, este trabalho teve o objetivo
de avaliar a situação atual da área em relação a sua efetividade de manejo. O método utilizado foi o denominado Efetividade de
Manejo de Áreas Protegidas (EMAP). Para isso, foram utilizados dados sobre a gestão da reserva obtidos por meio de entrevista
sobre os seguintes âmbitos: planejamento e ordenamento, administrativo, conhecimento, qualidade dos recursos naturais e usos
atuais. A RPPNM Cascatinha registrou 64% de efetividade de manejo, o que é considerado um padrão mediano de qualidade de
gestão de acordo com a escala adotada.

Palavras-chave: Efetividade de Manejo de Áreas Protegidas, Unidade de Conservação, Áreas Verdes Urbanas, Áreas Protegidas
Privadas.

Introdução
Matos & Queiroz (2009) definem áreas verdes urbanas como locais inseridos em uma cidade, com solo não imperme-
abilizado e com a presença de vegetação, predominando a arbórea. Elas podem ser de uso público ou privado e incluem várias
categorias, como arborização de ruas, avenidas, rotatórias, praças, parques, jardins, dentre outras, devendo cumprir as funções
ecológica, social e estética.
As áreas de vegetação nativa nas cidades, além de embelezarem a paisagem, preservam espécies vegetais, oferecem
abrigo e alimentação para a fauna, contribuem para a boa qualidade do ar, mantêm a integridade e permeabilidade do solo re-
duzindo o risco de enchentes e erosões, regulam o microclima reduzindo as “ilhas de calor”, entre tantos outros benefícios diretos
e indiretos (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, 2013).
Desde a década de 70 o poder público de Curitiba vem implementando políticas municipais, mecanismos legais e fiscais
a fim de conservar todas estas áreas verdes, sejam elas privadas ou públicas (PANASOLO et al; 2014). Nos últimos dez anos,
a área dos maciços florestais de Curitiba teve um aumento significativo, passando de 18 para 26% da área do município, sendo
que o índice de áreas verdes que era de 51,5 m²/hab em 2000 aumentou para 64,5 m²/hab em 2010 (CURITIBA, 2012). Dessas
áreas, conforme Ribeiro (2012), aproximadamente 25% encontram-se em unidades de conservação municipais e 75%, em áreas
particulares.
Ações de conservação da natureza em propriedades privadas são consideradas uma importante estratégia para a pro-
teção da biodiversidade (LANGHOLZ, 1996; LANGHOLZ; LASSOIE, 2001). Segundo Primack & Rodrigues (2005), reservas
pequenas, localizadas próximo a áreas habitadas, podem servir de excelentes centros de estudos da natureza e educação para
conservação.
De acordo com o Sistema Nacional de Unidade de Conservação, a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) é
uma unidade de conservação de uso sustentável, instituída em áreas privadas, gravada com perpetuidade, que tem como obje-
tivo conservar a diversidade biológica (BRASIL, 2000).
Assim, a capital paranaense se tornou a primeira cidade do país a instituir o instrumento de Reserva Particular do Pa-
trimônio Natural Municipal (RPPNM). A primeira RPPNM de Curitiba, denominada RPPNM Cascatinha, nasceu do esforço de
moradores do bairro de Santa Felicidade, na zona oeste de Curitiba. A proposta começou a nascer em 2002, quando entidades do
bairro fizeram fóruns com seus membros buscando identificar ações voltadas a garantir a qualidade de vida na região. O grupo
decidiu investir na despoluição do rio que dá o nome a RPPNM, contratou um levantamento de flora, fauna, ictiologia e qualidade

05: Sistemas de Gestão e Governança


769
de água do rio, e descobriu que não havia resíduos químicos no rio, a poluição era exclusiva de esgotos domésticos, encontrou
rica diversidade de mamíferos, aves e ainda algumas espécies de peixe (AMBIENTE BRASIL, 2007).
De acordo com o mesmo autor, a Prefeitura de Curitiba, apoiou o levantamento da biodiversidade, e sugeriu que a área
estudada fosse transformada em uma reserva ecológica, até então a possibilidade legal facultada pelo município, e assim surgiu
a ideia de se criar as Reservas Particulares do Patrimônio Natural Municipal em Curitiba.
No ano de 2000 foi decretada a Lei nº 9.804, que cria o Sistema Municipal de Unidades de Conservação do Município de
Curitiba (SMUC). O SMUC rege as áreas verdes de Curitiba, além de estabelecer os critérios e procedimentos para a implan-
tação de novas unidades de conservação. Inicialmente o sistema previa nove diferentes categorias de unidades de conservação
municipais, porém, no ano de 2006 a Lei do SMUC foi complementada com a Lei nº 12.080, a qual cria a Reserva Particular do
Patrimônio Natural Municipal, totalizando 10 categorias de conservação. Em dezembro de 2011 os dispositivos de tal Lei foram
alterados pela Lei nº 13.899, que criou as RPPNMs. Em janeiro de 2015, foi criada a Lei nº 14.587, que reestruturou o programa
das Reservas Particulares do Patrimônio Natural Municipal, revogando as Leis nos 12.080/2006 e 13.899/2011.
De acordo com Machado (2007), o fortalecimento das RPPNs, como ferramenta na conservação biológica, depende de
políticas públicas de apoio aos proprietários mais eficazes e de um incremento aos instrumentos econômicos de incentivo à
criação, gestão e análise da efetividade do manejo destas reservas.
O manejo de uma área protegida é definido como o conjunto de ações e atividades necessárias ao alcance dos obje-
tivos das unidades de conservação, incluindo as atividades fins como proteção, recreação, educação, pesquisa e manejo dos
recursos, bem como as atividades de administração ou gerenciamento (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2006). De acordo
com Izurieta (1997) e Cifuentes, Izurieta & Faria (2000), a efetividade do manejo é considerada como o conjunto de ações que,
com base em habilidades, capacidades e competências particulares, permitem cumprir satisfatoriamente a função para a qual
a área protegida foi criada. O objetivo deste trabalho foi o de avaliar a situação atual da primeira RPPNM de Curitiba, por meio
da medição da efetividade de manejo.

Materiais e Métodos
Caracterização da área
A RPPNM Cascatinha foi criada por meio do Decreto nº 234, de 27 de março de 2007. A área possui 8.201,25 m², está
localizada na rua Sebastião Santos, no bairro de Santa Felicidade, município de Curitiba. O rio conhecido por Cascatinha corta
a unidade e pertence à sub-bacia do rio Barigui. Está inserida no Bioma Mata Atlântica, na ecorregião da floresta com araucária
ou Floresta Ombrófila Mista (BASTOS, 2005).
Segundo inventário realizado por BASTOS (2005), na unidade o fragmento de vegetação caracteriza-se como um rema-
nescente da Floresta Ombrófila Mista Aluvial, diretamente ligada à existência do rio Cascatinha, e há a ocorrência de pelo menos
52 espécies de mamíferos, 95 espécies de aves, duas de anfíbios e duas de peixes.
A RPPNM Cascatinha tem por função básica a promoção da preservação da biodiversidade, através da proteção da
fauna, da vegetação nativa e dos recursos hídricos ali localizados, em caráter irrevogável. Na RPPNM Cascatinha será possível o
desenvolvimento de atividades de pesquisa científica e visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais (CURITIBA,
2007).

Processo Metodológico
A metodologia utilizada para se medir a efetividade da gestão da RPPNM foi a denominada Efetividade de Manejo de
Áreas Protegidas (EMAP), desenvolvida por Cifuentes, Izurieta & Faria (2000), sendo incorporadas algumas modificações pro-
postas por Faria (2004), Pellin (2010) e pelos autores.
A aplicação desta metodologia implica no uso de indicadores, em acordo com os objetivos de manejo da categoria de
gestão das unidades a serem avaliadas, a construção de cenários ótimos e atuais para cada indicador e associação destes a uma
escala padrão (PELLIN, 2010), onde o maior valor corresponde à melhor situação e o menor valor corresponde à pior situação
possível de ocorrer no sistema. Os indicadores selecionados compreendem os seguintes âmbitos: político e legal, planejamento
e ordenamento, administrativo, conhecimento, qualidade dos recursos naturais e usos atuais, conforme demonstrada na Tabela 1.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
770
Comparando-se proporcionalmente o cenário ótimo com o cenário atual, obtém-se um valor em porcentagem que, cor-
relacionada a uma escala de valoração, define o nível de eficácia do manejo (Tabela 2).

05: Sistemas de Gestão e Governança


771
A coleta de dados foi realizada através de uma entrevista guiada por um questionário estruturado, elaborado de acordo
com os indicadores estabelecidos. Com estas informações, as matrizes com os cenários para avaliação do manejo foram preen-
chidas, obtendo-se assim o resultado.

Resultado e Discussão
A RPPNM Cascatinha foi criada com o principal motivo de conservar espécies e ecossistemas, proteger recursos hídri-
cos e por satisfação pessoal do proprietário da área. Quando criada, não recebeu apoio, pois não existia a figura da RPPNM insti-
tucionalizada no município de Curitiba, havendo posteriormente, incentivos decorrentes da Lei nº 12.080 de 2006. A propriedade
pertence à mesma família há cerca de 30 anos. No local, antigamente, havia plantação de vime.
Em relação ao âmbito legal, não existem problemas jurídicos relacionados ao seu processo de reconhecimento, pois
possui seu memorial descritivo e é averbada na matrícula do imóvel. Atualmente, conta com um incentivo relacionado a isenção
de IPTU e com uma certidão de venda de potencial construtivo. Com esta certidão, o proprietário pode transferir o direito que
ele tem de construir na unidade para outro local que não tenha restrições ambientais, respeitados os parâmetros previstos na
legislação específica (PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA, 2013).
De acordo com o mesmo autor, o roteiro para criação e elaboração do plano de manejo e conservação de Reservas Par-
ticulares do Patrimônio Natural Municipal de Curitiba, solicita a elaboração do relatório anual contendo a avaliação da efetividade
da área para a conservação da biodiversidade, especificando quais atividades estão sendo desenvolvidas no local, e qual a apli-
cação do recurso financeiro eventualmente destinado à manutenção da área. Este relatório não está sendo elaborado anualmente
por falta de cobrança da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA).
No âmbito político, a unidade não conta com parceiros para a gestão da área, mas já contou com apoio técnico que auxi-
liou no alcance dos seus objetivos específicos de manejo. O proprietário participa com frequência das reuniões da Associação
de Proprietários de Áreas Verdes de Curitiba e Região Metropolitana (APAVE). Também frequenta reuniões relacionadas a con-
servação da natureza. A reserva também realiza ações de divulgação junto a sociedade, tais como em jornais e redes sociais, e
a sua relação com a população do entorno é boa.

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772
Com relação ao planejamento da área, a unidade tem como principais objetivos de manejo conservar espécies e ecos-
sistemas, conservar o rio Cascatinha, promover a educação ambiental, conservar a beleza cênica e preservar o bairro onde se
localizada a unidade e o local onde os primeiros moradores frequentavam para pegar água.
A unidade possui um plano de manejo aprovado pela SMMA no ano de 2010, porém, como ele foi elaborado anterior-
mente ao roteiro para criação e elaboração do plano de manejo e conservação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural
Municipal de Curitiba do ano de 2013, não possui os programas e zoneamento conforme solicita este documento.
Na parte administrativa, a reserva possui um administrador e uma pessoa que trabalha com serviços gerais, mas não pos-
sui uma infraestrutura adequada para o manejo. Há a intenção de implantar uma sede para a administração, uma portaria, trilhas,
decks, placas de sinalização e infraestrutura para a realização de arvorismo, porém não existe uma previsão para o começo das
obras.
Em relação ao conhecimento sobre a unidade, as informações biofísicas, socioeconômicas e cartográficas estão dis-
poníveis para utilização na área, por meio do documento denominado “Relatório Final da Área Cascatinha”, sendo estes dados
utilizados como subsídios para o manejo, porém as informações geradas por pesquisas desenvolvidas ainda são escassas e não
estão acessíveis na unidade.
Sobre a qualidade dos recursos naturais, cerca de 70% da área está conectada a remanescentes de vegetação nativa, e
entre 5 a 15% da área está degradada ou em recuperação. A caça, o incêndio florestal, as invasões, a pressão urbana, a poluição
e as espécies exóticas são consideradas como ameaças a unidade.
No âmbito usos atuais, existem somente atividade permitidas na unidade, sendo estas compatíveis com os objetivos de
manejo, porém as normas que as regulam são pouco claras.
Com esses dados analisados, a RPPNM Cascatinha registrou 64% de efetividade de manejo, o que de acordo com a clas-
sificação proposta por Faria (2004) é considerado um padrão mediano (de 55 a 69,99%) de qualidade de gestão. Isso significa que
ela apresenta problemas pontuais, mas eles interferem no efetivo manejo e no alcance dos seus objetivos.
Não existem muitos estudos relacionados à avaliação da efetividade de manejo de reservas particulares no Brasil. Um
deles foi realizado por Mesquita (1999), que avaliou o manejo de quatro reservas privadas do Brasil e duas da Costa Rica. Das
reservas do Brasil, foi concluído que apenas uma destas reservas, a Reserva Natural Salto Morato, era classificada como um
padrão elevado de gestão, de acordo com escala utilizada neste trabalho. As outras três áreas, Estação Veracruz, Fazenda Bom
Retiro e Ecoparque de Uma, enquadraram-se em um padrão mediano de gestão.
Debetir (2006) avaliou a gestão das unidades de conservação sob influência de áreas urbanas, realizando o estudo no
município de Florianópolis. Entre as unidades de conservação analisadas, duas eram RPPNs, a Reserva Natural Menino Deus e
a Reserva Particular do Patrimônio Natural Morro das Aranhas, ambas com padrão inferior de eficácia.
Outro estudo, realizado no estado do Mato Grosso por Pelin (2010), mostrou que 17,6% das RPPNs deste estado possuem
um padrão elevado de manejo, sendo que 11,8% têm um padrão de excelência, 17,6% possuem um padrão elevado, 20,6% pos-
suem um padrão muito inferior e 32,4% possuem um padrão inferior de gestão.

Conclusões
A RPPNM Cascatinha teve 64% de efetividade de manejo, o que de acordo com a classificação adotada, é considerado
um padrão mediano (de 55 a 69,99%) de qualidade de gestão.
Como ponto positivo, destaca-se que os documentos necessários para a criação (memorial descritivo) e a averbação na
matrícula do imóvel estão conforme a legislação pertinente, todos os usos realizados são permitidos, cerca de 70% da área está
conectada a remanescentes de vegetação nativa. Pode-se mencionar também que em relação ao conhecimento, as informações
biofísicas, socioeconômicas e cartográficas são detalhadas e estão à disposição para consulta na unidade.
Esta unidade tem um importante papel na história da política ambiental de Curitiba, pois é a primeira RPPNM de Curitiba,
tendo sido inclusive a inspiração para a criação da legislação que normatiza este tipo de unidade. Por ter sido a primeira a ser
criada, o seu plano de manejo não possui os programas e o zoneamento em acordo com o roteiro metodológico que foi publicado
posteriormente, prejudicando o planejamento da área e assim o seu manejo efetivo. A elaboração do relatório anual, com todas
as especificações solicitadas no roteiro metodológico, se caracterizou como um ponto negativo, pois é por meio deste relatório
que a Prefeitura Municipal de Curitiba avalia a efetividade de gestão das RPPNMs de Curitiba.

05: Sistemas de Gestão e Governança


773
Agradecimentos
Ao Sr. Eurico Borges dos Reis, proprietário da RPPNM Cascatinha, pela disposição, fornecimento dos documentos e
atenção dispensada durante a realização do presente trabalho.

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05: Sistemas de Gestão e Governança


775
TERMO DE COMPROMISSO ENTRE PESCADORES DE TARITUBA E
ESTAÇÃO ECOLÓGICA DE TAMOIOS: RELATO DE PERCURSO

Chada, Sylvia de Souza

Analista Ambiental ICMBio, sylvia.chada@gmail.com

Resumo
O trabalho relata o processo de construção participativa de um Termo de Compromisso entre a Estação Ecológica de Tamoios,
unidade de conservação federal de proteção integral na baía da Ilha Grande, RJ, e pescadores artesanais da comunidade de
Tarituba. Situa o contexto de implementação da unidade de conservação a partir de meados da década de 2000, evidenciando
os fatores que contribuíram para o desvelamento dos conflitos devido à apropriação de territórios tradicionais da pesca artesanal
pela unidade de conservação. Descreve o processo de construção do acordo entre os anos de 2012 até o momento atual. Reflete
sobre as possibilidades do termo de compromisso enquanto instrumento de gestão para as unidades de conservação, processo
de construção participativa e instrumento de gestão pesqueira; com um longo caminho a percorrer para garantir efetividade a
processos participativos de longo prazo.

Palavras-chave: Termo de Compromisso, Baía da Ilha Grande, Pescadores Artesanais

Introdução
Este trabalho relata o percurso de um processo de gestão: a construção de um termo de compromisso entre pescadores
artesanais da comunidade de Tarituba, em Paraty, e a Estação Ecológica de Tamoios, unidade de conservação federal de pro-
teção integral situada na baía da Ilha Grande, litoral sul do estado do Rio de Janeiro, sob administração do ICMBio (Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade).
Este termo de compromisso se insere na história recente de implementação das unidades de conservação nesta região,
que se deu junto com o progressivo desvelamento de conflitos inerentes a interação entre os diferentes atores, interesses e visões
com esses espaços especialmente protegidos.
O termo de compromisso é um instrumento de gestão previsto no Decreto nº 4.340/20021, que definiu em seu artigo 39
que as condições de permanência de populações tradicionais em unidades de conservação de proteção integral seriam regu-
ladas por um termo de compromisso negociado entre as partes, órgão gestor e populações, com participação do conselho da
unidade, até que houvesse condições de reassentamento.
Na experiência que relataremos não há população residente na UC e sim usuários dos recursos das áreas marinhas da
unidade, uma vez que o território marinho da baía da Ilha Grande é território tradicional da pesca artesanal.
O Termo de Compromisso da ESEC Tamoios tem sido objeto de estudo de trabalhos acadêmicos recentes (ARAUJO et
al., 2014; DE FREITAS, 2014; JOVENTINO, 2013; TRIMBLE; ARAUJO; SEIXAS, 2014; JOVENTINO; JOHNSSON; LIANZA, 2013)
que o tem analisado dentro de uma perspectiva de iniciativas institucionais de mitigação de conflitos e gestão compartilhada
dos recursos pesqueiros, valorizando a participação, o compartilhamento de poder e de responsabilidade sobre as tomadas de
decisão (KALIKOSKI; SEIXAS; ALMUDI,, 2005) .
Este relato inclui os últimos capítulos deste processo em construção, não abordados nos trabalhos citados, na perspec-
tiva da técnica responsável pela condução do processo na UC.

Breve contextualização
A baía da Ilha Grande está situada no sul do estado do Rio de Janeiro e inclui os municípios de Angra dos Reis
e Paraty. Além de ser detentora de relevância paisagística singular e de ser classificada como área de importância biológi-
caextrema para a conservação da biodiversidade brasileira2, congrega também um grande volume e diversidade de ativi-
1
O Decreto 4.340/2002 regulamentou artigos da Lei 9.985/2000, que estabeleceu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC
2
De acordo com a Portaria MMA nº 126, de 27 de maio de 2004, que estabeleceu “Áreas Prioritárias para a Conservação, Utilização Sustentável e Repartição de
Benefícios da Biodiversidade Brasileira”.

05: Sistemas de Gestão e Governança


777
dades econômicas tais como pesca, turismo, atividades portuárias, terminal petrolífero, estaleiros, usinas nucleares e mais re-
centemente, o ciclo econômico do pré-sal. Em termos de sociodiversidade, a região abriga um contingente expressivo e diverso
de populações e comunidades tradicionais; com quilombos reconhecidos e em processo de reconhecimento; várias aldeias
guaranis; comunidades caiçaras; pescadores artesanais e caipiras nos altiplanos da Serra do Mar; além de um conjunto expres-
sivo de unidades de conservação das três esferas administrativas e um Mosaico de Áreas Protegidas, reconhecido por portaria
do Ministério do Meio Ambiente3.
Com as primeiras unidades de conservação da região criadas na década de 70, foi somente na última década que estas
começaram a ter uma visibilidade maior para a sociedade, de um modo geral. Alguns fatores contribuíram para isso: reforço no
número de servidores, investimento de recursos de compensação ambiental, elaboração de planos de manejo e implementação
dos conselhos gestores.
Na medida em que se avançava na implementação destas unidades, também se revelavam os conflitos. Lembrando
que os conflitos nesses espaços constituem uma realidade que vem sendo construída desde a instituição das primeiras áreas
protegidas (BRITO, 2008).
A história de implementação da Estação Ecológica de Tamoios ilustra esse caminho, imbricado com relações de poder,
diferentes atores sociais e uma extensa gama de conflitos que envolvem toda a baía da Ilha Grande.

A Estação Ecológica de Tamoios e a Comunidade de Tarituba


A Estação Ecológica de Tamoios (ESEC Tamoios) é uma unidade de conservação insular e marinha espalhada pela baía
da Ilha Grande, nos municípios de Angra dos Reis e Paraty, sul do estado do Rio de Janeiro. É composta por 29 ilhas, ilhotes, lajes
e rochedos e o entorno marinho no raio de 1 km de cada um desses pontos formando um conjunto descontínuo de 12 blocos, con-
forme pode ser observado no mapa da UC. Perfaz cerca de 8.700 ha, sendo cerca de 300 ha de ambientes insulares e 8.400 ha de
áreas marinhas. Tem como objetivo principal proteger, pesquisar e monitorar parte dos ambientes marinhos e de Mata Atlântica
insular. Foi criada em 19904 e possui relação intrínseca com a instalação das Usinas Nucleares no Município de Angra dos Reis5.
A criação da ESEC Tamoios não foi precedida de qualquer consulta à sociedade local, da mesma forma como foram
instituídas as usinas nucleares na região, durante a ditadura militar. Se por um lado a decisão de construção da Usina Angra 1
provocou uma reação nacional e local, a criação da Estação Ecológica de Tamoios passou despercebida por vários anos no
contexto local, devido a demora na real implementação da unidade de conservação criada.
Com a criação da UC, territórios tradicionais de pesca foram apropriados como áreas de exclusão de pesca. Uma das
comunidades mais impactada com a criação da ESEC Tamoios foi a comunidade pesqueira de Tarituba.
Tarituba é uma pequena comunidade de pescadores artesanais localizada, em uma enseada há 34 Km ao norte da cidade
de Paraty, entre os quilômetros 153 e 154 da Rodovia Rio Santos. Apesar do turismo ser uma atividade geradora de renda bem
estabelecida na localidade, a pesca artesanal é bastante relevante na economia local, com destaque para a produção de ca-
marão e robalo. Segundo Begossi (2010), parcela representativa dos pescadores artesanais vive exclusivamente da pesca, com
um retorno acima da média da região, especialmente devido à especialização na pesca de peixes nobres e ao desenvolvimento
de técnicas próprias. Com a criação da ESEC Tamoios, as principais áreas de pesca da comunidade viraram áreas de exclusão:
o bloco formado pelas ilhas Comprida, ilhote Grande, ilhote Pequeno e Laje do Cesto, no acesso da comunidade para o mar,
e o bloco formado pelas ilhas Araraquara, Araraquarinha, rochedo de São Pedro e Jurubaíba, a cerca de 4 km da comunidade;
pesqueiros importantes para a comunidade (BEGOSSI, 2010). A construção do termo de compromisso se deu considerando es-
ses 2 blocos de ilhas da ESEC Tamoios (Figura 1).

3
Portaria MMA nº 349, de 11 de dezembro de 2006, que instituiu o Mosaico Bocaina
4
Entretanto, a escolha das ilhas que integrariam a ESEC Tamoios foi feita no início da década de 80.
5 O Decreto nº 84.973/1980 estabelece a necessidade de co-localização de estações ecológicas e usinas nucleares.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 1. Localização da Comunidade de Tarituba e dos dois blocos de ilhas da ESEC Tamoios propostos no
Termo de Compromisso. Fonte: Informação Técnica ESEC Tamoios nº 21/2013

O processo de implementação da ESEC Tamoios nos últimos 10 anos


A visibilidade da UC para a sociedade começou a ocorrer em meados década de 2000, quando a equipe técnica da UC
foi ampliada e foram investidos recursos de compensação ambiental da Usina Nuclear Angra 2 na construção da sede, inaugu-
rada em 2005, na elaboração do Plano de Manejo da UC, publicado em 2006, e na compra de uma lancha também no mesmo
período.
Com a chegada da embarcação, iniciaram as atividades de monitoramento e fiscalização. Pescadores que nunca tinham
ouvido falar da existência desta unidade de conservação começaram a ser notificados ou multados por estarem exercendo ativi-
dade de pesca dentro de áreas marinhas da unidade.
Neste mesmo período entrou em atividade o conselho gestor da UC, com caráter consultivo6. Reunindo várias representa-
ções relacionadas à atividade pesqueira7 rapidamente as reuniões do Conselho Consultivo da ESEC Tamoios transformaram-se
em um fórum voltado em grande parte para discussões relacionadas ao setor pesqueiro, até mesmo pela ausência de qualquer
outro fórum na região que cumprisse esse papel à época. Em 2007 foi instituída no âmbito do Conselho Consultivo uma Câmara
Técnica de Aqüicultura e Pesca, que reuniu um leque ainda maior de instituições envolvidas com a pesca na região. A Câmara
Técnica, de certa forma, ultrapassou os limites da unidade de conservação, para assumir praticamente um papel de articulação
regional, buscando um ordenamento da pesca na baía da Ilha Grande.
Ao mesmo tempo em que se fortalecia o diálogo e a parceria entre unidade de conservação e pescadores, se intensifica-
vam ações de fiscalização, acirrando os conflitos. A partir de 2007, com a divisão do IBAMA e a criação do ICMBio, as ações de
fiscalização na região começaram a ser coordenadas pelo Escritório Regional do IBAMA. A instalação de um escritório da Polícia
Federal em Angra dos Reis nesse mesmo período, atuando em parceria com os órgãos ambientais, contribuiu para que as ações
de fiscalização se tornassem mais frequentes e policialescas.
As reclamações de pescadores sobre abusos de autoridade nas ações fiscalizatórias começaram a ser recorrentes (JO-
VENTINO; JOHNSSON; LIANZA, 2013; JOVENTINO, 2013; OLIVEIRA, 2010), junto com uma percepção, por parte dos pes-

6
De acordo com o SNUC (Lei 9.985/2000), todas as categorias de UC de proteção integral, como é o caso das Estações Ecológicas, devem ter conselhos de caráter
consultivo.
7
Colônias de Pescadores dos municípios de Angra dos Reis e Paraty, Secretarias Municipais de Pesca de ambos os municípios, Ministério da Pesca e Aqüicultura,
Associações de Maricultores, Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro e Capitania dos Portos da Marinha do Brasil.

05: Sistemas de Gestão e Governança


779
cadores, de ausência de fiscalização sobre demais atividades (casas de veraneio em áreas de proteção permanente, turismo,
pesca industrial e de mergulho, por exemplo). Além da total falta de distinção entre ICMBio e IBAMA, devido a recente separação
dos órgãos.
Aliado às formas de abordagem durante operações de fiscalização, ocorreram questionamentos relativos à ausência de
consulta pública para a criação da ESEC Tamoios e a sobreposição das áreas da ESEC com importantes pesqueiros (OLIVEIRA,
2010), além de todo um emaranhado de legislação pesqueira e ambiental que incide sobre o território da baía da Ilha Grande.
De Freitas (2014) observa que a complexidade da legislação pesqueira e ambiental tornam as regras pouco conhecidas entre os
usuários e portanto, pouco funcionais. E por outro lado faltam regras formais regulamentando artes de pesca artesanais de uso
significativo na baía da Ilha Grande.
Nesse cenário, vários documentos começaram a ser elaborados, principalmente pela Câmara Municipal de Paraty,
endereçados a diferentes instituições e esferas de poder: Ministério Público Federal, Ministério da Pesca, Chefia da ESEC
Tamoios e Presidência do ICMBio, Prefeituras e Câmaras de Vereadores de Paraty. Se organiza também nesse mesmo período o
“Movimento Revolucionário dos Sem-Mar de Paraty”.
Esta mobilização resultou na formalização de um processo administrativo8 no ICMBio, em 2009, por iniciativa da Câmara
de Vereadores de Paraty, solicitando apoio para intervenção e maior diálogo junto a Estação Ecológica de Tamoios com os pes-
cadores, especialmente aqueles de Paraty – para além dos espaços já existentes: o conselho da unidade e a câmara técnica.
Nesse mesmo período, outras iniciativas estavam em curso na baía da Ilha Grande relacionados à temática de áreas
protegidas e pesca artesanal, como o projeto Mares da Ilha Grande, coordenado pelo Instituto Bioatlântica que gerou um Diag-
nóstico da Pesca Artesanal na Baía da Ilha Grande9, em 2009. Nesse contexto, tiveram início discussões para a elaboração de
Acordos de Pesca na baía da Ilha Grande, sob coordenação do Ministério da Pesca. Estas discussões a respeito dos acordos de
pesca consubstanciaram-se posteriormente no projeto “Desenvolvimento e Gerenciamento de Sistemas de Gestão de Aquicul-
tura e Pesca na baía da Ilha Grande” (LIANZA et al., 2013), coordenado pelo Núcleo de Solidariedade Técnica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (SOLTEC UFRJ) entre 2010 e 2012. Este projeto gerou um documento de diretrizes para um programa
de políticas públicas visando à gestão compartilhada dos recursos pesqueiros e aquícolas da baía da Ilha Grande. A ação de
elaboração do termo de compromisso entre ESEC Tamoios e pescadores artesanais estava prevista no eixo temático de orde-
namento pesqueiro, com vistas à condução de estratégias de mediação de conflitos envolvendo a atividade pesqueira e áreas
protegidas.
De certa forma, o processo de implementação da ESEC Tamoios neste período, através de operações de fiscalização,
mas principalmente com a implementação do conselho consultivo e com a criação da CT de Aquicultura e Pesca, criou espaço
para a participação social e articulação de setores historicamente excluídos de processos decisórios.

III - O Termo de Compromisso entre ESEC Tamoios e os pescadores de Tarituba


O processo de construção de acordos entre ESEC Tamoios e pescadores teve início em 2012 em resposta ao processo
acionado em 2009 pela Câmara de Vereadores de Paraty. Nesse intervalo o projeto “Desenvolvimento e Gerenciamento de
Sistemas de Gestão de Aquicultura e Pesca na baía da Ilha Grande” contribuiu com ações de capacitação e empoderamento
dos pescadores, bem como manteve acesa a temática mais geral dos acordos de pesca na baía da Ilha Grande. De acordo com
os documentos iniciais que instruíram o processo; enviados por órgãos públicos da esfera municipal de Paraty, associações e
colônias de pesca; as áreas da ESEC Tamoios sempre foram áreas de pescarias e a implantação da UC estaria excluindo social-
mente e prejudicando economicamente o setor pesqueiro de Paraty.
No início de 2012 informação elaborada pela Coordenação de Gestão de Conflitos Territoriais (COGCOT)10 do ICMBio
define condições mínimas para o início das atividades de construção participativa do termo de compromisso, como o posicio-
namento favorável da chefia, o lócus da Câmara Temática de Pesca do Conselho para condução dos trabalhos e etapas básicas
8
Processo ICMBio nº 02070.003813/2009-08
9
http://pib.socioambiental.org/anexos/4204_20090831_103424.pdf
10
A criação da COGCOT estabeleceu pela primeira vez um lócus específico no ICMBio para o enfrentamento das questões relacionadas aos conflitos devido a so-
breposição de territórios de populações tradicionais com unidades de conservação, em especial as de proteção integral. Vinculada à Coordenação Geral de Gestão
Socioambiental (CGSAM) e a Diretoria de Ações Socioambientais e Consolidação Territorial em Unidades de Conservação (DISAT), a COGCOT realizou o primeiro
mapeamento das situações de sobreposição de unidades de conservação com territórios de populações tradicionais, identificando pelo menos 39 situações de con-
flito entre territórios tradicionais e unidades de conservação de proteção integral em todo o país. Dentre elas, a situação dos pescadores artesanais e ESEC Tamoios.

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que deveriam ser atendidas11, afirmando que: “de acordo com o SNUC e demais atos normativos referentes aos direitos das
populações tradicionais, seria possível firmar termo de compromisso com pescadores artesanais que utilizam áreas da ESEC
para exercer pesca de subsistência, atividade que inclusive caracteriza o modo de vida das populações caiçaras”.
Matéria publicada no ICMBio em Foco12 nº 193, de maio de 2012, celebrava o início dos trabalhos: expectativas de forta-
lecimento das parcerias, respeito às práticas das populações tradicionais, aprendizado. Reconhecia-se que era um instrumento
de gestão ainda pouco experimentado pelo instituto, sem receitas prontas, gerando por outro lado grande oportunidade de
aprendizado institucional. A primeira reunião de retomada da Câmara Temática de Aquicultura e Pesca do Conselho Consultivo
da ESEC Tamoios se deu no dia 25 de abril de 2012, com o objetivo de nivelar entendimentos sobre o processo de construção
participativa, conhecer as etapas que deveriam ser trilhadas e planejar os primeiros passos do trabalho coletivo.
Em 2012 ocorreu a etapa de mobilização e articulação, com várias reuniões comunitárias, e também a etapa de levan-
tamento de informações secundárias. Estas foram apresentadas de uma forma sistematizada na reunião da Câmara Temática
realizada em 28 de junho de 2012. Nesta reunião também foi constituído um grupo de trabalho, com um número menor de insti-
tuições13, com uma dedicação maior para a condução dos trabalhos do TC. Em outubro de 2012 foi realizado o cadastramento
de 68 pescadores de Tarituba, com o apoio das instituições do grupo de trabalho. O cadastramento reuniu dados familiares,
socioeconômicos, das embarcações utilizadas na pesca, caracterizou as modalidades de pesca praticadas e reuniu dados de
comercialização. Esses dados foram analisados e apresentados na última reunião do ano do Conselho Consultivo da ESEC
Tamoios, em dezembro de 2012. Relatório interno da UC no período avaliava que “o processo de elaboração de Termos de Com-
promisso na ESEC Tamoios evoluiu bastante em 2012, tem um conjunto robusto de parceiros comprometidos com a agenda,
pode ser exemplo na Instituição para outros TCs e precisa manter o seu ritmo e compromisso com a sociedade, garantindo a
transparência e coerência” (ICMBio, 2012).
Em 2013 as atividades de construção participativa foram retomadas com uma oficina realizada em abril de 2013, que teve
como objetivo acordar critérios de participação no TC e pactuar as principais regras de uso. Neste momento foi estabelecido
também um objetivo superior para o TC, que nos acompanhou ao longo de todo o processo: “Contribuir com a formação de
laços genuínos de confiança, solidariedade e respeito entre ESEC Tamoios, pescadores de Tarituba e demais parceiros en-
volvidos no TC, atributos necessários para a condução de processos de longo prazo, com compromisso e continuidade”. Nesta
oficina foram pactuados os seguintes critérios para a participação no TC:
•Moradores de Tarituba;
• Abranger tanto pescadores comerciais artesanais quanto pescadores não comerciais de subsistência,
•Que possuam histórico de pesca na família, com atividade anterior à criação da ESEC Tamoios
• Que dependam da área da ESEC Tamoios para a atividade;
• Com embarcações de baixa mobilidade (canoas a remo);
• E que exerçam artes de pesca tradicionais (na oficina foram listadas um conjunto de artes de pesca tradicionais, que
depois foram validadas pelo grupo de beneficiários)
Com o apoio do grupo de trabalho foram identificados dentre os pescadores cadastrados os dois grupos que deveriam
compor o TC: pescadores comerciais artesanais e pescadores não comerciais de subsistência. Os pescadores comerciais arte-
sanais são aqueles que vivem basicamente da pesca. Os pescadores ditos de subsistência são moradores de Tarituba, muitas
vezes aposentados ou com outro meio de vida, mas que tem a pesca como tradição e que defendem o direito de poder pescar
ocasionalmente no “quintal de suas casas”, ou seja, nas áreas em frente à comunidade, que hoje se transformaram em áreas da
ESEC Tamoios.
Depois da oficina realizada em abril, ocorreram duas reuniões com um conjunto significativo dos pescadores envolvidos.
A primeira, realizada em maio de 2013, apresentou uma devolutiva da análise do cadastramento feito em outubro de 2014, que

11
Posteriormente, foi publicada a Instrução Normativa nº 26, de julho de 2012, que estabeleceu diretrizes e regulamentou os “procedimentos para a elaboração,
implementação e monitoramento de termos de compromisso entre o Instituto Chico Mendes e populações tradicionais residentes em UC onde sua presença
não seja admitida ou esteja em desacordo com os instrumentos de gestão”, detalhando as etapas necessárias para a construção desses acordos e estratégias de
monitoramento durante a fase de implementação.
12
Informativo semanal de circulação interna do ICMBio.
13
O grupo de trabalho foi formado por integrantes do ICMBio, lotados na ESEC Tamoios, da FIPERJ (Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro), AMOT
(Associação de Moradores de Tarituba), Colônia Z-18 de Paraty, Câmara de Vereadores de Paraty e APEPAD (Associação dos Pescadores Profissionais e Amadores
do 4º Distrito de Angra dos Reis).

05: Sistemas de Gestão e Governança


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havia sido apresentado somente no Conselho da UC e também os resultados da oficina de abril. A segunda foi uma reunião
realizada sem a presença do ICMBio, mas com a presença de instituições parceiras (Colônia de Pesca, Prefeitura Municipal de
Paraty) para o fechamento da lista de beneficiários - segundo os critérios acordados na oficina. Nesta reunião, 3 pessoas que
haviam sido cadastradas foram excluídas do TC pelo conjunto de pescadores e houve solicitação de participação por novas pes-
soas que não haviam sido cadastradas e que se enquadrariam nos critérios acordados. Atendendo a esta solicitação, abrimos
uma segunda oportunidade de cadastramento, em julho de 2013, mas que teve baixa adesão.
De agosto a outubro o grupo de trabalho se dedicou a consolidar a listagem dos pescadores e a fechar a minuta do
Termo de Compromisso, que deveria ser apreciada e validada no conselho, sendo esta a última etapa de construção participativa
prevista na Instrução Normativa ICMBio nº 26/2012. Em 15 de outubro de 2013 a minuta do TC foi aprovada na XXVII Reunião
do Conselho Consultivo da Estação Ecológica de Tamoios, reunião que contou com a presença de mais de 50 pessoas, com
participação da imprensa, políticos da região e muitos pescadores de Tarituba, além dos conselheiros.
O ano de 2013 foi marcado também por movimentações em torno de um projeto de lei federal14, proposto por um depu-
tado federal autuado pelo IBAMA por pescar em áreas da ESEC Tamoios, que com o apoio de outros dois deputados federais
com vínculo na região propunha a liberação da pesca artesanal ou amadora e pequenos armadores em toda a área da Estação
Ecológica. Ocorreram audiências públicas em junho, em Brasília, e em outubro, em Angra dos Reis. De acordo com De Frei-
tas (2014), a entrada do Congresso Federal nas reivindicações por mudanças institucionais na Estação Ecológica aumentou a
pressão para a conclusão do Termo de Compromisso, que foi sempre colocado pelos representantes formais do ICMBio como
uma possibilidade concreta de mediação de conflitos entre a UC e o setor pesqueiro, como alternativa ao projeto de lei.
O ano de 2013 se encerra com o processo administrativo concluído em sua fase de construção participativa do acordo,
sendo encaminhado para a sede do ICMBio em Brasília para manifestação final da Coordenação de Gestão de Conflitos Ter-
ritoriais, bem como pela Procuradoria Geral do Instituto. A expectativa dos envolvidos era de que a assinatura final do termo de
compromisso se daria no máximo até meados de 2014.
No primeiro semestre de 2014 a chefia da ESEC Tamoios foi convocada para uma reunião em Brasília, com o alto escalão
do Instituto. Nesta reunião foi acordado que o Termo de Compromisso deveria se tornar um TAC - Termo de Ajustamento de
Conduta, envolvendo-se o Ministério Público Federal com o instrumento de gestão. Para isso as principais peças do processo
administrativo do ICMBio foram disponibilizadas para a Procuradoria do Ministério Público Federal em Angra dos Reis, que fez
as suas considerações e incluiu alguns poucos artigos na minuta que havia sido apreciada e aprovada pelo Conselho da UC em
outubro de 2013. O grupo de trabalho do TC foi convocado para complementar informações solicitadas pelo MPF e alguns dos
membros do GT participaram de reunião com os dois procuradores federais lotados no MPF de Angra dos Reis em 02 de setem-
bro de 2014 para pactuação das modificações propostas pelo MPF na minuta do agora TAC a ser firmado com cada pescador
de Tarituba engajado no processo. Depois desta etapa, a minuta foi encaminhada para a Procuradoria Federal Especializada do
ICMBio, para emissão de parecer final que respaldasse a assinatura final do presidente do ICMBio nos TACs.
Também ao longo de 2014 transcorreu o projeto de pesquisa de aluna da UNICAMP denominado “Manejo pesqueiro
adaptativo: conciliando conservação e modos de vida”, que contribuiu com a construção de um programa de monitoramento
participativo da pesca em Tarituba. Atividades de capacitação e a implementação de programas de monitoramento participativo
constavam como uma das exigências do TAC. Foram realizadas duas oficinas. A primeira oficina, realizada em abril de 2014,
definiu os principais objetivos pretendidos com o monitoramento: mostrar a importância das áreas acordadas da ESEC Tamoios
para a pesca de Tarituba, diminuir os conflitos entre a fiscalização e pescadores, contribuir para que a pesca em Tarituba perdure
por anos e anos e contribuir para a valorização, fortalecimento e união dos pescadores. A segunda oficina, realizada em agosto,
avançou no desdobramento de indicadores simples para medir o alcance de cada objetivo. As oficinas permitiram aprofundar o
entendimento pelos pescadores do acordo que seria firmado, dos direitos e deveres de cada parte, contribuindo com o objetivo
superior de fortalecimento dos laços de confiança entre pescadores e Unidade de Conservação. O release enviado para publica-
ção no ICMBio em foco na época da realização da segunda oficina destacava: “O acordo ainda não foi firmado oficialmente. Mas
os pescadores de Tarituba já definiram quais são os principais objetivos e indicadores para um programa de monitoramento
14
Na época, estava em discussão na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara Federal o Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.119, de
2012, apensado ao Projeto de Lei nº 4.196, de 2012, que “Libera a pesca artesanal ou amadora e pequenos armadores com utilização de linha de mão, varas e anzóis,
com ou sem molinete, pequenas redes e corrico e atividade de maricultura e dispõe sobre o tráfego de embarcações artesanal ou amadora e utilização de praias na
Estação Ecológica de Tamoios”. O Projeto de Lei foi rejeitado em 2015.

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participativo da pesca artesanal e de subsistência na localidade de Tarituba, em Paraty... A expectativa dos pescadores é
grande quanto ao anúncio da data em que finalmente o acordo será chancelado pelo Instituto”.
Finalmente, após parecer favorável da Procuradoria do Instituto, a chefia da UC recebeu autorização da presidência do
Instituto para a assinatura dos TACs, inicialmente somente com os 25 pescadores que integravam o grupo de pescadores co-
merciais artesanais15.
A cerimônia de assinatura dos termos se deu em clima de festa, na XXX Reunião do Conselho Consultivo da ESEC
Tamoios, em 11 de dezembro de 2014. Faltavam ainda as assinaturas dos Procuradores do Ministério Público e do Presidente
para que finalmente os TACs fossem validados e publicados no Diário Oficial da União. As assinaturas dos procuradores foram
obtidas logo após a reunião e em seguida o processo e todos os TACs assinados foram despachados para o gabinete da
presidência do ICMBio.
A assinatura do acordo foi notícia em vários meios de comunicação. No site do Mosaico Bocaina16 a assinatura do acordo
com pescadores artesanais da comunidade de Tarituba foi noticiada com um momento inédito e promissor no território do
Mosaico Bocaina, considerando o potencial que esses acordos podem trazer, tanto para a conservação da natureza como para
as dinâmicas sociais das comunidades locais A notícia foi replicada no site do Instituto Socioambiental17 e no Diário do Vale18,
um jornal diário de circulação regional, foi registrada a declaração de um dos pescadores: “Vivo da pesca há 25 anos. Esse
acordo vai ser muito importante para a comunidade”. O site Foco Regional19 destacou em sua manchete: “Moradores de Tarituba
poderão pescar legalmente na ESEC Tamoios”, destacando que seria o primeiro TAC com o setor pesqueiro no país, e que havia
a expectativa da conquista ser estendida a outros pescadores do município. No site do MPF20 a manchete foi: “MPF garante pes-
ca tradicional à comunidade em Paraty e conservação da Estação Ecológica de Tamoios”, notícia replicada no site Ecodebate21.
O ano de 2015 teve início com a mobilização da equipe da UC para dar início às atividades de monitoramento participa-
tivo, ao mesmo tempo em que aguardava a publicação oficial dos TACs no Diário Oficial da União. No dia 08 de abril, quando
foi realizada a primeira reunião do Conselho Consultivo da ESEC Tamoios em 2015, o presidente do ICMBio compareceu e
informou que o a direção do ICMBio errou, que o TAC era muito permissivo, comprometedor para o instituto e inviável para
assinatura. Solicitou mais um voto de confiança para elaborar uma proposta alternativa e propôs uma reunião extraordinária em
30 dias para apresentar essa nova versão a ser elaborada. Pouco tempo depois houve mudança na presidência do ICMBio. Não
houve a reunião extraordinária no prazo previsto nem foi elaborada a nova versão. Em maio de 2015 o Procurador da República
que assinou os TACs pelo MPF oficiou Diretor do ICMBio solicitando informação quanto a assinatura dos TACs22. O presidente
da Câmara de Vereadores de Paraty, que participou ativamente de todo o processo desde o seu início, tem enviado mails para o
Ministério de Meio Ambiente e para o ICMBio, cobrando a assinatura do acordo. A chefia da UC suspendeu qualquer atividade
relativa ao TAC de Tarituba enquanto não tiver definição nos escalões superiores da instituição.

