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Medicina sem sangue

Com base em evidências científicas, médicos e hospitais têm adotado


protocolos para racionalizar o consumo de sangue nos mais diversos
tipos de tratamentos

Já faz um certo tempo que a real necessidade do uso do sangue como


um recurso terapêutico tem sido questionada. De acordo com uma
série de pesquisas nacionais e internacionais, a transfusão, em alguns
casos clínicos, pode trazer mais riscos do que benefícios à saúde do
paciente. Para solucionar os problemas sem recorrer ao procedimento,
a Medicina moderna adotou um conjunto de medidas denominado
Programa de Gerenciamento do Sangue que, por meio de novas
técnicas, aparelhos e medicamentos, disponibiliza alternativas de
tratamento comprovadamente seguras e eficientes. Ribeirão Preto
abriga um exemplo positivo nesse sentido, visto que o Hospital São
Lucas já está implementando esse modelo de atendimento.

O empenho das Testemunhas de Jeová foi um fator determinante para


que essa evolução acontecesse. Por convicções religiosas, esses fiéis
não se submetem à transfusão de sangue. Em busca de diferentes
caminhos para salvar vidas, o grupo se muniu de informação e,
embasado por evidências científicas, iniciou um trabalho de estudos e
de conscientização sobre o tema. Foi então que surgiu a Comissão de
Ligações com Hospitais para as Testemunhas de Jeová (COLIH). Em
funcionamento desde 1987, a rede conta, atualmente, com cerca de
1.700 delegações, atuando em, aproximadamente, 110 países. Na
entrevista a seguir, Irimar José Jácomo, presidente da COLIH de
Ribeirão Preto e região, explica melhor essa limitação, revela as
conquistas alcançadas até aqui e comenta sobre o impacto dessa
iniciativa, que vai além da questão da fé.

Em alguns casos clínicos, o sangue pode trazer mais riscos do que


benefíciosPor que a COLIH foi criada?
Para facilitar a comunicação entre médicos e hospitais com os
pacientes que são Testemunhas de Jeová. Fazemos um trabalho junto a
médicos e hospitais, fornecendo artigos e informações sobre as
possibilidades de tratamentos sem sangue. Também realizamos
apresentações sobre o tema e oferecemos assistência pastoral. É um
serviço gratuito, disponível 24 horas.

Por que as Testemunhas de Jeová não concordam com o uso do sangue


como um recurso terapêutico?

É importante frisar, antes de tudo, que as Testemunhas de Jeová amam


a vida e querem preservar esse dom da melhor maneira possível. A
ideia de que não procuramos o médico quando estamos doentes, de
que não nos cuidamos e de que não aceitamos medicação é um mito.
Temos uma única restrição nessa área da saúde, que é a do não uso do
sangue. Entendemos que a injunção bíblica de abstenção de sangue,
encontrada em Atos 15:28, inclui, também, a utilização dessa
substância como medicamento. Portanto, estão proibidas a transfusão
de sangue total e a de qualquer um de seus quatro principais
componentes: glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e
plasma.

Esse posicionamento ainda gera conflitos entre a autonomia do


paciente e a responsabilidade médica?

A constituição brasileira estabelece os direitos e os deveres tanto de


pacientes quanto dos médicos. O direito de recusa do paciente, em
qualquer forma de tratamento contrário à sua vontade, está previsto na
legislação e deve ser respeitado. Apesar disso, aqui no país, ainda
presenciamos desentendimentos em torno do assunto, talvez por falta
de informação. Alguns especialistas se negam a prestar atendimento
se a pessoa que precisa de assistência, ou a família dela, não autorizar
a transfusão. Quando isso acontece, a COLIH pode ajudar, pois
mantemos um registro atualizado de colaboradores, com profissionais
e instituições favoráveis ao tratamento sem sangue.

A demanda desse público por métodos diferenciados foi um dos fatores


que estimulou estudos científicos mais aprofundados na área da
saúde?

Sem dúvida. Graças a essa recusa, hoje, existe uma vasta literatura
médica mundial com pesquisas e estudos mostrando os pontos
positivos e os negativos do uso terapêutico do sangue. Diversos
profissionais, de diferentes áreas, comprovaram, na teoria e na prática,
que o descarte da transfusão não leva o paciente, necessariamente, a
óbito, como se pensava antigamente. Pelo contrário. Na realidade, com
o intuito de suprir essa demanda, foram descobertas técnicas e
medicamentos capazes de combater as doenças de outras formas que
podem, inclusive, trazer mais benefícios à saúde do paciente. A
comprovação desse fato reduziu, drasticamente, os índices de
transfusão no Brasil e no mundo. Grandes e complexas cirurgias são
realizadas com métodos e equipamentos modernos que minimizam a
perda do sangue. Há, também, uma grande quantidade de remédios que
contemplam muitas necessidades, melhorando a qualidade no
atendimento de quadros clínicos variados.

O mesmo aconteceu no âmbito jurídico?

