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Audur Ava Olafsdóttir

desses que “só ao silêncio ousam tratar por tu”


Entrevista
Numa outra entrevista disse que, sendo natural de um país tão pequeno,
escrevendo numa língua que tão poucas pessoas no mundo falam, lhe
dava um ângulo diferente sobre o qual observa o mundo. Num período
em que o mundo parece aderir a narrativas tão polarizadoras, a lógicas de
confronto, normas que se impõem a partir dos principais centros de
difusão cultural, como lhe parece que estes lugares e comunidades
remotas podem afectar essas grandes ficções globais?
Sim, poderia dizer que essa é a minha especialidade. Escrever a partir de
uma língua minoritária, e que tão poucas pessoas no mundo entendem. O
universo para quem escrevo, os que falam islandês, resume-se a 330 mil
pessoas. Comparando com o português, o universo global de falantes da
vossa língua é 280 milhões. Mas depois o que é decisivo é saber se tens
alguma coisa a dizer. Sabes contar histórias que abalam de algum modo a
compreensão que os outros têm do mundo? Os meus romances andam
sempre de volta de questões existenciais. Os paradoxos que nos tornam
humanos, é o que me interessa. E falando deste “Hotel Silêncio”, pode
dizer-se que é um romance que faz uma série de perguntas sobre o que é
a masculinidade, e, num âmbito mais alargado, sobre o sofrimento e a
dor. O protagonista que inventei preenche um arquétipo da ideia de
masculinidade no meu país, um homem que se sabe virar com as
ferramentas, consertar as coisas, alguém como os homens de que vivi
cercada, como o meu pai ou o meu irmão: homens bastante reservados,
que passam a maior parte do tempo silenciosos, e deixam a conversa para
as mulheres. Criei este personagem e o que quis foi enviá-lo mundo fora
para tentar consertar as coisas, pequenas coisas. E a pergunta que estou a
colocar com isto é se é possível consertar um mundo que está feito em
cacos. O nome dele é Jónas, que significa “pomba da paz”, e Ebeneser,
que significa “aquele que se faz útil”, que vem dar uma ajuda. A pergunta
é aquela que hoje muitos de nós nos fazemos: será que podemos fazer
alguma coisa, fazer a diferença? Quão importante é hoje agir de forma
correcta, praticar o bem? Assim, a moral subjacente poderia ser esta: se
sabemos o que está a acontecer, e se não fazemos nada em relação a isso,
a culpa também é nossa. Penso que uma das coisas que desencadeou a
escrita deste romance foi a sensação de que os jovens à minha volta
estavam a ficar bastantes pessimistas, jovens como as minhas filhas, ou
seja, inteligentes e informados, que se preocupam com as questões
ambientais e esta prevalência dos discursos extremados. Por isso, estava
mesmo empenhada em escrever um livro que fizesse a viagem das trevas
para a luz. Queria perceber os desígnios da esperança, aquilo que nos
arranca ao estupor. Como se pode falar sobre esses tumultos interiores
que nos silenciam, a dor, o sofrimento, lidar com as cicatrizes – o título
deste livro no original é “Cicatriz”… E se toda a gente carrega as suas
cicatrizes, seja psicológicas ou físicas, aqui o protagonista, à beira dos 49,
tem sete espalhadas pelo corpo, número que me pareceu uma boa média.
De resto, todos nascemos com uma cicatriz, que é o umbigo, que marca o
corte na ligação à nossa mãe. E é curioso que dessa ferida nasça depois
essa metáfora para o excessos do ego, as atitutes umbiguistas. O livro é
também um esforço para confrontar esse auto-centramento e o
individualismo que se exacerbaram nos países ocidentais. Trata-se por isso
de olhar as tuas cicatrizes à luz das cicatrizes dos outros. Por esta razão,
considero que este livro é o oposto de um livro de auto-ajuda.
Mas voltando à questão inicial: o que pode ter a dizer um escritor que
vem de uma comunidade tão pequena… Julgo que ser um escritor está
ligado à tarefa de organizar o caos, extrair um sentido, e um romance não
pretende encerrar uma verdade absoluta, mas apenas uma verdade
parcial. É como o desenho de uma criança, em que a árvore está ali em
representação do bosque, e um alma em conflito representa todos
aqueles que estão empenhados neste embate com a vida e o sofrimento
que nos causa. Quando escrevemos, é como se tivéssemos a tentar
produzir um concentrado, esse extracto que se adiciona quando fazemos
uma sopa, tipo caldo Knorr. Se estamos a tentar colocar as perguntas que
nos tornam sensíveis a esses aspectos que associamos à ideia de se ser
humano, o meu objectivo é encontrar esse tom digno que representa o
silêncio dos que ou emudeceram ou ainda não falaram. Parece-me que o
silêncio faz sempre parte de um processo de cura, de reabilitação. Assim,
os personagens dos meus romances são bastante silenciosos, são o tipo
de pessoas que estão naquele momento em que um problema as coloca
em causa, obrigando-as a encontrar uma saída. Estão a tentar dar o
melhor de si, e, por alguma razão, não vejo essas pessoas como as mais
faladoras. Julgo que tenho a tendência para colocar em confronto a
linguagem com a fisicalidade. Nos meus livros, tantas vezes parte da luta é
a busca das palavras numa língua que te permitem falar verdade, tornar
as personagens uma forma de expressão verdadeira. Este é um romance
bastante físico, que está sempre a colocar em evidência os gestos, o acto
de tocar, a pele, as cicatrizes… Não sei se isto se liga ao facto de escrever a
partir de uma língua e, em certo sentido, de uma consciência marginal,
mas sinto que a forma como adopta as linguagens serve para contrastar
os diferentes sentidos. A linguagem é uma ferramenta preciosíssima.
Infelizmente, hoje é destratada da forma mais grosseira nos grandes
meios de comunicação. Conseguir chamar a atenção no nosso mundo tem
cada vez mais a ver com ser capaz de gritar mais alto. É evidente, por
outro lado, que aqueles que mais gritam não tem necessariamente nada a
acrescentar. Não estou a crer mencionar ninguém em particular, mas acho
que a linguagem, como é usada, já não tem muito que ver com
comunicação, mas sim para alcançar o poder e justificar esse poder. As
pessoas no poder sabem atrofiar a linguagem para os seus fins. Ao criar
estas personagens silenciosas estou à procura de uma ficção que funcione
como uma forma de resistência aos discursos totalitários. Não gosto dos
livros que não fazem outra coisa senão justificarem-se a si mesmos,
agrilhoar a consciência do leitor, prendê-lo no interior de construções
retóricas. Prefiro contar as acções, e não pôr a ênfase nas palavras dos
personagens.