Considerações
O caminho trilhado ao longo desses últimos 3 anos e meio na condução do processo administrativo referente ao Termo
de Compromisso traz reflexões e questionamentos.
Quanto ao Termo de Compromisso como instrumento de gestão para as unidades de conservação de proteção integral,
há que se considerar que o mesmo possui caráter transitório. As questões de reconhecimento dos territórios ou do uso dos recur-
sos pelas populações tradicionais não se resolverão somente com a elaboração dos TCs. Entretanto, estes podem ser instrumen-
tos importantes no distensionamento das relações entre gestores de UC e comunitários, podem gerar conhecimento e também,
mesmo que transitoriamente, compatibilizar o modo de vida dessas populações com a unidade de conservação. Outra questão
que começou a ser percebida pelos pescadores de Tarituba ao longo do processo é que o termo de compromisso poderia acirrar

15
O segundo grupo de pescadores, cerca de 40, classificados como pescadores não comerciais de subsistência, teriam os seus TACs assinados em um segundo
momento.
16
http://www.mosaicobocaina.org.br/noticias/628-tac-esec-tarituba
17
htpp://uc.socioambiental.org/en/noticia/estacao-ecologica-de-tamoios-encerra-o-ano-com-assinatura-de-acordo-inedito-com-os-pescadores
18
http://www.diariodovale.com.br/noticias/98216.print.Moradores-de-Tarituba-sao-autorizados-apescar-na-Estacao-Ecologica-Tamoios.html
19
http://www.focoregional.com.br/page/noticiasdti.asp?t=Moradores+de+Tarituba+poderao+pescar+legalmete+na+Esec+Tamoios+++&idnoticia=116173
20
http://www.prrj.mpf.mp.br/frontpage/noticias/mpf-garnte-pesca-tradicional-a-comunidade-em-paraty-e-conservacao-da-estacao-ecologica-de-tamoios
21
http://www.ecodebate.com.br/2015/01/08/em-paraty-rj-acordo-garante-pesca-tradicional-e-conservacao-de-estacao-ecologica/
22
Ofício Nº 302/2015 - PRM/ANGRA/RJ/FABL, Inquérito Civil 1.30.014.000167/2014-31

05: Sistemas de Gestão e Governança


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conflitos entre vizinhos – como ficariam as relações com os pescadores de Mambucaba e São Gonçalo, comunidades vizinhas à
Tarituba, que seriam proibidos de pescar em pesqueiros utilizados por esses pescadores também? Mas de toda forma, colocar
o instrumento em prática traz aprendizado institucional. A experiência acumulada com o estabelecimento de termos de compro-
misso é extremamente incipiente para a gestão pública de áreas protegidas, de um modo geral. Apesar do Decreto 4.340 ter
definido o prazo de 2 anos para o estabelecimento desses acordos de gestão, pouquíssimos foram os Termos de Compromisso
estabelecidos. Há que se considerar também que a decisão de se firmar ou não termos de compromisso é um campo de disputa
dentro dos órgãos gestores.
Quanto ao Termo de Compromisso enquanto processo de construção participativa, é necessária muita responsabilidade
e consequência na condução dos processos. Processos participativos legítimos e efetivos exigem ritmo e continuidade, acesso
à informação, confiança, e principalmente, redistribuição de poder. Nesse aspecto, o objetivo superior construído com os pesca-
dores ao longo do processo – laços verdadeiros de confiança, solidariedade e respeito – deveria se consubstanciar em objetivos
específicos e metas para a gestão da unidade de conservação, mesmo na hipótese de não-assinatura do TC, dentro de sua gover-
nabilidade de gestão. Como não perder os laços de confiança conquistados ao longo de mais de 3 anos com a comunidade de
Tarituba se as atividade na comunidade são interrompidas?
Quanto ao Termo de Compromisso enquanto instrumento de gestão pesqueira, a experiência com a implementação do
acordo em Tarituba – o que inclui a execução de programas de monitoramento participativo, capacitações periódicas com todo
o grupo, avaliação e repactuação dos acordos a cada ano – pode gerar um aprendizado valioso para aplicação em outras comu-
nidades da baía da Ilha Grande ou para a construção de acordos em escalas maiores.
Araújo (2014) ressalta a existência de lideranças importantes na pesca artesanal de Paraty, mas considera que ainda há
uma forte dependência em relação à atuação de um vereador que defende o interesse dos pescadores artesanais. A cobrança
para a assinatura do TAC com os pescadores de Tarituba tem sido iniciativa desse vereador e não de uma mobilização direta
dos pescadores diretamente envolvidos.
Analisando o sistema institucional da pesca em Paraty, Araujo (2014) conclui:

“O exercício da participação social em arenas de pesca necessita caminhar junto com a distri-
buição de poder pelas lideranças do governo, delegação de autoridade, acesso à informação,
transparência nos processos, compartilhamento de responsabilidades entre governo e usuários
de recursos pesqueiros, desenvolvimento de mecanismos de negociação e resolução de confli-
tos, capacitação de gestores e pescadores, construção de visões comuns sobre os problemas
da pesca, mudança de atitude de pescadores do discurso reivindicatório para o diálogo e nego-
ciação, e criação de mecanismos de avaliação de processos participativos. Esses são requisitos
obrigatórios para que o exercício de participação seja um processo efetivo no longo prazo.”

Temos um longo caminho a percorrer.

Referências
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cessos. In: Comunidades pesqueiras de Paraty: sugestões para manejo. São Carlos, RiMa, 2014. p.189-219.

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BRITO, D. M. C. Conflitos em unidades de conservação. PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Ciências Sociais, n.1,
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DE FREITAS, R. R. de Implicações de políticas de conservação e desenvolvimento na pesca artesanal costeira em uma


área marinha protegida da baía da Ilha Grande. 2014. Tese (Doutorado em Ambiente e Sociedade), UNICAMP, Campinas, 2014.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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JOVENTINO, F. K. P. Pesca artesanal na baía da Ilha Grande, RJ: conflitos e novas possibilidades de gestão compartilhada.
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05: Sistemas de Gestão e Governança


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ZONA DE USO ESPECIAL INDÍGENA NO PARQUE ESTADUAL DO MATUPIRI/AM

Sakagawa, Sergio1, Pereira, Henrique dos Santos2 & Stancik, Juliane Franzen3

1. Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia-INPA, sergiosakagawa@yahoo.com.br


2. Universidade Federal do Amazonas-UFAM, henrique.pereira.ufam@gmail.com 3. jstancik@hotmail.com

Resumo
O Parque Estadual do Matupiri é uma Unidade de Conservação criada em 2009 com o objetivo de blindar o interflúvio Purus-
Madeira contra os avanços do desmatamento que acompanharão a reativação da BR-319. Dentre as Áreas Protegidas do entorno
do Parque, há a TI Cunhã-Sapucaia ocupada pela etnia Mura. Este grupo social reivindica o direito de uso tradicional das áreas da
UC, mesmo não havendo sobreposição de terras entre as Áreas Protegidas. Desta maneira, a gerência do Parque foi provocada
pelos indígenas a um processo de diálogo e inclusão deste grupo social na gestão da UC. Como resultado desta iniciativa criou-se
a Zona de Uso Especial Indígena na elaboração do Plano de Gestão do Parque. Neste sentido, o presente trabalho analisa este pro-
cesso desenvolvido na Unidade de Conservação de Proteção Integral diante do paradigma entre Parques e populações indígenas.

Palavras-Chave: Parque Estadual do Matupiri/AM, Zona de Uso Especial Indígena, Terra Indígena Cunhã-Sapucaia e Gestão.

Introdução
A gestão de Unidades de Conservação - UC na Amazônia brasileira é uma tarefa complexa. Os desafios do contexto
amazônico se somam às contradições inerentes às tentativas de conciliação entre os objetivos da conservação biológica e os do
desenvolvimento socioeconômico local. Esse contexto pode ser ainda mais desafiador quando envolve a presença de popula-
ções indígenas que ocupam territórios ou utilizam recursos naturais em áreas afetadas pela criação de Unidades de Conserva-
ção de Proteção Integral - UCPI. Soluções que assegurem os direitos originais das comunidades indígenas, ao mesmo tempo
em que viabilizam as metas de conservação da biodiversidade, requerem arranjos institucionais criativos e que desafiam as
interpretações convencionais de marcos regulatórios e legais existentes.
Esta situação se apresenta no caso do processo de implementação do Parque Estadual do Matupiri/AM - PAREST Ma-
tupiri criado através do Decreto Estadual nº 28.424 de 27 de março de 2009, pelo Poder Executivo do Estado do Amazonas. O
planejamento e elaboração do plano de gestão - PG dessa UCPI trouxeram elementos novos e podem significar um novo enten-
dimento para gestão de unidades de conservação ocupadas ou utilizadas por populações indígenas.
Por uma iniciativa do Governo Federal, a BR-319 está em processo de recuperação com o objetivo de viabilizar nova-
mente um corredor viário ligando o Norte ao restante do país. A retomada desta estratégia tende a reabrir uma via facilitadora
ao desmatamento e uso irregular do solo (AMAZONAS, 2006). Visando criar barreiras ao avanço dos impactos negativos deste
processo, a criação de UC se tornou a estratégia do Governo Federal para blindar as áreas florestais de influência da BR-319
contra os avanços dos impactos que acompanharão o funcionamento desta rodovia.
Neste sentido, o Governo do Estado do Amazonas, através do Centro Estadual de Unidades de Conservação – CEUC,
com aporte financeiro do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte - DNIT criou seis Unidades de Conservação, e
dentre estas, uma única de proteção integral, o PAREST Matupiri.
Segundo seu estudo de criação (AMAZONAS, 2006), os principais fatores que justificaram a escolha da categoria de
parque na criação da UC foram a inexistência de moradores em seu interior e a existência de complexos de campinas amazôni-
cas, ambientes extremamente peculiares e pouco representados no Sistema Estadual de Unidades de Conservação do Amazo-
nas - SEUC-AM (Lei Complementar nº53 de 05 de junho de 2007).
Exercendo forte influência em sua área de entorno, já que é cercado por quatro Unidades de Conservação Estaduais de
Uso Sustentável (RDS Igapó-Açú, RDS Matupiri, RDS do Rio Madeira e RDS do Rio Amapá), pelo Projeto de Assentamento Agro-
extrativista Jenipapo - PAE Jenipapo e pela Terra Indígena Cunhã-Sapucaia - TICS, torna-se uma área de extrema importância
quanto ao seu papel ecológico como área fonte para a geração, manutenção e reprodução de recursos naturais para as popula-
ções humanas residentes em seu entorno.

05: Sistemas de Gestão e Governança


787
Porém, dentre estas populações que habitam o entorno do Parque, há os Mura da TICS (BRASIL, 2006), que mesmo
residindo fora dos seus limites, reivindicam seu reconhecimento como usuários dos recursos naturais e protetores históricos da
bacia do rio Matupiri, principal acesso fluvial da UC.
Esta constatação foi baseada nas primeiras atividades de monitoramento da UC, iniciadas em 2011, quando foram ob-
servados diversos vestígios de uso da área por estes indígenas, tais como capoeiras, esteios de casas e áreas de trabalho
madeireiro; pela primeira reunião realizada com indígenas ex-moradores do rio Matupiri no município do Careiro/AM, quando
foram solicitados esclarecimentos sobre as novas UC do rio Matupiri, e em 2012, quando foram realizadas duas reuniões na TI
Cunhã-Sapucaia com o Chefe do Parque, visando apresentar a UC, esclarecer seus objetivos, suas regras e benefícios (AMA-
ZONAS, 2012).
Estes reconhecimentos iniciais permitiram a constatação de fatos e a compreensão de elementos do contexto socio-
ecológico local que posteriormente vieram a ser inseridos nas tomadas de decisão no processo de implementação da UC:
• O Parque é limítrofe com a TI Cunhã-Sapucaia;
• A principal via de acesso fluvial da UC é o rio Matupiri, e a foz ou “boca” deste rio se encontra dentro da área da TI
Cunhã-Sapucaia, dividindo esta via fluvial com a área de proteção integral;
• Como usuários históricos, também são identificados na região (Borba/AM, Autazes/AM e BR-319) como os protetores
do rio Matupiri, desde antes da criação do Parque;
• O rio Matupiri já foi muito explorado pela sua riqueza madeireira, de “bicho de caça”, quelônios e pescado, mas pela luta
destes indígenas, hoje em dia é uma área bem conservada e, atualmente, as invasões ocorrem em menor escala nas áreas deste rio;
• O estudo de criação do PAREST Matupiri, RDS Matupiri e RDS Igapó-Açú (AMAZONAS, 2006), não considerou estes
indígenas em seu levantamento socioeconômico, sendo citados neste documento apenas como “invasores” de lagos de pesca
pelos moradores da RDS Igapó-Açú, UC limítrofe com o Parque.
Ao identificar estes aspectos, a administração da UC entendeu que sem a participação efetiva destes indígenas em um
modelo de gestão compartilhada do Parque, a estratégia de conservação do Interflúvio Purus-Madeira se tornaria eternamente
incompleta, frágil e com a possibilidade de uma perpetuação de conflito, entre a área do estado do Amazonas e os indígenas
da TI Cunhã-Sapucaia. Entretanto, visando utilizar este cenário como um fortalecimento à gestão da UC, respeitando e reconhe-
cendo os direitos constitucionais pretéritos dos Mura na área, criou-se a Zona de Uso Especial Indígena na elaboração do Plano
de Gestão da UCPI.
Neste contexto, o presente trabalho analisa o processo de criação da Zona de Uso Especial Indígena do PAREST Matupiri
durante a elaboração de seu documento regulatório.

Metodologia
Todas as informações apresentadas neste tópico foram adquiridas em consulta exclusiva ao Plano de Gestão do PAREST
Matupiri publicado no ano de 2014 (AMAZONAS, 2014).

Área de Estudo
O Parque Estadual do Matupiri possui uma área de aproximadamente de 513.747,469 ha, está localizado no interflúvio
Purus - Madeira, nas bacias dos rios Matupiri e Amapá, dentro dos municípios de Borba e Manicoré, pertencente à Microrregião
do Madeira no estado do Amazonas.
Localiza-se no trecho do Km 161 ao Km 365 da BR-319, na margem esquerda no sentido Manaus - Porto-Velho/RO. Na
porção sul limita-se com o assentamento PAE Jenipapo e mais a sudeste com a RDS do Rio Madeira. Ao sudoeste é delimitada
pela rodovia AM-464 e limítrofe a RDS do Rio Amapá. Ao norte faz divisa com a RDS Igapó-Açú e área de afetação da BR 319.
Sua porção nordeste limita-se com a TI Cunhã-Sapucaia e a RDS Matupiri. Na sua porção central é cortada pelo rio Matupiri,
principal via de acesso ao interior do Parque (Figura 1.).
O PAREST Matupiri possui cinco fitofisionomias vegetais, sendo as duas principais: Floresta Ombrófila Densa de Ter-
ras Baixas com Dossel Emergente (91%) e Savana - Gramíneo-Lenhosa ou Campina Amazônica, sem floresta-de-galeria (7%).
Esta segunda de extrema importância, pois parte de suas espécies biológicas são exclusivas desse tipo de ambiente, portanto,
qualquer intervenção que modifique a estrutura dessas ilhas pode extinguir algumas destas.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
788
Em relação à fauna estudada neste ambiente, foram registradas duas possíveis espécies novas de peixes; três possíveis
novas espécies de herpetofauna, e seis espécies de aves endêmicas à área do interflúvio Purus-Madeira.
A alta frequência de registros de espécies extensivamente caçadas, como a anta (Tapirus terrestris), queixada (Tayassu
pecari), caititu (Pecari tajacu), veados (Mazama spp.) e macaco-barrigudo (Lagothrix cana) indicam alta qualidade ambiental da região.

Figura 1. Parque Estadual do Matupiri e Áreas Protegidas de seu entorno. Arquivo CEUC/SDS-AM.

05: Sistemas de Gestão e Governança


789
Caracterização social
A TI Cunhã-Sapucaia foi homologada em 2006 e apresenta uma área de 471.450 ha, onde vive uma população Mura de
aproximadamente 580 indígenas.
Os Mura, conhecidos pela sagacidade em navegar por rios, lagos e igarapés, habitam a região dos rios Madeira, Japurá,
Solimões, Negro e Trombetas desde o século XVII, de acordo com registros históricos.
A relação estabelecida entre as aldeias Mura se baseia em afinidades e articulações políticas para o uso dos recursos
naturais de áreas especificas. Esses acordos são estabelecidos através de reuniões entre as aldeias, que podem levar dias.
A TI Cunhã-Sapucaia possui oficialmente 11 aldeias reconhecidas pela FUNAI. Porém, as aldeias diagnosticadas como
tradicionalmente usuárias e protetoras históricas do rio Matupiri, área inserida nos limites do PAREST Matupiri, são as aldeias do
Piranha, Vila Nova, Sapucaia, Sapucainha, Tapagem e Corrêa. Estas aldeias são representadas por aproximadamente 90 famí-
lias, onde estes indígenas reivindicam o uso da área do Parque, por conta de seu contexto de uso e proteção pretéritos.
Neste contexto, destaca-se que os indígenas que utilizam os recursos do Parque realizam esta prática a pelo menos mais
de cinco décadas e durante este período não existia o PAREST Matupiri. Dentre as atividades, o extrativismo vegetal e a pesca,
além da caça para a subsistência são práticas desenvolvidas nas áreas da UCPI.
O Parque é uma das áreas de exploração de espécies madeireiras para construção e reforma de suas casas e bar-
cos. As espécies exploradas no PAREST Matupiri para esta finalidade são: itaúba (Ocotea megaphylla (Meisn) Mez.), marupá
(Simarouba amara Aubl.), louro-cedro (Ocotea rubra Mez.), angelim (Hymenolobium sericeum Ducke), entre outras.
Dentre os produtos não madeireiros extraídos estão, por ordem de importância, a castanha, os cipós, os óleos de copaíba
e andiroba, açaí, buriti, bacaba, patauá e mel de abelha.
Sobre atividades de pesca, o PG aponta dezoito áreas dentro do Parque de produção de pescado, que foram mapeadas
pelos Mura. Dentre estas, 90% são destinadas à pesca de subsistência.
Outra atividade econômica de destaque entre os indígenas é o turismo de pesca esportiva. A atividade sempre ocorreu na
TI, nos rios Igapó-Açú, Tupãna e Matupiri, onde este último atualmente é compartilhado com a RDS e PAREST Matupiri. Ressalta-
se que, em decorrência da criação da UCPI, houve uma redução significativa nesta renda obtida, já que a atividade teve sua área
de atuação reduzida quase que pela metade.
Esta atividade merece destaque, pois os Mura entendem a atividade como um dos motivos que mantêm as áreas do
Parque muito bem conservadas, já que a cultura de conservação dos rios pelos Mura, tornou o Matupiri um excelente e expres-
sivo local nas agendas de pesca esportiva da região.
Diante desta realidade local registrada através do diagnóstico socioeconômico e mapeamento de uso de recursos na-
turais do PAREST, o PG da UC apresenta como solução para esta sobreposição entre direitos constitucionais indígenas e as
legislações pertinentes a Parques, a criação da Zona de Uso Especial Indígena em seu zoneamento.

Estratégia metodológica
O presente estudo analisa o processo de criação da Zona de Uso Especial Indígena durante a elaboração do Plano de
Gestão da UCPI, através de um viés teórico, embasado em bibliografias, casos similares sul americanos e marcos legais nacio-
nais referentes ao tema que justificam a criação de uma zona de gestão do PAREST Matupiri não praticada usualmente.

Resultados e Discussão
Zoneamento do PAREST Matupiri
De acordo com o SNUC, zoneamento é:

Definição de setores ou zonas em uma unidade de conservação com objetivos de manejo e normas
específicas, com o propósito de proporcionar os meios e as condições para que todos os objetivos
da unidade possam ser alcançados de forma harmônica e eficaz (BRASIL, 2000, p. 48).

O trecho “[...] de forma harmônica e eficaz”(BRASIL, 2000, p. 48), apresenta-se como uma das justificativas para a con-
figuração do zoneamento do Parque, onde se pretendeu estabelecer, nada mais nada menos, que uma relação de boa vizinhança
entre as AP.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
790
Com o objetivo de zonear a UCPI, considerando as áreas de uso mapeadas pelos Mura, consultaram-se as categorias
de zonas existentes em UCPI brasileiras que respaldariam este uso histórico do PAREST. Neste sentido, consultou-se o Roteiro
para a Elaboração de Planos de Gestão do CEUC-AM (AMAZONAS, 2010) e o Roteiro Metodológico de Planejamento do IBAMA
(IBAMA, 2002).
Estes dois documentos apresentaram zonas pré-estabelecidas para situações similares ao PAREST Matupiri, porém com
detalhes não pertinentes às estratégias de gestão da UC. Nesta linha cita-se a Zona de Uso Conflitivo do CEUC-AM e a Zona de
Superposição Indígena do IBAMA. A primeira foi desconsiderada por entender que não foram os Mura que causaram conflito
à UC, mas pelo contrário, a criação do Parque que causou esta situação aos indígenas. Já a segunda, mantém a prerrogativa
de zona temporária, ditando assim que as práticas culturais de uso de recursos naturais pelos Mura devem ter tempo de venci-
mento, não sendo pertinente constitucionalmente.
Neste sentido, procuraram-se outros casos que pudessem auxiliar a gestão do Parque na América do Sul. Segundo Ma-
retti (2004), no Peru e Colômbia, avanços na implementação dos direitos indígenas em relação a terras tem sido alcançados pela
adoção de duas prerrogativas: reconhecimento da propriedade de forma coletiva e permanente, e reconhecimento da capaci-
dade de governar de forma autônoma.
No Peru a definição de Parques Nacionais é similar à estipulada pelo SNUC, porém com um detalhe importante nesta
análise, como cita-se:

1
En ellos se protege con carácter intangible la integridad ecológica de uno o más ecosistemas,
las sociaciones de la flora y fauna silvestre y losprocesos sucesionales y evolutivos, así como otras
características , paisajísticas y culturales que resulten asociadas (PERU, 1997, p.6).

Percebe-se na sua definição de Parques a equivalência de valores biológicos com as características culturais associadas
à área. Neste sentido, o zoneamento deve obrigatoriamente considerar que a sua implementação não afeta os direitos adquiridos
de grupos indígenas estabelecidos anteriormente à sua criação (SERNANP, 2010).
Como exemplo deste país, pode-se citar o Parque Nacional del Manú, destacado por ser considerada uma Reserva da
Biosfera e estar inserido na “World Heritage List” da UNESCO pelo seu valor natural e cultural, habitando em sua área no mínimo
quatro grupos indígenas. Possui como um de seus objetivos de criação, reconhecer e proteger a diversidade cultural e a autode-
terminação dos povos indígenas (http://whc.unesco.org/en/list/402, Consultado em 18/02/2015).
Em seu zoneamento existem a Zona de Uso Especial e a Zona Silvestre, onde se permitem práticas de subsistência de
ocupações preexistentes na AP e a caça de subsistência pela população do entorno, respectivamente (SERNANP, 2013).
Outro Parque destacado é o Parque Nacional Cordilheira Azul. Em seu zoneamento compreendem-se a Zona Silvestre 2 e
a Zona de Uso Especial, onde são permitidas práticas tradicionais de subsistência, e uso de produtos florestais não madeireiros
para beneficiamento local das populações locais e do entorno (SERNANP, 2011).
Já na Colômbia, a definição de Parques também entende as “manifestações históricas ou culturais” como aspectos tão
importantes quanto os fatores biológicos (COLOMBIA, 1974).
Uma iniciativa deste país, relevante ao estudo, é o reconhecimento de lideranças indígenas como autoridades públicas
com competências ambientais em suas áreas tituladas, razão necessária sobre as áreas indígenas sobrepostas com seu Sistema
Nacional de Parques, onde se respeita o direito dos indígenas em fazer uso dos recursos naturais com as limitações impostas
pela conservação da AP (http://historico.presidencia.gov.co/sp/2008/octubre/31/especial_19312008.pdf Consulta em 28/03/2014).
Nesta linha de gerenciamento colombiano, destacam-se o PNN Cahuinari e Utría, com contextos similares ao PAREST
Matupiri.
O PNN Cahuinari destaca-se pelo fato de suas áreas sobrepostas com áreas indígenas serem zoneadas pelos moradores
das aldeias, sendo estes ocupantes do interior e entorno do PNN (MUÑOZ et al., 2009). Entretanto, percebe-se um grande
número de regras no zoneamento, demonstrando a consciência ambiental dos indígenas sobre seu território. Suas lideranças
são nomeadas como “autoridades indígenas”, possuindo responsabilidade ambiental na área. Entende-se esse método de em-
poderar e responsabilizar as populações locais e indígenas, como uma maneira justa e coerente de se gerir uma UC ou AP.

1
Neles se protegem com caráter intangível, as associações à integridade ecológica de um ou mais ecossistemas, as associações da flora e fauna silvestre e os proces-
sos sucessionais e evolutivos, assim como outras características, paisagísticas e culturais associadas. (Tradução nossa).

05: Sistemas de Gestão e Governança


791
Já no PNN Utría, segundo seu documento regulatório, assimila-se sua sobreposição com áreas indígenas, não como um
conflito, mas como uma oportunidade de manejo e gestão compartilhada (UAESPNN - DTNO, 2006). Nas áreas sobrepostas são
admitidas atividades indígenas para subsistência, como caça, pesca e extrativismo vegetal (Id., ibid.).
Obviamente que estes parques citados no Peru e na Colômbia também sofrem com pressões sobre seus recursos na-
turais causadas pelo seu entorno, assim como no Brasil. Entretanto, entendem-se duas situações distintas. A análise deste estudo
refere-se à forma de administração das AP, onde, visando compatibilizar direitos constitucionais adquiridos relacionados à cultura
e questão indígena, com o direito a um meio ambiente equilibrado (BRASIL, 1988), certas conjunturas gerenciais devem ser con-
sideradas necessárias para a gestão justa de uma UC ou AP. A outra, se refere à natureza histórica, quase que cultural de gestão
do Brasil, onde o Estado é incapaz de atingir seus deveres de governança com o meio ambiente e a sociedade.
Desta maneira, analisa-se que a perda de biodiversidade não deve estar direcionada às necessidades para a reprodução
física e cultural de um povo, mas predominantemente sobre a má gestão governamental e a falta de presença do Estado em
espaços protegidos. Como já dito por Santilli (2004, p.12) sobre a postura do Estado com populações indígenas, em relação às
praticas predatórias contra a conservação da biodiversidade:

Será sempre mais fácil convencer uma comunidade indígena do que as frentes predatórias [...] A
sua criminalização como se fossem protagonistas - e não vítimas - de práticas predatórias, funciona
como um tiro no pé para qualquer estratégia conservacionista (SANTILLI, 2004, p. 12).

Portanto, com o conhecimento de zoneamentos em AP do Peru e da Colômbia, que poderiam servir de base para o uso
de áreas do Parque pelos Mura, e o respaldo institucional do CEUC-AM apoiando a iniciativa através da elaboração de Termos
de Compromissos, o zoneamento do PAREST Matupiri realizou-se em dois momentos.
No primeiro, ocorreu a sua contextualização, o resgate do diagnóstico socioeconômico, do mapeamento participativo
e sua efetiva elaboração. No segundo momento apresentou-se o zoneamento, já em formato de mapas confeccionados pelo
CEUC-AM, onde foi apreciado pelos Mura, e, após correções e ajustes propostos pelos stakeholders, este foi validado.
Como resultado desta conjuntura, criou-se a Zona de uso Especial Indígena - ZUEI na UC (Figura 2).
De acordo com o PG da UCPI, a ZUEI é caracterizada da seguinte maneira:

...é aquela onde, mediante a construção e assinatura de termos de compromisso entre a popula-
ção usuária e o órgão gestor da Unidade, prevê-se o manejo de alguns recursos naturais centrais
para a reprodução cultural daquela população (AMAZONAS, 2014, p. 286).

Entre todas as análises e interpretações, considera-se a criação da ZUEI uma iniciativa para conciliar as especificidades
do ponto de vista biológico do Parque, com seus fatores político-histórico-culturais, o Parque ser área de uso tradicional pela
população Mura da TICS.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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793
05: Sistemas de Gestão e Governança
Figura 2. Zoneamento do Parque Estadual do Matupiri. Zona de Uso Especial Indígena em verde limão. Arquivo CEUC/SDS-AM
Os dois argumentos, entre a estratégia conservacionista e o reconhecimento histórico-cultural do rio Matupiri, comple-
mentam fatores importantes que embasaram a gênese de uma categoria de zoneamento não praticada em Parques brasileiros.
Como resultados da criação da Zona de Uso Especial Indígena do PAREST Matupiri, podem-se citar:
• A resolução parcial da sobreposição territorial entre PAREST Matupiri e TI Cunhã-Sapucaia;
• A diminuição da angústia dos Mura em relação às ações de gestão e implementação do PAREST Matupiri;
• O comprometimento dos Mura na conservação de toda a bacia do rio Matupiri, principalmente das áreas do PAREST
do Matupiri, já que esta se manteria acessível às suas necessidades;
• Aquisição de uma parceria sólida entre TI Cunhã-Sapucaia e PAREST Matupiri, através das lideranças indígenas e CEUC;
• A presença e atuação efetiva dos Mura e suas representações sociais e institucionais no Conselho Gestor da UCPI;
• Consideração aos acordos internacionais, que relevam o respeito às populações tradicionais e povos indígenas pre-
sentes em Unidades de Conservação, dos quais o Brasil é signatário como: OIT 169º, Programa de Trabalho sobre Áreas Protegi-
das da CDB (SECRETARÍA DEL CONVENIO SOBRE LA DIVERSIDAD BIOLÓGICA, 2004), Metas de Aichi (SECRETARÍA DEL
CONVENIO SOBRE LA DIVERSIDAD BIOLÓGICA, 2010) e Congresso Mundial de Parques da IUCN;
• Respeito a marcos legais nacionais como a Constituição da República Federativa do Brasil, Plano Estratégico Nacional
de Áreas Protegidas (Decreto Federal nº 5.758, de 13 de Abril de 2006) e Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de
Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto Federal nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007);
• Garantia de maior proteção das áreas e populações que estarão expostas aos impactos gerados pela revitalização da
BR-319, através da conservação da biodiversidade e da manutenção sociocultural dos Mura.

Conclusão
O processo de zoneamento do PAREST Matupiri se configurou mais como uma negociação entre duas partes, que ante
a qualquer mentalidade preservacionista ou humanista, tinham os mesmos objetivos em comum que é conservar as áreas do rio
Matupiri para a proteção da diversidade biológica no seu sentido mais amplo do termo: “2organismos vivos de cualquier fuente
[...]” (NACIONES UNIDAS, 1992, p.4).
Como resultado desta negociação, criou-se na UC a Zona de Uso Especial Indígena. Esta zona, normalmente não ins-
tituída em Parques brasileiros, foi o cerne deste trabalho e fator preponderante para a concretização da parceria dos Mura da
TICS. Consequentemente, manteve-se a barreira humana já existente frente aos impactos e pressões sobre os recursos naturais
da UCPI, da mesma maneira que as requisições deste grupo social foram atendidas na medida em que as áreas historicamente
utilizadas e selecionadas por este povo foram zoneadas para seu uso.
Porém, esta criação não pode se tornar mais um “elefante branco na Amazônia”. Por isso, deve-se pensar em como esta
área será gerida daqui para frente. Neste sentido, apenas iniciou-se uma caminhada longa e trabalhosa, onde o órgão gestor terá
que gastar esforços e expertise para manter os objetivos de conservação da UCPI e garantir a reprodução física e cultural dos
Mura.
Por fim, conclui-se que as Unidades de Conservação do Amazonas são indissociáveis da presença humana, sejam estas
indígenas, caboclas, ribeirinhas ou quilombolas. Suas presenças nestas áreas são muito mais benéficas do que prejudiciais à
conservação da natureza, sejam em áreas de uso sustentável ou de proteção integral. Porém, este benefício somente se consolida
quando estas presenças são interpretadas como uma “potência” a mais para o alcance de uma meta complexa e audaciosa em
comum, que é a conservação da biodiversidade.

Referências
AMAZONAS. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Estudo de criação do Mosaico de UC
Matupiri Igapó-Açú: Projeto Criação e Implementação de Unidades de Conservação Estaduais no Amazonas. Manaus, 2006.
134p.

AMAZONAS. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Centro Estadual de Unidades de Conser-
vação. Roteiro para a Elaboração de Planos de Gestão para as UC Estaduais do Amazonas. Manaus, 2010. 74p.

2
variedade de organismos vivos de qualquer fonte (Tradução nossa).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
794
AMAZONAS. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Centro Estadual de Unidades de Conser-
vação – CEUC. Relatório sobre reunião de apresentação do CEUC e das UC estaduais RDS e PAREST Matupiri na TI
Cunhã-Sapucaia. Manaus, 2012. 22p. Documento interno.

AMAZONAS. Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Centro Estadual de Unidades de Conser-
vação. Plano de gestão do Parque Estadual do Matupiri. Manaus, 2014. 324p.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Diário Oficial
da União, Brasília (19 de jul. de 2000).

BRASIL. Decreto nº s/n, de 1º de novembro de 2006. Homologa a demarcação administrativa da Terra Indígena Cunhã-Sapucaia,
localizada nos Municípios de Autazes e Borba, Estado do Amazonas. Diário Oficial da União, Brasília (03 de novembro de 2006).

COLOMBIA. Decreto nº 2811 de 18 de diciembre de 1974. Decreta el texto del Código Nacional de Recursos Naturales Reno-
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COLOMBIA. Unidad Administrativa Especial del Sistema de Parques Nacionales Naturales de Colombia – Direccion Territorial
Noroccidente - UAESPNN-DTNPO. Parque Nacional Natural Utría Plan de Manejo 2005-2009. Bahía Solano Colombia.
Medellín, 2006.

INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS RENOVÁVEIS - IBAMA. Roteiro metodológico de
planejamento: Parque Nacional, Reserva Biológica e Estação Ecológica. Brasília, 2002. 136p.

MARETTI, C. Conservação e valores. Relações entre áreas protegidas e indígenas: possíveis conflitos e soluções. In: RICARDO,
F. (org). Terras Indígenas e Unidades de Conservação da Natureza: o desafio da sobreposição. São Paulo: Instituto Socio-
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PERU. Resolución Presidencial nº 64-2011, de 14 de abril de 2011. Aprobar la actualización del Plan Maestro, período de 2011
- 2016, del Parque Nacional Cordillera Azul... República del Peru, Lima. Servicio Nacional de Áreas Naturales Protegidas por el
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cional del Manú... República del Peru, Lima: Servicio Nacional de Áreas Naturales Protegidas por el Estado – SERNANP, 2013.

SANTILLI, J. Povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais: a construção de novas categorias jurídicas. In: RICARDO,
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das - Programa de Trabajo del CDB. Montreal, 2004. 34 p.

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ológica 2011-2020 - Metas de Aichi. Montreal, 2010. 2p.

05: Sistemas de Gestão e Governança


795
06
1. Educação para a sustentabilidade/
ecodesenvolvimento e cidadania: experiências
de aprendizagem social

O tema deste eixo engloba experiências de


aprendizado e desenvolvimento de
tecnologias sociais que facilitam a
comunicação e o aprendizado em rede,
bem como o acesso ao maior número
possível de pessoas e instituições em um
processo formativo baseado em
conhecimentos, habilidades e atitudes
estimuladas e enriquecidas a partir dos
próprios participantes e com a troca de
experiências entre eles.
COMPARTILHANDO SABERES AMBIENTAIS ATRAVÉS DA EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA EM COMUNIDADES DE PESCADORES NA RESERVA
EXTRATIVISTA DE SÃO JOÃO DA PONTA-PA

Rodrigues, Rafael de Oliveira Castro1, Filho, Waldemar Londres Vergara & Pimentel, Marcia Aparecida da Silva2

1.Universidade Federal Do Pará, oliveiracrodrigues@gmail.com 2. Universidade Federal Do Pará

Resumo
O presente trabalho objetiva apresentar a importância da extensão universitária na prática da Educação Ambiental (E.A.) em co-
munidades de pescadores tradicionais, da Reserva Extrativista de São João da Ponta, Nordeste do Pará. A EA aplicada nas comu-
nidades tem uma importância primordial no compartilhamento entre os saberes locais e os acadêmicos, especialmente quando
relacionadas ao espaço vivido. A metodologia utilizada para elaboração deste relato foram as pesquisas em campo, entrevistas
semiestruturadas, além da própria prática da extensão. Os resultados mostraram a relevância das ações de extensão universitária
para a Academia e a comunidades da Reserva Extrativista Marinha no sentido da valorização da integração desses saberes.

Palavras-Chave: Educação Ambiental, Consciência Ecológica, Comunidades Tradicionais.

Introdução
As práticas de extensão universitária são comuns ao longo da história da Ciência e da Academia. Utilizando como foco
essas práticas em Comunidades Tradicionais, observamos que nesse método de aprendizagem – na maioria das vezes – essa
relação entre a Academia e a Comunidade tem sido apenas uma via de mão única, pois as comunidades recebem os estudiosos,
disponibilizam informações sobre o objeto de estudo dos mesmos, mas não recebem um retorno das instituições que realizam
a pesquisa e extensão.
Para servir como contraponto a essa relação desigual na produção do saber científico, as práticas de extensão universi-
tária têm fundamental importância no que tange à troca de experiências entre os saberes entre Academia e das Comunidades.
A partir, principalmente, da última década, a extensão universitária tem conseguido consolidar-se enquanto método de apren-
dizagem utilizado no âmbito acadêmico. Essa consolidação deve-se, principalmente, a dois aspectos principais: a interdisci-
plinaridade das ciências nas extensões e o “compromisso social” dessas práticas (OLIVEIRA, 2004). Nesse sentido, o Fórum
Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras direcionaram a política extensionista a projetos que
garantam o compromisso social com a Comunidade.

Ao ensino, é proposto o conceito de sala de aula que vai além do tradicional espaço físico, com-
preendendo todos os demais, dentro e fora da universidade, em que se realiza o processo histórico
social com suas múltiplas determinações, passando a expressar um conteúdo multi, inter e trans-
disciplinar, como exigência decorrente da própria prática. (MARTINS, 2008, p.203).

Tomando como princípio esse compromisso que está intrínseco ao papel da Universidade para com a Comunidade, foi
criado, em 2010, o evento “Entre Marés: Compartilhando Saberes”. O evento proporciona à comunidade e alunos da graduação
uma visão diferenciada acerca da Educação Ambiental por meio de ações como oficinas de narrativas orais, música, teatro e
apresentações culturais, cuja temática está ligada entorno das questões da localidade de São João da Ponta, nordeste paraense.
Assim, temos a Extensão Universitária sendo um importante método de aprendizagem, devido a sua maior aproximação ao
público-alvo e sua maior interação com o objeto de estudo, através de ações como as citadas anteriormente.
Para que esse processo de aprendizagem sobre as questões socioambientais ocorra de forma integrada, o pesquisador
deve ir além de apenas informar o seu público-alvo. Ele deve, acima de tudo, proporcionar atividades (trans)formativas no cotidi-
ano desse público. Desta forma, para que essas atividades sejam aplicadas, os organizados do “Entre Marés” utilizam-se, priori-
tariamente, do espaço das escolas. – É preciso que haja a formação de cidadãos mais participativos nas questões ambientais e,
por sua vez, possuam um olhar crítico frente aos problemas ambientais.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


799
A educação ambiental é uma proposta que altera profundamente a educação como a conhecemos,
não sendo necessariamente uma prática pedagógica voltada para a transmissão de conhecimento
sobre a ecologia. Trata-se de uma educação que visa não só a utilização racional dos recursos
naturais (...), mais basicamente a participação dos cidadãos nas discussões e decisões sobre a
questão ambiental (REIGOTA, 1995, p. 10)

O desenvolvimento metodológico da presente ação foi possível a partir de pesquisas bibliográficas, documentais e visitas
em campo à localidade, além de consulta ao trabalho do Grupo de Estudo Paisagem e Planeamento Ambiental (GEPPAM), da
Faculdade de Geografia e Cartografia da UFPA, que é o promotor, organizador e executor do projeto extensionista “Entre Marés”.
O GEPPAM trabalha em parceria com a Associação dos Usuários da RESEX Marinha de São João da Ponta (MOCAJUIM),
localizada no município de mesmo nome (Figura 1) e tem o apoio da Prefeitura municipal; do Instituto Chico Mendes para a
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão do Governo Federal responsável pela gestão das unidades de conservação;
Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da UFPA, Faculdade de Geografia e Cartografia (FGC) e a Secretaria de Estado de Pesca e
Aquicultura ( SEPAq – PA).

Figura 1. Mapa de localização da Reserva Extrativista Marinha de São João da Ponta (PA), que recebe o evento
“Entre Marés: Compartilhando Saberes”.
Fonte: Grupo de Estudo Paisagem e Planejamento Ambiental (GEPPAM), realizador e organizador do evento.

O objetivo geral do presente relato é proporcionar uma análise acerca da relação entre as práticas extensionistas universi-
tárias e às comunidades tradicionais, compartilhando os saberes tradicionais e o saber acadêmico através da Educação Ambien-
tal. De maneira específica, buscamos refletir sobre o conceito “tradicional” e as mostrar a importância do evento na manutenção
desta troca de saberes entre a Academia e a Comunidades Tradicionais em Reserva Extrativista Marinha, bem como apresentar
as ações utilizadas pelo “Entre Marés” na prática da Educação Ambiental.
Para possibilitar o desenvolvimento desta pesquisa, foram utilizados levantamentos bibliográficos e documentais acerca
do município e do evento em questão, bem como pesquisa em campo, práticas extensionistas, conversas livres com moradores
e apoio de líderes da Associação da Reserva Extrativista Marinha do município.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
800
Referencial teórico
A discussão no presente trabalho acerca do espaço geográfico é relevante, principalmente quando voltamos os olhares
para as comunidades. Sendo assim, buscamos uma análise do espaço, prioritariamente, voltada para a geografia humanista.

No estudo do espaço no âmbito da geografia humanista consideram-se os sentimentos espaciais e


as (sic) idéias de um grupo ou povo sobre o espaço a partir da experiência. Tuan argumenta que
existem vários tipos de espaços, um espaço pessoal, outro grupal, onde é vivida a experiência
do outro, e o espaço mítico-conceitual que, ainda que ligado à experiência, “extrapola para além
da evidência sensorial e das necessidades imediatas e em direção a estruturas mais abstratas”
(TUAN apud CORREA; CASTRO; GOMES, 2000, p. 30).

A partir do exposto acima, podemos perceber o caráter vivenciado que está intrínseco no espaço. Ocorre, claramente, o
desenvolvimento de um sentimento para com o espaço que é cotidiano. Dessa forma, é preciso desenvolver, desde muito cedo,
o olhar ambiental das crianças e jovens. Somente dessa forma, poderemos garantir que o futuro cultural e ambiental desse local
seja preservado.
De acordo com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000:

A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistên-
cia baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação
de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura
dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (Capítulo1,
Art. 18, 2000).

Como percebemos no exposto acima, os meios de vida e a cultura das populações são protegidos e garantidos por Lei
Federal, sendo, inclusive, critério fundamental para a área em questão ser considerada uma Reserva Extrativista.
Além da definição de RE mencionada acima, o SNUC também define que:

§2ª A Reserva deverá ser regida por um Conselho Deliberativo, presidido elo órgão responsável
por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações da
sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área [...] (SNUC, 2000).

O documento da Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Sociedade, Educação e Consciência Pública para a
Sustentabilidade, realizada em Tessalônica (Grécia, 1997), propõe uma visão mais focada à necessidade de se articularem ações
de educação ambiental baseadas nos conceitos de ética e sustentabilidade, identidade cultural e diversidade, mobilização e
participação e práticas interdisciplinares (SORRENTINO, 1998).
O espaço como conceito geográfico, a educação ambiental e práticas extensionistas são os conceitos máximos no de-
senvolvimento deste trabalho, tomando como foco os trabalhos de autores como Correa, Castro & Gomes (2000), Anjos (2014)
e Reigota (1995), que possuem importantes trabalhos no desenvolvimento desses conceitos. Cada um em sua área específica.

Histórico da RESEX de São João da Ponta (PA)


A Reserva Extrativista de São João da Ponta foi criada por meio do Decreto de 13 de dezembro de 2002, abrangendo
uma área de aproximadamente três mil e duzentos hectares (3.200ha) e um perímetro aproximado de cento e trinta e um mil,
duzentos e sessenta e oito metros. Possui no seu domínio territorial a predominância do ecossistema Manguezal que, segundo
a Lei 4.771/65 (Código Florestal), representa áreas de preservação permanente (APP), não edificante. As comunidades usuárias
moram no entorno, nas áreas de terra firme. Para essas comunidades, a Unidade de Conservação representa uma grande área
de produção.
A Reserva Extrativista de São João da Ponta está localizada integralmente no município de mesmo nome que foi criado em
1995, através da lei nº 5.920 de 27 de dezembro de 1995, sendo que anteriormente era um distrito do município de São Caetano
de Odivelas. Sua história é bem recente e, portanto, são poucos os dados que possam contribuir para um maior conhecimento
do município. Está localizado na mesorregião do nordeste paraense e microrregião do salgado, abrangendo uma área territorial

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


801
de 196,9 km², distante 120 km em linha reta da cidade de Belém. O município tem localização central na latitude 00°50’59’’sul e
longitude 47°55’12’’oeste, com altitude de 34 metros em relação ao nível do mar. Limita-se ao norte e oeste com o município de
São Caetano de Odivelas, ao sul com os municípios de Terra Alta e São Caetano de Odivelas, e a leste com os municípios de
Terra Alta e Curuçá. Seu principal acesso se dá pela rodovia PA-136 (Rodovia Castanhal - Curuçá) e PA-375. Possui clima equato-
rial quente e úmido, característico da região.
Ao longo dos anos e após várias discussões sobre o papel e os conteúdos que deveriam ser abordados na Educação Am-
biental, tornou-se claro que o conceito de EA deveria ser discutido de forma integradora com alguns outros conceitos. As ideias
de identidade cultural, ética e sustentabilidade dão a base para a construção de uma discussão realmente acadêmica acerca da
conservação e preservação na natureza nas suas mais diversas escalas.

Resultados
A partir do pensamento de Tuan (1979) sobre o espaço advindo da experiência, podemos aplicar seu conceito neste
trabalho, para compreendermos melhor o papel da educação ambiental no município de São João da Ponta, nordeste paraense.
O evento promove oficinas de educação ambiental aplicadas à realidade vivenciada na comunidade, visto que a maior
parte das crianças participantes do evento tem seu modo de vida ligado à floresta (figuras 2 e 3), visto que seus pais e familiares
utilizam a pesca como principal fonte de renda.

Figura 2. Oficina de EA aplicada às crianças do município de São João da Ponta.


Fonte: Acervo do Grupo de Estudo Paisagem e Planejamento Ambiental, organizador e
realizador do evento. Fotografia: Rodrigues, 2014.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Figura 3. Ministrantes da oficina intitulada “Brincando com a vivência no mangue”, que teve como objetivo ampliar a visão dos alunos sobre
a importância da utilização e conservação dos recursos pesqueiros, a partir de suas experiências empíricas, buscando assim provocar uma
reflexão sobre a responsabilidade ambiental em parceria com as crianças da comunidade onde a atividade irá acontecer de maneira
prática para o melhor envolvimento dos alunos. Fonte: Acervo do Grupo de Estudo Paisagem e Planejamento Ambiental, organizador e
realizador do evento. Fotografia: Rodrigues, 2014.

A participação e a mobilização dos alunos são extremamente importantes para que as lições da EA sejam repassadas de
forma eficaz (SORRENTINO, 1998), bem como se devem usar os conceitos de sustentabilidade e identidade cultural na criação de
uma vontade coletiva em conservar o Meio Ambiente na comunidade de São João da Ponta, como mostram as Figuras 4, 5, 6 e 7.
Oficinas voltadas para o desenvolvimento desse interesse foram aplicadas no Evento, e as mesmas reforçam as ideias de
Sorrentino (1998), já apresentadas.

Figuras 4, 5, 6 e 7. A oficina intitulada de “Brincando a Realidade” e teve como público-alvo os alunos da educação infantil e
série fundamental primária.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


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Fonte: Acervo do Grupo de Estudo Paisagem e Planejamento Ambiental, organizador e realizador do evento. Fotografias: Rodrigues, 2014.

OFICINAS SUBMETIDAS AO EVENTO:


“BRINCANDO A REALIDADE”
Público-alvo: alunos da educação infantil e série fundamental primária;
Objetivo: criar na sala de aula um ambiente ilustrativo e em cima desse ambiente promover a conscientização por meio
da prática para que os alunos se envolvam, utilizando de instrumentos para uma aula dinâmica onde possa conhecer a importân-
cia dos Manguezais, conhecendo o gênero e mostrando de forma dinâmica a cultura que os cerca e, que as crianças possam
reconhecer os cuidados que se deve ter com as plantas. Isso se deu, utilizando a metodologia de jogos lúdicos de Vygotsky, tra-
balhando a interatividade com os alunos, por meio de mapa mental (mosaico). Os aluno ilustraram o lugar que lhe são familiares
social e culturalmente (levado em conta a cognição individual), não deixando de abranger a importância do lixo orgânico como
adubo e mostrar com a ação a importância de plantar a vida e preservar a cultura.
Resultado: Promoveu uma ação coletiva na qual os próprios alunos (monitorados pelos ministrantes da oficina) desen-
volveram plantios de espécies nativas da área nos arredores da escola.

“VIVENDO A FLORESTA”
Público-alvo: Crianças de 6 a 13 anos;
Objetivo: O projeto buscou abordar a Educação Ambiental de forma lúdica e crítica partindo de suas vivencias, levando-
os assim a valorizar o meio ambiente e seus recursos naturais, através de um novo olhar, de uma nova vivencia da natureza,
entendendo-a não apenas como forma de recursos para subsistências ou econômicos, mas como parte integrante da sua forma-
ção enquanto cidadão.
Resultado: Provocou maior interesse das crianças aos assuntos ligados ao Meio Ambiente a partir de metodologias
lúdicas que “prenderam” a atenção do público.

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“A VALORIZAÇÃO DO LUGAR ATRAVÉS DA REPRESENTAÇÃO CARTOGRÁFICA E DA EA”
Público-alvo: Crianças e Adolescentes;
Objetivos: Difundir o conhecimento sobre o ambiente, no caso o ecossistema manguezal, a fim de conscientizar os indi-
víduos sobre a importância da preservação desse meio ambiente enquanto seu lugar de memória e identidade; Contribuir para a
formação de cidadãos conscientes e aptos na criação de iniciativas em prol da preservação e utilização sustentável dos recursos
do manguezal; Através da representação cartográfica estimular nos indivíduos o exercício de percepção ambiental como instru-
mento de estudo e valorização do lugar.
Resultados: Obteve o resultado esperado ao sensibilizar o público-alvo acerca da importância do meio ambiente.

