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CATEGORIA PROFISSIONAL DIFERENCIADA, ONTOLOGIA

OCUPACIONAL E TERCIARIZAÇÃO

Luiz Felipe Monsores de Assumpção*


Ricardo Marcelino Guilherme**

1. INTRODUÇÃO

Alguma controvérsia percorreu a década de noventa, no que tange à recepção


constitucional das chamadas categorias profissionais diferenciadas, ou simplesmente
categorias diferenciadas. Essa controvérsia se alimentou do redimensionamento do
princípio da liberdade sindical, que com o advento da CRFB/88 avançou não só para a
auto-organização e autonormação das entidades categoriais, mas também para o
enquadramento sindical.
Mesmo outrora, quando “oficial”, o enquadramento sindical supunha um
momento em que se resguardava alguma autonomia das empresas em se autoenquadrar,
no que se refere à categorização de sua atividade econômica. Isto porque o emprego do
princípio do paralelismo simétrico (ou simetria) partia do conceito de atividade
econômica preponderante, e daí para o enquadramento da categoria profissional. No caso
das categorias diferenciadas, contudo, tal espaço de autonomia não prevalecia, justamente
por conta da inversão da dinâmica do enquadramento sindical, isto é, da ocupação ou
profissão para a atividade empresária predominante.
Acomodar o conceito de categoria diferenciada ao novo texto constitucional não
foi tarefa fácil, até porque, para muitos autores, tal conceito só se sustentava à custa do
enquadramento prévio, que se tornara incompatível com o novo patamar de democracia
sindical. Contudo, com o reconhecimento da negociação coletiva como um direito
fundamental das categorias profissionais e econômicas (e, com ela, o princípio da
inescusabilidade à negociação coletiva), achou-se por bem preservar tal direito
igualmente às categorias diferenciadas (ASSUMPÇÃO, 2010), o que pressupôs,
obviamente, a sua sobrevivência enquanto conceito jurídico, cuja evidência pode ser vista

*
Auditor-Fiscal do Trabalho. Economista e bacharel em direito. Especialista em Direito do Trabalho e
Legislação Social. Mestre e doutorando em Direito e Sociologia. Membro da Sociedade Brasileira de
Pesquisadores em Sociologia do Direito (ABraSD) e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
Interdisciplinar em Sociais e Humanidades (ANINTER-SH). Professor do Centro Universitário Geraldo di
Biase. E-mail: 803monsores@gmail.com.
**
Acadêmico do curso de direito do Centro Universitário Geraldo di Biase. E-Mail:
ricardo.m.guilherme@hotmail.com.
nas incontáveis decisões judiciais proferidas em sede de conflitos de representação
sindical.
Contudo, no plano dos direitos individuais, os trabalhadores se viram
desamparados tanto pela Justiça do Trabalho, quanto pela Inspeção do Trabalho, no que
tange à pretensão de se verem “reconhecidos” como integrantes de categorias
profissionais diferenciadas e, daí, aproveitarem as normas coletivas, eventualmente mais
vantajosas, firmadas pelas respectivas entidades de classe.
O objetivo deste ensaio é propor uma nova abordagem dos fundamentos de
sustentação do caráter “diferenciado” de certos estratos profissionais, o qual determina a
forma de organização categorial dessas coletividades. Com isso, pretende-se desenvolver
uma crítica da jurisprudência dominante sobre o assunto, e apontar para possíveis
soluções que contemplem o exercício do direito de resistência por parte dos trabalhadores
integrantes das categorias profissionais diferenciadas.