É a filha de Jónas que o informa sobre a evolução e a gravidade da crise


ambiental. A ideia que tenho de um país como a Islândia é que se trata de
uma varanda com vista de frente para este desastre. De que maneira é
que acha que esta crise existencial que enfrentamos hoje e que não tem
antecedentes em nenhum outro período da História, informa a sua
perspectiva do mundo e gera em si uma sensação de urgência?

Sim, sinto que isso tem um peso nas coisas que escrevo. É difícil escrever
hoje sem ter uma sufocante consciência de que estamos perante
problemas de uma gravidade extrema. Na Islândia, somos uma população
pequena e espalhada por um território bastante vasto. E é um território
belo e inóspito, que nos habituou à sua natureza um tanto caprichosa.
Nunca sabemos bem que tempo vai fazer, podemos sempre ser
surpreendidos por mudanças drásticas e que nos apanham desprevenidos.
E isto já assim era antes de começarmos a enfrentar as consequências do
aquecimento global. Somos o país que mais vulcões tem no mundo. Há
mais de 200 vulcões activos, e neste momento estamos a assistir ao recuo
dos glaciares a uma velocidade que quase provoca tonturas. Chega a ser
enlouquecedor a transformação a que temos assistido nas últimas
décadas. E o perigo num país com tanta actividade vulcânica é que, à
medida que os glaciares derretem, há zonas que se tornam bem mais
activas e perigosas. A sensação que temos de que o país, tal como o
mundo, está diante de uma verdadeira emergência é algo difícil de
aquietar. A maioria de nós já se deu conta de que, face a este drama, não
haverá fronteiras nem refúgios que nos salvem de o sentir na pele. O
problema ainda é a classe política que prefere jogar ao jogo da batata
quente, e esperar que seja outro a resolver o problema. Por isso, neste
momento não me parece que alguma coisa de substancial possa mudar
até que sejam os povos a exigi-lo.

