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PARADIGMA DIGITAL

Por Cláudia Linhares Sanz

Texto apresentado no ciclo Paradigma Digital, Fotorio 2005, no Centro Cultural Telemar.
Publicado no livro “O que é o digital? Sobre a natureza do processo”, capítulo I, In Ciclo
Paradigma digital. Guran (org.) Rio de Janeiro: Instituto Telemar, Série Arte e Tecnologia,
2006: 28-40.

Se formos aos dicionários etimológicos ou, até mesmo, aos dicionários de filosofia,
encontraremos a idéia de paradigma ligada à noção de modelo (do grego paradigma, padrão):
um conceito usado para designar a forma de estruturação e funcionamento do pensar humano,
um modelo de pensamento compartilhado por uma comunidade. Segundo Thomas Kuhn, o
filósofo americano da ciência que cunhou o termo na década de 1970, paradigma é um
esquema para a compreensão e explicação de certos aspectos da realidade, e “uma mudança
de paradigma" seria um modo completamente novo de pensar antigos problemas. Quando
falamos, portanto, em paradigma digital, estamos supondo que há uma maneira própria de
pensar, de produzir e estruturar o conhecimento, imbricada com as novas tecnologias digitais.
Realmente, talvez não seja exagero dizer que, sobretudo nas últimas duas décadas, as
novas tecnologias produziram um impacto surpreendente e incontornável nas mais variadas
dimensões da vida humana – tanto nas áreas mais sofisticadas do conhecimento científico
quanto nas nossas práticas mais cotidianas. Essas mutações, no entanto, são, muitas vezes,
descritas apenas pela virtuosidade dessas novas tecnologias, por detalhes dos funcionamentos
maquínicos impensáveis até então. É como se fôssemos tomados por um deslumbre pelas
novas potencialidades dos aparelhos digitais e nossas análises ficassem atadas a um certo
determinismo tecnológico, operando a partir de uma lógica de causa e efeito, em que a causa
fosse os novos aparelhos digitais, e o efeito fosse essa pretensa mudança de paradigma, essa
alteração radical no modo de estruturarmos nosso pensamento.
Mas o que são as máquinas senão objetos reverberantes da subjetividade, lugar em que
faíscam nossas noções de memória e esquecimento, nossos conceitos e experiências do tempo
e do espaço? O que é a tecnologia senão um lugar de formação discursiva, estética, política e
social? De fato, podemos evitar essa relação de causa e efeito e considerar essas tecnologias
digitais efeito-instrumentos da subjetividade contemporânea: lugar de confluência de diversos
saberes e, ao mesmo tempo, de produção de novos saberes; lugar que reflete nossas atuais
modalidades de experiência e, ao mesmo tempo, que intensifica, desdobra e difunde tais

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experiências; objeto que evoca certa relação entre sujeito e mundo, sujeito e tempo. Deleuze,
nesse sentido, afirma que as máquinas são sociais antes de ser técnicas: “As máquinas não
explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos coletivos dos quais elas são apenas um
parte”.
Assim, a fim de não cairmos num simples determinismo tecnológico, podemos
considerar aqui a idéia de paradigma digital não como algo decorrente de uma simples
mudança tecnológica, mas como uma mutação desses “agenciamentos coletivos” evocados
por Deleuze, como uma alteração mais ampla de uma rede heterogênea e irredutível de
subjetividade de que as novas tecnologias digitais fazem parte, mas que incide atualmente até
em máquinas e aparelhos analógicos.
Proponho, portanto, que pensemos a passagem do paradigma analógico para o
paradigma digital a partir do eixo da subjetividade e, mais especificamente, a partir de nossa
experiência temporal (elemento fundante da subjetividade), articulando-a aos modos de
fotografar. Ou seja, proponho que pensemos esse novo paradigma não apenas a partir dos
novos aparelhos digitais, o que uma lógica de causa e efeito poderia supor, mas a partir da
transversalidade mútua entre subjetividade e tecnologia, dos nexos e fluxos entre
temporalidade e fotografia.
Minha proposta provém de duas razões: primeiro porque acredito que no âmbito da
experiência do tempo possamos realmente identificar mutações subjetivas evidentes e cruciais
que alteram até nossa maneira de nos constituirmos enquanto sujeitos; segundo porque
acredito que a fotografia (afinal, estamos num encontro sobre fotografia) desenha, desde seu
advento, laços estreitos com essa experiência da temporalidade e que esses laços adquirem
contornos inéditos na contemporaneidade. Minha fala, então, dedica-se a levantar, a partir do
eixo fotografia e tempo, alguns traços que poderiam estar constituindo essa nova maneira de
estruturarmos o pensamento, um novo campo subjetivo que estamos chamando nesta mesa de
paradigma digital.
Se olharmos as fotografias amadoras, principalmente aquelas que integram os álbuns
de família, notaremos nitidamente essa estreita relação entre a experiência da temporalidade e
a maneira como fotografamos. As fotografias de família congregam muitas de nossas
formulações temporais: expressam nossas maneiras de tratar o presente, mas também de
vislumbrar o futuro; materializam caminhos de nos remetermos ao passado, mas reiteram
perspectivas de sua atualidade; evocam conexões com o que imaginamos que fomos, que
somos e que seremos. São, portanto, imagens da subjetividade humana, espécies de diagramas
que dariam corpo a um certo sentimento de tempo tanto na Modernidade quanto na
Contemporaneidade.

