CENA 1 – INT/NOITE

BRANCA NARRA SUA VERSÃO PARA O AFOGAMENTO DO PADRE BERNARDO,

ENQUANTO FAZ BARQUINHOS DE PAPEL.

BRANCA
Era noite e eu estava me banhando na beira
do rio, quando ouvi a voz de um homem que
gritava pedindo socorro. Seu barco havia
virado com a forte correnteza.Entrei no rio
com a intenção de salvá-lo. Mas tive
dificuldade. Ele se debatia agarrado a um
crucifixo. Precisei agarrá-lo pela batina.
Quando chegamos a margem, ele estava
praticamente desfalecido.

CENA 2 – INT/NOITE

AUGUSTO FAZ SEU PRIMEIRO DEPOIMENTO. TORTURADOR EXPLICA A

FINALIDADE DA TORTURA

Augusto
O temor é um legado de nossa raça.Uma coisa
é um Deus que se teme, outra coisa é um
Deus que se ama.

TORTURADOR
Para que serve a tortura? Pra obter a
verdade. Ordenei a tortura pela sua
obstinação em esconder a verdade.Lembre-se
que o limite máximo permitido pelas normas
do processo é de uma hora.

TORTURADOR
Conhece essa moça ?

CENA 3 – INT/DIA
AUGUSTO CHEGA DE SURPRESA NA “CASA” DE BRANCA TRAZENDO UMA
BÍBLIA DE PRESENTE. CONVERSAM SOBRE SUA VIAGEM À LISBOA.

AUGUSTO
Não vai adivinhar quem é?
 BRANCA
Soube no momento em que você tocou meu
rosto.
AUGUSTO
Eu trouxe um presente. Agora que você já
sabe ler… Abra!

BRANCA
Augusto... é uma bíblia... Em Português!!!
Preciso mostrar ao Padre Bernardo.

AUGUSTO
Não seria conveniente agora.

BRANCA
Por quê? Porque sou mulher e sei ler... Eu
sou livre Augusto.

AUGUSTO
Não antes de ler a dedicatória e de me dar
um beijo. Meu beija-flor.
(Branca dá um beijo no rosto de Augusto)

AUGUSTO
Queria que esse beijo fosse nos meus
lábios…

BRANCA
A viagem foi curta. Achei que só fosse te
ver no final do mês. Como estão as coisas
em Lisboa?

AUGUSTO
Ainda existe muita injustiça nesse mundo,
em todo canto. Mas e você? O que tem feito?
BRANCA
O de sempre. Cuido da casa, dos animais. E
no final do dia tomo um banho no rio.

AUGUSTO
E quanto às leituras?
 BRANCA
Tenho lido todas as noites... Não vejo a
hora de termos aqui uma escola. E quero ser
a professora dessa criançada. É
impressionante como as palavras escritas
podem mudar uma pessoa.

AUGUSTO
Só espero que não perca essa sua nobreza
tão espontânea. Humm... E esse cheiro?
Seria um bolo de fubá salpicado de erva-
doce?

BRANCA
Acertou. vou fazer um café, e aproveito
para chamar o papai. Se não ele não sai
daquela oficina.

CENA 4 – INT/NOITE

TORTURADOR MOSTRA A FOTO DE UMA MULHER À AUGUSTO E

QUESTIONA SE ELE A CONHECE. ELE AFIRMA QUE SIM E A DEFENDE

TORTURADOR
Conhece essa moça?

AUGUSTO
É minha noiva. Que querem que eu diga? Para
salvá-la então é preciso lançar calúnias e
infâmias contra ela? E quem me garante que
não se aproveitarão disso justamente para
condená-la? Em nome da Igreja cometem-se
atos que Ele jamais aprovaria. Branca
continua tão pura quanto antes...

CENA 5 – INT/NOITE
BRANCA É INTERROGADA E SE LEMBRA DA BÍBLIA QUE GANHOU DE
PRESENTE.

VISITADOR/TORTURADOR
Aqui estamos senhores, para dar início ao
“inquérito 5736”. É muito fácil apresentar
esta moça como um anjo de candura e a nós
como bestas sanguinárias. Devemos deixar
que continue a propagar heresias?Eles não
teriam conosco a mesma piedade que reclamam
de nós! E é a piedade que nos move a abrir
este inquérito contra ela e a indiciá-la.
Apresentaremos inúmeras provas contra a
acusada. Mas uma é evidente, está à vista
de todos: ela está nua.

BRANCA
Não é verdade!Há alguém em perigo e não sou
eu. De que me acusam?