‘“POLUIÇÃO NO MANGUE, TÔ FORA!”: A IMPORTÂNCIA DE PRÁTICAS DE


EDUCAÇÃO AMBIENTAL COM O ECOSSISTEMA MANGUEZAL. ’
Público-alvo: A partir dos 8 anos de idade;
Objetivo: Apresentar por meio da Educação Ambiental, algumas práticas que busquem a conscientização do público
alvo, com o ecossistema do manguezal; Levar ao público alvo a problematização da poluição no manguezal, revelando os males
dessa ação; Mostrar os benefícios que o manguezal pode trazer a comunidade e as formas de combater essa poluição no man-
guezal pela própria comunidade.
Resultados: Despertou no seu público uma maior sensibilização acerca dos assuntos ligados ao ecossistema Man-
guezal ao mostrar de forma clara a importância do mesmo para a vida da Comunidade.

“A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA PERSPECTIVA INCLUSIVA:


UM PRIMEIRO CONTATO COM LIBRAS”
Público-alvo: Alunos de 5ª à 8ª série;
Objetivo: O objetivo foi apresentar de forma prática e didática a necessidade de se preservar e conservar o ecossistema
manguezal através da compreensão da importância ecológica e econômica do Mangue, principalmente para a manutenção do
modo de vida das comunidades locais. As dinâmicas desenvolvidas tem o objetivo de pôr em prática a conscientização ambiental
e incentivar o interesse dos participantes pela Língua Brasileira de Sinais. Acreditamos que estimular a prática da Inclusão desde
o ensino básico é a chave para a construção de uma sociedade mais acessível e mais inclusiva.
Resultado: Apresentou de forma didática as noções de preservação de conservação do ecossistema Manguezal de uma
forma inclusiva, a fim de promover uma EA acessível a todos.

“UMA EDUCAÇÃO DIFERENCIADA SOBRE O MANGUEZAL PARA ALUNOS DO EJA”


Público-alvo: Alunos do EJA;
Objetivo: Conhecer a forma em que os alunos do EJA se relacionam com o manguezal e suas experiências com o meio;
Mostrar relações entre as experiências pregressas destes alunos com o manguezal e os conceitos e temas de geografia; Promo-
ver a troca de conhecimento entre aluno e professor; Desenvolver o pensamento analítico dos alunos, de forma que os mesmos
possam futuramente fazer interconexões entre temas geográficos e sua relação com o meio; Debater sobre a complementaridade
do conhecimento de geografia e possíveis melhorias no trato cotidiano com o meio desses alunos.
Resultados: Troca de conhecimentos acerca do tema e uma percepção mais complexa acerca do ecossistema Manguezal.

‘JOGO DE PERGUNTAS E RESPOSTAS: “PASSA OU REPASSA ECOLÓGICO”’


Público-alvo: 9º ano (8ª série);
Objetivo: Instigar aos educandos a compreensão do tema “Ecossistema Manguezal” que está ligado ao seu cotidiano,
não obstante, de maneira mais teórica.
Resultado: Conseguiu despertar nos alunos a vontade de participar mais ativamente das ações de preservação do Meio
Ambiente a partir do seu cotidiano.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


805
‘JOGO DIDATICO PEDAGOGICO “GEOQUIZ”’
Público-alvo: Público infantil;
Objetivo: A oficina “Geoquiz” teve como objetivo facilitar a aprendizagem dos alunos da educação básica, acerca de
conteúdos de Geografia e atualidades diversas, de forma lúdica, através de um jogo didático-pedagógico de perguntas e respos-
tas de modo a valorizar o patrimônio ambiental, a sustentabilidade dos recursos e a cultura local.
Resultado: Mostrou de forma divertida e interativa a importância do patrimônio ambiental presente na comunidade.

“A IMPORTÂNCIA DOS SERVIÇOS AMBIENTAIS DO MANGUEZAL”


Público-alvo: Alunos de 6º a 7º ano do ensino fundamental;
Objetivo: Apresentar aos educandos as características e os recursos naturais próprios dos manguezais, para que estes
alcancem um pensamento sistêmico acerca da constituição do ecossistema manguezal; Orientar os indivíduos sobre a maneira
sustentável de utilização dos recursos naturais, manejo e proteção dos manguezais; Despertar nos educandos a sensibilização e
a educação necessária para torná-los indivíduos críticos no que se refere à problemática ambiental, contribuindo para que estes
possam se tornar educadores ambientais em suas casas e em seu meio de convívio social.
Resultado: Alcançou o seu objetivo de sensibilização dos alunos no que se refere à percepção de Meio Ambiente, Edu-
cação Ambiental e modo de vida.

Considerações Finais
O presente trabalho teve como objetivo relatar experiências adquiridas no evento extensionista “Entre Marés: Compar-
tilhando Saberes”, que tem como proposta compartilhar saberes entre as comunidades tradicionais de pescadores da RESEX
Marinha de São João da Ponta e dos professores e alunos da graduação do curso de Geografia da Universidade Federal do Pará.
A partir dos relatos expostos nesse trabalho, podemos perceber que os conhecimentos sobre a dinâmica da natureza e
modo de vida tradicional, devem ser considerados na elaboração das atividades de educação ambiental junto às crianças e jo-
vens da comunidade para preservação das práticas ambientais sustentáveis. Os saberes tradicionais integrados aos estudos da
academia colaboram para a formação mais completa dos alunos da graduação, na medida em que fornece uma visão integrada
e interdisciplinar da relação natureza e sociedade.

Referências
ANJOS, M. C. R. Fronteiras na construção e socialização do conhecimento científico e tecnológico: um olhar para a
extensão universitária. Florianópolis, 2014. 442p.

BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. SNUC - Sistema Nacional de Unidades de Conservação.

CORRÊA, R. L; CASTRO, I. E; GOMES, P. C. Geografia: Conceitos e Temas. – 2ª ed. – Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2000.

MARTINS, E. Extensão como componente curricular: Oportunidade de formação integral e de solidariedade. Ciências & Cog-
nição, v.13, n.2, p.201-209, 2008.

OLIVEIRA, C. H. Congresso Brasileiro de Extensão Universitária. 2., 2004, Belo Horizonte. Qual é o Papel da Extensão Universi-
tária? Algumas Reflexões Acerca da Relação entre Universidade, Políticas Públicas e Sociedade. Anais... Belo Horizonte, 2004.

REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez, 1995.

SORRENTINO, M. De Tbilisi a Tessaloníki, a educação ambiental no Brasil. In: JACOBI, P. et al. (orgs). Educação, meio ambi-
ente e cidadania: reflexões e experiências. São Paulo: SMA, 1998. p. 27-32.

TUAN, Y. (1979). Space and place: humanistic perspective. In: GALE, S.; OLSSON, G (eds.) Philosophy in Geography, p. 387-
427. Progress in Geography. v.6, p. 211-252, 1974.

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EDUCAÇÃO AMBIENTAL E O DESPERTAR DO PROTAGONISMO JUVENIL:
A EXPERIÊNCIA DO PROJETO JOVEM CIENTISTA DAS ÁGUAS NA RESERVA DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL PIAGAÇU-PURUS, AMAZONAS

Silva, Luiza Helena Pedra da1; Freitas, Camila Carla de2; Dutra, Juliana Cabral de Oliveira3;
Rossoni, Felipe4 & Rodrigues, Leonardo da Silveira

1. Instituto Piagaçu luiza.pedra@gmail.com 2. Instituto Piagaçu, 3. Centro de Trabalho Indigenista, 4. Instituto Piagaçu, 5. Programa Verde Perto

Resumo
A necessidade do envolvimento dos jovens na organização comunitária e em atividades de manejo dos recursos naturais culminou
na realização do Projeto Jovem Cientista das Águas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus (RDS-PP), localizada
no baixo rio Purus, no estado do Amazonas. Este é um projeto de cunho educativo não formal baseado em pedagogia de estímulo ao
protagonismo através de práticas lúdicas e da transdisciplinaridade. O projeto apresentou resultados tangíveis de empoderamento
e inclusão dos jovens ribeirinhos nas arenas políticas locais e no manejo dos recursos pesqueiros, viabilizando a participação ativa
de jovens como: representantes no conselho deliberativo, novos integrantes dos grupos de manejo pesqueiro, assistentes de campo
em projetos de pesquisa acadêmica, intercambistas em outros projetos protagonismo jovem na Amazônia e organizadores de um
grupo de jovens da RDS-PP.

Palavras-chave: Educação Ambiental, Protagonismo Juvenil, Unidades de Conservação, Amazônia, Reserva Desenvolvimento Sus-
tentável Piagaçu-Purus.

Introdução
Há 11 anos o Instituto Piagaçu (IPi) atua na região do baixo rio Purus, principalmente na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Piagaçu-Purus (RDS-PP), localizada no estado do Amazonas. Esta Unidade de Conservação (UC) estadual foi de-
cretada em 2003, tendo como um de seus principais objetivos assessorar os moradores da região no manejo sustentável dos
recursos naturais.
Neste sentido, atua fortemente para o desenvolvimento do manejo pesqueiro participativo sustentável, como uma forma
de reduzir as ameaças aos peixes do rio Purus e colaborar para a manutenção dos modos de vida tradicionais das populações
que ali vivem. No contexto dos Recursos Pesqueiros, desde o início de sua atuação, o IPi tem trabalhado na geração e dissemina-
ção de conhecimentos sobre as espécies de peixes locais, realizando monitoramento participativo da pesca, contribuindo para o
fortalecimento da organização e gestão comunitária e, finalmente, sensibilizando e viabilizando assessoria técnica aos pescado-
res no manejo participativo de pirarucu e peixes ornamentais.
Este trabalho, iniciado em 2004, foi um fator decisivo para que em 2010 o grupo de pescadores do setor Itapuru obtivesse
junto ao IBAMA sua primeira cota de pesca de Pirarucu manejado. Em 2011 foi a vez dos moradores dos setores Caua-Cuiuanã
e Ayapuá também realizarem suas primeiras pescarias autorizadas, seguindo o manejo em expansão até os dias de hoje. Este
trabalho, de pouco mais de 10 anos, contribuiu para o fortalecimento das comunidades locais destes setores, onde os grupos
de manejadores acreditam e trabalham para consolidar estes sistemas de práticas sustentáveis de uso dos recursos pesqueiros.
Após um longo processo de sensibilização e articulações junto a comunidades locais, dispende-se igualmente um grande
esforço no sentido de estruturação e implementação destes novos processos produtivos voltados às práticas sustentáveis, no
cenário de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Neste contexto, o IPi sempre discutiu com as comunidades locais
a necessidade de estratégias para alavancar uma maior participação da população local nos processos de gestão da RDS-PP.
Para isso, intervenções contínuas no sentido de capacitações são fundamentais para a formação de agentes protagonistas sociais.
Em conversas entre membros da diretoria do IPi e comunitários antigos e engajados na causa “RDS” surgiu a identifica-
ção de uma grande demanda, que era o trabalho com o público jovem das comunidades locais; o anseio destes comunitários
com idades mais avançadas é que sejam formadas novas lideranças, para seguirem na implementação e consolidação dos siste-
mas de manejo e gestão da RDS-PP, além de levar aos jovens informações relevantes no contexto de saúde, educação e cultura,

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


807
como prevenção e combate às drogas e DST, por exemplo. Neste cenário, o Jovem Cientista das Águas foi concebido como uma
estratégia de ação do Projeto Peixes da Floresta, patrocinado pela Petrobras, através do Programa Petrobras Socioambiental.
O Projeto Peixes da Floresta objetivou viabilizar a conservação de organismos aquáticos e dos habitats florestais de
várzea através de pesquisas com peixes e seus habitats, incluindo a agricultura familiar, e da consolidação do manejo sustentável
de pescado na RDS-PP. Também teve como objetivo promover a sensibilização e proatividade dos ribeirinhos e outros usuários a
cerca desta questão através do Programa de Educação Ambiental (PEA-IPi). O Jovem Cientista das Águas objetivou viabilizar aos
jovens da RDS-PP o acesso e/ou troca de conhecimentos científicos, tradicionais e informações técnicas necessárias à prática do
manejo sustentável de peixes da região e estimular o protagonismo juvenil. A formação dos jovens se deu em conteúdos extracur-
riculares, numa proposta de educação não formal.
O foco nos jovens se deu pela percepção da necessidade de inclusão efetiva dos mesmos nas discussões e nos siste-
mas gerenciais de suas comunidades, fortalecendo os sistemas de manejo dos recursos pesqueiros nas comunidades onde a
atividade já ocorre e auxiliando nos processos de sensibilização nos locais onde os manejos ainda não ocorrem. Para isso, ficou
clara a necessidade de promover momentos e espaços que viabilizassem a transmissão de conhecimentos e técnicas entre os
manejadores mais experientes e os jovens pescadores interessados, facilitando a inserção destes nos grupos de manejadores.
De maneira ampla, o Jovem Cientista das Águas buscou despertar o interesse dos jovens pela gestão participativa e
manejo sustentável dos recursos naturais, através de resgate histórico, participação em pesquisas básicas e aplicadas, acesso a
informação técnico/científica e promoção da cultura e da arte.

A juventude no contexto da gestão participativa em Unidades de Conservação


Despertar o interesse da juventude nas iniciativas de gestão tais como o manejo, a participação em Conselhos Gestores,
ou na atuação em Associações mães das Unidades de Conservação (UC) de Uso Sustentável, é um dos grandes desafios per-
cebidos na efetiva proteção do patrimônio natural e no desenvolvimento socioambiental. A juventude, de uma maneira geral, não
tem atuado de forma efetiva nos espaços de participação social na gestão participativa das UC estaduais e federais.
Esse cenário é especialmente forte na Amazônia legal, acarretando em um enfraquecimento da gestão das UC (SOUZA;
SCELZA; ACOSTA, 2015). Tal processo se dá principalmente na dificuldade de renovação de lideranças que atuem ativamente
na gestão participativa das UC, e pela ausência dos jovens nos movimentos sociais que buscam a melhoria da vida das popula-
ções tradicionais em seus territórios. O não envolvimento dos jovens acarreta ainda grande desânimo nas lideranças, que temem
não haver pessoas para dar continuidade a seus trabalhos (SOUZA; SCELZA; ACOSTA, 2015).
Considerando esse cenário de dificuldade de participação da juventude na gestão participativa das UC, alguns gestores
do ICMBio e profissionais da gestão de áreas protegidas perceberam que um dos principais motivos da ausência de jovens
está associado a dificuldade de compreensão do jargão utilizado na gestão. A linguagem jurídica utilizada na administração das
UC é pouco compreendida pelos jovens e não é atraente para esse público (SOUZA; SCELZA; ACOSTA, 2015; FIGUEIREDO;
SOUZA; PRADO, 2015).
Visando enfrentar esse desafio um conjunto de UC federais do Médio Solimões/AM, adaptou a metodologia Verde Perto
Educação (RODRIGUES; PEREIRA, 2015) para realizar a aproximação dos jovens ao cotidiano da gestão dessas unidades, por
meio da utilização de variadas linguagens na abordagem dos diferentes assuntos que tratam da gestão participativa, trabalhando
temas que iam da compreensão do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), à instrumentos legais da gestão
participativa, passando por uma compreensão mais ampla sobre o cenário ambiental contemporâneo, e tratando de estratégias
de associativismo e cooperativismo.
Todos esses temas abordados por meio de palestras, debates, trabalhos em grupo intercalados por oficinas de arte edu-
cação como teatro, desenho, música e dança. Dessa forma, se criou um grande espaço de atração para os jovens que culminou
com a criação de uma rede de juventude extrativista que tem atuado como protagonistas na gestão das UC de Uso Sustentável
da Amazônia (RODRIGUES; ANCIÃES, 2015).
Com os resultados obtidos nessa primeira iniciativa nas UC federais do Médio Solimões (RESEX do Baixo Juruá, RESEX
do Rio Jutaí e Flona Tefé) outras UC federais e estaduais começaram a buscar incluir os jovens na gestão por meio de um proces-
so de ensino aprendizagem que incluísse variadas linguagens e formas de aprendizagem de modo que a participação na gestão
se apresentasse como algo agradável e estimulante para a juventude. Nesse cenário, o IPi decidiu trabalhar nessa linha de cons-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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trução de processo educativo por meio da utilização de uma pedagogia não formal de estímulo ao protagonismo por meio
da educação lúdica e da transdisciplinaridade, linha adotada na metodologia Verde Perto Educação (RODRIGUES, 2008; RO-
DRIGUES; PEREIRA, 2015).

O Projeto Jovem Cientista das Águas na RDS-PP


O Jovem Cientista das Águas é um projeto que teve como objetivo estimular o protagonismo dos jovens moradores da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus nos diversos espaços que envolvem organização comunitária, tendo
como foco principal o manejo sustentável de peixes por meio de processos participativos e lúdicos, despertando o interesse dos
jovens pelo manejo sustentável.
O projeto buscou empoderar e instrumentalizar os jovens para se tornarem sujeitos ativos nos processos de gestão dos
recursos naturais da reserva, aprendendo de maneira participativa e lúdica com os conhecimentos científicos e tradicionais rela-
cionados à conservação e à pesca. Para isso a troca de experiências dos jovens tanto com os técnicos do Instituto Piagaçu quanto
com os próprios manejadores da reserva se fizeram de extrema relevância.
Os conteúdos foram trabalhados de maneira transversal, ancorados nos saberes científicos e tradicionais relacionados
a quatro grupos de peixes de grande importância para a economia familiar e/ou base alimentar dos moradores da reserva, que
são: tambaqui, pirarucu, peixes ornamentais e bagres. Além disso, foram trabalhados conteúdos que estimulassem os partici-
pantes a se organizarem enquanto juventude da RDS-PP em busca de melhorias em questões que foram identificadas por eles,
ao longo do projeto, como problemas em suas comunidades.
A proposta do Jovem Cientista das Águas se atentava para importância da promoção de reflexão crítica, participação co-
letiva e diálogo entre atores envolvidos na gestão participativa da RDS-PP, utilizando-se de uma abordagem sistêmica e holística,
levando em conta a cultura, os saberes e modos de fazer local. Para tanto, o programa atuou tanto com o público escolar, quanto
nos fóruns locais de discussão sobre práticas coletivas de gestão e manejo, elaborando e executando atividades continuadas
de educação não formal. O direcionamento central do programa esteve baseado no respeito e cuidado ao próximo e ao meio
ambiente.
O Programa se fundamenta em linhas teóricas que valorizam a diversidade de manifestações humanas e as relações de
interdependência estabelecidas entre homem e meio ambiente. Os principais autores que referenciam o programa são Edgar
Morin, Enrique Leff e Paulo Freire.
Assim como apontam os escritos de Leff (2009), a crise da racionalidade moderna indica a necessidade de integrarmos
saberes a fim de alcançar uma compreensão mais ampla da condição humana e de suas relações com o meio. É também a partir
desta abordagem que Morin (2005) questiona a postura de oposição que, muitas vezes, a ciência moderna adota em relação
às diversas formas de conhecimento, incluindo manifestações de culturas tradicionais e populares. Neste sentido, Paulo Freire
(2000) aponta para a necessidade de uma educação dialética, que não exclua, mas possibilite que os próprios educandos se
transformem em sujeitos de sua educação.
A partir deste viés, o IPi busca contribuir para o exercício do protagonismo através da criação de esferas de construção
e troca de conhecimentos. Utilizou-se a metodologia Verde Perto, criada pelo biólogo Leonardo Rodrigues, que propõe que os
conhecimentos devem ser construídos em conjunto com os jovens, utilizando-se de linguagens diversas que estimulam inteligên-
cias múltiplas. Ou seja, além de conter palestras e atividades práticas, os encontros com os jovens incluem oficinas de artes,
exibições de vídeos, atividades físicas e lúdicas e também espaços em que os próprios jovens são convidados a promover as
atividades que lhes interessam. Desta forma, os encontros se tornam também momentos em que os jovens passam a exercitar a
tomada de decisões em grupo, a cidadania e o protagonismo.

Desenvolvimento do projeto
O Jovem Cientista das Águas contou com quatro encontros, ou módulos, com duração de 3 a 4 dias e participação de
aproximadamente 100 jovens moradores de diferentes comunidades da RDS-PP em cada módulo, ao longo de um ano. Ao todo
210 jovens participaram do projeto. Foi realizado também um encontro direcionado para os jovens representantes de cada comu-
nidade em processo de formação de um grupo de jovens. Entre cada módulo, a equipe do Programa de Educação Ambiental
do Instituto Piagaçu manteve uma ação continuada de educação junto aos jovens, estimulando-os a realizarem atividades de

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


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preparação para o próximo encontro, propostas por meio de cartilhas elaboradas pela equipe antes de cada módulo.
Ao todo foram realizados quatro módulos, sendo cada edição em uma comunidade diferente. Nas semanas anteriores à
realização do primeiro módulo, a equipe visitou 07 comunidades para apresentação do projeto. Nas comunidades onde a equipe
de EA já vem desenvolvendo atividades foi organizada uma grande reunião comunitária, que contou com a presença de lideran-
ças, pais, jovens, gestores e professores das escolas.
Nestas foi realizada a descrição do projeto (objetivos, metodologia, temas, logística) oferecendo uma visão clara das ativi-
dades. Tais reuniões foram momentos importantes para sensibilizar os comunitários em relação ao projeto, coletar opiniões sobre
o incentivo ao protagonismo jovem e acerca das demandas que poderiam ser atendidas pelo projeto. Também foi um momento
importante para solicitar contrapartidas das comunidades no sentido de apoio ao projeto. As comunidades apresentaram suas
propostas, como a organização de pescarias para contribuir com a alimentação. Todas as comunidades se dispuseram a ajudar
com peixes e farinha de mandioca.
O primeiro módulo ocorreu em setembro de 2014 na comunidade Pinheiros da RDS-PP, tendo como tema principal a
“Conservação do meio ambiente”. Lideranças antigas da comunidade e o presidente da associação-mãe da reserva também
tiveram participação ativa no módulo. Para estimular o intercâmbio entre jovens protagonistas de diferentes lugares, também
participaram do encontro dois jovens moradores da Reserva Extrativista do Rio Unini, onde já haviam sido realizados 6 encontros
de jovens através da metodologia Verde Perto.
Nos três dias do encontro foram realizadas atividades de alongamento e Yoga, oficinas de desenho, jogos e palestras. Os
temas abordados foram: a questão ambiental no mundo; o histórico de ocupação do Rio Purus; conceitos ecológicos e conserva-
ção, o cuidado dos lagos; o contexto das Unidades de Conservação; a criação da RDS-PP e o Instituto Piagaçu.
Antes do início de cada turno de atividades, uma educadora física e especialista em Yoga Ashtanga conduziu práticas de
yoga de aproximadamente 30 minutos de duração. Além de técnicas de alongamento e relaxamento, a condução das atividades
físicas buscou criar entre os jovens um ambiente de descontração favorável ao aprendizado à realização de atividades partici-
pativas.
Este primeiro módulo foi importante no estabelecimento de relações e trocas de experiência entre os jovens da RDS-PP,
uma vez que a grande maioria deles não haviam tido ainda a oportunidade de se conhecerem. Desta forma, foi iniciada uma rede
de contatos entre as diferentes comunidades e fortalecido a identidade dos jovens como comunitários de um mesmo território
protegido. Além disso, o encontro promoveu uma relação de parceria e confiança entre os jovens e a equipe do PEA-IPi.
O segundo módulo aconteceu em dezembro de 2014, na comunidade Cuiuanã, e teve como foco a “Biologia e ecologia
de peixes da Amazônia”. Neste encontro, foram realizadas atividades de musicalização, oficinas de pintura e escultura, palestras
e atividades práticas. As palestras abordaram a relação dos peixes da região com a floresta, dando enfoque para a reprodução,
alimentação, migração e hábitos de determinados peixes importantes para os moradores locais. Também foi feito um retrospecto
dos diferentes apetrechos de pesca, tradicionais ou não, utilizados pela população local ao longo dos anos. Com o objetivo de
tornar as palestras mais dinâmicas e introduzir elementos de investigação e pesquisa científica foi desenvolvida uma atividade
prática de dissecação de peixes.
No segundo módulo foi possível notar alguns jovens se destacando como protagonistas, tendo atitudes pró-ativas e co-
laborativas, participando das discussões e propondo atividades. Além disso, foi perceptível o aumento da eficiência dos comitês
jovens de organização do evento em relação ao módulo anterior. Os jovens foram mais ativos e responsáveis com seus compro-
missos, e mais participativos nas atividades do módulo como um todo. Além da evolução esperada ao longo do projeto, outro
fator que pode ter contribuído foi o tempo diário (quinze minutos) destinado para a auto-avaliação e informes de cada comitê.
Também foi notável um maior empenho dos jovens ao organizar as atividades autogeradas do período da noite.
A partir da identificação de uma carência de acesso à informação de temas relacionados a saúde, foi inserido na pro-
gramação do encontro o Momento Saúde, que trata-se de um espaço de conversa com o objetivo de promover entre os jovens
conhecimento acerca de hábitos de vida saudável, a partir de temáticas como: alimentação, sexualidade e higiene. Foram realiza-
dos dois momentos, onde foram abordados assuntos de DST’s e alimentação transgênica. As conversas sobre sexualidade foram
realizadas pelo agente de saúde da comunidade Cuiuanã e participante do projeto JCA, fato muito positivo tanto por facilitar o
envolvimento dos jovens que se sentem identificados e confortáveis com a fala do colega, quanto por incentivar o protagonismo
do agente de saúde.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
810
O terceiro módulo foi realizado em março de 2015 na comunidade Uixi e teve como tema principal “Manejo Participativo
dos Recursos Pesqueiros”: histórico, legislação, metodologia e prática. Neste encontro, foram realizadas oficinas de teatro, ativi-
dades físicas, palestras e atividades práticas. As atividades teórico-práticas foram conduzidas por meio de dinâmicas, palestras
e mesas-redondas.
O conteúdo trabalhado detalhou as etapas necessárias à realização do manejo participativo do pirarucu. Também foram
abordadas questões históricas e dinâmicas para simulação metodológica de determinadas etapas. As oficinas de teatro foram
integradas às atividades teórico-práticas como mais uma forma de abordar o tema. As atividades do Momento Saúde foram re-
alizadas pela terapeuta ocupacional Antonieta Dias, da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus. Foram abordados dois temas
de importância fundamental para a juventude: Uso de Drogas e Sexualidade.
Neste módulo houve aumento do número de participantes moradores em comunidades localizadas no entorno da RDS-
PP. Isso indica que os jovens destas comunidades estão procurando cada vez mais envolvimento com as questões relacionadas
à RDS-PP e conservação da região. Inclusive houve a participação do presidente da comunidade Nova Jerusalém, a qual iniciou
recentemente o manejo sustentável do pirarucu e que anteriormente realizava a exploração predatória desta espécie. Esse fato
pode ser um indicativo que o projeto esteja incentivando boas práticas de manejo nas comunidades de entorno. Também houve
a participação de moradores, dois jovens e um professor, da Terra Indígena Ayapuá, território que faz vizinhança com a RDS-PP,
o que constituiu em uma oportunidade inédita de integração entre os jovens dessas duas áreas protegidas.
Os momentos de debate entre as lideranças de setores diferentes são muito enriquecedores tanto para os jovens quanto
para os técnicos do Instituto Piagaçu. Geralmente, essas lideranças se encontram apenas em momentos estratégicos, como nas
reuniões de Conselho Gestor e, muitas vezes não possuem tempo para debater questões específicas relacionadas ao manejo
pesqueiro que realizam, fazendo desses debates momentos políticos muito importantes para a RDS-PP.
O quarto módulo foi realizado em abril de 2015 na comunidade do Itapuru e teve como tema principal “Organização
Comunitária”. Neste encontro foram realizadas oficinas de circo e origami. Os conteúdos trabalhados estiveram atrelados a
conhecimentos essenciais na promoção da organização comunitária, como cidadania, direitos da juventude, metodologias de
identificação de soluções de problemas, associativismo e cooperativismo, dentre outros.
Este módulo contou com a participação especial de Dione Torquato, Secretário de Articulação da Juventude Extrativista
do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS). Dione compartilhou sua história de vida com os jovens participantes e
ministrou palestras. A importância de sua presença se deu pelo fato de ter tido seu protagonismo e envolvimento em movimentos
sociais despertos com a participação em um projeto semelhante ao Jovem Cientista das Águas, na Floresta Nacional de Tefé no
estado do Amazonas. Tal fato permitiu uma maior proximidade do convidado com a realidade dos jovens da RDS-PP e serviu de
inspiração e incentivo parra os mesmos.
Como no primeiro módulo, houve a participação de três jovens da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Ne-
gro que participam de um projeto também baseado na metodologia Verde Perto. A troca de experiências e participação desses
jovens em intercâmbio foram muito importantes para levar aos jovens da RDS-PP o conhecimento de uma vivência semelhante
a que eles estavam vivendo no projeto. Também houve a participação de dois jovens moradores do centro urbano de Beruri, os
quais fazem parte do Instituto Beruri de Juventude.
Nesse último encontro, ocorreu a gravação do programa Nova Amazônia, produzido pela TV Cultura, que abordou em
um de seus episódios a experiência do Jovem Cientista das Águas. A oportunidade de ter um programa da televisão aberta na
rede nacional, apresentando o projeto, tem elevado potencial a divulgação do trabalho realizado e incentivo de ações de mesmo
caráter. Ao mesmo tempo, a gravação do programa proporcionou aos jovens e aos comunitários da RDS-PP o reconhecimento e
a valorização de suas práticas e sua importância para a conservação ambiental na Amazônia.

Oficinas artísticas: a arte como elemento educacional


As atividades artísticas tiveram como objetivo de utilizar as linguagens da arte para despertar as múltiplas inteligências
dos jovens, contribuindo para a construção lúdica dos conhecimentos trabalhados ao longo do encontro. Durante o desenvolvi-
mento do projeto pôde-se perceber como as oficinas artísticas exerceram papel fundamental no processo de aprendizagem e no
envolvimento dos jovens com as temáticas e conteúdos trabalhados nas palestras, mesa-redonda e atividades em grupo. Além
de estimular para os participantes a geração de autoconhecimento, autoconfiança e desenvoltura em público.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


811
A arte na educação, como expressão pessoal e como cultura, é um importante instrumento para
a identificação cultural e o desenvolvimento individual. Através da arte, é possível desenvolver a
percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade
crítica e assim analisar a realidade percebida, pela criatividade, de modo a mudar de alguma
forma a realidade que foi analisada (BARBOSA, 2005, p.292)

No primeiro módulo do Jovem Cientista das Águas foram ministradas oficinas de desenho por um artista, nas quais
diversas técnicas de desenho foram apresentadas com o objetivo de fornecer elementos para que os participantes pudessem
re-elaborar os conteúdos trabalhados por meio da linguagem visual. A participação dos jovens nessas oficinas foi muito positiva
e estimulou-os a utilizar o desenho em algumas das atividades em grupo indicando que uma nova alternativa de linguagem
foi apreendida. Os participantes foram convidados a produzir um desenho sobre todo o conteúdo debatido durante o módulo,
valendo-se de todas as técnicas aprendidas durante as oficinas e aprestar o resultado em plenária. Ao final de cada módulo, os
jovens tiveram a oportunidade de escolher quais oficinas artísticas teriam no módulo seguinte.
As oficinas de artes escolhidas para o segundo encontro foram de pintura e escultura, e permitiram que os jovens retra-
tassem os peixes estudados por meio de linhas, cores e objetos tridimensionais, colaborando na reflexão sobre o importante
espaço que tal fauna ocupa em seus cotidianos. Foram realizadas também atividades de musicalização e percussão corporal no
início de cada período (matutino e vespertino) com o intuito de construir a harmonia entre sons e movimentos corporais, além de
descontrair e dinamizar as atividades do curso, contribuindo para o despertar dos jovens antes das atividades teórico-práticas.
Para o terceiro módulo foi escolhido pelos jovens a realização de oficina de teatro, que foi conduzida por uma educadora
de teatro estudiosa da metodologia “Teatro do Oprimido”. As atividades de teatro estiveram diretamente relacionadas ao tema
trabalhado nas palestras e mesas redondas, contribuindo na construção de conceitos e encenação de contextos necessários à
compreensão do manejo participativo dos recursos naturais.
Oficinas de circo e origami foram elegidas para o quarto módulo. Diferentemente dos outros encontros, os jovens se
dividiram por escolha em três turmas diferentes: a) mágica; b) palhaço e malabarismo; c) origami. As atividades contribuíram na
construção de conceitos e conhecimentos importantes à compreensão da organização comunitária para o manejo participativo
dos recursos naturais. Durante as oficinas os participantes construíram e ensaiaram apresentações circenses para serem apre-
sentadas a toda comunidade no encerramento do projeto, culminando em um espetáculo de circo de quase 2 horas de duração,
com diversas atrações. A condução e organização do espetáculo foram de responsabilidade dos jovens com o auxílio dos arte-
educadores, o que contribuiu no incentivo à autonomia, pro atividade e autogestão. Além disso, também foi um fator importante
o envolvimento da comunidade como um todo proporcionado pelas apresentações e pela difusão dos conhecimentos adquiridos
ao longo do encontro.

Resultados
Relações diversas foram estabelecidas e fortalecidas com o projeto: a) entre os jovens das diferentes comunidades; b)
entre os jovens da RDS-PP com jovens de outras localidades (Terra Indígena Ayapúa, Comunidade Nova Jerusalém, RDS Rio
Negro, Reserva Extrativista do Rio Unini e Centro Urbano de Beruri); c) entre os mais velhos e os jovens, através do resgate de
relatos históricos sobre fartura de peixes, sobre-exploração e a implementação do manejo; d) entre o IPi com os jovens, escolas
e professores da RDS-PP.
Cabe destacar que as trocas de experiências entre jovens de comunidades/setores diferentes, bem como entre jovens de
diferentes regiões da Amazônia, geram o reconhecimento e fortalecimento destes atores como um coletivo ativo.
Após o início do Jovem Cientista das Águas alguns dos participantes se destacaram e passaram a assumir papéis es-
tratégicos dentro da reserva: dois jovens foram eleitos como representantes de seu setor (Itapuru) no Conselho Deliberativo da
RDS-PP (um titular e um suplente); um participante se tornou contador de pirarucu dentro do manejo da espécie, tendo sido
capacitado e certificado; outros jovens foram inseridos nos grupos de manejo da pesca; três jovens estão participando de pes-
quisas acadêmicas como assistentes de pesquisa.
Além disso, cinco jovens fizeram intercâmbio de experiência em projetos similares na RDS Rio Negro e na Reserva Ex-
trativista do Rio Unini, e dois jovens foram selecionados para participar do Guerreiros Sem Armas na cidade de Santos/SP, um
programa internacional de formação vivencial de jovens em liderança e empreendedorismo social.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
812
Um dos resultados mais diretos e com maior potencial transformador foi o estabelecimento de um grupo de jovens re-
presentantes de cada comunidade. Ao se sentirem empoderados, os jovens perceberam a força de mobilização que possuem e
a necessidade de aprender a gerenciar ferramentas para conseguirem usar esta força em prol de suas comunidades.
Esse grupo de jovens teve o apoio do IPi, através de um encontro destinado à sua formação e elaboração de um plano
de ação, onde planejaram continuar as atividades de formação desenvolvidas no Jovem Cientista das Águas autonomamente e
expandirem para as comunidades da RDS-PP que não participaram do projeto. Outra meta do grupo é elaborar um dossiê sobre
a situação precária de suas escolas e cobrarem dos órgãos públicos responsáveis a reforma de algumas e a construção de novas
em comunidades onde não há.
Houve uma criação de um novo cenário nas relações políticas, internas das comunidades, entre comunidades, e das
comunidades com o poder público, alavancadas pelos jovens. As comunidades que tiveram participantes no projeto acabaram
recebendo através do jovem uma série de informações importantes para articulações internas e externas, no tocante a relações
com secretarias municipais, órgãos estaduais de gestão de Unidades de Conservação, dentre outros. Os adultos relatam terem
sido surpreendidos com a intensidade do envolvimento dos jovens no projeto e a mudança de postura e mobilização subse-
quente.

Conclusão
Os resultados alcançados com o desenvolvimento do Projeto Jovens Cientistas das Águas foram surpreendentes tanto
para os participantes quanto para o Instituto Piagaçu. Houve um impacto positivo no empoderamento e protagonismo da juven-
tude, nas comunidades que tiveram jovens participando e no cenário de relações internas e externas da RDS-PP.
Acredita-se que o trabalho de educação ambiental com jovens deva receber atenção especial dos órgãos de gestão de
Unidades de Conservação e de agências de fomento à conservação dos recursos naturais. A integração de diferentes linguagens
no processo de aprendizagem, como proposto pelo projeto, traz maiores possibilidades de assimilação dos conteúdos por jo-
vens em situação de precário acesso à escolarização formal. A continuidade do projeto se faz necessária para a manutenção da
integração e mobilização alcançadas, assim como a expansão para outros setores da RDS-PP.

Referências
BARBOSA, A. M. Pesquisas em Arte-Educação: recorte sociopolítico. Educação & Realidade, v. 30, n. 2, 2005.

FIGUEIREDO, A. L. C. B.; SOUZA, T. M. M.; PRADO. F. A Educação Para Jovens na Gestão do Patrimônio Socioambiental Brasileiro:
Teoria e Prática. In: Rodrigues, L. S. & Anciães, M. orgs. Verde Perto Educação. Vol. 1.Manaus: Editora do Inpa, 2015.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários a Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

LEFF, E. Complexidade, Racionalidade Ambiental e Diálogo de Saberes. Educação & Realidade, v. 40, n. 3, 2009.

MORIN, E. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2005.

RODRIGUES, L. S. Encontro Nacional da Anppas, 4., 2008. Brasília. Promovendo Educação Ambiental Por Meio das Inteligências
Múltiplas: O Programa Verde Perto. Anais... Brasília-DF, 2008.

RODRIGUES, L. S. & ANCIÃES, M (orgs.). Verde Perto Educação Vol. 1. Manaus: Editora do Inpa, 2015.

RODRIGUES, L. S. & PEREIRA, J. O. R. Verde Perto Educação: Metodologia e Origem. In: Rodrigues, L. S. & Anciães, M. orgs.
Verde Perto Educação Vol. 1. Manaus: Editora do Inpa, 2015.

SOUZA, T. M. M.; SCELZA, G. C.; ACOSTA, R. K. Ver De Perto: Educação Ambiental no Movimento Social de Base – Projeto
jovens como protagonistas do fortalecimento comunitário na Resex do Baixo Juruá, Resex do Rio Jutaí e Flona de Tefé, AM. In:
Rodrigues, L. S. & Anciães, M. orgs. Verde Perto Educação. Vol. 1. Manaus: Editora do Inpa, 2015.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


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ENTENDIMENTO JUVENIL DOS QUATRO ELEMENTOS NATURAIS:
CONTRIBUIÇÃO PARA A CONSERVAÇÃO DA FLORESTA AMAZÔNICA

Azevedo, Genoveva Chagas de1 & Higuchi, Maria Inês Gasparetto1

1.Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental – LAPSEA/INPA, genopan@gmail.com

Resumo
A juventude historicamente se mostra com grandes possibilidades de protagonismo. As Áreas de Proteção Ambiental exigem ações
humanas de maior proteção. Para tal há que se buscar saber o que atores sociais pensam sobre tais áreas. A pesquisa traz o en-
tendimento de jovens estudantes de escolas públicas de Manaus sobre os quatro elementos naturais e a caracterização de seus
usos sociais1. A amostra compôs-se de 582 estudantes de ambos os sexos, que cursavam do 6º ao 9º ano. Os níveis mais baixos de
entendimento sobre os elementos residiram: água na dimensão abastecimento; ar, nas fontes de emissões de gases do efeito estufa
ligadas; fogo, nas fontes de energia e seus custos socioambientais; e terra, nos usos mais adequados dos solos. Conclui-se que
considerar os limites do conhecimento sobre esses elementos é fundamental para a ampliação e fortalecimento desse segmento
social com vistas ao cuidado de área protegidas, em especial, no âmbito da floresta amazônica.

Palavras-chave: Floresta, Conservação, Ecoethos da Amazônia, Educação Ambiental, Juventude.

Introdução
O debate sobre a sustentabilidade ou sobre sociedades sustentáveis, uma vez que um único modelo não incluiria a diversi-
dade de ecossistemas naturais, e nem a sociodiversidade de povos e comunidades, tão pouco a complexidade que envolve a nossa
história e culturas, precisa ser ampliado e contextualizado. E pensar processos educativos em Áreas Protegidas, implica primeiro
em compreender o que as pessoas e grupos sociais pensam, percebem e entendem os elementos constituintes dessas áreas.
O estudo ora apresentado, ainda que não esteja diretamente ligado com uma área protegida específica, traz informações
de como jovens estudantes entendem aspectos distintos relacionados aos quatro elementos naturais. Tais elementos dizem res-
peito a qualquer área protegida, e nessa interface, o papel que as ações humanas desempenham no maior ou menor cuidado
com esses elementos, e para nossa realidade regional, relacionados à floresta amazônica.
Nesse debate, teóricos e pesquisadores como Sachs (2002) e Jacobi (1999), enfatizam que as pautas das sustentabili-
dades assumem papel central na reflexão em torno das dimensões que envolvem desenvolvimento econômico-social e as alter-
nativas tecnológicas que visam minimizar os impactos negativos que os seres humanos fazem no uso excessivo dos recursos
naturais. Para tal, há que se construir sociedades que pensem a hajam com responsabilidade, com respeito, com cuidado, e isso
implica mudanças profundas de valores, princípios e atitudes, e consciência ecológica que preconize a conexão com a natureza
em uma nova aliança (MOSCOVICI, 1976; REIGOTA, 1999).
Mas, como construir essas sociedades? Começar por onde? Fortalecer quais contextos? Acreditamos que a juventude
tem sido um segmento social que mostra grandes possibilidades de protagonismo na relação pessoa-ambiente. O termo juvenil
assumido refere-se a pessoas que estão buscando situar-se no mundo do adulto, e ao mesmo tempo, têm suas próprias agendas,
interesses diversos e difusos. Meninos e meninas que estão expostos aos mais variados estímulos e que são “convocados” a
repensarem seus focos, suas escolhas, seus estilos de vida, e ao mesmo tempo, tem que lidar com as transformações corporais,
psicossociais, familiares e culturais (GUIMARÃES; GRINSPUN, 2008; DAYRELL, 2003).
O movimento da juventude em torno do meio ambiente tem conseguido agregar jovens de todas as idades, classe social,
escolaridade visando dar sua contribuição para a resolução de problemáticas socioambientais importantes. A juventude ou ju-
ventudes como apontam as teorias mais recentes compreende ser esse um momento muito importante do desenvolvimento da
pessoa. E tal desenvolvimento não se dá mesma forma, nem ao mesmo tempo, e nem há uma cronologia tão marcada para definir
quem são os jovens deste contexto socioeconômico, cultural e ambiental (CARVALHO, 2002).

1
Pesquisa de Iniciação Científica no âmbito de um projeto mais amplo intitulado “Ecoethos da Amazônia: educação ambiental e desenvolvimento social com respon-
sabilidade ambiental”, realizado pelo LAPSEA/INPA, com apoio financeiro da FAPEAM.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


815
Envolver os jovens nesses debates e na busca de soluções para os problemas ambientais, é urgente. No entanto, para
que isso aconteça é necessário que compreendamos o que diferentes jovens pensam a respeito dessas relações. A pesquisa que
originou o presente artigo objetivou identificar o entendimento juvenil sobre os quatro elementos biofísicos água, ar, fogo e terra,
e caracterizar dimensões atitudinais relacionadas aos usos sociais desses elementos.
Com relação ao elemento Água e seu uso social, foram considerados três aspectos distintos: a) abastecimento; b) des-
perdício e, c) poluição das águas. A água, símbolo da vida, respeitada e valorizada em todas as religiões e culturas, tornou-se
também um símbolo da equidade social, pois a crise da água é, sobretudo de captação, distribuição, e de acesso igualitário, e ai-
nda não de escassez absoluta. Assim, a maior parte das decisões relativas aos recursos hídricos implicam problemas de acesso
e privação. Portanto, precisamos compreender quais os princípios éticos comuns que podem ser aceitos como aplicáveis nas
diferentes situações geográficas, em fases distintas do desenvolvimento econômico e em qualquer ocasião (SELBORNE, 2001).
Para o elemento Ar considerou-se os processos e atividades que geram e emitem os gases do efeito estufa (GEEs), assim
como aquelas que têm ações mitigadoras. É a partir desse elemento que podemos trabalhar o acúmulo de gases liberados pelos
processos naturais e aqueles produzidos pelas atividades humanas como poluentes que estruturam ou desestruturam o clima do
planeta, alterando o efeito estufa, entre outros fenômenos.
O efeito estufa é um fenômeno natural causado pela presença de nuvens e gases que compõem a atmosfera, sendo
responsável pelos fenômenos meteorológicos, pela estabilidade do clima e por tornar a temperatura mais quente na Terra, pos-
sibilitando a vida. Os principais GEEs são: dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O), juntamente com o
vapor de água, que emitidos em grande quantidade para a atmosfera podem provocar o aquecimento da superfície do planeta e
provocar mudanças no clima global (HIGUCHI; CARNEIRO FILHO; SILVA, 2012).
No elemento Fogo, faz-se uso da simbologia da Energia. Por meio desse elemento é possível estimular a reflexão sobre a
decisão da escolha das diferentes matrizes energéticas e capacidade de produção com menor impacto possível e atendimento
das demandas sociais mais justas e equitativas, considerando a potencialidade e fragilidades presentes no meio físico e que
podem ser determinantes na implementação de determinada fonte energética.
A produção de energia implica em modificações no ambiente natural, então as discussões acerca do consumo energé-
tico requerem o entendimento das diferentes possibilidades dessas fontes, especialmente na Amazônia e suas implicações na
questão dos impactos ambientais no âmbito ecológico e socioeconômico (SARAIVA; PAZ; WEIGEL, 2014).
E o elemento Terra, entendido como o local onde se constrói e se define a territorialidade de uma cultura por práticas
de apropriação do mundo, resultado de uma dialética entre especialidade geográfica, organização ecológica e significação cul-
tural (LEFF, 2001). Sendo assim, a relação entre espaços territoriais e seres vivos se diferencia de acordo com sua constituição
geográfica, social e cultural.
É cada vez mais claro que nossas necessidades básicas de moradia e aparatos urbanos nos levam ao consumo exa-
cerbado dos recursos naturais. Juntamente com o crescimento o desperdício também cresceu, tornando alguns recursos, antes
abundantes, escassos e até extintos (BRADY & WEIL, 2013). E os impactos provocados por esse estilo de vida afeta direta ou
indiretamente a quantidade e qualidade da biodiversidade, dos recursos hídricos, da fauna, entre outros impactos (FERREIRA,
2012; NOGUEIRA; SANSON; PESSOA., 2007; TERRA; SARAIVA; WEIGEL, 2014; HIGUCHI; AZEVEDO, 2014).
Acreditamos que as problemáticas associadas aos quatro elementos devem ser explicitadas e trabalhadas em qualquer
processo educativo. Da mesma forma que as possibilidades de usos sustentáveis, especialmente nas Unidades Conservação, de-
vem se constituir em processos de inclusão social nessas áreas protegidas, seja nas de categoria de uso direto ou de uso indireto.
Nesse sentido, este estudo inclui a “voz” de jovens estudantes no debate sobre áreas protegidas quando identifica seus
entendimentos sobre os quatro elementos e caracteriza possíveis atitudes ecológicas de cuidado e conservação em relação aos
usos dos mesmos, que podem impactar em maior ou menor escala essas áreas, neste caso, no contexto da floresta amazônica.

Material e Métodos
A pesquisa se caracterizou como quanti-qualitativa de caráter diagnóstico e descritiva. Aplicou-se um formulário semies-
truturado o qual continha dados do perfil socioeconômico e cultural, grau de preocupação com os problemas socioambientais
e 45 afirmações sobre o entendimento dos conceitos, definições de usos e atitudes ecológicas referentes aos quatro elementos.
A aplicação foi conduzida pelo aplicador/pesquisador em 18 escolas públicas de Manaus, em sala de aula, de forma

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coletiva e respondida individualmente pelos estudantes. Para os itens de entendimento, se o estudante considerasse a afirmativa
correta marcava a letra C, se a considerasse errada, marcava a letra E. A aplicação durou em média de 30 minutos.
A amostra foi composta por 582 estudantes, sendo 297 do sexo feminino e 285 do sexo masculino, entre 10 e 18 anos de
idade, que estavam cursando do 6º ao 9º ano escolar, da rede pública estadual e municipal de ensino da cidade de Manaus-AM.