2. REVISITANDO O CONCEITO DE CATEGORIA PROFISSIONAL


DIFERENCIADA

Categoria diferenciada é aquela “cujos membros estão submetidos a estatuto


profissional próprio ou que realizam um trabalho que os distingue completamente de
todos os outros da mesma empresa” (SAAD; SAAD; BRANCO, 2011, p. 750). É a que
“tem regulamentação específica do trabalho diferente da dos demais empregados da
mesma empresa [...]” (CARRION, 2009, p. 512).
Ambos os conceitos acima citados, cuja legitimidade se assenta no discurso de
especialistas (FOUCAULT, 2014), têm em comum o pressuposto assumido de que a
categoria profissional diferenciada o é em relação “aos demais empregados da empresa”,
sugerindo que tal diferenciação ocorra de modo circunstancial. Noutros termos, que o
caráter diferenciado é casuístico e, neste sentido, sua materialidade emerge da oposição
com a identidade laboral conferida pela “atividade preponderante” da empresa (CLT, 581,
§ 1º).
Há um relativo consenso na nossa literatura do direito sindical de que a
importância do conceito de categoria profissional diferenciada situa-se na busca pela
“representação sindical autêntica” (MANUS, 2015, p. 2), para o que concorreria o
aprimoramento do enquadramento sindical laboral definido, a priori, pelo liame
identitário entre os trabalhadores. Isto é descrito em termos teleológicos pela própria CLT
como um processo de aperfeiçoamento da representatividade profissional, sendo certo
que, para tanto, os conceitos de homogeneidade categorial e associativismo natural são
fundamentais (CLT, 511, § 4º).
A abordagem funcional é a que prevalece, quando se trata de analisar a categoria
profissional diferenciada, haja vista o argumento centrado na autenticidade representativa
como instrumento de aperfeiçoamento das relações de trabalho. Contudo, o que exsurge
como um paradoxo é o fato de que, num contexto mais amplo, é o atributo ocupacional
que estaria absorvido pela estratificação categorial, e não o contrário.
O que se pretende afirmar é que a abordagem funcionalista trabalha com o que
Howard Becker chama de “categorias residuais”, as quais são definidas onticamente
através de “escolhas políticas” (BECKER, 2007, p. 208). Neste caso, não haveria sentido
em considerar as categorias profissionais diferenciadas uma exceção à regra-geral do
enquadramento determinado a partir da atividade preponderante da empresa, pois
constituindo-se, em termos quantitativos, como “pontos-fora-da-curva” da estratificação
categorial típica do corporativismo estatal, tenderiam a ser “amontoadas na categoria
‘outros’” (BECKER, 2007, p. 208), e não individuadas enquanto formas organizativas
que determinam a funcionalidade do grande arranjo corporativista.
A diferenciação por estatutos próprios (CLT, 511, § 3º), ou as “condições de vida
inconfundíveis” (SAAD; SAAD; BRANCO, 2011, p. 750) poderiam constituir-se em
ferramentas de emancipação categorial, pela via da dissociação (CLT, 571), o que nos
parece um processo muito mais autêntico e sustentável do que a imposição “oficial” de
um enquadramento ocupacional. Isto é certo, porquanto o quadro a que se refere o art.
577, CLT, ao elencar as denominadas “categorias profissionais diferenciadas”, o faz
enquanto ocupações (COELHO, 1999), e não categorias stricto sensu1.
Nesse sentido, não nos parece que a distinção assegurada pela legislação (CLT,
§ 3º) tenha caráter meramente instrumental, isto é, que tenha sido fruto de uma escolha
funcionalista, voltada para a maximização da felicidade das categorias profissionais, no
melhor estilo benthaniano (SANDEL, 2012). A distinção centrada na ocupação do
trabalhador, associada ao rigor do enquadramento prévio, que pressupondo a idealização
de tipos-ideais abstratos, determina o locus ao qual pertence o sujeito no arranjo
corporativo, parecem não avalizar a tese da distinção circunstancial e casuística das
categorias profissionais diferenciadas.

1
Aeronautas, e não trabalhadores de empresas de aviação; motoristas, e não rodoviários; garçons, e não
empregados de bares, hotéis, restaurante e similares; maquinistas, e não trabalhadores marítimos ou
ferroviários; professores, e não profissionais da educação etc.
Tal diferenciação retrocede ao nível dos sujeitos-trabalhadores, ou seja, das
identidades ocupacionais, distinguindo-se, portanto, da identidade coletiva que determina
a organização sindical de molde corporativista. Tal distinção, portanto, não é de natureza
relacional2, que serviria de argumento para uma decisão em termos de política sindical,
mas substancial, expressa tanto em termos objetivos, pelo credencialismo (COLLINS
apud LEINER, 2007, p. 175), quanto subjetivos, pela singularidade das condições de
vida, do que se supõe não só o domínio sobre o processo laboral, como também um status
social decorrente de sua integração ao um determinado sistema perito (GIDDENS, 1991).
A diferenciação assegurada pela CLT às categorias profissionais diferenciadas
tem, pois, natureza ontológica. Consequentemente, o espaço de diferenciação desses tipos
profissionais não é a empresa, tão somente, mas a sociedade do trabalho como um todo.
Os requisitos de diferenciação (estatuto próprio e condições de vida singulares) vão
operar mesmo na hipótese em que tais profissionais, considerando a atividade
preponderante da empresa, forem a regra, e não a exceção, como no caso dos professores
de uma escola, de oficiais gráficos de uma gráfica, ou de um jornalista em numa empresa
de jornalismo.