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Pensemos nos álbuns de família modernos: eles materializam as perspectivas
temporais vividas na Modernidade, em que, como aponta Koselleck, a vida individual e
coletiva é entendida como um devir progressivo que opõe passado, como espaço da
experiência, ao futuro, como horizonte aberto de expectativa a ser construído a partir das
ações presentes. Essas narrativas visuais constituem-se como ícones dos ritos da vida privada,
autocriações que visavam ao espaço interno da família. Localizados nas estantes das salas de
jantar burguesas ou nas mesas de centro dos ambientes domésticos, integravam a esfera da
privacidade e da intimidade familiar. Estruturavam-se a partir de eventos, marcos temporais
(sublinhados por alguma excepcionalidade) que desfiavam um desenrolar progressivo e
linear, reforçando um sentimento de continuidade histórica que fomentava a construção
identitária daquele grupo. O instante fotográfico demarcaria, desse modo, o propósito da
lembrança em oposição ao propósito do esquecimento. Assim, selecionar um instante para ser
visto seria uma atitude de atribuição de relevância e valor ao momento presente,
transformando, a partir daquela seleção, o fato em acontecimento e estabelecendo uma
distinção entre aquele instante e os demais. Trata-se da constituição de uma modalização
temporal a partir de linha vetorial, progressiva e, principalmente, evolutiva. De fato, como
aponta o psicanalista Benilton Bezerra, a sociedade moderna impôs – como em nenhum outro
momento histórico – uma percepção temporal capaz de engendrar a consciência de si como
processo vetorial, como ser cuja existência singular se desdobra em eventos que se sucedem
no movimento progressivo e evolutivo de uma vida particular.
É importante também dizer que as imagens dos álbuns de família pretendiam contar
algo que “realmente” aconteceu, sendo carregadas do valor documental e indicial, como se a
máquina pudesse garantir alguma visibilidade, algum acesso verdadeiro àquele real familiar.
A narrativa fotográfica da família pretendia capturar fragmentos da realidade, dizer “isso
realmente aconteceu”. Concordavam, assim, com a afirmação de Roland Barthes de que o que
estivesse exposto numa fotografia teria realmente estado lá – nem antes, nem depois, mas
exatamente naquele momento. Segundo Barthes, “o que intenciono em uma foto não é nem a
Arte, nem a Comunicação, é a Referência, que é a ordem fundadora da fotografia”. As
imagens dos álbuns de família sublinhavam a relação inexorável da fotografia com o real, sua
contigüidade com o “original”, sua hierarquia necessária com o “isso foi”.
Mas e hoje? Como nosso ‘fazer fotografias’ se relacionaria com nossa experiência
temporal?
Há algum tempo, a palm top lançou um aparelho que poderia produzir e guardar
centenas de fotos em apenas um cartão armazenador. O anúncio desse aparelho dizia: Tire 10
mil fotos com o Palm. Em vez de mural de fotos, muralha. Isso significaria a possibilidade

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hipotética de tirar, num mês, uma fotografia a cada três minutos e meio – caso o consumidor
ficasse acordado as 24 horas do dia. Se só se mantivesse desperto 16 horas, fixaria uma
imagem a cada dois minutos e meio; e, caso concentrasse sua obsessão fotográfica em
períodos menores, quatro horas, por exemplo, poderia tirar uma fotografia a cada meio
minuto. O investimento da propaganda centra-se, nitidamente, no estímulo ao insaciável
desejo, cada vez mais presente na cena atual, de produzir infinitas imagens do mundo.