Resultados e Discussão
Perfil socioeconômico e cultural dos jovens
Quem são esses jovens, onde moram, quais suas preferências e interesses?
Considerando a idade e ano escolar, verificam-se algumas distorções que ainda permanecem no ensino brasileiro. Tais
distorções dizem respeito ao final das séries finais do ensino fundamental que deveria corresponder dos 11 aos 14 anos, de
acordo com as Diretrizes Curriculares do Ministério da Educação (MEC). Nesse sentido, encontrou-se 132 estudantes que estão
fora do esperado, ainda que um número importante esteja dentro da faixa esperada (74%), e encontrando-se 22,2% com idade
superior ao ano escolar, o que parece muito bom.
Com relação a moradia, 88% residem em casas, revelando uma realidade local de construções horizontais; embora 10%
residindo em apartamentos indica a tendência de uma nova configuração vertical para os novos empreendimentos imobiliários
na cidade de Manaus, muitos destes incentivados por políticas públicas de habitações populares.
Quanto a algumas preferências de lazer: 60% preferem passear em lugares próximos à natureza (zoológico e sítios), 35%
preferem atividades urbanas (cinema ou shopping); 47% preferem atividades de lazer externas (jogar bola, brincar na piscina);
36% internas (games, desenho e pintura).

Nível de preocupação dos jovens com os problemas ambientais e


participação socioambiental
Os jovens que afirmam ter média e muita preocupação com os problemas ambientais alcança 81%. Por outro lado, quan-
do se trata da participação efetiva, 54% não tiveram nenhuma ao longo de um ano. O que leva a pensar que, o fato de esses jovens
terem muita preocupação com os problemas ambientais não os habilita ou os capacita para agir pro-ativamente em atividades
que visem solucionar tais problemáticas. Embora, haja indícios de alguma relação entre ter muita preocupação e participar efeti-
vamente de atividades entre duas a cinco vezes ao ano (5%), conforme se visualiza na Tabela 1. Uma pesquisa mais aprofundada
poderia nos fornecer mais informações sobre essa pouca participação, se é por falta de iniciativas para envolver esses jovens ou
se os jovens se eximem dessa participação, mesmo quando são convidados e desafiados.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


817
E qual o entendimento desses jovens sobre os quatro elementos? Quais os conhecimentos que já possuem, como per-
cebem os usos dos mesmos?

Entendimento sobre o uso social da água


As afirmativas correspondentes a esse elemento contemplaram aspectos relativos ao abastecimento (A), o desperdício
(D) e a poluição (P).
Verifica-se na Tabela 2 que, para a maior parte das questões há um entendimento positivo sobre o uso da água. No en-
tanto, os dados marcados com asteriscos (*) apresentam informações que possuem baixos percentuais relativos de acertos e
que merecem uma breve discussão.
A primeira delas marcada com apenas um asterisco indica que menos da metade (47%) desses jovens não entendem
que os efluentes da pia seja um problema de poluição. Talvez isso se explique pelo fato de que em Manaus a maior parte das
residências despejam esses efluentes sem nenhum tratamento. Por outro lado, surpreendente, pois apenas um pouco mais da
metade (51%) desses jovens consideram os restos orgânicos da vegetação como poluentes dos rios (**), esquecendo que nos-
sos rios são cercados por florestas e esses materiais não se constituem em si uma poluição. Por último, as questões com menor
percentual de acerto (***), foram aquelas relacionadas com o abastecimento.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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De forma geral, os resultados mostraram que o entendimento sobre aspectos relacionados ao desperdício teve o maior
índice de acertos (78%), seguido pelo entendimento de aspectos relacionados à poluição da água (62%) e por último, o entendi-
mento sobre abastecimento teve o menor índice (45%) de acertos.
Tais resultados indicam que alguns aspectos do uso social da água têm sido mais explorados na escola, e consequen-
temente são os que os jovens mostram maior entendimento (poluição e desperdício). No entanto, os dados apontam que os as-
pectos relacionados ao abastecimento carecem de maior sensibilização e informação para então se proceder com um processo
educativo de maior compromisso.

Entendimento sobre o Ar a partir das emissões de gases de efeito estufa


Na tabela 3, são apresentadas as questões referentes ao entendimento sobre o elemento Ar a partir de três dimensões:
emissões de gases de efeito estufa (E), situações e atividades de mitigação (M) e sequestro de carbono (S).

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


819
Das afirmações que dizem respeito as situações ou atividades que geram ou potencializam as emissões (E), chama
atenção quando se fala do próprio efeito estufa, há, ainda, pouco entendimento a respeito deste assunto, 36,6% apenas de acerto,
denotando que estes entendem que o fenômeno em si, é um grande problema para o Planeta, quando sem ele a temperatura
seria muito baixa, sendo impossível a sobrevivência dos seres vivos (LOBATO et al., 2009).
Com relação ao gás de maior poder de estufa, 64% acreditam que o gás carbônico é o mais nocivo, sendo que é o óxido
nitroso. E embora este último esteja presente em menor quantidade na atmosfera que o gás carbônico (o mais abundante), o seu
potencial de aquecimento é trezentas maior (PINTO, MOUTINHO & STELLA, 2010).
Quanto as atividades de criação de gado extensiva provocarem emissões, 59,6% de erro indica que esse conhecimento
está distante desses jovens, o que pode ser algo preocupante, considerando que as áreas de agropecuária são uma das princi-
pais fontes de emissão, uma vez que envolve o desmatamento de áreas muito grande de florestas (SARAIVA, PAZ & WEIGEL,
2014; FEARNSIDE, 2002).
As afirmações que referem-se as atividades e atitudes que visam a mitigação (M) das emissões, destaca-se o erro de
40,5% quanto ao uso adequado das terras degradadas, denotando muitas dúvidas, uma vez que o mais adequado seria deixar
ocorrer a regeneração natural ou mesmo reflorestamento ao invés de adubar e plantar alimentos. Sabe-se que adubar os solos
da Amazônia exigiria elevado uso de fertilizantes e adubos químicos (SARAIVA, PAZ & WEIGEL, 2014, P. 17).
Com relação ao extrativismo ser uma opção para a floresta amazônica do que agricultura como ação mitigadora, 41,9%
de erro revela as dúvidas que pesam sobre essas atividades. O extrativismo é uma prática que está inserida no uso sustentável,
pois, alia a manutenção da floresta e a geração de renda (SARAIVA, 2009). Parece haver necessidade de se explorar melhor essas
temáticas no âmbito escolar, uma vez que é premente manter e manejar adequadamente as florestas para cumprir sua função
mitigadora e seus estoques de carbono na Amazônia (CHANG, 2002).
E a última dimensão refere-se as atitudes e situações que podem ajudar a sequestrar o carbono da atmosfera (S). Nessa
dimensão aparece uma contradição bastante interessante que, talvez, revele as próprias contradições e embates entre cientistas
esociedade quanto ao papel das florestas. Se de um lado 75% dos jovens acertaram a afirmação que se referia a floresta amazônica

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
820
ser um sumidouro de carbono, por outro houve 61,9% de erro para a afirmação em se considerar ser mais apropriado deixar as flo-
restas em pé para sequestrar carbono. Ora, já se sabe que as florestas em “pé”, além de estocar biomassa, mantem serviços ambi-
entais, como a proteção da biodiversidade e conservação dos recursos hídricos (HIGUCHI & HIGUCHI, 2012; FEARNSIDE, 2006).

Entendimento sobre o Fogo a partir das fontes de Energia


Na tabela 4, são apresentadas as questões referentes ao entendimento sobre o elemento fogo a partir de três dimensões
referentes aos impactos causados por diferentes fontes de energia: Meio Físico (MF) Biodiversidade (BD) e Socioeconomia (SE).

Quanto as afirmações que caracterizam as fontes energéticas, na dimensão referente ao MF, chama-se atenção para o
percentual de 58% dos que erraram quanto a energia eólica, ou seja, parte desses jovens entendem que esta fonte por ser mais
limpa, seria uma solução para a Amazônia, ensejando um desconhecimento do meio físico mais apropriado. Quanto ao luga-
rideal para construir uma hidrelétrica, apenas 39% acertou, ora, ainda que na Amazônia haja muitos rios, isso não significa que
pode-se construir hidrelétricas, uma vez que os custos socioambientais são enormes.
Ainda nessa dimensão, em relação às usinas térmicas geradas por biomassa (plantas), 70% desses jovens acreditam que
ter grandes área seja um bom argumento para o plantio de cana. Tal resultado preocupante se relativiza quando 75% já demons-
tram um bom entendimento que de fato o uso de petróleo e derivados já não se constitui o melhor caminho para a humanidade,

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


821
pelo custo ambiental ser muito alto.
Quanto a dimensão da BD, salienta-se o percentual de 68% de acerto quanto ao fato de as usinas hidrelétricas causarem
muito impacto ambiental, dado a repercussão e debates, em nível local, em torno da construção de Balbina, por exemplo, podia-
se esperar um percentual maior de acertos, além dos impactos sociais e ecológicos em torno das construções hidrelétricas na
Amazônia, como a de Santo Antonio e Jirau.
E na dimensão Socioeconômica, ressalta-se 67% de acerto quanto ao fato de que na Amazônia as hidroelétricas causam
muitos problemas, de fato, causam, embora seja uma das fontes menos poluentes. E verifica-se ainda que o entendimento sobre
a energia solar não gerar gases poluentes, demonstra dúvidas, se 55% acertou, 45% também errou, ensejando que tais conteú-
dos merecem atenção especial.
Verifica-se que houve mais erros que acertos no entendimento entre esses jovens, há que se informar mais, inserir tal
temática nas discussões socioambientais nas escolas, trazer para o currículo essa demanda e essa preocupação, afinal, no mo-
mento atual de nossas vidas, seríamos capazes de viver sem energias?

Entendimento dos jovens sobre o uso e ocupação da terra


O entendimento dos jovens sobre os aspectos do uso e ocupação da terra é visivelmente relevante, seja no conteúdo so-
bre os impactos na biodiversidade, relevo ou recursos hídricos. Os jovens demonstraram que possuem um grau de entendimento
elevado sobre as dimensões do elemento terra. Grande parte deles conseguiu se posicionar positivamente nas ações que re-
querem um cuidado aos aspectos associados ao bom uso e adequada ocupação da terra. Na maioria das questões o percentual
de acertos foi maior do que 80% demonstrando um entendimento muito apropriado do uso e ocupação da terra, bem como as
consequências da inadequação quando uma ação de falta de cuidado é apontada na Tabela 5.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
822
Observa-se que as três afirmativas (*) que obtiveram os menores percentuais de acerto envolveram uma ação de cons-
trução de aparato de entretenimento ou lazer. Considerando que o lazer e entretenimento é uma dimensão muito importante
para os jovens, essa demanda social se sobrepõe à demanda ambiental que solicita restrição do uso e ocupação da terra. Seria
importante aprofundar tais aspectos em estudos complementares para verificar se isso realmente se configura como um ponto
crítico na responsabilidade ambiental.

Conclusão
Acreditamos que a relevância deste estudo reside no levantamento de indícios de como jovens estudantes dos anos finais
do ensino fundamental em Manaus entendem os elementos biofísicos naturais (água, ar, fogo e terra), e como caracterizam os
usos socioculturais e as atitudes ecológicas relacionados com mesmos. Tal diagnóstico nos convida a ampliar a nossa compreen-
são do papel de protagonista que os jovens podem desempenhar no cuidado e proteção dos recursos ambientais pertencentes
as áreas de proteção ambiental, e especial as ligadas a floresta amazônica.
As evidências de algumas distorções em relação ano escolar/idade refletem ainda a realidade brasileira, embora haja
indícios de redução dessas diferenças. A contradição que aparece entre ter média e muita preocupação com os problemas
ambientais não acompanhar o nível de participação efetiva em atividades de soluções dos problemas, merece discussão mais
cuidadosa. Será que a não participação e envolvimento nas soluções socioambientais é por falta de oportunidades dentro e fora
das escolas? Será que as escolas estão estimulando e propondo desafios aos estudantes de compreenderem sua realidade e
aturarem nela?
O entendimento sobre o elemento água das dimensões poluição e desperdício alcançou os níveis mais altos de acertos,

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


823
no entanto, a do abastecimento alcançou os níveis mais baixos. Ainda que seja um tema mais explorado pela escola, mídia e estar
ligada ao cotidiano, o relativo baixo entendimento sobre abastecimento (captação, armazenamento e distribuição) ensejaria a
inclusão desse aspecto com mais profundidade em processos educativos formais e não formais.
Considerando o elemento ar, se constata que esses jovens não possuem um entendimento claro sobre as causas e con-
sequências das emissões de gases de efeito estufa, ficando mais evidente em relação aos conhecimentos científicos e àquelas
situações mais distantes do cotidiano desses estudantes. O alto índice de erro quanto a deixar a “floresta em pé” como forma de
manter os serviços ambientais, o estoque de carbono e a manutenção da biodiversidade, parece ser um dado relevante de por
onde se pode começar processos distintos de educação ambiental nesse tema.
Quanto ao entendimento sobre o elemento fogo/energia, constata-se a necessidade de que esse tema seja objeto de
estudo mais aprofundado. Sendo a energia algo tão fundamental em nosso modo de existência, há que se apostar na informação
segura e embasada em pesquisas, aproximar o tema, especialmente sobre as diversas fontes de geração de energia, os custos
socioambientais e as alternativas viáveis para cada bioma brasileiro.
E quanto ao elemento terra parece ser o tema que mais faz sentido para os jovens, talvez por ser o lugar onde vivemos,
moramos, nos movimentamos, embora quando se trata dos usos adequados dos solos, a importância do relevo e a proteção da
biodiversidade ainda haja dúvidas quanto as melhores opções e escolhas de usos.
Sugere-se uma continuidade de pesquisas, aprofundando os temas aqui coletados. Tal aprofundamento implica em
vivências que promovam reflexões sobre os comportamentos ecológicos que se quer construir, que passa pelo cuidado e con-
servação dos recursos ambientais, que podemos considerar como proteção e manutenção de Áreas Protegidas, em especial, na
conservação e preservação da floresta amazônica.

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06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


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ENTENDIMENTO JUVENIL SOBRE PROBLEMAS AMBIENTAIS, PREOCUPAÇÃO
E A ÉTICA NO CUIDADO COM O MEIO AMBIENTE

Cordeiro, Themis Eliza Bessa S.1, Higuchi, Maria Inês Gasparetto1 & Azevedo, Genoveva Chagas de1

1. Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental – LAPSEA/INPA themisbessa@hotmail.com

Resumo
A juventude é um segmento social com grandes possibilidades de protagonismo na proteção de áreas verdes. Por isso, envolvê-los
nesse debate é premente e urgente. Este estudo investigou como os jovens se posicionam diante de conflitos éticos onde o cuidado
e a responsabilidade são pressupostos formadores das decisões de agir na relação com o ambiente. A pesquisa se deu por meio
de um formulário e entrevista semiestruturada a partir de dilemas socioambientais com 16 estudantes (F=8; M=8), de 13 a 15 anos
de idade, do 8º e 9º ano do ensino fundamental em Manaus-AM. Ao se defrontarem com dilemas que apresentam pessoas desem-
penhando um tipo de comportamento que evidencia um claro conflito entre demandas sociais e ambientais, os jovens de maneira
geral demostraram um ethos voltado para um imperativo categórico pró-ambiental, isto é, se preocupam com critérios ecocêntricos
e observam as consequências futuras das ações sobre o ambiente e coletividade.

Palavras-chave: Ética Ambiental, Cuidado Ambiental, Juventude e Meio Ambiente, Ecoethos da Amazônia.

Introdução
Este estudo traz os resultados obtidos a partir de um recorte do projeto Ecoethos da Amazônia desenvolvido no Labo-
ratório de Psicologia e Educação Ambiental do INPA. O Ecoethos da Amazônia é uma plataforma educacional que trata de
problemáticas ambientais e o comportamento humano (HIGUCHI; AZEVEDO, 2013). O ponto central do projeto é a Educação
Ambiental (EA), e esta é considerada uma forma de construção de ideias, de pensar e agir de forma crítica e autônoma sobre a
relação pessoa-ambiente.
No caso do Ecoethos da Amazônia o foco de trabalho é o público jovem, estudantes do ensino fundamental e médio,
que tem na plataforma elementos recursos pedagógicos e educativos planejados para um pensar e agir mais responsável sobre
os problemas ambientais. Como no Ecoethos da Amazônia toda a ação educativa é direcionada para os jovens, é necessário
que saibamos as características desse público alvo. Os jovens se encontram num momento crucial na formação de valores e
atributos éticos do comportamento, em particular no comportamento socioambiental. Outros estudos foram produzidos dentro
deste projeto que busca o entendimento dos elementos naturais por parte dos jovens (CELESTINO; AZEVEDO; HIGUCHI, 2015;
CORDEIRO; AZEVEDO; HIGUCHI, 2015; RAMOS; HIGUCHI; AZEVEDO, 2015; REIS; HIGUCHI; AZEVEDO, 2015; FORTE et
al., 2015).
O jovem é um cidadão ativo e dinâmico e capaz de transformar, de ir contra uma tradição, de fazer o diferente, de se
reinventar nos mais diversos aspectos da cidadania (DAYRELL, 2003; GUIMARÃES; GRINSPUN, 2008). Apesar de trazer muito a
estrutura preparada pelos adultos com os quais convive, continua a se transformar cotidianamente e a se inovar. Nesse sentido
os processos educativos são cruciais em todas as dimensões sociais e para todos os contextos, de modo particular na proteção
do ambiente natural, seja no espaço urbano ou não urbano.
A Educação Ambiental (EA) tem sido apontada como uma ferramenta necessária para mudar o comportamento vigente
da sociedade, uma vez que os problemas ambientais têm aumentado de forma assustadora (GONZALES-GAUDIANO; LOREN-
ZETTI; 2009; GUIMARÃES, 2004; 2007; HIGUCHI; AZEVEDO, 2004; HIGUCHI, 2008a; HIGUCHI; MOREIRA JÚNIOR, 2009;
HIGUCHI; ZATTONI; BUENO, 2012; LAYRARGUES, 2010; LOUREIRO, 2003; 2004a; 2004b; 2008; 2010; REIGOTA, 2008). Uma
mudança é emergente e a juventude pode contribuir de forma muito intensa se engajando na construção de novas condutas
ecologicamente equilibradas e socialmente justas (CARVALHO, 2008; HIGUCHI, 2008b; HIGUCHI et al., 2010). Reconhecer e
evidenciar tais fatores nessa ação da ética do cuidado ambiental pode nos indicar caminhos importantes para uma efetiva busca
da sustentabilidade ambiental entre os jovens.
A atuação do jovem pode ter essa formação de diversas formas, seja de forma mais imediata como pela família ou escola,

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


827
ou de forma mediata por meio de outras instituições e pela mídia. No entanto, tal formação, além de descontinuada é, muitas
vezes, superficial e apenas sensibilizadora ao invés de ser transformadora e construtora de uma nova ética ambiental.
Sato, Gauthier & Parigipe (2005), afirmam que a EA deve se configurar como uma luta política, compreendida em seu
nível mais poderoso de transformação: aquela que se revela em uma disputa de posições e proposições sobre o destino das
sociedades e dos territórios. Para esses autores, nesta trajetória de formação da autonomia, pesa de forma equânime e indis-
sociável, o conhecimento técnico-científico e o saber popular. A prática da EA deve, portanto, não apenas ser popularizada para
que toda a sociedade, indistintamente dos seus segmentos e grupos sociais, possa ter participação nesse processo, mas tam-
bém ser qualificada em sua dimensão ética na construção de responsabilidades e compromisso socioambiental compartilhadas.
Em outras palavras, ao incluir e contar com os jovens nesse rol de responsabilidades socioambientais teríamos caminhos de
construção coletiva para a sustentabilidade abreviados.
Esses pressupostos ideológicos estariam sendo efetivamente construídos pelos jovens? Qual o entendimento do jovem
sobre a ética de suas atitudes em relação às questões socioambientais? Como esses jovens se posicionam diante dos impasses
da demanda social e da capacidade de suporte do ecossistema? Esses questionamentos fazem parte desse estudo para com-
preender não apenas o entendimento dos jovens sobre esses dilemas socioambientais tendo o cuidado e a responsabilidade
como foco central, mas dar suporte para a proposição de programas educativos que permitam maior reflexão crítica sobre o
modo de viver contemporâneo e as necessidades de mudanças de atitudes para uma real busca da sustentabilidade ambiental.
O cuidado a ética é um elemento transversal com os demais elementos, e ele está presente nos quatro elementos da
natureza (ar, água, fogo e terra) os aspectos presentes no elemento ética que produz o cuidado ou a falta dele se encontra in-
condicionalmente nos demais elementos. Este procedimento educativo lida com o pressuposto de que tais atividades possam
ser cruciais para a formação de uma nova ética, onde o cuidado e a responsabilidade estejam presentes no momento de decidir
como agir na relação com os recursos ambientais e sociedade.
Este estudo teve, portanto, como objetivo investigar o entendimento dos jovens sobre a ética ambiental no cuidado ao
meio, e de modo particular, identificar o ethos atribuído na responsabilidade da produção e solução de problemas ambientais.

Ética no cuidado ambiental


Muitos ambientalistas e educadores falam da necessidade de uma nova ética na relação com o ambiente e seus elemen-
tos constituintes, seja outros seres ou com os recursos naturais. O fato é que as questões éticas estão em todos os debates. Grün
(2007) reafirma que o escopo da ética discutido por outros autores, é bem mais amplo que o da lei e diz respeito àquilo que é
errado ou imoral, seja legal ou não. A ética ambiental, adjetivada para essa dimensão da realidade, descreve em que situações
é errado ou imoral destruir, dominar ou explorar o meio ambiente. Além disso, os princípios da ética ambiental são direcionados
para maneiras corretas eticamente de ocupar, de conservar e de como estabelecer uma boa relação com os recursos naturais
do meio ambiente.
A ética ambiental parte de preocupações e cuidados humanos de forma a respeitar o entorno com todas as espécies que
dividem o mesmo espaço planetário. Apesar desses princípios, a espécie humana tem mostrado uma ética fragilizada que tem
sido apontada como geradora dos problemas ambientais que enfrentamos atualmente. Para reconstruir ou transformar numa
ética de maior cuidado ambiental e responsabilidade para com o ambiente, a educação ambiental é uma das formas apontadas
como mediadora.
A dimensão ética na EA tem sido proposta por uma série de protocolos internacionais e tem também feito parte da agen-
da política do ambientalismo (GRÜN, 2007). O autor argumenta que na verdade, ética e epistemologia são indissociáveis, pois
não se pode separar o saber dos valores. Os autores falam em várias éticas e vários educadores ambientais falam da importân-
cia de uma ética global. Mas o fato é que as questões éticas estão no centro dos debates mundiais, no sentido de estabelecer
exatamente que ética seja essa.
Nessa linha de pensamento, precisamos ter um olhar ético humano universal, um modo de pertença dos homens a algo
maior que eles, ao qual deveriam cuidar e respeitar. Não importa o grupo de elementos naturais (Terra, a Água, o Ar, o Fogo)
sobre os quais nós agimos, o que importa é como agimos. O agir cuidadoso, com ética de modo a desenvolver a moral, é uma
responsabilidade somente dos seres humanos. No entanto, todos esses atos morais implicarão uma ordem sobre todos os seres
do nosso ecossistema (SANTOS; HIGUCHI, 2014).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Para cuidar do planeta precisamos todos passar por uma nova educação, uma educação ecológica para rever nossos
hábitos diários, nossos costumes e consumo é preciso perceber que a dominação da natureza não ocorre sem a dominação de
humanos sobre outros humanos (GRÜN, 2007; BOFF, 2003). A sociedade precisa mostrar na prática que está sujeita para mudar
seus hábitos e a projetar novos desenvolvimentos que trabalhe o cuidado e com os equilíbrios ecológicos e funcione no limite
da natureza. Para Boff (1999) não significa voltar ao passado, mas oferecer um novo enfoque para o futuro comum. Não se trata
simplesmente de não consumir, mas de consumir responsavelmente.
O ethos se manifesta a partir desses níveis de responsabilidade, com maior ou menor responsabilidade e cuidado com
o ambiente e seus recursos. A afetividade estaria como condição dessa maior responsabilidade, de forma que quando ocorre
a ausência desse cuidado na relação com o ambiente caminhamos para graves problemas. Como diz Boff (2003) ou cuidamos
ou pereceremos.

Métodos
A pesquisa de abordagem qualitativa, descritivo exploratória foi realizada por meio de um formulário (devidamente tes-
tado) com questões abertas e fechadas que contemplaram a) dados sócio demográficos b) perfil de preferências e atividades
socioeconômicas; c) posturas e participação em atividades ambientais.
Após o preenchimento do formulário foi aplicada uma entrevista semiestruturada contendo perguntas sobre atitudes
ecológicas e atitudes éticas socioambientais. A aplicação do formulário e entrevista foi realizada foi feita de forma individual na
escola em sala reservada. A entrevista foi gravada com o consentimento do participante e todo o procedimento teve duração
média de 15 minutos.
Os participantes eram alunos do ensino fundamental de duas escolas da rede Estadual de Ensino (SEDUC) e Municipal
(SEMED) escolhidas por acessibilidade. A pesquisa foi desenvolvida após anuência do Secretário, gestores e após a respectiva
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, o número de aprovação é 37940714.6.0000.0006.

Resultados e discussão
Os resultados estão organizados inicialmente pelo perfil dos estudantes, participação em atividades socioambientais e
finalmente o entendimento sobre o cuidado ambiental.
Participaram da pesquisa 16 estudantes (F=8; M=8), de 13 a 15 anos de idade, matriculados do 8º e 9º ano do ensino
fundamental. A tabela 1 mostra a distribuição destes jovens considerando sexo e idade.

Entre os estudantes, 13 deles declaram ter uma religião (10 evangélicos e 3 católicos) e 3 não responderam. Numa escala
hipotética de renda familiar de 1 a 10 (sendo 1 mais pobre e 10 mais rico), os entrevistados se identificaram num intervalo de um
máximo de renda como 8 e um mínimo de 3.
Para melhor abreviar o entendimento dessa escala, os diferentes números foram transformados em 3 categorias, sendo
de 7 e 8 = acima da média; 5 e 6= na média, e 3 e 4 = abaixo da média de renda obtida pela família. A maioria (10) deles
declarou estar na média (5 e 6); 4 deles se consideram estar acima da média (7 e 8); e 2 deles se consideraram estar abaixo
da média (3 e 4). Constatou-se ainda que a maioria (14) dos jovens estudantes se dedica exclusivamente aos estudos e 2 deles
declararam trabalhar além de estudar; um trabalha em um posto de lavagem de carro e o outro em um estúdio de filmagens.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


829
Formas habituais de comunicação e mobilidade
Os jovens estudantes deste estudo mostraram estar bem engajados em formas de comunicação virtuais e eletrônicas.
Entre os entrevistados, 9 declararam possuir um computador em casa e 7 disseram que não possuem computador. Entre os 9
estudantes que declararam ter computador em casa, todos dizem utilizar internet, porém o número de horas conectados varia de
1h até 24 horas. Os demais que não possuem computador dizem ficar conectados num total diário de uma hora até 24 horas, via
outro aparelho (Lan-house, celular, tablete).
Observa-se ainda que o número de jovens que possui celular aumenta consideravelmente, sendo que 12 deles afirma-
ram ter celular e 4 não tem. Entre esses 12 jovens que possuem telefone celular, 10 deles tem o aplicativo WhatsApp1 em seus
celulares, 2 deles apesar de possuírem aparelho celular dizem não ter este aplicativo. Os 10 jovens que possuem o aplicativo
do WhatsApp no telefone celular, também fazem parte de grupos de conversa neste mesmo aplicativo e mantem-se conectados.
Desses 10 jovens, 6 dizem fazer parte de 1 a 3 grupos de conversa; 2 dizem fazer parte de 5 a 6 grupos de conversa, e 2 dizem
fazer parte de 8 até 15 grupos de conversa (Figura 5).
O fato de não ter o aparelho (celular) não impede o jovem de fazer parte das redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter,
entre outros). Entre os 4 jovens que não possuem celular, 2 deles dizem não fazer parte de nenhuma rede social, 4 jovens dizem
fazer parte de 1-2; 7 jovens dizem fazer parte de 3 a 5; e 3 jovens dizem fazer parte de 6 a 8 redes sociais. Isso nos mostra que
esses jovens, de modo geral mantêm uma participação virtual dinâmica entre seus pares e outros segmentos sociais.
Ao contrário da intensa conectividade virtual, a participação em grupos presenciais é baixa. Entre os 16 jovens, somente 4
deles declararam participar de movimentos culturais, todos em grupo de danças, balé e outras atividades de apresentação artística.
Percebe-se, que com o surgimento das redes sociais, os jovens estão transferindo os contatos presenciais para os grupos
virtuais. A internet tem possibilitado uma comunicação mais veloz e mais ampla. Várias preocupações e debates têm emergido
a respeito desse comportamento, mas nesse trabalho não é nossa intenção problematizar acerca dessa forma de comunicação.
Por outro lado, os jovens participantes desta pesquisa em sua maioria (12) declararam praticar regularmente algum es-
porte, como: dança, futebol, futsal, vôlei e queimada (um jogo típico da região).
Além dessa movimentação do corpo, observa-se que a mobilidade desses jovens para lugares fora da cidade é relativa-
mente intensa. A extensão dessas viagens é diversificada, de modo que a maioria (9) costuma viajar para localidade ou cidades
do interior do estado e 4 deles costumam viajar para outros estados, em regiões próximas como nordeste e norte. Ressalta-se, no
entanto que os jovens relatam que estas viagens ocorrem de uma a duas vezes por ano.

Participação e preocupação ambiental


Como constatado que a participação sociocultural dos jovens é baixa, e os contatos presenciais também baixos, isso se
repete na dimensão ambiental. Entre os jovens somente um declarou participar de grupo ou movimento ecológico, mais particu-
larmente um trabalho voluntário efetuando coleta seletiva, do qual se inseriu há poucos meses. Os demais 15 jovens disseram
não ter qualquer participação com atividades socioambientais.
Ao serem questionados sobre o nível de preocupação com problemas ambientais, o cenário modifica. A maioria dos jo-
vens (10) declarou ter muita preocupação com os problemas ambientais (MU), 5 declararam ter média preocupação (ME) e um
declarou ter pouca preocupação (PO). No entanto, ao considerarem a preocupação ambiental que percebem entre seus pares,
as respostam mudam de forma que as considera ainda menos evidente. Entre os jovens, 10 deles consideram que seus amigos
tem uma preocupação mediana (ME) com os problemas ambientais, 5 deles consideraram seus amigos com baixa preocupação
(PO) e apenas um deles diz que seus amigos têm uma preocupação alta (MU).
Dessa forma, constata-se que os jovens participantes se autodeclaram mais preocupados com os problemas ambientais
do que percebiam tal preocupação entre seus colegas. Isso pode nos levar a questionar como tal percepção do outro se torna
visível ou considerada entre os jovens.
A percepção que os jovens têm acerca dos problemas ambientais assume um papel bastante significativo, os jovens são
sensíveis às mudanças ao seu redor. Tais aspectos foram constatados nos tipos de problemas ambientais apontados. Para esses
jovens os problemas mais evocados foram: a) poluição dos rios e igarapés; b) poluição ambiental, ar, água e aquecimento global;

1
WhatsApp Messenger é um aplicativo de mensagens multiplataforma que permite trocar mensagens pelo celular sem pagar por SMS. Está disponível para smart-
phones iPhone, BlackBerry, Windows Phone, Android e Nokia.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
830
c) desmatamento; d) falta de arborização e produção do lixo.

“... eu acho que é a poluição dos rios, dos igarapés, acho que antes era mais conservado... hoje
em dia é mais poluído. E todo mês a prefeitura, tira toneladas e toneladas de lixo dos igarapés e
dos rios ai isso é o que mais eu acho que polui a nossa cidade. ”

“A poluição dos rios. Porque as pessoas jogam lixos não se preocupam, aí tem o caso de enchen-
tes, todo ano tem as enchentes aqui e as pessoas não se lembram de que jogaram lixo e quando
a enchente passa, voltam a jogar lixo de novo e então acho que não tão se preocupando”.
“Poluição do ar. Devido o aumento de vendas e compra de carros e também aqui em Manaus não
tem muito carros elétricos, mas na Europa até os ônibus são. Vai aumentando o efeito estufa e o
gás vai poluindo cada vez mais”.

“Desflorestamento, desmatação. Porque eu acho que o Amazonas em geral é o pulmão do mundo


e tá sendo devastado e isso causa muitos problemas pra outras cidades. Exemplo: esse tempo
aqui ficou sem água... em São Paulo, por conta das chuvas, essas coisas...”.

“Ambientais é, problema de não ter arborização, muito lixo, porque tem vários lixos espalhados
pela cidade e é tudo sujo e também as águas tão poluídas”.

Observa-se que os jovens não só indicam as evidências dos problemas, mas também fatos que estão relacionados com
esse problema, sejam as causas ou as consequências. Constata-se ainda, que a indicação desses problemas são bastante gerais
e atingem um macro cenário, seja da cidade, da região ou do Brasil. Grün (2007) e Jacobi (2003), argumentam que as pessoas
precisam despertar urgentemente, olhar para a natureza com cuidado, respeito e ver que precisamos saber cuidar dos recursos
que ela nos oferece, pois caso olhe somente os benefícios financeiros vamos ter muito mais problemas futuramente.
Os jovens, de modo geral, estão tendo esse olhar para a natureza com cuidado, a percepção deles está sendo construída,
portanto, a partir desse estranhamento com o ambiente em que eles estão inseridos. Conforme Higuchi & Kuhnen (2011) para
haver uma compreensão do que se passa ao nosso redor, é necessário romper com certas familiaridades, pois são as inquieta-
ções que levam ao movimento e à mudança.

Atribuições das responsabilidades para resolução de problemas na cidade


Ao identificarem as responsabilidades sobre a solução de problemas ambientais na cidade, observou-se que os jovens já
fazem distinção das responsabilidades compartilhadas entre poder público e sociedade. No entanto, dependendo do problema
tais responsabilidades são ora atribuídas ao poder público (25%), ora à população (36%), ora aos dois setores juntos (33%) e ora
não sabem (6%) (Tabela 2).

Conclui-se que, de modo geral, os jovens reconhecem que as responsabilidades das resoluções desses problemas
ambientais estão em cada um de nós mesmos. Que eles podem começar a mudar suas atitudes e rever seus comportamentos
em questão com esses problemas que foram expostos a eles. Porém, eles nos trazem preocupações com o meio ambiente que

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


831
está de alguma forma inserida na cidade e até mesmo no país, como os problemas com a poluição dos rios e desmatamento.
Ocorre também que alguns poucos jovens não se inserem nesse corpus de responsabilidade, esperando muito dos go-
vernantes e órgãos responsáveis para resolver certos problemas, e ora negligenciado o papel do poder público. O surpreen-
dente é que são relativamente poucos.

Ética de cuidado ambiental juvenil


Agir com ética normalmente nos põe em confronto com o outro, pois mesmo que ajamos bem, esse bem pode não vir a
beneficiar diretamente o outro. Isso ocorre porque muitas de nossas atitudes morais podem nos colocar em situações de risco
com nossa vida. Porém, como nos diz Santos & Higuchi (2014), como vivemos em sociedade, é pré-requisito para o bem-estar
da coletividade que as ações sejam previstas ao ponto de não prejudicarem outros, pois estamos inseridos num conjunto. Essa
boa relação trará como resultado o cuidado ético que irá nos remeter há um olhar diferenciado para com o ambiente em geral.
Conforme Boff (2003), todos os seres humanos possuem o “anjo bom”, que nos acompanha, assim como a libido, como
a inteligência, como o amor e o poder. Esse anjo bom vem ser o tato, o cuidado pelo que é justo e bom para em cada situação
vivida. Como ele nos diz, o cuidado é quem molda primeiramente o ser humano, está na origem do ser humano. Portanto, o cui-
dado é uma força humana que emerge em várias circunstâncias da vida. E com este cuidado que se molda o ser, a desenvolver
a dedicação, a devoção, a ternura, os sentimentos. Essa base afetiva é a pedra angular da responsabilidade e do compromisso.
Ao se defrontarem com dilemas que retratam pessoas que agiram de forma a evidenciar um conflito entre demandas soci-
ais e ambientais, os jovens, em sua maioria demostraram um ethos onde o cuidado ambiental prevalece. Na Tabela 3 observa-se
a avaliação ética dos jovens diante desses dilemas.

De maneira geral, contata-se que os jovens mostram um ethos que tende a observar aspectos de cuidado ambiental
e de bem estar coletivo. Em suas justificativas, que por motivos de restrição de espaço não estão aqui abordadas, os jovens
enaltecemas regras que constituem uma boa ação independente das condições restritivas do sujeito em poder realizá-las, seja
devido sua idade, sua incapacidade física, seu poder aquisitivo, suas metas pessoais ou responsabilidades familiares.
Nas ações, cujas consequências não trariam problemas ambientais evidentes como o fato de jogar resto da fruta em
um canteiro de plantas, a metade dos jovens ponderou e flexibilizou seu ethos ambiental considerando não ser exatamente pro-

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
832
blemático, pois o que se jogou seria incorporado como adubo. Outra ação que envolve propriedade e proteção florestal, também
gerou o segundo menor consenso, embora tenha prevalecido o fato de que a floresta deveria ser preservada em detrimento das
necessidades de moradia das pessoas.

Considerações Finais
Os jovens participantes dessa pesquisa estão engajados numa ampla rede de comunicações na mídia social, se dizem
muito preocupados com os problemas sociais e são capazes de distinguirem as responsabilidades de cada segmento social
na busca de soluções para os problemas vivenciados na cidade. De modo geral prevalece na maioria dos jovens um ethos que
valoriza o cuidado ambiental independente das condições particulares do sujeito e demandas sociais.
O entendimento juvenil sobre a ética no cuidado ao meio ambiente que esses jovens manifestaram neste estudo é bastan-
te positivo, mas ainda as questões pessoais e sociais exercem um apelo considerável para alguns jovens. Os jovens mostraram
uma preocupação genuína com o meio ambiente e uma certa visão crítica sobre essa relação pessoa-ambiente. Os conflitos são
complexos para os jovens, mas observa-se que o cuidado ambiental faz parte dessa ética na sociedade atual, mesmo que em
determinados momentos isto não seja muito simples de se posicionar.
Este estudo não teve a intenção de ser conclusivo, mas mostra que a juventude vem construindo atitudes éticas cada
vez mais abrangentes e críticas. Apesar de serem necessários estudos mais aprofundados, nessa pesquisa fica evidente que a
maioria dos jovens tem pensamento voltado para a coletividade considerando o meio ambiente como parte desse cenário social
e mostram-se, portanto, um segmento importante de inclusão no processo de proteção e cuidado ambiental. Com a consolidação
deste compartilhamento juvenil as possibilidades de trilhar de um mesmo caminho para um fim democrático pode ser enriquece-
dor a sustentabilidade ambiental, seja de áreas urbanas ou áreas protegidas.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
834
POLÍTICAS EDUCACIONAIS EM ÁREAS DE RESEX MARINHA:
GURUPIPIRIÁ/ VISEU-PA

Santos, Adria Macedo dos1

1. Núcleo de Altos Estudos da Amazônia- NAEA/UFPA, adria.macedo@yahoo.com.br

Resumo
Neste artigo, objetiva-se compreender como a criação de Reservas Extrativistas Marinha - RESEX, vem influenciando na elaboração
de políticas públicas, especialmente as educacionais, em condição de contemplar as necessidades e perspectivas das populações
que vivem dentro das comunidades da RESEX Gurupi-Piriá no município de Viseu, criada em 20 de maio de 2005. A partir da me-
todologia qualitativa e por meio do estudo das unidades de ensino e instituições representativas, analisam-se as práticas de ensino/
aprendizagem no contexto da referida UC. No que concerne aos objetivos do estudo, evidenciou-se algumas dificuldades para a
concretização de uma política educacional que atenda e reconheça as peculiaridades do modo de vida das comunidades locais.

Palavras-chave: Política Educacional. Sustentabilidade, Reserva Extrativista Marinha.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


835
AS RELAÇÕES GERACIONAIS NA SOCIALIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS
ECOLÓGICOS LOCAIS NA RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE
CAETÉ-TAPERAÇU, AMAZÔNIA ORIENTAL, BRASIL

Vieira, Norma1, Siqueira, Deis1, Barboza, Roberta1 & Pinheiro, Janielle2

1.Universidade Federal do Pará, normacosta@ufpa.br. 2. Faculdade Pan Americana.

Resumo
Trata-se de visibilizar as relações geracionais a partir dos saberes ecológicos pesqueiros locais que as constituem na Reserva ex-
trativista marinha de Caeté-Taperaçu, Amazônia Oriental, Brasil. O texto ancora-se em entrevistas parcialmente estruturadas, obser-
vação participativa e grupos focais com os membros das famílias pescadoras. Identificou-se que na referida reserva extrativista as
relações de parentesco são fundamentais na formação dos mais jovens, especialmente na formação daqueles que estão iniciando
a atividade de pesca. Esse modelo de vida, representada em grande medida pelos vários aspectos socioculturais de uma comuni-
dade tradicional, transita pelos diferentes, porém relacionados, campos de ação humana.

Palavras- chave: Relações Geracionais; Pesca Artesanal; Saberes Locais; Tradição.

Introdução
Dentro do cenário pesqueiro brasileiro o Estado do Pará, Amazônia oriental, ocupa lugar de destaque, sendo responsável
por 63,82% da produção da Região Norte e 17,3% da produção nacional (ISAAC et. al., 2006). A pesca artesanal no Pará é respon-
sável por aproximadamente 60% do total de pescado produzido no estado, apresentando grande importância do ponto de vista
social e econômico (PARÁ, 2003). Esta atividade destaca-se, tanto em volume de produção, quanto em contingente de pessoal
ocupado, pela importância no abastecimento local, regional e nacional (Ibid; 2003).
A pesca artesanal implica em todo um conjunto de conhecimentos acumulados em torno do espaço marítimo, construído,
principalmente pela experiência e pela intuição. Nesse processo, é visível verificar na cultura tradicional dos pescadores artesa-
nais uma noção tridimensional do espaço, que abrange seus distintos domínios de vida - mar, terra e céu - dotados de significa-
dos específicos (CUNHA, 2003).
Nesse contexto, a vida econômica, social e cultural dos pescadores artesanais está intimamente ligada à flora e à fauna,
ao ciclo lunar, sazonais e de marés e aos períodos de reprodução de peixes, caranguejos e outras espécies (GLASER, 2005). Ou
seja, a natureza, em boa medida e simultaneamente, determina e condiciona tempo, local, recursos a serem extraídos.
Para Davis & Wagner (2006) os Conhecimentos Ecológicos Locais (CEL) trata-se de informações empíricas em torno
do ambiente físico, hábitat, classificações, presença/ausência (abundância), comportamentos e costumes de espécies, além de
explicações para tais fenômenos. Pode ainda ser usada a expressão de saber local. Isto porque, embora a expressão englobe a
noção de saber tradicional (indígenas, pescadores), ela refere-se a um produto histórico-social (CUNHA, 1999). Logo, se recons-
trói e se modifica. Não se trata de um patrimônio intelectual que apesar das transmissões geracionais, não são imutáveis, fixos.
Além da dinâmica socialização dos saberes locais, tais grupos sociais (populações tradicionais, artesanais, extrativistas,
organizadas em comunidades) estão inseridos também em práticas de solidariedade familiar, isto é, formas de colaboração en-
tre todos os membros, relacionando-se diretamente com a organização da comunidade, a qual é fortemente marcada por laços
de parentesco mais distantes (primos/primas, tios/tias, sobrinhos/sobrinhas, vizinhos/vizinhas, comadres/compadres). O paren-
tesco é um princípio organizativo fundamental e elemento central da reprodução social (VIEIRA et al., 2013).
O presente artigo apresenta parte dos resultados de pesquisas que vêm sendo desenvolvidos pelo grupo de pesquisa
ESAC – Estudos Socioambientais Costeiros1. Partindo-se de que a pesca artesanal é uma atividade realizada por diferentes
grupos etários (crianças, jovens, adultos, idosos), visa a contribuir com as discussões em torno de relações geracionais e de
parentesco na socialização dos Conhecimentos Ecológicos Locais (CEL), destacando os lugares de gênero e de geração neste
contexto.
1
Programa de PG em Biologia Ambiental/IECOS – Instituto de Estudos Costeiros/UFPA – Universidade Federal do Pará, Campus de Bragança.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


837
A referida pesquisa foi realizada Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, localizada no município Bragança,
na parte oriental da Amazônia, Brasil, região conhecida como Salgado Paraense (Figura 1). Sua principal atividade é a pesca
artesanal, a qual é aqui compreendida como a captura de variadas espécies de peixes, de crustáceos, de moluscos.

Figura 1. Localização da Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, nordeste do estado do Pará, Brasil. Fonte: Repinaldo Filho (2012).

A coleta de dados, realizado através do trabalho de campo durante os anos de 2012 a 2014, ancorou-se em entrevistas
parcialmente estruturadas e observação participante (MINAYO; DESLANDES; GOMES, 2009). Houve participação na rotina de
várias famílias da comunidade, incluindo alimentação conjunta, pescarias, atividades domésticas e de manutenção dos instru-
mentos de pesca, dentre outras.
As entrevistas foram realizadas nos domicílios de 20 famílias de pescadores e pescadoras, as quais foram identificadas
a partir de pesquisas realizadas anteriormente, ou seja, em 2006 e 2007 (VIEIRA, 2007)2. O critério utilizado foi a maior disponibi-
lidade de participação na pesquisa.
Além das entrevistas foram realizados quatro Grupos Focais3 com membros (homens, mulheres e jovens) das famílias
entrevistadas, com propósito de enriquecer e aprofundar as informações coletadas. Foram apresentados para o grupo alguns
tópicos identificados como centrais a partir das estratégias de pesquisa anteriores, no sentido de dinamizar a discussão. Estes
encontros ocorreram na escola de ensino fundamental da comunidade e as falas foram registradas em gravações fonográficas
e posteriormente transcritas.