3. A EXPERIÊNCIA NEOLIBERAL BRASILEIRA E O “PROBLEMA” DO


ENQUADRAMENTO SINDICAL

É bem verdade que o enquadramento sindical, no âmbito de um modelo


corporativista, como o brasileiro, tornou-se bastante problemático, quando a terceirização
(outsourcing) se tornou o carro-chefe do conjunto de transformações do mundo do
trabalho, cuja orientação era promover a “flexibilidade externa” (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009, p. 240), na conformidade da cartilha neoliberal, que por aqui
determinou a política econômica da década de noventa. A terceirização provocou uma
acentuada redistribuição da mão-de-obra empregada pelos diversos segmentos
produtivos, inflando o setor terciário, representado pelo comércio e a prestação de
serviços, num fenômeno comumente chamado de terciarização.
Sob o ponto de vista da principiologia clássica do direito do trabalho, a
terciarização provocou uma crise da alteridade, pois o conceito de fluxo tensionado (flux
tendu), identificado e descrito por Durand (2003) como o modo neoliberal de administrar

2
Embora se possa vislumbrar que o reconhecimento estatal da distinção profissional, como um aspecto do
arranjo corporativista, possa vir ao encontro das pretensões de diferenciação por parte dos grupos
profissionais, no contexto de uma divisão de trabalho como interação social (FREIDSON, 1998).
o tempo e a organização do trabalho e da produção, adaptado, mutatis mutandis, ao fluxo
financeiro entre o tomador e o prestador de serviços, acentuou a tendência que se verifica
nefasta, no âmbito das relações de trabalho, do exercício do jus variandi3 mediado pela
empresa prestadora de serviços.
Mas a crise da alteridade se expandiu para uma crise de identidade, dissolvendo
a noção de atividade preponderante, como critério base do enquadramento sindical. De
fato, no autêntico outsourcing a identidade empresarial e funcional é mantida pelo
conceito de know-how, pois o que se busca, nesse caso, é o aumento de escala e, por
conseguinte, um incremento na produção. A terceirização precarizante (ASSUMPÇÃO,
2015) tornou-se, por outro lado, ferramenta de redução de custos, fato que impôs uma
nova lógica competitiva no âmbito do setor terciário, privilegiando as empresas que,
espelhando a multifuncionalidade que caracterizou o trabalho assalariado a partir da vaga
neoliberal (CARDOSO, 2003), fossem capazes de prestar o maior conjunto de serviços
possível.
Embora se possa concentrar formalmente a “atividade preponderante” numa
CNAE4 básica, a verdade é que a prestação de serviços passou a ter múltiplas identidades,
cada qual determinada pelo objeto, pelo tempo e pelo espaço de atuação do contrato de
prestação de serviços. Nesse sentido, a atividade preponderante do empregador, enquanto
critério para o enquadramento sindical, passou a ser, de fato, totalmente circunstancial,
visto que os conceitos de categoria e base territorial tornaram-se fluidos.
A terciarização e a consequente fragilidade da estratificação categorial, definida
pelo binômio categoria x base territorial, encontrou uma improvável aliada no
redimensionamento da liberdade sindical, advinda com a Constituição Federal de 1988,
nomeadamente no que tange ao enquadramento sindical espontâneo.
Mesmo nos tempos do enquadramento prévio, a auto-identificação da atividade
econômica preponderante garantia uma certa espontaneidade à dinâmica do
enquadramento, e isto não parecia contradizer o modelo regulado de relações de trabalho.
Mas o discurso da “representação autêntica” era de alguma forma assegurado pela atuação
interventiva do Estado, que através de mecanismos administrativos, por vezes coativos,