No período em que escrevia minha dissertação de mestrado “Passageiros do tempo e a


experiência fotográfica”, fiz cerca de 30 entrevistas com fotógrafos amadores que tinham o
hábito de fotografar grande parte dos acontecimentos em sua vida. Raphael Koeche de
Carvalho, de 23 anos, por exemplo, fazia normalmente cerca de 500 fotos por mês. Outra
entrevistada, Natália Silva, numa viagem de 10 dias, fez 919 fotos digitais, mais de 90 fotos
por dia. Wilma Rangel, de 53 anos, tem um álbum virtual on line com 1.294 imagens de sua
família e amigos, e seu site já foi visitado mais de 50 mil vezes.
Nossa intenção aqui não é, de maneira nenhuma, a de condenar a maciça produção de
imagens como algumas perspectivas teóricas o fazem. Não há aqui nenhuma crença de que a
imagem é responsável por promover um caos de proliferação de simulacros. O que nos
interessa é perceber como o ritmo dessa produção de imagem, e, no nosso caso, da imagem
fotográfica, está relacionado a um contexto mais amplo, que envolve outras produções
(incluindo a escrita), e se vincula à experiência subjetiva contemporânea de aceleração
exponencial e a essa pretensa mudança para um paradigma digital.
O que acontece com aquela idéia de instante fixado e execpcional que constituía as
narrativas familiares e que, teoricamente, teria, de alguma maneira, funcionado como resposta
à aceleração moderna do tempo?

A primeira impressão que temos quando tentamos pensar a temporalidade


contemporânea é a de que a aceleração moderna, produzida a partir do século XIX,
intensificou-se exponencialmente na Contemporaneidade. A reorganização macroeconômica
do mundo e a progressiva abstração do valor e da propriedade, sustentadas pelos avanços
tecnológicos, são, mais do que nunca, desencadeadas pelo salto radical na tecnologia da
velocidade, fazendo com que a aceleração alcance graus exponenciais. Diferente da
perspectiva moderna, em que o espaço era o objetivo supremo, a perspectiva atual traz para o
centro de gravidade das atividades econômicas o controle do tempo: ele passa a ser objeto
primordial de conquista. Interessante notar que, se na Modernidade industrial o poder estava
atrelado ao volume do espaço, hoje nosso critério de valor baseia-se numa operação negativa.
O tempo é o objeto valioso, mas não por seu acúmulo; ao contrário, por sua redução. A

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década de 1990 parece viver, como bem define David Vice, da Northern Telecom, a cultura
dos milésimos de segundos. É como se o tempo se tivesse tornado um recurso tão escasso
quanto a água e o petróleo, ou em extinção, como alguns animais da Amazônia. É preciso
dispor dele sem o saborear, fatiá-lo em microinstantes, todos preenchidos por ações
sucessivas. Tão precioso, nosso tempo torna-se objeto de disputa e de desejo das forças do
mercado, que calculam de forma assustadora seu valor, transformando nossas vidas em
unidades traduzíveis em termos financeiros, em potenciais experiências de consumo. Com
efeito, o ritmo do capitalismo pós-industrial busca reduzir a duração dos processos sociais,
exaltando como valores de excelência os critérios de velocidade e de rapidez, acabando por
marginalizar ou até mesmo excluir o que demanda certa duração temporal. A duração deixa
de ser recurso para se configurar como fator de alto risco. Tratamos, portanto, de uma
experiência de duração, cada vez mais contraída, que se baseia na valorização, presente em
vários âmbitos sociais, da estética da velocidade e, sobretudo, da instantaneidade.

A própria centralidade dos meios de comunicação, também sustentados pelas novas


tecnologias, instaura regimes próprios de percepção a partir de uma nova noção de
espacialidade e de uma temporalidade em que o presente é vivenciado, através da idéia de
tempo real, como uma inexorável sucessividade de instantes cada vez mais curtos e sem
espessura. A sociedade de comunicação generalizada vive, assim, uma sucessão de
acontecimentos em que milhares de fatos são permanente e incessantemente veiculados, numa
verdadeira superabundância informacional. Não são apenas, portanto, os transportes ou as
viagens que se tornam cada vez mais rápidos; a estética da velocidade e da obsolescência
acelerada está presente nos objetos, nas idéias e nos gostos mais cotidianos. Como escreve
Milton Santos, “ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz a considerar a
velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude”.
É interessante notar que a fotografia da vida privada acompanha as transformações da
experiência temporal e se investe também da lógica da aceleração exponencial e da
instantaneidade. Ver, fotografar e ver, tudo em alguns segundos. Ver, fotografar e deletar.
Ver, fotografar e novamente fotografar em pequenos instantes. Por que motivo nos pareceu
importante produzir câmeras que veiculassem os “duplos” da realidade no momento mesmo
em que estamos ainda diante dessa realidade? É claro que ter controle absoluto sobre a
produção da imagem fotográfica sempre foi uma espécie de imaginário corrente entre os
fotógrafos, mas esse descontrole era tolerado como propriedade inevitável do processo
fotomecânico. Ver as fotografias após serem reveladas podia causar certo desconforto, mas
fazia parte da experiência de reenquadrar, através do olhar presente, os fatos passados.