2
A dissertação de Vieira, Norma (2007), Participação Juvenil na Pesca Artesanal da Vila de Bonifácio, Bragança, Pará, Brasil, defendida no Programa de PG em Bio-
logia Ambiental, Campus de Bragança da UFPA em 2007 foi elaborada a partir de pesquisas realizadas na mesma comunidade.
3
Grupo focal é uma técnica de pesquisa que coleta informações por meio das interações grupais ao se discutir um tópico especial sugerido pelo pesquisador (VEIGA
& GONDIM, 2001).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
838
Conhecimento Ecológico local, relações geracionais
e os lugares de gênero na pesca artesanal
Desde cedo, ainda na infância, os pescadores e as pescadoras da Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu afir-
mam, em entrevista, ter aprendido a identificar os pesqueiros – locais de pesca, com base no tipo de fundo (areia, pedra ou lama).
A identificação da profundidade (em braças) também é uma das primeiras lições ensinadas aos mais jovens. Geralmente
a identificação do tipo de fundo e profundidade ocorre com auxílio de prumo ou âncora.
Para eles, como para elas, as espécies-alvo estão associadas aos diferentes tipos de substrato (tipos de fundo). Sobre
essa questão Forman (1967) destaca que a distribuição dos recursos faunísticos dentro dos pesqueiros dá-se em função da pro-
fundidade e da composição do fundo.
Outro ponto a destacar são as condições do vento e da maré enquanto importantes indicadores para a atividade pesquei-
ra da comunidade. O domínio desses saberes, fortemente relacionados, é apreendido não somente para facilitar a captura do
pescado, mas como medida de segurança no mar.
Homens e mulheres de diferentes idades, em grande medida, têm o domínio das condições diárias do vento e da maré,
abstraído principalmente através de duas relações fundamentais: 1-proximidade com a natureza, por meio da oportunidade e da
capacidade de observá-la para compreendê-la. 2- e através da socialização dos saberes ecológicos pesqueiros locais realizados
pelas gerações sociais mais experientes para as menos experientes.
Além do conhecimento sobre maré, ventos, tipos de fundo e profundidade da água, se fazem necessário conhecer o
hábito alimentar das espécies-alvo. Esse tipo de conhecimento é fundamental porque garante identificar os locais de pesca e/ou
os cardumes das espécies a serem capturadas pelo tipo de alimento que elas utilizam.
Por exemplo, a sardinha foi citada como item alimentar importante na dieta de espécies de relevância comercial na
região, como a pescada-amarela (Cynoscion acoupa), a pescada gó (Macrodonan cylodon) e a corvina (Cynoscion virescens).
Ou seja, a identificação da presença da sardinha (Anchovia clupeoides; Cetengraulis edentulus), principalmente dentro do es-
tuário, indica grande chance de captura das espécies acima citadas.
Sobre essa questão, Mourão e Nordi (2003) destacam que a sardinha se comporta como importante elo basal da rede
alimentar estuarina. Também Maneschy (1993) ressalta que a chegada dos cardumes de sardinha no estuário, representa alimen-
tação das espécies maiores. Para os pescadores e as pescadoras da comunidade a “sardinha é a farinha4 dos peixes”.
Outro exemplo versa sobre o hábito alimentar do camarão branco (Litopenaeus schmitti), espécie de valor econômico
na região. A prática contínua da atividade, na maioria das vezes desde a infância, leva os pescadores e as pescadoras da comu-
nidade a associarem o hábito alimentar da espécie ao hábitat. Essa associação condiciona os locais a serem explorados. Moraes
(2005) explica que a pesca artesanal envolve muitos elementos, onde o importante é o contato com a natureza.
Para os pescadores mais idosos e mais experientes conhecer o ritmo da natureza, como ela se apresenta e como se
comporta é tarefa primeira para quem inicia a profissão. Os jovens participam de pescarias sempre em companhia dos mais
experientes, parentes ou vizinhos, homens e mulheres, até que se tornam pescadores ou pescadoras e passam a compor seus
próprios grupos de pesca com os parentes e/ou parceiros.
Diegues (2004) afirma que esses conhecimentos e saberes englobam diversos campos, como a classificação de espé-
cies aquáticas, comportamento dos peixes, taxonomias, padrões de reprodução e migração das espécies, cadeias alimentares,
bem como as características físicas e geográficas do habitat aquático, clima (nuvens, ventos, mudança do tempo), as artes de
navegação e de pesca.
Diante desse conjunto de conhecimento sólido e dinâmico, fortemente presente e estruturalmente necessário para a
prática pesqueira, questiona-se: como as relações geracionais podem ser visibilizadas a partir do processo de transmissão e
assimilação dos conhecimentos de pesca? Quais os principais atores e seus respectivos lugares? Quais os percursos, avanços e
limitações dos jovens e das jovens na atividade? De que maneira os lugares de gênero são postos, combinados, articulados, nas
relações geracionais de aprendizado dos conhecimentos de pesca?
Na Reserva de Caeté-Taperaçu os pais, os parceiros e as parceiras, as mães, os avôs, os tios, os irmãos mais velhos foram
citados nas entrevistas como os principais responsáveis pelo aprendizado da pesca dos jovens e das jovens entrevistados.
Isso demonstra que o grupo social está calcado nas relações de parentesco, de produção, de aprendizado. Isto é, as
4
Farinha, produto obtido da raiz da mandioca (Manihot esculenta), rico em amido, bastante utilizado pela população amazônica na alimentação.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


839
relações geracionais, sobretudo em atividades tradicionais são fundamentais para o aprendizado e consequentemente para a
continuidade destas.
As relações de parentesco são fundamentais na formação dos mais jovens, especialmente na formação daqueles que
estão iniciando a atividade de pesca. É através destas relações que se constroem os primeiros conhecimentos ecológicos locais.
Nestas relações Harris (2006) destaca a importância material e moral do parentesco para a reprodução social das sociedades
camponesas amazônicas. Para o autor, as relações de parentesco possibilitam o controle contínuo do acesso aos recursos próxi-
mos, como terra, lagos e rios.
Murrieta (1998; 2001) também destaca que o trabalho nas comunidades tradicionais amazônicas está organizado de duas
maneiras: “1- Relações verticais, com os pais conduzindo e acompanhando o trabalho de seus filhos em um grande período de
tempo; 2- Relações horizontais, entre os pares (primos/ primas, comadres/ compadres, madrinhas/ padrinhos, tios/ tias, avôs/
avós)”. Nessas sociedades as redes de parentesco são densas e organizadas em agrupamento de famílias (FURTADO, 1993).
Durante uma das entrevistas realizadas na Reserva de Caeté-Taperaçu, um pescador de 17 anos lembra sobre sua primei-
ra pescaria,

[...] parece que foi ontem, eu tinha entre 6 e 7 anos quando meu avô me chamou para pescar de
canoa. Considero essa, minha primeira pescaria, talvez uma das melhores. Estávamos nós, eu e
meu avô, apenas nós, na espera do peixe. A pescaria era com rede, cada ação que ele realizava,
ele fazia questão de me explicar para quê e o porquê. Eu ficava atento a tudo, não queria perder
nada, aprendia com o que ele me falava e com o que eu olhava.

O domínio desse conjunto de saberes da pesca construídos a partir da socialização das diferentes gerações traduz apren-
dizados adquiridos por um lado, pela sistematização do saber, realizada, geralmente, pelos mais experientes aos mais jovens
e por outro pela observação, pela prática, acompanhando parentes, vizinhos, parceiros/parceiras na pescaria, bem como em
outras atividades ligados a ela.
Nesta perspectiva, Almeida (2010) reforça que os saberes da tradição arquitetam compreensões com base em métodos
sistemáticos, experiências controladas e sistematizações reorganizadas de forma contínua. Para a autora, diferentes do senso
comum, os saberes da tradição constituem uma ciência que, mesmo operando por meio das universais aptidões para conhecer,
expressa contextos, narrativas e métodos distintos.
Para Moraes (2005), os saberes da tradição ilustram o tipo de aprendizado que permeia toda a vida de populações tradi-
cionais, onde os astros, as condições climáticas, a terra, as águas, a flora e a fauna fazem parte do conteúdo que é sistematizado
através das experiências vividas e, como tal, absorvido pela socialização dos saberes.
Para Diegues (2004) os saberes locais pesqueiros consistem em um conjunto de práticas cognitivas e culturais, habili-
dades práticas e saber fazer, transmitidas oralmente com função de assegurar a reprodução do modo de vida nas comunidades
de pescadores artesanais.
Essa reprodução do modo de vida representada, em grande medida, pelos vários aspectos socioculturais de uma comu-
nidade tradicional, caso da Reserva de Caeté-Taperaçu, transita pelos diferentes, porém relacionados, campos de ação humana.
Dentre eles merecem destaque as relações de gênero no processo de socialização dos conhecimentos pesqueiros.
As mulheres jovens pescadoras aprendizes, longe de ter as mesmas oportunidades e ensinamentos dos homens, apren-
dem prioritariamente a lida com o pescado (limpar, eviscerar, retalhar, salgar), em grande medida com a mãe. Concomitante,
também aprendem a utilizar os espaços e recursos existentes de dentro do estuário, sobretudo os furos e o manguezal, repro-
duzindo os lugares de gênero no território biofísico. As atividades em terra, como confecção de redes de pesca, especialmente,
também são socializados com ela.
Aos homens jovens pescadores aprendizes, a socialização dos conhecimentos pesqueiros calca-se em direção a profis-
sionalização no setor. Neste caso, o nível e o grau de ensinamentos e de conhecimentos sobre a atividade de pesca extrapolam o
limite do estuário, isto é, os territórios e os domínios de atuação como os inúmeros pesqueiros (locais de pesca) vão tendencio-
samente se alargando e se diversificando, situação considerada como não compatível para as mulheres.
Além disso, conhecimentos como pilotar barcos motorizados, segurança no mar, o uso de tecnologias mais sofisticadas
(rádio, sonar, navegador, GPS), habilidades com diferentes tipos de instrumentos pesqueiros, bem como a manutenção destes

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
840
saberes indispensáveis e em grande medida, limitados à figura masculina.
Sobre essa questão, Medrado & Lyra (2008) afirmam que a dimensão relacional do conceito de gênero possibilita com-
preender ou interpretar uma dinâmica social que hierarquiza as relações entre o masculino e o feminino e não apenas entre
homens e mulheres, mas nos homens e nas mulheres. Por isso que gênero é estruturante, pois define lugares e posições sociais,
em grande medida, desiguais. Para Joan Scott (2008), gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o
poder é articulado.
Nesta perspectiva, Kergoat (2009) chama a atenção para a indissociabilidade entre relações sociais de sexo e a divisão
sexual do trabalho, para ela, epistemologicamente, ambas as expressões formam um sistema, no qual a divisão sexual do tra-
balho tem o status de jogo em disputa das relações sociais de sexo. Nesse jogo, as mulheres e suas respectivas atividades estão,
em boa medida, em condição de desigualdade.
Diante disso, o conjunto de aprendizado pesqueiro construído por elas não lhe possibilita ou lhes dificulta desenvolver as
inúmeras modalidades e usos de territórios que a pesca permite, em boa medida aos homens. Isto é, ao mesmo tempo em que
há modificações e em boa medida avanços na estrutura pesqueira local, através da inserção de novos mercados, das tecnologias
de pesca, dos territórios explorados e a presença marcante da geração jovem masculina nestes contextos, permanecem rígidos
os papéis e os lugares de gênero na pesca artesanal. Assim como permanece rígido seu lugar da domesticidade/maternidade.

Conclusão
Na Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu o uso dos espaços e dos recursos naturais estão estruturados a par-
tir das relações de parentesco, isto é, a família compõe a unidade de produção pesqueira. Homens e mulheres, de diferentes
idades, estão envolvidos nas inúmeras tarefas que estruturam a pesca artesanal. É através destas relações que se constroem os
primeiros conhecimentos ecológicos locais.
O domínio desse conjunto de saberes da pesca construídos a partir da socialização das diferentes gerações traduz apren-
dizados adquiridos, em grande medida pela sistematização do saber, pela observação e pela prática.
Essa reprodução do modo de vida representada, de modo geral, pelos vários aspectos socioculturais de uma comuni-
dade tradicional, caso da Reserva de Caeté-Taperaçu, transita pelos diferentes, porém relacionados, campos de ação humana.
Dentre eles merecem destaque as relações geracionais e de gênero no processo de socialização dos conhecimentos pesqueiros.
Durante a formação do pescador e da pescadora para a atividade de pesca, a contribuição do grupo social a partir das
relações geracionais, se dá de diferentes formas, com reprodução dos lugares de gênero - os ensinamentos dado pelas e para
as mulheres, em boa medida, não são as mesmas disponibilizadas pelos e para os homens. Isso demonstra que a atividade de
pesca está estruturada em uma rígida divisão sexual do trabalho com lugares e com aprendizados calcados pelo gênero.

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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
842
EDUCAÇÃO AMBIENTAL E VISITAÇÃO EM PARQUES NACIONAIS: A EXPERIÊNCIA
DO PARQUE NACIONAL DA TIJUCA (RJ) COM GUIAS DE TURISMO E
CONDUTORES DE VISITANTES

Botelho, Eloise Silveira1 & Maciel, Gláucio Glei 2

1.Professora do Departamento de Turismo e Patrimônio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Doutoranda em
Engenharia de Produção, Universidade Federal do Rio de Janeiro, eloise.botelho@unirio.br. 2.Educador Ambiental. Doutorando em Serviço
Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, minhatrilha2000@yahoo.com.br

Resumo
Este trabalho traz reflexões sobre a possível vinculação entre educação ambiental e guiamento e condução de visitantes em
parques nacionais, a partir da análise da experiência de formação de guias de turismo e condutores atuantes no Parque Nacio-
nal da Tijuca (RJ). Com base na proposta da educação ambiental crítica, desenvolve um estudo exploratório sobre o processo
formativo realizado por esta unidade entre os anos de 2010 e 2012, envolvendo guias de turismo e condutores de visitantes. Este
estudo baseia-se em relatórios técnicos e pesquisa em sites oficiais. Conclui que, embora houvesse intenção por parte do Parque
Nacional da Tijuca em construir uma proposta de “interpretação ambiental crítica” para o guiamento e a condução de visitantes,
não houve êxito devido à interrupção do processo. O trabalho considera que a gestão dos parques nacionais deve reconhecer o
papel do guia/condutor como educador ambiental, ou seja, agente capaz de incentivar a reflexão e colaborar para a proteção do
patrimônio natural e cultural dos parques nacionais.

Palavras-chave: Educação Ambiental Crítica, Interpretação Ambiental Crítica, Guia de Turismo, Condutor de visitantes, Parque
Nacional da Tijuca (RJ).

Introdução
Umas das mais importantes estratégias da política ambiental no Brasil são a criação, implantação e gestão de áreas pro-
tegidas (LEUZINGER, 2007). No Brasil, o reconhecimento da importância das áreas protegidas é constituído em lei, através do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei 9.985/2000), que estabelece categorias de manejo, determina e regulariza
o uso e a apropriação dos recursos naturais. Dentre as categorias de Unidades de Conservação, o Parque Nacional chama aten-
ção, pois tem como objetivo básico a proteção dos recursos naturais e da beleza cênica das paisagens, associado à realização
de pesquisas científicas, de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação e de turismo (BRASIL, 2000).
A visitação em parques nacionais oferecem uma oportunidade para que visitantes possam conhecer e aprender sobre a
diversidade biológica e cultural, mas também demanda o estabelecimento de infraestrutura e serviços específicos que permitam
as atividades de recreação, lazer e turismo. Porém, é muito importante que essas atividades estejam associadas a uma proposta
de educação e interpretação ambiental.
Diante aos diversos cenários de degradação ambiental e problemas sociais que constituem a realidade de muitas locali-
dades, a associação entre visitação, educação e interpretação ambiental pode colaborar no enriquecimento cognitivo, político
e ideológico dos atores sociais envolvidos, a partir da internalização de informações e de reflexões sobre a importância da pro-
teção da biodiversidade e do patrimônio cultural presentes nos parques nacionais. Uma das estratégias para isso é a visita guiada
por profissionais com formação e habilidades para realizar atividades de educação e interpretação ambiental, que são os guias
de turismo e os condutores de visitantes.
Considerando que a gestão dos parques nacionais deve promover atividades de educação e interpretação ambi-
ental, uma das estratégias que tem sido utilizada pelos órgãos gestores é a normatização, cadastramento e oferta de cursos
aos guias de turismo e condutores de visitantes que comercializam seus serviços no interior das unidades. Diversas experiên-
cias como estas tem ocorrido tanto em âmbito dos parques nacionais (como nos Parques Nacionais da Serra dos Órgãos1,

1
ICMBIO. Portaria No. 116, de 19 de novembro de 2010. Estabelece normas e procedimentos para o cadastramento e a Autorização para exercício da atividade com-
ercial de condução de visitantes no Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Disponível em: www.icmbio.gov.br. Acessado em 14/jul/2015.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


843
Itatiaia2, Marinho de Fernando de Noronha3, administrados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade -
ICMBIO), quanto no âmbito estadual (como nos 13 parques administrados pelo Instituto Estadual do Ambiente – INEA-RJ4; e a
regulamentação da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo5).
Sendo assim, este trabalho tem por objetivo refletir sobre a possível vinculação entre educação ambiental e guiamento e
condução de visitantes em parques nacionais, a partir da análise da experiência de formação de guias de turismo e condutores
atuantes no Parque Nacional da Tijuca (RJ).
O Parque Nacional da Tijuca (PARNA Tijuca) está situado no centro da capital do Estado do Rio de Janeiro, metrópole
que concentra cerca de 6 milhões de habitantes (G1, 2014). Inserido em um contexto de forte pressão antrópica, o Parque com-
preende um território não contínuo de apenas 3.956 hectares, comportando uma área entrecortada por vias rodoviárias. Dividido
em quatro setores, o PARNA Tijuca concentra diversos pontos de interesse turístico, tais como: o Morro do Corcovado, onde está
o Monumento do Cristo Redentor; a Pedra da Gávea e a Pedra Bonita, importante área para a prática do turismo de aventura; e
a Floresta da Tijuca, que possui diversas trilhas e recantos para o lazer e prática de atividades físicas (ICMBIO, 2008). Em 2014,
o PARNA Tijuca recebeu mais de 3 milhões de visitantes (ICMBIO, 2015). Por oferecer aos visitantes uma grande diversidade de
atividades de recreação e lazer e muitas oportunidades para atividades de educação e interpretação ambiental, o PARNA Tijuca
é também um dos principais pontos para a comercialização de serviços de guiamento e de condução de visitantes.
Devido às especificidades do perfil da visitação que o PARNA Tijuca apresenta e os serviços oferecidos; considerando
que muitas pessoas desconhecem que estão visitando uma unidade de conservação (IRVING et al., 2012; BOTELHO; MACIEL,
2014); e, ainda, partindo-se da ideia de que o guia de turismo e o condutor de visitantes possuem um papel importante na inter-
mediação entre Parque Nacional e visitante, é fundamental que a gestão crie, estabeleça e mantenha processos formativos de
educação ambiental, na perspectiva emancipatória, voltados a este profissionais.
Diante disso, este trabalho realiza um estudo exploratório sobre as atividades realizadas pelo setor de Uso Público e
Negócios do Parque Nacional da Tijuca (RJ), entre os anos de 2010 e 2012, envolvendo guias de turismo e condutores de visitan-
tes. Este estudo baseia-se em relatórios técnicos disponibilizados pelo ICMBIO (ICMBIO, 2010; ICMBIO, 2011; ICMBIO, 2012),
e em informações obtidas em sites oficiais. Está dividido em três partes, além desta introdução: primeiramente, busca-se com-
preender o papel e a importância do guiamento e da condução de visitantes em parques nacionais; posteriormente, é realizada
uma discussão sobre a relação entre educação ambiental e visitação em parques nacionais; e, finalizando, objetiva-se analisar o
caso do Parque Nacional da Tijuca (RJ): o perfil dos guias de turismo e os condutores de visitantes e o processo de formação e
envolvimento destes atores nas atividades de visitação e turismo da unidade.
Dentre as diversas perspectivas de educação ambiental em associação com o turismo em áreas protegidas que já foram
delineadas por diversos autores (VASCONCELLOS, 2008; COSTA; COSTA, 2005; NEIMAN; RABINOVICI, 2010), defende-se
neste trabalho a proposta da educação ambiental crítica, entendendo que esta é a que tem maiores possibilidades de responder
ao desafio da gestão ambiental pública, conforme proposto por Quintas (2009).

Guiamento e condução de visitantes em parques nacionais


Os parques nacionais são áreas protegidas reconhecidas em muitos países, e tem por objetivos a proteção da biodiver-
sidade de áreas com paisagens espetaculares e a visitação. Estes objetivos têm sido a base para a criação de muitos parques
em todo o mundo, sendo o pioneiro o Parque Nacional de Yellowstone, localizado nos Estados Unidos da América, em 1872
(LEUZINGER, 2010).
No Brasil, a criação de parques nacionais seguiu a proposta estadunidense, com a instituição do Parque Nacional de Itati-
aia, em 1937. Atualmente, dentro da perspectiva de unidade de conservação, os parques nacionais brasileiros tem como objetivo
básico “a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de

2
ICMBIO. Portaria No. 204, de 10 de julho de 2013. Estabelece normas e procedimentos para o credenciamento e a autorização de uso para exercício de atividade
comercial de condução de visitantes no Parque Nacional de Itatiaia. Disponível em: http://www.icmbio.gov.br. Acessado em 14/jul/2015.
3
ICMBIO. Portaria No. 12, de 23 de fevereiro de 2011. Estabelece normas e procedimentos para o cadastramento e a Autorização para exercício da atividade comer-
cial de condução de visitantes no Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha. Disponível em: www.icmbio.gov.br, Acessado em 14/jul/2015)
4
INEA. Resolução INEA No. 61 de 04 de Outubro de 2012. Estabelece normas e procedimentos para o censo, credenciamento e prestação de serviços de guias de
turismo e condutores de visitantes nos parques estaduais administrados pelo INEA. Disponível em http://www.inea.rj.gov.br/cs/groups/public/documents/document/
zwff/mda2/~edisp/inea_006668.pdf. Acessado em 14/jul/2015.
5
SMA. Resolução 32 de 31 de março de 1998. Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
844
pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com
a natureza e de turismo ecológico” (BRASIL, 2000). Dentre as 12 categorias de unidades de conservação6, o parque nacional é
aquela em que as palavras-chave “visitação” e “turismo ecológico” estão presentes na definição de seus objetivos de criação, o
que revela a importância destas atividades para a unidade (LEUZINGER, 2010).
A visitação em parques nacionais é uma prática que tem ganhado cada vez mais adeptos em todo mundo e também
no Brasil (KINKER, 2002; BRAGA, 2015). Em dados recentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), mais de 7 milhões de pessoas visitaram diversos tipos de unidades de conservação de âmbito federal em 2014, tais
como Parques Nacionais, Florestas Nacionais e Áreas de Proteção Ambiental (ICMBIO, 2015). Este cenário revela a necessidade
de estabelecimento de investimentos em infraestrutura, facilidades e em serviços, que devem proporcionar oportunidades de
realização de atividades de recreação, lazer e turismo associados a processos de educação e interpretação ambiental, a fim de
garantir a proteção da biodiversidade e do patrimônio cultural.
Dentre as possibilidades de associação entre proteção, visitação, educação e interpretação, o guiamento e a condução
de visitantes é considerada por Zimmerman (apud CRONEMBERGER, 2007, p. 1) como uma “oportunidade de sensibilização
ambiental e estabelecimento de um gradual compromisso dos visitantes com a conservação, não só do parque, mas do ambi-
ente num contexto amplo”. De acordo com a Cartilha “Noções Básicas para a Condução de Visitantes em áreas naturais” (MMA,
2005), os guias de turismo e os condutores de visitantes desempenham, portanto, um papel fundamental para a formação de
atitudes e comportamentos por parte do visitante perante ao ambiente. Sendo assim, o guiamento e a condução de visitantes
compõem o rol de serviços comerciais que podem ser realizados em parques nacionais. Estes são regulados por diversos instru-
mentos legais que orientam os procedimentos de normatização de guiamento e condução de visitantes.
A Lei nº 9.985/2002 que instituiu o SNUC, bem como o Decreto nº 4340/2002, estabelecem que a exploração comercial de
serviços, obtidos ou desenvolvidos a partir dos recursos naturais, biológicos, cênicos ou culturais, a fim de dar suporte à imple-
mentação das atividades de uso comum do público (tais como visitação, recreação e turismo), depende de prévia autorização
do órgão gestor.
Outro instrumento legal que complementa a Lei do SNUC é o documento do Ministério do Meio Ambiente intitulado
“Diretrizes para Visitação em Unidades de Conservação”7, que orienta aos gestores a requererem “que todos os condutores,
monitores e guias estejam devidamente cadastrados nas UC onde deverão atuar. Este cadastro deverá contemplar aqueles que
realizaram cursos de capacitação e de formação para condutores, monitores ou guias reconhecidos pelos órgãos gestores”, e
que deve ser estimulada a continuidade da formação.
Nesse sentido, é importante entender as diferenças sobre as atribuições, os pré-requesitos para atuação profissional e
demais características das atividades de guia de turismo, de monitor de turismo e de condutor de visitantes. O guia de turismo
possui formação técnica-profissionalizante em curso reconhecimento pelo Ministério da Educação. De acordo com o Ministério
do Turismo8, além da comprovação de conclusão no curso, o profissional precisa estar inscrito no Cadastro dos Prestadores de
Serviços Turísticos (Cadastur)9. Segundo a portaria que estabelece requisitos e critérios para o exercício da atividade de Guia
de Turismo, o guia de turismo é aquele que exerce “atividades de acompanhamento, orientação e transmissão de informações
a pessoas ou grupos, em visitas, excursões urbanas, municipais, estaduais, interestaduais, internacionais ou especializadas”
(BRASIL, 2014).
A formação profissional pode ser especializada conforme o âmbito geográfico de atuação (local e/ou intermunicipal;
nacional; internacional) e a tipologia de atrativos (prestação de informações técnico-especializadas sobre atrativo natural ou
cultural). O Guia de Turismo com especialização em determinada tipologia de atrativo somente poderá exercer sua atividade

6
No Brasil, as áreas protegidas são regulamentadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC, que é um mecanismo governamental de proteção
da bio-sociodiversidade. Este Sistema foi criado em 2000, e busca atender às diretrizes da Convenção da Diversidade Biológica. Define 12 tipos de áreas protegidas,
dividida em dois grupos: Proteção Integral (Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural; e Refúgio de Vida Silvestre), e Uso Susten-
tável (Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva extrativista; Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento
Sustentável; Reserva Particular do Patrimônio Natural.).
7
Aprovado pela Portaria MMA nº 120, de 12 de abril de 2006. Disponível em: www.icmbio.gov.br. Acessado em 14/jul/2015.
8
Portaria nº 27, de 30 de janeiro de 2014. Estabelece requisitos e critérios para o exercício da atividade de Guia de Turismo e dá outras providências. Disponível em:
http://www.turismo.gov.br/legislacao/?p=117. Acessado em 14/jul/2015.
9
O CADASTUR “é o sistema de cadastro de pessoas físicas e jurídicas que atuam na cadeia produtiva do turismo, executado pelo MTur em parceria com os Órgãos
Oficiais de Turismo das Unidades da Federação” (MINISTÉRIO DO TURISMO, 2011). Disponível em: www.cadastur.turismo.gov.br/cadastur/SobreCadastur.mtur.
Acessado em 14/jul/2015.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


845
quando tiver formação técnica específica para o Estado do atrativo turístico no qual atuará. Os guias de turismo tem garantido
o acesso gratuito a espaços culturais e pontos de interesse turístico, sempre que possível e de acordo com as normas de cada
estabelecimento (MINISTÉRIO DO TURISMO, 2014).
Recentemente, a profissão de guia de turismo foi regularizada no Brasil, através da Lei Geral do Turismo10, a obrigato-
riedade de cadastramento junto ao Ministério do Turismo. Com isso, os órgãos do poder executivo, vinculados ao Sistema de
Turismo (como, por exemplo, as secretarias estaduais de turismo), podem ter a dimensão do número de profissionais e, também,
fiscalizar as atividades, monitorando aqueles que não cumprem os requisitos legais e éticos da profissão. Por sua vez, o turista
que deseja contratar os serviços de guiamento, possui maiores garantias sobre a idoneidade do profissional e, pode, ainda,
escolher aquele que melhor atende às suas necessidades, de acordo com o perfil profissional e características específicas ex-
postas no cadastro, com acesso disponível na internet (ver www.cadastur.turismo.gov.br).
A Portaria também define as atribuições e pré-requisitos para atuação profissional de monitores de turismo e de condu-
tores de visitantes. Segundo este documento, monitor de turismo atua em locais de interesse cultural, tais como museus, monu-
mentos e prédios históricos, “desenvolvendo atividades interpretativas fundamentadas na história e memória local, contribuindo
para a valorização e conservação do patrimônio histórico existente (...)” (BRASIL, 2014). Sendo assim, o monitor de turismo pode
passar por processo de capacitação não-formal para realizar suas atividades.
Ainda conforme a portaria do Ministério do Turismo, o condutor de visitantes em unidades de conservação é aquele
profissional que passou por “capacitação específica para atuar em determinada unidade”, sendo cadastrado no órgão gestor da
área protegida, tendo como atribuição “a condução de visitantes em espaços naturais e/ou áreas legalmente protegidas, apre-
sentando conhecimentos ecológicos vivenciais, específicos da localidade em que atua, estando permitido conduzir apenas nos
limites desta área” (BRASIL, 2014, grifo nosso).
Complementarmente à Portaria do Ministério do Turismo, a Instrução Normativa n.8 (ICMBIO, 18/09/2008), estabelece
normas e procedimentos para a prestação de serviços vinculados à visitação e ao turismo por condutores de visitantes, a fim de
sejam utilizados procedimentos uniformes e coerentes para o cadastramento e para a realização de curso de capacitação, com
base nos respectivos planos de manejo (ICMBIO, 2008).
Um dos princípios do documento é o da não obrigatoriedade de contratação de profissionais por parte dos visitantes,
porém, salienta-se que isso pode ser recomendado ou identificado como necessário, sobretudo nos casos quando os visitan-
tes: desejam aprofundar e/ou adquirir maiores conhecimentos sobre a unidade; possuem alguma necessidade especial para
deslocar-se; quando o passeio inclui uma visita a comunidades tradicionais; ou nos casos de caminhadas em trilhas de longa
distância e ou percurso (ICMBIO, 2008).
Sendo assim, o órgão gestor deve manter e disponibilizar um cadastrado de condutores de visitantes que, preferencial-
mente, devem ser moradores do entorno dos parques nacionais. Além do cadastro, o condutor de visitantes deve participar de
cursos de capacitação sobre a área protegida, oferecidos ou promovidos pelo o órgão gestor. O objetivo desta capacitação é
dar condições para que este profissional possa oferecer um passeio seguro aos visitantes e, também, na transmissão de conhe-
cimentos relacionados à função e objetivos da unidade de conservação visitada (ICMBIO, 2008). Sendo assim, espera-se que o
condutor de visitantes realize atividades interpretativas a partir dos “conhecimentos ecológicos vivenciais” que possui, de modo
a ampliar as oportunidades recreativas para os visitantes. Além disso, com estes procedimentos, o condutor pode ser consi-
derado “um aliado da conservação da natureza”, podendo colaborar no monitoramento dos impactos sócio-ambientais nos sítios
visitados (MMA, 2006).
Diante do exposto, é possível sintetizar que o guia de turismo é um profissional com importante atuação no mercado de
turismo, pois funciona como elo no processo de operacionalização dos serviços essenciais, como a hospedagem, o transporte,
a alimentação, o entretenimento em atrativos e espaços patrimoniais. O guia de turismo, ao produzir um passeio ou viagem em
unidade de conservação, deve estar atento à necessidade ou obrigatoriedade de acompanhamento de condutor durante visita-
ções, devendo respeitar as normas vigentes em cada área.
Por sua vez, ao invés de subcontratar o serviço de terceiros, pode, ele mesmo, atender às normas dos estabelecimentos,
como por exemplo, no caso dos parques nacionais, o cadastramento e participação de cursos de capacitação. No entanto, moni-
10
BRASIL. Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008. Dispõe sobre a Política Nacional de Turismo, define as atribuições do Governo Federal no planejamento, de-
senvolvimento e estímulo ao setor turístico e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11771.htm. Acessado
em 13/set/2015.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
846
tores de turismo e condutores de visitantes tem sua atuação restringida aos espaços patrimoniais e unidades de conservação,
não podendo atuar como guias de turismo sem atender à legislação vigente. Neste sentido, os profissionais possuem comple-
mentariedade em suas atuações em parques nacionais.

A relação entre educação ambiental e visitação em parques nacionais


A noção de educação ambiental surge no contexto do movimento ambientalista e das conferências internacionais sobre
meio ambiente, ainda na década de 1970, momento de intenso debate na busca de soluções capazes de garantir a qualidade
de vida em um contexto de degradação social e ambiental. O marco mais significativo da trajetória da educação ambiental é a
Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental (1977), em Tbilisi (Rússia).
No contexto brasileiro, a educação ambiental se consolida legalmente com a Constituição Federal de 1988, que através
do artigo 225 estabelece que, ao poder público, cabe “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a cons-
cientização pública para a preservação do meio ambiente”. Na década de 1990, são criadas instâncias no âmbito do poder exe-
cutivo dos Ministérios da Educação e do Meio Ambiente, com o objetivo de criar e executar o Programa Nacional de Educação
Ambiental (PRONEA) e, posteriormente, a Política Nacional de Educação Ambiental (Lei 9.795/1999) (DURIGUETTO, 2007).
Segundo as diretrizes centrais do Programa e as orientações da Política Nacional, educação ambiental constitui-se uma
prática social, cujo objetivo é o desenvolvimento das habilidades e competências que podem ser apreendidas e reinventadas
pela humanidade no processo de produção da cultura e na relação da vida social com o ambiente. Defende que tal concepção
somente se sustenta se ocorrer na perspectiva do controle social do meio físico-natural, devendo estar presente, de forma articu-
lada, em todos os níveis e modalidade do processo educativo.
Ou seja, as ações e práticas educativas deverão se voltar à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais,
com a participação e parceria de todos os segmentos da sociedade, inclusive os órgãos governamentais. Também, apontam
para um papel fundamental da educação ambiental, que é a superação do atual modelo de sociedade, caracterizado pela
produção, acumulação e consumo (BRASIL, 1994; BRASIL, 1999). Este conteúdo revela sua forte relação com a tradição crítica,
devido ao seu caráter processual e, também, à ênfase dada aos aspectos sociais e econômicos da questão ambiental.
É importante considerar que, apesar das diretrizes legais para a educação ambiental indicarem um único caminho, sabe-
se que existem múltiplas abordagens teóricas e práticas. Muitas vezes, as mais conservadoras sobressaiam-se em relação às
práticas críticas e transformadoras. A educação ambiental adotada neste trabalho, com base na perspectiva de Quintas (2009,
p.15), está diretamente relacionada com a compreensão do processo educativo, formado por “atividades no âmbito formal, infor-
mal e não formal, tendo como base fundante uma lógica pedagógica direcionada por princípio mediador de interesses e conflitos
entre atores sociais, que utilizam os recursos do ambiente de maneira indiscriminada e desigual”.
A partir deste conceito, entende-se que o problema ambiental é constituído pelos aspectos econômicos, políticos e ide-
ológicos que ocorrem em dado contexto e que determinam sua compreensão cognitiva. Assim, a educação ambiental deve pro-
vocar um entendimento das relações existentes entre sociedade e natureza para que os diferentes sujeitos tenham capacidade
de pensar-agir nos problemas ambientais suscitados em situações concretas. Com base nos pressupostos legais, é possível
afirmar que as diretrizes firmadas pelas leis e políticas brasileiras são teoricamente avançadas, do ponto de vista da conservação
e, também, da garantia dos direitos sociais.
No entanto, metodologias eficazes ainda são um desafio para a prática na gestão da educação ambiental, ou seja, para
que haja de fato e, não apenas de direito, a superação das enormes assimetrias característica do atual modelo de sociedade.
Assim, acredita-se que o distanciamento entre os pressupostos legais e as práticas também reflete na gestão da educação ambi-
ental em unidades de conservação e, invariavelmente, na relação com as atividades de visitação, lazer e turismo, especialmente
os parques nacionais (MACIEL, 2014).
Assim, é fundamental compreender as possíveis relações entre as práticas de Educação Ambiental Crítica e a visitação
guiada em parques nacionais. As atividades de educação ambiental em parques, em geral, estão associadas à interpretação
ambiental, em que o sujeito da ação é o guia de turismo ou condutor de visitantes e, o receptor, é o visitante.
As primeiras iniciativas de Interpretação Ambiental foram planejadas pelo Serviço de Parques Nacionais dos Estados
Unidos, 1919. A partir da década de 1960, Freeman Tilden, avançou na sua sistematização ao publicar o livro “Interpreting Our
Heritage” (PROJETO DOCES MATAS, 2002). O Ministério do Meio Ambiente, através do documento “Diretrizes para a visitação

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


847
em Unidades de Conservação” define que: “a interpretação ambiental é uma maneira de representar a linguagem da natureza, os
processos naturais, a inter-relação entre o homem e a natureza, de maneira que os visitantes possam compreender e valorizar o
ambiente e a cultura local” (BRASIL, 2006). Assim, a interpretação ambiental é entendida como uma forma de estimular o interes-
se, provocar novos sentidos e percepções e proporcionar o envolvimento do visitante.
Dessa forma, a interpretação ambiental responde à necessidade de interação com o parque nacional, transformando o
contato recreativo em educativo, na medida em que as técnicas são instrutivas do ponto de vista da possibilidade do contato
com os elementos naturais e culturais. A interpretação ambiental inclui informação, mas vai além, pois leva o visitante a perce-
ber o mundo natural do qual faz parte, transmitindo as razões pelas quais os parques nacionais foram criados, gerando nele o
interesse pelos aspectos ecológicos e culturais. Em contato com a natureza, pressupõe-se que os visitantes podem se tornarem
“guardiões” dos recursos naturais. Assim, a educação ambiental via interpretação ambiental adquire a missão de favorecer a
compreensão e o reconhecimento da importância do patrimônio natural e cultural.
Em contraste com a perspectiva de interpretação ambiental em que o ato educativo está restrito à compreensão dos
aspectos ecológicos dos parques nacionais, a perspectiva da Educação Ambiental Crítica na sua relação com o visitante não se
limita a um mero papel explicativo dos conteúdos ecológicos. Diante disso, de que forma a “interpretação ambiental crítica” pode
se constituir em proposta para o guiamento e a condução de visitantes em parques nacionais? Entende-se que esta proposta
deve ser construída a partir de um processo formativo, em que são desenvolvidos conhecimentos, habilidades e atitudes a partir
da permanência de espaços para a participação social e de diálogo sobre as decisões com relação à gestão do parque nacional.

Educação ambiental envolvendo guias de turismo e condutores


de visitantes do parque nacional da tijuca (RJ)
O Parque Nacional da Tijuca (PARNA Tijuca), situado no centro da capital do Estado do Rio de Janeiro, possuindo grande
relevância ecológica para a cidade, pois previne enchentes e erosões de encostas, reduz a poluição atmosférica, garante o abas-
tecimento de água e ameniza a temperatura (IBAMA, 1998). Além dos conjuntos montanhosos que conferem ao Parque grande
beleza cênica – como o Pico da Tijuca, o Morro do Corcovado e o conjunto Pedra Bonita/Pedra da Gávea – o patrimônio histórico-
cultural, herdado da ocupação antrópica ao longo de quatro séculos, também constituem grandes atrativos – como o Monumento
do Cristo Redentor, Vista Chinesa, a Mesa do Imperador e o Parque Lage (ICMBIO, 2008).
Por estar localizado no principal destino turístico internacional e doméstico do país e, também, em função dos atrativos
turísticos que oferece aos visitantes, o PARNA Tijuca é o parque nacional brasileiro mais visitado (ICMBIO, 2015). Para atender
a toda esta demanda, o PARNA Tijuca oferece uma grande variedade de infraestruturas (banheiros, mirantes, trilhas e rodovias,
sinalização, centro de visitantes, etc.) e serviços de apoio à visitação (segurança, estacionamento, restaurantes, informações)
sendo alguns operados pela iniciativa privada em regime de concessão11 (ICMBIO, 2008). Nesse contexto, o guia de turismo e o
condutor de visitantes possuem um papel importante na intermediação entre Parque Nacional e visitante.
Saliente-se que o Plano de Manejo do Parque Nacional da Tijuca12, relaciona, como diretriz, a promoção de seminários,
treinamentos e capacitações para guias de turismo e condutores de visitantes. Considerando a necessidade de atender às leis
(citadas anteriormente), diretrizes e normas sobre a prestação de serviços de apoio à visitação e sobre educação ambiental, o
Setor de Uso Público e Negócios desenvolveu o processo formativo para guias de turismo e condutores, com o apoio de outros
setores administrativos desta Unidade, como o Núcleo de Educação Ambiental e o Setor de Cultura e Patrimônio.
O processo formativo de guias de turismo e condutores de visitantes atuantes no PARNA Tijuca foi planejado para ocorrer
em quatro etapas: 1) Cadastramento e inscrição em curso de formação para atuação no PARNA Tijuca; 2) Participação no curso
com total de 16 horas presenciais; 3) Certificação e homologação do cadastramento; 4) Emissão de autorização para a realização
de atividades comerciais no interior da Unidade. Este processo ocorreu entre os anos de 2010 e 201213, e teve como objetivos
centrais “orientar e capacitar guias de turismo e condutores de visitantes que atuam dentro dos limites do Parque Nacional da
Tijuca, visando à adoção de práticas de ecoturismo pautadas na educação ambiental e na proteção do patrimônio natural e
11
No Setor Serra da Carioca está em curso a reforma do antigo Hotel Paineiras para transformá-lo em um Complexo Turístico, com o objetivo de oferecer aos visitan-
tes do Morro do Corcovado serviços de alimentação, de estacionamento, venda de bilhetes para acesso ao Morro do Corcovado incluindo transporte rodoviário, e
informações aos visitantes (BOTELHO, MACIEL, 2014).
12
Aprovado pela Portaria ICMBIO nº 040/2008. Disponível em: www.icmbio.gov.br Acessado em 14/jul/2015.
13
Este processo ocorreu em um contexto em que o PARNA Tijuca buscava regularizar as atividades comerciais que ocorriam no interior da Unidade, sobretudo
aquelas caracterizadas pelos regimes de concessão e permissão, tais como restaurantes, lanchonetes, transporte rodoviário e ferroviário (BOTELHO, MACIEL, 2014).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
848
cultural desta Unidade de Conservação”. Como resultado, esperava-se “estimular a melhoria na qualidade do serviço prestado
ao visitante, criando as condições necessárias para que profissionais competentes e preparados realizem seu trabalho” (PARNA
TIJUCA, 2011, p. 4).
A primeira etapa ocorreu em fluxo contínuo até 2013, e consistiu em cadastramento preliminar e inscrição para participa-
ção no curso. No banco de dados do PARNA Tijuca, constam 569 guias de turismo e condutores de visitantes14. Considerando o
total de guias de turismo inscritos no Cadastur para a cidade do Rio de Janeiro (3.430 profissionais inscritos) acredita-se que, em
termos quantitativos, houve uma relevante aderência (16%, em 2 anos) destes profissionais ao processo desenvolvido pelo PAR-
NA Tijuca. Em uma amostra de 346 profissionais cadastrados no banco de dados do PARNA Tijuca analisados, 203 são guias de
turismo com registro no CADASTUR; 82 são condutores de visitantes (sem curso técnico de formação profissional e sem número
de registro no CADASTUR); e 61 possuem curso, mas não souberam informar o número de registro no CADASTUR. Apenas 32
profissionais são moradores de cidades localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro.
A segunda etapa consistiu na participação em curso de formação oferecido pelo PARNA Tijuca. Este curso abordou
os seguintes assuntos: sustentabilidade e turismo; educação e interpretação ambiental; zoneamento e normas de uso público
do PARNA-Tijuca; patrimônio natural e histórico-cultural; segurança e técnicas de condução. Os cursos foram ministrados pe-
los analistas ambientais e funcionários terceirizados do PARNA Tijuca e, também, por profissionais com formação em guia de
turismo e membros da ABETA (Associação Brasileira de Ecoturismo e Turismo de Aventura) que se voluntariaram com temas
especificamente relativos à atividade de guiamento e condução de visitantes.
Entre 2010 e 2012, foram oferecidos cinco edições do curso, atendendo a um total de 179 profissionais (31% do total de
profissionais inicialmente cadastrados). Diante do número de cadastros preliminares, avalia-se que existe uma demanda re-
primida de profissionais interessados em participar dos cursos e em obter a autorização para a comercialização dos serviços em
áreas do PARNA Tijuca, considerando estes pré-requisitos.
Com base na análise dos relatórios, pode-se afirmar que a participação nos cursos oferecidos foi considerada por todos
os envolvidos (gestores, técnicos, voluntários e profissionais participantes) como um importante momento de aproximação entre
a gestão e aqueles que usam as áreas do parque para a prestação de serviços. Isso porque houve oportunidade para o diálogo,
não somente com informações e dúvidas sobre as normas do PARNA Tijuca (desconhecida por muitos guias e condutores) e
sobre aspectos relativos à biodiversidade e ao patrimônio histórico-cultural. O curso também contribuiu para a reflexão sobre
o papel do guia e do condutor como sujeito atuante no processo de gestão do parque, na medida em que puderam trocar ex-
periências e participar com recomendações que visaram colaborar para a melhoria da gestão do uso público e da visitação da
Unidade. Segundo alguns relatos,

“O curso foi benéfico ao proporcionarem um espaço de reflexão coletiva, o que enriquece o


aprendizado”.

“Aprendi muito, graças ao curso sobre legislação, plano de manejo, zoneamento. Achei funda-
mental a técnica de interpretação ambiental que antes eu aplicava de uma forma desorganizada.
Vou poder tornar minha apresentação do Parque mais completa e objetiva.”

“Com a reflexão sobre os problemas ambientais atuais, passados e vindouros, sobre a preser-
vação do meio ambiente, sobre o papel do PNT na minha vida e na vida da minha comunidade.”

Segundo os participantes, os temas relativos à história do Parque, educação e interpretação ambiental e informações
sobre o Plano de Manejo foram aqueles com maior aproveitamento, pois acreditam que utilizarão as informações em suas
atividades de guiamento/condução. Também, relatam que adquiriram maior comprometimento, uma vez que reconheceram seu
papel como educador ambiental. Outro aspecto importante a ser destacado é o envolvimento dos guias/condutores para com
o Parque e entre si, considerando que foram formados grupos de estudos/trabalho e de discussão virtual entre os participantes
com a presença dos analistas ambientais do PARNA Tijuca, mantendo o grupo atualizado sobre os eventos, cursos, mutirões e
demandas da unidade.
As etapas seguintes, como a homologação do cadastramento e emissão de autorização para a realização de atividades
comerciais no interior da Unidade, previstas para o processo de formação, não foram continuadas como prioridade de gestão
14
Dados de outubro de 2012.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


849
do PARNA Tijuca, no contexto do planejamento estratégico delineado pelos analistas ambientais a partir de 2013. Diante disso, é
possível afirmar que houve intenção por parte do PARNA Tijuca, em construir uma proposta de “interpretação ambiental crítica”
para o guiamento e a condução de visitantes em parques nacionais, porém, isso não obteve o êxito, tendo em vista a interrupção
do processo.
É importante destacar que os sujeitos da educação envolvidos no processo formativo são o guia de turismo, o condutor
e o visitante e também os analistas do PARNA Tijuca. Através deste processo, estes sujeitos podem se tornar cidadãos, com
potencial para questionar e agir para a transformação social.
Acredita-se que, por meio de processos formativos com base na orientação da “interpretação ambiental crítica”, criam-se
instrumentos para o diálogo entre a realidade visitada e a realidade vivida. Sendo assim, o guiamento e a condução de visitantes
deixam de ser um momento para a transferência de informações com o intuito de tornar as pessoas “aptas para o convívio com
a natureza”, para tornarem-se atos de aprender-ensinar, comprometido com a aquisição de habilidades específicas para a prob-
lematização e intervenção na realidade.
As atividades de interpretação ambiental devem ser, assim, veículo de uma proposta na perspectiva da Educação Am-
biental Crítica, facilitando, acima de tudo, a compreensão e o enfrentamento dos problemas sociais e ambientais, promovendo
a participação, e estimulando a construção de conhecimentos, voltados para a conquista e manutenção do direito ao ambiente
democrático e ecologicamente equilibrado entre os sujeitos envolvidos.
Portanto, é possível construir uma proposta de interpretação ambiental para a visita turística em parques nacionais, con-
siderando os pressupostos da educação ambiental de tradição crítica. Porém, este processo envolve, uma etapa anterior, que é
a construção do processo formativo de ensino-aprendizagem não formais, envolvendo guias de turismo, condutores de visitantes
e analistas ambientais atuantes na gestão do uso público em parques nacionais.

Considerações Finais
Este trabalho buscou contribuir com reflexões sobre a vinculação entre educação ambiental e guiamento e condução
de visitantes em parques nacionais, a partir da análise da experiência de formação de guias de turismo e condutores atuantes
no Parque Nacional da Tijuca (RJ). Com base nos pressupostos da Educação Ambiental Crítica defendido por Quintas (2009),
procurou-se compreender o papel e a importância do guiamento e da condução de visitantes em parques nacionais para ana-
lisar o processo de formação envolvendo guias de turismo e condutores de visitantes atuantes no Parque Nacional da Tijuca (RJ).
A partir desta análise, entende-se que o processo formativo não foi concluído da forma como havia sido proposto inicialmente,
tendo em vista que não houve continuidade, apesar da avaliação positiva dos participantes.
Diante do exposto, é importante tecer algumas considerações sobre a relação entre educação ambiental, guias de turis-
mo e condutores de visitantes em parques nacionais. Neste trabalho, defendeu-se a ideia de que a interpretação ambiental pode
promover a reflexão sobre a relação entre os problemas sociais e os parques nacionais. Sendo assim, propõe que o processo
formativo deve transformar o papel do guia/condutor de intérprete, passivo, para um agente capaz de incentivar a reflexão; e,
por sua vez, alterar o papel do visitante de mero receptor de informações sobre o que se ouve e se vê, para um sujeito político
no seu ambiente de origem. Além disso, os analistas ambientais envolvidos no processo formativo constituem parte do processo
de ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, é importante, (re)conhecer o sujeito, como um ser autônomo, conforme aponta Quintas (2009). A perspec-
tiva defendida é a de que a interpretação ambiental crítica propõe a reflexão, tanto no ato da visita quanto no processo formativo,
sobre as relações sociais no âmbito estrutural e estruturante da questão ambiental, o que favorece a intervenção crítica no cotidi-
ano do visitante.
Entende-se que este trabalho pode colaborar na reflexão sobre o papel e a importância do guiamento e da condução
de visitantes em parques nacionais, oferecendo uma análise crítica sobre o processo de formação, na perspectiva da educação
ambiental crítica.