3
Utilizo aqui a expressão jus variandi não só para designar o comando da relação individual de trabalho,
por meio do poder empregatício, mas também para expressar o domínio sobre todo o processo e a
organização do trabalho, executado através de interposta pessoa.
4
A Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE-IBGE) está para as atividades econômicas
como a CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) está para o trabalho.
buscava manter a organicidade do modelo de representação sindical, retratada pelo
quadro geral de categorias, ao qual fazia referência o art. 577, da CLT.
Como se sabe, tal nível de intervenção do Estado na organização sindical foi
proscrito pela atual ordem constitucional, e salvo o sistema de justiça, nomeadamente
quanto aos conflitos de representação, que a partir da E.C. nº 45 passou a ser da
competência da Justiça do Trabalho (CRFB/88, art. 114, III), inexiste qualquer
instrumento “oficial” que possa conter a “casuística e a força da realidade fática”
(CARRION, 2009, p. 512) como determinantes do enquadramento sindical. Como
consequência, em compasso com o fenômeno da terceirização/terciarização, o
enquadramento sindical também se reorientou para a lógica do custeio, enfraquecendo
enormemente o primado da “representação autêntica” como um traço teleológico da
organização sindical brasileira.
Decerto que vários conflitos envolvendo sindicatos e empresas emergem desse
fenômeno, em que pese a maioria das entidades profissionais buscar o judiciário a fim de
ter reconhecida a exclusividade na destinação do recolhimento da contribuição sindical
compulsória, e nem tanto a precedência da representação dos trabalhadores, sob os
fundamentos do associativismo natural e da representatividade autêntica. Mas é
justamente nesse âmbito que se firma a relação entre a precarização do trabalho
assalariado e o enquadramento espontâneo, pois na medida em que o autoenquadramento
categorial-patronal é circunstancial e contingente, determinando, sob a mesma lógica, o
enquadramento categorial e geográfico dos trabalhadores, ficará ao arbítrio da empresa,
no fim das contas (literalmente), escolher a regra – norma coletiva – que irá regular os
contratos de trabalho mantidos com seus empregados.

4. PROBLEMATIZANDO A JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE

Poderia se pensar que este viés precarizante, decorrente do enquadramento


espontâneo, não alcançaria as categorias profissionais diferenciadas, dada sua
diferenciação ontológica, de caráter ocupacional. Diga-se isto, porque a convenção
coletiva que porventura seja firmada entre uma determinada representação profissional
diferenciada, e seu correspondente patronal5, teria o fito de projetar-se subjetivamente,
enquanto regra dotada de generalidade e abstração, para todos os indivíduos que

5
Por correspondência patronal, aqui tratada em seu sentido forte, entende-se a conexão entre atividade
econômica preponderante e o enquadramento diferenciado majoritário.
pertençam a tal categoria (melhor, exerçam tal ocupação)6. Porém, não foi isso o que
aconteceu, pois a partir de meados da década de noventa, a SDI-I do TST editou a
Orientação Jurisprudencial (OJ) nº 55, que recentemente foi elevada à categoria de
súmula (nº 374, TST), privilegiando o caráter contratual dos instrumentos normativos,
obnubilando seu status de norma abstrata.
O entendimento consolidado no Tribunal Superior do Trabalho sugere que, a
despeito de o conceito de categoria profissional diferenciada ter sobrevivido à última
transição constitucional, o redimensionamento da liberdade sindical e a consequente
extinção do enquadramento oficial teriam eliminado qualquer atratividade da norma
especial, isto é, da convenção coletiva firmada por sindicatos de categorias diferenciadas
e seus respectivos representantes patronais, em relação aos quais tais profissões
configuram o enquadramento majoritário, consoante com a atividade econômica
preponderante e, por sua vez, com a representação autêntica.
Tal posicionamento jurisprudencial, a nosso ver, é totalmente disfuncional e
equivocado. Seria mais coerente admitir que a CRFB/88 não recepcionou o § 3º do art.
511, CLT, rejeitando o próprio conceito de categoria profissional diferenciada.
Para o TST, e para boa parte da literatura juslaboralista, diga-se, a categoria
profissional diferenciada resultava diretamente, e tão só, da intervenção estatal na
organização sindical. Seria o caso de dizer que a diferenciação, enquanto categoria
profissional, era fruto de um comando estatal, do enquadramento obrigatório orientado
para a profissão, e não para a atividade econômica.
Ora, se assim fosse, que sentido haveria em reconhecer a constitucionalidade do
dispositivo que assegura o status diferenciado a algumas ocupações, quando seu
fundamento – o enquadramento oficial – não se afigura acolhido pela atual Constituição?