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Talvez possamos dizer que aquelas fotografias dos álbuns de família modernos,
reveladas posteriormente ao clic, acabavam mediando uma relação temporal não apenas com
o presente, mas também com uma projeção de futuro e com um projeto de construção do
passado como espaço da experiência. A possibilidade atual de revelar a imagem no momento
mesmo em que é feita parece apresentar uma espécie de sintoma de uma mudança profunda
na mediação entre sujeito da história e experiência do tempo. Não deixamos de fotografar
para, um dia, poder recordar aquele evento; mas, quando a imagem se revela no presente, essa
revelação integra-se de maneira inédita ao próprio fato como elemento de sua realização. A
câmera digital torna-se não apenas um aparelho capaz de possibilitar a apreensão imediata da
imagem final, mas também uma maneira de intensificar o presente que, cada vez mais rápido,
se torna passado. É como se, além do sentido de memória, o fotografar estivesse sendo
movido, cada vez mais, também por uma necessidade de presença no instante. A aceleração
da aceleração solicita o uso da imagem como uma espécie de desdobramento do agora no
agora.

É como se, sem as imagens, aquele momento fosse menos vibrante. Isso não significa,
entretanto, que estejamos substituindo uma vivência real por uma vivência virtual (numa
simples oposição entre real e virtual). Não estamos mais ausentes porque vivenciamos o
momento a partir da tela; tal experiência também revela um tipo de presença. Talvez o prazer
de ver as fotos assim que as tiramos não esteja ligado apenas a uma exigência de qualidade
estética (com a foto e conosco mesmos), mas se relacione com um rito de celebração do
presente, vivido, individual ou coletivamente, através da tela. Uma ampliação do real e do
agora, “Porque, aliás, a vida é agora”, como enfatiza o comercial do Visacard.
Por outro lado, a capacidade de armazenamento dos equipamentos digitais permite ao
usuário, além de intensificar o presente, colecionar milhares de momentos, numa sucessão
extraordinária de imagens e eventos. Será que as fotografias digitais tiradas a todo instante
objetivam atribuir valor e singularidade aos momentos que “escolhe”? O sentido desse
fotografar incessante seria o mesmo daquele fotografar moderno que visava, de alguma
maneira, a extrair um certo momento da duração, frear a aceleração e constituir, por meio de
figuras relevantes, o passado como espaço da experiência? Se nos álbuns de família modernos
a fixidez das imagens fotográficas integrava uma narrativa composta por marcos temporais,
eventos singulares e excepcionais, hoje parece querermos fotografar todos os eventos,
alterando a função moderna da fotografia de atribuir singularidade e alteridade a um
determinado instante. Como lembrar algum acontecimento se o acontecimento é registrado
em milhares de fotografias?

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Talvez possa ser dito que, quando o número de acontecimentos noticiados é
gigantesco, há uma espécie de cancelamento mútuo: todos os fatos são acontecimentos e, ao
mesmo tempo, nenhum o é efetivamente. Trata-se de uma ampliação do presente que,
paradoxalmente, nos causa a impressão de que o presente é cada vez mais exíguo,
perpetuamente veloz na medida em que o que sentimos são instantes sem densidade que se
sobrepõem aceleradamente uns aos outros, sem ruptura, sem começo, meio e fim, numa
repetitiva e infinita seqüência de instantâneos fotográficos. É como se a torrente de imagens
fotográficas integrasse a produção, em ritmo inflacionário, do acontecimento contemporâneo.
Tais fotografias funcionariam, simultaneamente, como maneiras de responder a essa sensação
de velocidade exponencial e de reforçá-la ainda mais; atitudes que parecem desejar
desacelerar os acontecimentos e, ao mesmo tempo, engendrar funcionamentos ainda mais
velozes no corpo do sujeito.

Além do mais, a maneira como as imagens de família são exibidas também parecem se
alterar na contemporaneidade. As imagens que antes faziam parte da esfera da vida privada
são atualmente veiculadas publicamente. Os fotologs e os álbuns virtuais, que
progressivamente parecem ocupar o lugar dos tradicionais álbuns de família, possibilitam ao
sujeito contemporâneo compartilhar publicamente as imagens de sua vida íntima, tornando-se
visível e projetando novos sentidos a suas experiências. Com efeito, trata-se da instauração
crescente de um regime de visibilidade em que o declínio da interioridade é também
acompanhado por crescente interesse público pelo íntimo e pelo individual. A vida privada
não é mais um segredo a ser protegido pelos guardiões da família; a experiência pessoal, tanto
individual como familiar, é objeto de interesse público e deve ser exposta.