Referências
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A reprodução capitalista do espaço por meio da terceirização de serviços: desvelando as implicações para lazer dos visitantes

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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852
EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: EXPERIÊNCIAS NA CO-GESTÃO DO CAMPING
DO PARQUE ESTADUAL DO RIO VERMELHO, FLORIANÓPOLIS (SC)

Palermo, Pedro Rodolfo Ocampos1; Abreu, Marcos José de1; Bottan, Guilherme Angelo1; Pereira, Icaro Chrsitóvam1; Teixeira,
Camilo1; Trivella, Renato Barretto Barbosa1; Cardoso, Stephanye Oliveira1; Gellert, Luana Jamayna1; Taffe, Bruna Lunardi1;
Lorenzi, Karina Smania de.1; Ganzarolli, André Martins1 & Angeloletto, Fernando1

1 CEPAGRO – Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo marcosjosedeabreu@gmail.com

Resumo
Desde dezembro de 2013 ocorre a co-gestão do Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho, em Florianópolis (SC), entre o
Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo – CEPAGRO (OSCIP) e a Fundação do Meio Ambiente - FATMA. Com o
objetivo de apresentar nossas experiências, abordamos as seguintes ações: a promoção da educação e interpretação ambiental;
utilização de áreas de lazer; serviço de camping; eventos sociais e ações no entorno do parque. Já passaram mais de dez mil pes-
soas pelo camping atendidas por nossos objetivos, mostrando-se uma ferramenta pública com potencial promissor de referência
para o turismo, educação e interpretação ambiental e lazer em unidade de conservação.

Palavras-Chave: Turismo, Conservação, Gestão Compartilhada.

Introdução
O Parque Estadual do Rio Vermelho (PAERVE) caracteriza-se por estar situado em um dos ecossistemas mais ameaça-
dos do mundo, dentro do domínio mata atlântica, e na face leste da ilha de Santa Catarina, entre o Oceano Atlântico e a Lagoa
da Conceição, apresentando predominantemente vegetação de restinga e a Floresta Pluvial da Encosta Atlântica, denominada
Floresta de Planícies Quaternárias (BISHEIMER, SANTOS & CARLSON., 2013).
A área do parque, com 1.532 ha, ainda abriga grande quantidade de seres vivos, possui uma relevante beleza cênica entre
florestas e praias, está sobre o aquífero Rio Vermelho - Ingleses, que abastece todo o norte e leste da Ilha (SOUZA et al., 2012).
O Camping do Rio Vermelho foi fundado em 10 de dezembro de 1973, através do convênio entre a Secretaria de Agri-
cultura e o Camping Clube do Brasil (CCB) (VENTURIERI, 2014), ocupa uma área de 25.000 m², com estruturas básicas como
banheiros, postes de luz e áreas de churrasqueira, recebendo nesse período visitante e turista do Brasil e do mundo (FERREIRA,
2010), servindo apenas como uma opção comercial e recreativa dentro da Unidade de Conservação. Segundo o mesmo autor,
o camping do rio vermelho é considerado uma zona de uso conflitante, pois as infra-estruturas que comportam a área não são
coerentes com as normas estabelecidas para categoria de Parque Estadual, podendo vir a ser enquadrada como zona de uso
intensivo após adequações.
Em termos de infra-estrutura o camping possui: área de 25 mil metros quadrados, campo de futebol, parque infantil,
quadra de vôlei iluminada, estacionamento, banheiros equipados com pias para lavar louça e roupas, cozinha, churrasqueiras,
área de jogos, horta ecológica, viveiro de mudas, fácil acesso a praia e à Lagoa da Conceição, acesso a internet, segurança,
atendimento na recepção em três idiomas: português, inglês e espanhol, e a separação dos resíduos sólidos.
A partir de dezembro de 2013 nasce a co-gestão do Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho, entre o Centro de
Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo - CEPAGRO e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FATMA), coordenando
ações ligadas à gestão do espaço fazendo a administração e manutenção do camping para recebimento de visitantes, campistas
e eventos sociais; a educação ambiental, através de cursos, oficinas, atendimentos a escolas e grupos interessados na temática
ambiental com diversas abordagens.
Essa instituição existe desde 1990, trabalha a agricultura urbana e educação ambiental há 12 anos. Nesse contexto, atua
em diversos projetos com metodologias de produção de hortas agroecológicas (em comunidades, centros de saúde, escolas),
gestão comunitária de resíduos orgânicos e gestão de resíduos sólidos em todo território nacional.
Portanto, o camping promove a educação e interpretação ambiental, aliando o potencial do espaço para criar uma relação
comum entre todos na sociedade, que é o PAERVE, que se caracteriza por ser um espaço público e uma unidade de conservação

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


853
ambiental, com potencial para diversas abordagens de ensino e aprendizagem, com possibilidades de contato e interação com
a natureza, em um ecossistema cada vez mais raro dentro de Florianópolis e de todo litoral brasileiro. Sendo assim, o objetivo
deste trabalho será apresentar as experiências dessa instituição na co-gestão do camping do Parque Estadual do Rio Vermelho
que são ligadas a Educação para a Sustentabilidade e Cidadania.

A experiência da OSCIP no Camping


Camping e Lazer
O camping está aberto todos os dias à população, além de oferecer serviços de hospedagem para as pessoas acam-
parem com barracas, trailers ou motor home, com um preço acessível a toda população. As ações do camping relacionado ao
lazer são: recepcionar campistas e visitantes; Informar sobre o turismo de Florianópolis, regras gerais do camping a campistas e
visitantes; Registrar campistas e visitantes; orientar sobre as áreas de lazer e camping disponíveis; disponibilizar materiais para
a diversão das pessoas, tais como materiais para a prática de esportes.

Educação e Interpretação Ambiental


A educação e interpretação ambiental que ocorre dentro do camping é uma ação contínua, e se desenvolve principal-
mente através de: 1) Orientação da comunidade, campista e visitante quanto à separação de resíduos sólidos, consumo consci-
ente de recursos como água e energia, regramento e caracterização da Unidade de Conservação Ambiental; 2) Oferta gratuita
de cursos e oficinas para comunidade e atendimento para instituições de ensino de todo o estado de Santa Catarina e acampa-
mentos coletivos; 3) Estágios Voluntários e Curriculares.
As atividades relacionadas à educação e interpretação ambiental basicamente abordam as seguintes temáticas: a) Co-
nhecendo os Ecossistemas do Parque através de Trilhas ecológicas; b) Reprodução e cuidados de espécies de plantas nativas
(Viveiro Educativo); c) Horta Agroecológica (consumo consciente e alimentação saudável, produção orgânica de alimentos); e
d) Gestão de Resíduos Sólidos (separação, coleta seletiva e destinação correta dos resíduos sólidos).

Eventos
A visitação ao camping criou a demanda pela realização de eventos sociais, tais como aniversários, ações solidárias,
atrações culturais e de valorização da cultura local, ensaios de grupos artísticos, reuniões de instituições, encontros escolares e
religiosos, cursos, oficinas, entre outros. Esses eventos requerem uma consulta e agendamento prévio, e possibilitam que grupos
interessados promovam seus objetivos em consonância com os objetivos do PAERVE.

Entorno do Parque
Desde sua atuação como co-gestor do camping, o CEPAGRO demonstra seu interesse em atrair a comunidade às ações
no espaço. Todavia, em comunhão aos problemas advindos da sociedade ou comunidade do entorno, fez com que conectasse
grupos distintos que buscam soluções comuns aos seus problemas.
O grupo Alecrim, formado principalmente por moradores do bairro São João do Rio Vermelho em Florianópolis, interes-
sados em resolver questões ligadas ao bem-estar das pessoas através de hortas comunitárias e a gestão de resíduos sólidos do
bairro, levou a parceria com o projeto do camping, procurando soluções originais para seus problemas.
A comunidade remanescente de quilombo Vidal Martins, localizada também no bairro do Rio Vermelho, também se
aproximou do Camping em busca de alternativas para agricultura e para o problema do resíduo orgânico na comunidade.

Resultados
Camping e Lazer
Para o serviço de hospedagem de camping, buscamos atender o turista e visitante com qualidade, ressaltando sempre a
importância do PAERVE para a região.
Além de um preço acessível durante todo o ano, a recepção do camping funciona como um centro de Informações sobre
a Unidade de Conservação e o turismo da cidade. Foram mais de 2.000 campistas durante a temporada 2014/2015. Pessoas de
várias partes do mundo estiveram no camping, como mostra o Quadro 1.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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De dezembro de 2014 a fevereiro de 2015, período em que marca a alta temporada para o setor turístico do camping,
registramos 1.908 adultos e 183 crianças que acamparam. E de março de 2015 a junho de 2015, período de baixa temporada, já
registramos 881 campistas, sendo 731 adultos e 150 crianças.
Desde Dezembro de 2014 a junho de 2015 já registramos mais 3.300 pessoas que visitaram o camping. Muitas dessas
pessoas frequentaram o camping, buscando contato com a natureza (trilhas e praia); prática de esportes (futebol, futevolei, surf)
e entretenimento (churrasco, piquenique e diversão) como pode ser visto na Figura 1.

Figura 1. pessoas frequentando o camping.

“Da mesma forma, no que se refere aos processos de conservação da biodiversidade e à gestão
de áreas protegidas, parece fundamental que o cidadão possa ser entendido, pelas políticas públi-
cas, não mais como um “outsider” da natureza e um risco ao seu equilíbrio, mas como protagonista
e “guardião” de um patrimônio de valor global e “bem comum”. Mas não se avançará no processo
se esse cidadão também não puder perceber esse patrimônio como “a sua própria casa”, asso-
ciado a um sentido positivado e não negativado da natureza, em uma perspectiva de presente e
futuro baseada na afirmação das identidades locais” (FUNDO VALE, 2012, p.48).

Segundo Fundo Vale (2012), o turismo está entre os cinco maiores geradores de receita no mundo e o Brasil, recém-
promovido ao posto de sexta economia mundial, precisa despertar para o potencial de gerar riquezas a partir de suas áreas
protegidas, fazendo com que as pessoas experimentem, positivamente, o turismo em áreas protegidas.
Dessa maneira, parece inevitável a apropriação da população no Parque Estadual do Rio Vermelho, porém, no que diz
respeito ao Camping, o CEPAGRO está preocupado com a forma como essa apropriação ocorre, principalmente relacionado
à geração de resíduos sólidos, uma vez que a quantidade de pessoas sempre traz o aporte do “lixo”. Buscamos uma gestão de
qualidade nesse serviço, a fim de que haja uma mitigação eficiente do impacto ambiental dentro do camping através da gestão
de resíduos sólidos e a educação ambiental.

Educação Ambiental
O trabalho de educação e interpretação ambiental para instituições de ensino atinge diretamente muitas pessoas, como

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


855
mostra a Figura 2. De dezembro de 2013 a dezembro de 2014, contabilizamos mais de 1.000 pessoas atendidas de diversos
bairros da cidade de Florianópolis e inclusive de outros municípios, como: Brusque, São José e Chapecó. De março de 2015 a
junho de 2015, recebemos 455 pessoas. O Quadro 2 apresenta as instituições de ensino e grupos de acampamento que tiveram
atendimento de educação ambiental.

Figura 2. imagens das Atividades com Educação e interpretação Ambiental realizadas no Camping do PAERVE.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
856
Outra ação ligada à educação ambiental no camping do PAERVE foram as oficinas gratuitas que ocorreram durante a
temporada de verão 2014/2015, o material de divulgação dessas oficinas pode ser visualizado na Figura 3.

Figura 3. material de divulgação das oficinas de Educação Ambiental durante a alta temporada 2014/2015 no Camping do PAERVE.

De abril a junho de 2015 iniciamos uma nova fase de oficinas abertas e gratuitas à população, que denominamos “Saber
na Prática”. As oficinas ocorreram aos sábados, das 10 horas da manhã até o meio dia. As temáticas foram: A horta agroecológica;
Práticas de Viveiragem; Compostagem e Gestão de Resíduos Sólidos (Figura 4); Confecção de Telhado Vivo; despolpa artesanal
do açaí da Mata Atlântica (palmito juçara); Astronomia e Agricultura; Trilha ecológica: Conhecendo os Ecossistemas e a Bacia Hi-
drográfica da Lagoa da Conceição; Gastronomia com Plantas Alimentícias não-Convencionais (PANC’s); Plantas medicinais com
o Grupo Quinta das Plantas; Compostagem Doméstica: como implantar e manejar uma composteira para casas e apartamentos.

Figura 4. Uma das oficinas mais requisitadas e apresentadas foi a Compostagem Termofílica.

Em relação à promoção da educação e interpretação ambiental através de cursos gratuitos para instituições, durante o
ano de 2014, realizamos três cursos com a temática “Hortas escolares agroecológicas”, sendo dois destes para 200 professores
da rede municipal de ensino de Florianópolis, ligados ao Projeto Educando com a Horta Escolar e a Gastronomia da Prefeitura
Municipal de Florianópolis (PEHEG/PMF), e outro curso realizado através de parceria com a ESAG/UDESC, que teve a partici-
pação de 30 pessoas de diversos municípios de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.
Em 2015 o CEPAGRO realizou a “Formação em Gestão Comunitária de Resíduos Sólidos Orgânicos”, utilizando os ser-
viços de hospedagem do camping para os participantes que quisessem acampar. O evento nasceu de uma demanda de insti-
tuições e pessoas de diversos estados que conheceram o projeto “Revolução dos Baldinhos” e tiveram o interesse de replicar o
projeto adaptado às suas realidades.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


857
Nesse período ocorreram também estágios que foram divididos em Voluntariado e Curricular. Durante o verão 2014/2015,
foram 25 voluntários que ajudaram nas ações do camping, e na baixa temporada de 2015 foram três voluntários. Os estágios cur-
riculares tiveram 02 integrantes do Instituto Federal Catarinense - IFC de Rio do Sul (SC), durante um período de 45 dias no verão.
De fato, todas essas pessoas acabam incorporando a educação ambiental do camping.
Os estagiários interagem com o viveiro de plantas nativas, que desde maio de 2014, existe como um espaço operacional
e educacional. O período de maio de 2014 até junho de 2015 registrou mais de 2.500 mudas doadas. São doações de pequenas
quantidades por pessoa, para plantarem em suas residências, sítios, praças, enfim, uma prática muito importante que valoriza a
preservação ambiental. E de acordo com Ferreira (2010), o viveiro de mudas dentro do PAERVE deve ser um espaço educador
integrado ao projeto político-pedagógico das escolas vizinhas a unidade de conservação e orientado para apoiar iniciativas de
recuperação dos ecossistemas do parque e região do entorno.

Eventos
Devido à demanda advinda da população por eventos, no ano de 2014 estiveram presentes cerca de 2.180 pessoas e o
título destes podem ser visualizados no Quadro 3:

Em 2015, os eventos reuniram mais de 885 pessoas no camping do PAERVE, sendo o título dos eventos listados no
Quadro 4 e um destes eventos demonstrado na Figura 5:

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
858
Figura 5. Domingo no Parque, evento que reuniu mais de 1000 pessoas e diversas atrações culturais no camping do PAERVE.

Entorno do Parque
O Grupo Alecrim participa em atividades do camping, tais como oficinas e cursos e convida o camping a participar de
atividades que eles promovem junto à comunidade, como a “GRATIFEIRA” – feira solidária de trocas gratuitas entre as pessoas.
Foram quatro edições que ocorreram no bairro São João do Rio Vermelho desde outubro de 2014. O camping fez questão de
participar em todos, levando mudas nativas para doação, informações sobre as atividades e ações realizadas, ou seja, atraindo
a comunidade.
Atualmente, o CEPAGRO contribui com o Grupo Alecrim no planejamento e execução de um sistema de gestão local
de resíduos sólidos orgânicos no bairro, reflexo do curso de Formação de Gestão Comunitária de Resíduos Sólidos Orgânicos,
realizado no camping.
No caso da comunidade Vidal Martins, técnicos do Camping prestam assessoria para desenvolver um sistema de Gestão
Comunitária de Resíduos Orgânicos e para incentivar práticas agroecológicas de agricultura.
Dessa maneira, esses dois grupos buscam autonomia por meio da cidadania, acesso aos direitos sociais e econômicos,
participando de forma ativa, organizada e consciente da construção da vida coletiva no Estado democrático (BONAVIDES; MI-
RANDA; AGRA, 1988).

Considerações Finais
Em um ambiente urbano como a cidade de Florianópolis é muito importante a existência e manutenção de uma unidade
de conservação, permitindo a interação entre as pessoas e o meio natural. Destacando-se principalmente o fato desta estar locali-
zada em um ambiente originário de mata atlântica, que é um dos biomas mais ameaçados no planeta.
O modelo de gestão compartilhada entre FATMA e CEPAGRO no Camping do Parque Estadual do Rio Vermelho, se
mostrou eficiente e nesses 18 meses o mesmo se tornou um espaço público apto para lazer, prática de esportes, piquenique,
eventos sócio-ambientais, trilhas ecológicas, doação de mudas, contato com a natureza, cursos e oficinas. Este local possi-
bilita que crianças, jovens e adultos de diversas culturas e nacionalidades reflitam sobre o seu comportamento na sociedade
e busquem soluções para problemáticas globais. Desta forma, a atuação do CEPAGRO no Camping acontece em 4 eixos: 1)
camping e lazer; 2) educação e interpretação ambiental; 3) eventos sociais e 4) ações comunitárias.
Desde o inicio do trabalho mais de 10.000 pessoas visitaram o Parque. São pessoas de diversas partes do mundo que
levam uma ótima mensagem para seus lares e contribuem para a dispersão de ideias que permitem uma maior harmonia entre
o meio ambiente e o ser humano.
A educação e interpretação ambiental é o principal foco do nosso trabalho e a principal forma de disseminação da nossa

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


859
proposta de trabalho. A área do Parque também é utilizada para a realização de eventos e confraternizações proporcionando
interações entre as pessoas e entre as pessoas e a natureza.
Por fim, um dos objetivos do trabalho do CEPAGRO é atrair a comunidade do entorno para este espaço, que por ser
publico, pertence a elas. Além de atrair estas pessoas também buscamos contribuir para a solução de problemas locais, nos
deslocando para áreas adjacentes ao Parque, fomentando a Gestão Comunitária de Resíduos Sólidos orgânicos e a Agricultura
Urbana.
Portanto, o camping tem se tornado um promissor espaço de referência para o turismo e educação ambiental para todo
Sul do Brasil. Contribuindo diretamente para que as pessoas se percebam como cidadãos ativos no processo de construção de
uma sociedade melhor para todos. Sendo assim, é muito importante que continuem sendo realizados estudos sobre a relação do
ser humano em unidades de conservação.

Referências
BISHEIMER, M. V.; SANTOS, C.; CARLSON, V. E. A Mata Atlântica na Ilha de Santa Catarina. 2ªEd. Florianópolis: Lagoa
Editora, 2013. 272p.

BONAVIDES, P.; MIRANDA, J.; AGRA, W. M. Comentários à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. 7 p.

FERREIRA, F.A.C. Projeto Parque Estadual do Rio Vermelho: Subsidios ao plano de manejo. Florianópolis: Insular, 2010. 196p.

FUNDO VALE. ÁREAS PROTEGIDAS. Série Integração. Transformação. Desenvolvimento. Volume II. 1ªEd. Fundo Vale:
Rio de Janeiro. 2012. 168 p.

SOUZA, J. M.; MARASCHIN, F., CARRIAO, S. L., ANTUNES; E. N.,; PINTO, E. S. Sistema de Mapas para a Web do Inventário
Florístico Florestal de Santa Catarina. Epagri/Ciram Santa Catarina, 2012. Disponível em: <http://ciram.epagri.sc.gov.br/
siffsc/>. Acesso em 21 outubro 2014.

VENTURIERI, G. A. O parque do Rio Vermelho: pelas palavras de seu fundador Henrique Berenhauser. São Paulo: Editora do
Autor. 1ª Ed. 2014.

ANEXO
Links que se referem ao trabalho realizado no camping do PAERVE:
http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/verao/2015/noticia/2015/01/camping-no-parque-do-rio-vermelho-e-opcao-de-ferias-para-
turistas-em-sc.html
http://ecohospedagem.com/narotadasustentabilidade/parque-do-rio-vermelho-trilha-ecologica-e-camping/
http://www.ecovida.org.br/a-rede/nucleos/litoral-catarinense/compostagem-e-abordada-na-teoria-e-na-pratica-em-curso-organizado-pelo-/
http://portal.macamp.com.br/guia-conteudo.php?varId=14
https://www.youtube.com/watch?v=gEs11Egl_CA
https://www.youtube.com/watch?v=Wo2kzO3zuYs
http://noticias.ufsc.br/2015/03/compostagem-em-tratamento-de-residuos-solidos-sera-discutida-em-encontro/
http://educares.mma.gov.br/index.php/reports/view/214
http://www.youtube.com/watch?v=96-8p_vlhRc
http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/geral/dc-na-sala-de-aula/noticia/2014/07/parque-estadual-do-rio-vermelho-oferece-
atividades-de-educacao-ambiental-para-escolas-4552490.html
http://crecheidalinaochoa.blogspot.com.br/2014/09/passeio-ao-camping-do-rio-vermelho.html
http://depaesmeflorianopolis.blogspot.com.br/2014/11/formacao-hortas-escolares.html
http://www.guiafloripa.com.br/agenda/infantil/um-dia-de-camping.php
https://agroecologia.wordpress.com/camping-do-rio-vermelho/
https://campingriovermelho.wordpress.com/category/educacao-ambiental/
https://www.facebook.com/parqueestadualdoriovermelho/posts/515605168580509

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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HAVETÉ NO VIDIGAL: O RELATO DA EXPERIÊNCIA DE UM COLETIVO DE
EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO MORRO DO VIDIGAL,
RIO DE JANEIRO-RJ

Pelacani, Bárbara1; Abreu, Manuela Muzzi de2; Uchôa, Rafaella1; Ximenes, Simone3; Dantas, Thalita3 & Costa, Érika Andrade3

1.Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro barbara.pelacani@gmail.com 2. Universidade Federal do Rio de Janeiro
3. Universidade Federal do Rural do Rio de Janeiro

Resumo
A Haveté Sustentabilidade é um coletivo concebido a partir da percepção da importância de se trazer para a prática o debate crítico
acerca da sustentabilidade e da educação ambiental. Este artigo apresenta uma reflexão sobre a sua criação e suas propostas
direcionadas ao planejamento e realização de cursos e projetos socioambientais. A Haveté tem como base teórica a Educação
Ambiental Crítica, que problematiza os contextos societários em sua interface com a natureza e se inspira em Paulo Freire para a
concepção de suas ações, troca de saberes e reflexões. A experiência no Morro do Vidigal é uma vivência que faz parte do Curso
de Introdução à Sustentabilidade. Este artigo apresenta a metodologia utilizada pelo coletivo para a realização desta atividade, que
pretende trazer diálogos propositivos que sejam capazes de desmistificar o que se entende sobre sustentabilidade.

Palavras-chave: Educação Ambiental, Sustentabilidade, Vivência, Roteiros inclusivos

Introdução
A Haveté Sustentabilidade é um Coletivo que nasceu da iniciativa de três biólogas e educadoras que se conheceram no
Grupo de Pesquisa “Educação Ambiental Desde El Sur” (GEASUR) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio)
e que desenvolve estudos sobre educação ambiental crítica a partir de perspectivas latino-americanas. A formação de um Co-
letivo com a proposta de trabalhar a educação ambiental direcionada à criação de cursos, ações e projetos socioambientais foi
concebida a partir da percepção da importância de se trazer para a prática o debate crítico acerca da sustentabilidade e da
educação ambiental, tornando-o acessível a públicos diversos.
Assim, como primeira proposta, o Curso de Introdução à Sustentabilidade foi criado pelo Coletivo Haveté com o objetivo
de problematizar de forma crítica, coletiva e prática, os conceitos de sustentabilidade, promovendo reflexões e ações através de
vivências e trocas de saberes. Foi iniciado em 2015, com uma proposta pedagógica de Formação em Sustentabilidade, que se
constitui em 8 módulos desenvolvidos ao longo do ano e com uma metodologia onde se destaca a realização de vivências que
possibilitam a interação com diversos contextos e realidades no nosso território e da compreensão da sua complexidade socio-
ambiental. O propósito do curso é trabalhar os conceitos e práticas de sustentabilidade, através de vivências e de experiências
únicas, capazes de desmistificar o que se entende sobre este tema, tão presente em diferentes contextos de nossa atualidade.
A partir disto, o presente artigo tem como objetivo discutir a proposta que fundamentou a criação do Coletivo Haveté e do
Curso de Introdução à Sustentabilidade, além de discutir os resultados da primeira vivência realizada pelo coletivo no Morro do
Vidigal, Rio de Janeiro – RJ, em junho de 2015.
Atualmente, a temática da sustentabilidade vem sendo apropriada por discursos generalistas e pouco contextualizados
que desqualificam os propósitos fundamentais dessa discussão. Diante do atual contexto global no qual a demanda por recur-
sos naturais é maior do que a capacidade do planeta de oferecê-los sem extingui-los, é essencial a formação de pessoas com
competências para atender às demandas ambientais nos mais diversos setores (IRVING; GIULIANI; LOUREIRO, 2008). Neste
contexto, a educação ambiental se faz necessária como ferramenta para o enfrentamento desse desafio.
A partir desta perspectiva, a proposta dos cursos, oficinas, ciclos de palestras e vivências é fundamentada na educação
ambiental crítica, transformadora e emancipatória (LOUREIRO, 2006), envolvendo o trabalho interdisciplinar, conectando estu-
dantes, professores, empresas, ONGs e demais atores sociais interessados na temática da sustentabilidade.
O Coletivo Haveté Sustentabilidade entende a interação com os territórios como um processo pedagógico, que acontece
na troca de experiências, de realidades, de saberes, de conhecimentos e de distintas leituras de mundo, que se associam às

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


861
temáticas e conflitos ambientais, sociais, políticos e econômicos destes espaços.
Nesse trabalho consideramos como referencial teórico a perspectiva crítica no campo da educação ambiental, que bus-
ca contribuir para uma mudança de paradigmas, para a formação de indivíduos e grupos sociais capazes de identificar, pro-
blematizar e agir em relação às questões socioambientais. Essa tomada de posição de responsabilidade pelo mundo supõe a
responsabilidade consigo próprio, com os outros e com o ambiente, sem hierarquizar estas dimensões da ação humana. Para
transformações mais éticas e profundas, são importantes os processos envolvendo questionamentos quanto às formas de desen-
volvimento e aos tipos de sociedade almejada (CARVALHO, 2004).
Dentro da concepção da Educação Ambiental Crítica, Guimarães (2004) propõe:

“[…] uma compreensão (complexa) do real se instrumentalize os atores sociais para intervir nessa
realidade. Mas apenas o desvelamento não resulta automaticamente numa ação diferenciada, é
necessária a práxis, em que a reflexão subsidie uma prática criativa e essa prática dê elemen-
tos para uma reflexão e construção de uma nova compreensão de mundo. Mas esse não é um
processo individual, mas que o indivíduo vivencia na relação com o coletivo em um exercício de
cidadania” (GUIMARÃES 2004, p. 29).

Sob o enfoque crítico, a educação ambiental é definida, ainda segundo Loureiro (2006):

“[…] a partir de uma matriz que vê a educação como elemento de transformação social inspirada
no diálogo, no exercício da cidadania, no fortalecimento dos sujeitos, na superação das formas
de dominação capitalistas e na compreensão do mundo em sua complexidade e da vida em sua
totalidade’ (LOUREIRO 2006, p. 23-24).

Essa tendência traz uma abordagem pedagógica que problematiza os contextos societários em sua interface com a na-
tureza. Por essa perspectiva não é possível conceber os problemas ambientais dissociados dos conflitos sociais; afinal, a crise am-
biental não expressa problemas da natureza, mas problemas que se manifestam na natureza (LOUREIRO; LAYRARGUES, 2013).
As duas últimas décadas testemunharam a emergência do discurso da sustentabilidade como a expressão dominante no
debate que envolve as questões de meio ambiente e de desenvolvimento social em sentido amplo. Em pouco tempo, sustentabi-
lidade tornou-se uma palavra mágica, pronunciada indistintamente por diferentes sujeitos, nos mais diversos contextos sociais e
assumindo múltiplos sentidos. Sua expansão gradual tem influenciado diversos campos do saber e de atividades diversas, entre
os quais o campo da educação.
Há pouco mais de uma década, observa-se entre os organismos internacionais, nas organizações não-governamentais e
nas políticas públicas dirigidas à educação, ambiente e desenvolvimento de alguns países, uma tendência a substituir a concep-
ção de educação ambiental, até então dominante, por uma nova proposta de “educação para a sustentabilidade” ou “para um
futuro sustentável” (LIMA, 2003).
A partir do exposto, o embasamento da proposta vem das pesquisas acadêmicas e coletivas, com a valorização do que
atualmente se chama de coworking, que são trabalhos realizados em parceria, unindo diferentes atores, como academia e so-
ciedade civil engajada em movimentos sociais e ambientais, para que exista na prática um processo pedagógico de troca de
saberes e da construção de conhecimentos em grupo.
Estas parcerias foram constituídas a partir da conexão com a identidade e propósitos da Haveté, na qual os parceiros
atuam como agregadores ao processo colaborativo de trabalho, baseado na visão de que todos os envolvidos, independente-
mente de suas formas de parceria, têm contribuições fundamentais para o processo de aprendizagem e de troca de experiências.
Por isso, mais do que meramente convidar colaboradores, o Coletivo busca desenvolver e propiciar a ação participativa
e autônoma, com relações de confiança e de (re)conhecimento de uma identidade comum. A partir da convivência entre os
parceiros, para conhecer de perto seus trabalhos e metodologia, unem-se os esforços de forma colaborativa gerando elos de
planejamento e redes de atuação, visando à integração de seus projetos aos da Haveté.
No curso de Formação em Sustentabilidade, o módulo introdutório teve como um dos principais parceiros o Coletivo
Verdigal que, através de suas ações, promove a reflexão ambiental comunitária e realiza educação ambiental em espaços popu-
lares. Inserido no Morro do Vidigal, zona sul do Rio de Janeiro, realiza o plantio de hortas orgânicas, atividades de arte educação,

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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promoção da alimentação saudável, design ecológico e sustentável, trabalhando no contexto da educação ambiental de base
comunitária. Desenvolve processos criativos junto à comunidade, como o caso do mapa social, organizado e financiado pelos
próprios moradores e projetos locais.
Assim, a primeira vivência do curso de Introdução à Sustentabilidade foi realizada no Morro do Vidigal, através de diálo-
gos e intervenções junto a moradores, movimentos sociais e coletivos locais, desenvolvendo práticas e debates com o público
participante do curso, fazendo com que os espaços de atuação do Coletivo Verdigal e o território do Vidigal se tornassem espa-
ços de vivência do Coletivo Haveté.
As ideologias trabalhadas pelo Coletivo Haveté vão ao encontro de uma das grandes referências teóricas da pedagogia
crítica, Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém. Ninguém se educa a si mesmo. Os seres humanos se educam mediatizados pelo
mundo” (FREIRE, 1993). O autor considera a importância do trabalho prático e da reflexão sobre o meio que é constantemente
transformado, quando coloca que “há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade dos espaços” (FREIRE, 2009), e esta
reflexão completa as principais fundamentações que orientaram a práxis desta vivência.
Para melhor contextualização e compreensão das atividades realizadas, a seguir é apresentada a metodologia utilizada
com este objetivo e os resultados alcançados a partir das discussões sobre cada etapa da vivência e do debate realizado ao final
do dia.

Metodologia
A primeira Vivência do Curso de Introdução à Sustentabilidade, realizado pelo Coletivo Haveté Sustentabilidade, no dia
13 de junho de 2015, no Morro do Vidigal, Rio de Janeiro/RJ foi intitulada “Educação Ambiental e Sustentabilidade para Roteiros
Inclusivos: o Morro do Vidigal”. Para apresentar aos participantes outro olhar sobre a comunidade do Vidigal, a partir de uma
construção coletiva e colaborativa do conhecimento, foram visitados locais importantes por meio da perspectiva de moradores
locais, que estão envolvidos em ações e projetos socioambientais, culturais e educativos, ligados a movimentos sociais, coletivos
socioambientais e à Associação de Moradores do Vidigal.
A partir do discurso desses atores sociais, a equipe de colaboradores e os participantes tiveram contato com a realidade
local e sua dinâmica pelo viés da inclusão social, buscando não só apresentar os problemas do Vidigal como uma das favelas
do Rio de Janeiro, mas para desvelar e compreender os conflitos existentes no território e vislumbrar suas potencialidades de
desenvolvimento social e ambientalmente justo.
A metodologia foi composta por quatro etapas, sendo a primeira a concepção da atividade em campo, discussão de
seus objetivos e resultados esperados. Foi desenvolvida entre os meses de abril e maio de 2015, quando a equipe da Haveté se
reuniu e idealizou o curso, pensando em realizá-lo em módulos com troca de saberes e vivências de campo. Esta etapa incluiu
a realização do evento “Troca de saberes: O que é sustentabilidade?”, a fim de debater o tema, atrair parceiros para o Coletivo,
lançar a proposta do Curso de Introdução à Sustentabilidade e divulgar a ideia do Coletivo, realizado no espaço de coworking
Catete 921, na cidade do Rio de Janeiro.
Neste evento estiveram presentes cerca de 60 interessados de diversas áreas (biologia, arquitetura, direito, comunicação,
psicologia, artes, educação) em conhecer mais sobre a temática e participar dos debates socioambientais.
A troca de saberes abordou as diferentes perspectivas da sustentabilidade; relatos sobre a cultura milenar da etnia Fulniô,
com a participação do representante indígena Tafiki-a; exibição de um curta-metragem intitulado “Os Bamba”, que foi produzido
pelo Curso de Cinema Ambiental do NUPEM/UFRJ; exposição de imagens e relato de um médico recém-chegado da Amazônia
sobre sua vivência com diversas etnias indígenas; e, por fim, o educador ambiental popular do Coletivo Verdigal relatou sobre a
experiência com projetos sociais na comunidade do Vidigal, introduzindo a vivência que seria realizada na comunidade no mês
seguinte.
A segunda etapa envolveu a organização da Vivência, através de reuniões de planejamento da equipe Haveté com os
colaboradores na UNIRIO e no Vidigal. A divisão de tarefas se deu de acordo com as demandas, principalmente relacionadas
à divulgação, contato com parceiros, definição de conteúdo, elaboração de roteiro e logística. A preparação envolveu estudos e
aulas específicas sobre a temática abordada, como diálogos sobre as perspectivas da Sustentabilidade e a História Ambiental
do Vidigal.
1
www.catete92.com.br

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


863
Além disso, e com grande importância, foram realizadas de forma espontânea as trocas de saberes com a comunidade,
pois, a partir do diálogo com os atores locais, foi possível conhecer diversas visões e práticas socioambientais que se desen-
rolam no território, fundamentais para a concepção da vivência.
A terceira etapa constituiu na realização da própria Vivência no território, que será discutida a seguir nos resultados. A
quarta e última etapa envolveu a avaliação da atividade pela equipe da Haveté e discussão dos próximos passos, incluindo o
repasse dos resultados da primeira Vivência aos participantes e aos colaboradores do Vidigal.

Resultados
A Vivência “Educação Ambiental e Sustentabilidade para Roteiros Inclusivos: O Morro do Vidigal” foi promovida pelo Co-
letivo Haveté no dia 13 de junho de 2015, com a duração de aproximadamente 09 horas. A vivência foi dividida em seis momentos:

1) Apresentação do curso, da equipe e dos participantes


O dia começou com o encontro da equipe com os colaboradores e participantes no Anfiteatro na Praça do Vidigal, onde
Haveté Sustentabilidade apresentou e caracterizou a ideia de (re)pensar a sustentabilidade a partir de diálogos no território, com
base na Educação Ambiental Crítica. A partir dessa breve introdução, o grupo se dirigiu ao mirante à beira-mar para começar o
dia com uma meditação e uma dinâmica de grupo, inspirada nos jogos do “Teatro do Oprimido”, para apresentação dos partici-
pantes e da equipe. Ao final da dinâmica, cada participante discorreu sobre suas expectativas para o dia e foi sugerido que cada
um dissesse uma palavra que representasse a sua imagem sobre o Vidigal, naquele momento.

2) Roda de conversa coma Associação de Moradores do Vidigal


A partir disso, o grupo voltou à entrada do Vidigal e se dirigiu à Associação de Moradores utilizando o meio de transporte
mais comum no local, as Kombis. O presidente da Associação recebeu o grupo e contou sobre a história do Vidigal numa “roda
de conversa”.
Vários pontos foram esclarecidos sobre a questão dos desafios de se viver no Vidigal, sobre os processos de desapro-
priação e a constante luta pela permanência dos moradores. Foi mencionado que o Vidigal foi também um lugar de resistência
contra a ditadura militar, pois na época alguns artistas, intelectuais e outros perseguidos políticos se “refugiavam” no local. Rela-
tou sobre os principais conflitos existentes ao longo da história, passando pela questão do tráfico, que foi mais intensa nos anos
de 1990 e 2000, sobre a questão da segurança pública e do processo de implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
A problemática ambiental local foi abordada de forma ampla, passando pela dificuldade de implantação do saneamento
básico, da constante expansão das construções residenciais e do acesso à informação sobre a educação ambiental. Ainda, o
presidente apresentou informações sobre o trabalho de sensibilização que alguns membros da Associação vêm fazendo acerca
da especulação imobiliária na favela, que envolve a mudança nos padrões residenciais e também socioculturais locais, au-
mentando a população migrante e mudando a configuração das relações sociais e econômicas dos moradores locais com o
espaço. Isto vem ocorrendo em outras favelas do Rio de Janeiro, assim como em outras cidades do Brasil e do mundo.

3) “Valão”: discussão sobre a naturalização do termo e dos problemas do saneamento básico e a


História Ambiental do Vidigal
Depois de finalizado o debate e do esclarecimento das questões colocadas pelos participantes, o grupo se dirigiu ao
Hostel Jaqueira, passando por vielas entre as casas da favela. O ponto de parada foi definido às margens de um córrego poluído e
com pouca vazão, onde a Haveté Sustentabilidade introduziu a discussão sobre a degradação ambiental e poluição dos córregos,
que em alguns casos observados na cidade do Rio de Janeiro, passam a ser chamados de “valão”.
Uma moradora local e filha de um dos pioneiros do Vidigal se interessou pela discussão e contribuiu com seu relato sobre
como era a relação dos moradores com o córrego durante sua infância. Observou como isto se transformou ao longo dos anos,
manifestando sua preocupação com o descaso do poder público e dos próprios moradores em relação à conservação ambiental
da região. Contou das iniciativas de limpeza das margens do rio realizadas pelos moradores.
A equipe Haveté relacionou o depoimento da moradora com a história ambiental do Vidigal, que se iniciou com mu-
tirões comunitários, como relatado pela moradora, em seguida vieram os mutirões de reflorestamento ordenados pela já extinta

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
864
FEEMA. E então se iniciaram os mutirões de reflorestamento organizados pela Secretaria de Municipal de Meio Ambiente, que
existem até hoje e a iniciativa de mutirão comunitário persiste, representada pelo Parque Ecológico Sitiê. Foi ressaltada a im-
portância de não se naturalizar a poluição dos rios, através da denominação “valão” e o processo de degradação ambiental como
responsabilidade exclusiva da comunidade.

4) Hostel Jaqueira: compostagem, hortas comunitárias e slow-food


No Hostel Jaqueira, o Coletivo Verdigal apresentou sua proposta e relatou sobre o processo de educação ambiental popu-
lar que vem desenvolvendo a partir das hortas comunitárias cultivadas nas escolas e creches do Vidigal. Ainda, relatou sobre a
proposta que do Hostel Jaqueira, de residência artística e o trabalho de criação de mapas para o Vidigal.
Está iniciativa vêm sendo aprimorados nos últimos 3 anos, sendo que o mais recente, o “Mapa Vidigal 100 Segredos”, foi
elaborado com financiamento coletivo da comunidade e está em sua 3ª edição.
A alimentação sustentável slow-food, preparada para o almoço do grupo foi também apresentada, com a explanação
dos preceitos deste tipo de alimentação que valoriza a escolha e preparo das refeições como processo de cuidado e reflexão e
debate sobre sua importância, assim como sobre os alimentos orgânicos, seus benefícios e os desafios de sua distribuição na
cidade, especialmente nas favelas.

5) Parque Ecológico Sitiê


Após o almoço, o grupo caminhou até o Parque Ecológico Sitiê, onde seus idealizadores relataram sobre seu protago-
nismo na criação comunitária de um parque a partir da recuperação da área onde havia um lixão, realizando a limpeza do terreno
durante 5 anos, seguida de um reflorestamento e do plantio de hortas.
O Sitiê não se enquadra em uma categoria de unidade de conservação prevista pelo Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC, 2000)2, mas é reconhecido pelos moradores como um parque comunitário, que vem sendo utilizado como
espaço de lazer, pedagógico, turístico e de interação com a natureza.
O grupo conheceu o parque e, no mirante, foi debatida a proposta dos roteiros inclusivos, cujas premissas estariam
baseadas na participação comunitária nos roteiros, possibilitando o contato entre o visitante e o local. Este formato implica na
sensibilização do visitante para conhecer o local de forma aberta, livre de preconceitos e, por parte do morador local, a possi-
bilidade de participar com a proposição de pontos a serem conhecidos e questões a serem discutidas, de modo a explicitar os
conflitos existentes e fortalecer as potencialidades a serem conhecidas no local. Estes pressupostos se diferenciam do formato
do “turismo-safári”, que acontece em algumas favelas do Rio de Janeiro.

6) Dinâmica de encerramento
Após esta discussão, a equipe convidou os participantes a realizarem uma dinâmica final, que foi concebida a partir de
um questionamento levantado por uma moradora do Vidigal, durante as visitas de preparação da vivência, que seria: “o que
vocês vão deixar para o Vidigal”?

A partir dessa questão, os educadores/participantes puderam refletir sobre a transformação de suas impressões sobre o
Vidigal e fazer propostas sobre roteiros inclusivos, resíduos e alimentação saudável para a comunidade. Os participantes foram
organizados em 3 grupos para realizar esta dinâmica final, contando com 10 minutos para a discussão dentro de cada grupo
sobre os temas e mais 10 minutos para cada grupo apresentar suas ideias e debater as propostas coletivamente. As questões
norteadoras para o debate e os resultados da discussão estão apresentados a seguir.

a) Roteiros inclusivos:
As questões norteadoras foram: 1) Qual era sua impressão sobre o Vidigal antes da vivência de hoje? O que mudou? 2)
O que gostaria de conhecer e saber sobre o Vidigal, numa proposta de roteiro inclusivo? Do que sentiu falta? Em que gostaria
de se aprofundar?

2
Lei 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza e dá outras providências. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9985.htm.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


865
A partir dessas questões, o grupo discutiu que a história dos moradores, envolvendo suas histórias de vida, de resistência
e de envolvimento com a luta pela melhoria da qualidade de vida é uma questão de interesse para ser incluída neste tipo de
roteiro. A visibilidade de projetos também foi pontuada como possibilidade de ampliação do alcance dessas propostas se dis-
seminadas para pessoas e meios interessados, por meio do turismo inclusivo.
A integração de atividades entre “o morro e o asfalto” foi colocada dentro da discussão da visão da favela como um ter-
ritório integrante da cidade, não isolado dela. Assim, a interação entre moradores de bairros distintos com o Vidigal, como par-
ticipação em projetos, cursos, atividades de lazer, entre outros poderia ser mais fortalecida e trabalhada de modo colaborativo
ou participativo.
Foram indicadas também as possibilidades de criação de redes para se comunicar o que acontece na favela, em termos
de projetos socioambientais, culturais e educativos para outras cidades e países, gerando um intercâmbio que poderia acontecer
tanto por meio de palestras de moradores do Vidigal em outros espaços, ou de pessoas de fora no Vidigal. Por fim, a sensibili-
zação do turista foi mencionada como ponto chave para a aproximação com a comunidade do Vidigal e para levar para outros
meios a experiência que teve.

b) Alimentação e saúde:
Dentro da temática de alimentação e saúde, as perguntas iniciais foram: 1) O que acha sobre a acessibilidade à alimen-
tação saudável no Rio de Janeiro? 2) Como seria possível expandir esse acesso no caso do Vidigal?
Durante a discussão, os principais tópicos abordados foram a importância de se fortalecer projetos e ideias que já exis-
tem, de forma a agregar pessoas e esforços em uma frente já iniciada em direção a um objetivo comum. “Não é preciso inventar
a roda”! Pensando em longo prazo, a educação coletiva foi apontada como peça-chave para se pensar em alimentação e saúde,
conectando a alimentação com a educação para cozinhar e despertar as experimentações, além da educação para o cultivo dos
alimentos, o que poderia ser concretizado a partir de uma formação técnica voltada para a manutenção e implantação de hortas
comunitárias e orgânicas.
A existência de uma feira orgânica no Vidigal foi mencionada como importante, pois, além de proporcionarem o alimento
de qualidade para a saúde, possibilitam a aproximação com os produtores, sejam esses da cidade ou de outras hortas. Ainda,
foi identificada a necessidade de conexão entre as hortas comunitárias e as feiras orgânicas do Vidigal com o Circuito de Feiras
Orgânicas do Rio de Janeiro e outras redes. Foi citada a ideia da construção de um “Restaurante-escola popular” com os produtos
dos pequenos produtores locais.

c) Resíduos:
Sobre a temática dos resíduos, as questões norteadoras do debate foram: 1) Como você imaginava a problemática dos
resíduos no Vidigal? Sua visão mudou com a visita? 2) Como essa questão poderia ser mais bem trabalhada pela comunidade
(sugestões de projetos e parcerias).
O grupo colocou que consideraram o Vidigal mais limpo do que imaginavam. Identificaram que há um sistema de coleta
de resíduos, mas este precisa ser complementado, utilizando uma abordagem mais eficiente e “inteligente”, que envolva os mo-
radores locais e que traga algum retorno a esses.
Um primeiro passo para isto seria se considerar a realidade e dificuldades da população para tratar do assunto. Foi pon-
tuada também a necessidade de se disseminar na favela informações a respeito do tema. Como sugestões, o grupo identificou
que seria necessário se pensar em uma logística de coleta que minimizasse os esforços empreendidos, de forma setorizada,
com um mapeamento detalhado das rotas e possibilidades de coleta dentro da favela, pensando em uma rede ramificada que
finalizasse em um ponto único em comum. Algumas sugestões foram indicadas, como a formação de uma “brigada de coleta”,
envolvendo os jovens do Vidigal, além da realização de parcerias com ONGs ou outras empresas, com a utilização de motos.
Foi pensado pelo grupo a elaboração de um projeto de recuperação da trilha que leva ao Pico Dois Irmãos, com mutirões
e registros fotográficos. Estes poderiam gerar uma exposição permanente para o próprio parque, com a documentação de
todos os projetos realizados pela comunidade, pensando-se em um museu onde todos possam ver transformações e avanços
alcançados. Ainda, foi indicada a criação de uma associação de catadores no Vidigal, para desenvolverem o trabalho de coleta
associado à reciclagem.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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Uma sugestão geral ligada aos assuntos trabalhados foi a realização de um planejamento participativo para as ações
em todos os temas, envolvendo diversos representantes da comunidade e possíveis parceiros. Os resultados obtidos com a
realização da dinâmica fazem parte de um documento a ser entregue à Associação de Moradores do Vidigal e aos educadores/
moradores que fizeram parte da Vivência, como forma de contribuir para o desenvolvimento de seus projetos na comunidade.
Assim, após a dinâmica a Vivência foi finalizada, com uma confraternização no final do dia no Ateliê de moda do Vidigal.
A seguir, são apresentadas algumas imagens para ilustrar o dia da vivência. Na apresentação do curso foi realizada uma
dinâmica de abertura (Figura 1). O diálogo com o representante da Associação de Moradores foi realizado na própria sede da
associação (Figura 2).

Figura 1. Apresentação do curso, da equipe e Figura 2. Roda de conversa com a Associação de Moradores
dos participantes. do Vidigal

O diálogo com moradores locais realizado no “valão” e no Hostel Jaqueira estão representados nas Figuras 3 e 4.

