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Qualidade fiscal e transparência: já era tempo

Márcio Ferreira Kelles

Palavras-chave: Qualidade fiscal. Transparência fiscal. Projeto de Lei Complementar (PLS nº 248,
de 04.06.09). Administração Pública (controle).

Já era tempo, mas finalmente foi apresentado, no Senado, Projeto de Lei Complementar (PLS nº
248, de 04.06.09) que altera, de forma substantiva e qualitativa, a gestão na Administração Pública
nacional. Desde a década de 90 do século passado, o Brasil vem passando, ainda que de forma
letárgica, por um processo de depuração e revisão de práticas seculares de abuso na gestão pública,
com desvios no plano do patrimonialismo, corrupção, nepotismo direto e cruzado e toda forma de se
servir da estrutura pública, com seus atos secretos, contas secretas, mordomo pago com recursos
públicos para trabalhar em casa de governadora e outros mais. Tais práticas já foram toleradas,
mas, desde a retomada democrática, não mais são aceitas e nossa classe política tarda a perceber.
Essas e tantas outras condutas clandestinas desonram, humilham e despertam a ira do cidadão
brasileiro.

A moral coletiva repudia essa conduta e exige uma nova ordem: a construção da cidada nia como
fenômeno vivo e constante. Trata-se de um processo construtivo formado no tempo e no espaço
através da sedimentação de novos valores que vão se incorporando no inconsciente coletivo. Ainda
estamos muito arraigados ao reinado positivista, que insiste em imperar na mentalidade do serviço
público. Há, ainda, uma cultura tomista que precisa ser varrida: a do culto fetichista à autoridade.
Não estamos a propugnar por uma rebelião à autoridade, mas é imperioso sopesar essa mística com
o ato de autoridade que não exceda a competência nela investida. Uma das práticas mais
contumazes do gestor público é a do desvio ou abuso de poder, e nessa quadra ninguém necessita
ser jurista para compreender o quanto nossas ditas autoridades estão chafurdando as mãos na lama.
Acredita-se, ainda hoje, na idéia iluminista de que somente a existência de uma boa lei traria a
solução para todos os males. Entretanto, esquecemos, ou fingimos desconhecer, a existência de
princípios de regência da administração, estampados no caput do art. 37 da CF, que se plasmam,
junto com as regras, na formação de um autêntico círculo hermenêutico. O que de fato necessitamos
é de uma ruptura com o paradigma positivista para compreendermos a impossibilidade de haver uma
regra jurídica para cada fato do mundo da vida, pois este é infinitamente mais dinâmico que nossa
produção legiferante. Assim, falta ao senso comum do brasileiro compreender que o mito à
autoridade é um equívoco e o que necessitamos é cobrar deles que ajam em conformidade com a
nova ordem moral e ética que, de resto, não surgiu em saltos quânticos, mas de forma gradual. Pena
que nossos gestores custem a perceber essas mudanças. Ou não querem. Ou não desejam. Let it be?
Não. Change, we need!

De toda sorte, enquanto o processo civilizatório esbarra nas limitações para a geração de uma
consciência coletiva mais uniforme, caberá à norma positivada suprir esse vácuo. Trata-se do
referido projeto intitulado de Lei de Qualidade Fiscal, lei-irmã da LRF, que passa a exigir uma série
de novas condutas e obrigações para a gestão pública, dentre elas:

1 - Critérios objetivos para elaboração das peças que integram o ciclo orçamentário (PPA, LDO e
LOA) - As novas exigências e vedações não impedem, mas, pelo menos, dificultam em muito a sua
elaboração, sem uma consistente integração entre eles. Os critérios exigem que se siga uma
orientação para resultados e, além disso, exige-se participação popular para sua validação (art. 3º,
caput e §1º, arts. 4º e 5º, 19, §§1º e 2º). Trata-se de exigência, há muito cobrada do Setor Público,
para tornar o orçamento um instrumento, verdadeiramente, de planejamento, controle e gestão, e
não mera peça de ficção. Doravante, gestor público terá de legitimar a produção da trindade
orçamentária com a necessária audiência dos atores diretamente impactados pelas medidas. Trata-
se de incorporar à nossa cultura o fenômeno da participação, pois não podemos perder de vista a
natureza política e o caráter redistributivo dos orçamentos. Nessa quadra, Milton Coelho Neto já
pontuou: [o orçamento] é uma tentativa de alocar explicitamente recursos e, implicitamente,
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valores, isto é, imprimir qualidade ao gasto público. Contudo, não nos deixemos enganar: raríssimas
são as entidades públicas no Brasil que dispõem de quadro qualificado para elaboração de peças
orçamentárias no exato sentido e alcance que se espera desses instrumentos. E nossa experiência
demonstra, a toda evidência, que, se deixamos por conta da burocracia estatal, os orçamentos só se
prestarão para a continuidade da política mais rasteira, pedestre, epidérmica que todos nós bem
conhecemos. Conclui-se que participar e controlar é preciso!