6
Seria o caso, por exemplo, da convenção coletiva firmada entre o sindicato dos professores e o sindicato
das escolas particulares projetando seu efeito erga omnes não só aos professores que trabalhem em escolas,
mas também aos que, porventura, trabalhem em indústrias metalúrgicas. Da mesma forma, a convenção
coletiva firmada entre sindicatos de rodoviários de cargas, e de empresas desse ramo, aproveitariam todos
os motoristas que, por exemplo, trabalhem transportando cargas para o comércio varejista. O mesmo
aconteceria com a convenção coletiva negociada pelos sindicatos dos jornalistas e empresas de jornalismo,
que regularia os contratos de trabalho dos jornalistas que eventualmente trabalham numa assessoria de
imprensa de uma grande indústria petrolífera. Nesse sentido, há um precedente interessante, a despeito da
crítica de parte da doutrina jurídica (SAAD; SAAD; BRANCO, 2011, p. 427), que é a situação dos
trabalhadores em serviços de telefonia, reconhecidos enquanto tais na medida em que seus empregadores
fossem “empresas que explorem o serviço de telefonia [...]” (CLT, art. 227, caput). Tratados de forma
diferenciada, em razão das peculiares condições de trabalho, o tratamento dispensado pela lei a essa
categoria profissional foi estendido, irrompendo o estreito limite categorial e alcançado a órbita
ocupacional. Desde o início da década de oitenta, a disposição diferenciada dos arts. 227 a 231, da CLT
aproveita todos os profissionais de telefonia (Súmula nº 174, TST), independentemente da atividade
preponderante do seu empregador.
O equívoco, segundo nosso entendimento, foi se ter invertido o silogismo do
processo de reconhecimento do status de categoria profissional diferenciada. É por serem
diferenciadas que tais categorias profissionais atraem o enquadramento forçado, e não o
contrário.
A defesa do caráter ontológico dessa diferenciação profissional não é suficiente,
contudo, para resolver o “problema” do enquadramento oficial, que como dito, não
sobreviveu à CRFB/88. Todavia, problematizando a questão das “vantagens previstas por
instrumento coletivo” firmado pelas representações de categorias diferenciadas, o TST
também se equivoca ao associar a adesão a determinado instrumento normativo à
participação da empresa nas negociações, ou ao fato de ter sido representada por
sindicato, subestimando, portanto, o caráter erga omnes das convenções coletivas de
trabalho.
Em que pese a longínqua discussão acerca da natureza jurídica, eficácia e
formação dos contratos coletivos de trabalho (GOMES; GOTTSCHALK, 2002), é
evidente que, no Brasil, aderiu-se, e ainda com mais força a partir da CRFB/88, com a
inclusão expressa dos acordos coletivos, à tese do hibridismo normativo, qual seja a que
reconhece a projeção subjetiva do conteúdo normativo dos instrumentos coletivos, a
despeito da sua moldura contratual.
Citando Amleto Di Marcantonio, Javert de Souza Lima ressalta o caráter erga
omnes das convenções coletivas de trabalho:

Basterá un accenno, anche perché il complesso e giá dibattuto


problema ha trovato soluzione — crediamo in correspondenza delle
odierne esigenze sociali —_, nel nostro ordenamento positivo, nel
senso che il contratto collettivo con eficácia per le intere categorie
professionali da esso considerate, e cioè obbligatorio per tutti i
componenti (erga omnes) dele categorie stesse, iscritti o meno ai
sindicati legitimamente stipulanti, deve ritenersi un atto
sostanzialmente legislativo […]. (MARCANTONIO apud LIMA,
1959, p. 116). (Sem grifos no original).