Figura 3. “Valão”: discussão sobre a naturalização do termo e Figura 4. Hostel Jaqueira: compostagem, hortas comunitárias
dos problemas do saneamento básico e a História Ambiental e slow-food
do Vidigal

As últimas atividades do dia foram realizadas no Parque Ecológico Sitiê (Figuras 5 e 6).

Figura 5. Parque Ecológico Sitiê. Figura 6. Dinâmica de encerramento.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


867
Considerações finais
Neste artigo, que teve como objetivo descrever a proposta da criação do Coletivo Haveté e do Curso de Formação em
Sustentabilidade, além de discutir os resultados da primeira vivência realizada pelo coletivo no Morro do Vidigal, Rio de Janeiro
– RJ, em junho de 2015, foram abordados os principais aportes teóricos que sustentam as práticas do Coletivo e do Curso. Foi
realizada uma análise crítica pela equipe Haveté e por seus colaboradores sobre a experiência da organização e realização da
vivência, e também na avaliação do material produzido a partir da discussão dos temas pertinentes ao contexto do território
estudado.
As atividades teóricas e as vivências propostas pelo Coletivo em diversas realidades e contextos, criadas de acordo com
temáticas definidas, destacam a importância do encontro, através da troca de saberes, e abertura para mudanças, buscando de
forma transversal a construção coletiva do conhecimento e a prática da cidadania como contribuição à sustentabilidade.
A base para a concepção do Curso de Introdução à Sustentabilidade veio da educação ambiental transformadora, eman-
cipatória e crítica. Além disso, a partir de dinâmicas de desenvolvimento pessoal e de trabalhos interdisciplinares, de forma con-
tínua em toda formação. Essa proposta educativa considerou que o meio ambiente vai além do que é comumente concebido como
natureza, sendo constituído também dos espaços urbanos e rurais, ocupados, habitados e transformados pela sua população.
A integração de distintas áreas do conhecimento é uma premissa para a formação de sujeitos autônomos, capazes de
atuar na problemática ambiental, fortemente ligada ao campo social. Considerando-se que o conhecimento é difuso, está em
todos os espaços e indivíduos, foram utilizadas como método as vivências, compostas pelas rodas de conversa, a interação com
elementos naturais e culturais, práticas de yoga para o desenvolvimento pessoal e dinâmicas de integração com base no Teatro
do Oprimido, avaliação coletiva e reflexão crítica, além de ações práticas socioambientais na comunidade do Vidigal.
Desta forma, buscou-se com a realização da vivência, uma aproximação dialógica com questões ligadas a territoriali-
dade, movimentos sociais, direitos humanos, justiça ambiental, questões étnico-raciais, entre outras.
Portanto, vale mencionar que a vivência realizada permitiu constatar a riqueza da construção de um trabalho de forma
colaborativa, agregando pessoas de formações distintas, buscando gerar uma discussão crítica e propositiva sobre temáticas
relacionadas à educação ambiental. A proposta do Coletivo e os desafios de se trabalhar de forma horizontal, respeitando os dife-
rentes tempos e percepções de cada integrante e, ao mesmo tempo, discutindo sobre a melhor forma de tornar real um projeto
comum ensinou a todos vários aprendizados, que servirão de inspiração para a ampliação de redes com o mesmo propósito e
para a organização das próximas vivências do Curso.

Referências
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(Org.). Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília (DF): Edições Ministério do Meio Ambiente, 2004.

FREIRE, P. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1993.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia (29.ª ed.). São Paulo: Paz e Terra, 2009.

GUIMARÃES, M. Educação Ambiental Crítica. In: LAYRARGUES, P. P. (Org.). Identidades da educação ambiental brasileira.
Brasília (DF): Edições Ministério do Meio Ambiente, 2004.

IRVING, M. A., GIULIANI, G. M.; LOUREIRO, C. F. B. Parques Estaduais do Rio de Janeiro: construindo novas práticas para
a gestão. São Carlos: Editora Rima, 2008.

LIMA, G. O Discurso da sustentabilidade e suas implicações para a educação. In: Ambiente e Sociedade. Campinas: Anppas/
Annablume, 2003.

LOUREIRO, C. F. B. Trajetória e Fundamentos da Educação Ambiental. 2ed. São Paulo: Cortez. 2006.

LOUREIRO, C. F. B; LAYRARGUES, P. P. Ecologia política, justiça e educação ambiental crítica: perspectivas de aliança contra-
hegemônica. Revista Trabalho, Educação e Saúde. v.11, n.1., 2013.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, AUTONOMIA DO MODO DE VIDA E
CONSERVAÇÃO AMBIENTAL NA REGIÃO DA SERRA DO CIPÓ/ MG

Lopes, Cristiana Gomes Ferreira1

1. Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professora da Faculdade de Tecnologia SENAC
Minas – Unidade Barbacena, cristianagomeslopes@hotmail.com

Resumo
O presente relato pretende compartilhar a experiência de educação e intervenção do curso técnico em meio ambiente com ênfase
em turismo – CTMAT - da região da Serra do Cipó e os desdobramentos analíticos frutos da análise dessa experiência. Serão
compartilhados aspectos relacionados à estrutura pedagógica e operacional do curso, assim como, sobre o cenário regional da
conservação ambiental no qual está inserido. Já as questões analíticas que serão apresentadas a partir do relato de experiência rela-
cionam-se a centralidade e potencialidade analítica do conceito de modo de vida e suas contribuições na experiência pedagógica
do curso, as especificidades da lógica formal e da lógica dialética na produção do conhecimento científico e, por fim, serão tecidas
considerações sobre o desafio da lógica dialética no processo de ensino-aprendizagem do CTMAT e as possibilidades dessa
lógica para o debate da conservação ambiental.

Palavras-chave: Produção do Conhecimento, Modo de Vida, Lógica Dialética, Conservação Ambiental.

O curso técnico em meio ambiente com ênfase em turismo e a


região da Serra do Cipó: o objeto em análise e seu contexto geográfico
O objetivo do presente relato de experiência é compartilhar a experiência de educação e intervenção do curso técnico
em meio ambiente com ênfase em Turismo – CTMAT, da escola estadual Dona Francisca Josina – EEDFJ, localizada no distrito
da Serra do Cipó, município de Santana do Riacho1, Minas Gerais; assim como as reflexões teóricas formuladas a partir dessa
experiência que é o objeto em análise do presente relato.
As questões teóricas que serão apresentadas, mais adiante, se relacionam a produção do conhecimento científico e
suas relações com os saberes e modos de vida locais, as especificidades da lógica formal e da lógica dialética na produção do
conhecimento científico e, por fim, serão tecidas considerações sobre o desafio da lógica dialética no processo de ensino-apren-
dizagem no CTMAT e as possibilidades dessa lógica em relação às promessas da conservação ambiental. Nesta perspectiva, o
recorte analítico que se apresenta refere-se à experiência do curso técnico já citado que possui uma amplitude regional na Serra
do Cipó, sendo esta região, portanto, o recorte espacial do relato de experiência que será apresentado.
O CTMAT é fruto de um projeto piloto fomentado pela secretaria de educação do estado de Minas Gerais – SEE/
MG - e, no seu primeiro ano de existência, também pela fundação de desenvolvimento da pesquisa – FUNDEP - que viabilizou
a existência da consultoria dos professores da UFMG2 que muito contribuíram na estruturação inicial da grade curricular e do
projeto pedagógico do curso.
Trata-se de um projeto piloto por ser o primeiro curso profissionalizante na área de meio ambiente e turismo oferecido,
gratuitamente, pela SEE/MG e também, por ter sido implantado em um distrito com pouco mais de mil habitantes localizado
em um município de pequeno porte, o que não é comum dentre os projetos educacionais implantados pela referida instituição.
A relevância ambiental e turística da região da Serra do Cipó, reforçada pela presença de diversas unidades de conserva-
ção, como o Parque Nacional da Serra do Cipó – PARNA Serra do Cipó e a Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira – APA
Morro da Pedreira3; foi, sem dúvida, um critério de grande peso para a implantação do curso pela SEE/MG.
Trata-se de um curso com durabilidade de dois anos estruturados curricularmente em quadro módulos. Inicialmente, a

1
No entorno de Santana do Riacho encontram-se os município de Jaboticatubas (localizado na direção sul em relação à Santana do Riacho), Morro do Pilar (a leste)
e Conceição do Mato Dentro (a nordeste) que também serão contemplados no presente relato.
2
Os professores envolvidos nesta consultoria foram Bernardo Machado Gontijo – IGC/UFMG e Márcia Spyer – FAE/UFMG.
3
As unidades de conservação citadas encontram-se representadas no mapa da figura 1 que mostra a localização do PARNA Serra do Cipó e da APA Morro da Pedreira
em relação ao município de Santana do Riacho e ao Distrito da Serra do Cipó.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


869
equipe multidisciplinar era composta por dez docentes das áreas da geografia, biologia, turismo, história, pedagogia e letras,
todos com pesquisas de pós-graduação desenvolvidas ou em desenvolvimento na região da Serra do Cipó. Este foi um dos cri-
térios do processo seletivo, ocorrido em 2009, para compor a equipe do CTMAT. Entendeu-se, assertivamente, que a reunião de
profissionais que já possuíssem um vínculo científico e afetivo com a região seria extremamente oportuna para a realização de
um projeto pedagógico inovador na perspectiva de seus fundamentos epistemológicos.
O que já seria um desafio em qualquer situação tornou-se, com o passar do tempo, um entrave para a realização desse
projeto pedagógico no âmbito da educação pública do estado de Minas Gerais. As condições deficientes em termos de valo-
rização profissional, escassez de infraestrutura e ausência de suporte institucional fez com a que a equipe se desintegrasse no
decorrer dos anos, restando apenas três docentes da equipe original neste ano de 2015, último ano do CTMAT.
Desde o início da sua concepção, o curso foi pensado para ter uma abrangência regional, uma vez que se trata de
uma região com municípios de grande extensão territorial, porém com densidade populacional baixa, e essa seria a estratégia
para democratizar o acesso ao ensino profissionalizante gratuito ao maior número de alunos possível e driblar o esgotamento da
demanda com o decorrer do tempo. Nesta perspectiva, devido à sua localização, às margens da MG 010, a porta de entrada da
região da Serra do Cipó, e às possibilidades das parcerias com a escola estadual local, o distrito da Serra do Cipó foi escolhido
para sediar o curso técnico (Figura 1).

Figura 1. O distrito da Serra do Cipó (listrado), localizado no município Santana do Riacho (contorno preto), está inserido na APA Morro da
Pedreira (laranja) e uma pequena porcentagem inserida no PARNA Serra do Cipó (roxo). Fonte: FILLIPO (2013).

A relevância ambiental e turística do distrito também contribuiu para a definição do local da sede do curso. Como descrito
por LOPES (2009), no distrito encontra-se a portaria principal de acesso ao PARNA Serra do Cipó, em torno do qual se situa a APA
Morro da Pedreira. A APA Morro da Pedreira funciona também, como zona de amortecimento do PARNA Serra do Cipó, sendo
ambas as Unidades de Conservação – UC - de jurisdição do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBIO.
Ainda em relação à relevância ambiental da região, de acordo com FILLIPO (2013) a Serra do Cipó está localizada na
porção meridional da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, e é conhecida pela elevada biodiversidade, alta taxa de endemismo,
abundância dos recursos hídricos e belezas naturais. Neste contexto, as transformações socioespaciais na região do Espinhaço
e, mais especificamente, no município de Santana do Riacho, e a consequente degradação dos recursos naturais, é uma reali-
dade que impulsiona diversas pesquisas na região.

É comum, na Serra do Espinhaço, cadeia montanhosa que vai de Outro Preto (MG) à Chapada
Diamantina (BA), o processo de rápida transformação social e econômica de povoados compostos
por pequenos agricultores após a chegada do turismo. Diversos estudos sobre este assunto foram
realizados em Lapinha da Serra (Gontijo, 2003; Lopes, 2009; Ribeiro, 2013), localizada no mesmo
município que o distrito da Serra do Cipó, ou seja, Santana do Riacho (FILLIPO, 2013, p.30).

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
870
Santana do Riacho é um município de grande extensão territorial que possui 677 Km² e 4.211 habitantes4. O município
situa-se na encosta sudoeste da Serra do Cipó, nome regional da extensa Cadeia do Espinhaço, que corta o estado mineiro
desde o centro-sul até a Bahia, adotando diversas denominações regionais.
De acordo com GONTIJO (2003), em termos de sua geologia e de sua geomorfologia, a região de Santana do Riacho
apresenta dois grandes domínios - os calcários da bacia sedimentar do Grupo Bambuí/Depressão Sanfranciscana (Planalto de
Lagoa Santa de acordo com Kohler, 1989) que abrigam cotas altimétricas mais baixas de trechos da bacia do rio das Velhas e das
bacias do Paraúna e Cipó. E os quartzitos do Supergrupo Espinhaço da Serra do Cipó que abrigam nascentes de vários tribu-
tários dos Rios das Velhas, Cipó e Paraúna, os quais cortam os escarpamentos montanhosos do alinhamento serrano, formando
vários canyons e quedas d’ água.
De acordo com o ICMBIO (2009), o distrito da Serra do Cipó tem os seus limites em áreas com diferentes característi-
cas geológicas e biológicas. Na sua porção sul, onde está localizado o rio cipó o solo arenoso é predominante e a altitude 800m.
Uma característica marcante desta área é a presença, de lagoas marginais em forma de ferradura que nada mais são do que
antigos braços do rio Cipó. Está localizada no município de Santana do Riacho também, uma grande área de campos rupestres.
Esta área, inserida completamente na Serra do Espinhaço, com terrenos rochosos, solos rasos e arenosos, sendo encontradas
áreas com altitude entre 900 e 1500m.
São esses atributos da geografia física que configuram a relevância ambiental da região da Serra do Cipó e que justifi-
caram a implantação do CTMAT na região, assim como, a implantação de diversas unidades de conservação, não somente nes-
sa região, assim como em toda a extensão da Serra do Espinhaço. Os mesmos atributos que configuram ambientes relevantes
para a conservação ambiental, também configuram paisagens muito atraentes para um fluxo cada vez maior de turistas e novos
moradores, que se deslocam para uma região composta por municípios de pequeno porte, no sentido de não apresentarem
infraestrutura básica e turística suficientes, o que torna os problemas ambientais, atrelados ao parcelamento e ocupação do solo,
ainda mais evidentes.
Além desses problemas ambientais, a região experimenta desde 2006, os graves problemas ambientais advindos dos
projetos minerários vinculados à mineradora Anglo American no município de Conceição do Mato Dentro e a mineradora Manabi
no município do Morro do Pilar, ambos localizados na região da Serra do Cipó.
A vulnerabilidade ambiental da região da Serra do Cipó se configura, de forma geral, a partir do crescimento urbano e
de outros impactos advindos das atividades econômicas atreladas ao turismo e a mineração. Juntamente ao crescimento dos pro-
blemas ambientais, cresce também, o apelo conservacionista na região, consubstanciados também, em diversos projetos voltados
para a conservação ambiental desenvolvidos no município de Santana do Riacho e nos municípios do entorno. O CTMAT surge
nesse contexto, como um dos projetos voltados para conservação ambiental que saíram do papel para a realidade da região.
Nesta perspectiva, é nesse contexto geográfico que se encontra a experiência de educação e intervenção do CTMAT,
que começou a funcionar em agosto de 2009 e será encerrado em dezembro de 2015 com a formatura da última turma do curso.
Nesses 6 anos já decorridos, formaram-se quatro turmas, somando 63 alunos formados, número que aumentará com a formatura
de mais uma turma em dezembro de 2015, como já dito. A já citada amplitude regional do curso foi concretizada ao longo desses
anos através do ingresso de alunos de diversas localidades, das áreas rural e urbana, de diferentes municípios no entorno de
Santana do Riacho, especificamente, Jaboticatubas, Morro do Pilar e Conceição do Mato Dentro.
A partir dos recortes analítico e espacial apresentados pretende-se neste artigo mostrar as (im) possibilidades da
produção do conhecimento no que tange à conservação ambiental na região da Serra do Cipó a partir do relato de experiência
do CTMAT, da EEDFJ, localizada no distrito da Serra do Cipó, município de Santana do Riacho, Minas Gerais, às margens da
MG 010, porta de entrada do turismo e da mineração na região da Serra do Cipó.
Vale ressaltar desde já que, para além da promoção da educação profissionalizante em si, gerando a oportunidade do
acesso ao diploma de técnico ambiental, com registro no Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Minas Gerais -
CREA/MG, o objetivo central do projeto pedagógico do CTMAT é promover a conservação ambiental na região da Serra do Cipó
a partir da autonomia do modo de vida das pessoas.

4
Censo IBGE 2013.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


871
A experimentação da experiência: um olhar para a
conservação ambiental na região da Serra do Cipó através do CTMAT
O que estimula a reflexão sobre a conservação ambiental na Serra do Cipó relaciona-se à ineficiência das ações voltadas
para a conservação ambiental na região. Argumentação que é formulada com base em doze anos de imersão e investigação
na região. A experiência de imersão na região da Serra do Cipó abrange a pesquisa realizada entre 2003 e 2009, no distrito5 da
Lapinha, no município de Santana do Riacho e a experiência como professora e moradora do distrito da Serra do Cipó, também
no município de Santana do Riacho, de 2009 até o momento atual.
Ao longo desses anos, a autora do presente relato, atuou e atua como pesquisadora, professora e moradora, tendo a
oportunidade de integrar alguns conselhos municipais do município de Santana do Riacho, como o conselho municipal de defesa
do meio ambiente – CODEMA, o conselho municipal de turismo – COMTUR e os conselhos consultivos do Parque Nacional
da Serra do Cipó e da Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira, compondo suas respectivas câmaras técnicas, além de
participar, direta e indiretamente, de projetos atrelados à temática ambiental e vinculados a instituições com diferentes perfis.
O fato de lecionar em um curso técnico em meio ambiente tornou ainda mais próximo o contato com esses projetos funda-
mentados no discurso da conservação ambiental diluído, por sua vez, em ideias voltadas para a recuperação ambiental de áreas
degradadas, o ordenamento do turismo e o desenvolvimento da educação ambiental. Ideias estas, que já nascem, na dimensão
dos projetos, com problemas epistemológicos e que, quando saem do papel, não alcançam resultados significativos e duradouros.
A referência aos problemas epistemológicos incide sobre a negligência em relação à elaboração teórica que deveria
fundamentar a metodologia em muitas intervenções voltadas para a recuperação ambiental. Os motivos que podem caracterizar
a insuficiência da abordagem epistemológica por parte desses projetos referem-se à incompatibilidade do tempo de planeja-
mento e execução destes projetos em relação ao tempo necessário para realizar imersões etnográficas em campo, desenvolver
conhecimentos geográfico e antropológico sobre o espaço-tempo em questão e, sobretudo, reunir conhecimentos e experiências
empíricas para não enquadrar e classificar as realidades estudadas de acordo com categorias e modelos pré-moldados que
não contribuem muito no processo de construção de identidade entre as intervenções ambientais e as comunidades envolvidas.
Em relação à experiência empírica adquirida a partir de um longo processo de imersão no município de Santana do
Riacho, vale ressaltar, que ela não se restringe aos limites institucionais desse município, indo além dessa delimitação territorial.
O fato de Santana do Riacho ser um município atravessado pela institucionalidade do PARNA Serra do Cipó e da APA Proteção
Morro da Pedreira, regulamentados pelo ICMBIO, o aproxima de outras esferas municipais, uma vez que, as unidades de con-
servação citadas atravessam outros municípios da região.
Desta forma, a institucionalização do espaço e da vida promovida pelo ICMBIO, em nome da conservação ambiental, que
atravessa o município de Santana do Riacho é a mesma que atravessa outros municípios da região, de forma que, em diversos
momentos, as pessoas desses diferentes municípios tem que decidir juntas como lidar com a institucionalidade que os atravessa.
A participação em reuniões internas e públicas da instituição ao longo desses anos contribuiu para a junção de elementos de
amplitude regional para a fundamentação dos argumentos sobre o cenário da conservação ambiental na região que estão sendo
expostos.
Além disso, os já citados seis anos de docência no CTMAT, proporcionou a oportunidade de participar de trabalhos
de campos nos municípios vizinhos e próximos, como Conceição do Mato Dentro, Morro do Pilar e Jaboticatubas. Os trabalhos
de campo que acontecem, semestralmente, são realizados nos mesmos lugares com as diferentes turmas que compuseram e
compõe o curso.
O fato de que o próprio curso possui uma amplitude regional, de forma que foi e é composto por alunos de diferentes
municípios da região, como já considerado anteriormente, também contribui para superar as barreiras territoriais e institucionais,
através do contato cotidiano com os alunos oriundos dos municípios do entorno de Santana do Riacho. Desta forma, e através
de outras experiências empíricas nesses municípios, concretizou-se a oportunidade de uma abordagem sobre a conservação
ambiental de amplitude regional, para além das delimitações institucionais de Santana do Riacho.
O norteamento metodológico da análise realizada sobre a experiência em questão fundamenta-se na observação e
experimentação da prática educacional em questão na análise proposta. Trata-se da observação in locu, isto é, da inserção

5
Até o ano de 2012, Lapinha ainda era classificada pelo poder público municipal como povoado rural. A partir de 2013, a área urbana da Lapinha foi regularizada e a
localidade deixou de ser povoado rural e se tornou distrito.

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
872
direta da pesquisadora no contexto analítico determinado. O fato da autora do relato que se apresenta ser residente na região
permite o contato, a experimentação e a observação cotidiana do modo de vida das pessoas, e dos conflitos destas em relação
aos problemas ambientais e aos projetos de conservação ambiental. A inserção direta no CTMAT, como professora, permite uma
avaliação precisa do desenvolvimento dos alunos no que se refere à instrumentalização teórica e a mudança do posicionamento
político dos indivíduos.
A antropologia, e mais especificamente a etnografia, fornecem os argumentos que legitimam o norteamento metodológico
citado, fundamentado na experimentação do objeto de estudo. Sahlins (1997) ressalta as possibilidades analíticas da experiência
etnográfica, exaltando a importância dessa diretriz metodológica no processo de apreensão de determinada realidade. Contudo,
como alertado por Lefebvre (2007), é necessário estar atento ao risco analítico do pontual6.
Desta forma, no processo reflexivo sobre o CTMAT, sob o ângulo da experimentação da própria experiência, a atenção
esteve voltada também, para as possíveis lacunas da perspectiva etnográfica em relação às representações do espaço, de
acordo com a perspectiva teórica de Lefebvre (2007). Focada nos detalhes da vida cotidiana e do microcosmo das relações, a
experiência etnográfica exalta, analiticamente, os espaços de representação, isto é, o espaço da vida cotidiana e os detalhes das
relações locais; negligenciando por sua vez, as representações do espaço, isto é, as relações mais abrangentes que envolvem o
Estado, os processos de modernização e a modernidade de maneira mais ampla. A espacialização da perspectiva etnográfica
envolve o foco analítico no espaço e no processo de sua produção.
Pensar a experiência do CTMAT a partir da imersão etnográfica, não impede o pensamento conectado à produção do
espaço na região da Serra do Cipó de maneira mais ampla, atrelada a produção capitalista do espaço. Neste sentido, a perspec-
tiva analítica da produção do espaço, para além das relações globais e locais, envolve, inerentemente, a centralidade analítica da
totalidade ressaltada por Lefebvre (1955), Dumont (2000) e Seabra (2003).
No que tange à metodologia etnográfica utilizada, identificada no presente relato como o processo de experimentação
da experiência, a coordenação dos estágios supervisionados do curso permitiu e ainda permite o contato direto com instituições
públicas e privadas da região. Trata-se dos parceiros do CTMAT, que são as instituições que recebem os estagiários. Para ofi-
cializar e acompanhar estas práticas de estágios é necessário uma articulação direta com o poder público e privado, processo
que gera dados analíticos importantes sobre o cenário da conservação ambiental na região.
Esse contexto de inserção profissional no CTMAT e a integração direta no cenário da conservação ambiental na região,
através da inserção em diferentes grupos voltados para essa temática e do estabelecimento de contatos e parcerias com dife-
rentes instituições que trabalham, direta ou indiretamente, com conservação ambiental; foi possível constatar como, em grande
medida, os desafios identificados na experiência do CTMAT no que tange a tirar do papel as ações voltadas para a conservação
ambiental, são também, os desafios de muitos dos projetos de conservação ambiental que se desenvolvem na região.
Os desafios que objetiva-se ressaltar no presente relato são de caráter epistemológico. Desta forma, a atenção se volta
para os problemas epistemológicos dos projetos voltados para a conservação ambiental que surgem na gênese das ideias.
Trata-se das ideias que já nascem, na dimensão dos projetos, com problemas epistemológicos, atrelados, em grande medida à
negligência em relação à operacionalização da lógica dialética. E, também por isso, muitos desses projetos não alcançam resul-
tados significativos e duradouros, no que tange a conservação ambiental.

O projeto pedagógico do CTMAT: centralidade epistemológica
do conceito de modo de vida e o desafio da lógica dialética
De maneira ampla, a proposta pedagógica do curso propõe a autonomia dos saberes locais e do modo de vida das
pessoas pertencentes às comunidades da região. Desta forma, existem estratégias pedagógicas e curriculares para alicerçar a
proposta e sua flexibilidade, como a disciplina âncora do curso, Múltiplas Linguagens, que possui como objetivo a legitimação,
através da instrumentalização dos alunos e da valorização, de diversas formas de produzir e disseminar o conhecimento. A dis-
ciplina opera com formas diversas para apresentar o conteúdo, não se restringindo à produção textual e, valorizando também,
as produções audiovisuais e artísticas de forma geral. Nesta perspectiva, ao longo do curso os alunos têm oportunidades para
serem avaliados através de formas diferenciadas.
6
Lefebvre (2007) alerta para o fato de que o espaço social apoia-se em uma globalidade. Sendo necessário estar atento ao “risco do pontual”, “que separa o que se
implica, isola o que se articula, aceita a fragmentação. Esta argumentação está relacionada a crítica que o autor faz a antropologia. Ele considera que antropologia
se atém profundamente aos espaços de representação negligenciando as representações do espaço. (LEFEBVRE, 2007, capítulo 2).

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


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Outro aspecto que vale ser ressaltado relaciona-se aos Projetos de Intervenção que se caracterizam como o trabalho de
conclusão do curso e possuem uma perspectiva de implantação prática. Desta forma, os projetos são elaborados no intuito da
submissão posterior aos editais de financiamento, sendo as descrições orçamentárias detalhadas de imprescindível importância.
Considera-se que essa perspectiva prática que fundamenta a elaboração dos projetos de intervenção contribui para que a con-
cretude se sobreponha a abstração nos processos analíticos alcançados pelos alunos. Fato que possui suas potencialidades no
que se refere à geração de mudanças na realidade através da produção do conhecimento, mas que possui, também, problemas
no que se refere ao processo da elaboração da crítica e do alcance das questões analíticas da/na realidade.
Ao longo desses anos como professora, pesquisadora e observadora foi possível balizar as potencialidades e os pro-
blemas da prática educativa em questão, levando em consideração o objetivo amplo de promover ações de conservação ambi-
ental através da produção do conhecimento e da autonomia do modo de vida das pessoas da região. Para tanto, foi necessário
compreender o processo de apreensão e de construção de diálogos por parte dos alunos em relação ao conhecimento científico.
A experimentação da experiência do CTMAT permitiu também, certo conhecimento acerca do modo de vida dos
alunos, aspecto tão relevante para se pensar os caminhos possíveis para a conservação ambiental. Na reflexão que alicerça o
relato de experiência que se apresenta, o conceito de modo de vida é importante na medida em que pode contribuir, de forma
significativa, para o debate da conservação ambiental, uma vez, que pode ser muito elucidativo no que tange a apreensão da
realidade analítica.
As possibilidades analíticas do conceito de modo de vida que estão vinculadas ao movimento constitutivo a este concei-
to contribuiu para justificar a escolha teórica embasada nas considerações de Lefebvre (1991). Na perspectiva do autor, pensar
no modo de vida é pensar no movimento entre a vida cotidiana, o cotidiano e a cotidianidade. Trata-se de pensar no modo de vida
sem negligenciar seus diferentes momentos históricos e seus processos de transformação constitutivos, o que implica também, o
pensamento sobre sua gênese, isto é, o momento histórico do qual emerge o modo de vida. Desta forma, a vida cotidiana refere-
se ao momento histórico inicial e remete à gênese do modo de vida. É ela que fornece conteúdo ao que está sendo chamado
de modo de vida. É no âmbito da vida cotidiana que a análise encontra os aspectos que caracterizam o modo de vida enquanto
unidade social. E é pensando sobre a realização do cotidiano e da cotidianidade que pode ser construída a reflexão sobre as
mudanças do/no modo de vida.
Neste sentido, o conceito de modo de vida foi central na construção do projeto pedagógico do CTMAT na medida em
que foi no âmbito da vida cotidiana e dos saberes locais que o projeto pedagógico do curso foi construído em prol da autonomia
dos modos de vida das comunidades da região da Serra do Cipó. O estabelecimento dessa diretriz trouxe perspectivas peda-
gógicas diferenciadas e mais flexíveis em relação àquelas estruturadas, hegemonicamente, pela lógica formal.
Em relação às questões lógicas da produção do conhecimento, a experimentação da experiência no decorrer desses
anos, permitiu também, a observação em relação às formas próprias dos alunos de produzir conhecimento e dos processos de
assimilação deles das lógicas próprias à produção do conhecimento científico, especificamente, a lógica formal e a lógica dialé-
tica. Alguns argumentos sobre a relação entre a lógica e a produção do conhecimento serão explicitados para esclarecer nossas
considerações sobre as possibilidades da lógica dialética para a conservação ambiental.
Vale ressaltar que os processos da produção do conhecimento científico buscam desvendar questões da realidade,
no sentido de melhor compreendê-la. Trata-se, grosso modo, do uso de teorias e métodos científicos na análise da realidade.
Contudo, este processo envolve uma diversidade de relações complexas que devem ser exploradas para que as análises não
se consubstanciem em considerações reducionistas e, portanto, restritas e limitadas analiticamente. Trata-se das relações entre
forma e conteúdo que, por sua vez, desdobram-se em outras questões relacionadas à lógica enquanto mediação entre um e
outro, isto é, a lógica enquanto mediação entre a forma e o conteúdo. Para esclarecer melhor esta consideração, vale ressaltar,
que todo conteúdo concreto ao ser extraído da realidade através de um processo analítico tomará uma forma para que se torne
inteligível e apreensível. Trata-se dos movimentos do pensamento que buscam o entendimento da realidade, proporcionando
formas aos conteúdos concretos.
Lefebvre (1969) ressalta a importância e necessidade da lógica dialética como mediação que se desenvolve superando
as oposições da forma e do conteúdo, do teórico e do prático, do subjetivo e do objetivo. A lógica dialética acrescenta à lógica
formal, a captação das transições, dos desenvolvimentos, da “ligação interna e necessária” das partes no todo. É também nesse
sentido, que se ressalta as possibilidades da lógica dialética para a conservação ambiental.

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Além das considerações teóricas de Lefebvre (1969), foram utilizadas também, as considerações de KOSIK (1976) para
pontuar o significado e o lugar da lógica formal na produção do conhecimento e a necessidade de superá-la através da lógica
dialética. Considerou-se então, a lógica formal como um primeiro momento do processo da produção do conhecimento e ressal-
tou-se a objetividade que perpassa a operação desta lógica como mediação entre forma e conteúdo que, de certa forma, tornam
menos complexos os processos mentais de apreensão da realidade. Neste sentido, ressalta-se maior facilidade, por parte dos
alunos do curso técnico, em apreender este momento da produção do conhecimento. Nesta perspectiva, disseminar a lógica
formal não foi um desafio. Já a construção do movimento que envolve a superação da lógica formal e a apreensão da lógica
dialética, foi identificada como o principal desafio da proposta pedagógica da prática educativa analisada no que se refere ao
objetivo de romper com a “ideologia fatalista” nos termos de Freire (1996) e da geração de transformações na realidade através
da produção de conhecimento e da autonomia do modo de vida.
Nesta perspectiva, o grande desafio, de caráter epistemológico, do projeto pedagógico do CTMAT relacionou-se à
superação da lógica formal e apreensão da lógica dialética no processo de ensino-aprendizagem. Apesar do projeto pedagógico
do curso ter sido elaborado sob os alicerces da lógica dialética, o que acabou resultando em um projeto pedagógico flexível
e atento às questões elementares do modo de vida das comunidades, no processo de produção do conhecimento a partir, so-
bretudo, da elaboração dos projetos de intervenção, a lógica formal não foi superada e a elaboração da crítica à ideologia do
desenvolvimento sustentável não alcançou o amadurecimento necessário para a geração de projetos mais dialéticos e, portanto,
mais oportunos no que tange aos objetivos da conservação ambiental.
Considera-se a critica a ideologia do desenvolvimento sustentável central no debate da conservação ambiental porque
a importância dos fundamentos próprios dos lugares e da modernização capitalista cujo desdobramento foi (e é) a subordinação
da natureza para a reprodução do espaço, como enfatizado por (FERREIRA; FREITAS 2012), são fundamentos teóricos essenciais
para o debate da conservação ambiental e que foram apropriados pelo processo de reflexão apresentado no presente relato. Nesta
perspectiva, compactua-se com os autores citados, a centralidade analítica da crítica à ideologia do desenvolvimento sustentável
que dá suporte à reprodução do espaço e a constatação da incapacidade dessas ideologias sustentarem as promessas construídas.
Se essas ideologias não são oportunas no processo da produção do conhecimento sobre e para a conservação ambien-
tal, faz-se necessário conhecê-las na profundidade dos seus fundamentos epistêmicos e superá-las através da operacionalização
da lógica dialética nos movimentos do pensamento que buscam alcançar a realidade concreta. O fato do processo da produção
do conhecimento na elaboração dos projetos do CTMAT ter se estancado em um momento anterior à superação da lógica for-
mal, apreensão da lógica dialética e elaboração da crítica à ideologia do desenvolvimento sustentável, foi um dos motivos para
os projetos não alcançarem os resultados esperados, no que se refere, primeiramente, a materialização das ideias, isto é, ao
primeiro passo de conseguir tirar do papel a ideia para implantá-la na realidade. Para além do primeiro passo, para que as ações
geradas, a partir das ideias projetadas, deem certo, no sentido de alcançarem resultados significativos e duradouros para a con-
servação ambiental, é imprescindível que as projeções das ações superem o nível epistemológico dos discursos enrijecidos nas
promessas do desenvolvimento sustentável.

A (des) esperança da conservação ambiental: a autonomia do


modo de vida e as impossibilidades da experiência e das intervenções
Se por um lado, a produção do conhecimento na perspectiva da construção da crítica e das contra propostas foi um
desafio não superado na experiência pedagógica do CTMAT, é válido ressaltar que à ênfase no modo de vida no processo da
elaboração do projeto pedagógico foi uma estratégia extremamente assertiva no que se refere ao envolvimento dos alunos com
a temática e com as atividades propostas ao longo da experiência. O foco epistemológico no modo de vida na construção da
estrutura pedagógica do curso contribuiu muito para que a experiência obtivesse sucesso no que tange ao fomento da autonomia
do modo de vida a partir, grosso modo, da valorização da identidade e do fortalecimento da autoestima dos indivíduos e dos seus
sentimentos de pertencimentos as suas comunidades. A mudança na perspectiva profissional dos indivíduos e a composição
mesmo que tímida, de funções atreladas à gestão ambiental na região, também foram resultados significativos que devem ser
exaltados nesse momento. Entende-se, desta forma, que algum legado para a conservação ambiental irá permanecer através
dos indivíduos transformados em suas visões do mundo e fortalecidos pela autonomia dos seus modos de vida. O que, talvez,
não seja suficiente para reverter os rumos da degradação ambiental na região.

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


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Em relação aos projetos de intervenção elaborados pelos alunos, menos de 5% dos projetos, isto é, apenas 3 de um
montante de 63 projetos elaborados conseguiram dar o primeiro passo e sair do papel. Algumas ações foram concretizadas, não
sem muitos conflitos. Contudo, o que vale ressaltar, é que nenhuma das ações desses projetos obteve resultados positivos no
que se refere à continuidade e execução do projeto na íntegra e de forma plena. Os motivos que levaram ao engavetamento de
diversos projetos muito interessantes e potencialmente revolucionários do ponto de vista da perspectiva epistemológica local da
sua elaboração, uma vez que foram elaborados por pessoas pertencentes aos próprios locais onde as intervenções foram pro-
jetadas; referem-se, sobretudo, a incompatibilidade epistemológica dos projetos de intervenção em relação aos editais e fontes
de financiamento para os quais foram submetidos.
Como estratégia de amarração final do legado analítico do relato de experiência apresentado, o presente texto será
finalizado com a exposição das três questões epistemológicas centrais que foram tratadas. Considera-se que são questões que
podem ser interessantes para outras experiências pedagógicas similares, como também, para contribuir com o debate sobre a
conservação ambiental de maneira mais ampla.
A primeira questão se refere ao fato de que há aspectos particulares nas elaborações teóricas e nas metodologias que
precisam ser contemplados no processo analítico sobre a conservação ambiental, sendo o conceito de modo de vida essencial-
mente estratégico para a produção do conhecimento nessa área. Desta forma, considera-se que a transplantação de modelos,
metodologias e estratégias de conservação ambiental entre lugares com realidades espaço-temporais diferentes, implica ne-
gligência em relação à elaboração teórica e diminuição das chances em relação à geração de resultados positivos por parte das
estratégias de conservação ambiental. Outra questão refere-se à supervalorização dos procedimentos técnicos em detrimento
da elaboração teórica nos processos de criação das metodologias voltadas para a conservação ambiental. Nesse sentido, con-
sidera-se a hegemonia da sobreposição da lógica formal em detrimento da lógica dialética nesses processos.
Esta segunda questão leva a terceira, relacionada à apreensão e operacionalização da lógica dialética, como percurso
necessário para a elaboração de estratégias adequadas para a conservação ambiental. Neste sentido, a negligência em relação
à investigação teórica e a apreensão da carga conceitual dos termos que compõe as metodologias voltadas para a conservação
ambiental, pode ser um grave problema, amplamente reproduzido, no que se refere ao alcance de resultados positivos por parte
das ações oriundas de tais estratégias. Por fim, assim como em relação à experiência do CTMAT, no que tange a realização dos
projetos voltados para a conservação ambiental, considera-se que o desafio epistemológico da apreensão e operacionalização
da lógica dialética é um problema generalizado no cenário da conservação ambiental na região da Serra do Cipó.

Referências
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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das transformações do Bairro do Limão. Tese (Livre-docência), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

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PROMOÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA GESTÃO AMBIENTAL PÚBLICA: A
FORMAÇÃO DE GESTORES AMBIENTAIS NO ICMBIO1

Fontana, Alessandra1; Martins, Jerônimo Carvalho1; Cunha, Cláudia Conceição1; Santin, Laci1; Fabiano, Fátima2 & Dino, Karina1

1.Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade alessandra.fontana@icmbio.gov.br 2.SOBRAP

Resumo
O presente artigo trata da estruturação e integração dos processos formativos em gestão sociambiental no ICMBio e do impacto
em suas atividades finalísticas. Por meio da recuperação do histórico de cada formação: Curso de Educação na Gestão Pública da
Biodiversidade, Ciclo de Gestão Participativa e Curso de Gestão de Conflitos, buscou-se evidenciar a importância da integração
entre elas e apresentar uma nova estrutura para realizar a formação dos gestores na temática socioambiental. Esse processo teve
início em 2013, culminando, em 2015, em um processo formativo unificado, pautado na Educação Ambiental Crítica e com a finali-
dade qualificar a atuação do ICMBio junto à sociedade, promovendo a participação e o controle social na elaboração e execução
de políticas públicas e buscando a diminuição das injustiças e assimetrias socioambientais.

Palavras-chave: Educação Ambiental Crítica, Participação Social, Gestão Ambiental Pública, Gestão Participativa, Controle Social
e Cidadania.

Introdução
As demandas dos diversos setores da sociedade (organizações governamentais e não-governamentais, comunidades,
movimentos sociais, setor produtivo, dentre outros) para que os órgãos ambientais desenvolvam ações educativas são bastante
amplas e sobre as mais variadas temáticas. No Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), grande
parte desta demanda é voltada para a conservação de espécies da fauna e da flora e para os serviços de uso público, como a
visitação. No senso comum, é corriqueira a associação da educação ambiental à transmissão de comportamentos considerados
“ecologicamente corretos” e ao uso de tecnologias menos impactantes ao meio, em geral de forma individual, em que cada um
faz a sua parte, visando conservar os atributos da natureza, cada dia mais ameaçada pelo “homem”2.
Paralela e complementar a esta visão, está a associação direta da educação à escolarização, em que a escola seria o
espaço exclusivo de aprendizagem e formação da sociedade, onde as pessoas, em especial as crianças, por ainda estarem
em processo de formação, aprenderão técnicas e comportamentos adequados para, individualmente, salvarem a natureza e,
consequentemente, o futuro do planeta.
É inequívoca a importância do trabalho educativo junto às crianças no espaço escolar e também fora dele, assim como
todos devem ter ações conscientes em sua relação com o meio ambiente. No entanto, para um órgão de Estado, com a respon-
sabilidade de fazer gestão de problemas e conflitos decorrentes do acesso e uso dos recursos ambientais, torna-se questionável
o alcance de formas de intervenção educativas que não estejam voltadas à resolução desses conflitos, mas restritas à realização
de atividades centradas em si mesmas e, em alguns casos, estranhas à realidade social dos envolvidos.
No contexto atual, de hegemonia dos interesses econômicos em detrimento dos valores socioambientais, com a conse-
quente fragmentação da vida social e degradação do patrimônio natural, a prática educativa ambiental necessita estabelecer
relações entre a base estrutural da sociedade. Isto significa considerar seus aspectos sociais e políticos, bem como seus condi-
cionantes históricos, superando o pragmatismo tecnológico e comportamental, recorrente em experiências de educação ambi-
ental isoladas do contexto histórico-social onde são desenvolvidas. Conforme Loureiro, Layrargues, & Castro (2002):

1
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autarquia criada pela Lei no 11.516/2007, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e integrante do
Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), com a função de executar as ações do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), podendo propor,
implantar, gerir, proteger, fiscalizar e monitorar as Unidades de Conservação (UC) instituídas pela União e fomentar e executar programas de pesquisa, proteção,
preservação e conservação da biodiversidade e exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das UC federais.
Homem visto como ser “abstrato”, eminentemente desajustado na natureza. “A figura do ‘homem abstrato’, que tanto é vítima como causador da crise ambiental,
permite que se omitam as causas primeiras da crise ambiental, e, de imediato, soluções que poderiam ser apresentadas no âmbito do coletivo e da política,
estruturando-se no âmbito do indivíduo e da técnica.” (LAYRARGUES, 2002, p. 177).

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“Tomada como práxis social, a Educação Ambiental expressa, reproduz e produz a dinâmica so-
cial e suas determinações, o que torna seus objetivos e diretrizes obrigatoriamente indissociáveis
do movimento ambientalista e do processo educativo. Pensar a prática educativa ambiental isolada
de um contexto específico e de sua história é fornecer um caráter predominantemente instrumen-
tal a algo que tem a finalidade de construir um cidadão consciente, capaz de agir no seu espaço
de vida, bem como entendê-lo em processos interativos e interdisciplinares. A cidadania plan-
etária, plena e crítica, cerne da Educação Ambiental, impõe reformulações ao processo educativo
brasileiro e a incorporação de conhecimentos recentes no campo da discussão ambiental. Exige
a participação nos espaços sociais, a solidariedade, o senso de responsabilidade individual e
coletiva, o respeito ao diverso e ao tradicional, ao global e ao local e, principalmente, o respeito à
Vida em todas as suas manifestações”.

Inicialmente, uma educação vinculada ao contexto vivenciado pelos grupos sociais e dirigida à resolução dos problemas
ambientais foi explicitada na I Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental, da UNESCO, realizada em Tbilisi no
ano de 1977. De acordo com o documento de Tbilisi:

“a Educação Ambiental deve ser orientada para a comunidade. Deverá envolver o indivíduo num
processo ativo de resolução de problemas que permita resolvê-los no contexto das realidades
específicas estimulando a iniciativa, o sentido da responsabilidade e o empenho de construir um
futuro melhor. (sic) deveria suscitar uma vinculação mais estreita entre os processos educativos
e a realidade, estruturando suas atividades em torno dos problemas do meio ambiente que se
propõem para comunidades concretas e enfocar a análise de aqueles, através de uma perspectiva
interdisciplinar e globalizadora que permita uma compreensão adequada dos problemas ambien-
tais” (UNESCO, 1978).

Desde a década de oitenta, o princípio dessa educação ambiental voltada à comunidade, objetivando “capacitá-la para a
participação ativa na defesa do meio ambiente” está presente na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei no 6.938/81). A mesma
define a educação ambiental como “processos por meio dos quais os indivíduos e a coletividade constroem valores sociais,
conhecimentos, habilidades, atitudes e competências para a conservação do meio ambiente” e incumbe aos órgãos integrantes
do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) “promover ações de educação ambiental integrada aos programas de
conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente” (BRASIL, 1981).
Conforme Loureiro (2006), “as proposições críticas admitem que o conhecimento é uma construção social, historica-
mente datada, não neutra, que atende a diferentes fins em cada sociedade, reproduzindo e produzindo relações sociais,
inclusive as que se referem à vinculação entre saber e poder”. Portanto, a participação ativa da coletividade na defesa do meio
ambiente, efetivando a democracia participativa, passa pela superação das assimetrias da sociedade, incluindo as relações de
saber e poder.
Dessa forma, é possível contribuir para a superação das assimetrias a partir do desenvolvimento de competências, com
a aquisição individual e coletiva de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias à gestão consciente e responsável dos
recursos ambientais, por meio de processos pedagógicos de formação que fortaleçam a capacidade crítica e interveniente dos
setores tradicionalmente excluídos do processo decisório (IBAMA, 2006).
Nesse sentido, a institucionalização de um processo educativo voltado à gestão pública da biodiversidade, tendo como
pressuposto o mandato jurídico outorgado ao Poder Público e voltado à diminuição das desigualdades sociais, com o intuito de
desenvolver as competências necessárias para o exercício da cidadania e o controle social pelas populações mais vulneráveis
socioambientalmente, requer uma concepção pedagógica que contemple estes princípios.
É nessa linha, que o ICMBio vem trabalhando em seus processos formativos ligados à gestão socioambiental, desde 2010.