Na conversa que tem com o vizinho, Jónas diz que uma das coisas de que
a mulher se queixava antes de o abandonar era de que, nas suas
conversas, ele muitas vezes não faziam mais do que repetir o que ela
acabara de dizer dando-lhe uma outra entoação. Transformando em
pergunta uma afirmação, por exemplo. Parece ser uma forma de ir buscar
um protagonista que estava reduzido à condição de espelho, no início.
Parece incapaz de agir, e assim, limitando-se a absorver o mundo à sua
volta, a sua depressão parece resultar de um excesso de mundo…
Sim, é um conto sobre a transformação que ocorre num homem a partir
do momento em que entram em diálogo aquele que ele foi na juventude,
antes de se casar, e aquele que ele é depois de ser abandonado pela
mulher. Obviamente, ele perdeu-se de si mesmo nalgum ponto. Isto tende
a acontecer-nos, e isso representa muitas vezes aquilo a que chamamos a
crise de meia-idade. A questão é saber qual desses fios soltos devemos
pegar para prosseguirmos. Ele está a enfrentar uma crise existencial
pessoal, mas esse é o método que eu descobri para trazer para a esfera
íntima as questões avassaladoras com que somos confrontados hoje.
Podemos sempre elevar as coisas a outra escala, mas não me parece que
o sofrimento deste homem seja menos importante ou ressoe menos do
que o de outra pessoa a lidar com alguma catástrofe que afectou
milhares. O sofrimento é sempre incomparável. Ao não identificar o país
devastado pela guerra civil para o qual ele viaja, o propósito foi mesmo
sugerir que esse não-lugar pode ser qualquer lugar, ou pode estar bem
perto de nós. Nos meus livros tento que o tempo e o espaço não sejam
elementos estruturantes. É suposto ser mais perto do que ao início
suspeitávamos.
Normalmente, depois de uma guerra, recai sobre as mulheres a tarefa de
curar e reconstruir a sociedade. No rescaldo de uma guerra toda a gente
se sente sujo de alguma maneira. A justiça pode tornar-se um pesadelo se
procurarmos julgar as pessoas que passaram pela guerra como aquelas
que vivem em tempos de paz. A valores morais dobram bastante com o
calor da guerra. Muitas vezes, a sensação que têm os sobreviventes de
uma guerra é que todos eles são os verdadeiros perdedores. Talvez só a
indústria do armamento saia realmente vencedora de uma guerra. Assim,
Jónas vê aqui a possibilidade de ajudar as duas irmãs donas do Hotel no
seu esforço para ajudar a pôr de pé aquele país. Quando o vemos a
reparar máquinas de lavar percebemos que esses pequenos consertos são
o método pela qual uma sociedade se reergue. Não é preciso actos
heróicos depois do fim da guerra, basta que as pessoas se unam no
esforço para trazer de volta aquilo que se perdeu.

Não me parece que um romance possa ser uma obra inocente. Julgo que,
se o escritor for consciente daquilo que faz, tudo aquilo que é posto num
livro tem uma expectativa sobre o que o leitor irá descobrir ao lê-lo. Por
isso, todos os romances são grandes metáforas. E se eu queria falar sobre
as mulheres, percebi que tinha de ter um protagonista masculino. Da
mesma maneira que se queres falar da vida, irás confrontá-la com a
morte. É assim que funciona a ficção, estabelecendo oposições, criando-as
se preciso. Nos meus livros, a questão que estou sempre a pôr é: como se
pode sobreviver a isto?