A inesquecível lição de Carnelutti: “Il contrato coletivo è um ibrido, che há il


corpo del contrato e l’anima dela legge” (CARNELUTTI apud COSTA, 1977, p. 384),
reprisado à exaustão há décadas tantas como a melhor síntese do hibridismo normativo
conferido às convenções coletivas, só faz reforçar a tese de que seu alcance subjetivo se
submete tão apenas à legitimação representativa dos sindicatos convenentes.
No Brasil, enquanto norma abstrata, a projeção dos efeitos da convenção coletiva
sobre os contratos de trabalho estará a depender da adesão por parte da empresa, o que
não se dá, necessariamente, no momento da construção do convênio, mas na definição do
estrato categorial-profissional decorrente do enquadramento sindical.
Nesse sentido, uma norma coletiva destinada aos motoristas rodoviários poderá
regular os contratos de trabalho dos motoristas contratados por um supermercado,
bastando que este resolva enquadrar esses profissionais à categoria “motoristas”, decisão
que se exterioriza, formal e objetivamente, a priori, através do recolhimento da
contribuição sindical laboral compulsória em favor do sindicato dos rodoviários
(ASSUMPÇÃO, 2010).
Veja-se que, neste caso, nem o hipotético supermercado, nem o sindicato do
comércio varejista participaram de qualquer negociação com o sindicato dos motoristas
rodoviários, e ainda assim a convenção dos rodoviários alcançará os funcionários
daquele, e isto ocorre porque o enquadramento espontâneo foi usado, simultaneamente,
para introduzir os motoristas, empregados de um comércio varejista, no halo de alcance
subjetivo da convenção rodoviária, ao tempo que define que o sindicato dos rodoviários
é o representante legítimo desses empregados, conquanto representem um segmento
minoritário de seu quadro funcional.
De fato, o Estado não pode obrigar uma empresa a se enquadrar ou a enquadrar
seus empregados a este ou aquele sindicato. Mas ao fazê-lo espontaneamente, não há
como negar sua adesão ao instrumento coletivo porventura firmado pela(s) entidade(s)
representante(s) da(s) categoria(s) às quais decidiu aderir.
Se a jurisprudência dominante entende que a singularidade ontológica das
categorias profissionais diferenciadas não passou pelo crivo constitucional, ao ponto de
transformar as convenções coletivas firmadas por seus sindicatos representativos em
verdadeiras “leis profissionais”, ao menos se deve admitir que, reconhecido pelo patrão
que determinado trabalhador ostenta os requisitos diferenciadores, previstos no § 3º do
art. 511, CLT, e enquadrando-o à categoria profissional singularizada, sua relação de
emprego será regida pelas regras abstratamente aplicáveis àquela categoria profissional
diferenciada.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio propusemos uma abordagem alternativa do conceito de categoria


profissional diferenciada para, ao fim, formularmos uma crítica à atual jurisprudência
consolidada pelo TST, a qual reforça o caráter circunstancial e contingente dessa
diferenciação.
O entendimento sumulado pelo TST (Sum. 374) vai ao encontro da doutrina
tradicional, que sempre se inclinou em afirmar que o conceito de categoria profissional
diferenciada era totalmente dependente de um tipo específico de intervenção estatal na
organização sindical, qual seja o “enquadramento prévio”. Nesse sentido, tais categorias
profissionais se diferenciavam na medida em que o Estado determinava o enquadramento
sindical forçado e vetorizado para a ocupação, e não para a atividade econômica
preponderante.
Contudo, considerar tal abordagem nos coloca diante de um paradoxo
constitucional inconveniente, que pode ser sintetizado numa única pergunta: como o
conceito de categoria profissional diferenciada pôde ter sobrevivido à CRFB/88, se o
enquadramento prévio foi extinto?
A solução encontrada pela jurisprudência foi diferir a constituição das categorias
profissionais diferenciadas do “momento lógico”7 do enquadramento sindical,
trasladando-a para a negociação coletiva, ou seja, será categoria diferenciada aquela cuja
representação sindical, não abarcando a maioria dos seus empregados, a empresa
considerar como interlocutor legítimo, dentro do contexto negocial, voltado à elaboração
de um instrumento normativo.
Essa orientação, contudo, tem alguns problemas, tais como: 1) abstrai do
conceito de representação; 2) ao fazê-lo, desconsidera que a legitimação negocial está
atrelada à representação, e esta, em tempos de liberdade sindical redimensionada pela
CRFB/88, ao enquadramento sindical espontâneo; 3) ignora que tais categorias, quando
não legalmente nomeadas, ostentam uma subjetividade determinada por certos caracteres
intrínsecos; 4) privilegia o caráter contratual das convenções coletivas, em detrimento do
seu status de norma abstrata.
A abordagem proposta aqui sugere que as categorias profissionais diferenciadas
o são nem tanto em razão do enquadramento oficial, mas em virtude de um componente
ontológico de tal natureza que, subvertendo a estratificação categorial que (ainda) rege a
estrutura corporativista da nossa organização sindical, redireciona a representatividade
para um estrato ocupacional. Nesse sentido, as convenções coletivas estariam, para as
categorias profissionais diferenciadas, muito mais próximas dos estatutos profissionais, e
mais distantes dos contratos coletivos de trabalho.

7
Aqui, no sentido análogo ao que propôs Dinamarco (1996), transposto do fluxo processual e adaptado à
dinâmica do enquadramento sindical.
Contudo, tais estatutos operariam seus efeitos condicionados a um duplo gesto
de adesão. No plano dos contratos individuais de emprego, da designação ocupacional.
No plano das relações de trabalho, do enquadramento à categoria profissional
diferenciada, cuja evidência não seria o chamamento à negociação, mas o mero
recolhimento da contribuição sindical para a entidade correspondente.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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