VISITADOR/TORTURADOR
O que queremos é tentar ainda salvá-la para
a igreja. Você conhece as obras da
misericórdia?

BRANCA
Conheço.

VISITADOR/TORTURADOR
Então diga.

BRANCA
Dar de comer a quem tem fome; dar de beber
a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada
aos viajantes; visitar os doentes e os
presos; libertar os que estão presos;
enterrar os mortos; dar bom conselho;
ensinar os ignorantes; consolar os aflitos;
perdoar as injúrias; sofrer com paciência
as fraquezas do próximo, pedir a Deus pelos
vivos e mortos.

VISITADOR/TORTURADOR
Faltou um: castigar os que erram é uma obra
de misericórdia.
Essa medida foi tomada com base nas
denúncias de heresia e de atos contra a
moralidade.Sabe ler?

BRANCA
Sei.

Visitador/TORTURADOR
Tem uma bíblia?

BRANCA
Tenho!

Visitador/TORTURADOR
Estou vendo... Toma banho às sextas-feiras?

BRANCA
Costumo banhar-me todos os dias no rio.

VISITADOR/TORTURADOR
O que sente ao mergulhar no rio?

BRANCA
Me sinto melhor, refrescada.

VISITADOR/TORTURADOR
Sentiu prazer?

BRANCA
Sim. Senti prazer. O mais importante é que
eu sinto a presença de Deus em todas as
coisas que me dão prazer. Pois amar a Deus
é isso. É amar todas as coisas que ele fez
para o nosso prazer.

VISITADOR/TORTURADOR
Branca, estamos aqui para ajudá-la. Mas é
preciso também que você nos ajude. Estamos
diante de um perigo crescente e ameaçador.

BRANCA
E sou eu a causa de tanta desgraça?!
 VISITADOR/TORTURADOR
Não é você isoladamente. Está aí o
protestantismo, mudando os alicerces da
religião de Cristo. Estão aí os cristãos
novos, judeus falsamente convertidos, mas
secretamente seguindo os cultos e a lei de
Moisés.

BRANCA
O ódio não converte ninguém. Meu avô foi
convertido pela força.Será que essa é a
melhor maneira de salvar alguém que está na
mira do diabo?

VISITADOR/TORTURADOR
Não devemos usar a força para converter.
Mas devemos ser rigorosos com os
convertidos.

CENA 6
BRANCA CONVERSA COM GUARDAS TENTANDO ENTENDER OS MOTIVOS
DE SUA PRISÃO
BRANCA
Houve um equívoco. Eu não sou a pessoa que
procuram.

GUARDA
Procuram alguém?

BRANCA
Claro.Tanto que me prenderam.

GUARDA
E por que prenderam você?

BRANCA
Não sei.

GUARDA
Devia saber. Isso só piora a sua situação.

BRANCA
 Piora? O senhor sabe por que estou aqui?

GUARDA
Porque eu deveria saber?

BRANCA
Porque é guarda.

GUARDA
Não diga tolices. Os denunciantes
denunciam, os juízes julgam, os guardas
prendem somente. O mundo é assim e deve ser
assim para que haja ordem.

BRANCA
Houve um equívoco. Eu não sou a pessoa.

CENA 7
SIMÃO RESPONDE AO PADRE QUESTÕES SOBRE A CONVERSÃO DE SUA
FAMÍLIA E INFORMA O CASAMENTO DE BRANCA COM AUGUSTO

SIMÃO
Quem nos protege é Deus, ninguém mais.

PADRE BERNARDO
É preciso muito cuidado com essas
afirmações Simão.

SIMÃO
Meu caminho é o da fé cristã, padre.
Caminho abraçado por meus antepassados.
Meus pais se converteram.
Já eram cristãos quando aqui chegaram.

PADRE BERNARDO
Cristãos novos.E aqui geraram um filho a
quem chamaram de Simão.E Simão gerou
Branca, a quem batizou e crismou. E Branca
espera gerar quantos filhos puder.

SIMAO
Está noiva. Augusto Coutinho , seu noivo, é
também católico, de boa família. Estudou na
Europa.

PADRE BERNARDO
Em Lisboa.

SIMÃO
Conhece leis a fundo.

PADRE BERNARDO
Conhece as leis dos homens. Que não se
podem sobrepor às leis de Deus, mas ele
pensa que sim.Preocupa-me a influência que
ele exerce sobre Branca.

SIMÃO
É natural. Ela o adora.

PADRE BERNARDO
O senhor disse a frase exata: Ela o adora.