Podemos citar como exemplo desse processo o prêmio Mother Jones, que a fotógrafa
Nan Goldin ganhou em 1995. Esse, como sabemos, é um dos prêmios mais significativos da
fotografia documental internacional e, nesse ano, contemplou um tema inusitado, até então,
para uma premiação de fotografia documental: o “diário fotográfico” de Nan Goldin, no qual
ela retrata, sem pudores, sua mais íntima privacidade. As fotografias, realizadas em espécie de
estética amadora, são flagrantes “casuais” da subcultura urbana e artística da qual a fotógrafa
faz parte. Instantâneos seus e de seus melhores amigos em festa, fazendo sexo, usando o
banheiro. Nan Goldin inclui, em seu ensaio, até mesmo auto-retratos após uma surra que
levou de seu namorado, seu rosto machucado, e as imagens do quarto sujo de sangue. Um dos
títulos de seus principais trabalhos, “eu serei o seu espelho”, é uma síntese de sua obra. A
premiação da fundação Mother Jones, tradicionalmente concedida a fotógrafos documentais
que desenvolvem denúncias sociais relevantes e trabalhos sobre temas humanitários, aponta

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uma mudança interessante, que pode estar relacionada à configuração desse universo de
visibilidade, em que se desenvolve um tipo de interesse público, cada vez mais intenso, pelos
dramas da intimidade.
Não é apenas a vida privada das celebrities que se torna “interesse público”. Cada vez
mais, a pessoa comum, sobretudo aquelas das classes favorecidas, parece desejar compartilhar
publicamente suas experiências íntimas. As novas tecnologias, como as câmeras digitais e os
fotologs, funcionam como ótimos dispositivos para o indivíduo que encontra no “tornar-se
visível” uma maneira de construir sua identidade. Assim, as fotografias e os textos veiculados
nesses espaços virtuais não são apenas relatos da vida cotidiana: são novas modalidades de
expressão e comunicação, novas narrativas do “eu” que, em vez de estar escondidas no íntimo
do sujeito ou nos segredos de uma família, estão sendo construídas a partir de sua exposição.
Parece haver, portanto, uma reformulação nos modos como as imagens de nós mesmos
passam a ser construídas, como se existíssemos à medida que fôssemos capazes de fazer saber
que existimos.

É importante dizer que nos weblogs pessoais, assim como nos webcams e reality
shows, os limites que separam realidade e ficção são ainda mais tênues. Não há, como no
fotojornalismo poderia haver, valorização da realidade em detrimento da ficção ou ênfase
numa essência em detrimento da aparência. Talvez possa ser dito que não há sequer distinção
entre esses conceitos. As fotos expostas nos fotologs não são mais ou menos valorizadas por
estar mais ou menos de acordo com o que “realmente” aconteceu. Não há mais, portanto, uma
valorização em dizer “isso foi”. A verdade é o que se mostra e como se mostra. A verdade não
se inscreve, portanto, num regime único de inteligibilidade, mas numa demanda de
intensidade perceptiva que não necessariamente significará alguma construção de sentido
verídico.

Assim, no âmbito epistemológico, parece haver um processo que, tendencialmente,


atrela nossas experiências mais à intensidade perceptiva do que a sentidos e inteligibilidades,
embaralhando definitivamente a oposição entre verdadeiro e falso, objetivo e subjetivo,
virtual e real, passado e presente. São imagens de diversos passados presentes e de milhares
de acontecimentos, organizadas não em uma linha progressiva temporal, mas como variações
simultaneamente disponíveis, igualmente “reais”. Tudo parece ser como se, em decorrência
dessa nova experiência espaço-temporal e dos novos agenciamentos homem-máquina, a
progressiva virtualização desatasse, cada vez mais, os elos entre a imagem fotográfica e o
referente; é como se o “isso foi” de Barthes estivesse sendo relativizado.

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Velocidade e tempo real, presente contínuo, visibilidade e desreferencialização seriam
alguns aspectos desse novo paradigma digital. A fotografia, portanto, não está suspensa dos
jogos e conflitos que estão em negociação na atualidade. Como todo o sistema de imagens, é
engendrada por formulações acerca da verdade, do virtual, da memória e da representação.
Hoje, ela produz novas questões e também ganha outras potencialidades, cabendo aos
fotógrafos explorar esse manancial.

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