2 - Instituição de conta única para cada ente da federação - Visa extirpar de vez com as
incontroláveis contas adicionais e as absurdas contas ocultas (art. 61). Ao invés da pulverização dos
recursos públicos em inúmeras contas, que só se prestam ao descontrole e a rechaçar a
administração dos recursos, cria-se a concentração da movimentação financeira em conta única que,
dentre outras virtudes, possibilita não apenas melhor controle interno e externo, mas, sobretudo, o
controle social, através do SIAFE e outros meios eletrônicos de acompanhamento do gasto público;

3 - Gestão de pessoal orientada para a eficiência do trabalho:

• Critérios objetivos para avaliação de desempenho - impõe-se como condição para que o
servidor possa progredir na carreira (arts. 73 e 74). Finalmente, o setor público inicia, ainda
que tardiamente, um ciclo virtuoso voltado para resultados e qualidade na prestação do
serviço público;

• Exigência de cursos de capacitação com vistas à melhoria na qualidade do serviço público -


caso se detecte desempenho insuficiente, o servidor poderá ser afastado do serviço público
(art. 81). Finalmente se vislumbra a possibilidade de que o servidor público inepto ou incapaz
de prestar o serviço público que a sociedade espera dele possa ser afastado por não atender
aos requerimentos da cidadania. Simples assim;

• Atribuição de prêmio para servidores em razão de produtividade e mérito. Elementar: quem


produz mais, recebe mais. É a consagração do mérito na órbita pública. É justo que se afaste
o incapaz e justo que se premiem os dedicados e produtivos, via de regra aqueles que
transcendem aos atributos funcionais;

• Vedação relativa à integração do subsídio do parlamentar às malsinadas verbas


indenizatórias, o que impossibilita qual quer leviana tentativa de integrar, na base
remuneratória, as parcelas de natureza indenizatória, delimitando o campo de possibilidades
com seu uso (art. 84, §2º, II, e art. 85). Tal conduta tem sido frequente, desmoralizando e
desacreditando a Administração Pública perante o conjunto da sociedade brasileira, que vem
pagando um ônus demasiadamente alto para sustentar essa excrescência. Por vício de
iniciativa no que concerne à função parlamentar, nossos representantes no Congresso
Nacional, nas Assembléias Legislativas e também nas Câmaras Municipais ainda não
aprenderam que deles a sociedade espera que produzam normas que tragam benefícios
diretos ao conjunto da sociedade e que sejam eficientes controladores da Administração
Pública. Infelizmente eles ainda não compreenderam essa elementar finalidade pública.
Contrariamente, o noticiário diuturno nos inunda com denúncias de malversação da máquina
pública e, via de regra, dedicam-se a construir privilégios a si próprios. Mais de 90% das
consultas formuladas pelos vereadores brasileiros aos Tribunais de Contas estaduais referem-
se a subsídios dos parlamentares. É evidente a percepção de que a preocupação da ampla
maioria é com sua própria condição remuneratória e não com os aspectos concernentes às
condições de seus representados;