Parece que nos seus livros busca reforçar o lado simbólico, a força de
caçar o mundo através de metáforas, e isto num momento em que a
tendência do debate público parece puxar para o lado literal, retirando
margem à ambiguidade. A literatura parece ocupar uma região fronteiriça,
com uma corda a passar sobre ela e sendo puxada entre os dois lados.
Quando fala sobre questões como a igualdade de género, a
masculinidade, etc., sente que esses temas se tornaram espinhosos para
quem não grita, mas prefere falar para quem sabe estar em silêncio?
Quando escrevo, não me interessa de todo estar a pregar ao leitor, apenas
quero contar uma história. E, na verdade, em grande medida os aspectos
centrais do que se passa nas histórias que conto desenrolam-se nas
entrelinhas. É aí que espero que o leitor possa entrar, encontrar um
sentido. O principal do trabalho de criação para mim está em dotar essa
zona intersticial de elementos que intriguem o leitor. É claro que nunca
estou em condições de prever ou controlar aquilo que o leitor vai
depreender. Em relação às questões de género, é algo que está presente
em todos os romances que escrevi. Penso que o papel do escritor é
precisamente o de causar a barafunda nos clichés, nos valores tradicionais
no tocante aos sexos. O meu anterior romance, “Rosa Candida”, era sobre
a sensibilidade masculina, a paternidade, e sobre o desejo das mulheres
de se libertarem daquilo que delas se espera. Neste, ainda estou a
explorar noções de masculinidade, virilidade, etc. Pouco depois de ter
começado a escrevê-lo, vi um documentário sobre soldados norte-
americanos que tinham regressado da guerra no Afeganistão e que
estavam a sentir muita dificuldade em reintegrar-se. Sentiam-se atirados
para uma espécie de limbo, e eram homens que estavam a receber
tratamento numa espécie de clínica especializada em casos de pessoas
que vivem constantemente com a dor. Havia um tipo que confessou que
desde os tempos de miúdo que sempre quis matar alguém, e que a única
maneira legal que tinha de o fazer era alistar-se no exército. Isto bateu-me
de tal maneira que me provocou uma sensação de choque, pois nunca
tinha imaginado que o desejo de matar pudesse ser uma necessidade
existencial para algumas pessoas. Daí é que me veio a ideia de um
protagonista que, entre uma coisa e a outra, preferisse morrer a matar.
Diz-se que são os vencedores que escrevem a História. Talvez seja assim,
mas o que me interessava era pensar nesse momento de suspensão após
uma guerra, quando o passado deixa de estar na balança, e não se pode
apurar responsabilidades, a justiça tem de aquiescer face à necessidade
de permitir que as feridas cicatrizem. No fundo, torna-se imperativo
esquecer, começar do zero. Do sniper que alvejou este e aquele, pouco
mais se saberá além de que terá feito parte do coro. Mas não interesse se
foi um barítono ou um tenor, esses aspectos tornam-se irrelevantes. A sua
vida resume-se às vidas que ceifou... Por isso, se não se pode perdoar, só
resta tentar esquecer. O mesmo se pode dizer sobre a subjugação das
mulheres. Não me interessa nos meus livros criar um equilíbrio perfeito
mas aprender a lidar com a falha. O leitor dos meus livros tem de se
habituar ao desconforto de fazer os seus próprios juízos sem esperar que
o destino das personagens satisfaça as suas inclinações. Em relação às
questões do feminismo, parece-me que dá tanto trabalhar seguir o papel
que a sociedade nos atribui como lutar contra ele. Ter filhos, não ter...
Cumprir, e sofrer em silêncio, ou revoltar-se, virar as costas, sentir-se
proscrito. Qualquer escolha, é difícil.

Uma descrição que li deste seu livro fala dele como uma espécie de
fábula. Parece-me ajustada essa ideia em contraposição face aos
romances que descendem daquele realismo flaubertiano, esses romances
monumentais e que parecem desejar capturar os detalhes mais ínfimos,
capturar o leitor num simulacro da realidade... Depois há uma tradição
anterior das fábulas, das histórias que servem um substrato, muitas vezes
de ordem moral, e, ao invés de reproduzir o mundo quase a escala 1:1 se
contentam com uma perpectiva que depende mais da imaginação do
leitor. Quando nos fala de um país sem nome, pode ficar em lugar
nenhum ou em toda a parte, pede ao leitor que preencha as partes em
branco.
Julgo que escritores como o Flaubert, Tolstói ou Dostóievski, também
estão a apurar extractos da realidade. Simplesmente, fazem-no em
trabalhos de maior fôlego, tomos monumentais. Eu não vou além das 300
páginas, isso chega-me. O meu método é limpar, riscar, cortar tudo aquilo
de que possa abrir mão. Pelo menos neste livro. É claro que a cada livro
tento fazer coisas diferentes. Normalmente, a forma como lido com o
tempo varia bastante de um livro para o outro. Neste, o que me
perguntava é quanto é que poderia cortar sem que a história desabasse.
Sabemos que a mesma parte do cérebro que lida com as memórias é
aquela que usamos no nosso processo de imaginação. No fundo, lembrar
e imaginar são duas funções para a mesma ferramenta. Quando escreves
um desses romances monumentais, os factos ficam despegados se não te
servires da imaginação para cosê-los, dar-lhes uma coerência. Trabalho as
histórias por camadas, e não me preocupa que o leitor se fique apenas por
uma delas. O mais difícil parece-me ser atingir significados profundos
através de um acesso simples.