SIMÃO
Cresceram juntos. Brincando de esconder no
canavial. Depois Augusto foi estudar na
Europa, voltou homem feito disposto a
casar. Eu só tinha que aprovar.

PADRE BERNARDO
E quando será?

SIMÃO
Em setembro. Quem sabe o senhor mesmo não
poderia casá-los?

PADRE BERNARDO
Eu???

SIMÃO
Sim, Branca ia ficar muito contente.

PADRE BERNARDO
 Será para mim também uma satisfação, se
Branca me der essa honra.

CENA 8
BRANCA FALA SOBRE SUAS AFLIÇÕES E SOBRE O SOCORRO
PRESTADO AO PADRE.

AUGUSTO
Qual o motivo de me mandar chamar com tanta
urgência?

BRANCA
Eu me senti tão desamparada. Isso só
aconteceu uma vez, quando eu era menina e
alguém me disse que a terra se movia no
espaço. Até então, a terra me parecia tão
sólida, firme. De repente, comecei a pensar
em mim mesma, criança, montada num planeta
louco, que corria pelo céu, girando em
volta de si mesmo.

AUGUSTO
E o que quer que eu faça? Que pare a terra,
como Josué parou o sol?

BRANCA
E se Josué parou o sol, é porque é o sol
que se move e não a terra.

AUGUSTO
É o que dizem as escrituras.

BRANCA
E pode um texto sagrado mentir?

AUGUSTO
Talvez seja uma questão de interpretação.
Josué não parou o sol, mas a terra. O
sentido é figurado.

BRANCA
Tudo é então uma questão de interpretação?
 AUGUSTO
Porquê você se preocupa com isso?

BRANCA
Porquê ninguém pode viver assim. Você sabe
que eu já coloquei a minha boca na boca de
outro homem?

AUGUSTO
Que homem?

BRANCA

Padre Bernardo. Ele estava sufocando,

depois do afogamento, e eu tive que colocar
a minha boca na dele, pra fazer chegar um
pouco de ar aos seus pulmões.

AUGUSTO
Você nunca me beijou!

BRANCA
Mas não foi um beijo.

AUGUSTO
Ele morreria se não tivesse feito?

BRANCA
Não sei. Mas a minha intenção era salvá-lo.
E não é isso que mais me preocupa. É que eu
já não sei se seria capaz de repetir o
mesmo gesto, porque isso poderia ter outra
interpretação.

AUGUSTO
Você está sendo injusta consigo mesma.

BRANCA
Não, eu não estou. Eu estou descobrindo
coisas.Padre Bernardo tem razão quando diz
que toda criatura humana está em perigo!
 AUGUSTO
Não você, meu amor
.
BRANCA
Eu sim! Augusto não podemos esperar até
setembro. Eu sou uma menina montada num
planeta louco que corre pelo céu girando em
volta de si mesmo .

AUGUSTO
Você acha que seu pai concordaria?

BRANCA
Eu falo com ele, explico…

AUGUSTO
Foi assim que você o beijou?

BRANCA
Não! ( Branca empurra Augusto)

CENA 9
BRANCA TEM UMA ÚLTIMA CONVERSA COM PADRE BERNARDO, QUE
REVELA SE AUTO-FLAGELAR APOS O BEIJO.

BRANCA
Para quem devo apelar além de Deus?

PADRE BERNARDO
A sua maneira de falar…

BRANCA
Se eu não chego a tempo, o senhor bebia
todo o rio...
PADRE BERNARDO
Eu sei.Você me estendeu a mão; agora é a
minha vez de retribuir com o mesmo gesto.
Queria que você confiasse em mim.

BRANCA
O senhor só tem lançado dúvidas em meu
 espírito, padre

PADRE BERNARDO
Essa dúvida é a luta entre a luz e as
trevas.

BRANCA
Não, padre!

PADRE BERNARDO
Porque aproveitou-se do meu desmaio para
beijar-me na boca?

BRANCA
Fiz isso para que não sufocasse, para que
não morresse!

PADRE BERNARDO
Foi esse o pretexto que Satanás arranjou
para o seu pecado! Basta eu me aproximar de
você para cair em pecado.

BRANCA
Acho que não devia mesmo ter feito o que
fiz.

PADRE
É possível que eu esteja sendo submetido a
uma prova. E faz parte dessa prova o ter
que julgá-la e puni-la.Mandaram-me
visitá-la pela última vez.Desde o princípio
seu destino dependeu sempre de você. Você
escolherá. Podemos ir? Não quer preparar-se
espiritualmente?