4 - Ampliação significativa do conceito de transparência: (art. 99) - Deixa de ser mera faculdade e
torna-se obrigatória a ampla divulgação, inclusive por meio eletrônico. Exigem-se medidas para total
entendimento das informações referentes às finanças públicas; afinal, é imperioso que se torne
público o que é do público. Mas, nessa vertente, incorpora-se uma demanda que transcende, em
muito, o fenômeno da publicidade dos atos da Administração. Agora, o que se exige é algo maior:
terá o gestor não apenas que divulgar, mas também traduzir a ação administrativa através de
referenciais que expliquem, numa linguagem de compreensão na qual todos possam entender o
sentido e o alcance da ação administrativa. Nada de linguagem cifrada, rebuscada, empolada ou
cheia de pegadinhas contra o cidadão medianamente informado, pois esse é o primeiro passo para se
rechaçar o controle público. Óbvio, se me sinto incapaz de compreender a finalidade do ato público,
como poderei questionar seu mecanismo de ação? O grau de transparência que desejamos, e o que é
possível ser ofertado, atendendo a um só tempo aos requerimentos da cidadania sem colidir com
princípios da preservação da intimidade, será desenhado, ao longo dos próximos anos, pela via
discursiva e por um amplo debate em torno do que queremos e para onde iremos caminhar. O
Município de São Paulo instaura uma nova etapa nessa seara. Será esse o projeto do futuro? O
debate irá sinalizar o quadrante em que o setor público deverá se situar.

5 - Balizamento de critérios, formas e meios do controle da Administração Pública: (art. 115) - Aqui,
merece maiores considerações a Seção que trata do controle externo. Essa atividade, a cargo do
Poder Legislativo dos entes da Federação, tem fundamental participação dos Tribunais de Contas.
Nessa quadra, destaca-se:
• despolitização das Cortes de Contas - para tal, cria-se critério objetivo para investidura dos
ministros e conselheiros dessas Casas de controle (art. 123). Trata-se de instituições de
natureza técnica e, assim, o critério de investidura de ministros e conselheiros deve ser
igualmente técnico;

• vedação de que o indicado tenha ocu pado função política nos três anos anteriores à
indicação ou durante o mandato de quem o indicar (vou mais longe, penso que não deve
haver qualquer tipo de indicação para quem já ocupou função política, afinal irão examinar
contas de políticos!);

• não ter exercido mandato eletivo durante a legislatura de quem o indicar ou na anterior;

• auditores de carreira, membros do Ministério Público, representantes da OAB e CRC e juízes


de direito integram a nova representação de indicados. Trata-se de um novo desenho no
arranjo institucional, passando a indicação a ser direcionada para servidores concursados e
integrantes dos quadros de carreira da instituição, condição semelhante para a indicação dos
membros egressos do Ministério Público. Haverá vagas reservadas para órgãos de classe como
a OAB e CRC, instituições relevantes na representação profissional e que passam a ter
compromisso direto com as indicações para ministros e conselheiros, além do próprio Poder
Judiciário, que, doravante, terá um representante com assento nas Cortes de Contas.
Reconfigura-se a composição, com um quadro infinitamente superior e com latitude quanto à
legitimidade, compromisso técnico e independência funcional. Será a redenção dos Tribunais
de Contas? O tempo dirá. Mas as mudanças se impõem;

• cria-se o Conselho Nacional dos Tribunais de Contas, órgão de controle externo para
controlar o controlador. À primeira vista, pode parecer um exagero, mas não é. Não existe
democracia sem controle, sem vigilância. Igualmente, não podem existir controladores que
não sejam controlados. O que confere harmonia ao sistema democrático é uma rede de
controle entre todos os poderes e instituições autônomas, de sorte que os pesos e
contrapesos, que Ruy Barbosa tomou emprestado dos check and balances dos norte-
americanos, possam trazer segurança e tranquilidade também para a vital função do controle.
Será, à semelhança do CNJ e CNMP, um organismo autônomo, não corporativo e que
funcionará como um ombudsman, um ouvidor da sociedade acerca do desempenho dos
Tribunais de Contas;