Durante muitos anos fui professora na Universidade. Criei a disciplina de


História de Arte no meu país. Apercebi-me de que dar aulas a adultos não
era assim tão complicado. É uma constante troca de ideias. Mas ensinar os
miúdos, aí precisas mesmo de saber o que estás a fazer. Com os mais
novos, face à inexperiência deles, à confiança que depositam em ti, aí sim
tens de encontrar uma forma simples de ensinar o que tens para ensinar
sem criar vícios na maneira como olham para as coisas e as julgam.
Portanto, seja o Flaubert ou esta pobre escritora que eu sou, é tudo uma
questão de método. Acho que o que me distingue no contexto da
literatura islandesa é o meu estilo pessoal ser facilmente reconhecível.
Escrevo os livros pesando cada frase. Interessa-me um registo poético, em
que cada frase se tenha de pé. Quando entro numa livraria, leio a
primeira frase a última, e se elas me intrigam, me dão a sensação de estar
ali um outro, compro livro, seja qual for o género ou o tema. Seja como
for, ele há tão poucos temas à volta dos quais se possa criar uma obra
literária. Tem de ser pela originalidade da voz. Em certo sentido os meus
livros são romances de formação, pois há sempre neles a viagem de um
protagonista que é transformado pelas experiências que vive e torna-se
uma outra pessoa, que encara o mundo a uma luz diferente. Essa é a
minha definição de beleza, uma obra de arte que transforma o nosso
olhar.

Para autores como eu, nascidos em ilhas, a questão da viagem é quase


sempre um aspecto incontornável. A verdade é que um escritor nem é
levado a sério se não tiver viajado, andado pelo mundo. Não é atribuída à
sua palavra o peso que se exige de alguém que pretende guiar-nos,
mostrar-nos o mundo. A própria ideia de maturidade é um rito de
passagem que está ligado à experiência do mundo, a uma conquista que
só é possível indo embora. E a ânsia de ir embora é poder regressar um
dia como uma outra pessoa.

Agora que está dedicada apenas à escrita, tendo este livro sido traduzido
em tantos países, gostava de saber se, ao confrontar-se com as traduções,
sente que é como ver a sua pele refeita, como um tecido cicatrizado...
Como sente a sua pele nessas outras línguas? Sente a tradução como um
reflexo e ao mesmo tempo um eco transfigurado?
Sinto-me um pouco perdida quando me leio nas outras línguas. Uma das
coisas boas de se ser um autor traduzido é ter a oportunidade de
conhecer os tradutores. Tenho uma enorme admiração pelo trabalho dos
tradutores, que me dão uma voz na outra língua. E dizem-me que é difícil
traduzir a minha prosa por causa daquele tom poético, e por eu usar
várias palavras que apenas encontram um sinónimo na língua de chegada.
O islandês é como o latim das línguas nórdicas, é a língua mais velha das
que hoje se falam na Europa. Muitas vezes temos a sensação de que as
outras línguas nórdicas não passam de cursos de água que se
despontaram do islandês e seguiram um caminho autónomo. Por isso, o
mais difícil é manter a musicalidade da frase. Dos seis romances que
escrevi, e sete peças de teatro, creio que cada um segue a sua própria
música. Parece-me que o que é decisivo é encontrar um registo que seja
fiel ao que passa nas entrelinhas no original. É preciso que a voz do
personagem reverbere na forma como o espaço em volta é descrito, e que
se sinta o silêncio das coisas que prefere calar. Não é só a música mas o
silêncio, o respeito por esse espaço. Por isso, tenho uma admiração
enorme pelos tradutores, muitas vezes mal pagos... Dediquei-lhes o
prémio que ganhei, o Nordic Counsel Literary Prize. É o que acontece
quando se escreve numa língua que quase ninguém conhece, ficamos
dependentes dos tradutores para fazer a viagem até outras paragens. E
isto é realmente problemático, porque havendo tão poucas pessoas que
dominam a língua, normalmente consegues a tradução para o inglês ou o
francês, e as outras são feitas a partir dessas, ou acabas numa lista de
espera. Recebo emails de tradutores da Europa de Leste que me dizem
que um editor comprou os direitos do meu livro, e que adorariam traduzi-
lo, mas estão ocupados com uma trilogia de algum outro autor islandês.
Normalmente, os tradutores que vivem na Islândia, como o meu tradutor
francês, o inglês e o italiano, são pessoas com histórias pessoais similares.
Nenhum deles esperava tornar-se tradutor, mas casaram-se comum
islandês, tiveram filhos, às vezes até se divorciaram, e depois tiveram de
arranjar alguma coisa para se sustentarem permanecendo na ilha, por
causa das crianças. Assim, começaram a traduzir. Trabalhei de perto com
Brian FitzGibbon, o meu tradutor para inglês, li também a francesa e a
tradução italiana, e ainda li a tradução para dinamarquês... O que senti é
que se tratava sempre de descobrir um meio de traduzir a música. Depois
há outras línguas que não consigo ler, mas do que vou sabendo dos
leitores, parece que tenho tido sorte.

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