Sim. No campo jurídico, temos leis, jurisprudências e pareceres que


levaram a um entendimento totalmente diferente do que era, até então,
aplicado nessas situações. Hoje, tanto o Sistema Único de Saúde
(SUS), quanto a rede complementar (convênios e particular) são
obrigados a atender os pacientes que solicitarem, por convicção
religiosa ou não, um tratamento sem o uso do sangue.

Essa conscientização ultrapassou o campo religioso?

Pessoas de diferentes crenças adotam essa postura? Um número


crescente de pessoas pensa duas vezes antes de aceitar o sangue
como forma de tratamento para si e para os familiares em cirurgias
eletivas. Isso acontece com pacientes de variadas crenças, que se
aprofundam no tema e descobrem que o sangue nem sempre faz jus ao
seu apelo de salvar vidas.

A transfusão de sangue pode trazer riscos ao receptor?

O próprio Ministério da Saúde já se pronunciou afirmando que não


existe nenhum tipo de sangue totalmente seguro. O manual da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também aborda os riscos
advindos de sangue. Muitas doenças não são detectadas nos exames
laboratoriais. Até um simples vírus de gripe pode ser extremamente
prejudicial quando colocado em um paciente debilitado durante um
procedimento cirúrgico ou em uma UTI. Ainda hoje, existem relatos de
pessoas que contraíram Doença de Chagas, Hepatite B e C e AIDS, por
exemplo, após uma transfusão. Além de tudo isso, há a possibilidade do
organismo receptor rejeitar o sangue doado, desencadeando uma série
de complicações.

O que acontece quando o paciente está incapacitado de opinar sobre o


tratamento e um familiar tem que assumir a decisão?

A maioria dos nossos membros antecipa esse problema portando ou


mantendo em lugar conhecido o “Cartão Diretivas Antecipadas e
Procuração para Tratamento de Saúde”. Esse documento, com firma
reconhecida e com dois procuradores, manifesta a opinião do paciente
que, mesmo inconsciente, deixa clara a sua posição sobre os
tratamentos que aceita e os que se opõe. Ao mesmo tempo, essa
declaração isenta médicos e hospitais de qualquer ação posterior por
fazerem valer a sua vontade.

Qual a orientação se a transfusão for a única saída para solucionar o


caso?

Nessas situações, cabe a cada paciente decidir, com base em sua


consciência, se vai se submeter a um tratamento com sangue ou não.

Quais são as medidas alternativas disponíveis para quem não quer se


submeter a esse procedimento?

Atualmente, existem algumas alternativas — entre medicamentos,


técnicas e aparelhos — para tratar pacientes que não aceitam o
sangue, como dispositivos cirúrgicos para minimizar a perda de
sangue; métodos e dispositivos para controlar hemorragia e choque;
dispositivos que limitam a perda sanguínea iatrogênica; técnicas
cirúrgicas e anestésicas para limitar a perda sanguínea; expansores de
volume, agentes hemostáticos para hemorragia/coagulação e agentes
terapêuticos para tratamento de anemia. Em síntese, o sangue passou
a ser mais uma possibilidade de tratamento e não a única opção.

Com base nessas descobertas, foi criado o Programa de


Gerenciamento do Sangue do Paciente. As instituições de saúde têm
se empenhado no processo de implantação desse modelo de
atendimento?

No Brasil, cinco hospitais adotaram esse protocolo de atendimento,


baseado em orientações internacionais. Além disso, várias instituições
e profissionais, individualmente, são colaboradores dessa causa.
Graças ao nosso trabalho informativo — e diante dos excelentes
resultados na pesquisa e na observação pessoal — cada vez mais
médicos, de diferentes especialidades, eliminam o uso de sangue nos
tratamentos que prescrevem.

Segundo o entrevistado, os tratamentos alternativos disponíveis são


comprovadamente seguros e eficazes A população de Ribeirão Preto e
região conta com esse tipo de assistência?

O Hospital São Lucas já iniciou a implantação do Programa de


Gerenciamento do Sangue. Essa iniciativa tem o potencial de
beneficiar milhares de pessoas em toda a região. Sabemos que
estruturar um novo modelo de atendimento é uma tarefa complexa,
pois envolve investimentos em aparelhos e em medicamentos, além da
capacitação e do máximo comprometimento dos funcionários e do
corpo clínico. Só com esse conjunto completo a instituição terá o
repertório necessário para cuidar do paciente de forma eficaz
respeitando a vontade expressa dele pelo não uso do sangue no
tratamento. Quando tudo estiver pronto, acreditamos que essa
iniciativa será um marco importante no sistema de saúde da cidade.
Essa é uma tendência consolidada no exterior e, em breve, também
deve ser uma conduta padrão por aqui. Nesse quesito, o São Lucas,
obviamente, antecipa-se. Ao utilizar técnicas modernas, corpo clínico
habilitado e equipamentos avançados, eleva o atendimento dos
pacientes a níveis internacionais com muita segurança. Ao diminuir os
números de transfusões, o hospital também contribui para evitar
muitas contaminações e complicações relacionadas ao procedimento,
melhorando os índices de recuperação dos pacientes.

Texto: Paula Zuliani Fotos: Ibraim Leão

FONTE: TIRADO DO SITE REVIDE

DATA DA PUBLICAÇÃO: 19/04/2019

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