• tipifica como crime de responsabilidade os atos de membros dos Tribunais de Contas, dos
auditores e dos membros do Ministério Público junto ao Tribunal que atentem contra a
Constituição e a probidade na Administração Pública (art. 126), dentre outras. Grande parte
das irregularidades apontadas pela mídia ou denunciadas pelas organizações não
governamentais deveria ser detectada a tempo e a hora pelos Tribunais de Contas. Essas são,
por excelência, instituições criadas pelo Poder Público para controlar todas as demais
instituições públicas do país, mas não têm tido capacidade de oferecer esse controle, não
controlam com a oportunidade, eficiência e efetividade que se exige delas, por não estarem
funcionalmente estruturadas de forma independente. Contrariamente, ao longo de suas
histórias, os Tribunais de Contas têm se acantonado junto ao poder político, e esse vício
funcional debilita, macula e ilegitima sua ação, além de torná-los inoperantes. Basta ver que
os processos de contas, ontologicamente estruturados, não têm se prestado a atender aos
reclames de nossa sociedade. O Ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, de
forma serena, já proclamou: O desiderato constitucional é este. Se, na prática, os Tribunais de
Contas muito se distanciam da função que lhes confiou a gloriosa Lex Legum de 1988, trata-se
de disfunção ou de defecção que urge corrigir. [...] Ou eles funcionam bem, ou tendem a
embotar. E pelo embotamento operacional, assujeitam-se mais e mais a pressões sociais de
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pura e rasa extinção. O que desejamos é sua reestruturação para se adequarem à nova
ordem de organismos públicos eficientes, probos, funcionalmente estruturados em
conformidade com os princípios democráticos e republicanos de investidura de seus membros,
seguindo critérios de competência em contraposição à perversa cultura da indicação e
vinculação política. Já dissemos e reafirmamos: [os Tribunais de Contas são] uma instituição
cujo traço mais vigoroso de sua razão de existir é a mais ampla autonomia e distanciamento
do poder político. Isso se impõe por serem as Cortes de Contas instituições de controle de
todas as demais emanações da organização pública. E é lógico-dedutivo que, se laços de
afinidade ou intimidade existirem, tornará viciado todo o processo de escolha, a toda
evidência.3

Em face do paradigma inaugural da nossa Constituição, a do Estado democrático de direito, passa-se


a exigir que o Setor Público se abra de forma definitiva à dimensão democrática. Essa exigência se
impõe principalmente nos casos de elaboração e discussão do ciclo orçamentário, que só serão
válidos se houver efetiva comprovação da participação de segmentos da sociedade.
Contudo, não somos ingênuos a ponto de acreditar que, apenas com o surgimento de uma nova
norma jurídica, as práticas seculares de desvios na Administração Pública irão se transmudar, como
num passe de mágica. Não, Paulo Neves de Carvalho já nos alertou em seus sermões: A lei não nos
torna conscientes de coisa alguma. Nós é que temos de desenvolver em nós mesmos a condição de
desenvolver os valores e dar raízes a eles dentro de nós.4 Ou seja, jamais podemos nos acomodar
com a crença de que uma nova ordem jurídica irá cobrir nossa sociedade com o manto da decência,
da ética e do respeito ao uso dos recursos públicos. O fenômeno democrático exige, para seu
desiderato, uma eterna vigilância, já dizia Thomas Jefferson.

Enfim, trata-se de um conjunto de novas regras de convívio, que buscam extirpar condutas e
omissões que nossa sociedade não mais tolera. É bom que nossos gestores públicos abram os olhos
para essa dimensão e que esse novo des pertar da consciência cidadã não seja mais uma vez
frustrado. O que se espera é que nossos congressistas tenham a sensatez de dar uma resposta digna
à sociedade brasileira com a aprovação desse projeto de lei complementar. Dias melhores virão.

1
COELHO NETO, Milton. A transparência e o controle social como paradigma para gestão pública no
estado moderno. In: FIGUEIREDO, Carlos Maurício et al. Administração Pública: direito
administrativo, financeiro e gestão pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
2
BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. In: SOUZA, Alfredo José de
et al. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 2. ed. ampl. Belo
Horizonte: Fórum, 2004. p. 191.
3
KELLES, Márcio Ferreira. Controle da administração pública democrática: os Tribunais de Contas no
controle da LRF. Prefácio de José Alfredo Baracho Júnior. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 233.
4
CARVALHO, Paulo Neves. Palestra. In: CONGRESSO MINEIRO DE MUNICÍPIOS, 19., Belo Horizonte.
21 maio 2002, Expominas-BH.

Informações bibliográficas:

Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado
em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

KELLES, Márcio Ferreira. Qualidade fiscal e transparência: já era tempo. Biblioteca Dgital Fórum de Contratação e
Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 8, n. 91, jul. 2009. Disponível em:
<http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=58549>. Acesso em: 10 fevereiro
2010.

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