BRANCA
Eu estou preparada.

CENA 10
SIMÃO TENTA CONVENCER BRANCA A CONFESSAR-SE ARREPENDIDA E
CULPADA DA ACUSAÇÃO E CONTA SOBRE A MORTE DE AUGUSTO
 SIMÃO
Deve ter havido um equívoco... ou é
maldade de alguém que quer nos
prejudicar.Minha filhas, eles têm a força,
a lei, Deus e a milícia tudo do lado deles.
De que adianta alegar inocência, protestar
contra uma injustiça? Provam o que quiserem
contra nós e não conseguiremos provar nada
em nossa defesa.Augusto... Ele fez mal em
não falar. Eu sabia que ele não ia
resistir.Pensei em baixar a corda, mas eu
já estava com a minha situação resolvida,
ia ser posto em liberdade…

BRANCA
E preferiu deixar que ele morresse.

SIMÃO
Eu podia ter tido o mesmo destino que ele.

BRANCA
O que a igreja vai fazer comigo? Eles vão
acabar obtendo de mim a mentira. Se ao
menos eu pudesse ver o sol…

SIMÃO
Branca! Alguém teria de ser atingido. Se
você abjurar...

BRANCA
Se eu abjurar? O senhor quer que eu também
seja cúmplice da morte de Augusto?

SIMÃO
Absurdo! Você não tem nada com isso!

BRANCA
Podemos pecar por obras ou omissões. O
senhor também o matou. E o que mais me
horroriza é que o senhor é um homem
decente.
 SIMÃO
Não é justo que você se volte contra mim.
Não fui eu quem matou.

BRANCA
O senhor é tão culpado quanto eles. O
senhor contribuiu.

SIMÃO
Não, ninguém pode ser culpado de um ato
para o qual não contribuiu de forma alguma.
Não executei, não participei de nada…

BRANCA
Silenciou!

SIMÃO
Era um preço que teríamos que pagar. Não é
possível que você não entenda.

BRANCA
Acho que nos omitimos quando sabemos de uma
injustiça e deixamos de protestar contra
ela. Quem cala, de fato colabora.

SIMÃO
Que Deus se compadeça de você.

CENA 11
EM DELÍRIO BRANCA CONVERSA COM AUGUSTO E PENSA EM DESISTIR
ACEITANDO A ACUSAÇÃO ASSUMINDO A CULPA.

AUGUSTO
Branca!

BRANCA
Augusto...tudo isto está mesmo acontecendo?
Às vezes penso que estão somente querendo
nos assustar.

AUGUSTO
 A mim, eles assustaram até que eu perdesse
os sentidos. Me colocaram na cadeira do
dragão e me deram choques, no ânus, no
pênis, no umbigo.Eles sentem prazer. É como
se eles comprassem sua alma destruindo tudo
que você tem de bom. Eles querem, através,
do massacre, da desumanidade que você
traia, que você rompa com tudo o que você
acredita.

BRANCA
Vocês estão pagando pelos meus erros.

AUGUSTO
Quais são seus erros, Branca? A mim eles
jamais convenceram de que você não é a
criatura mais pura que já nasceu.

Branca
Você diz isso porque me ama. Bastaria
concordar com tudo.

AUGUSTO
Não, Branca. Por Deus, não faça isso. Há
um mínimo de dignidade que o homem não deve
negociar nem mesmo em troca de sol.

CENA 12
BRANCA RECOBRA A CONSCIENCIA E SE MANTEM FIRME, MESMO
SABENDO QUE SUA PENA SERÁ A MORTE.

BRANCA
Será que isso vai durar eternamente?

GUARDA
Foi dele a culpa. Ele assinou a declaração.
E você, se declara arrependida?

BRANCA
Meu arrependimento valeria de alguma coisa
se eu não me considerasse culpada por tais
atos? Desde o princípio não foi ao medo e
ao desespero que tentaram levar-me?
Prendem-me entre quatro paredes. Prendem
meu pai. Torturam e matam o meu noivo. Os
senhores têm bonitos métodos de persuasão.
Não vou abjurar coisa alguma. O que eu
quero é que este tribunal reconheça a minha
inocência. Porque eu nunca pensei em viver
senão de acordo com a minha natureza.
Amando Deus a minha maneira. Eu não mereço
a fogueira. É uma maldade. Há um mínimo de
dignidade que o homem não pode negociar,
nem mesmo e troca de liberdade. Nem mesmo
em troca de Sol.