O processo formativo em Gestão Socioambiental no ICMBIO


No ICMBio, três anos após sua criação em 2007, surgiu uma primeira iniciativa de formação na área socioambiental: o
Ciclo de Capacitação em Gestão Participativa de Áreas Protegidas, por iniciativa de uma parceria do ICMBio com a Agência de
Cooperação Alemã Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) e o Programa Áreas Protegidas da Amazônia

VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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(ARPA). Para isso, utilizando-se das experiências dos cursos que vinham sendo executados para os gestores de Unidades de
Conservação no âmbito do Programa ARPA e de educadores que atuavam com Educação Ambiental no Instituto, chegou-se a
um primeiro formato de curso, que contava com uma carga horária de 272 horas distribuídas em módulos de ensino presenciais,
intercâmbios, e execução de projetos de intervenção pelos participantes (LUZ et al., 2011).
Desde o início, buscou-se dar continuidade e resgatar a experiência da educação ambiental na gestão pública, cons-
truída por educadores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no período de 1992
a 2007, através da vivência de servidores do ICMBio que haviam passado por esse processo de formação, aliado a um forte
enfoque na facilitação dos processos de gestão.
Além disso, eram abordadas metodologias que contribuíssem para a participação e para a construção do aprendizado
pela prática. Em sua primeira edição o curso foi ministrado por uma equipe de consultores, com o apoio desses servidores. No
decorrer dos anos, o curso foi completamente absorvido pela equipe do ICMBio, sendo cada vez mais internalizado, bem como
contextualizado e adequado às necessidades da gestão ambiental pública executada pelo instituto.
A previsão, dentro dessa formação, da realização de projetos de intervenção local, intercâmbios e seminários de monito-
ria, além da apresentação de trabalhos de final de curso, mostrou-se uma iniciativa que muito viria a contribuir com o alcance dos
objetivos do curso e para o aprimoramento das competências a serem alcançadas pelos educandos.
No ano de 2011, o ICMBio realizaria então a primeira edição do Curso de Formação em Educação Ambiental na Gestão
Pública da Biodiversidade, fundamentado nos princípios da educação crítica e na perspectiva de que o gestor adquira conheci-
mentos sobre gestão ambiental e sobre elementos constituintes da prática educativa, de maneira a ser capaz de planejar e coor-
denar processos educativos em diferentes contextos socioambientais, utilizando procedimentos adequados para inserir a educa-
ção no cotidiano das ações de gestão, prática esta conhecida como Educação no Processo de Gestão Ambiental (IBAMA, 2006).
Este primeiro curso teve como coordenador pedagógico convidado, o professor José Silva Quintas, educador respon-
sável pela realização de vinte e quatro “Cursos de Introdução à Educação no Processo de Gestão Ambiental Pública”, realizados
pela extinta Coordenação Geral de Educação Ambiental (CGEAM/IBAMA), entre 1997 e 2006, que formaram 890 educadores
vindos de órgãos públicos e da sociedade civil (CGEAM/IBAMA, 2007).
É nesta linha que os Cursos de Formação em Educação Ambiental na Gestão Pública da Biodiversidade, desenvolvidos
por uma equipe de educadores do ICMBio, após 2011, se ancoram: nas bases filosóficas e conceituais da educação que toma
o espaço da gestão ambiental pública como locus privilegiado de construção de conhecimentos, habilidades, atitudes, valores,
ações e práticas, objetivando o controle social no ordenamento do uso dos recursos ambientais na sociedade (SANTIN et al., 2013).
A partir da realização do Curso de Formação em Educação Ambiental na Gestão Pública da Biodiversidade, com a for-
mação de mais gestores e parceiros institucionais em concepções e práticas educativas junto aos processos de gestão ambiental
pública, a educação ambiental do ICMBio teve a oportunidade de se fortalecer como instrumento de gestão no órgão, deixando
de ser uma prática isolada de alguns educadores, em sua maioria oriundos das formações e experiências desenvolvidas junto ao
Ibama, para se firmar como Coordenação de Educação Ambiental no Instituto.
No ano de 2012, como uma iniciativa de se capacitar servidores na temática de conflitos territoriais em unidades de
conservação, a Coordenação de Gestão de Conflitos Territoriais - COGCOT ofereceu um Curso de Elaboração de Termos de
Compromisso. Já em 2013, houve a primeira edição do Curso de Gestão de Conflitos propriamente dito, fruto da parceria com a
GIZ, que contou com a colaboração de um consultor com experiência em resolução de conflitos. No ano de 2014, em sua última
edição, com o intuito de que o ICMBio se apropriasse da metodologia e a adequasse à realidade da gestão ambiental pública, a
exemplo do que ocorreu no Ciclo de Gestão Participativa, alguns dos servidores envolvidos nos processos formativos da gestão
socioambiental fizeram o curso em um formato voltado à formação de instrutores na temática.
Hoje, é no âmbito da Coordenação Geral de Gestão Socioambiental (CGSAM) que ocorrem os processos formativos
relacionados à gestão socioambiental. Seu escopo é a interface entre diferentes ações e atividades do ICMBio junto à sociedade,
no contexto nacional, estadual e regional, nos processos de criação, implementação e gestão das Unidades de Conservação e
nas ações de pesquisa aplicada desenvolvidas pelos seus Centros de Pesquisa e Conservação. Esta concentra como coordena-
ções vinculadas as áreas de Educação Ambiental e Capacitação Externa, Gestão Participativa e Gestão de Conflitos Territoriais,
e seu objetivo é o de promover o diálogo e institucionalizar um conjunto de políticas relacionadas à gestão territorial, conservação
e desenvolvimento socioambiental, fundamentado nos princípios da Educação Ambiental (ICMBio, 2015).

06: Educação para a sustentabilidade/ecodesenvolvimento e cidadania: experiências de aprendizagem social


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Dessa forma, os cursos existentes no âmbito da Coordenação Geral de Gestão Socioambiental, até 2014, eram o Ciclo
de Gestão Participativa, o Curso de Educação Ambiental na Gestão Pública da Biodiversidade e o Curso de Gestão de Conflitos,
que consistiam em formações isoladas com alguns pontos em comum.
O atual contexto da formação socioambiental no ICMBio vem se estruturando para a integração dos processos formativos
voltados para a área social, qualificando a atuação dos servidores nesta área e reforçando o conceito socioambiental no Instituto.
Desde 2010, onde as formações se davam de maneira “isolada”, até hoje, houve uma evolução para um processo formativo cons-
truído a partir de uma base conceitual comum que perpassa todas as linhas temáticas, e que se desdobra em ações concretas
que qualificam e geram impactos positivos na gestão ambiental pública, não apenas no Instituto, mas também nos demais órgãos
do SISNAMA e na sociedade civil em parceria com esses órgãos e com o ICMBio.
A identidade político-pedagógica deste processo constitui-se com base na Educação Ambiental Crítica e Emancipatória
(LOUREIRO, 2004) e sua identidade operacional na prática da gestão ambiental pública. Tal processo educativo tem como su-
jeitos os servidores do ICMBio e parceiros institucionais que atuam ou possuem interfaces com as UC e Centros de Pesquisa
do ICMBio, tais como membros dos conselhos de UC, comunitários, beneficiários, atingidos ou residentes nas UC ou em seu
entorno, gestores públicos, representantes de organizações não governamentais e de entidades parceiras, entre outros (SANTIN
et al., 2013).
Desde 2013, por iniciativa das equipes docentes do Curso de Educação Ambiental e do Ciclo de Gestão Participativa,
teve início um extenso processo de discussão interna com vistas a aprofundar a base conceitual dos docentes envolvidos nos pro-
cessos formativos da CGSAM, que culminou com uma oficina interna, em março de 2014, a qual, entre outros encaminhamentos,
traçou as bases para o fortalecimento da formação socioambiental e de integração entre os processos (Figura 1).

Figura 1. Esquema da organização do processo formativo CGSAM, resultante da oficina de março de 2014
Fonte: “Recomendações para organização de mestrado profissional a partir do processo formativo CGSAM” (FABIANO, 2014).

Em 2014, iniciou-se de fato a unificação da formação dos gestores (aqui entendidos como atores que executam ou influ-
enciam a gestão ambiental pública) em um módulo inicial único denominado Fundamentos da Gestão Socioambiental, que trata
dos princípios instituintes da gestão ambiental desenvolvida pelo Estado e do papel dos servidores públicos e da sociedade na
construção de espaços de participação3 e controle social para a melhoria das condições de qualidade de vida da população,
conforme apregoa o artigo 225, da Constituição Federal. Como concepção pedagógica, foi definida a Educação Crítica, base do
3
Entende-se por participação social “o processo social que gera a integração entre diferentes atores sociais na definição do espaço comum e do destino coletivo”
(LOUREIRO, AZAZIEL & FRANCA, 2008, p. 26).

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Curso de Educação Ambiental do ICMBio.
Como parte desse processo, inicialmente houve a necessidade de se investir na formação dos servidores para que es-
tes, na sua atuação junto à sociedade, pudessem desenvolver ações organizadas e planejadas. Por ser um processo educativo
crítico, que desenvolve seu conteúdo teórico a partir dos contextos reais de atuação dos gestores no seu território, com ações
concretas no plano de ação institucional, esta formação vai além da capacitação per se dos servidores. O diálogo teoria-prática
se constitui numa práxis educativa ambiental, permitindo ao educando a aplicabilidade dos conhecimentos trabalhados por meio
do planejamento e da execução de projetos de intervenção local – cada qual no seu escopo de atuação, mas com base no mesmo
fundamento da promoção da participação social nos instrumentos de gestão ambiental.
Para que essa integração dos processos formativos fosse alcançada, um grande desafio se instalou, pois apesar de tra-
balharem na mesma agenda socioambiental (Curso de Educação Ambiental, Ciclo de Gestão Participativa e Curso de Gestão
de Conflitos), os servidores que compunham as equipes docentes desses cursos, distinguiam-se em sua práxis dentro de cada
linha de formação. Porém, os temas e ações eram convergentes, caracterizando-se, portanto, em grupos diferentes pensando
sobre uma práxis e uma agenda comum. Isto ocorre, pois quando se trabalha em grupo, estamos lidando com um mundo de
subjetividades e complexidades que são processadas no âmbito individual e coletivo.
Pichon-Rivière (1983) considera que grupo não é um mero somatório de indivíduos, mas se constitui como uma nova
identidade, com leis e mecanismos próprios e específicos e assim, com essa nova identidade grupal, passa-se por fases de
desenvolvimento, as quais expressam em si necessidades, tensões e crescimento específicos.
Nesse sentido havia três grupos com crenças, funcionamentos e identidades específicas e, ao somarem esforços em prol
de um processo formativo único, não bastava terem uma agenda socioambiental e temas em comum, era necessário que uma
nova identidade de grupo se formasse, alterando todo o seu funcionamento, crenças e práxis.
Foram necessárias várias oficinas, que aconteceram durante o primeiro semestre de 2014, para possibilitar, por meio de
processos de comunicação e aprendizagem, uma interação continuada, onde os integrantes pudessem estabelecer vínculos e,
nessa dinâmica do grupo, ocorrer o que Sartre chama de “processo de interiorização recíproca”. Esta, por sua vez, marca, junto
com a transformação dos interesses comuns em “interesses em comum”, a passagem da série ao grupo e cujos fenômenos
Pichon-Rivière (1983) conceitua como sendo a passagem da afiliação à pertença.
É então, a partir da necessidade do grupo, que se estabelece o vínculo e que, por sua vez, possibilita assentar objetivos
comuns e se propõe alcançar a realização de uma tarefa. Neste caso, a tarefa cumprida foi a construção coletiva de uma estrutura
para o processo formativo da CGSAM (Figura 2) e dos cursos que a compõem, com um módulo introdutório denominado “Fun-
damentos da Gestão Socioambiental”, requisito comum para as formações: Curso de Educação Ambiental na Gestão Pública da
Biodiversidade (3a edição); Ciclo de Gestão Participativa - Participação Social na Gestão da Biodiversidade (5a edição) e Curso
de Gestão de Conflitos Socioambientais na Conservação da Biodiversidade (Formação de Instrutores) que foram realizados no
segundo semestre de 2014, com exceção deste último, tendo desdobramentos em 2015, com um seminário conjunto de monito-
ramento dos projetos em execução pelos educandos e previsão de seminário de encerramento para outubro desse mesmo ano.

Figura 2. Foto do esquema de organização da 3a edição do Curso de Educação Ambiental e da 5a edição do Ciclo de Gestão Participativa.

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Ao enfrentar e vencer as fases de um desenvolvimento grupal4, estabeleceu-se entre os integrantes do grupo que compõe
o processo formativo da CGSAM uma comunicação efetiva, através de um ouvir ativo e atento e da aceitação mútua, em que es-
ses “agentes” propiciaram a coesão grupal e, assim, criaram-se condições para o estabelecimento da confiança.
Yalom & Leszcz (2006 apud MOTTA 2013) definem coesão de grupo como sendo:

“um circuito, onde primeiro é preciso estabelecer a confiança. Assim, quando essa tiver sido ins-
talada, o grupo consegue expressar livremente seus pensamentos, suas ideias, seus segredos,
seus sonhos, seus desejos, suas aspirações e sua história de vida para, em seguida, emergir a
empatia, a aceitação e aprovação fechando o ciclo, a confiança é fortalecida, tornando o grupo
coeso” (YALOM; LESZCZ, 2006 apud MOTTA 2013, p.35).

Outro desafio foi promover e manter a interação entre os grupos de trabalho dos docentes, uma vez que os participantes,
como servidores do ICMBio, estão lotados nas diversas e distantes regiões em todo o Brasil. Para tanto, foram e continuam sendo
utilizados os recursos disponíveis através de web conferência, chats, grupos de discussão, compartilhamento de documentos, etc.
Essa integração entre o corpo docente visando a unificação dos processos formativos culminou, em 2015, na criação de
um único curso chamado Curso de Gestão Socioambiental, com três linhas de atuação, a saber: Educação Ambiental na Gestão
Pública da Biodiversidade (4a edição); Ciclo de Gestão Participativa - Participação Social na Gestão da Biodiversidade (6a ed-
ição) e Gestão de Conflitos Socioambientais na Conservação da Biodiversidade, que possuem em comum, além do módulo
introdutório Fundamentos da Gestão Socioambiental e de tarefas em plataforma de Educação à Distância, um Seminário de Moni-
toramento de Projetos e um Seminário de Encerramento, bem como a elaboração e execução de um Projeto de Intervenção Local.
Considerando a finalidade institucional do ICMBio de promover o desenvolvimento socioambiental, os objetivos desse
processo formativo unificado consistem em: a) contribuir para a formação de servidores do ICMBio, e outros atores sociais en-
volvidos com a conservação da biodiversidade, para atuarem na Gestão Ambiental Pública a partir de uma compreensão crítica
do contexto histórico e sociopolítico no qual esta se situa e dos desafios inerentes à proteção do patrimônio natural e promoção
do desenvolvimento socioambiental; b) estimular e qualificar a atuação crítica e consciente do Gestor e outros atores sociais nos
seus territórios de atuação; c) estimular a articulação, em diferentes escalas, entre gestores e outros atores sociais, para a inter-
venção qualificada nos seus territórios de atuação.
São descritos abaixo o escopo de cada linha de formação, constituintes do Curso de Gestão Socioambiental.
A linha de Formação em Gestão Participativa – Participação Social na Gestão da Biodiversidade tem como objetivos
específicos: a) Ampliar e qualificar a participação social na elaboração e implementação dos diferentes instrumentos de gestão
ambiental; b) Contribuir para a promoção de processos de integração das Unidades de Conservação no contexto regional; c)
Instrumentalizar os servidores para a atuação em processos participativos na gestão ambiental; d) Aprimorar a comunicação e
o diálogo entre os diversos atores envolvidos na gestão ambiental; e) Estimular a prática de monitoramento, avaliação, registro e
divulgação de processos da gestão participativa.
Com isso, pretende desenvolver nos sujeitos a competência de conduzir processos que aprimorem a participação social
na gestão de Unidades de Conservação e dos trabalhos desenvolvidos pelos Centros de Pesquisa do Instituto Chico Mendes,
considerando o contexto sociocultural e os princípios da gestão adaptativa, de forma ética, crítica e comprometida.
A linha de formação em Educação Ambiental na Gestão Pública da Biodiversidade, por sua vez, tem os seguintes objeti-
vos específicos: a) Contribuir na formação e ampliação do corpo de educadores ambientais do ICMBio, demais órgãos do SIS-
NAMA, comunidades e parceiros possibilitando o desenvolvimento de competências para formular, executar, monitorar e avaliar
processos educativos com grupos sociais no contexto territorial; b) Construir processos de ensino-aprendizagem que proporcio-
nem reflexões sobre as tensões inerentes à prática social e seus reflexos sobre a gestão socioambiental para a conservação da
biodiversidade; c) Desenvolver ações educativas, utilizando estratégias de ensino-aprendizagem que estimulem a criticidade,
autonomia e intervenção de grupos sociais no processo de gestão da biodiversidade; d) Contribuir para o fortalecimento dos de-
mais instrumentos da Gestão Ambiental Pública, por meio da qualificação dos atores sociais envolvidos na sua implementação;
e) Fomentar espaços de articulação entre educadores para fortalecimento das ações de Educação Ambiental no ICMBio e entre
4
Schutz (1958) apud MOSCOVICI (1975) descreve 3 fases (necessidades interpessoais) de desenvolvimento grupal: fase de inclusão, em que ocorre a necessidade
de ser aceito pelo outro; fase de controle, em que está presente a necessidade de ser reconhecido pela competência e responsabilidade e fase da afeição, com a
necessidade de sentimentos e reconhecimentos mútuos.

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atores sociais relacionados à gestão ambiental para intervenção qualificada no contexto territorial; f) Possibilitar que o cursista
se torne apto a construir e implementar projetos de educação ambiental no contexto territorial; g) Fortalecer a implementação do
monitoramento e avaliação de resultados dos projetos de educação ambiental; h) Estimular a reflexão sobre o papel da comuni-
cação como instrumento em processos educativos.
Com isso, as competências a serem desenvolvidas junto aos educandos são as de conhecer e compreender o contexto
socioambiental em que está inserida a gestão das unidades de conservação e de desenvolver processos educativos junto a gru-
pos sociais relacionados com a conservação da biodiversidade, contribuindo para o aprimoramento da participação social nos
instrumentos da gestão ambiental pública.
A formação em Educação Ambiental, ao desenvolver uma Ação Pedagógica utilizando estratégias de ensino-aprendiza-
gem que estimulam a criticidade, a autonomia e a intervenção dos grupos sociais no processo de gestão da sociobiodiversidade,
se propõe a construir processos educativos que proporcionam reflexões sobre tensões inerentes à prática social, tais como:
objetividade-subjetividade, individualidade-coletividade, necessidade-possibilidade, desejo-realidade, o eu e o outro, bem como
reiteração de valores no plano das atitudes como solidariedade, diálogo, lealdade, cooperação em lugar da competição, respeito
ao outro, à diferença e a todas as manifestações da vida, incorporando o uso prudente e cuidadoso dos recursos ambientais, que
devem caracterizar uma ordem social justa, democrática e sustentável.
Já a Linha de Formação em Gestão de Conflitos Socioambientais, tem por objetivo específico promover a capacitação
de servidores públicos para atuarem nas diversas situações conflituosas que permeiam a gestão das Unidades de Conservação
e a execução das políticas de conservação da biodiversidade. E pretende desenvolver junto aos educandos as competências
relacionadas a conhecer e compreender conceitos e métodos para análise de conflitos relacionados às atividades inerentes à
gestão das Unidades de Conservação e à execução das políticas de conservação da biodiversidade, por meio da identificação
dos elementos constituintes do conflito, da análise de atores e da proposição de estratégias de interação e gestão.
Uma característica peculiar desse processo formativo do ICMBio é o fato do mesmo articular o processo de formação
profissional dos servidores públicos, em concordância com a Política Nacional de Capacitação do Governo Federal, com a
qualificação e execução direta da atividade finalística dos servidores nas suas regiões de atuação. Um elemento indissociável
desse processo de formação é o desenvolvimento de ações concretas, como práxis educativa, realizadas no contexto de gestão
local dos participantes, onde teoria e prática se efetivam em um processo sistemático, ordenado e progressivo, ao ritmo dos
participantes, de maneira que estes possam ir descobrindo os elementos teóricos e aprofundando-os de acordo a seus avanços
pessoais. Como resultado, a atuação dos servidores, e a ação finalística do Instituto como um todo, tende a ir se qualificando dia
a dia, durante e após o curso de formação.
Outro resultado desse processo de integração dos cursos voltados à gestão socioambiental é o fortalecimento da Coorde-
nação Geral de Gestão Socioambiental, através da maior articulação entre as coordenações a ela vinculadas, possibilitando uma
melhor compreensão interna dos processos que a constituem, bem como de suas interfaces e necessária integração. Também
houve maior integração entre as equipes pedagógicas responsáveis pela implementação dos cursos voltados à gestão socioam-
biental do ICMBio.

Conclusão
Desta forma, todo esse processo tem gerado grande aprendizado institucional no que se refere ao planejamento e imple-
mentação de processos formativos e, principalmente, na melhoria das ações finalísticas, relativas à atuação direta dos gestores
no cumprimento das funções do ICMBio, bem como da articulação entre os processos da CGSAM e demais processos do
instituto. No entanto, o resultado mais esperado com relação à integração entre esses cursos é o fortalecimento da gestão so-
cioambiental nas ações finalísticas, ou seja, por meio da implementação da educação ambiental, da gestão participativa e da
gestão de conflitos de forma mais qualificada, pautada na Educação Crítica e voltada para o alcance da justiça ambiental e da
conservação da sociobiodiversidade.
Em suma, a integração dos processos formativos na área socioambiental tem por finalidade qualificar a atuação do ICM-
Bio junto à sociedade, promovendo o controle social na elaboração e execução de políticas públicas, por meio da participação
social na gestão dos recursos ambientais e nas decisões que afetam a sadia qualidade do meio ambiente e a diminuição das
injustiças e assimetrias socioambientais.

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DIAGNÓSTICO DO DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADES NO PARQUE MUNICIPAL
SÃO BARTOLOMEU, SALVADOR/BA, PELAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO DE
SEU ENTORNO

Pereira, Tiaro Katu1; Pellin, Andrea2, Reis, Jussara Christina3 & Pellin, Angela3

1. Universidade Federal do Paraná; 2. Universidade Federal de Santa Catarina; 3. Instituto Arvorar

Resumo
O Parque Municipal São Bartolomeu (PSB) abrange um importante remanescente de floresta imerso em uma região densamente
urbanizada, e sofre diversos impactos devido à urbanização sem planejamento e realização de atividades irregulares em seu interior.
Visando orientar propostas que ampliem o envolvimento da comunidade com o parque, foi realizado um diagnóstico sobre o desen-
volvimento de atividades no PSB pelas instituições de ensino localizadas em seu entorno. Para isso as instituições foram identificadas
e selecionadas, e foram aplicados questionários aos seus gestores, professores e alunos. Os resultados indicaram que o parque
vem sendo pouco utilizado pelos professores, alunos e escolas de seu entorno. Embora a natureza do local motive as visitas, a falta
de segurança e infraestrutura compromete a utilização do Parque.

Palavras-chave: Educação Ambiental, Parques Urbanos, Uso Público.

Introdução
O Parque São Bartolomeu (PSB) está situado na borda leste da Baía de Todos os Santos, entre o Subúrbio Ferroviário
e a BR 324, na capital do Estado da Bahia, Salvador. Foi criado pelo Decreto Municipal nº 4.590/74 abrangendo um importante
remanescente de Mata Atlântica da região, com 75 ha, incorporado no Sistema de Áreas Verdes e Espaços Abertos de Salvador
(Lei Municipal no 2.549/73) e incluído na Área de Proteção Ambiental Estadual da Bacia do Cobre/São Bartolomeu (Decreto nº
7.970/01).
Os estudos realizados para o plano de manejo do parque identificaram a existência de pelo menos 205 espécies de plan-
tas, sendo três consideradas ameaçadas de extinção e duas endêmicas da Mata Atlântica. Para a fauna, estima-se a existência de
pelo menos 14 espécies de mamíferos, 108 espécies de aves, sendo uma ameaçada e cinco endêmicas da Mata Atlântica; seis
espécies de anfíbios e oito de répteis, sendo uma espécie de anfíbio considerada vulnerável (CONDER, 2013).
A área do parque, bem como a região do seu entorno, também possui um grande valor histórico, cultural e cênico.
Trata-se de um dos mais significativos monumentos negros do estado, considerado sagrado para religiões de matriz africana, e
que fora palco de lutas libertárias do povo baiano como, por exemplo, a batalha de Pirajá e a independência do Brasil na Bahia
(IRVING, 2011).
No entanto, o PSB enfrenta uma série de desafios por se tratar de uma floresta imersa em uma região densamente ur-
banizada em um contexto de baixa efetividade das ações do poder público (FORMIGLI, 1998), carente em infraestrutura e for-
necimento de serviços básicos de apoio à população. Como consequência, tem-se uma floresta que sofre intensa pressão sobre
seus recursos naturais, sendo registradas atividades como extração de madeira, coleta de frutos, ervas e folhas, caça, pesca,
que juntamente com o isolamento do fragmento e a matriz urbana circundante afetam a conservação da biodiversidade no local
(CONDER, 2013).
Sabe-se que nas décadas de 1970 e início de 1980 o PSB contava com alguma infraestrutura e recebia intensa visitação
(com relatos de até 500 pessoas em um dia), principalmente associada aos rituais de religiões afro-brasileiras, mas também por
moradores do entorno para recreação e contemplação. Contudo, o extenso período de abandono da área pela gestão pública,
associada ao aumento da criminalidade da região afastaram seus visitantes. Aos poucos, o parque foi tornando-se um local
considerado inseguro e passou a ser utilizado por poucos moradores, pessoas que coletam recursos em seu interior e alguns
praticantes de rituais afro-brasileiros, que se concentram mais em suas bordas (CONDER, 2013).
As recentes intervenções de recuperação de alguns dos principais atrativos do PSB realizadas por meio do Projeto de
Urbanização e Desenvolvimento Integral de Áreas Carentes no Estado da Bahia - Projeto Viver Melhor, bem como a construção

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do Centro de Referência São Bartolomeu e dos Centros de Cidadania e Cultura nos bairros de Pirajá e Ilha Amarela, devem con-
tribuir para mudar essa realidade e oferecer a infraestrutura necessária para auxiliar na consolidação das ações socioeducativas
no PSB (CONDER, 2013). Esse contexto também evidencia as demandas de inclusão social que são crescentes pelo processo
de mobilização social e organização comunitária, em curso na região (IRVING, 2011).
A educação ambiental busca evidenciar a complexidade inerente à relação entre o ambiente concebido como natural e
o ambiente construído, considerando tanto os aspectos biológicos e físicos, quanto sociais, econômicos e culturais (DIAS, 2004).
É reconhecida como uma importante ferramenta de sensibilização, construção de conhecimento e inclusão social nos proces-
sos de gerenciamento de territórios. Neste sentido, ela assume uma posição estratégica de planejamento e gestão de áreas
protegidas, a exemplo do SNUC, que concebe em seu instrumento legal (Lei nº 9.985/2000) a educação ambiental como um dos
compromissos sociais presentes em todas as categorias de manejo de unidades de conservação. Para Vasconcelos (2006) as
áreas naturais apresentam significativa relevância para o desenvolvimento de programas de educação ambiental, uma vez que
constituem verdadeiros laboratórios ao ar livre que oferecem oportunidades únicas para a (re)aproximação das pessoas aos am-
bientes naturais, possibilitando reflexões, troca de saberes e aquisição de novos conhecimentos, além de despertar sentimentos
de pertencimento, contribuindo no processo de integração entre ser humano e natureza.
Vale destacar que por se tratar de uma área protegida urbana, o PSB apresenta um grande potencial de interação e
sensibilização de visitantes e moradores do entorno. Segundo McNeely (2001) um dos maiores valores das áreas protegidas
urbanas reside, justamente, no fato de estarem próximas à áreas densamente ocupadas. Isso confere a elas o papel de vetor de
integração com a sociedade, especialmente se estiverem preparadas para receber visitantes, proporcionando uma experiência
agradável e educativa aos mesmos (PELLIN et al. 2014). Uma área protegida urbana gerenciada e preparada para receber e
interagir com os diversos atores sociais, é uma poderosa ferramenta na construção de um grupo político que possa atuar em
defesa da causa conservacionista (MENEZES e MENDES, 2001; TRZYNA, 2014). Afinal, é nas cidades que vivem os principais
gestores públicos, representantes dos grandes veículos de comunicação, empresários, políticos, e demais atores que compõem
o rol dos tomadores de decisão.
Este trabalho tem o objetivo de caracterizar a situação atual e o potencial para estabelecimento de projetos ou programas
de educação ambiental voltados para instituições de ensino formais da região. Para isso foram elencados atrativos considera-
dos de interesse para realização de atividades de educação ambiental e identificadas as instituições de ensino do entorno e os
projetos relacionados à educação ambiental. Também foi realizada uma análise da percepção dos professores e alunos destas
instituições em relação ao PSB.

Material e Métodos
Para a caracterização da educação ambiental no PSB foram realizadas entrevistas junto ao gestor do parque, assim
como demais técnicos da Superintendência de Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Salvador, e junto aos funcionários da
Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia - SEDUR e da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado
da Bahia - CONDER. Adicionalmente foram realizados levantamentos de dados secundários relacionados aos projetos de edu-
cação ambiental no PSB e seu entorno imediato. Para isso foram feitas consultas a artigos, teses, dissertações e livros referentes
à temática educação ambiental e PSB e foram analisados relatórios e documentos técnicos fornecidos pela CONDER e pela
Superintendência do Meio Ambiente da Prefeitura de Salvador.
Os atrativos com potencial para ações de educação ambiental no parque foram mapeados e caracterizados através de
visitas a campo, sendo realizados registros fotográficos e anotados aspectos de interesse, seu potencial para educação ambiental
e estado de conservação.
A identificação das instituições de ensino localizadas no entorno imediato do PSB foi feita a partir de consultas aos sítios
das Secretarias Municipal e Estadual de Educação, Secretaria Estadual de Meio Ambiente, Superintendência do Meio Ambiente
(Municipal) e o banco de dados do Mapeamento da Formação em Organização Cultural no Brasil elaborado pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA). A partir do levantamento preliminar das instituições de ensino do entorno do PSB, estas foram ma-
peadas e contatadas para agendamento de visitas e entrevistas com professores e alunos a fim de caracterizar sua atuação em
projetos de educação ambiental e interesse em desenvolvimento de projetos futuros.
Durante as visitas às instituições de ensino, que ocorreram em julho de 2012, foram apresentados os objetivos do diag-

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Durante as visitas às instituições de ensino, que ocorreram em julho de 2012, foram apresentados os objetivos do diagnóstico
para os representantes das instituições e realizadas entrevistas com base em questionários contendo perguntas fechadas e
semiabertas visando caracterizar aspectos gerais da instituição, projetos de educação ambiental desenvolvidos na região, a
possível interação dessas instituições com o PSB, o conhecimento e percepção dos professores sobre o PSB e o conhecimento
e percepção dos alunos sobre o PSB (questionários aplicados a alunos de uma sala escolhida aleatoriamente em cada escola).
Foram registradas as coordenadas geográficas das instituições e os dados coletados nas entrevistas com os questionários
foram tabulados em planilhas para as analises quantitativas. Ao todo foram visitadas 13 instituições de ensino, situadas em quatro
bairros do entorno do Parque, sendo estes: Alto Terezinha, Ilha Amarela, Pirajá, e Plataforma. O nome e localização das institui-
ções visitadas estão apresentados na Figura 1.

Figura 1. Localização das instituições de ensino avaliadas no entorno do PSB, Salvador-Bahia.

Resultados e Discussão
Caracterização da Educação Ambiental e dos Atrativos de Interesse do PSB
A partir dos dados obtidos por meio de entrevistas junto aos representantes de diversos órgãos envolvidos com a gestão e
planejamento do PSB, verificou-se que este não possuía um programa de educação ambiental e nem desenvolvia ações pontuais
na época do diagnóstico.
Os funcionários do PSB relataram que no passado, por volta dos anos de 1970 e 1980, o Parque recebia a visitação de
diversos grupos - como escolas, universidades, praticantes de religiões de matriz africana , entre outros – vindos, além do próprio
Subúrbio Ferroviário, de diferentes pontos da cidade. Os funcionários cumpriam também um papel de condutores de visitas e
de trilhas, explanando sobre a história local, assim como a importância e o significado da área como sítio sagrado para algumas
religiões, cujo uso era bastante presente na época. Ainda assim, tais atividades não se encontravam inseridas em um programa
de visitação/educação sistematizado.
Com o decorrer dos anos, o número de funcionários foi reduzido e equipamentos e infraestrutura ficaram obsoletos, inter-
ferindo diretamente na manutenção do local. Essa situação associada a diversos fatores externos, como a intensificação da proble-
mática urbana na região, contribuiu para a drástica redução da visitação. Agravando a situação, na época do diagnóstico, o PSB
não dispunha de infraestrutura mínima para o desenvolvimento de ações educativas o que restringia muito a sua prática no local.
O potencial do local para realização de atividades de educação ambiental e patrimonial, no entanto, é reforçado pelos
inúmeros pontos de interesse que foram identificados na área, listados na Tabela 1.

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Como pode se observar, os atrativos do PSB são inúmeros, no entanto essas áreas necessitavam de ações de recu-
peração e manejo visando estabelecer condições mais adequadas à visitação e que propiciem a realização de atividades de
educação ambiental no local. Essa situação foi minimizada recentemente, a partir das intervenções do Projeto de Urbanização e
Desenvolvimento Integral de Áreas Carentes no Estado da Bahia - Projeto Viver Melhor (SEDUR/CONDER/BIRD, 2010). A Praça
de Oxum, as Trilhas Principal e do Retorno foram revitalizadas, foram construídos o Centro de Referência São Bartolomeu e os
Centros de Cidadania e Cultura nos bairros de Pirajá e Ilha Amarela. Essas intervenções devem contribuir para a consolidação
das ações socioeducativas no PSB e implementação de ações educativas previstas para o parque (CONDER, 2013).
Ressalta-se que o PSB constitui-se como uma área de grande interesse, principalmente para as populações residentes
no Subúrbio Ferroviário de Salvador, seja pelo seu valor histórico, cultural e ambiental quanto pelo seu valor socioeconômico
conforme pôde ser constatado nos levantamentos do “Meio Antrópico” e de “Turismo” do seu plano de manejo. Neste sentido,
tornam-se imprescindíveis ações que propiciem a maior aproximação do parque e das populações que vivem em seu entorno,
bem como seu envolvimento em processos educativos com enfoque à questão ambiental.

Caracterização das Instituições de Ensino do Entorno do PSB e


Projetos de Educação Ambiental
As 13 instituições avaliadas distribuem-se em quatro bairros localizados no entorno do PSB. No bairro Plataforma, foi
avaliado o maior número (6), seguido pelos bairros Pirajá (4), Ilha Amarela (2), e Alto da Terezinha (1). Exceto as escolas do
bairro Ilha Amarela que são particulares, todas as outras pertencem à rede pública, estadual ou municipal. Dentre as instituições
analisadas, 11 oferecem ensino fundamental, nove ofertam ensino de jovens e adultos e apenas uma delas possui ensino técnico
e profissionalizante.
Sobre os projetos educativos desenvolvidos, nota-se que as instituições de ensino direcionam suas atividades, preferen-
cialmente, para as áreas de ‘Meio Ambiente’, ‘Direitos Humanos’, ‘Identidade Étnica’, e ‘Arte e Cultura’, mas também aparece-
ram, em menor número, temas como ‘Evasão Escolar’, ‘Cidadania’, ‘Geração de Renda’, ‘Paz e Violência’, ‘Esporte e Lazer’ e ‘Al-
fabetização’. A abordagem de temas variados, adaptados à realidade dos envolvidos, constitui-se como importante oportunidade
para ações educativas para o PSB, já que tais temas encontram-se intrinsecamente relacionados ao contexto socioambiental
do parque e seu entorno, possibilitando a troca de experiências e o reconhecimento de que os problemas ambientais também
abrangem as dimensões sociais, históricas, culturais, políticas e econômicas (FERRARO JUNIOR, 2005).
Quanto à utilização do parque para atividades educativas (Tabela 2), identificou-se que três escolas do bairro Pirajá de-
senvolvem periodicamente ou já desenvolveram atividades no PSB, já no bairro Plataforma, duas desenvolvem ou desenvolveram

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atividades no parque. Ao considerar que as escolas encontram-se relativamente próximas ao parque, o índice de envolvimento
pode ser considerado baixo, pois escolas avaliadas nos bairros Ilha Amarela e Alto da Terezinha nunca desenvolveram atividades
educacionais no PSB.
As atividades identificadas consistem predominantemente em visitas anuais e ações pontuais sem continuidade e sem
um planejamento de utilização frequente da área, ainda, nota-se uma maior intensidade de utilização das instituições localizadas
em suas imediações . No entanto, mesmo as instituições que nunca realizaram atividades no PSB demonstraram interesse em
utilizá-lo para atividades de educação ambiental, principalmente devido ao valor histórico, cultural e ambiental da área, e a facili-
dade de se trabalhar temas relacionados ao meio ambiente.

O interesse demonstrado pelas escolas em melhor aproveitar a área do PSB é uma oportunidade, tanto para os alunos
quanto para o parque. As escolas são ambientes ideais para a realização de atividades de educação ambiental, onde podem ser
incluídas em projetos pedagógicos, tornando possível trabalhar com cada aluno um sentimento de pertencimento com a área.
Através destas atividades também se espera que cada aluno transmita o conhecimento adquirido, conscientizando as pessoas
com as quais convive da necessidade de preservação do meio ambiente (MIORANDO et al., 2005).
Quanto aos projetos de educação ambiental, 10 foram registrados nas escolas e colégios localizados em três bairros do
entorno do parque, Plataforma, Pirajá e Ilha Amarela (Tabela 3). Destes, em 2012, seis encontravam-se em andamento e quatro
estavam encerrados, sendo três em andamento e dois encerrados no bairro Pirajá, três em andamento e um encerrado em Plata-
forma, e um projeto encerrado na Ilha Amarela. Destaca-se que os projetos mapeados não necessariamente envolvem o PSB.

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Todas as instituições desenvolvem ou desenvolveram projetos abrangendo o entorno do parque, com destaque para
uma no bairro Plataforma, cujas atividades também abrangem outros bairros do Subúrbio Ferroviário de Salvador. A viabilização
destes projetos ocorre por meio de parcerias com empresas, ONGs e, principalmente, com instituições da comunidade, presen-
tes em quatro projetos. Três projetos ainda apresentaram parcerias com instituições públicas.
Ao se tratar da temática dos projetos desenvolvidos pelas instituições, no bairro de Pirajá são abordados 10 temas (Re-
síduos sólidos, Biomas; Meio Ambiente; Cidadania; Biodiversidade; Atividades Físicas; Ecoturismo; Artesanato; Reciclagem; e
Musica). As instituições de Ilha Amarela abordam oito diferentes temas em suas atividades (Água; Saneamento Básico; Meio Am-
biente; Biodiversidade; Saúde; Reciclagem; Sustentabilidade; e Higiene), e as do bairro Plataforma abordam sete temas (Meio
Ambiente; Geografia; Matemática; Reciclagem; Preservação; Alimentação; e Olericultura). O tema ‘Meio Ambiente’, conforme a
expectativa foi o mais citado, seguido por ‘Reciclagem’. O principal público alvo eram crianças, incluídos em todos os projetos,
e jovens, incluídos em praticamente todos, exceto na Escola Peri Pim Pim do bairro Ilha Amarela que oferece somente educação
infantil. O público adulto apareceu envolvido em seis dos 10 projetos avaliados. Além dos alunos, alguns projetos envolveram
moradores das comunidades, familiares, funcionários, professores e catadores de material reciclável.
A análise dos temas abordados pelas instituições demonstra que estes vão ao encontro dos pressupostos da educação
ambiental, abrangendo conteúdos vinculados à realidade e às questões que envolvem os moradores e o local que residem. Essa
característica permitirá que os indivíduos percebam e se envolvam com seu entorno, adotando uma postura que minimize ou
erradique os problemas ambientais (TRAJANO et al., 2012).
Dos projetos em andamento em 2012, cinco envolvem as áreas do PSB nas atividades, cujas instituições e grau de rela-
cionamento com o parque estão descritos na Tabela 4. Além destes, um sexto projeto já encerrado envolveu o PSB em suas
atividades e foi desenvolvido pelo Colégio Estadual Cézare Casali, com visitação para pesquisa e registros fotográficos.
Os dados demonstram que o parque, mesmo não sendo a temática central dos projetos de educação ambiental, ainda
é utilizado como “laboratório ao ar livre” para as pesquisas e explanação dos conceitos abordados. Nesse sentido, observa-se
uma preocupação de determinados projetos em chamar a atenção para a importância de protegê-lo. Esse dado é extremamente
positivo, pois indica uma preocupação em abordar o PSB nos projetos desenvolvidos nas escolas, mesmo que indiretamente.

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Conforme Oliveira (2009), as áreas protegidas têm potencial singular para a realização de processos educativos, prin-
cipalmente para os professores e estudantes. A presença de uma UC em uma região é um elemento facilitador na abordagem
da temática ambiental por parte dos professores do ensino formal, por proporcionar espaços para vivências educativas sobre a
biodiversidade conservada in situ.

Percepção e Conhecimento dos Professores e Alunos de


Instituições de Ensino do Entorno em relação ao PSB
Para a avaliação da percepção dos estudantes em relação ao PSB, foram aplicados cento e setenta e oito (178) ques-
tionários aos alunos de sete colégios do seu entorno, sendo quatro no bairro Plataforma, dois no bairro Pirajá e um no Alto da
Terezinha. A maioria dos entrevistados pertence ao ensino fundamental (63%) e os demais, ao ensino médio (37%).
Ao questionar se os alunos já ouviram falar do PSB, 81% responderam que sim, 16% disseram nunca ter ouvido falar e
3% não responderam. Quanto a visitação 67% dos alunos entrevistados nunca estiveram no local. Dentre os 33% que alegaram já
ter visitado o Parque, a maioria (58%) o fizeram com a família, 32% com amigos, 8% com a escola e um aluno alegou ter visitado
sozinho.
Estes resultados demonstram que o parque é pouco frequentado pelos estudantes, e que na maioria das vezes que isso
ocorre não é com o acompanhamento das escolas. Rocha (1997) afirma que a relação estabelecida entre a população e as áreas
protegidas caracteriza-se pela falta de consciência sobre a importância destas áreas, ausência de apoio público na sua criação e
manutenção, nenhuma participação pública na administração e manejo dos recursos naturais, e que, no entanto, a conservação
efetiva dos recursos naturais a longo prazo depende diretamente de apoio público, sem o qual muitos esforços conservacionistas
estarão fadados ao fracasso.
Assim, ao considerar a educação ambiental como um processo por meio do qual as pessoas aprendem a desenvolver
uma concepção integrada do ambiente, em suas múltiplas e complexas conexões, como somos dependentes dele, como o afeta-
mos e como promovemos a sua sustentabilidade (DIAS, 2004), a promoção de atividades dessa natureza envolvendo o PSB pode
ser uma ferramenta importante que auxiliará na conservação desta área. Além disso, essas iniciativas possibilitam uma maior
integração entre as escolas, seus educadores, alunos e o parque.
Quanto aos professores das instituições de ensino avaliadas, onze foram entrevistados, três no bairro Pirajá, cinco no
Plataforma, dois no Ilha Amarela e um no bairro Alto da Terezinha, sendo que apenas cinco deles moram no bairro da instituição
em que trabalham. O fato de os professores residirem em bairros próximos ás escolas pode ser favorável para as atividades
que envolvam o parque, uma vez que esses profissionais convivem com a realidade das comunidades. Sobre as disciplinas,
destacaram-se a Biologia, lecionada por cinco docentes, e Ciências, lecionada por três dos professores entrevistados.
Segundo as entrevistas, 54% dos professores nunca visitaram o parque, enquanto 46% o visitaram pelo menos uma vez. O
motivo mais frequente foi o lazer, com três citações, e outros dois alegaram residir no local. Os motivos ‘religiosos’, ‘contato com

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a natureza’ e ‘estudo’ foram citados apenas uma vez. Já os professores que nunca visitaram o parque alegaram principalmente a
‘falta de oportunidade e tempo’, juntamente com a ‘insegurança’, relatados quatro vezes.
Para os professores que já visitaram a área o que mais lhes agradou foi a natureza do local, com três citações, a cachoeira
e a tranquilidade com duas citações, e as frutas e a religião, lembradas apenas uma vez. Esses resultados destacam o interesse
e reconhecimento de seus valores por parte dos educadores dessas instituições. Quanto aos pontos que menos gostaram, o item
‘Segurança’ recebeu o maior número de citações (3), seguido pelos itens ‘Depredação’, ‘Acesso’ e ‘Lixo’, características que
refletem os desafios enfrentados pela gestão da área. Os itens ‘Manutenção’ e ‘Poluição’ foram citados apenas uma vez.
Segundo as sugestões dos entrevistados em relação ao que pode melhorar a fim de viabilizar atividades educativas, a
segurança foi o item mais citado, também foi mencionado as mazelas sociais, a violência e o tráfico de drogas como quesitos que
devem ser erradicados. Os entrevistados ressaltam a necessidade de uma revitalização do parque, com a valorização ambiental
da área, o reforço do policiamento, e a melhoria da infraestrutura, que viabilize a realização de atividades educativas. Ainda foi
citada a necessidade de se promover a despoluição dos rios e o reflorestamento de algumas áreas. Uma maior inserção da co-
munidade do entorno com o parque também foi sugerida, o que segundo um dos entrevistados contribuiria com a sensibilização
sobre a importância do PSB.
Esses resultados corroboram com os apontamentos de Trajano et al. (2012) que sugere que o ensino extraclasse neces-
sita de um espaço apropriado para a realização das atividades. Os parques urbanos, como é o caso do PSB, são lugares privile-
giados onde se pode desenvolver atividades de educação ambiental e estimular o contato com o ambiente natural em meio aos
grandes adensamentos urbanos. Justamente por estarem inseridos no meio urbano podem ser compreendidos como locais pro-
motores de diferentes olhares diante da problemática socioambiental enfrentada pelas cidades (MACHADO, 2009). É essencial
que haja um reconhecimento de que os grupos sociais são parte integrante da preservação dos recursos naturais, não podendo
ser ignorados, e que devem ser incorporados à preservação ambiental (LOUREIRO, 2003). Entretanto, para tornar possível um
maior envolvimento dos grupos sociais com o parque é necessário que este possua uma infraestrutura mínima que suporte e o
torne atrativo à visitação e ao desenvolvimento de atividades de educação ambiental em sua área.

Considerações Finais
O PSB representa uma área de alto valor cultural e histórico, que abriga um importante remanescente de Mata Atlântica
cercada por uma matriz densamente urbanizada. Estes são atrativos que privilegiam a visitação e a prática de atividades edu-
cativas em seu interior e favorecem a visitação por diferentes grupos como moradores do entorno, estudantes, religiosos, entre
outros. No entanto, mesmo mediante a sua relevância socioambiental, o PSB não dispõe de um programa de educação ambiental
estruturado de forma a envolver os diferentes públicos, em especial a população local.
Foi observado um número significativo de instituições de ensino localizadas no entorno do PSB que desenvolvem ativi-
dades de educação ambiental, entretanto são poucas as que utilizam ou já utilizaram a área do parque. Apesar disso destaca-se
que todas as instituições, mesmo aquelas que nunca utilizaram o parque, manifestaram interesse em realizar atividades no PSB.
Verificou-se, também, uma falta de planejamento para a utilização frequente do parque por parte das instituições, e os projetos
em educação ambiental que abordam o PSB foram pouco frequentes, assim como os temas violência, sustentabilidade, geren-
ciamento de resíduos e saneamento. Esses assuntos apresentam grande importância, uma vez que se relacionam diretamente
com os desafios que o parque enfrenta.
O contexto histórico e religioso do PSB também teve pouco destaque dentre os projetos avaliados. Esse aspecto reflete
a necessidade de mais incentivo para projetos de educação ambiental que valorizem os aspectos históricos e culturais da área.
A utilização do parque por parte dos professores ocorre principalmente para lazer. Já entre os principais motivos aponta-
dos para a sua não utilização estão a falta de segurança e infraestrutura. Desta forma, para haja um maior número de atividades
de educação ambiental ocorrendo no PSB, são necessários investimentos nesta área, o que já teve início com a implantação do
Projeto Dias Melhores e com a elaboração do plano de manejo do parque. No entanto, é preciso destacar que as melhorias na
infraestrutura devem atender às necessidades do público estudantil e atentar-se a questões relacionadas à segurança dos visi-
tantes e acessibilidade do local.
O parque também é pouco frequentado pelos alunos, e na maioria dos casos estas visitas ocorreram sem o acompa-
nhamento das escolas. O envolvimento dos alunos e das escolas com o PSB, e a realização de atividades de educação ambiental

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envolvendo o parque, constitui uma estratégia importante que auxiliará na conservação da área. A Natureza, as cachoeiras, a
tranquilidade e a religião foram os pontos que mais agradaram os professores das instituições de ensino e constituem-se como
temas potenciais para a realização de atividades educativas no parque.
Finalmente, a situação atual do PSB em termos de infraestrutura, segurança e conservação, reforça a necessidade do es-
tabelecimento de uma agenda de debates entre os gestores da área, atores e instituições locais que reflita sobre as condições da
prática da educação ambiental e patrimonial no local, levando em consideração a realidade social e o contexto histórico em que o
parque está inserido. O estabelecimento de bons programas de educação ambiental e patrimonial em áreas protegidas urbanas
como o PSB é fundamental para a proteção dessas áreas e para ampliar o conhecimento da sociedade sobre a sua importância,
bem como de todo o sistema de áreas protegidas.

Agradecimentos
Aos estudantes, professores e diretores das instituições que participaram do estudo, e aos funcionários da CONDER e
Prefeitura de Salvador. As informações deste artigo foram coletadas durante a elaboração do Plano de Manejo do PSB, contrato
estabelecido entre a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER) e IPÊ – Instituto de Pesquisas
Ecológicas com recursos do Acordo de Empréstimo realizado entre o Governo da Bahia e o Banco Internacional para Recons-
trução e Desenvolvimento (BIRD) visando o financiamento do Projeto de Desenvolvimento Integrado em Áreas Urbanas Carentes
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VII SAPIS | II ELAPIS: Culturas e Biodiversidade: O presente que temos e o futuro que queremos | Artigos e relatos de experiências
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